(Páginas 449 a 479) Murilo Naves Amaral
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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM
HELDER CMARA
TEORIAS DA DEMOCRACIA E DIREITOS POLTICOS
ADRIANA CAMPOS SILVA
ARMANDO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA
JOS FILOMENO DE MORAES FILHO
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Copyright 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Direito
Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prvia autorizao dos editores.
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T314 Teorias da democracia e direitos polticos [Recurso eletrnico on-line] organizao CONPEDI/ UFMG/FUMEC/Dom Helder Cmara; coordenadores: Adriana Campos Silva, Armando Albuquerque de Oliveira, Jos Filomeno de Moraes Filho Florianpolis: CONPEDI, 2015. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-141-8 Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicaes Tema: DIREITO E POLTICA: da vulnerabilidade sustentabilidade
1. Direito Estudo e ensino (Ps-graduao) Brasil Encontros. 2. Democracia. 3. Direitos polticos. I. Congresso Nacional do CONPEDI - UFMG/FUMEC/Dom Helder Cmara (25. : 2015 : Belo Horizonte, MG).
CDU: 34
Florianpolis Santa Catarina SC www.conpedi.org.br
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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM HELDER CMARA
TEORIAS DA DEMOCRACIA E DIREITOS POLTICOS
Apresentao
com satisfao que apresentamos comunidade acadmica o livro Teorias da Democracia
e Direitos Polticos I, resultado da seleo de artigos para o Grupo de Trabalho homnimo
que constou da programao do XXIV CONGRESSO DO CONPEDI, ocorrido na cidade de
Belo Horizonte, entre os dias 11 e 14 de novembro de 2015.
A democracia como regime de governo remonta ao sculo V a.C. Contudo, existem muitas
nuances que distinguem as suas primeiras configuraes daquelas que ressurgem nas
democracias modernas e, principalmente, nas contemporneas. Destarte, a democracia se
apresenta de vrias formas em diferentes lugares e em momentos diversos.
Aps a terceira onda de expanso global da democracia ocorrida no ltimo quarto do sculo
XX, os diversos processos de transio democrtica tiveram um comportamento sinuoso em
direo sua consolidao. Em vrios pases da Amrica Latina e do leste europeu, os
processos de transio e consolidao da democracia ocorreram diversamente. Tanto nos
primeiros, resultantes de um processo de esgotamento das ditaduras militares que se
instauraram nos anos 60 e 70, quanto nos ltimos, oriundos da dbcle comunista iniciada
nos anos 80.
O Grupo de Trabalho Teorias da Democracia e Direitos Polticos I contou com a
apresentao de 29 artigos que passam agora a constituir este livro. So artigos que tratam,
de forma crtica, as mais variadas questes relativas democracia bem como quelas
concernentes s garantias e expanso dos direitos polticos.
Desejamos a todos uma boa leitura.
Prof. Dr Armando Albuquerque de Oliveira
Professor Dr. Jos Filomeno de Moraes Filho
Profa. Dra. Adriana Campos Silva
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PLURALISMO JURIDICO, LEGALIDADE E CAPITALISMO
PLURALISM LEGAL, LEGALITY AND CAPITALISM.
Murilo Naves Amaral
Resumo
O desenvolvimento da legalidade possui relao intrnseca com o sistema capitalista, de
modo que se torna imprescindvel conciliar a anlise do modelo econmico vigente com as
normas provenientes da legalidade estatal. Ocorre que, medida que se verifica a frustrao
da aplicabilidade do direito posto, surge uma crise na hegemonia jurdica estatalista, que por
sua vez, somente poder ser superada mediante a ampliao da participao coletiva e,
consequentemente, da implementao de um direito alternativo, que com a consolidao da
ideia de pluralismo jurdico, seja capaz de estabelecer vias adequadas para o atendimento das
demandas sociais. Nesse sentido, crucial que a desenvoltura do ordenamento jurdico
amplie as vias participativas, de maneira a estender, de forma democrtica, o reconhecimento
de fontes alternativas do direito, bem como a constituio do mosaico normativo a todos
aqueles que representam as verdadeiras demandas populares, como por exemplo, os atores
coletivos.
Palavras-chave: Legalidade, Capitalismo, Pluralismo, jurdico
Abstract/Resumen/Rsum
The development of legality has intrinsic relationship with the capitalist system, so that it is
essential to reconcile the analysis of the current economic model with standards from state
law. It happens that, as it turns out the frustration of the applicability of the right post, a crisis
arises in statist legal hegemony, which in turn, can only be overcome by expanding collective
participation and consequently the implementation of an alternative right that with the
consolidation of legal pluralism your mind, be able to establish appropriate channels to meet
the social demands.Therefore, it is crucial that the resourcefulness of law expands the
participatory way in order to extend, in a democratic way, the recognition of alternative
sources of law and the constitution of the legal mosaic to all those who represent the true
popular demands, for example, the collective actors.
Keywords/Palabras-claves/Mots-cls: Legality, Capitalismo, Pluralismo, Legal
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1.INTRODUO
A compreenso do sistema capitalista passa necessariamente pelo entendimento
do desenvolvimento da legalidade, tendo em vista que o campo normativo, historicamente,
vem sendo constitudo com o intuito de atender os interesses dominantes que em detrimento
das demandas sociais, impem uma agenda totalmente avessa a coletividade. Nessa
perspectiva, o pluralismo jurdico trata-se da via apta para buscar suprir a racionalizao do
direito posto e, consequentemente, democratizar a produo normativa, de modo que os
interesses coletivos em seu sentido mais amplo sejam colocados como prioridade no contexto
social.
Em face dessa constatao, o presente artigo, utilizando de uma metodologia
indutiva, visa analisar a partir do pluralismo jurdico as definies que envolvem o
reconhecimento do campo normativo alternativo, de forma a diferencia-lo de outros aspectos
que possam levar a determinados equvocos no tocante aos institutos que envolvem esta rea
do estudo do direito. Para isso, no entanto, de suma importncia entender as relaes que
envolvem a legalidade e o sistema capitalista, de maneira a se verificar uma participao mais
ampla que permita democratizar o processo de produo legislativa, mediante a atuao dos
chamados atores coletivos e, por consequncia, pelo reconhecimento da validade de novos
direitos provenientes dessas fontes alternativas.
Observa-se tambm, que torna-se necessrio entender que a constituio do
pluralismo jurdico deve enfrentar inevitavelmente temas colocados e debatidos
constantemente perante a sociedade, como por exemplo, a luta de classes que historicamente
rege as relaes sociais, tendo em vista que tal questo pode, aparentemente, impedir o
reconhecimento de direitos oriundos e produzidos pelas camadas populares.
Nesse sentido, o presente artigo tem por finalidade, alm de entender o fenmeno
do pluralismo jurdico mediante definio dos conceitos que o envolvem, compreender
tambm as razes que justificam a ampliao das fontes normativas, observando a evoluo
desse processo, de modo a demonstrar, a partir de uma atuao mais abrangente dos atores
coletivos, a possibilidade de suprir os obstculos que impedem sua consolidao.
2. LEGALIDADE E CAPITALISMO
Da ideia da legalidade instituda a partir da autoridade estatal surge,
concomitantemente, a construo do sistema capitalista com base na diviso de classes e
acmulo de capital. Porm, uma questo que se mostra crucial nesse contexto a
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identificao clara dos pontos comuns que expem a relao intrnseca existente entre a
legalidade instituda e o capitalismo. Sendo derivado do poder estatal, as bases da legalidade
atuam no sentido de cumprir a finalidade histrica do Estado, que atender os interesses do
capital. Basta observar que a evoluo do processo capitalista se d sobre o suporte estatalista
que, conforme narra Eric Hobsbawm (1981, p.25), desde a ascenso dos Estados Burgueses,
no sculo XVII, foi o responsvel por impor o poder empresarial contra o que, o saudoso
historiador ingls denominou, de grosso da opinio pblica1. Em face disso, cria-se a falsa
noo de uma universalidade em relao ao legalismo imposto pelo Estado, que na verdade,
tem como pano de fundo a manuteno das diferenas sociais e a imposio da vontade
burguesa sobre os interesses populares. Nesse sentido, conforme demonstra Alysson Leandro
Mascaro (2008, p.18):
[...] capitalismo legalidade, como parece ficar claro historicamente, mas tambm
que legalidade capitalismo, tendo em vista que a compreenso de uma instncia
tcnica apartada e aparentemente alheada das reais contradies s encontra sua
razo de ser na histrica cindida da explorao. A legalidade, como falsa
universalidade, s pode se uma instncia que comece no capitalismo, mas que no
ecoe, nos termos de sua alienao institucional da realidade, numa sociedade cuja
verdade social seja de fato universal [...] a falsa universalidade da legalidade que
certas vezes se mascara em momentos histricos nos quais aparentemente as
instncias poltico-jurdicas promovem concrdias social-democratas se revela
cabalmente quando o seu prprio formalismo nica universalidade, no fundo que
poderia se sustentar, a meramente formal se rompe por causa da dinmica de
reproduo econmica exacerbada, como no caso do capitalismo contemporneo.
Considerando-se que o Estado moderno surge em decorrncia ao atendimento aos
interesses burgueses que centralizaram o poder a partir da supresso dos feudos, com o intuito
de se estabelecer uma nova forma de vnculo social por meio das relaes formadas em razo
do mercado e do consumo, a legalidade estatal se origina no mesmo sentido, de forma em que
se instrumentaliza o poder opressor, contra aqueles que venham a se posicionar
contrariamente a estrutura econmica imposta. Todavia, vale lembrar, que a estrutura
burocrtica estatal constitui a legalidade, visando sempre o controle social, sem que para isso
atue mediante violncia desnecessria capaz de desestabilizar e de desacreditar o ordenamento
jurdico estabelecido. Para tanto, utiliza-se de mtodos que aparentemente legitimam o
aparato institucional e as prticas que nele se inserem, de modo que se crie a concepo de
1Afirma Hobsbawm (1981, p.25) que foi por meio do Estado que o denominado empresrio inovador
conseguiu se impor perante a opinio pblica. Segundo o ilustre autor aps 1.660, a hostilidade tradicional aos
equipamentos que tomam o po da boca dos homens honestos, deu lugar ao encorajamento da iniciativa em
busca de lucros, qualquer que fosse o custo social. Este um dos fatos que nos justifica em considerar a
Revoluo do sculo dezoito como o verdadeiro comeo poltico do moderno capitalismo ingls. Durante todo o
perodo subseqente o aparelho central do Estado tendeu a estar, se no adiante da opinio pblica em questes
econmicas, ento pelo menos mais disposto a considerar as reivindicaes do empresrio totalmente capitalista
exceto, claro, quando estas se chocavam com interesses mais antigos e maiores.
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que o sistema jurdico no se impe somente como um conjunto de normas, mas tambm
como relao dialgica e comunicativa com os indivduos, os quais incidem as regras
vigorantes. Diante disso, se tem a constituio da legalidade estatal, a partir do crdulo do
Estado de Direito, que, conforme assevera Marilena Chau (1981, p. 90), cumpre o papel de
fazer com que a dominao no seja tida como uma violncia, mas como legal, e por ser legal
e no violenta deve ser aceita, ou seja, a lei direito para o dominante e dever para o
dominado. Isso no quer dizer, no entanto, que no haja concesses, uma vez que, a
manuteno da ideologia instituda, no sentido gramciano2, exige que haja o aliciamento de
grande parte da sociedade, para que se crie a falsa impresso de que a ordem jurdica provm
de uma vontade popular. o que demonstra Joachim Hirsch, ao comentar sobre Poulantzas e
Gramsci (2010, p. 118):
Basicamente, so as formas sociais da prpria sociedade capitalista que do base
para a hegemonia das classes dominantes, tornando-a possvel. A singularizao
do Estado como corporificao da comunidade frente a todas as classes e frente aos
cidados isolados um requisito decisivo para que se formule e se imponha na
realidade uma poltica do capital abrangente, para alm da concorrncia e dos
antagonismos de classe. Isso inclui em geral as concesses materiais aos dominados,
que devem ser impostas a cada capitalista mediante o poder coercitivo do Estado.
Nesse diapaso, os destinatrios da norma jurdica possuem uma relao com a
legalidade de verdadeira retrica e aparncia de avanos, conquistas e retrocessos no que
tange aos direitos, enquanto que na verdade, o que se verifica a manuteno dos
instrumentos burocrticos legais de controle que consegue continuar comandando dentro
dessa teia de presses que caracteriza qualquer sociedade(AGUIAR, 1990, p. 35). Como
bem observa Roberto Aguiar (1990, p. 35) o ordenamento jurdico tem seu funcionamento
estabelecido de forma sbia, haja vista que compreende sua lgica voltada a conceder no
perifrico e manter no essencial, pois se o poder ceder no essencial ele no ser mais poder
e as regras dele emanadas no sero mais direito, tendo se em vista que o recuo no
fundamental significa a mudana do ordenamento oriunda da perda do poder poltico e de sua
substituio por outro grupo, justamente o que forou a queda de um pressuposto substancial
do sistema legal. Contudo, essa realidade, ainda que constantemente camuflada pela
cumplicidade do Estado com os grupos economicamente dominantes, com o advento do
2Conforme explicao de Alysson Mascaro (2010, p. 491) para Gramsci, a compreenso da hegemonia como
espao de luta envolve o direito. Alm de seu aspecto estrutural, como garantidor institucional da explorao, o
direito se presta a uma dimenso ideolgica clara Seus preceitos, modernamente, no se deixam demonstrar
como exploratrios: a igualdade formal e a liberdade negocial so suas armas mais aliciadoras. A concepo do
direito para Gramsci deve ser ampliada para alm de seu costumeiro uso tcnico, juspositivista, repressivo.
Tampouco o velho arcabouo jusnaturalista poder dar conta de explicar o direito nas exigncias do capitalismo
atual: ele se lana, alm da represso, para a conquista das vontades, dos desejos e dos comportamentos dos
sujeitos.
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sistema neoliberal, tornou-se fragilizada, na medida em que se abandonaram as poucas
polticas sociais estabelecidas, que mantinham o ordenamento vigente sob uma suposta paz
social, em favor da construo de um capitalismo racionalizado e que por si mesmo seria
capaz de solucionar todos os problemas que lhe fossem apresentados. Tais mudanas,
presentes no seio da sociedade, exps a necessidade de se criar meios alternativos de
reconhecimento de direitos que so oriundos das prprias bases populares.
Posto isso, torna-se claro que a manuteno do aparato estatal como fonte nica
de normas jurdicas, explicita a crise de legitimidade, que atualmente encontra-se presente na
esfera legal, uma vez que os direitos no incidem sobre todos de forma plena, pois ao
contrrio, o que se assegura so determinadas garantias em prol da propriedade e dos
interesses econmicos que visam atender uma minoria de pessoas, integrantes das classes
mais abastadas,
3. A NECESSIDADE DE UMA PARTICIPAO MAIS AMPLA NO PROCESSO
DEMOCRTICO
cedio que o processo democrtico exige a participao ampla dos mais
variados setores que representam a sociedade e no pode ficar limitada to somente a grupos
que concebem apenas uma parcela de pessoas situadas no pice da pirmide social. A ideia de
uma democracia formal, que se situa no centro do discurso capitalista, no deve ser aceita
como se houvesse a consolidao da democracia plena, posto que, os direitos, apesar de
declarados, no existem de forma concreta perante a maioria da populao. Nesse contexto, o
que se constata na prtica, que democracia se restringe ao formalismo jurdico e, como
assinala Marilena Chau (1997, p. 430), se reduz apenas a um regime poltico eficaz, baseado
na ideia de cidadania organizada em partidos polticos e manifestando-se no processo eleitoral
de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas solues tcnicas (e no
polticas) para os problemas sociais.
Esse aspecto conferido a democracia, nada mais produz do que a construo de
um sistema poltico baseado na convenincia dos interesses dominantes, que criam uma
aparncia de estabilidade institucional, mas que, em sua essncia, so mantidas as
disparidades advindas do acmulo do capital e da luta de classes.
A prpria lgica da cidadania somente poder ser exercida com a possibilidade de
se ampliar a fontes normativas, tendo-se em vista que a presso popular deve estar inserida
nesse contexto, de modo a garantir que direitos dos cidados no sejam menosprezados diante
a estrutura jurdica estabelecida. Somente para ilustrar isso melhor, mesmo em pases como o
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Brasil, cuja participao popular no processo democrtico minada pelos grupos dominantes,
que utilizam do direito estatal para impor seus interesses, muitas das conquistas, que
poderiam ser consideradas a partir da leitura da Constituio Federal de 1988, ainda que, em
diversos casos ou at mesmo na maioria deles, no haja uma eficcia concreta, foram
alcanadas a partir da atuao do povo.
O debate pblico que permitiu a propositura de emendas populares na constituinte
de 1988, nas explicaes de Joo Baptista Herkenhoff (2004, p. 136-137) corporificaram as
aspiraes nacionais contemporneas, de maneira que se pode concluir que tais previses
apontam no sentido de uma cultura de Cidadania e dos Direitos Humanos. Foram essas
emendas que traduziram os grandes temas elencados pela Constituio, como os direitos ao
idoso, os direitos da criana, o zelo pelos adolescentes, os direitos das mulheres, os direitos
dos trabalhadores, entre tantas outras previses que poderiam ser mencionadas
(HERKENHOFF, 2004, p. 136). diante dessa perspectiva, que os atores sociais,
representados por grupos e movimentos que defendem os interesses do povo, que permitem
o exerccio do poder estatal em termos democrticos, sem que haja o prevalecimento de
concepes autoritrias, que obstaculizam a soberania popular.3
4. A VALIDADE DE NOVOS DIREITOS
As mudanas profundas expostas pelo contexto que se desenvolve a partir da
prpria sociedade demonstram a clara necessidade de reconhecimento de novos direitos, que
no sejam apenas derivados do Estado burgus, mas sim da atuao dos atores sociais que
surgem como forma de ampliar a participao popular na elaborao do ordenamento vigente.
Durante o sculo XX o Estado moderno presenciou a contradio oriunda dos
modelos capitalista e socialista, que, por consequncia alterou a lgica dos conflitos sociais e
trouxe novas perspectivas atuao dos operadores do Direito, a medida que o sistema
jurdico deixa de ser observado somente luz da legalidade imposta. Nesse sentido, conforme
bem asseverou Jos Geraldo de Sousa Jnior (1996, p. 93-94), se originam dois aspectos
paradoxais, nos quais, de um lado se tem a emergncia valorativa de uma concepo de
direito, que se apoiou na ideia do direito livre, isto , a ideia de que no o Estado que cria o
direito, mas que a sociedade que o produz e, por outro lado, a viso do direito legal,
3Nos dizeres de Bonavides (2001, p.199-200) sobre a importncia das massas nas democracias, o ilustre jurista
observa, ao citar Nawiasky, que a democracia e o Estado no podem ir contra as massas, seno com as
mesmas, pois, do contrrio seria entreg-las, em covarde capitulao, aos piores flibusteiros do totalitarismo.
Estes so, em geral, os demagogos atrevidos, que j se acham vista para explor-los. Conforme continua a
expor Bonavides o constitucionalismo democrtico emancipou politicamente s massas com o sufrgio
universal, porm no soube ainda conquist-las.
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proveniente da cultura legalista dos juristas que valorizou intensamente o plano das leis, de
modo que se estabeleceu a prevalncia da legalidade sobre a juridicidade.
Todavia, com a ideia do direito livre que se consolida o vis democrtico, pois
este direcionamento que ressalta a relevncia de se buscarem formas plurais de
fundamentao para a instncia da juridicidade, contemplando uma construo comunitria
solidificada na plena realizao existencial, material e cultural do ser humano (WOLKMER,
1994, p. 144). Interessante salientar, entretanto, que o surgimento de novos direitos devem
estar consoantes com preceitos ticos que se caracterizam por no negligenciar as
necessidades humanas, ou seja, trata-se daquilo que Edgard Morin (2007, p. 103) denomina
de tica altrusta, que se caracteriza por ser uma tica da religao que exige manter a
abertura do outro, salvaguardar o sentimento de identidade comum, consolidar e tonificar a
compreenso do outro. Desse imperativo altrusta, surge a prpria noo de solidariedade
que consequentemente trata-se da base daquilo que Morin (2007, p.147) denomina de tica da
comunidade, que por sua vez servir de sustentao ao processo democrtico. Neste contexto,
como continuar a demonstrar Edgar Morin (2007, p.147):
A democracia faz do indivduo um cidado que reconhece deveres e exerce direitos.
O civismo constitui ento a virtude sociopoltica da tica. Requer solidariedade e
responsabilidade. Se o civismo se esgara, a democracia esgara-se. A no
participao na vida da cidade, apesar do carter democrtico das instituies, leva
agonia da democracia. H, portanto, num caso assim, perecimento da democracia e
do civismo.
Diante disso, pode-se concluir o que expe as escritas de Henrique de Lima Vaz
(1996, p. 39-40), na qual essa inter-relao entre o tico, o poltico e o jurdico o que se
trata da premissa para a demonstrao rgida da organizao democrtica da sociedade e do
Estado, que somente se torna efetivamente vivel quando a participao poltica mobiliza as
energias ticas do cidado, apresentando-se a ele como um inevitvel comprometimento de
sua conscincia moral. A observncia do aspecto da eticidade perante o surgimento de novas
fontes jurdicas vem acompanhada da ideia de que o Direito no pode ser reduzido lei, at
mesmo porque, como recordou sabiamente Roberto Lyra Filho, a interpretao e anlise feita
por pensadores do direito a partir de um crculo de legalidade (alis, provindo de uma
ruptura, mais prxima ou mais remota, de outra legalidade) no , em si, prova de coisa
alguma, quanto a legitimidade (LYRA FILHO, 2006, p.38). Alis, conforme continua a
expor Lyra Filho (LYRA FILHO, 2006, p.38), qualquer tirania pagava com gosto (e paga
mesmo) este pequeno tributo, que cobrir de leis o corpo nu do poder, pensando que isto
basta para torn-lo inatacavelmente jurdico. Tal constatao decorre pelo fato de que,
principalmente em sociedades emblematizadas pela intensa diviso de classes e concentrao
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de renda, como no Brasil, as reivindicaes populares somente podero ser concretizadas,
caso haja o protagonismo dos atores coletivos que representam as demandas da sociedade. Do
mesmo modo o que explana Antnio Carlos Wolkmer (WOLKMER, 1994, p. 144):
Neste espao de sociedades divididas em estratos sociais com interesses
profundamente antagnicos, instituies poltico-jurdicas precrias, emperradas no
formalismo burocrtico e movidas historicamente por avanos e recuos na conquista
de direitos, nada mais significativo do que constatar que o pluralismo dessas
manifestaes por novos direitos uma exigncia contnua da prpria coletividade
frente s novas condies de vida e s crescentes prioridades impostas socialmente.
O processo simblico que foi construdo pela autoridade estatal a partir da
legalidade, no mais gera a confiabilidade necessria para legitimar as instituies vigentes,
logo, passa-se a questionar os ideais que se construram em torno de uma institucionalizao
excessiva, na medida em que, diferentemente do que se supunha, tal concepo talvez tenha
mais a ver com a auto-encenao de uma dominao totalitria de que com as realizaes
simblicas de um Estado constitucional democrtico(HABERMAS, 2003,p.81). Segundo
Habermas (2003, p. 160) na interpretao republicana, a substncia da constituio tem que
emergir de um processo inclusivo de formao da opinio e da vontade dos cidados, pois
caso o contrrio, haveria um conflito com a soberania do povo. Neste sentido, o ilustre
autor demonstra que concebe-se a autodeterminao democrtica como um auto-
entendimento poltico-tico, no coagido, de um povo acostumado a liberdade e, desse
modo, os princpios do Estado de direito no seriam prejudicados, pois seria reconhecidos
como parte integrante de um ethos democrtico (HABERMAS, 2003, p. 160). Porm tal
perspectiva, observada de forma isolada, parece no agradar Habermas (HABERMAS, 2003,
p. 160), posto que introduz, na histria das mentalidades e na cultura poltica da comunidade,
as orientaes valorativas liberais que tornam suprflua a imposio do direito atravs do
costume e da autoligao moral. Como alternativa a isso, o pensador alemo visa uma
interpretao republicana em outro sentido, de carter procedimentalista, quando a
expectativa racional de uma formao democrtica da opinio e da vontade, que se limita a si
mesma, se transporta das fontes de um consenso j existente para as formas caractersticas do
processo democrtico (HABERMAS, 2003, p. 160).
Apesar de Habermas ter razo no que se refere interpretao republicana
clssica, em relao ideia de consenso, parece que tal fator, como determinante a uma
condio moral universal, se torna extremamente surrealista, perante o cenrio dos sistemas
polticos e econmicos atuais, principalmente quando se observa processos democrticos em
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construo, como o caso da realidade brasileira4. Ocorre que as condies habermasianas
esto longe de serem efetivadas, visto que os consensos obtidos desta forma, acabam por ser
frequentemente muito mais mistificadores do que os imperfeitos consensos estabelecidos na
base da democracia representativa (HESPANHA, 2010, p. 153-154).
Por isso, na acepo de Antnio Manuel Hespanha (2010, p.155) os novos direitos
que surgem, devem necessariamente serem trabalhados a partir de uma metodologia
inovadora, que permita reconhecer sem discriminao, todas as formas de manifestao
autnoma de direito e de dar a todas elas a mesma capacidade de se exprimirem na
comunidade jurdica, pois somente dessa forma, estaro garantidas, a legitimidade e o carter
de justia das solues jurdicas que derivam de um dilogo com vista ao consenso. Em razo
dessa realidade, a participao popular na formao do ordenamento vigente, torna-se
imprescindvel na superao da cultura legalista, que se contrape aos interesses do povo e
exclui do processo democrtico os atores sociais, que, por sua vez, so os verdadeiros
representantes das demandas oriundas da sociedade. Por esse motivo, os movimentos sociais e
os demais atores coletivos se transformam na via emancipadora do direito, capazes de,
mediante uma participao democrtica, ampliar as fontes produtoras de normas jurdicas, de
modo em que haja a superao definitiva da racionalidade institucionalizada proveniente do
Estado liberal.
4WOLKMER (1994, p. 251) demonstra que a teoria macrocsmica e interdisciplinar de Habermas, por
transcender as diversas formas particularizadas de racionalidade tcnico-industrial, o ponto de partida da
discusso sobre toda e qualquer reflexo que envolva, hoje, a problematizao de uma nova racionalidade.
Realar a contribuio habermasiana no impede contudo, de reconhecer seus limites para uma soluo efetiva e
total de especificidade histrica das sociedades perifricas. Um primeira ressalva que se pode fazer a de que a
proposta altamente sofisticada da racionalidade comunicativafoi elaborada tendo em vista as condies
materiais e culturais de sociedades capitalistas que alcanaram um elevado grau de riqueza, desenvolvimento e
satisfao das necessidades. Um segundo elemento a considerar o de que a ao e o entendimento
comunicativo pressupem, obrigatoriamente a presena de atores livres, autnomos e iguais, condies que no
condizem com a realidade do Terceiro Mundo e da Amrica Latina, onde, como se sabe, os sujeitos individuais e
coletivos vivenciam uma situao histrica de alienao, opresso, desigualdade e excluso. Um terceira
ponderao encontra-se na dificuldade de alcanar um consenso na esfera de espaos comunicativos
perifricos profundamente marcados por contextos culturais fragmentrios, tensos e explosivos. No parece ser
to fcil distinguir o falso do verdadeiro consenso ou mesmo de atingir um consenso espontneo desprovido
de preconceitos. No mundo contemporneo temos visto que o consenso pode, tanto ser forjado e manipulado
por burocratas partidrias estatais (Socialismo de Estado), quanto pela indstria cultural do Capitalismo de
massas. Uma quarta restrio que este novo paradigma de ao dialgico-discursivo requer uma comunidade
lingustica ideal, de pureza quase utpica, desprovida de mentira, coao e irresponsabilidade. Por outro lado,
as dificuldades subsistem ainda com relao prpria institucionalizao desses discursos emancipatrios que,
como se sabe, so criaes artificiais firmadas em cima da suposta competncia argumentativa dos participantes
envolvidos. Por ltimo, h supervalorizao da razo humana como agente de transformao e da emancipao,
sem distinguir as diferenciaes, condicionamentos e irracionalismos inerentes a prpria experincia do
homem.
457
-
5. PLURALISMO E MARXISMO
A anlise a respeito do tema trabalhado traz um debate inevitvel, que decorre da
relao entre as concepes do socialismo marxista e do pluralismo jurdico. Neste sentido,
surge a seguinte indagao: possvel conciliar as opinies defendidas por Karl Marx com a
ideia da construo de um sistema pluralista na produo de normas jurdicas?
Buscando resolver o dilema acima mencionado, Norberto Bobbio (1999, p. 24)
demonstra que se deve analisar a questo a partir de quatro pontos, que seriam: 1) pluralismo
e marxismo; 2) pluralismo e teoria (e prtica) dos partidos marxistas; 3) pluralismo e
compromisso histrico, 4) pluralismo e sociedade socialista futura.
Em relao ao primeiro aspecto, pluralismo e marxismo, Bobbio (1999, p.24) cita
o artigo possvel conciliar o pluralismo com Marx?, de autoria do pensador italiano Pietro
Rossi, que foi publicado no II Giorno, na data de 19 de setembro de 1976. Segundo Rossi
(apud BOBBIO, 1999, p.24), h uma clara divergncia entre pluralismo e marxismo, posto
que, no pluralismo h o reconhecimento de que a sociedade constituda por uma
multiplicidade de grupos portadores de interesses diferentes mas no necessariamente
incompatveis, enquanto que para o marxismo a sociedade formada de classes
antagnicas.
No que tange ao segundo ponto, pluralismo e teoria (e prtica) dos partidos
marxistas, Rossi (apud BOBBIO, 1999, p.24) observa que na acepo pluralista a funo dos
partidos representativa e mediadora, enquanto que no marxismo, representativa, mas no
mediadora, pelo fato de o partido representar os interesses permanentes de uma s classe.
J em relao ao terceiro ponto, pluralismo e compromisso histrico, Bobbio
(1999, p.27), cita Antonio Giolitti, que por sua vez, defende que no se deve correr o risco da
falta de alternativas, porque sem alternativa e sem a possibilidade de uma oposio capaz de
substituir pacificamente o governo em exerccio, teramos um pluralismo social preso a um
totalitarismo poltico. Neste sentido, como volta a explicar Bobbio (1999, p. 27), o
pluralismo, de maneira distinta com o que ocorre com as vises marxistas, no teria um
compromisso histrico, pois caso assim fosse, terminaria por bloquear o desenvolvimento de
uma sociedade pluralista.
Por fim, Bobbio (1999, p.27-28) tece seus comentrios sobre a quarta questo a
ser levantada, que seria o pluralismo e a futura sociedade socialista, na qual ele observa que
no h uma resposta clara para buscar a soluo diante a necessidade de se conciliar estes dois
pontos, conforme se pode verificar:
458
-
[...] como o pluralismo comeou, nos tempos atuais, por fazer parte do nosso
conceito de democracia, sabemos tambm que uma sociedade socialista, para ser
democrtica, ter de ser pluralista. Mas ainda no sabemos como. Para definir a
democracia so necessrias duas negaes: a negao do poder autocrtico, em que
consiste a participao, e a negao do poder monocrtico, em que consiste o
pluralismo. Pode-se pensar perfeitamente numa sociedade democrtica no-
pluralista, como a repblica de Rousseau; e existiram sociedades democrticas no
pluralistas no regime feudal. Uma sociedade socialista, para ser democrtica, deveria
ser no-autocrtica e no-monocrtica. Os esforos do pensamento socialista e
democrtico voltaram-se para o primeiro objetivo alargamento da participao do
poder poltico estreitamente ligado ao poder econmico e ainda no para o
segundo. Ficaramos satisfeitos se este debate servisse para identificar um problema,
pelo menos.
Neste contexto, pode dizer que se por trs pluralismo encontra-se um Gurvitch
ou um Proudhon, por outro, no rol do monismo, alinham-se pensadores como Hegel e
Marx(WOLKMER, 1994, p. 203). No caso mais especificadamente de Marx, no h
perspectivas quanto possibilidade conciliao entre os interesses burgueses e as demandas
sociais, uma vez que, conforme elucida Alysson Mascaro (2010, p. 296) os problemas da
liberdade real e no da formal, da igualdade real e no da isonomia somente podero ser
solucionados, na viso marxista, pela prxis revolucionria e no pela declarao de
direitos.
A anlise marxista realiza uma vinculao entre o capitalismo e o direito, de modo
que, o aparato jurdico, na verdade, se trata da sustentao de toda a lgica de explorao
econmica empreendida pela classe burguesa. Segundo Marx (2008, p. 109) o contedo da
relao jurdica ou de vontade dado pela prpria relao econmica, e em razo disso,
conclui ele que as condies lgicas, sociais e histricas que viram nascer o mercado como
categoria socializadora central da sociedade capitalista so as mesmas que viram nascer o
sujeito de direito (MARX, 2008, p.206).5 Sob esse prisma, a proposta de que por meio da
produo alternativa de normas haveria uma possibilidade de insero social, para Marx se
mostraria descabida, pois, conforme pode se verificar na sua crtica aos chamados utopistas, a
frmula para a soluo da questo social estaria no na cincia em si, mas em sua criao a
partir de um movimento crtico do movimento histrico, de um movimento que produz ele
prprio as condies materiais de emancipao (MARX, 1983, p.24).
5De acordo com Mrcio Bilharinho Naves (apud MASCARO, 2010, p. 297) Marx mostra que as categorias da
liberdade e da igualdade e a forma-sujeito (universal) emergem apenas do momento histrico da constituio da
sociedade mercantil-capitalista que, por se fundar no trabalho assalariado, necessita romper com as formas de
dependncia pessoal do feudalismo. O homem ter que ser livre para poder vender a sua fora de trabalho no
mercado, por meio de um contrato, portanto, sem que seja submetido a quaisquer modalidades de coero ou de
perturbao de sua vontade, e em condies de igualdade diante do comprador. Dotado da capacidade jurdica, o
homem se transfigura em sujeito de direito, tornando-se apto a negociar a nica mercadoria de que proprietrio,
a sua fora de trabalho.
459
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Assim, o Direito, na posio defendida por Marx, trata-se de um produto que se
constitui pela necessidade histrica de as relaes produtivas capitalistas estabelecerem
determinadas instncias que possibilitem a prpria reproduo do sistema (MASCARO,
2010, p. 294-295). Em face disso, no marxismo, no parece que haja possibilidade de uma
conciliao entre os grupos sociais antagnicos, uma vez que, em razo da contradio
econmica no sistema e da luta de classes, os vcios do capitalismo no permitiriam que
houvessem instrumentos democrticos para a ampliao da participao popular, at porque, o
alcance de uma sociedade mais igualitria, somente se daria pela via revolucionria. Portanto,
perante tal perspectiva, o Direito e as vias alternativas de produo legislativa no se tratam
de meios hbeis para se atingir o rompimento do modelo econmico vigente, pois a classe no
marxismo o que seria a medula da revoluo (BONAVIDES, 2001, p.174).
6. O PLURALISMO JURDICO E O SISTEMA DE NECESSIDADES
O direito estatal cada vez mais se mostra como um instituto, cuja produo
normativa no atende as demandas populares, pois na verdade, o que se tem muitas vezes,
um fortalecimento da atuao do Estado em prol dos interesses dominantes, sem que o
restante da sociedade seja concretamente beneficiado pela ampliao no rol de direitos
declarados6.Nesse sentido torna-se imprescindvel a ampliao da produo normativa
mediante uma atuao ampla e irrestrita dos atores coletivos, que surgem para democratizar o
debate social e, consequentemente, permitir que a legislao seja construda, principalmente,
em favor daqueles que almejam alcanar uma igualdade substancial.
Nota-se que com o aparecimento dos atores coletivos, se constitui aquilo que se
denomina de sistema de necessidades (WOLKMER, 1994, p.216), que por sua vez
caracteriza-se por estar voltado ideia de atendimento as necessidades humanas
fundamentais, que compreende necessidades sociais, existenciais ou de vida, materiais ou de
6 Nos ensinamentos de Friedrich Mller (2000, p. 95-96) os direitos fundamentais no esto positivados
disposio dos indivduos e dos grupos excludos, mas os direitos fundamentais e humanos destes so violados
(de forma repressiva e de outras formas). Normas constitucionais manifestam-se para eles quase s nos seus
efeitos limitadores de liberdade, seus direitos de participao poltica aparecem diante do pano de fundo a sua
depravao integral preponderante s no papel, assim como tambm o acesso aos tribunais e proteo
jurdica. A constituio no pode impor o cdigo direito/no direito diante do metacdigo, ela fracassa na tarefa
de acoplar de forma confivel o direito, a poltica e a sociedade. Os superintegrados dispem exclusivamente da
constituio; a inconstitucionalidade ou contrariedade ao direito da sua ao ou da ao dos seus polticos,
peritos, milicianos no se torna objeto de procedimentos jurdicos normatizados e com isso nem se torna tema no
sentido forte desse termo. O cdigo jurdico est subordinado ao cdigo poltico, o direito est subordinado
economia, o Estado est subordinado atividade econmica com as conseqncias j insinuadas para os
economicamente fracos, quer dizer, para a maior parte da populao. Ento no admira mais que a reivindicao
de direitos de cidadania por parte de subcidados excludos, subintegrados, seja identificada constantemente com
subverso.
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subsistncia, e culturais (WOLKMER, 1994, p.217). De forma oposta a isso, o direito estatal
somente parece contemplar as necessidades relacionadas ao poder econmico, o que prejudica
o atendimento de outras demandas fundamentais, uma vez que, conforme explica Agnes
Heller (apud WOLKMER, 1994, p.219) certas necessidades relacionadas posse, ao poder,
e ambio no podem e no devem ser inteiramente satisfeitas, sob pena de prejudicarem a
objetivao de outras necessidades consideradas essenciais para amplos setores da
humanidade. Em face de tal cenrio, constitui-se aquilo que Heller (apud WOLKMER,
1994, p.220) caracteriza como sociedade insatisfeita e, desse modo, a atuao dos
movimentos sociais e dos novos atores coletivos se fortalecem, posto que, na medida em que
vai se ampliando a insatisfao, se constitui um sistema pautado em reivindicaes de ndole
social, poltica e cultural-espiritual (HELLER apud WOLKMER, 1994, p.221).
7. O PLURALISMO JURDICO COMO MEIO DE EMANCIPAR A SOCIEDADE DA
FRUSTRAO ORIUNDA DAS PROMESSAS NORMATIVAS ESTATAIS.
De acordo com Niklas Luhmann (1983, p.45) o homem vive em um mundo
constitudo sensorialmente, cuja relevncia no inequivocamente definida atravs do seu
organismo. Dessa forma, Luhmann (1983, p.45) demonstra que, cada experincia concreta
apresenta um contedo evidente que remete a outras possibilidades que so ao mesmo tempo
complexas e contingentes. A complexidade deriva do fato de que sempre existem mais
possibilidades do que se pode realizar, e a contingncia significa o fato de que as
possibilidades apontadas para as demais experincias poderiam ser diferentes das esperadas,
ou seja, que essa indicao pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente inatingvel, ou a
algo que aps tomadas as medidas necessrias para a experincia concreta (por exemplo,
indo-se ao ponto determinado), no mais est l (LUHMANN, 1983, p.45-46). Em
consequncia da complexidade e da contingncia acrescenta-se aquilo que Luhmann (1983,
p.53) denomina de expectativas concretas, e em especial, as abstraes que as regulam e
integram em decorrncia de uma estrutura (LUHMANN, 1983, p.53). A dependncia dessas
estruturas que tem que ser consistentes, at mesmo pelo fato de haver uma crescente
complexidade e contingncia na sociedade, gerando um aumento no nvel de tenses sociais,
no est imune aos desapontamentos das expectativas e dos riscos (LUHMANN, 1983, p.54).
As expectativas podero ser cognitivas ou normativas, sendo que as primeiras se
do pelo fato de ser possvel assimilar os desapontamentos, enquanto que a segunda no h
essa possibilidade (LUHMANN, 1983, p.54). Por isso, Luhmann (1983, p.57) observa que as
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normas so expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafticos, pois seu
sentido implica na incondicionalidade de sua vigncia na medida em que a vigncia
experimentada, e portanto tambm institucionalizada, independentemente da satisfao ftica
ou no da norma. Porm, como reconhece Luhmann (1983, p. 77) as expectativas normativas
no podem indefinidamente ser expostas a desapontamentos, sendo necessrio achar sadas
para o problema. Ainda que Luhmann, no seja favorvel de se estender o consenso ftico7,
para que haja a possibilidade de ampliao de fontes normativas, no parece que a alternativa
da institucionalizao seja o melhor caminho para se superar essa frustrao diante a
aplicabilidade da norma jurdica, que nem sempre consegue atender a todas as demandas.
Se no mbito jurdico h um prprio cdigo comunicativo, conforme quis expor
Luhmann (1983, p.85), sem que terceiros pudessem interferir, j que as opinies estariam no
campo da poltica, tal concepo deriva da prpria lgica da chamada teoria dos sistemas, na
qual as sociedades diferenciam-se em uma srie de sub-sistemas, fechados em si mesmos e
referidos a si mesmos (HIRSCH, 2010, p. 11-12). No entanto, conforme demonstra Joachim
Hirsch (2010, p.13) mesmo que a teoria dos sistemas possa demonstrar algumas vantagens,
pode-se apontar tambm certas dificuldades, pois sendo o Estado compreendido como uma
autodescrio do sistema poltico que prescreve as decises polticas aos atores em ao e
se autolegitima como socialmente geral, tais fatores ocasionam algumas indagaes, como
por exemplo: o que fazer com determinadas questes que surgem no meio social, nas quais
pode-se citar o poder das grandes empresas quando tomam e aplicam decises que afetam a
todos; os sindicatos e as federaes empresariais, os seus acordos salariais ou o plano de
investimentos das grandes empresas? Isso no envolve decises obrigatrias que afetam a
sociedade? Os conflitos sociais resultam realmente apenas das decises tomadas no interior
do sistema poltico? (HIRSCH, 2010, p. 13).
Os questionamentos levantados por Hirsch que, por ser adepto da ideia voltada a
teoria materialista do Estado no se trata de um pensador simptico a concepo pluralista,
visto que a considera bastante simplista (HIRSCH, 2010, p.12) - expem que, alm do
7Para Luhmann (1983, p.85) a necessidade de se distender, simular e substituir o consenso ftico tem suas
condies agravadas com a crescente multiplicidade das possibilidades no campo da experimentao da ao.
No mais possvel ter expectativas confiveis sobre um consenso de um terceiro qualquer com respeito a
determinadas expectativas, e menos ainda, prev-lo para expectativas novas. No se sabe por exemplo, quais
tendncias de reforma universitria seriam preferidas pelos camponeses, qual a melhor organizao judiciria
para as donas de casa, quais condies atacadista so proferidas por professores secundrios. Em termos
realsticos necessrio supor que tais opinies sequer possam existir ou serem geradas, e que s se possa
produzir a fico institucional das opinies. Isso remete necessidade da poltica. Alm disso coloca-se a
ameaa de perder-se a limitada capacidade adaptativa das instituies, j que os terceiros relevantes tornam-se
inacessveis nas crescentes ordens de grandeza.
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mencionado acima, surgem outras questes mais problemticas, pois atravs da definio do
sistema poltico enquanto momento funcional no interior de uma complexa e diferenciada
relao de sistemas, a dominao social e mesmo a explorao desaparecem, ou seja, a
sociedade definida como uma espcie de circuito regulador autoestabilizado (HIRSCH,
2010, p.13-14).
No obstante, o perigo da contnua frustrao em relao fonte normativa estatal
estimula a formao de ideologias extremistas e totalitrias que visam justificar suas teses
diante a inoperncia do sistema. Exemplo clssico disso, pode ser encontrado nas teorias de
Carl Schmitt (2007), que demonstrando a concepo formalista adotada pelo Estado liberal,
na qual se sustenta a distino entre a lei e aplicao da lei, expe que para se evitar o
desmoronamento do sistema parlamentar necessrio se constituir um legislador
extraordinrio que seria capaz de emitir um ato singular, que tornasse insignificante todo
o sistema de salvaguardas jurdicas construdo com engenhosidade para combater injunes
do Executivo(SCHMITT, 2007, p.75)8. A tese defendida por Schmitt serviu de base para
doutrinar na Alemanha, o regime nazista, em razo das frustraes advindas dos problemas
sociais que se espalhavam na poca, bem como pelo fato de no se ter uma legislao
eficiente capaz de assegurar direitos, ainda mais porque, os fatores externos, como o
famigerado Tratado de Versalhes, que ao final da Primeira Guerra Mundial implementou
inmeras medidas que humilharam abruptamente o povo daquele pas, impediram que
houvesse qualquer postura que visasse melhoria das condies sociais da populao. Por
isso, diante as necessidades que aparecem diante as mudanas sociais, surge
imprescindibilidade de modificao da natureza do sistema jurdico, e o direito alternativo se
trata de uma via que se origina para que as satisfaes oriundas da sociedade no continuem a
serem frustradas.
O direito alternativo, que se originou entre 1960 e 1970, desenvolveu-se como
um movimento que tentou promover mudanas sociais atravs do direito (SABADELL,
2010, p.118) e, dessa forma, buscou estabelecer um novo sistema jurdico gerado
espontaneamente no seio dos movimentos sociais e substituindo paulatinamente o opressor
direito do Estado (SABADELL, 2010, p.119).
8Segundo Carl Schmitt (2007) o fracasso do Estado legiferante parlamentar, com base nas acepes liberais,
instituiu a necessidade de se estabelecer um legislador extraordinrio que cria Direitos, inclusive contra as leis
que j esto em vigor, em razo de terem sido aprovadas pelo parlamento. Analisando-se a Constituio de
Weimar, Schmitt (2007, p.74 e s.s.) salienta que o contedo da competncia legislativa atribuda ao legislador
extraordinrio superior ao do legislador ordinrio do parlamento (Reichstag), posto que, tem a faca e o queijo
na mo para conferir a cada medida por ele tomada o carter de norma jurdica com toda prioridade de que goza
a lei no Estado legiferante parlamentar.
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Em pases perifricos, e em desenvolvimento como o Brasil, o fato de o poder
jurisdicional atuar em conjunto e em favor das elites e do poder econmico, expressa que a
aplicabilidade do Direito na esfera prtica acaba sendo bastante diferenciada que a construda
no mbito terico, visto que, alm de provocar frustraes sensoriais sobre direitos difusos e
coletivos, pela ineficcia das normas estatais, estabelecem um sistema opressor que em vez de
assegurar garantias, se volta contra a prpria sociedade, mediante atos de violncia e
represso das autoridades previamente constitudas pelo Estado. o que se verifica, por
exemplo, nas vicissitudes que ocorrem no processo de reforma agrria no Brasil. Conforme
lembra Ana Lcia Sabadell (2010, p.113) a timidez e lentido da implementao de
reformas na estrutura agrria brasileira, com resultados polticos infrutferos, na verdade cria
uma situao em que se efetiva a represso a movimentos sociais, em vez de garantir que os
direitos reivindicados sejam alcanados, haja vista que, os governos pactuam como
representantes do poder latifundirio e, na atualidade, tambm com grandes empresas
multinacionais ligadas ao agronegcio. E isso indica aquilo que Sabadell (2010, p.113)
sabiamente denomina de debilidade do Estado, que mesmo aps a Constituio de 1988
que textualmente vincula a funo social da terra com o exerccio do direito de propriedade -,
no consegue efetivar a reforma agrria.
A frustrao diante a expectativa da concretizao do fenmeno jurdico, afasta
qualquer possibilidade de percepo substancial do direito, que diferentemente da percepo
formal9, concentra-se na razo de ser, na sua origem, na sua justificao, e na sua finalidade,
ou seja, h um desapontamento em relao ao fenmeno jurdico que deve ser tratado na
perspectiva da justia que ele deve assegurar ou das realidades sociais a que deve satisfazer
ou do progresso que deve realizar (BERGEL, 2006, p. XXV). Apesar do discurso muitas
vezes democrtico, advindo da esfera estatal, a prtica na verdade mostra-se autoritria, isto ,
significa dizer que, mesmo quando o Estado leva em conta as reivindicaes democrticas, o
faz com o objetivo de preservar o processo de explorao em condies de estabilidade
poltica e social e desde que no haja prejuzo para a burguesia como um todo (MAGLIOLI
apud PASTANA, 2009, p.131). Nesse contexto, no sistema jurdico estatal, como
oportunamente assevera Dbora Pastana (2009, p. 131) criam-se mecanismos simblicos,
9 A abordagem formal, de acordo com Jean-Louis Bergel (2006, p.XXV), a segurana jurdica e as regras do
direito positivo dominam o sistema do direito que parece expressar sobretudo a vontade e a ao do poder
pblico, parecendo primordial sua coerncia. O pice dentro dessa tica, parece ter sido atingido por Hans
Kelsen, que reduz o direito a um encadeamento de normas hierarquizadas, sendo que cada uma tira sua fora
obrigatria apenas de sua conformidade com a norma superior. Assim, apenas o elemento normativo
considerado, ao passo que a razo de ser e o contedo das normas so abandonadas a outras disciplinas que no o
direito.
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nos quais a letra da lei supera a fala, de sorte que a manuteno dos privilgios se estabelece
graas crena interna de que, ao menos, obedeceu-se a um ritual preestabelecido, encenao
necessria a fim de encobrir os interesses particulares de seus executores.
Vislumbra-se que nossa histria jurdica, nos cdigos e filosofias, mas cuidou da
legitimao que da opresso (MASCARO, 2008, p. 15) e, neste sentido, torna-se necessrio
compreender a lgica estruturante do poder, na qual o Direito se instrumentaliza como objeto
de dominao social. Na anlise de Foucault (1979, p. 183) o poder funciona e se exerce em
rede, e, dessa maneira, o sistema do direito, o campo judicirio so canais permanentes de
relaes de dominao e tcnica de sujeio polimorfas (FOUCAULT, 1979, p. 182). Logo,
o direito deve ser visto como um procedimento de sujeio, que ele desencadeia e no como
uma legitimidade a ser estabelecida (FOUCAULT, 1979, p. 182) e, neste sentido, Foucault
defende que a questo central para o direito deve ser analisada no sobre o aspecto da
soberania e da obedincia dos indivduos, mas sim a partir do problema da dominao e da
sujeio (FOUCAULT, 1979, p. 182). Perante a perspectiva apresentada por Foucault:
temos, portanto, nas sociedades modernas, a partir do sculo XIX at hoje, por um
lado, uma legislao, um discurso e uma organizao do direito pblico articulado
em torno de princpios do corpo social e da delegao do poder, e por outro, um
sistema minucioso de coeres disciplinares que garanta efetivamente a coeso deste
mesmo corpo social (FOUCAULT, 1979, p. 189).
A perspectiva do Direito a partir do processo de dominao traz a tona, a
necessidade de se resistir e se contrapor ao sistema jurdico opressor do Estado, tanto no
aspecto jurdico-poltico-social, em que a resistncia passa pelo campo da cidadania, de modo
a se estimular a luta coletiva10
, como tambm pelo aspecto tico, para se buscar enfrentar as
condies que fazem emergir a crueldade subjetiva (MORIN, 2007, p. 201).
Considerando-se que as foras populares organizam-se, numa variedade imensa
de formas e modelos (HERKENHOFF, 2004, p. 55), o poder dominante, mesmo impondo
decises contrrias aos interesses das maiorias tem de suportar a voz altiva das minorias
10
Como bem salienta Herkenhoff (2004, p.236) a cidadania h de ser conquistada atravs da luta individual e
atravs da luta coletiva. H situaes concretas nas quais o cidado tem de travar uma luta individual para
conquistar seus direitos. Esta luta individual, solitria, que o cotidiano da vida s vezes exige, sempre mais
dura e difcil. A luta individual mais penosa, mais longa, com possibilidade de xito menor. Porm, se uma
situao concreta reclama a luta individual, no devemos recuar diante dos obstculos. Devemos buscar nossos
direitos, custe o que custar. Mas sempre que for possvel, devemos recorrer luta coletiva. Segundo continua a
dizer Herkenhoff (2004, p.236), as classes dominantes desencorajam as lutas coletivas. Com frequncia, os
lderes das lutas coletivas so perseguidos presos e at mesmo assassinado. Tambm os meios de comunicao
social, frequentemente a servio das classes dominantes, estimulam o individualismo. Citemos, por exemplo, as
novelas de televiso. Com raras excees as histrias das novelas so simplesmente histrias individuais. Poucas
vezes as novelas apresentam as lutas coletivas, as lutas do povo. (H honrosas excees, por parte de alguns
novelistas). Mesmo sendo a novela um entretenimento, pode tambm educar. O povo tem de aprender a vencer
seus desafios, com suas prprias foras. Mesmo que o ambiente envolvente seja adverso, mesmo que a luta
coletiva no seja valorizada e enaltecida, a unio que faz a fora.
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lcidas que no se deixam enganar pela propaganda (HERKENHOFF, 2004, p. 55).
Contudo, para que seja concretizada essa resistncia imprescindvel que haja tambm a
construo de uma nova conscincia histrica que passa por etapas de todo um processo
emancipador. Segundo Leonardo Boff (1980, p.92), as fases para o caminho da emancipao
seriam as seguintes:
a) Conflito: neste momento, conforme demonstra Boff (1980, p.92), o homem
vive a situao de opresso e conflito, e dessa maneira, a existncia humana sempre
conflitante, porque permanentemente deve conquistar sua liberdade no esforo de libertar-se
de dependncias e de assumir outras, logo, o processo de libertao se torna urgente.
Aparece ento um outro elemento estrutural: a crise.
b) Crise: para Boff (1980, p.92), a crise pertence normalidade da vida, que
sempre conflitante e, por isso, a crise age como um crisol que acrisola o homem a fim de
que se faa cada vez mais apto para a deciso e para assumir uma posio. Para sair da crise, o
homem necessita elaborar um novo projeto para o qual se decide.
c) Novo projeto: de acordo com Leonardo Boff (1980, p.92), o novo projeto
emerge dentro de um processo de libertao, onde j se rompeu ideologicamente com
dependncias, ou seja, o projeto dignifica sempre a mediao da plena liberdade, dentro de
uma situao dada e concreta, pois se no for assim ser sempre opressor. Como continua
a expor Boff (1980, p.92), tal projeto, apesar de estar inserido no mbito da concretude,
dever manter-se em aberto para o processo de libertao, que sempre maior do que
qualquer projeto histrico.
d) Deciso: por fim, Boff (1980, p.92) fala que o ltimo estgio de libertao est
no ato de decidir, que se trata da prtica libertadora, na qual o projeto histrico comea a
assumir a configurao concreta. Considerando-se que o homem nunca pode se auto realizar
sem compreender a nova ordem do mundo, o processo de libertao processo permanente
de deciso. O homem est condenado a decidir. No livre para decidir ou no decidir. O
eximir-se j uma deciso e uma posio.
Entretanto, conforme j dito, o processo emancipatrio deve ser pelo caminho da
coletividade, tendo-se em vista que, como lembra Hannah Arendt (2010, p.8) a ao, nica
atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediao das coisas ou matria,
corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e no o Homem,
vivem na Terra e habitam o mundo.11
11
Na viso de Hannah Arendt (2010, p. 26) nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio
natureza selvagem, possvel sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presena de outros
466
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A prpria falta de densidade ideolgica advinda dos grupos dominantes, abrem
oportunidades para a construo de vias alternativas ao sistema jurdico, com o objetivo de
acomodar, em termos prticos, os ideais emancipatrios e as reivindicaes oriundas dos
movimentos sociais, que atuam como atores coletivos, neste novo cenrio de supresso ao
direito exclusivamente estatal. Da ideia de emancipao vislumbra-se, que no deve prosperar
a mxima da concepo legalista, do Estado liberal, visto que, conforme expe as escritas de
Roberto Lyra Filho (1988, p.27), o direito est alm e acima da lei, at contra elas, como o
direito de resistncia, que nenhum constitucionalista, mesmo reacionrio, poder deixar de
desconhecer.
8. A CONSOLIDAO DO PLURALISMO JURIDICO PELA VIA DA
ARGUMENTAO E DA DIALTICA
A relao do direito com os fatos deve estar em consonncia com a noo de
razoabilidade, posto que o formalismo estatal, poder ser fonte de inmeras injustias que
incidem em determinas ocasies sobre a sociedade. o que ressalta Chaim Perelman (2005,
p.436):
Vemos assim que, em toda matria, o inaceitvel, o desarrazoado constitui um limite
para qualquer formalismo em matria de direito. por essa razo que a teoria pura
do direito de Hans Kelsen no d explicao suficiente do funcionamento efetivo do
direito, na medida em que se empenha em separar o direito do meio em que ele
funciona e das reaes sociais desse meio.
Em razo disso, a argumentao jurdica caber ser pautada, como forma de
reconhecer as demais fontes normativas, pela tpica, cujo raciocnio dialtico, permite que o
pensamento que se volta ao problema seja estabelecido a partir de premissas devidamente
catalogadas. A tpica, por no trabalhar o apotdico, pelo fato de pertencer ao terreno da
dialtica, trata-se de uma tcnica de pensar por problemas desenvolvida pela retrica
(VIEHWEG,1979, p.17) e o mais notvel disso, que na sua busca para a soluo do
problema a ordem que se aspira j no procurada no direito positivo, pois como tcnica de
pensamento, a tpica leva a argumentao judicial a um jogo eminentemente assistemtico,
em que se tem observado ausncia de rigor lgico, impossibilidade de reduo das decises a
silogismos, etc (FERRAZ JR., 2001, p.326).
seres humanos. Todas as atividades humanas so condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos, mas a
ao a nica que no pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens.
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Na medida em que h o reconhecimento dos atores coletivos e consequentemente
dos movimentos sociais como novas fontes normativas, o que est em disputa, fica provado
em decorrncia da aceitao, posto que, a argumentao por meio da tpica possibilita que a
oposio em adotar fontes alternativas de direito possa ser suprida e posteriormente admitida,
por meio da incluso de novas premissas oriundas do campo extra-estatal. Destarte, a
semitica torna-se um instrumento imprescindvel nesse processo, j que a linguagem popular
introduzida na linguagem jurdica. Pode-se dizer que o que ocorre nesse processo uma
verdadeira resignificao hermenutica, que conforme demonstra Ivone Fernandes Marcilo
Lixa (In LIXA; VERAS NETO; WOLKMER,2010, p. 136):
O processo hermenutico jurdico que inclui o espao social no pode ser uma
canibalizao, para usar a expresso de Boaventura de Sousa Santos, dos demais.
necessrio uma traduo das mltiplas hermenuticas dentre as quais a jurdica. E
nesse sentido que no cabe uma hermenutica jurdica nos moldes tradicionais.
So campos distintos que se tocam o estatal e o social -, em que mundos
normativos, prticas e saberes dialogam, se desentendem e interagem, tornando
possvel reconhecer os pontos de contato entre a tradio moderna ocidental e os
saberes leigos. As duas zonas de contato constitutivas da modernidade ocidental so
a zona epistemolgica, onde se confrontam a cincia moderna e os saberes leigos,
tradicionais dos camponeses, e a zona colonial, onde se defrontam o colonizador e o
colonizado. So duas zonas caracterizadas pela extrema disparidade entre as
realidades em contato e pela extrema desigualdade das relaes de poder entre elas.
A tarefa hermenutica como traduo retoma o sentido mais original do termo, mas
a partir de uma perspectiva inovadora que traduz saberes nem sempre convergentes.
Nesse aspecto, a disputa argumentativa entre o reconhecimento ou no de fontes
alternativas de Direito, passa pela argumentao jurdica, que utilizando-se da tpica, amplia
o rol de fundamentao com base em um catlogo premissas catalogadas, que vo alm das
previses positivadas. Portanto, deve-se construiu um entendimento comum, no sentido de se
aceitar a argumentao jurdica fundamentada em fontes normativas fora da esfera estatal, na
qual os topois12
e os catlogos de topis possuem uma importncia essencial, uma vez que
seus repertrios podem ser alargados ou flexibilizados por meio de premissas fundamentais
que se legitimam pela aceitao do interlocutor (VIEHWEG,1979, p.41-42).
12
Na explicao de Trcio Sampaio Ferraz Jnior (2001, p.322) os conceitos e as proposies bsicas dos
procedimentos dialticos, estudados na Tpica aristotlica, constituam no axiomas nem postulados de
demonstrao, mas topoi de argumentao, isto , lugares (comuns), frmulas, variveis no tempo e no espao,
de reconhecida fora persuasiva no confronto de opinies. Obviamente, qualquer que seja a tpica de segundo
grau, uma deduo sistemtica dos topoi uma impossibilidade. Na verdade, qualquer tentativa nesse sentido
altera a prpria inteno da tpica que, sendo problemtica, assistemtica at por necessidade de produo dos
efeitos persuasivos de argumentao. Por isso que, no pensamento tpico, mais importante que concluir a
busca das premissas, o que Ccero chamava de ars inveniendi. Nesse sentido os catlogos tpicos so elsticos e,
propriamente falando, a nica instncia de controle dos pontos de vista aceitveis, isto dos topoi catalogados,
a discusso mesma, no debate, o que fica justificado por aceitao admitido como premissa. Por isso, para
elaborar uma tpica de segundo grau o critrio de referncia no pode ser abstrato, mas localizado e situacional (FERRAZ JR., 2001, p.324-325).
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A ampliao dos topois consagra a prpria lgica do Direito que surge na
dialtica social e no processo histrico (LYRA FILHO, 2006, p.79), ou seja, consagra a
prpria essncia do jurdico que deve abranger todo esse conjunto de dados, em movimento,
sem amputar nenhum dos aspectos (como fazem as ideologias jurdicas), nem situar a
dialtica nas nuvens idealistas ou na oposio insolvel (no-dialtica), tomando o Direito e
o Antidireito, como blocos estanques e omitindo a negao da negao (LYRA FILHO,
2006, p.79). A importncia da dialtica est no fato de que a reduo da legitimidade do
Direito a legalidade instituda restringe a possibilidade da construo de um processo
democrtico baseado em uma participao mais ampla, que por sua vez, exige o uso da
linguagem popular como instrumento a ser incrementado na semitica jurdica para que se
possa se consagrar as fontes normativas oriundas dos atores coletivos. Diante dessa
constatao, observa Wolkmer (2003, p.88):
[...] a construo crtica de uma legitimidade democrtica que venha fundamentar o
Poder poltico e o Direito justo tem seu ponto de referncia deslocado da antiga
lgica de legitimao, calcada na legalidade tecno-formal para uma legitimidade
instituinte, formada no justo consenso da comunidade e num sistema de valores
aceitos e compartilhados por todos. No se trata mais de identificar e reduzir o
conceito de legitimidade ao aspecto simplesmente jurdico, ou seja, a estrita
vinculao com a validade e a eficcia enquanto produo de efeitos normativos.
Numa cultura jurdica pluralista, democrtica e participativa, a legitimidade no se
funda na legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das prticas sociais
instituintes e das necessidades reconhecidas como reais, justas e ticas.
Esta quebra do direito positivado retrata a consequncia lgica que provm da
excluso social, ainda mais em pases como o Brasil, cuja concentrao de renda encontra-se
entre as mais altas do mundo. Parece que, como bem ressalta Roberto Gargarella (apud
OLSEN in GARGARELLA, 2005, p. 123), que a carncia social extrema justifica a violao
ao direito posto, at mesmo como forma de resistncia a opresso por parte do Estado13
. Em
face de tal cenrio, vislumbra-se a conquista de uma nova realidade em que os membros da
sociedade possam alcanar a mudana substancial do direito, mediante instrumentos de
libertao que permitam o fim da relao opressor-oprimido, na medida em que o Estado de
direito deixe de ser apenas a busca ou a luta por Estado com normas e passe a se concentrar
13
Nas explicaes de Frances Olsen (In: GARGARELLA, 2005, p. 123) el profesor Gargarella h tratado de
limitar y controlar las situaciones em las que la quiebra del derecho por parte de aquellos que viven em
situaciones de extrema pobreza deberan cosiderarse justificadas. Ante todo, sugiere um estndar objetivo
destinado a definir situaciones de extrema exclusin social, vinculado com la lnea de pobreza definida
internacionalmente. Adems, para encontrar justificadas sus acciones, los que desobedecen al derecho deben
estar viviendo em uma situacin de alineacin legal (uma situacin em la que se presume que se encuentram
aquellos que se vem privados de ciertos bienes humanos bsicos), y deben encontrarse afectados por srios
problemas polticospara transmitir sus demandas a sus representantes o para hacerlos responsables por sus
conductas.
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na ideia de um novo direito o que significa reconhecimento em oposio dominao
(AGUIAR, 1990, p. 146-147).
Assim, o imperativo de uma nova hermenutica a ser construda, aproximando-se
a to distante linguagem jurdica da compreenso popular, torna-se cada vez mais necessrio,
haja vista que, caso no ocorra um novo entendimento quanto ao reconhecimento de fontes
alternativas de direito em detrimento ao Direito oficial, inevitavelmente, haver o
agravamento da crise de legitimidade que paira atualmente o ordenamento jurdico vigente,
provocando assim, srias consequncias ao meio social.
9. OS CAMINHOS E DESAFIOS DO PLURALISMO JURDICO NA SOCIEDADE
BRASILEIRA
No Brasil o estudo do direito e o consequente desenvolvimento da sistematizao
das normas jurdicas ocorreram diante um cenrio marcado pela cultura baseada no
individualismo extremo e com forte vis patrimonialista, de modo que o formalismo legal
estabelecido pela construo do Estado Liberal, prevaleceu durante quase todo o histrico da
sociedade brasileira. Como bem elucida Wolkmer (2006, p.114) a tradio do
constitucionalismo brasileiro, sempre esteve recheada de abstraes racionais o que, dessa
forma, no apenas abafaram as manifestaes coletivas, como tambm no refletiram as
aspiraes e necessidades mais imediatas da sociedade.
Mesmo a Constituio Federal de 1988, tambm conhecida como Constituio
Cidad, ter representado significativos avanos da sociedade civil, durante a dcada de 90
houve um grande retrocesso, na medida em que foras da elite nacional apoiada na onda
neoliberal de prevalncia absoluta do mercado e nas mudanas mundiais configuradas pela
globalizao da economia desencadearam aes privatistas/reformistas que tanto
objetivaram enfraquecer os direitos de cidadania, quanto deflagrar uma precipitada e
oportunista reforma constitucional (WOLKMER, 2006, p.115). Tais polticas adotadas pela
elite nacional e embasadas pelos poderes institucionais, inclusive o Judicirio e o Ministrio
Publico, que nada fizeram diante inmeras denncias de irregularidades no processo da
poltica de desestatizao promovida pelo governo do ento Presidente Fernando Henrique
Cardoso14
, trouxeram de volta a mesma conotao liberal e individualista que marcaram o
14
No livro A Privataria Tucana (2011) o jornalista Amaury Ribeiro Jnior informa e denuncia, por meio de
documentos, uma complexa estrutura de offshres(empresas de fachada para lavagens de dinheiro em parasos
fiscais) que serviram para a realizao de inmeras operaes ilegais que permearam os processos de
privatizaes de empresas pblicas ocorridos durante os anos 90, do sculo XX, sob a presidncia do governo
Fernando Henrique Cardoso.
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histrico constitucional brasileiro. Foi a verdadeira manipulao da democracia pelo poder
econmico das elites dominantes em que de um lado refletiu a derrocada e insuficincia das
foras progressistas; de outro, a cantilena de um discurso neoliberal, que, operacionalizado
pelos segmentos reacionrios, reintroduz hegemonicamente novos valores, categorias e
concepes de mundo (WOLKMER, 2006, p.115).
Por outro lado, o crescente distanciamento entre as previses constitucionais e a
efetivao de direitos da populao, trouxe novas perspectivas no sentido de que cada vez
mais se busca a superao do direito estatalista mediante a implementao de novas fontes
normativas oriundas das comunidades e dos setores mais carentes da sociedade brasileira.
Esse processo, no entanto, no se trata de algo novo, pois j algum tempo se constata no
Brasil, uma pluralidade de fontes normativas, que surgem em decorrncia da prpria
necessidade de elaborao de regras naquelas comunidades maculadas pela excluso social e
pelo abandono profundo do Estado, que deixa a prpria sorte a maior parte da populao.
Na dcada de 70, do sculo XX, Boaventura de Sousa Santos (In: FALCO;
SOUTO, 2001, p.88) em seu famoso estudo Notas sobre a Histrica Jurdico-Social de
Pasrgada15
, realizado na favela do Jacarezinho na cidade do Rio de Janeiro e elaborado
para a tese de seu doutoramento na renomada Universidade de Yale, concluiu que:
A favela um espao territorial, cuja relativa autonomia decorre outros fatores, da
ilegalidade coletiva de habitao luz do direito oficial brasileiro. Esta ilegalidade
coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto
tal com o aparelho jurdico-poltico do Estado brasileiro. No caso especifico de
Pasrgada, pode detectar-se a vigncia no oficial e precria de um direito interno e
informal, gerido, entre outros, pela associao de moradores, e aplicvel preveno
e resoluo de conflitos no seio da comunidade decorrentes da luta pela habitao.
Este direito no-oficial o direito de Pasrgada como lhe poderei chamar vigora
em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e desta duplicidade
jurdica que se alimenta estruturalmente a ordem jurdica de Pasrgada. Entre os
dois direitos estabelece-se uma relao de pluralismo jurdico extremamente
complexa, que s uma anlise muito minuciosa pode revelar. Muito em geral pode
dizer-se que no se trata de uma relao igualitria, j que o direito de Pasrgada
sempre e de mltiplas formas um direito dependente em relao ao direito oficial
brasileiro. Recorrendo a uma categoria de economia poltica, pode dizer-se que se
trata de uma troca desigual de juridicidade que reflete e reproduz, a nvel scio-
jurdico, as relaes de desigualdade entre as classes cujos interesses se espalham
num e noutro direito.
A experincia de Boaventura de Sousa Santos demonstra que h tempos j vem se
consolidando no Brasil, em razo dos problemas sociais enfrentados, uma nova cultura
jurdica, que no manifestada pelos meios acadmicos ou pelos operadores do direito oficial,
15
Em Notas sobre a Histria Jurdico-Social de Pasrgada (SANTOS, 2001), Boaventura de Sousa Santos
realizou um estudo sociolgico sobre as estruturas internas da favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, a qual
deu o nome fictcio de Pasrgada. Este estudo teve como objetivo analisar uma situao de pluralismo jurdico
com o intuito de elaborar uma teoria sobre as relaes entre o Estado e o Direito nas sociedades capitalistas.
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mas sim pelos prprios membros da populao em geral, que em sua grande parte encontra-se
excluda de direitos bsicos, o que, por sua vez, proporciona a busca de alternativas diante a
normatividade oficializada pelo Estado. Contudo, em relao aos poderes estatais, apesar de o
Poder Judicirio, atualmente, tenha se posicionando em favor de uma atuao mais efetiva,
mediante a consolidao da ideia de ativismo judicial, no h ainda um reconhecimento
consolidado em relao ao direito alternativo, de maneira que as reivindicaes de cunho
social sejam consideradas. Na verdade, a atuao do Poder Judicirio, na maioria das vezes,
possui uma conotao extremamente conservadora e, isso, pode ser justificado pelo fato de
que, no Brasil, o Judicirio historicamente sempre atuou em prol das classes dominantes, o
que, por bvio, obstaculiza qualquer mudana que seja a favor da supresso da realidade
social existente, baseada na concentrao de renda e na forte excluso da maioria da
populao, que vive a margem dos direitos formalmente declarados.
A ideia do ativismo judicial, to presente hoje na realidade brasileira, oriunda do
processo de judicializao ocorrido no sculo XIX nos Estados Unidos com os chamados pais
fundadores da Amrica, que em 1787, por possui uma viso extremamente ctica em relao
s regras do sistema majoritrio, os levaram a buscar os fundamentos do papel constitucional
dos tribunais16
. Nesse perodo, a ideia de judicializao estava em consonncia com a posio
de que somente um Judicirio forte, seria capaz de declarar todos os atos contrrios
Constituio. Em consequncia desse processo, surge inclusive a prpria ideia de controle de
constitucionalidade, cujo marco se deu com o famoso caso ocorrido em 1803, que ficou
conhecido como Marbury X Madison (TATE and VALLINDER, 1996, p.17). Da ideia de
judicialismo surge tambm nos Estados Unidos entre 1950 e 1960, o que se denominou como
ativismo judicial, que conforme muito bem ilustra Lus Roberto Barroso (2010, p.10) est
associada a uma participao mais ampla e intensa do Judicirio na concretizao dos
valores e fins constitucionais, com maior interferncia no espao de atuao dos outros dois
poderes. Nas dcadas seguintes, pases como o Brasil passaram a seguir essa tendncia,
porm, isso no representou mudanas que significassem avanos em relao s questes
sociais, pois, ao contrrio o que se verifica um forte esprito conservador que ainda
prevalece entre aqueles que exercem o poder jurisdicional. o que explica Alysson Mascaro
(2008, p.203-205):
16
Nas escritas de Torbjorn Vallinder (TATE and VALLINDER.1996, p.16) the American Fouding Fathers of
1.787 had taken a more skeptical view toward strict majority rule and were consequently much more interested
in the constitutional role of the courts. In The Federalist Papers (no.78) Alexander Hamilton stated that the
judiciary is beyond comparison the weakest of the three departments of power and that the general liberty of the
people can never be endangered from that quarter.
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[...] o diagnstico das contradies do direito como problemas de tcnica
responsvel, ao mesmo tempo, por outra operao de vultuosos ganhos polticos no
movimento de reacionarismo institucional e conservadorismo poltico da dcada de
1990. Enquanto que a dcada de 1980 representou uma crescente politizao do
Poder Judicirio, como no movimento do Direito Alternativo, politizao que se fez
acompanhar, de alguma forma, nas conquistas legislativas, a dcada de 1990, na
reao s conquistas processuais, reagir de forma diversa. Enquanto a dcada de 80
consolidou garantias sociais e processuais numa srie de legislaes e na norma
hierarquicamente maior do ordenamento jurdico, a Constituio Federal, a dcada
de 90 no obtm, imediatamente, respaldo poltico para a reforma das legislaes e
da Constituio que, de resto, uma reforme impopular porque retrocedente. No
entanto, a crescente tecnicizao do problema jurdico e a sua localizao nas
questes processuais faro por retroceder os ganhos da dcada anterior no por meio
da revogao de legislaes e direitos atos de custos polticos difceis mas sim
por meio do retrocesso nos meios processuais que venham garantir, no nvel tcnico
do direito, estes mesmos direitos. Enquanto a dcada de 1980, naquilo que
representou de avano, trabalhou ao mesmo tempo com garantias de direitos
substantivos e processuais, a dcada de 1990, na dificuldade do retrocesso dos
direitos substantivos claros e politicamente notrios -, esvazia-os por meio das
reformas processuais, que os dificultam na efetividade jurdica. A aposta da reao
por meio do processo civil e no por meio da revogao das legislaes, esvazia as
atenes populares potencialmente contrrias ao movimento de conservadorismo
que vai se fortalecendo na dcada de 1990. Opera-se, em conjunto, a crescente
despolitizao do Poder Judicirio, com , com o esvaziamento do movimento do
Direito Alternativo e a promoo e a cooptao de juzes politizados de primeira
instncia aos tribunais. Como resultado, enquanto a dcada de 1980 conheceu vrios
movimentos de resistncia social e de politizao do Poder Judicirio e o custo
poltico de reao do Poder Legislativo ao menos na primeira metade da dcada de
1990, posto que na segunda metade a hegemonia do Congresso Nacional ser ampla
fazem com que a reao conservadora se d pelas vias do Poder Judicirio,
buscando que, ao trazer os direitos sociais ao campo judicirio, estes venham a se
inviabilizar na prtica judicial. [...] O resultado imediato de tais reformas
processuais, ao retirar a democratizao dos direitos do campo legislativo, esvaziar
a arena pblica na qual, por meio de partidos, sindicatos e movimentos sociais,
pode-se ia conquistar avanos institucionais. Relegando-se o problema dos direitos a
uma questo tcnica, procede-se a uma reserva de diagnstico e fala aos
especialistas, conservadorizando tambm a extenso das conquistas.
No entanto isso no quer dizer que atuao do Judicirio deva ser engessada pelo
simples fato de ter se adotado no Brasil a proposta de tripartio de poderes. At mesmo
porque a prpria a Constituio Federal, prev a possibilidade do Poder Judicirio de apreciar
demandas relativas legalidade e moralidade da atuao da Administrao Publica17
.
Contudo, at mesmo em decorrncia do estabelecimento dos freios e contrapesos18
entre os
17
Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p.711) demonstra que o Poder Judicirio pode examinar os atos da
Administrao Pblica, de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou
discricionrios, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, agora, pela Constituio, tambm sob o aspecto da
moralidade. 18
Segundo Celso Antnio Bandeira de Mello (2002, p. 30) em decorrncia do fato de que no possvel
preservar a rigidez das funes constitucionais entre os Poderes, se estabelece os chamados freios e
contrapesos, que segundo o renomado administrativista, trata-se de mecanismo por fora do qual atribuindo-se
a uns, embora restritivamente, funes que em tese corresponderiam a outros, pretende-se promover um
equilbrio melhor articulado entre os chamados poderes, isto , entre os rgos do Poder.
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Poderes, o Judicirio, apesar de ter que apreciar todas as demandas que lhe so direcionadas19
,
no pode usurpar as funes dos demais Poderes estatais, de maneira em que se impea o
debate poltico e social dos representantes eleitos pelo povo. Do mesmo modo uma atuao
exacerbada por parte do Judicirio, poder afetar at mesmo o reconhecimento de outras
fontes normativas, pois sendo os juzes representantes do poder estatal, dificilmente
utilizariam de vias alternativas como meio de soluo de conflitos. Alis, a deciso judicial,
tambm deve ser vista como uma fonte estatalista, posto que no oriunda dos atores
coletivos inseridos na sociedade como representantes das classes oprimidas.
A prpria ideia de pluralismo surge em razo de o direito proferido pelos juzes,
na maior parte das vezes, no serem direcionados para as camadas mais carentes da
sociedade, logo, seria incoerente imaginar que as fontes alternativas comp