(Páginas 449 a 479) Murilo Naves Amaral

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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM HELDER CÂMARA TEORIAS DA DEMOCRACIA E DIREITOS POLÍTICOS ADRIANA CAMPOS SILVA ARMANDO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA JOSÉ FILOMENO DE MORAES FILHO

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  • XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM

    HELDER CMARA

    TEORIAS DA DEMOCRACIA E DIREITOS POLTICOS

    ADRIANA CAMPOS SILVA

    ARMANDO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    JOS FILOMENO DE MORAES FILHO

  • Copyright 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Direito

    Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prvia autorizao dos editores.

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    T314 Teorias da democracia e direitos polticos [Recurso eletrnico on-line] organizao CONPEDI/ UFMG/FUMEC/Dom Helder Cmara; coordenadores: Adriana Campos Silva, Armando Albuquerque de Oliveira, Jos Filomeno de Moraes Filho Florianpolis: CONPEDI, 2015. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-141-8 Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicaes Tema: DIREITO E POLTICA: da vulnerabilidade sustentabilidade

    1. Direito Estudo e ensino (Ps-graduao) Brasil Encontros. 2. Democracia. 3. Direitos polticos. I. Congresso Nacional do CONPEDI - UFMG/FUMEC/Dom Helder Cmara (25. : 2015 : Belo Horizonte, MG).

    CDU: 34

    Florianpolis Santa Catarina SC www.conpedi.org.br

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  • XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM HELDER CMARA

    TEORIAS DA DEMOCRACIA E DIREITOS POLTICOS

    Apresentao

    com satisfao que apresentamos comunidade acadmica o livro Teorias da Democracia

    e Direitos Polticos I, resultado da seleo de artigos para o Grupo de Trabalho homnimo

    que constou da programao do XXIV CONGRESSO DO CONPEDI, ocorrido na cidade de

    Belo Horizonte, entre os dias 11 e 14 de novembro de 2015.

    A democracia como regime de governo remonta ao sculo V a.C. Contudo, existem muitas

    nuances que distinguem as suas primeiras configuraes daquelas que ressurgem nas

    democracias modernas e, principalmente, nas contemporneas. Destarte, a democracia se

    apresenta de vrias formas em diferentes lugares e em momentos diversos.

    Aps a terceira onda de expanso global da democracia ocorrida no ltimo quarto do sculo

    XX, os diversos processos de transio democrtica tiveram um comportamento sinuoso em

    direo sua consolidao. Em vrios pases da Amrica Latina e do leste europeu, os

    processos de transio e consolidao da democracia ocorreram diversamente. Tanto nos

    primeiros, resultantes de um processo de esgotamento das ditaduras militares que se

    instauraram nos anos 60 e 70, quanto nos ltimos, oriundos da dbcle comunista iniciada

    nos anos 80.

    O Grupo de Trabalho Teorias da Democracia e Direitos Polticos I contou com a

    apresentao de 29 artigos que passam agora a constituir este livro. So artigos que tratam,

    de forma crtica, as mais variadas questes relativas democracia bem como quelas

    concernentes s garantias e expanso dos direitos polticos.

    Desejamos a todos uma boa leitura.

    Prof. Dr Armando Albuquerque de Oliveira

    Professor Dr. Jos Filomeno de Moraes Filho

    Profa. Dra. Adriana Campos Silva

  • PLURALISMO JURIDICO, LEGALIDADE E CAPITALISMO

    PLURALISM LEGAL, LEGALITY AND CAPITALISM.

    Murilo Naves Amaral

    Resumo

    O desenvolvimento da legalidade possui relao intrnseca com o sistema capitalista, de

    modo que se torna imprescindvel conciliar a anlise do modelo econmico vigente com as

    normas provenientes da legalidade estatal. Ocorre que, medida que se verifica a frustrao

    da aplicabilidade do direito posto, surge uma crise na hegemonia jurdica estatalista, que por

    sua vez, somente poder ser superada mediante a ampliao da participao coletiva e,

    consequentemente, da implementao de um direito alternativo, que com a consolidao da

    ideia de pluralismo jurdico, seja capaz de estabelecer vias adequadas para o atendimento das

    demandas sociais. Nesse sentido, crucial que a desenvoltura do ordenamento jurdico

    amplie as vias participativas, de maneira a estender, de forma democrtica, o reconhecimento

    de fontes alternativas do direito, bem como a constituio do mosaico normativo a todos

    aqueles que representam as verdadeiras demandas populares, como por exemplo, os atores

    coletivos.

    Palavras-chave: Legalidade, Capitalismo, Pluralismo, jurdico

    Abstract/Resumen/Rsum

    The development of legality has intrinsic relationship with the capitalist system, so that it is

    essential to reconcile the analysis of the current economic model with standards from state

    law. It happens that, as it turns out the frustration of the applicability of the right post, a crisis

    arises in statist legal hegemony, which in turn, can only be overcome by expanding collective

    participation and consequently the implementation of an alternative right that with the

    consolidation of legal pluralism your mind, be able to establish appropriate channels to meet

    the social demands.Therefore, it is crucial that the resourcefulness of law expands the

    participatory way in order to extend, in a democratic way, the recognition of alternative

    sources of law and the constitution of the legal mosaic to all those who represent the true

    popular demands, for example, the collective actors.

    Keywords/Palabras-claves/Mots-cls: Legality, Capitalismo, Pluralismo, Legal

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  • 1.INTRODUO

    A compreenso do sistema capitalista passa necessariamente pelo entendimento

    do desenvolvimento da legalidade, tendo em vista que o campo normativo, historicamente,

    vem sendo constitudo com o intuito de atender os interesses dominantes que em detrimento

    das demandas sociais, impem uma agenda totalmente avessa a coletividade. Nessa

    perspectiva, o pluralismo jurdico trata-se da via apta para buscar suprir a racionalizao do

    direito posto e, consequentemente, democratizar a produo normativa, de modo que os

    interesses coletivos em seu sentido mais amplo sejam colocados como prioridade no contexto

    social.

    Em face dessa constatao, o presente artigo, utilizando de uma metodologia

    indutiva, visa analisar a partir do pluralismo jurdico as definies que envolvem o

    reconhecimento do campo normativo alternativo, de forma a diferencia-lo de outros aspectos

    que possam levar a determinados equvocos no tocante aos institutos que envolvem esta rea

    do estudo do direito. Para isso, no entanto, de suma importncia entender as relaes que

    envolvem a legalidade e o sistema capitalista, de maneira a se verificar uma participao mais

    ampla que permita democratizar o processo de produo legislativa, mediante a atuao dos

    chamados atores coletivos e, por consequncia, pelo reconhecimento da validade de novos

    direitos provenientes dessas fontes alternativas.

    Observa-se tambm, que torna-se necessrio entender que a constituio do

    pluralismo jurdico deve enfrentar inevitavelmente temas colocados e debatidos

    constantemente perante a sociedade, como por exemplo, a luta de classes que historicamente

    rege as relaes sociais, tendo em vista que tal questo pode, aparentemente, impedir o

    reconhecimento de direitos oriundos e produzidos pelas camadas populares.

    Nesse sentido, o presente artigo tem por finalidade, alm de entender o fenmeno

    do pluralismo jurdico mediante definio dos conceitos que o envolvem, compreender

    tambm as razes que justificam a ampliao das fontes normativas, observando a evoluo

    desse processo, de modo a demonstrar, a partir de uma atuao mais abrangente dos atores

    coletivos, a possibilidade de suprir os obstculos que impedem sua consolidao.

    2. LEGALIDADE E CAPITALISMO

    Da ideia da legalidade instituda a partir da autoridade estatal surge,

    concomitantemente, a construo do sistema capitalista com base na diviso de classes e

    acmulo de capital. Porm, uma questo que se mostra crucial nesse contexto a

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  • identificao clara dos pontos comuns que expem a relao intrnseca existente entre a

    legalidade instituda e o capitalismo. Sendo derivado do poder estatal, as bases da legalidade

    atuam no sentido de cumprir a finalidade histrica do Estado, que atender os interesses do

    capital. Basta observar que a evoluo do processo capitalista se d sobre o suporte estatalista

    que, conforme narra Eric Hobsbawm (1981, p.25), desde a ascenso dos Estados Burgueses,

    no sculo XVII, foi o responsvel por impor o poder empresarial contra o que, o saudoso

    historiador ingls denominou, de grosso da opinio pblica1. Em face disso, cria-se a falsa

    noo de uma universalidade em relao ao legalismo imposto pelo Estado, que na verdade,

    tem como pano de fundo a manuteno das diferenas sociais e a imposio da vontade

    burguesa sobre os interesses populares. Nesse sentido, conforme demonstra Alysson Leandro

    Mascaro (2008, p.18):

    [...] capitalismo legalidade, como parece ficar claro historicamente, mas tambm

    que legalidade capitalismo, tendo em vista que a compreenso de uma instncia

    tcnica apartada e aparentemente alheada das reais contradies s encontra sua

    razo de ser na histrica cindida da explorao. A legalidade, como falsa

    universalidade, s pode se uma instncia que comece no capitalismo, mas que no

    ecoe, nos termos de sua alienao institucional da realidade, numa sociedade cuja

    verdade social seja de fato universal [...] a falsa universalidade da legalidade que

    certas vezes se mascara em momentos histricos nos quais aparentemente as

    instncias poltico-jurdicas promovem concrdias social-democratas se revela

    cabalmente quando o seu prprio formalismo nica universalidade, no fundo que

    poderia se sustentar, a meramente formal se rompe por causa da dinmica de

    reproduo econmica exacerbada, como no caso do capitalismo contemporneo.

    Considerando-se que o Estado moderno surge em decorrncia ao atendimento aos

    interesses burgueses que centralizaram o poder a partir da supresso dos feudos, com o intuito

    de se estabelecer uma nova forma de vnculo social por meio das relaes formadas em razo

    do mercado e do consumo, a legalidade estatal se origina no mesmo sentido, de forma em que

    se instrumentaliza o poder opressor, contra aqueles que venham a se posicionar

    contrariamente a estrutura econmica imposta. Todavia, vale lembrar, que a estrutura

    burocrtica estatal constitui a legalidade, visando sempre o controle social, sem que para isso

    atue mediante violncia desnecessria capaz de desestabilizar e de desacreditar o ordenamento

    jurdico estabelecido. Para tanto, utiliza-se de mtodos que aparentemente legitimam o

    aparato institucional e as prticas que nele se inserem, de modo que se crie a concepo de

    1Afirma Hobsbawm (1981, p.25) que foi por meio do Estado que o denominado empresrio inovador

    conseguiu se impor perante a opinio pblica. Segundo o ilustre autor aps 1.660, a hostilidade tradicional aos

    equipamentos que tomam o po da boca dos homens honestos, deu lugar ao encorajamento da iniciativa em

    busca de lucros, qualquer que fosse o custo social. Este um dos fatos que nos justifica em considerar a

    Revoluo do sculo dezoito como o verdadeiro comeo poltico do moderno capitalismo ingls. Durante todo o

    perodo subseqente o aparelho central do Estado tendeu a estar, se no adiante da opinio pblica em questes

    econmicas, ento pelo menos mais disposto a considerar as reivindicaes do empresrio totalmente capitalista

    exceto, claro, quando estas se chocavam com interesses mais antigos e maiores.

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  • que o sistema jurdico no se impe somente como um conjunto de normas, mas tambm

    como relao dialgica e comunicativa com os indivduos, os quais incidem as regras

    vigorantes. Diante disso, se tem a constituio da legalidade estatal, a partir do crdulo do

    Estado de Direito, que, conforme assevera Marilena Chau (1981, p. 90), cumpre o papel de

    fazer com que a dominao no seja tida como uma violncia, mas como legal, e por ser legal

    e no violenta deve ser aceita, ou seja, a lei direito para o dominante e dever para o

    dominado. Isso no quer dizer, no entanto, que no haja concesses, uma vez que, a

    manuteno da ideologia instituda, no sentido gramciano2, exige que haja o aliciamento de

    grande parte da sociedade, para que se crie a falsa impresso de que a ordem jurdica provm

    de uma vontade popular. o que demonstra Joachim Hirsch, ao comentar sobre Poulantzas e

    Gramsci (2010, p. 118):

    Basicamente, so as formas sociais da prpria sociedade capitalista que do base

    para a hegemonia das classes dominantes, tornando-a possvel. A singularizao

    do Estado como corporificao da comunidade frente a todas as classes e frente aos

    cidados isolados um requisito decisivo para que se formule e se imponha na

    realidade uma poltica do capital abrangente, para alm da concorrncia e dos

    antagonismos de classe. Isso inclui em geral as concesses materiais aos dominados,

    que devem ser impostas a cada capitalista mediante o poder coercitivo do Estado.

    Nesse diapaso, os destinatrios da norma jurdica possuem uma relao com a

    legalidade de verdadeira retrica e aparncia de avanos, conquistas e retrocessos no que

    tange aos direitos, enquanto que na verdade, o que se verifica a manuteno dos

    instrumentos burocrticos legais de controle que consegue continuar comandando dentro

    dessa teia de presses que caracteriza qualquer sociedade(AGUIAR, 1990, p. 35). Como

    bem observa Roberto Aguiar (1990, p. 35) o ordenamento jurdico tem seu funcionamento

    estabelecido de forma sbia, haja vista que compreende sua lgica voltada a conceder no

    perifrico e manter no essencial, pois se o poder ceder no essencial ele no ser mais poder

    e as regras dele emanadas no sero mais direito, tendo se em vista que o recuo no

    fundamental significa a mudana do ordenamento oriunda da perda do poder poltico e de sua

    substituio por outro grupo, justamente o que forou a queda de um pressuposto substancial

    do sistema legal. Contudo, essa realidade, ainda que constantemente camuflada pela

    cumplicidade do Estado com os grupos economicamente dominantes, com o advento do

    2Conforme explicao de Alysson Mascaro (2010, p. 491) para Gramsci, a compreenso da hegemonia como

    espao de luta envolve o direito. Alm de seu aspecto estrutural, como garantidor institucional da explorao, o

    direito se presta a uma dimenso ideolgica clara Seus preceitos, modernamente, no se deixam demonstrar

    como exploratrios: a igualdade formal e a liberdade negocial so suas armas mais aliciadoras. A concepo do

    direito para Gramsci deve ser ampliada para alm de seu costumeiro uso tcnico, juspositivista, repressivo.

    Tampouco o velho arcabouo jusnaturalista poder dar conta de explicar o direito nas exigncias do capitalismo

    atual: ele se lana, alm da represso, para a conquista das vontades, dos desejos e dos comportamentos dos

    sujeitos.

    452

  • sistema neoliberal, tornou-se fragilizada, na medida em que se abandonaram as poucas

    polticas sociais estabelecidas, que mantinham o ordenamento vigente sob uma suposta paz

    social, em favor da construo de um capitalismo racionalizado e que por si mesmo seria

    capaz de solucionar todos os problemas que lhe fossem apresentados. Tais mudanas,

    presentes no seio da sociedade, exps a necessidade de se criar meios alternativos de

    reconhecimento de direitos que so oriundos das prprias bases populares.

    Posto isso, torna-se claro que a manuteno do aparato estatal como fonte nica

    de normas jurdicas, explicita a crise de legitimidade, que atualmente encontra-se presente na

    esfera legal, uma vez que os direitos no incidem sobre todos de forma plena, pois ao

    contrrio, o que se assegura so determinadas garantias em prol da propriedade e dos

    interesses econmicos que visam atender uma minoria de pessoas, integrantes das classes

    mais abastadas,

    3. A NECESSIDADE DE UMA PARTICIPAO MAIS AMPLA NO PROCESSO

    DEMOCRTICO

    cedio que o processo democrtico exige a participao ampla dos mais

    variados setores que representam a sociedade e no pode ficar limitada to somente a grupos

    que concebem apenas uma parcela de pessoas situadas no pice da pirmide social. A ideia de

    uma democracia formal, que se situa no centro do discurso capitalista, no deve ser aceita

    como se houvesse a consolidao da democracia plena, posto que, os direitos, apesar de

    declarados, no existem de forma concreta perante a maioria da populao. Nesse contexto, o

    que se constata na prtica, que democracia se restringe ao formalismo jurdico e, como

    assinala Marilena Chau (1997, p. 430), se reduz apenas a um regime poltico eficaz, baseado

    na ideia de cidadania organizada em partidos polticos e manifestando-se no processo eleitoral

    de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas solues tcnicas (e no

    polticas) para os problemas sociais.

    Esse aspecto conferido a democracia, nada mais produz do que a construo de

    um sistema poltico baseado na convenincia dos interesses dominantes, que criam uma

    aparncia de estabilidade institucional, mas que, em sua essncia, so mantidas as

    disparidades advindas do acmulo do capital e da luta de classes.

    A prpria lgica da cidadania somente poder ser exercida com a possibilidade de

    se ampliar a fontes normativas, tendo-se em vista que a presso popular deve estar inserida

    nesse contexto, de modo a garantir que direitos dos cidados no sejam menosprezados diante

    a estrutura jurdica estabelecida. Somente para ilustrar isso melhor, mesmo em pases como o

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  • Brasil, cuja participao popular no processo democrtico minada pelos grupos dominantes,

    que utilizam do direito estatal para impor seus interesses, muitas das conquistas, que

    poderiam ser consideradas a partir da leitura da Constituio Federal de 1988, ainda que, em

    diversos casos ou at mesmo na maioria deles, no haja uma eficcia concreta, foram

    alcanadas a partir da atuao do povo.

    O debate pblico que permitiu a propositura de emendas populares na constituinte

    de 1988, nas explicaes de Joo Baptista Herkenhoff (2004, p. 136-137) corporificaram as

    aspiraes nacionais contemporneas, de maneira que se pode concluir que tais previses

    apontam no sentido de uma cultura de Cidadania e dos Direitos Humanos. Foram essas

    emendas que traduziram os grandes temas elencados pela Constituio, como os direitos ao

    idoso, os direitos da criana, o zelo pelos adolescentes, os direitos das mulheres, os direitos

    dos trabalhadores, entre tantas outras previses que poderiam ser mencionadas

    (HERKENHOFF, 2004, p. 136). diante dessa perspectiva, que os atores sociais,

    representados por grupos e movimentos que defendem os interesses do povo, que permitem

    o exerccio do poder estatal em termos democrticos, sem que haja o prevalecimento de

    concepes autoritrias, que obstaculizam a soberania popular.3

    4. A VALIDADE DE NOVOS DIREITOS

    As mudanas profundas expostas pelo contexto que se desenvolve a partir da

    prpria sociedade demonstram a clara necessidade de reconhecimento de novos direitos, que

    no sejam apenas derivados do Estado burgus, mas sim da atuao dos atores sociais que

    surgem como forma de ampliar a participao popular na elaborao do ordenamento vigente.

    Durante o sculo XX o Estado moderno presenciou a contradio oriunda dos

    modelos capitalista e socialista, que, por consequncia alterou a lgica dos conflitos sociais e

    trouxe novas perspectivas atuao dos operadores do Direito, a medida que o sistema

    jurdico deixa de ser observado somente luz da legalidade imposta. Nesse sentido, conforme

    bem asseverou Jos Geraldo de Sousa Jnior (1996, p. 93-94), se originam dois aspectos

    paradoxais, nos quais, de um lado se tem a emergncia valorativa de uma concepo de

    direito, que se apoiou na ideia do direito livre, isto , a ideia de que no o Estado que cria o

    direito, mas que a sociedade que o produz e, por outro lado, a viso do direito legal,

    3Nos dizeres de Bonavides (2001, p.199-200) sobre a importncia das massas nas democracias, o ilustre jurista

    observa, ao citar Nawiasky, que a democracia e o Estado no podem ir contra as massas, seno com as

    mesmas, pois, do contrrio seria entreg-las, em covarde capitulao, aos piores flibusteiros do totalitarismo.

    Estes so, em geral, os demagogos atrevidos, que j se acham vista para explor-los. Conforme continua a

    expor Bonavides o constitucionalismo democrtico emancipou politicamente s massas com o sufrgio

    universal, porm no soube ainda conquist-las.

    454

  • proveniente da cultura legalista dos juristas que valorizou intensamente o plano das leis, de

    modo que se estabeleceu a prevalncia da legalidade sobre a juridicidade.

    Todavia, com a ideia do direito livre que se consolida o vis democrtico, pois

    este direcionamento que ressalta a relevncia de se buscarem formas plurais de

    fundamentao para a instncia da juridicidade, contemplando uma construo comunitria

    solidificada na plena realizao existencial, material e cultural do ser humano (WOLKMER,

    1994, p. 144). Interessante salientar, entretanto, que o surgimento de novos direitos devem

    estar consoantes com preceitos ticos que se caracterizam por no negligenciar as

    necessidades humanas, ou seja, trata-se daquilo que Edgard Morin (2007, p. 103) denomina

    de tica altrusta, que se caracteriza por ser uma tica da religao que exige manter a

    abertura do outro, salvaguardar o sentimento de identidade comum, consolidar e tonificar a

    compreenso do outro. Desse imperativo altrusta, surge a prpria noo de solidariedade

    que consequentemente trata-se da base daquilo que Morin (2007, p.147) denomina de tica da

    comunidade, que por sua vez servir de sustentao ao processo democrtico. Neste contexto,

    como continuar a demonstrar Edgar Morin (2007, p.147):

    A democracia faz do indivduo um cidado que reconhece deveres e exerce direitos.

    O civismo constitui ento a virtude sociopoltica da tica. Requer solidariedade e

    responsabilidade. Se o civismo se esgara, a democracia esgara-se. A no

    participao na vida da cidade, apesar do carter democrtico das instituies, leva

    agonia da democracia. H, portanto, num caso assim, perecimento da democracia e

    do civismo.

    Diante disso, pode-se concluir o que expe as escritas de Henrique de Lima Vaz

    (1996, p. 39-40), na qual essa inter-relao entre o tico, o poltico e o jurdico o que se

    trata da premissa para a demonstrao rgida da organizao democrtica da sociedade e do

    Estado, que somente se torna efetivamente vivel quando a participao poltica mobiliza as

    energias ticas do cidado, apresentando-se a ele como um inevitvel comprometimento de

    sua conscincia moral. A observncia do aspecto da eticidade perante o surgimento de novas

    fontes jurdicas vem acompanhada da ideia de que o Direito no pode ser reduzido lei, at

    mesmo porque, como recordou sabiamente Roberto Lyra Filho, a interpretao e anlise feita

    por pensadores do direito a partir de um crculo de legalidade (alis, provindo de uma

    ruptura, mais prxima ou mais remota, de outra legalidade) no , em si, prova de coisa

    alguma, quanto a legitimidade (LYRA FILHO, 2006, p.38). Alis, conforme continua a

    expor Lyra Filho (LYRA FILHO, 2006, p.38), qualquer tirania pagava com gosto (e paga

    mesmo) este pequeno tributo, que cobrir de leis o corpo nu do poder, pensando que isto

    basta para torn-lo inatacavelmente jurdico. Tal constatao decorre pelo fato de que,

    principalmente em sociedades emblematizadas pela intensa diviso de classes e concentrao

    455

  • de renda, como no Brasil, as reivindicaes populares somente podero ser concretizadas,

    caso haja o protagonismo dos atores coletivos que representam as demandas da sociedade. Do

    mesmo modo o que explana Antnio Carlos Wolkmer (WOLKMER, 1994, p. 144):

    Neste espao de sociedades divididas em estratos sociais com interesses

    profundamente antagnicos, instituies poltico-jurdicas precrias, emperradas no

    formalismo burocrtico e movidas historicamente por avanos e recuos na conquista

    de direitos, nada mais significativo do que constatar que o pluralismo dessas

    manifestaes por novos direitos uma exigncia contnua da prpria coletividade

    frente s novas condies de vida e s crescentes prioridades impostas socialmente.

    O processo simblico que foi construdo pela autoridade estatal a partir da

    legalidade, no mais gera a confiabilidade necessria para legitimar as instituies vigentes,

    logo, passa-se a questionar os ideais que se construram em torno de uma institucionalizao

    excessiva, na medida em que, diferentemente do que se supunha, tal concepo talvez tenha

    mais a ver com a auto-encenao de uma dominao totalitria de que com as realizaes

    simblicas de um Estado constitucional democrtico(HABERMAS, 2003,p.81). Segundo

    Habermas (2003, p. 160) na interpretao republicana, a substncia da constituio tem que

    emergir de um processo inclusivo de formao da opinio e da vontade dos cidados, pois

    caso o contrrio, haveria um conflito com a soberania do povo. Neste sentido, o ilustre

    autor demonstra que concebe-se a autodeterminao democrtica como um auto-

    entendimento poltico-tico, no coagido, de um povo acostumado a liberdade e, desse

    modo, os princpios do Estado de direito no seriam prejudicados, pois seria reconhecidos

    como parte integrante de um ethos democrtico (HABERMAS, 2003, p. 160). Porm tal

    perspectiva, observada de forma isolada, parece no agradar Habermas (HABERMAS, 2003,

    p. 160), posto que introduz, na histria das mentalidades e na cultura poltica da comunidade,

    as orientaes valorativas liberais que tornam suprflua a imposio do direito atravs do

    costume e da autoligao moral. Como alternativa a isso, o pensador alemo visa uma

    interpretao republicana em outro sentido, de carter procedimentalista, quando a

    expectativa racional de uma formao democrtica da opinio e da vontade, que se limita a si

    mesma, se transporta das fontes de um consenso j existente para as formas caractersticas do

    processo democrtico (HABERMAS, 2003, p. 160).

    Apesar de Habermas ter razo no que se refere interpretao republicana

    clssica, em relao ideia de consenso, parece que tal fator, como determinante a uma

    condio moral universal, se torna extremamente surrealista, perante o cenrio dos sistemas

    polticos e econmicos atuais, principalmente quando se observa processos democrticos em

    456

  • construo, como o caso da realidade brasileira4. Ocorre que as condies habermasianas

    esto longe de serem efetivadas, visto que os consensos obtidos desta forma, acabam por ser

    frequentemente muito mais mistificadores do que os imperfeitos consensos estabelecidos na

    base da democracia representativa (HESPANHA, 2010, p. 153-154).

    Por isso, na acepo de Antnio Manuel Hespanha (2010, p.155) os novos direitos

    que surgem, devem necessariamente serem trabalhados a partir de uma metodologia

    inovadora, que permita reconhecer sem discriminao, todas as formas de manifestao

    autnoma de direito e de dar a todas elas a mesma capacidade de se exprimirem na

    comunidade jurdica, pois somente dessa forma, estaro garantidas, a legitimidade e o carter

    de justia das solues jurdicas que derivam de um dilogo com vista ao consenso. Em razo

    dessa realidade, a participao popular na formao do ordenamento vigente, torna-se

    imprescindvel na superao da cultura legalista, que se contrape aos interesses do povo e

    exclui do processo democrtico os atores sociais, que, por sua vez, so os verdadeiros

    representantes das demandas oriundas da sociedade. Por esse motivo, os movimentos sociais e

    os demais atores coletivos se transformam na via emancipadora do direito, capazes de,

    mediante uma participao democrtica, ampliar as fontes produtoras de normas jurdicas, de

    modo em que haja a superao definitiva da racionalidade institucionalizada proveniente do

    Estado liberal.

    4WOLKMER (1994, p. 251) demonstra que a teoria macrocsmica e interdisciplinar de Habermas, por

    transcender as diversas formas particularizadas de racionalidade tcnico-industrial, o ponto de partida da

    discusso sobre toda e qualquer reflexo que envolva, hoje, a problematizao de uma nova racionalidade.

    Realar a contribuio habermasiana no impede contudo, de reconhecer seus limites para uma soluo efetiva e

    total de especificidade histrica das sociedades perifricas. Um primeira ressalva que se pode fazer a de que a

    proposta altamente sofisticada da racionalidade comunicativafoi elaborada tendo em vista as condies

    materiais e culturais de sociedades capitalistas que alcanaram um elevado grau de riqueza, desenvolvimento e

    satisfao das necessidades. Um segundo elemento a considerar o de que a ao e o entendimento

    comunicativo pressupem, obrigatoriamente a presena de atores livres, autnomos e iguais, condies que no

    condizem com a realidade do Terceiro Mundo e da Amrica Latina, onde, como se sabe, os sujeitos individuais e

    coletivos vivenciam uma situao histrica de alienao, opresso, desigualdade e excluso. Um terceira

    ponderao encontra-se na dificuldade de alcanar um consenso na esfera de espaos comunicativos

    perifricos profundamente marcados por contextos culturais fragmentrios, tensos e explosivos. No parece ser

    to fcil distinguir o falso do verdadeiro consenso ou mesmo de atingir um consenso espontneo desprovido

    de preconceitos. No mundo contemporneo temos visto que o consenso pode, tanto ser forjado e manipulado

    por burocratas partidrias estatais (Socialismo de Estado), quanto pela indstria cultural do Capitalismo de

    massas. Uma quarta restrio que este novo paradigma de ao dialgico-discursivo requer uma comunidade

    lingustica ideal, de pureza quase utpica, desprovida de mentira, coao e irresponsabilidade. Por outro lado,

    as dificuldades subsistem ainda com relao prpria institucionalizao desses discursos emancipatrios que,

    como se sabe, so criaes artificiais firmadas em cima da suposta competncia argumentativa dos participantes

    envolvidos. Por ltimo, h supervalorizao da razo humana como agente de transformao e da emancipao,

    sem distinguir as diferenciaes, condicionamentos e irracionalismos inerentes a prpria experincia do

    homem.

    457

  • 5. PLURALISMO E MARXISMO

    A anlise a respeito do tema trabalhado traz um debate inevitvel, que decorre da

    relao entre as concepes do socialismo marxista e do pluralismo jurdico. Neste sentido,

    surge a seguinte indagao: possvel conciliar as opinies defendidas por Karl Marx com a

    ideia da construo de um sistema pluralista na produo de normas jurdicas?

    Buscando resolver o dilema acima mencionado, Norberto Bobbio (1999, p. 24)

    demonstra que se deve analisar a questo a partir de quatro pontos, que seriam: 1) pluralismo

    e marxismo; 2) pluralismo e teoria (e prtica) dos partidos marxistas; 3) pluralismo e

    compromisso histrico, 4) pluralismo e sociedade socialista futura.

    Em relao ao primeiro aspecto, pluralismo e marxismo, Bobbio (1999, p.24) cita

    o artigo possvel conciliar o pluralismo com Marx?, de autoria do pensador italiano Pietro

    Rossi, que foi publicado no II Giorno, na data de 19 de setembro de 1976. Segundo Rossi

    (apud BOBBIO, 1999, p.24), h uma clara divergncia entre pluralismo e marxismo, posto

    que, no pluralismo h o reconhecimento de que a sociedade constituda por uma

    multiplicidade de grupos portadores de interesses diferentes mas no necessariamente

    incompatveis, enquanto que para o marxismo a sociedade formada de classes

    antagnicas.

    No que tange ao segundo ponto, pluralismo e teoria (e prtica) dos partidos

    marxistas, Rossi (apud BOBBIO, 1999, p.24) observa que na acepo pluralista a funo dos

    partidos representativa e mediadora, enquanto que no marxismo, representativa, mas no

    mediadora, pelo fato de o partido representar os interesses permanentes de uma s classe.

    J em relao ao terceiro ponto, pluralismo e compromisso histrico, Bobbio

    (1999, p.27), cita Antonio Giolitti, que por sua vez, defende que no se deve correr o risco da

    falta de alternativas, porque sem alternativa e sem a possibilidade de uma oposio capaz de

    substituir pacificamente o governo em exerccio, teramos um pluralismo social preso a um

    totalitarismo poltico. Neste sentido, como volta a explicar Bobbio (1999, p. 27), o

    pluralismo, de maneira distinta com o que ocorre com as vises marxistas, no teria um

    compromisso histrico, pois caso assim fosse, terminaria por bloquear o desenvolvimento de

    uma sociedade pluralista.

    Por fim, Bobbio (1999, p.27-28) tece seus comentrios sobre a quarta questo a

    ser levantada, que seria o pluralismo e a futura sociedade socialista, na qual ele observa que

    no h uma resposta clara para buscar a soluo diante a necessidade de se conciliar estes dois

    pontos, conforme se pode verificar:

    458

  • [...] como o pluralismo comeou, nos tempos atuais, por fazer parte do nosso

    conceito de democracia, sabemos tambm que uma sociedade socialista, para ser

    democrtica, ter de ser pluralista. Mas ainda no sabemos como. Para definir a

    democracia so necessrias duas negaes: a negao do poder autocrtico, em que

    consiste a participao, e a negao do poder monocrtico, em que consiste o

    pluralismo. Pode-se pensar perfeitamente numa sociedade democrtica no-

    pluralista, como a repblica de Rousseau; e existiram sociedades democrticas no

    pluralistas no regime feudal. Uma sociedade socialista, para ser democrtica, deveria

    ser no-autocrtica e no-monocrtica. Os esforos do pensamento socialista e

    democrtico voltaram-se para o primeiro objetivo alargamento da participao do

    poder poltico estreitamente ligado ao poder econmico e ainda no para o

    segundo. Ficaramos satisfeitos se este debate servisse para identificar um problema,

    pelo menos.

    Neste contexto, pode dizer que se por trs pluralismo encontra-se um Gurvitch

    ou um Proudhon, por outro, no rol do monismo, alinham-se pensadores como Hegel e

    Marx(WOLKMER, 1994, p. 203). No caso mais especificadamente de Marx, no h

    perspectivas quanto possibilidade conciliao entre os interesses burgueses e as demandas

    sociais, uma vez que, conforme elucida Alysson Mascaro (2010, p. 296) os problemas da

    liberdade real e no da formal, da igualdade real e no da isonomia somente podero ser

    solucionados, na viso marxista, pela prxis revolucionria e no pela declarao de

    direitos.

    A anlise marxista realiza uma vinculao entre o capitalismo e o direito, de modo

    que, o aparato jurdico, na verdade, se trata da sustentao de toda a lgica de explorao

    econmica empreendida pela classe burguesa. Segundo Marx (2008, p. 109) o contedo da

    relao jurdica ou de vontade dado pela prpria relao econmica, e em razo disso,

    conclui ele que as condies lgicas, sociais e histricas que viram nascer o mercado como

    categoria socializadora central da sociedade capitalista so as mesmas que viram nascer o

    sujeito de direito (MARX, 2008, p.206).5 Sob esse prisma, a proposta de que por meio da

    produo alternativa de normas haveria uma possibilidade de insero social, para Marx se

    mostraria descabida, pois, conforme pode se verificar na sua crtica aos chamados utopistas, a

    frmula para a soluo da questo social estaria no na cincia em si, mas em sua criao a

    partir de um movimento crtico do movimento histrico, de um movimento que produz ele

    prprio as condies materiais de emancipao (MARX, 1983, p.24).

    5De acordo com Mrcio Bilharinho Naves (apud MASCARO, 2010, p. 297) Marx mostra que as categorias da

    liberdade e da igualdade e a forma-sujeito (universal) emergem apenas do momento histrico da constituio da

    sociedade mercantil-capitalista que, por se fundar no trabalho assalariado, necessita romper com as formas de

    dependncia pessoal do feudalismo. O homem ter que ser livre para poder vender a sua fora de trabalho no

    mercado, por meio de um contrato, portanto, sem que seja submetido a quaisquer modalidades de coero ou de

    perturbao de sua vontade, e em condies de igualdade diante do comprador. Dotado da capacidade jurdica, o

    homem se transfigura em sujeito de direito, tornando-se apto a negociar a nica mercadoria de que proprietrio,

    a sua fora de trabalho.

    459

  • Assim, o Direito, na posio defendida por Marx, trata-se de um produto que se

    constitui pela necessidade histrica de as relaes produtivas capitalistas estabelecerem

    determinadas instncias que possibilitem a prpria reproduo do sistema (MASCARO,

    2010, p. 294-295). Em face disso, no marxismo, no parece que haja possibilidade de uma

    conciliao entre os grupos sociais antagnicos, uma vez que, em razo da contradio

    econmica no sistema e da luta de classes, os vcios do capitalismo no permitiriam que

    houvessem instrumentos democrticos para a ampliao da participao popular, at porque, o

    alcance de uma sociedade mais igualitria, somente se daria pela via revolucionria. Portanto,

    perante tal perspectiva, o Direito e as vias alternativas de produo legislativa no se tratam

    de meios hbeis para se atingir o rompimento do modelo econmico vigente, pois a classe no

    marxismo o que seria a medula da revoluo (BONAVIDES, 2001, p.174).

    6. O PLURALISMO JURDICO E O SISTEMA DE NECESSIDADES

    O direito estatal cada vez mais se mostra como um instituto, cuja produo

    normativa no atende as demandas populares, pois na verdade, o que se tem muitas vezes,

    um fortalecimento da atuao do Estado em prol dos interesses dominantes, sem que o

    restante da sociedade seja concretamente beneficiado pela ampliao no rol de direitos

    declarados6.Nesse sentido torna-se imprescindvel a ampliao da produo normativa

    mediante uma atuao ampla e irrestrita dos atores coletivos, que surgem para democratizar o

    debate social e, consequentemente, permitir que a legislao seja construda, principalmente,

    em favor daqueles que almejam alcanar uma igualdade substancial.

    Nota-se que com o aparecimento dos atores coletivos, se constitui aquilo que se

    denomina de sistema de necessidades (WOLKMER, 1994, p.216), que por sua vez

    caracteriza-se por estar voltado ideia de atendimento as necessidades humanas

    fundamentais, que compreende necessidades sociais, existenciais ou de vida, materiais ou de

    6 Nos ensinamentos de Friedrich Mller (2000, p. 95-96) os direitos fundamentais no esto positivados

    disposio dos indivduos e dos grupos excludos, mas os direitos fundamentais e humanos destes so violados

    (de forma repressiva e de outras formas). Normas constitucionais manifestam-se para eles quase s nos seus

    efeitos limitadores de liberdade, seus direitos de participao poltica aparecem diante do pano de fundo a sua

    depravao integral preponderante s no papel, assim como tambm o acesso aos tribunais e proteo

    jurdica. A constituio no pode impor o cdigo direito/no direito diante do metacdigo, ela fracassa na tarefa

    de acoplar de forma confivel o direito, a poltica e a sociedade. Os superintegrados dispem exclusivamente da

    constituio; a inconstitucionalidade ou contrariedade ao direito da sua ao ou da ao dos seus polticos,

    peritos, milicianos no se torna objeto de procedimentos jurdicos normatizados e com isso nem se torna tema no

    sentido forte desse termo. O cdigo jurdico est subordinado ao cdigo poltico, o direito est subordinado

    economia, o Estado est subordinado atividade econmica com as conseqncias j insinuadas para os

    economicamente fracos, quer dizer, para a maior parte da populao. Ento no admira mais que a reivindicao

    de direitos de cidadania por parte de subcidados excludos, subintegrados, seja identificada constantemente com

    subverso.

    460

  • subsistncia, e culturais (WOLKMER, 1994, p.217). De forma oposta a isso, o direito estatal

    somente parece contemplar as necessidades relacionadas ao poder econmico, o que prejudica

    o atendimento de outras demandas fundamentais, uma vez que, conforme explica Agnes

    Heller (apud WOLKMER, 1994, p.219) certas necessidades relacionadas posse, ao poder,

    e ambio no podem e no devem ser inteiramente satisfeitas, sob pena de prejudicarem a

    objetivao de outras necessidades consideradas essenciais para amplos setores da

    humanidade. Em face de tal cenrio, constitui-se aquilo que Heller (apud WOLKMER,

    1994, p.220) caracteriza como sociedade insatisfeita e, desse modo, a atuao dos

    movimentos sociais e dos novos atores coletivos se fortalecem, posto que, na medida em que

    vai se ampliando a insatisfao, se constitui um sistema pautado em reivindicaes de ndole

    social, poltica e cultural-espiritual (HELLER apud WOLKMER, 1994, p.221).

    7. O PLURALISMO JURDICO COMO MEIO DE EMANCIPAR A SOCIEDADE DA

    FRUSTRAO ORIUNDA DAS PROMESSAS NORMATIVAS ESTATAIS.

    De acordo com Niklas Luhmann (1983, p.45) o homem vive em um mundo

    constitudo sensorialmente, cuja relevncia no inequivocamente definida atravs do seu

    organismo. Dessa forma, Luhmann (1983, p.45) demonstra que, cada experincia concreta

    apresenta um contedo evidente que remete a outras possibilidades que so ao mesmo tempo

    complexas e contingentes. A complexidade deriva do fato de que sempre existem mais

    possibilidades do que se pode realizar, e a contingncia significa o fato de que as

    possibilidades apontadas para as demais experincias poderiam ser diferentes das esperadas,

    ou seja, que essa indicao pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente inatingvel, ou a

    algo que aps tomadas as medidas necessrias para a experincia concreta (por exemplo,

    indo-se ao ponto determinado), no mais est l (LUHMANN, 1983, p.45-46). Em

    consequncia da complexidade e da contingncia acrescenta-se aquilo que Luhmann (1983,

    p.53) denomina de expectativas concretas, e em especial, as abstraes que as regulam e

    integram em decorrncia de uma estrutura (LUHMANN, 1983, p.53). A dependncia dessas

    estruturas que tem que ser consistentes, at mesmo pelo fato de haver uma crescente

    complexidade e contingncia na sociedade, gerando um aumento no nvel de tenses sociais,

    no est imune aos desapontamentos das expectativas e dos riscos (LUHMANN, 1983, p.54).

    As expectativas podero ser cognitivas ou normativas, sendo que as primeiras se

    do pelo fato de ser possvel assimilar os desapontamentos, enquanto que a segunda no h

    essa possibilidade (LUHMANN, 1983, p.54). Por isso, Luhmann (1983, p.57) observa que as

    461

  • normas so expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafticos, pois seu

    sentido implica na incondicionalidade de sua vigncia na medida em que a vigncia

    experimentada, e portanto tambm institucionalizada, independentemente da satisfao ftica

    ou no da norma. Porm, como reconhece Luhmann (1983, p. 77) as expectativas normativas

    no podem indefinidamente ser expostas a desapontamentos, sendo necessrio achar sadas

    para o problema. Ainda que Luhmann, no seja favorvel de se estender o consenso ftico7,

    para que haja a possibilidade de ampliao de fontes normativas, no parece que a alternativa

    da institucionalizao seja o melhor caminho para se superar essa frustrao diante a

    aplicabilidade da norma jurdica, que nem sempre consegue atender a todas as demandas.

    Se no mbito jurdico h um prprio cdigo comunicativo, conforme quis expor

    Luhmann (1983, p.85), sem que terceiros pudessem interferir, j que as opinies estariam no

    campo da poltica, tal concepo deriva da prpria lgica da chamada teoria dos sistemas, na

    qual as sociedades diferenciam-se em uma srie de sub-sistemas, fechados em si mesmos e

    referidos a si mesmos (HIRSCH, 2010, p. 11-12). No entanto, conforme demonstra Joachim

    Hirsch (2010, p.13) mesmo que a teoria dos sistemas possa demonstrar algumas vantagens,

    pode-se apontar tambm certas dificuldades, pois sendo o Estado compreendido como uma

    autodescrio do sistema poltico que prescreve as decises polticas aos atores em ao e

    se autolegitima como socialmente geral, tais fatores ocasionam algumas indagaes, como

    por exemplo: o que fazer com determinadas questes que surgem no meio social, nas quais

    pode-se citar o poder das grandes empresas quando tomam e aplicam decises que afetam a

    todos; os sindicatos e as federaes empresariais, os seus acordos salariais ou o plano de

    investimentos das grandes empresas? Isso no envolve decises obrigatrias que afetam a

    sociedade? Os conflitos sociais resultam realmente apenas das decises tomadas no interior

    do sistema poltico? (HIRSCH, 2010, p. 13).

    Os questionamentos levantados por Hirsch que, por ser adepto da ideia voltada a

    teoria materialista do Estado no se trata de um pensador simptico a concepo pluralista,

    visto que a considera bastante simplista (HIRSCH, 2010, p.12) - expem que, alm do

    7Para Luhmann (1983, p.85) a necessidade de se distender, simular e substituir o consenso ftico tem suas

    condies agravadas com a crescente multiplicidade das possibilidades no campo da experimentao da ao.

    No mais possvel ter expectativas confiveis sobre um consenso de um terceiro qualquer com respeito a

    determinadas expectativas, e menos ainda, prev-lo para expectativas novas. No se sabe por exemplo, quais

    tendncias de reforma universitria seriam preferidas pelos camponeses, qual a melhor organizao judiciria

    para as donas de casa, quais condies atacadista so proferidas por professores secundrios. Em termos

    realsticos necessrio supor que tais opinies sequer possam existir ou serem geradas, e que s se possa

    produzir a fico institucional das opinies. Isso remete necessidade da poltica. Alm disso coloca-se a

    ameaa de perder-se a limitada capacidade adaptativa das instituies, j que os terceiros relevantes tornam-se

    inacessveis nas crescentes ordens de grandeza.

    462

  • mencionado acima, surgem outras questes mais problemticas, pois atravs da definio do

    sistema poltico enquanto momento funcional no interior de uma complexa e diferenciada

    relao de sistemas, a dominao social e mesmo a explorao desaparecem, ou seja, a

    sociedade definida como uma espcie de circuito regulador autoestabilizado (HIRSCH,

    2010, p.13-14).

    No obstante, o perigo da contnua frustrao em relao fonte normativa estatal

    estimula a formao de ideologias extremistas e totalitrias que visam justificar suas teses

    diante a inoperncia do sistema. Exemplo clssico disso, pode ser encontrado nas teorias de

    Carl Schmitt (2007), que demonstrando a concepo formalista adotada pelo Estado liberal,

    na qual se sustenta a distino entre a lei e aplicao da lei, expe que para se evitar o

    desmoronamento do sistema parlamentar necessrio se constituir um legislador

    extraordinrio que seria capaz de emitir um ato singular, que tornasse insignificante todo

    o sistema de salvaguardas jurdicas construdo com engenhosidade para combater injunes

    do Executivo(SCHMITT, 2007, p.75)8. A tese defendida por Schmitt serviu de base para

    doutrinar na Alemanha, o regime nazista, em razo das frustraes advindas dos problemas

    sociais que se espalhavam na poca, bem como pelo fato de no se ter uma legislao

    eficiente capaz de assegurar direitos, ainda mais porque, os fatores externos, como o

    famigerado Tratado de Versalhes, que ao final da Primeira Guerra Mundial implementou

    inmeras medidas que humilharam abruptamente o povo daquele pas, impediram que

    houvesse qualquer postura que visasse melhoria das condies sociais da populao. Por

    isso, diante as necessidades que aparecem diante as mudanas sociais, surge

    imprescindibilidade de modificao da natureza do sistema jurdico, e o direito alternativo se

    trata de uma via que se origina para que as satisfaes oriundas da sociedade no continuem a

    serem frustradas.

    O direito alternativo, que se originou entre 1960 e 1970, desenvolveu-se como

    um movimento que tentou promover mudanas sociais atravs do direito (SABADELL,

    2010, p.118) e, dessa forma, buscou estabelecer um novo sistema jurdico gerado

    espontaneamente no seio dos movimentos sociais e substituindo paulatinamente o opressor

    direito do Estado (SABADELL, 2010, p.119).

    8Segundo Carl Schmitt (2007) o fracasso do Estado legiferante parlamentar, com base nas acepes liberais,

    instituiu a necessidade de se estabelecer um legislador extraordinrio que cria Direitos, inclusive contra as leis

    que j esto em vigor, em razo de terem sido aprovadas pelo parlamento. Analisando-se a Constituio de

    Weimar, Schmitt (2007, p.74 e s.s.) salienta que o contedo da competncia legislativa atribuda ao legislador

    extraordinrio superior ao do legislador ordinrio do parlamento (Reichstag), posto que, tem a faca e o queijo

    na mo para conferir a cada medida por ele tomada o carter de norma jurdica com toda prioridade de que goza

    a lei no Estado legiferante parlamentar.

    463

  • Em pases perifricos, e em desenvolvimento como o Brasil, o fato de o poder

    jurisdicional atuar em conjunto e em favor das elites e do poder econmico, expressa que a

    aplicabilidade do Direito na esfera prtica acaba sendo bastante diferenciada que a construda

    no mbito terico, visto que, alm de provocar frustraes sensoriais sobre direitos difusos e

    coletivos, pela ineficcia das normas estatais, estabelecem um sistema opressor que em vez de

    assegurar garantias, se volta contra a prpria sociedade, mediante atos de violncia e

    represso das autoridades previamente constitudas pelo Estado. o que se verifica, por

    exemplo, nas vicissitudes que ocorrem no processo de reforma agrria no Brasil. Conforme

    lembra Ana Lcia Sabadell (2010, p.113) a timidez e lentido da implementao de

    reformas na estrutura agrria brasileira, com resultados polticos infrutferos, na verdade cria

    uma situao em que se efetiva a represso a movimentos sociais, em vez de garantir que os

    direitos reivindicados sejam alcanados, haja vista que, os governos pactuam como

    representantes do poder latifundirio e, na atualidade, tambm com grandes empresas

    multinacionais ligadas ao agronegcio. E isso indica aquilo que Sabadell (2010, p.113)

    sabiamente denomina de debilidade do Estado, que mesmo aps a Constituio de 1988

    que textualmente vincula a funo social da terra com o exerccio do direito de propriedade -,

    no consegue efetivar a reforma agrria.

    A frustrao diante a expectativa da concretizao do fenmeno jurdico, afasta

    qualquer possibilidade de percepo substancial do direito, que diferentemente da percepo

    formal9, concentra-se na razo de ser, na sua origem, na sua justificao, e na sua finalidade,

    ou seja, h um desapontamento em relao ao fenmeno jurdico que deve ser tratado na

    perspectiva da justia que ele deve assegurar ou das realidades sociais a que deve satisfazer

    ou do progresso que deve realizar (BERGEL, 2006, p. XXV). Apesar do discurso muitas

    vezes democrtico, advindo da esfera estatal, a prtica na verdade mostra-se autoritria, isto ,

    significa dizer que, mesmo quando o Estado leva em conta as reivindicaes democrticas, o

    faz com o objetivo de preservar o processo de explorao em condies de estabilidade

    poltica e social e desde que no haja prejuzo para a burguesia como um todo (MAGLIOLI

    apud PASTANA, 2009, p.131). Nesse contexto, no sistema jurdico estatal, como

    oportunamente assevera Dbora Pastana (2009, p. 131) criam-se mecanismos simblicos,

    9 A abordagem formal, de acordo com Jean-Louis Bergel (2006, p.XXV), a segurana jurdica e as regras do

    direito positivo dominam o sistema do direito que parece expressar sobretudo a vontade e a ao do poder

    pblico, parecendo primordial sua coerncia. O pice dentro dessa tica, parece ter sido atingido por Hans

    Kelsen, que reduz o direito a um encadeamento de normas hierarquizadas, sendo que cada uma tira sua fora

    obrigatria apenas de sua conformidade com a norma superior. Assim, apenas o elemento normativo

    considerado, ao passo que a razo de ser e o contedo das normas so abandonadas a outras disciplinas que no o

    direito.

    464

  • nos quais a letra da lei supera a fala, de sorte que a manuteno dos privilgios se estabelece

    graas crena interna de que, ao menos, obedeceu-se a um ritual preestabelecido, encenao

    necessria a fim de encobrir os interesses particulares de seus executores.

    Vislumbra-se que nossa histria jurdica, nos cdigos e filosofias, mas cuidou da

    legitimao que da opresso (MASCARO, 2008, p. 15) e, neste sentido, torna-se necessrio

    compreender a lgica estruturante do poder, na qual o Direito se instrumentaliza como objeto

    de dominao social. Na anlise de Foucault (1979, p. 183) o poder funciona e se exerce em

    rede, e, dessa maneira, o sistema do direito, o campo judicirio so canais permanentes de

    relaes de dominao e tcnica de sujeio polimorfas (FOUCAULT, 1979, p. 182). Logo,

    o direito deve ser visto como um procedimento de sujeio, que ele desencadeia e no como

    uma legitimidade a ser estabelecida (FOUCAULT, 1979, p. 182) e, neste sentido, Foucault

    defende que a questo central para o direito deve ser analisada no sobre o aspecto da

    soberania e da obedincia dos indivduos, mas sim a partir do problema da dominao e da

    sujeio (FOUCAULT, 1979, p. 182). Perante a perspectiva apresentada por Foucault:

    temos, portanto, nas sociedades modernas, a partir do sculo XIX at hoje, por um

    lado, uma legislao, um discurso e uma organizao do direito pblico articulado

    em torno de princpios do corpo social e da delegao do poder, e por outro, um

    sistema minucioso de coeres disciplinares que garanta efetivamente a coeso deste

    mesmo corpo social (FOUCAULT, 1979, p. 189).

    A perspectiva do Direito a partir do processo de dominao traz a tona, a

    necessidade de se resistir e se contrapor ao sistema jurdico opressor do Estado, tanto no

    aspecto jurdico-poltico-social, em que a resistncia passa pelo campo da cidadania, de modo

    a se estimular a luta coletiva10

    , como tambm pelo aspecto tico, para se buscar enfrentar as

    condies que fazem emergir a crueldade subjetiva (MORIN, 2007, p. 201).

    Considerando-se que as foras populares organizam-se, numa variedade imensa

    de formas e modelos (HERKENHOFF, 2004, p. 55), o poder dominante, mesmo impondo

    decises contrrias aos interesses das maiorias tem de suportar a voz altiva das minorias

    10

    Como bem salienta Herkenhoff (2004, p.236) a cidadania h de ser conquistada atravs da luta individual e

    atravs da luta coletiva. H situaes concretas nas quais o cidado tem de travar uma luta individual para

    conquistar seus direitos. Esta luta individual, solitria, que o cotidiano da vida s vezes exige, sempre mais

    dura e difcil. A luta individual mais penosa, mais longa, com possibilidade de xito menor. Porm, se uma

    situao concreta reclama a luta individual, no devemos recuar diante dos obstculos. Devemos buscar nossos

    direitos, custe o que custar. Mas sempre que for possvel, devemos recorrer luta coletiva. Segundo continua a

    dizer Herkenhoff (2004, p.236), as classes dominantes desencorajam as lutas coletivas. Com frequncia, os

    lderes das lutas coletivas so perseguidos presos e at mesmo assassinado. Tambm os meios de comunicao

    social, frequentemente a servio das classes dominantes, estimulam o individualismo. Citemos, por exemplo, as

    novelas de televiso. Com raras excees as histrias das novelas so simplesmente histrias individuais. Poucas

    vezes as novelas apresentam as lutas coletivas, as lutas do povo. (H honrosas excees, por parte de alguns

    novelistas). Mesmo sendo a novela um entretenimento, pode tambm educar. O povo tem de aprender a vencer

    seus desafios, com suas prprias foras. Mesmo que o ambiente envolvente seja adverso, mesmo que a luta

    coletiva no seja valorizada e enaltecida, a unio que faz a fora.

    465

  • lcidas que no se deixam enganar pela propaganda (HERKENHOFF, 2004, p. 55).

    Contudo, para que seja concretizada essa resistncia imprescindvel que haja tambm a

    construo de uma nova conscincia histrica que passa por etapas de todo um processo

    emancipador. Segundo Leonardo Boff (1980, p.92), as fases para o caminho da emancipao

    seriam as seguintes:

    a) Conflito: neste momento, conforme demonstra Boff (1980, p.92), o homem

    vive a situao de opresso e conflito, e dessa maneira, a existncia humana sempre

    conflitante, porque permanentemente deve conquistar sua liberdade no esforo de libertar-se

    de dependncias e de assumir outras, logo, o processo de libertao se torna urgente.

    Aparece ento um outro elemento estrutural: a crise.

    b) Crise: para Boff (1980, p.92), a crise pertence normalidade da vida, que

    sempre conflitante e, por isso, a crise age como um crisol que acrisola o homem a fim de

    que se faa cada vez mais apto para a deciso e para assumir uma posio. Para sair da crise, o

    homem necessita elaborar um novo projeto para o qual se decide.

    c) Novo projeto: de acordo com Leonardo Boff (1980, p.92), o novo projeto

    emerge dentro de um processo de libertao, onde j se rompeu ideologicamente com

    dependncias, ou seja, o projeto dignifica sempre a mediao da plena liberdade, dentro de

    uma situao dada e concreta, pois se no for assim ser sempre opressor. Como continua

    a expor Boff (1980, p.92), tal projeto, apesar de estar inserido no mbito da concretude,

    dever manter-se em aberto para o processo de libertao, que sempre maior do que

    qualquer projeto histrico.

    d) Deciso: por fim, Boff (1980, p.92) fala que o ltimo estgio de libertao est

    no ato de decidir, que se trata da prtica libertadora, na qual o projeto histrico comea a

    assumir a configurao concreta. Considerando-se que o homem nunca pode se auto realizar

    sem compreender a nova ordem do mundo, o processo de libertao processo permanente

    de deciso. O homem est condenado a decidir. No livre para decidir ou no decidir. O

    eximir-se j uma deciso e uma posio.

    Entretanto, conforme j dito, o processo emancipatrio deve ser pelo caminho da

    coletividade, tendo-se em vista que, como lembra Hannah Arendt (2010, p.8) a ao, nica

    atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediao das coisas ou matria,

    corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e no o Homem,

    vivem na Terra e habitam o mundo.11

    11

    Na viso de Hannah Arendt (2010, p. 26) nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio

    natureza selvagem, possvel sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presena de outros

    466

  • A prpria falta de densidade ideolgica advinda dos grupos dominantes, abrem

    oportunidades para a construo de vias alternativas ao sistema jurdico, com o objetivo de

    acomodar, em termos prticos, os ideais emancipatrios e as reivindicaes oriundas dos

    movimentos sociais, que atuam como atores coletivos, neste novo cenrio de supresso ao

    direito exclusivamente estatal. Da ideia de emancipao vislumbra-se, que no deve prosperar

    a mxima da concepo legalista, do Estado liberal, visto que, conforme expe as escritas de

    Roberto Lyra Filho (1988, p.27), o direito est alm e acima da lei, at contra elas, como o

    direito de resistncia, que nenhum constitucionalista, mesmo reacionrio, poder deixar de

    desconhecer.

    8. A CONSOLIDAO DO PLURALISMO JURIDICO PELA VIA DA

    ARGUMENTAO E DA DIALTICA

    A relao do direito com os fatos deve estar em consonncia com a noo de

    razoabilidade, posto que o formalismo estatal, poder ser fonte de inmeras injustias que

    incidem em determinas ocasies sobre a sociedade. o que ressalta Chaim Perelman (2005,

    p.436):

    Vemos assim que, em toda matria, o inaceitvel, o desarrazoado constitui um limite

    para qualquer formalismo em matria de direito. por essa razo que a teoria pura

    do direito de Hans Kelsen no d explicao suficiente do funcionamento efetivo do

    direito, na medida em que se empenha em separar o direito do meio em que ele

    funciona e das reaes sociais desse meio.

    Em razo disso, a argumentao jurdica caber ser pautada, como forma de

    reconhecer as demais fontes normativas, pela tpica, cujo raciocnio dialtico, permite que o

    pensamento que se volta ao problema seja estabelecido a partir de premissas devidamente

    catalogadas. A tpica, por no trabalhar o apotdico, pelo fato de pertencer ao terreno da

    dialtica, trata-se de uma tcnica de pensar por problemas desenvolvida pela retrica

    (VIEHWEG,1979, p.17) e o mais notvel disso, que na sua busca para a soluo do

    problema a ordem que se aspira j no procurada no direito positivo, pois como tcnica de

    pensamento, a tpica leva a argumentao judicial a um jogo eminentemente assistemtico,

    em que se tem observado ausncia de rigor lgico, impossibilidade de reduo das decises a

    silogismos, etc (FERRAZ JR., 2001, p.326).

    seres humanos. Todas as atividades humanas so condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos, mas a

    ao a nica que no pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens.

    467

  • Na medida em que h o reconhecimento dos atores coletivos e consequentemente

    dos movimentos sociais como novas fontes normativas, o que est em disputa, fica provado

    em decorrncia da aceitao, posto que, a argumentao por meio da tpica possibilita que a

    oposio em adotar fontes alternativas de direito possa ser suprida e posteriormente admitida,

    por meio da incluso de novas premissas oriundas do campo extra-estatal. Destarte, a

    semitica torna-se um instrumento imprescindvel nesse processo, j que a linguagem popular

    introduzida na linguagem jurdica. Pode-se dizer que o que ocorre nesse processo uma

    verdadeira resignificao hermenutica, que conforme demonstra Ivone Fernandes Marcilo

    Lixa (In LIXA; VERAS NETO; WOLKMER,2010, p. 136):

    O processo hermenutico jurdico que inclui o espao social no pode ser uma

    canibalizao, para usar a expresso de Boaventura de Sousa Santos, dos demais.

    necessrio uma traduo das mltiplas hermenuticas dentre as quais a jurdica. E

    nesse sentido que no cabe uma hermenutica jurdica nos moldes tradicionais.

    So campos distintos que se tocam o estatal e o social -, em que mundos

    normativos, prticas e saberes dialogam, se desentendem e interagem, tornando

    possvel reconhecer os pontos de contato entre a tradio moderna ocidental e os

    saberes leigos. As duas zonas de contato constitutivas da modernidade ocidental so

    a zona epistemolgica, onde se confrontam a cincia moderna e os saberes leigos,

    tradicionais dos camponeses, e a zona colonial, onde se defrontam o colonizador e o

    colonizado. So duas zonas caracterizadas pela extrema disparidade entre as

    realidades em contato e pela extrema desigualdade das relaes de poder entre elas.

    A tarefa hermenutica como traduo retoma o sentido mais original do termo, mas

    a partir de uma perspectiva inovadora que traduz saberes nem sempre convergentes.

    Nesse aspecto, a disputa argumentativa entre o reconhecimento ou no de fontes

    alternativas de Direito, passa pela argumentao jurdica, que utilizando-se da tpica, amplia

    o rol de fundamentao com base em um catlogo premissas catalogadas, que vo alm das

    previses positivadas. Portanto, deve-se construiu um entendimento comum, no sentido de se

    aceitar a argumentao jurdica fundamentada em fontes normativas fora da esfera estatal, na

    qual os topois12

    e os catlogos de topis possuem uma importncia essencial, uma vez que

    seus repertrios podem ser alargados ou flexibilizados por meio de premissas fundamentais

    que se legitimam pela aceitao do interlocutor (VIEHWEG,1979, p.41-42).

    12

    Na explicao de Trcio Sampaio Ferraz Jnior (2001, p.322) os conceitos e as proposies bsicas dos

    procedimentos dialticos, estudados na Tpica aristotlica, constituam no axiomas nem postulados de

    demonstrao, mas topoi de argumentao, isto , lugares (comuns), frmulas, variveis no tempo e no espao,

    de reconhecida fora persuasiva no confronto de opinies. Obviamente, qualquer que seja a tpica de segundo

    grau, uma deduo sistemtica dos topoi uma impossibilidade. Na verdade, qualquer tentativa nesse sentido

    altera a prpria inteno da tpica que, sendo problemtica, assistemtica at por necessidade de produo dos

    efeitos persuasivos de argumentao. Por isso que, no pensamento tpico, mais importante que concluir a

    busca das premissas, o que Ccero chamava de ars inveniendi. Nesse sentido os catlogos tpicos so elsticos e,

    propriamente falando, a nica instncia de controle dos pontos de vista aceitveis, isto dos topoi catalogados,

    a discusso mesma, no debate, o que fica justificado por aceitao admitido como premissa. Por isso, para

    elaborar uma tpica de segundo grau o critrio de referncia no pode ser abstrato, mas localizado e situacional (FERRAZ JR., 2001, p.324-325).

    468

  • A ampliao dos topois consagra a prpria lgica do Direito que surge na

    dialtica social e no processo histrico (LYRA FILHO, 2006, p.79), ou seja, consagra a

    prpria essncia do jurdico que deve abranger todo esse conjunto de dados, em movimento,

    sem amputar nenhum dos aspectos (como fazem as ideologias jurdicas), nem situar a

    dialtica nas nuvens idealistas ou na oposio insolvel (no-dialtica), tomando o Direito e

    o Antidireito, como blocos estanques e omitindo a negao da negao (LYRA FILHO,

    2006, p.79). A importncia da dialtica est no fato de que a reduo da legitimidade do

    Direito a legalidade instituda restringe a possibilidade da construo de um processo

    democrtico baseado em uma participao mais ampla, que por sua vez, exige o uso da

    linguagem popular como instrumento a ser incrementado na semitica jurdica para que se

    possa se consagrar as fontes normativas oriundas dos atores coletivos. Diante dessa

    constatao, observa Wolkmer (2003, p.88):

    [...] a construo crtica de uma legitimidade democrtica que venha fundamentar o

    Poder poltico e o Direito justo tem seu ponto de referncia deslocado da antiga

    lgica de legitimao, calcada na legalidade tecno-formal para uma legitimidade

    instituinte, formada no justo consenso da comunidade e num sistema de valores

    aceitos e compartilhados por todos. No se trata mais de identificar e reduzir o

    conceito de legitimidade ao aspecto simplesmente jurdico, ou seja, a estrita

    vinculao com a validade e a eficcia enquanto produo de efeitos normativos.

    Numa cultura jurdica pluralista, democrtica e participativa, a legitimidade no se

    funda na legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das prticas sociais

    instituintes e das necessidades reconhecidas como reais, justas e ticas.

    Esta quebra do direito positivado retrata a consequncia lgica que provm da

    excluso social, ainda mais em pases como o Brasil, cuja concentrao de renda encontra-se

    entre as mais altas do mundo. Parece que, como bem ressalta Roberto Gargarella (apud

    OLSEN in GARGARELLA, 2005, p. 123), que a carncia social extrema justifica a violao

    ao direito posto, at mesmo como forma de resistncia a opresso por parte do Estado13

    . Em

    face de tal cenrio, vislumbra-se a conquista de uma nova realidade em que os membros da

    sociedade possam alcanar a mudana substancial do direito, mediante instrumentos de

    libertao que permitam o fim da relao opressor-oprimido, na medida em que o Estado de

    direito deixe de ser apenas a busca ou a luta por Estado com normas e passe a se concentrar

    13

    Nas explicaes de Frances Olsen (In: GARGARELLA, 2005, p. 123) el profesor Gargarella h tratado de

    limitar y controlar las situaciones em las que la quiebra del derecho por parte de aquellos que viven em

    situaciones de extrema pobreza deberan cosiderarse justificadas. Ante todo, sugiere um estndar objetivo

    destinado a definir situaciones de extrema exclusin social, vinculado com la lnea de pobreza definida

    internacionalmente. Adems, para encontrar justificadas sus acciones, los que desobedecen al derecho deben

    estar viviendo em uma situacin de alineacin legal (uma situacin em la que se presume que se encuentram

    aquellos que se vem privados de ciertos bienes humanos bsicos), y deben encontrarse afectados por srios

    problemas polticospara transmitir sus demandas a sus representantes o para hacerlos responsables por sus

    conductas.

    469

  • na ideia de um novo direito o que significa reconhecimento em oposio dominao

    (AGUIAR, 1990, p. 146-147).

    Assim, o imperativo de uma nova hermenutica a ser construda, aproximando-se

    a to distante linguagem jurdica da compreenso popular, torna-se cada vez mais necessrio,

    haja vista que, caso no ocorra um novo entendimento quanto ao reconhecimento de fontes

    alternativas de direito em detrimento ao Direito oficial, inevitavelmente, haver o

    agravamento da crise de legitimidade que paira atualmente o ordenamento jurdico vigente,

    provocando assim, srias consequncias ao meio social.

    9. OS CAMINHOS E DESAFIOS DO PLURALISMO JURDICO NA SOCIEDADE

    BRASILEIRA

    No Brasil o estudo do direito e o consequente desenvolvimento da sistematizao

    das normas jurdicas ocorreram diante um cenrio marcado pela cultura baseada no

    individualismo extremo e com forte vis patrimonialista, de modo que o formalismo legal

    estabelecido pela construo do Estado Liberal, prevaleceu durante quase todo o histrico da

    sociedade brasileira. Como bem elucida Wolkmer (2006, p.114) a tradio do

    constitucionalismo brasileiro, sempre esteve recheada de abstraes racionais o que, dessa

    forma, no apenas abafaram as manifestaes coletivas, como tambm no refletiram as

    aspiraes e necessidades mais imediatas da sociedade.

    Mesmo a Constituio Federal de 1988, tambm conhecida como Constituio

    Cidad, ter representado significativos avanos da sociedade civil, durante a dcada de 90

    houve um grande retrocesso, na medida em que foras da elite nacional apoiada na onda

    neoliberal de prevalncia absoluta do mercado e nas mudanas mundiais configuradas pela

    globalizao da economia desencadearam aes privatistas/reformistas que tanto

    objetivaram enfraquecer os direitos de cidadania, quanto deflagrar uma precipitada e

    oportunista reforma constitucional (WOLKMER, 2006, p.115). Tais polticas adotadas pela

    elite nacional e embasadas pelos poderes institucionais, inclusive o Judicirio e o Ministrio

    Publico, que nada fizeram diante inmeras denncias de irregularidades no processo da

    poltica de desestatizao promovida pelo governo do ento Presidente Fernando Henrique

    Cardoso14

    , trouxeram de volta a mesma conotao liberal e individualista que marcaram o

    14

    No livro A Privataria Tucana (2011) o jornalista Amaury Ribeiro Jnior informa e denuncia, por meio de

    documentos, uma complexa estrutura de offshres(empresas de fachada para lavagens de dinheiro em parasos

    fiscais) que serviram para a realizao de inmeras operaes ilegais que permearam os processos de

    privatizaes de empresas pblicas ocorridos durante os anos 90, do sculo XX, sob a presidncia do governo

    Fernando Henrique Cardoso.

    470

  • histrico constitucional brasileiro. Foi a verdadeira manipulao da democracia pelo poder

    econmico das elites dominantes em que de um lado refletiu a derrocada e insuficincia das

    foras progressistas; de outro, a cantilena de um discurso neoliberal, que, operacionalizado

    pelos segmentos reacionrios, reintroduz hegemonicamente novos valores, categorias e

    concepes de mundo (WOLKMER, 2006, p.115).

    Por outro lado, o crescente distanciamento entre as previses constitucionais e a

    efetivao de direitos da populao, trouxe novas perspectivas no sentido de que cada vez

    mais se busca a superao do direito estatalista mediante a implementao de novas fontes

    normativas oriundas das comunidades e dos setores mais carentes da sociedade brasileira.

    Esse processo, no entanto, no se trata de algo novo, pois j algum tempo se constata no

    Brasil, uma pluralidade de fontes normativas, que surgem em decorrncia da prpria

    necessidade de elaborao de regras naquelas comunidades maculadas pela excluso social e

    pelo abandono profundo do Estado, que deixa a prpria sorte a maior parte da populao.

    Na dcada de 70, do sculo XX, Boaventura de Sousa Santos (In: FALCO;

    SOUTO, 2001, p.88) em seu famoso estudo Notas sobre a Histrica Jurdico-Social de

    Pasrgada15

    , realizado na favela do Jacarezinho na cidade do Rio de Janeiro e elaborado

    para a tese de seu doutoramento na renomada Universidade de Yale, concluiu que:

    A favela um espao territorial, cuja relativa autonomia decorre outros fatores, da

    ilegalidade coletiva de habitao luz do direito oficial brasileiro. Esta ilegalidade

    coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto

    tal com o aparelho jurdico-poltico do Estado brasileiro. No caso especifico de

    Pasrgada, pode detectar-se a vigncia no oficial e precria de um direito interno e

    informal, gerido, entre outros, pela associao de moradores, e aplicvel preveno

    e resoluo de conflitos no seio da comunidade decorrentes da luta pela habitao.

    Este direito no-oficial o direito de Pasrgada como lhe poderei chamar vigora

    em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e desta duplicidade

    jurdica que se alimenta estruturalmente a ordem jurdica de Pasrgada. Entre os

    dois direitos estabelece-se uma relao de pluralismo jurdico extremamente

    complexa, que s uma anlise muito minuciosa pode revelar. Muito em geral pode

    dizer-se que no se trata de uma relao igualitria, j que o direito de Pasrgada

    sempre e de mltiplas formas um direito dependente em relao ao direito oficial

    brasileiro. Recorrendo a uma categoria de economia poltica, pode dizer-se que se

    trata de uma troca desigual de juridicidade que reflete e reproduz, a nvel scio-

    jurdico, as relaes de desigualdade entre as classes cujos interesses se espalham

    num e noutro direito.

    A experincia de Boaventura de Sousa Santos demonstra que h tempos j vem se

    consolidando no Brasil, em razo dos problemas sociais enfrentados, uma nova cultura

    jurdica, que no manifestada pelos meios acadmicos ou pelos operadores do direito oficial,

    15

    Em Notas sobre a Histria Jurdico-Social de Pasrgada (SANTOS, 2001), Boaventura de Sousa Santos

    realizou um estudo sociolgico sobre as estruturas internas da favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, a qual

    deu o nome fictcio de Pasrgada. Este estudo teve como objetivo analisar uma situao de pluralismo jurdico

    com o intuito de elaborar uma teoria sobre as relaes entre o Estado e o Direito nas sociedades capitalistas.

    471

  • mas sim pelos prprios membros da populao em geral, que em sua grande parte encontra-se

    excluda de direitos bsicos, o que, por sua vez, proporciona a busca de alternativas diante a

    normatividade oficializada pelo Estado. Contudo, em relao aos poderes estatais, apesar de o

    Poder Judicirio, atualmente, tenha se posicionando em favor de uma atuao mais efetiva,

    mediante a consolidao da ideia de ativismo judicial, no h ainda um reconhecimento

    consolidado em relao ao direito alternativo, de maneira que as reivindicaes de cunho

    social sejam consideradas. Na verdade, a atuao do Poder Judicirio, na maioria das vezes,

    possui uma conotao extremamente conservadora e, isso, pode ser justificado pelo fato de

    que, no Brasil, o Judicirio historicamente sempre atuou em prol das classes dominantes, o

    que, por bvio, obstaculiza qualquer mudana que seja a favor da supresso da realidade

    social existente, baseada na concentrao de renda e na forte excluso da maioria da

    populao, que vive a margem dos direitos formalmente declarados.

    A ideia do ativismo judicial, to presente hoje na realidade brasileira, oriunda do

    processo de judicializao ocorrido no sculo XIX nos Estados Unidos com os chamados pais

    fundadores da Amrica, que em 1787, por possui uma viso extremamente ctica em relao

    s regras do sistema majoritrio, os levaram a buscar os fundamentos do papel constitucional

    dos tribunais16

    . Nesse perodo, a ideia de judicializao estava em consonncia com a posio

    de que somente um Judicirio forte, seria capaz de declarar todos os atos contrrios

    Constituio. Em consequncia desse processo, surge inclusive a prpria ideia de controle de

    constitucionalidade, cujo marco se deu com o famoso caso ocorrido em 1803, que ficou

    conhecido como Marbury X Madison (TATE and VALLINDER, 1996, p.17). Da ideia de

    judicialismo surge tambm nos Estados Unidos entre 1950 e 1960, o que se denominou como

    ativismo judicial, que conforme muito bem ilustra Lus Roberto Barroso (2010, p.10) est

    associada a uma participao mais ampla e intensa do Judicirio na concretizao dos

    valores e fins constitucionais, com maior interferncia no espao de atuao dos outros dois

    poderes. Nas dcadas seguintes, pases como o Brasil passaram a seguir essa tendncia,

    porm, isso no representou mudanas que significassem avanos em relao s questes

    sociais, pois, ao contrrio o que se verifica um forte esprito conservador que ainda

    prevalece entre aqueles que exercem o poder jurisdicional. o que explica Alysson Mascaro

    (2008, p.203-205):

    16

    Nas escritas de Torbjorn Vallinder (TATE and VALLINDER.1996, p.16) the American Fouding Fathers of

    1.787 had taken a more skeptical view toward strict majority rule and were consequently much more interested

    in the constitutional role of the courts. In The Federalist Papers (no.78) Alexander Hamilton stated that the

    judiciary is beyond comparison the weakest of the three departments of power and that the general liberty of the

    people can never be endangered from that quarter.

    472

  • [...] o diagnstico das contradies do direito como problemas de tcnica

    responsvel, ao mesmo tempo, por outra operao de vultuosos ganhos polticos no

    movimento de reacionarismo institucional e conservadorismo poltico da dcada de

    1990. Enquanto que a dcada de 1980 representou uma crescente politizao do

    Poder Judicirio, como no movimento do Direito Alternativo, politizao que se fez

    acompanhar, de alguma forma, nas conquistas legislativas, a dcada de 1990, na

    reao s conquistas processuais, reagir de forma diversa. Enquanto a dcada de 80

    consolidou garantias sociais e processuais numa srie de legislaes e na norma

    hierarquicamente maior do ordenamento jurdico, a Constituio Federal, a dcada

    de 90 no obtm, imediatamente, respaldo poltico para a reforma das legislaes e

    da Constituio que, de resto, uma reforme impopular porque retrocedente. No

    entanto, a crescente tecnicizao do problema jurdico e a sua localizao nas

    questes processuais faro por retroceder os ganhos da dcada anterior no por meio

    da revogao de legislaes e direitos atos de custos polticos difceis mas sim

    por meio do retrocesso nos meios processuais que venham garantir, no nvel tcnico

    do direito, estes mesmos direitos. Enquanto a dcada de 1980, naquilo que

    representou de avano, trabalhou ao mesmo tempo com garantias de direitos

    substantivos e processuais, a dcada de 1990, na dificuldade do retrocesso dos

    direitos substantivos claros e politicamente notrios -, esvazia-os por meio das

    reformas processuais, que os dificultam na efetividade jurdica. A aposta da reao

    por meio do processo civil e no por meio da revogao das legislaes, esvazia as

    atenes populares potencialmente contrrias ao movimento de conservadorismo

    que vai se fortalecendo na dcada de 1990. Opera-se, em conjunto, a crescente

    despolitizao do Poder Judicirio, com , com o esvaziamento do movimento do

    Direito Alternativo e a promoo e a cooptao de juzes politizados de primeira

    instncia aos tribunais. Como resultado, enquanto a dcada de 1980 conheceu vrios

    movimentos de resistncia social e de politizao do Poder Judicirio e o custo

    poltico de reao do Poder Legislativo ao menos na primeira metade da dcada de

    1990, posto que na segunda metade a hegemonia do Congresso Nacional ser ampla

    fazem com que a reao conservadora se d pelas vias do Poder Judicirio,

    buscando que, ao trazer os direitos sociais ao campo judicirio, estes venham a se

    inviabilizar na prtica judicial. [...] O resultado imediato de tais reformas

    processuais, ao retirar a democratizao dos direitos do campo legislativo, esvaziar

    a arena pblica na qual, por meio de partidos, sindicatos e movimentos sociais,

    pode-se ia conquistar avanos institucionais. Relegando-se o problema dos direitos a

    uma questo tcnica, procede-se a uma reserva de diagnstico e fala aos

    especialistas, conservadorizando tambm a extenso das conquistas.

    No entanto isso no quer dizer que atuao do Judicirio deva ser engessada pelo

    simples fato de ter se adotado no Brasil a proposta de tripartio de poderes. At mesmo

    porque a prpria a Constituio Federal, prev a possibilidade do Poder Judicirio de apreciar

    demandas relativas legalidade e moralidade da atuao da Administrao Publica17

    .

    Contudo, at mesmo em decorrncia do estabelecimento dos freios e contrapesos18

    entre os

    17

    Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p.711) demonstra que o Poder Judicirio pode examinar os atos da

    Administrao Pblica, de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou

    discricionrios, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, agora, pela Constituio, tambm sob o aspecto da

    moralidade. 18

    Segundo Celso Antnio Bandeira de Mello (2002, p. 30) em decorrncia do fato de que no possvel

    preservar a rigidez das funes constitucionais entre os Poderes, se estabelece os chamados freios e

    contrapesos, que segundo o renomado administrativista, trata-se de mecanismo por fora do qual atribuindo-se

    a uns, embora restritivamente, funes que em tese corresponderiam a outros, pretende-se promover um

    equilbrio melhor articulado entre os chamados poderes, isto , entre os rgos do Poder.

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  • Poderes, o Judicirio, apesar de ter que apreciar todas as demandas que lhe so direcionadas19

    ,

    no pode usurpar as funes dos demais Poderes estatais, de maneira em que se impea o

    debate poltico e social dos representantes eleitos pelo povo. Do mesmo modo uma atuao

    exacerbada por parte do Judicirio, poder afetar at mesmo o reconhecimento de outras

    fontes normativas, pois sendo os juzes representantes do poder estatal, dificilmente

    utilizariam de vias alternativas como meio de soluo de conflitos. Alis, a deciso judicial,

    tambm deve ser vista como uma fonte estatalista, posto que no oriunda dos atores

    coletivos inseridos na sociedade como representantes das classes oprimidas.

    A prpria ideia de pluralismo surge em razo de o direito proferido pelos juzes,

    na maior parte das vezes, no serem direcionados para as camadas mais carentes da

    sociedade, logo, seria incoerente imaginar que as fontes alternativas comp