Canção Popuar no Brasil - Santuza Cambraia Naves

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A Contemporanea se prop6e a tratar de temas atuais nas area s de Filosofia, Literatura & Artes. Participam dela nomes de de staque na cultural contemporanea, sempre com a finalidade de refletir sobre assunto s, pensadores e correntes que de algum modo ajudam a rever 0 mundo em tempos de cultura planetaria. 0 enfoque e 0 de um pensamento original, em linguagem acessivel, mas preservando a profundidade e o rigor da refle x ao. , Vl QJ ::l rt C N QJ n QJ 3 cr <il oJ· Z QJ ill V1 n QJ ::l ..,.., QJI o "0 o "0 c ru ..., ::l o OJ <il !:a . popuLar no BrasiL Santuza Cambraia Naves C I\'ILI ZACAO II II M'l1 I.E I II A CO NT EM · PORANEA

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A Cole~ao Contemporanea se

prop6e a tratar de temas atuais

nas areas de Filosofia, Literatura

& Artes. Participam dela nomes

de destaque na produ~ao cultural

contemporanea, sempre com

a finalidade de refletir sobre

assuntos, pensadores e correntes

que de algum modo ajudam a

rever 0 mundo em tempos de

cultura planetaria. 0 enfoque

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em linguagem acessivel, mas

preservando a profundidade e

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Can~ao popuLar no BrasiL

Santuza Cambraia Naves

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COLE~AO

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· PORANEA

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Neste volume, Santuza Cambraia Naves propoe urn recorte na hist6ria da musica feita no Brasil a partir do seculo XX. Cons· ciente de ser impossivel tra<;ar urn vasto panorama de uma produ<;ao artistica de grande quaJidade, sua op<;ao foi a de esco­lher - no campo extenso da musica de extra<;ao popular - 0 que chama de can,do critica.

A expressao can<;ao critica, em vez de mero r6tulo classificatorio, torna-se uma ferramenta conceitual para refletir sobre aquele tipo de composi<;ao que, de algum modo, estabelece uma articula<;ao entre 0

estetico e 0 cultural. Variando sua veicula­<;ao de acordo com 0 periodo - sobretudo o radio ate os anos 1960, em seguida a te­levisao a partir dos anos 1970 e, mais re­centemente, 0 ciberespa<;o -, a musica brasileira sofreu com as dicotomias hie­rarquizantes, entre 0 erudito e 0 popular, ou entre 0 popular e 0 "popularesco" (co­mo pregava Mario de Andrade). A forte massifica<;ao dos meios de comunica<;ao, principalmente a partir da segunda me­tade do seculo XX, fez que 0 pop em certo sentido reconciliasse essas categorias, ou pelo menos tornasse menos rigidas as dis­tin<;oes que, para alguns estudiosos, ainda continuaram existindo.

o surgimento da bossa nova no final dos anos 1950 e urn divisor de aguas nos estudos sobre nossa tradi<;ao musical. Os defensores do purismo brasileiro comba­tern ferozmente esse estilo ,moderno de fazer samba, bastante permeavel as in­fluencias do jazz. Isso se repete, nos anos 1960, com novas nuan<;as: estilos cotno a Jovem Guarda e, com outras implica<;oes, o 'I'ropicaJismo sao atacados por se deixa­rem contaminar pela invasao aJienigena do rock.

Canr;ao popular no Brasil

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Santuza Cambraia Naves

Can~ao popuLar no Brasil

ORGANIZADOR DA COLE~iio

Evando Nascimento

~ CIVII.IZA~ilo BRASII.f:IRA -Rio de Janeiro

2010

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BD1TORA AFLLIAl)/I.

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Copyright © Santuza Cambraia Naves, 2010

PROjETO GRMICO DE MIOLO E CAPA Regina Ferraz

CIP·BRASIL CATALOGAc;AO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE UVROS, RJ

N243C Naves, Santuza Cambraia, 1952-Can<;i!.o popular no Brasil: a can<;i!.o crltica I Santuza Cam·

braia Naves. - Rio de Janeiro: Civiliza<;ao Bl'asileira, 2010. - (CoI~ao contemporanea: Filosofia, literatura e artes)

Inclui bibliografia ISBN 978-85·200-0961-1

1. MUska popular- Brasil- Hist6ria e crltica. 1. Titulo. n. Serie.

10-3114 eDD: 782.421640981 eDU: 78.0£7.26(81)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodw;iio, armazenamento ou transmissao de partes deste livro, atraves de quaisquer meios, sem previa autoriza<;iio por escrito.

Texto revisado segundo 0 novo Acordo Ortogratico da Ungua Portuguesa.

Direitos desta edi<;iio adquiridos pela EDITORA CIVIUZAc;Ao BRASILElRA Urn selo da

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Impresso no Brasil 2010

Sumario

Introdu~iio 7

1. A can~iio critica 19 1.1 o compositor como intelectual da cultura 19 1.2 A bossa nova e 0 exercicio da critica textual 25 1.3 Tom Jobim entre 0 minimo e 0 maximo 32 1.4 A MPB e 0 exercicio da critica contextual 39 1.5 Chico Buarque de Holanda e a MPB 44

1.6 Nara Leiio: da bossa nova it TropicaIia 55

2. Antecedentes da can~iio critica 61 2.1 A genese da can~iio brasileira 61 2.2 Primeiros tempos do samba 65 2.3 Os "anos de Duro" (1920-1930) 81 2.4 Os anos 1950, 0 samba-can~iio e outros sambas 89

3. A desconstru~iio da can~iio (mas niio da critical 95 3.1 A desconstru~iio tropicalista da can~ao 95 3.2 o rock e a can~iio 107 3.3 A soul music no Brasil e outras

negritudes musicais 126

4. Considera~oes finais: A can~iio critica hoje 141

Bibliografia 155

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Introdu~ao

Seria uma tarefa enciclopedica abordar todos os aspectos da musica que tomou forma no Brasil, a qual damos 0 nome de popular. Seguir por esse caminho exigiria que eu adotasse uma forma de escrita monognifica que nolo parece condizer com 0 can iter reflexivo desta serie. Optei entao por traba­!har com uma modalidade de can.,ao que e veiculada atra­yes da industria fonografica e dos meios de comunica.,ao de massa, principaimente 0 radio e a televisao e, mais recente­mente, por meio dos recursos oferecidos pela internet.

A esco!ha da can.,ao se deve a varios motivos. Um deles - e talvez 0 principal - e a posi.,ao hegemonica que essa forma musical adquiriu no cenario musical brasileiro em al­guns momentos do seculo xx, estatuto que !he foi as vezes conferido pelo publico e outras vezes pela critica. Quanto ao publico, a audiencia da can.,ao popular foi calorosa - e de largo espectro -, principaimente entre os anos 30 e os anos 60, epoca em que 0 radio predominava entre os meios de comunica.,ao de massa. Nas decadas seguintes, a televi­sao suplantou 0 radio como meio de comunica.,ao; no caso da musica popular, esse processo sem duvida teve inicio com os festivais da can.,ao da segunda metade dos anos 60.

Ambos os meios, entretanto, continuaram divulgando esta modalidade musical para um publico amplo. Marc;ia Tosta Dias (em Os donos da voz - industria fonografica brasileira e mundializarao da cultural chama a aten.,ao para a importan­cia do radio como difusor da musica popular, embora ele tenha passado por mudan.,as significativas ao longo dos anos. Uma delas ocorreu em meados da decada de 1970,

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com a consoIida~ao do sistema de transmissao em frequen­cia modulada (FM). 0 que levou as emissoras a se especi­alizitr. difundindo repert6rios musicais para audiencias es­pedficas. Dias cita as emissoras que inauguraram 0 sistema FM. como a Bandeirantes. nos anos 70. e outras esta~oes que. a partir do final dessa decada. passaram a criar progra­mas para as faixas jovens do mercado. culminando com a Fluminense FM. que se especializou no rock nacional emer­gente. conhecido como "rock anos 80".

De fato. 0 mercado musical se segmentou principalmen­te a partir dos anos 1980. convergindo. de certo modo. com o aparecimento de novos estilos musicais. como 0 "rock bra­sileiro dos anos 80". que despontou logo no inicio da de­cada. e as sonoridades derivadas da soul music norte-ame­ricana. como 0 funk carioca e 0 rap (ou 0 hip-hop) em sUas versoes brasileiras. que surgiram alguns anos depois. Voltan­do ao argumento de Marcia Dias. ela afirma (p. 164) que e "a pr6pria segmenta~ao que revitaliza 0 radio. nos anos 90". Quanto a televisiio. a autora menciona - alem dos progra­mas de audit6rio. que s6 apresentam. entretanto. 0 "pro­duto" musical que tern 0 selo de uma grande gravadora -urn fenomeno importante para 0 incremento da audiencia de musica popular: 0 surgimento. em 1990. da MTV (Music Television). canal dedicado exclusivamente a programa~iio musical.

Com rela~iio a critica direcionada para a musica divul­gada pelos meios de comunica~iio de massa. urn dos seus fundadores foi Cruz Cordeiro. cuja coluna jornalistica na re­vista Phono-Arte teve inicio em 1928. Antes dele. de fato. grande parte da atividade critica se restringia a musica de concerto. fundamentand6-se. num primeiro momento. nos

preceitos do legado classico-romantico. e posteriormente. a partir do Modernismo. nos pressupostos que valorizavam a pesquisa e it incorpora~iio dos sons "autenticamente popu­lares". Esse e 0 caso. por exemplo. dos textos de Mario de Andrade escritos nos anos 1920 e no inicio da decada de 30 e publicados tanto na coluna jornalistica "Mundo musical". da Folha da Manhii. quanto nos peri6dicos Iigados ao movi­mento modernista. como a Revista de Antropofagia e Ariel. Em todas essas publica~oes. Mario de Andrade exercitava uma critica de cunho erudito em torno de um material diversifi­cado. passando pela musica de concerto. pela folcl6rica e pe­las composi~oes de autores que julgava comprometidos com o "populario" musical. como Marcelo 1\Ipinamba e Ernesto Nazareth. Mario criou a categoria "populario" para se referir as manifesta~oes culturais. sobretudo as folcl6ricas. oriun­das de uma sintese das "tres ra~as". Assim. enquanto confe­ria urn grande valor as expressoes artisticas identificadas com 0 "populario". Mario. por outro !ado. fazia uma critica veemente ao que concebia como "popularesco". ou seja. as cria~oes culturais produzidas e veiculadas pelos meios de comunica~iio de massa. Em palestra proferida em 1934 na Sociedade de Cultura Artistica. intitulada "A musica popular e a musica erudita". Mario enfatizou 0 carater descartavel da musica "popularesca ". definindo-a como uma especie de

submusica. came para alimento de radios e discos. elemen­to de namoro e interesse comercial com que fabricas, em­presas e cantores se sustentam. atucanando a sensualidade facil de urn pUblico em via de transe.

Enquanto vigorou esse postulado modernista. a critica musical enfatizou. principalmente. as cria~oes musicais que considerava autenticas representantes da brasilidade. Foi .,.

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aos poucos que as sonoridades consideradas "impuras", ou seja, contaminadas pelos meios de comunica~ao de massa e por outras nacionalidades, passaram a ser objeto de comen­tario crftico nos jornais. Pode-se inclusive admitir que dois criterios opostos tenham convivido durante urn born tem­po e, as vezes, paradoxalmente, se interpenetrando: 0 que valorizava as musicas divulgadas pelos meios de comunica­~ao de massa e 0 que prezava os sons criados a maneira tra­dicional. seja atraves das composi~oes folcl6ricas de domf­nio publico, seja atraves das cria~oes musicais que, embora autorais, buscam uma continuidade com a tradi~ao. Urn born exemplo dessa convivencia do culto dos sons "puros" com a aprecia~ao dos "impuros" (em termos de divulga~ao) e a Revista da MUsica Popular, publicada no Rio de Janeiro en­tre 1954 e 1956 e editada por Lucio Rangel. A revista conci­liava a crftica veemente a "americaniza~ao" da musica bra­sileira com a aprecia~ao de can~oes que se ouviam no radio ou se difundiam em apresenta~oes musicais de palco e ou­tros redutos. Ao proceder dessa forma, a revista assumia uma orienta~ao diferente da vertente modernista de Mario de Andrade, que se pautava pela ideia de que velar pela au­tenticidade do "populario" exigia nao s6 0 compromisso com a brasilidade, como tambem a recusa a divu1ga~ao mi­diatica. Se nos detivermos na rela~ao das pessoas que escre­veram para a revista, observaremos que textos (p6stumos, evidentemente) de Mario de Andrade conviviam com artigos de musicos bastante conhecidos atraves do radio, como e 0

caso de Ary Barroso. No primeiro numero da revista (setem­bro de 1954), por'exemplo, prevalece a preocupa~ao com a intluencia estrangeira na musica brasileira. Pixinguinha e retratado na capa, com Chamada para a sua atua~ao como

"autentico musico brasileiro, 0 criador e verdadeiro que nunca se deixou intluenciar pelas modas eiemeras ou pelos ritmos estranhos ao nosso populario". Claudio Murilo, em artigo acido contra 0 "espirito de imita~ao" dos musicos bra­sileiros, critica principalmente aqueles que se poem a tocar o bebop norte-americano. E uma nota intitulada ':Antologia da Musica Brasileira" (nao assinada) argumenta que as mu­sicas estrangeiras veiculadas pelo radio - 0 bolero, a rumba e, principalmente, 0 bebop - se misturam com a musica popular, causando impacto negativo na nossa cultura.

As opinioes crfticas se diversificaram mais ainda a partir do final dos anos 50, com a entrada em cena da bossa nova, que resultou da estiliza~ao do samba atraves do usa de in­forma~oes provenientes do cool jazz e de outros generos musicais. Evidentemente, a bossa nova dividiu a crftica. Po­demos dizer que os defensores das tradi~oes musicais popu­lares e nacionais se alinharam em torno de Lucio Rangel, enquanto os amantes do jazz se colocaram ao lado de Silvio TUlio Cardoso e Ary Vasconcelos. A despeito de ser caracte­rizado pelo Dicionario Cravo Albin de MUsica Popular Braslleira

como urn dos "mais intransigentes defensores da musica popular brasileira tradiciona!", Lucio Rangel se notabilizou, alem de outros feitos, por ter apresentado Tom Jobim a Vi­nicius de Moraes, ambos considerados renovadores da mu­sica popular, sobretudo por suas parcerias em can~oes de bossa nova. Lucio Rangel, alem de ter sido 0 edito~ respon­savel pela Revista da MUsica Popular, colaborou com os jornais A Manhii, Jomal do Brasil, Didrio de Sao Paulo e Estada de Minas e com as revistas Manchete, A Cigarra, Senhor e Lady, entre outras. Sergio Cabral e urn dos pesquisadores de musica popular que admitem ter tido a influencia de Rangel.

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Silvio 1lliio Cardoso e My Vasconcelos, por outro lado, ficaram conhecidos por assumirem uma postura mais ecle­tica com rela~iio a musica. Alem de assinarem juntos algu­mas colunas sobre musica popular, como a se~iio "Urn pou­co de jazz", em a Globo (1943), os dois criaram juntos, em 1966, 0 Clube de Jazz e Bossa Nova. Por intermedio de Jorgi- I

nho Guinle, urn amante do jazz, 0 pessoalligado ao Clube pas sou a fazer algumas apresenta~6es de bossa nova no Co­pacabana Palace. Silvio 'Illiio e My iuiciaram em 1943 suas trajetorias como criticos na cria~iio da pagina "Swing Fan" da revista A Cena Muda e, devido a preferencia deles por jazz, intitularam a sua coluna de "Aqui Jazz".

A bossa nova, como vimos, atuou como urn divisor de aguas na crftica musical, provocando clivagens profundas entre os defensores do estilo e seus adversanos. Urn dos que se notabilizaram como opositores foi 0 jornalista Jose Ra­mos TInhoriio, que come~ou sua carreira de crftico musical com a coluna "Primeiras li~6es de samba", publicada no Jar­nal do Brasil no periodo de 1961 a 1966. Tinhoriio usava 0

espa~o dessa coluna para discutir, entre outras coisas, as ori­gens do samba. 0 tema das rafzes de determinadas mani­festa~oes culturais estava em yoga no momento, marcado, alem do debate sobre a questiio social, pelo postulado na­cionalista. Foi nesse momento que come~aram a se tornar cada vez mais acirradas as discussoes sobre 0 que seria 0

produto cultural que representava de modo autentico a identidade nacional. Tinhoriio se tornou urn critico ferre­nho da bossa nova por dois motivos: pela inautenticidade do estilo, misturado que estava com informa~oes musicais nor­te-americanas; e pelo fato de a bossa nova ter sido criada por jovens de classe media da Zona Sui do Rio de Janeiro.

Amparado por postulados nacionalistas e marxistas, Tinho­rao recusava, portanto, urn estilo musical que via como inautentico em todos os sentidos, pois niio so era america­nizado como tambem se mostrava distante das camadas po­pulares, as unicas que considerava genufnas representantes da cultura brasileira. Tinhoriio publicou seu primeiro livro - MUsica popular, um tema em debate (Rio de Janeiro, Editora Saga) - em 1966, 0 primeiro de uma serie de trabalhos so­bre 0 tema, e ate hoje atua como crftico e historiador da musica popular brasileira em diversos jornais, revistas e emissoras de televisao.

Em 1968, Augusto de Campos publicou Balanfo da bossa: antologia mtica da modema mUsica popular brasileira, livro que reune urna serie de artigos seus e de musicos e musicologos comprometidos com 0 projeto de renova~iio da musica bra­sileira. Augusto de Campos aponta, nesse livro, convergen­cias entre a bossa nova e a poesia concreta, pelo fato de ambas se pautarem pela experimenta~ao formal e por fun­damentarem seu projeto estetico em princfpios objetivos, racionais e concisos. Tomando como base esse tipo de para­metro, Joiio Gilberto e apontado como 0 artista que leva esse procedimento as Ultimas consequencias, ao adotar uma maneira de cantar que se pauta pela discri~iio e pelo inti­mismo, diferenciando-se dos exageros vocais dos interpre­tes que seguem a linha do canto operistico.

o teor "moderno" da critica de Augusto de Campos pas­sou a ser questionado, de certa forma, por teoricos que veem com desconfian~a 0 discurso vanguardista direciona­do para 0 futuro da arte e da cultura. A tendencia atual, que parece configurar-se no Brasil principaimente a partir dos anos 1980, e a de enfatizar 0 aqui e agora e de orientar-se

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por criterios mais relativistas do que valorativos. Assim, 0

paideuma concretista que valoriza 0 que foi revolucionario em sua propria epoca e substituldo por urn principio que leva em conta, principalmente, a articula~iio da arte com a vida. Ao que parece, 0 que se apIica a Iiteratura e as outras artes tambem se apIica a musica. [Silviano Santiago, em "A democratiza~iio no Brasil (1979-1981): cultura versus arte", artigo incluldo em 0 cosmopolitismo do pobre.] 0 periodo que teve inlcio com a abertura politica no pais caracteriza-se pela incidencia de urn debate amplo e democratico que se daria no mundo artistico, niio no ambito politico, e tampou­co no intelectual-academico. A arte entiio, nesse momento, em vez de restringir-se ao dominio da "alta cultura", confi­gura-se como instrumento poderoso na cria~iio de novas identidades sociais. Assim, segundo Santiago, a arte deslo­ca-se do Iivro - ou de outros suportes privilegiados - para a vida.

Embora niio possa ser identificado propriamente como critico de musica popular, mas como urn artista-intelectual que estende a sua atua~iio para" 0 trabalho ensaistico e mu­sical, Jose Miguel Wisnik talvez tenha desenvolvido, em 0 som e 0 sentido, a analise mais arguta das sonoridades con­temporiineas. Wisnik niio se dedica, nesse Iivro, a comentar a musica brasileira; seu argumento vai mais alem, acompa­nhando urn fenCimeno mais global de mudan~a nos padroes de composi~iio e de escuta, desenvolvendo urn raciocinio que considero bastante relevante para 0 proposito deste Ii­vro: trata-se do retorno da musica modal no mundo contem-, poriineo. Para expIicar esse fenCimeno, 0 autor opera estra­tegicamente com as cat~gorias "mundo modal", "mundo tonal" e "mundo pos-tonal"; assim, alem de estabelecer a di-

feren~a musical entre os dois sistemas, Wisnik os articula com registros culturais especificos.

o sistema modal predominou no Ocidente ate 0 seculo XVII e existe hoje em dia em sociedades niio ocidentais forte­mente ancoradas nas suas tradi~6es. Nessa especie de mun­do, a musica opera no plano do sagrado, ou seja, do ritual. Em termos tecnicos, a musica modal se caracteriza pela for­~a da pulsa~iio ritmica. Wisnik des creve a musica modal (p. 40) como "alturas melodicas quase sempre a servi~o do rit­mo", que criam "pulsa~oes complexas e urna experiencia do tempo vivido como descontinuidade continua, como repeti­~iio permanente do diferente". Essa natureza de certa forma cicIica da musica modal faz com que as pulsa~oes pare~am "estaticas", embora na verdade sejam "exta:ticas" e sejam ex­perimentadas como "urn tempo circular do qual e diffcil sair" por ser infinito, ou por serem vivenciadas como "urna especie de suspensiio do tempo".

Outro aspecto tecnico que define a musica modal e a re­correncia aos instrumentos de percussiio, os quais, por sua vez, se mostram mais proximos do mundo do ruido e, por­tanto, da natureza. 0 argumento de Wisnik e que 0 adven­to do canto gregoriano (cantochiio), na Igreja medieval, mar­ca 0 momento, na experiencia ocidental, de supressiio do ruido (0 som percussivo) em nome da sonoridade, signifi­cando a passagem da natureza para a cultura. 0 canto gre­goriano teria inaugurado, portanto, a tradi~o que, vai dar na musica tonal dos seculos posteriores, por conta de dois aspectos. Urn deles e que, ao excluir a percussiio e privile­giar a melodia, 0 canto gregoriano substitui, neste tipo de musica modal, 0 domfnio do pulso pelo predomfnio das al­turas, preparando 0 terreno, portanto, para 0 advento da

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musica tonal. 0 segundo aspecto e relativo ao ascetismo do canto gregoriano, na medida em que se trata de uma mu­sica que, de acordo com Wisnik (p. 42), filtra 0 rufdo em nome de "urna ordem sonora completamente livre da amea­~a da violencia mortifera que esta na origem do som".

Mas se esperamos que tudo se desenrole a partir de urn processo hist6rico linear e evolutivo, com 0 aprimoramen­to cada vez maior dessa sonoridade sem interferencias, Wis­nik nos apresenta, em vez disso, uma experiencia cfclica de tempo, com 0 retorno do rufdo no mundo contemporaneo. Assim, se a musica tonal que surge no mundo modenio, particularmente a c1assica, da continuidade ao procedimen­to de exc1uir 0 rufdo (ou seja, a percussao) da musica, eis que 0 ruido volta triunfante na experiencia modernista do seculo xx. em que se passa a postular a incorpora~ao, pela musica, dos barullios urbanos e eventualmente do campo. Wisnik se ref ere, assim (p. 43), a "explosao de ruidoso nas musicas de Stravinski, Schoenberg, Satie e Varese. 0 autor menciona tambem as duas modalidades de musica que sur­gem no periodo p6s-Segunda Guerra Mundial, que utilizam maquinas sonoras para a produ~ao de ruidos: a musica con­creta, que grava ruidos reais e os traballia por mixagem, e a eletrilnica, que utiliza rufdos artificiais, produzidos por sin­tetizadores.

Com rela~ao a musica de hoje, Wisnik (p. 11) refere-se ao processo de massifica~ao dos sintetizadores, principalmente com a tecnica do sampling, e Ii "atua¢o decisiva" que 0 pu1-so volta a ter em nossas sociedades a partir da segunda me­tade do seculo xx: 0 que seria sinalizado pelo jazz, pelo rock e pela musica minimalista. Dando continuidade a isso, as musicas popu1ares de hole teriam passado a fazer cada vez

mais mixagens "democraticas", misturando sons europeus com os africanos desenvolvidos nas Americas. Assim, alem do embaralhamento promovido pela nossa musica entre os registros erudito e popu1ar, ocorreria uma redescoberta, pela musica ocidental, de procedimentos relativos ao siste­ma modal, como os que levariam a revaloriza~ao do pu1so.

Essas questiies levantadas por Jose Miguel Wisnik nos au­xiliam a refletir sobre as sonoridades que entraram no Bra­sil, como 0 rock, a partir dos anos 50, e 0 funk e 0 hip-hop, a partir dos anos 80. Estes generos recorrem aos aparatos eletrilnicos e nasceram em redutos africanizados dos Esta­dos Unidos da decada de 60.

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1. A can~ao critica

1.1 0 compositor como intelectual da cultura

Entre os fen6menos musicais do seculo XX no Brasil, a can­~ao se destaca. E verdade que a partir dos anos 80 alguns ritmos estrangeiros - notadamente norte-americanos -entraram no pais, como 0 funk, 0 rap e 0 reggae jamaicano, alem de a gera~ao 80 ter desenvolvfdo urn rock com carac­teristicas novas a que se credftou urna fei~ao brasileira. Es­sas modalidades musicais destoaram das anteriores, como a bossa nova e a MPH, principalmente por darem mais enfase ao ritmo do que it melodia ou it harmonia. Esse predomfnio do pulso deu margem ao debate sobre 0 fun da can~ao.

A despeito da ocorrencia dessas novidades musicais, das quais falarei no momenta oportuno, optei por analisar a can~ao devido a urn aspecto que considero importante: 0

fato de ela ter desenvolvido urn componente critico, moti­vo pelo qual passei a operar com a categoria "can~ao criti­ca". Para definir essa modalidade de can~ao, recorri a urn re­corte temporal, situando 0 seu aparecimento no final dos anos 50 e ao longo dos anos 60, epoca em que a can~ao po­pular tornou-se 0 16cus por excelencia dos debates esteticos e culturais, suplantando 0 teatro, 0 cinema e as artes plasti­cas, que constituiam, ate entao, 0 foro privilegiad? dessas discussoes. Os compositores populares, de maneira seme­!hante aos miisicos modernistas, como e 0 caso de Heitor Villa-Lobos, passaram a comentar todos os aspectos da vida, do politico ao cultural. tornando-se "formadores de opi­mao". Esse novo estatuto alcan~ado pela can~ao contribuiu

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para que 0 compositor assumisse a identidade de intelectual num sentido mais amplo do termo.

Acredito que e importante deixar clara a acep~ao de in­telectual adotada, que nao se confunde com 0 modelo con­cebido pelo senso comum do homem que acumula conhe­cimentos, ou seja, a figura do erudito. Opero, de maneira diferente, com uma ideia tomada de emprestimo de Giulio Carlo Argan, em Arte e critica da arte - e que e possivel es­tender ao compositor "critico" ou a figura que tomo como "intelectual": a ideia do artista modemo como critico da cul­tura. Argan ve a arte modema como aquela que pretende ser do seu tempo; assim, 0 artista participaria do cenmo po­litico e cultural, atitude que Ihe exigiria urn dialogo cons­tante com a ciencia, a filosofia, a poesia e 0 teatro, entre outras areas artisticas e culturais. Esta concep~ao de artista me leva a tomar urn certo cuidado e a esclarecer que nao parto do principio de que 0 homem que se envolve com as questiies do seu tempo tenha que ser necessariamente urn ativista politico, ou seja, aquele que atua no plano especifi­co do sistema politico-partidario para mante-Jo ou destrui-10 em nome da constru~ao de uma nova ordem. Opero com uma concep~ao mais ampla de politica, que permite esten­der a possibilidade de atua~ao a outras areas, como a cultu­ral. Nesse tipo de entendimento, Picasso atuaria politica­mente tanto na cria~ao de Guernica (uma demincia contra 0

regime ditatorial de Franco, na Espanha) quanto no desen­volvimento do cubismo (uma transgressao as conven~iies da arte figurativa). ,

Retomando 0 tema da can~ao critica, a musica popular tomou-se, sobretudo a partir da bossa nova, 0 veiculo por excelencia do debate intelectual, operando duplamente com

o texto e com 0 contexto, com os pianos intemo e extemo. Internamente, a maneira do artista modemo, 0 compositor pas sou a atuar como critico no proprio processo de compo­si~ao; extemamente, a critica se dirigiu as questiies cultu­rais e politicas do pais, fazendo com que os compositores articulassem arte e vida. 0 compositor popular passou a operar criticamente no processo de composi~ao, fazendo uso da metalinguagem, da intertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversas formas de cita~ao, como a parodia e 0 pastiche. E ao estender a atitude critica para alem dos aspectos formais da can~ao, 0 compositor po­pular tomou-se urn pensador da cultura.

Jose Miguel Wisnik revelou em entrevista (publicada em A MPH em discussiio: entrevistas) 0 motivo que 0 levou a desis­tir da carreira de pianista, para a qual se preparara desde menino na Baixada Santista, onde morava, e ingressar na Faculdade de Filosofia na USP. Ao chegar a Sao Paulo aos 18 anos, em 1968, percebeu que nao so 0 entomo da universi­dade, mas tambem 0 mundo, fervilhava nas esferas da poli­tica e da cultura. 0 momento era, portanto, de participa~ao nos acontecimentos, 0 que seria impossivel para ele se abra­~asse a musica de concerto. Tomar-se concertista, a epoca, significava se resguardar da vida publica, fechando-se numa "camara escura". Chamou-Ihe entao a aten~ao a experiencia oposta por que passava a can~ao popular no final da deca­da, sobretudo a atua~ao dos cancionistas na televisfio e no meio estudantil, procurando intervir, poetica e musicalmen­te, nas discussiies esteticas, politicas e existenciais. Ao de­sempenhar uma serie de papeis antes reservados a veiculos da "alta cultura", a can~ao passou a propiciar uma especie de "educa~o sentimental" aos jovens de sua gera~ao.

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Ao que parece, 0 perfil do musico de concerto mudou dos tempos do Modernismo para hoje em dia, Figuras como Rei­tor Villa-Lobos participaram intensamente da vida publica nos anos 1920 e 30, assumindo, entre outras fun~oes como

ideologos da cultura, a missao de usar a musica como vei- !'I

culo para a forma~ao do povo brasileiro e para a consti- , tui~ao da identidade nacional. E este tipo de pratica com-prometida com 0 mundo teve continuidade com musicos posteriores, como os que participaram do movimento Mu­sica Viva. Criado em 1944 por Hans-Joachim Koellreutter, musico alemao aqui radicado e que ficou conhecido, entre outras coisas, por ter introduzido a musica dodecafOnica no pais, e pelos brasileiros Claudio Santoro e Guerra Peixe, esse movimento levou as ultimas consequ~ncias 0 postulado de vincula~ao da arte com a vida. Manifestos do Musica Viva se sucederam ao longo dos anos 40, e 0 movimento assumiu cada vez mais posi~oes de combate contra a tradi~ao musi­cal - inclusive a do nacionalismo modernista -, propon­do, entre outras coisas, a instaura~ao de urn "mundo novo". As posi~oes se radicalizaram ao longo da decada, provocan­do tensoes e pol~micas no meio musical. Por exemplo, 0

Manifesto de 1946, de claro teor socialista, criticava 0 pos­tulado da arte pela arte e defendia 0 engajamento do musi­co na realidade social e cultural. Alguns movimentos musi­cais se sucederam ao Musica Viva, como 0 paulista Musica Nova, que lan~ou em 1963 0 "Manifesto Musica Nova", cujos signatarios - Damiano Cozzella, Rogerio Duprat, Regis Du­prat, Sandino Hohagen, JUlio Medaglia, Gilberto Mendes, , Willy Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal- postulavam a retomada de procediInentos experimentais, como 0 atona­lismo de Schoenberg, 0 serialismo de Webern e os proces­sos eletroac1isticos de Cage.

Passada a onda vanguardista, entretanto, principalmen­te a partir dos anos 60, os musicos de concerto se recolhe­ram ao mundo musical e, no caso brasileiro, coube aos com­positores populares a tarefa de articular a arte com a vida. Mario de Andrade, em discurso de paraninfo que proferiu em 1935 para alunos do Conservatorio Dramatico e Musical de Sao Paulo (publicado em Aspectos da mtlsica brasileira), co­mentou a voca~ao para virtuose do musico de concerto no Brasil. Mario lamentava este tipo de tend~ncia, que repre­sentaria urn afastamento do seu ideal de "musico comple­to", ou seja, aquele que evita a guinada especializante e as praticas fundamentadas em valores burgueses. Carente de cultura geral, 0 musico de concerto brasileiro, segundo Ma­rio (p. 192), so se interessaria pela musica em si, revelando uma "curteza de espirito assombrosa; urn afastamento des­leal das outras artes, das ci~ncias, da vida economica e poli­tica do pais e do mundo".

Em entrevista concedida aos pesquisadores do Nucleo de Estudos Musicais da Universidade Candido Mendes, da qual participei, Antonio Cicero afirmou que a can~ao se tornou reflexiva e, por esse motivo, passou a "intervir historica­mente na arte, quer dizer, e como se ela tivesse se incorpo­rado as outras artes que sao consideradas eruditas". Isso tambem teria acontecido nos Estados Unidos, embora Ja ti­vesse persistido a separa~ao entre "alta" e "baixa" cultura, enquanto aqui a gera~ao de universitarios, como Chico e Caetano, desenvolveu uma concep~ao de cultura que niio cria esse tipo de hierarquia. Na verdade, segundo Cicero, esse processo se daria a partir da bossa nova, principahnen­te com Tom Jobim e Vinicius de Moraes, cujos trabalhos convergiram com 0 Cinema Novo e a arquitetura de Brasi­lia. Esse tipo de atua~ao teria propiciado 0 surgimento'de

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urn novo perfil de compositor, como seria 0 caso de Caeta­no Veloso, que acabou canalizando para a musica 0 seu pen­

dor original para a crftica, para 0 cinema e para a filosofia. Ii Outro aspecto importante ressaltado por Cicero e 0 fato de esses musicos trabalharem juntos com artistas de outras ' areas, exemplificando com a ligac;ao de Gilberto Gil e cae-I tano Veloso com Helio Oiticica e com os irmaos Campos (Augusto e Haroldo).

Chico Buarque de Holanda afirma (tambem em entre­vista indufda em A MPB em discussdo) que ele considera pr6-prio da musica brasileira a inexistencia de uma barreira entre 0 erudito e 0 popular como ocorre na Europa, princi­palmente na Franc;a e na It<ilia, onde a canc;ao popular esta­ria relegada a urn submundo artfstico, sendo considerada nada mais do que urn produto industrial. Alem disso, te­rfamos aqui mais facilidade de transitar de urn campo para o outro, ja que os nossos musicos costumam ter uma carga de informac;oes que os europeus nao tern. A trajet6ria de Chico, de certa forma, confirma 0 seu argumento, pois ele, alem de musico, tornou-se, ao longo do tempo, escritor e dramaturgo, publicando a novela Fazenda-modelo (1974) e os romances Estorvo (1991), Benjamin (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), alem de escrever as pec;as teatrais Roda-viva (1968), Calabar (1973), em parceria com Ruy Guer­ra, Gota d'agua (1975), com Paulo Pontes, e 6pera do malan­dro (1978).

Chico tambem chama a atenc;ao para urn aspecto socio-16gico important!!: a partir da bossa nova, os musicos popu­lares brasileiros, outrora oriundos das camadas populares, passam a ser tambem jovens de dasse media, em sua maio­ria universitanos. Segundo Chico, antes era tao incomum

alguem da dasse media tornar-se compositor, que ele nun­ca havia imaginado que seguiria essa carreira. De uma certa forma, Vinicius de Moraes teria aberto 0 caminho ao se apresentar no Au Bon Gourmet em 1962 (ao lado de Joao Gilberto, Tom Jobim e Os Cariocas) e provocar urn esciinda-10 no Rio de Janeiro, pois, na epoca, Vinicius era conhecido como poeta e diplomata.

1.2 A bossa nova e 0 exercicio da critica textual

Quanto ao plano textual, pode-se afirmar que a forma can­c;ao atingiu a sua plenitude no Brasil com a bossa nova. Mas antes de analisarmos os aspectos formals dessa nova musi­calidade, tentemos contextualiza-Ia. 0 nome "bossa nova" foi criado pela imprensa carioca para designar 0 estilo que se desenvolveu no Rio de Janeiro, no final da decada de 1950, a partir de experimentac;oes musicais com 0 samba e o cool jazz norte-americano. Joao Gilberto e Tom Jobim sao apontados como os principais mentores desse estilo, que contou com a participac;ao de vanos outros musicos e letris­tas, como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo BOscoli, Nara Leao, Vinicius de Moraes e Newton Mendonc;a. A bossa nova surgiu num momenta em que as ideias desenvolvi­mentistas estavam no apogeu e eram levadas it pratica pelo governo do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. A palavra de ordem era "modernizac;ao", projeto que se esten-dia da esfera economica para a cultural. '

Consideremos, no entanto, que a palavra "modernidade" nao tern urn sentido fixo, adquirindo em cada momento his­

t6rico uma conotac;ao pr6pria. Ser moderno, portanto, na­quele momento, significava niio s6 aderir ao processo de ur-

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baniza~iio. mas tambem assumir uma atitude cosmopolita i

e objetiva tanto no plano socioeconomico quanto no cultu­ral. Assim. ser modemo. para os artistas. era sobretudo ado­tar a estetica do menos. do despojamento radical. e rejeitar as tradi~iies comprometidas com 0 excesso. E de maneira se­melhante aos mlisicos do cool jazz. que substitufram 0 apa­rato sinfOnico das grandes bandas de jazz por forma~iies cameristicas. optando por urn modelo mais enxuto. os bos­sa-novfstas rejeitaram 0 modelo da Radio Nacional. que con­sideravam desmedido tanto em termos musicais quanto per­formaticos. e adotaram uma estetica clean. Os programas de auditorio da Radio Nacional contavam com a atua~iio das grandes estrelas do radio: Marlene. Emilinha Borba. Angela Maria. Dalva de Oliveira e Cauby Peixoto. entre outros. Os mlisicos da bossa nova criticavam nessa programa~iio 0 re­pertorio dos cantores (que consistia em sambas-can~iies e outros generos proximos do bolero mexicano. do tango ar­gentino e das baladas norte-americanas. considerados melo­dramaticos). a orquestra~iio (que utilizava urn naipe exces­sivo de instrumentos) e 0 arranjo (que usava vfolinos ao fundo e outros efeitos grandiosos). A interpreta~iio tambem recebia criticas pela forma operistica de colocar a voz e pelo uso do palco com gesticula~iio exagerada e figurino de gala. Assim. os procedimentos esteticos uti1izados pela Radio Na­donal foram considerados excessivos e associados ao mau gosto.

A forma orquestral que pas sou a prevalecer na execu~iio da mlisica popular a partir do final dos anos 30. institufda principalmente por Radames Gnattali e Pfxinguinha como base para os seus arranjos espetaculares - como e 0 caso de "Aquarela do Brasil"'- e caracterizada pelo uso de urn

grande conjunto de instrumentos. e substitufda por uma forma~iio cameristica de vfoliio. piano. percussiio e baixo. E da mesma forma que a percussiio e discreta. sem nenhum apelo ostentatorio e suavfzada com 0 emprego da vassouri­nha. 0 usa da voz tambem se coloca de urna outra maneira. substituindo 0 modelo vfrtuosfstico da tradi~iio operistica pelo procedimento de dialogar com 0 instrumento musical.

Entre os artistas da bossa nova. Joiio Gilberto e quem mais encama esse espfrito modemo. Ninguem foi mais ob­sessivo do que Joiio na busca pelo novo. e. no seu caso. ser novo era niio so recriar a sonoridade tradicional do samba. como tambem encontrar uma forma totalmente diferente de usar a voz e 0 vfoliio. Neste sentido. Joiio Gilberto e mo­demo it maneira dos poetas concretos - Augusto de Cam­pos. Haroldo de Campos e Decio Pignatari. entre outros -. quando lan~am as bases da poesia concreta no final dos anos 50. Em artigo publicado em Balanfo da bossa. intitulado "Da Jovem Guarda a Joiio Gilberto". Campos admitia afini­dades entre a poesia concreta e a bossa nova. principalmen­te pelo fato de ambas as esteticas operarem com a concisiio. com a objetivfdade e com a racionalidade. As p. 53 e 54. Joiio Gilberto aparece como figura paradigmatica desse proce­dimento conciso por adotar uma interpreta~iio "discreta e direta. quase falada. que se opunha de todo em todo aos es­tertores sentimentais do bolero e aos campeonatos de agu­dos vocais - ao bel canto em surna. que desde muito, impreg­nou a mlisica popular ocidental". Campos afirma que. alem de raziies de ordem estetica - "0 exfbicionismo operistico leva it cria~iio de zonas infuncionais e decorativas na estru­tura melodica" -. a evolu~iio dos meios eletroaclisticos te­ria criado novas condi~iies para 0 cantor se comunicar com

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o publico. ja que ele nao mais precisaria fazer muito esfor­~o fisico. 0 que teria contribuido para uma "revolu~ao" in­terpretativa. tal como a promovida por Joao Gilberto.

Retomemos 0 argumento recorrente da critica musical 1 favoravel a bossa nova de que a can~o se tornou um arte- I

sanato fino por excelencia a partir de alguns procedimentos I introduzidos por esse estilo. Urn deles refere-se a maneira ! inusitada de Joao Gilberto usar 0 violao. 0 instrumento dei­xa de servir como acompanhamento vocal e passa a ocupar um plano tao importante quanto 0 da voz. resultando dessa mudan~a um. embate tense e criativo entre voz e violiio. E assim como voz e violao se equiparam. letra e musica ad­quirem 0 mesmo estatuto. Ao contrario. por exemplo. de al­gumas experiencias jazzisticas. em que a voz e usada como instrumento. OU da tradi~ao operistica. em que a palavra se submete a sonoridade de tal modo que a letra muitas vezes se torna incompreensivel para a plateia. na bossa nova letra e musica se complementam a perfei~ao.

Quanto ao uso do violao. 0 musico Gabriel Improta. em materia para a revista etencia Hoje n. 246. analisa 0 ritmo ba­

sico da bossa nova criado por Joao Gilberto para esse instru­mento. conhecido popularmente como "batida". Improta afirma que esse ritmo e "uma redu~o estiJizada. uma tra­du~ao do samba executado por instrumentos de percussao de forte volume. como 0 surdo e 0 tamborim. para a instru­mentaIidade mais intimista do violao". 0 interessante e que Improta estende a sua analise para 0 vinculo que Joao Gil­berto estabelece com a tradi~ao musical. dizendo que esse ritmo representa "mais uma 'moderniza~ao' do que uma ruptura com 0 samba de entio. revisto sob uma nova pers­pectiva". Outro aspecto importante explorado por Gabriel

Improta e relativo ao fato de que essa recria~ao do samba "veio acompanhada de maior sofistica~ao na harmonia com rela<;ao a levada (ou batida. se preferir) tradicional de samba e choro ao violao". Improta aprofunda a discussao. dizendo:

Alem do uso regular de notas de tensao. ocorreu urn aban­dono parcial de caracterlsticas mais contrapontisticas da execuc;ao tradicional do samba em favor da movimenta<;ao da harmonia por blocos.

Improta estabelece afinidades entre esse procedimento musical e 0 impressionismo frances de Claude Debussy e Maurice Ravel. alem do cool jazz norte-americano.

Congruente com 0 espfrito intimista que rege a estetica do menos. a bossa nova cria uma corporalidade singular. As­sim. voz e corpo se harmonizam; a voz modulada num re­gistro despojado combina com a performance do banquinho e violao inaugurada por Joao Gilberto. E ele nao inventa ape­nas essa maneira de ocupar 0 palco. pois 0 violao se torna uma extensao do seu corpo. :Ii inconcebivel. portanto. Joao se apresentar sem 0 seu instrumento basico. e quanto a isso ele fez escola. Wanda Sa. por exemplo. cuja identidade ar­tistica torna como referencia 0 estilo bossa-nova. decJarou em entrevista (A MPB em discussiio) que 0 seu procedimento e o mesmo adotado por Joao Gilberto. que s6 canta tocando violiio. Wanda afirma que precisa saber qual e a harmonia para poder cantar. qual e 0 acorde. razao pela qual nao sa­beria cantar uma musica que nao saiba tocar.

o tema da corporalidade bossa-novista nao se esgota na postura de palco nem se restringe a performance. pois 0

corpo moldado pelo novo estilo passa a povoar 0 cotidiano. Nara Leao encarna a anatomia feminina da bossa nova. nao s6 pela sua maneira de cantar. mas pela sua elegancia dis-

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creta que se revela na forma de vestir, de se sentar, de falar, de olhar. Varios COl-pOS, masculinos e femininos, foram mol-dados Brasil afora a partir do modele da bossa nova, que se pautava sobretudo pela recusa de qualquer excesso. A exem-plo de Joao Gilberto, a voz possante passou a ser domestica-da e trabalhada em prol de urn registro pequeno, tanto no palco quanto na vida, tanto no canto quanto na fala. E na

1 I i ! i (

experiencia de palco, os profissionais do canto, independen- I

temente da extensao da voz,exercitavam-se para trabalhar urna interpreta.,ao despojada, sem adornos. 0 corpo criado pela bossa nova e urn significante que remete a uma inter­preta.,ao do momento presente como 0 tempo que deman­da objetividade, pragmatismo, funcionalidade, desenvolven­do uma sensibilidade parecida com ados arquitetos e poetas construtivistas, que, a exemplo de Oscar Niemeyer e dos poetas concretos, propunham formas modernas, fundamen­tadas no principio da forma e fun.,ao.

Retomando 0 aspecto critico da bossa nova, poderiamos dizer que e sobretudo atraves do procedimento metalinguis­tico adotado na cria.,ao de algumas can.,oes, fazendo com que musica e letra se comentem reciprocamente, que ela realiza a sua critica textual. Dois exemplos muito citados desse processo criativo sao as composi.,oes "Desafinado" (1958) e "Samba de urna nota so" (1960), ambas de Tom Jo­bim e Newton Mendon.,a. Um dos aspectos destacados nes­sas music:;as e 0 fato de permitirem frui.,oes diversificadas, atendendo tanto a uma escuta pop de can.,oes sentimentais - a despeito de 'sua elabora.,ao formal intimista e do seu tom ironico - quanto a uma leitura mais familiarizada com os experimentos vanguardistas na musica, na literatura e nas artes visuais.

Em "Desafinado", por exemplo, a pronuncia da silaba to­nica da palavra "desafino" e seguida de urn acorde impre­visto: a nota seguinte vem em um semitom abaixo do que seria de esperar. Assim, musica e letra comentam e reali­zam, no proprio processo de composi.,ao, 0 intuito de trans­gredir as conven.,oes musicais da musica popular. "Samba de uma nota so" opera no mesmo plano: musica e letra, eoneebidas minimalisticamente, beiram 0 nonsense ao alter­narem discussoes amorosas com comentarios musicais.

Outro parceiro importante de Tom Jobim na fase heroica de cria.,ao da bossa nova e Vinicius de Moraes, principal­mente em sua atua.,ao como letrista de "Chega de saudade", de 1958. Essa musica se tornou emblematica da nova ten­dencia, aparecendo, segundo 0 relate de varios composito­res, como Chico Buarque e Edu Lobo, como urn divisor de aguas em suas carreiras. Ambos afirmam reiteradamente em entrevistas que passaram a reivindicar urn violao junto aos seus pais depois de ouvirem no radio "Chega de sauda­de" interpretada por Joao Gilberto. Comparada com as le­tras experimentais de "Desafinado" e "Samba de uma nota so", de Newton Mendon.,a, a letra de "Chega de saudade" parece convencional, ao tomar como tema as situa.,oes amo­rosas recorrentes na musica popular. Mas se a letra de Vini­cius se mostra pobre em termos das ousadias formais que se espera de uma can.,ao da bossa nova, ela e convincente, por outro lado, na maneira como interage com a musica. Integrada a can.,ao, ela a torna compativel com 0 espfrito eritico de "Desafinado". As duas partes da can.,ao alternam o tema da tristeza com 0 da alegria. 0 primeiro tema, de­senvolvido na primeira parte da can.,ao, fala da ausencia do ser amado e e estruturado em modo menor, tradicionahnt:.l).-

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te associado Ii tristeza. Ja a segunda parte da canc;ao. ao co­mentar pm!tica e musicalmente a possibilidade de retorno do ser amado. e composta em modo maior. 0 que. em nossa cultura. remete Ii alegria.

Como vimos. no momento inicial de sua criac;ao. no fi­nal da decada de 50. a bossa nova apareceu como urn estilo experimental. razao pela qual teve urn publico reduzido. composto basicamente de aficionados. Ela se tornou mais conhecida a partir da grava<;ao de "Garota de Ipanema" (mu­sica de Tom Jobim e Vinicius de Moraes) em 1963 por Peri Ribeiro (Odeon). canc;ao que foi definitivamente populari­zada com a gravac;ao de Frank Sinatra em 1967 (LP Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos ]obim. Reprise). tornando-se co­nhecida em todo 0 mundo. Quanto Ii projec;ao internacional da nova tendencia. ela comec;ou a se dar no inicio dos anos 60. quando suas composic;oes foram gravadas nos Estados Unidos por musicos de jazz reconhecidos. como Ella Fitz­gerald. Miles Davis. Sarah Vaughan. Herbie Mann e Gerry Mulligan. No LP Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos ]obim. mencionado anteriormente. a maior parte das composic;oes que Sinatra interpreta e de autoria de Tom.

1.3 Tom Jobim entre 0 mlnimo e 0 maximo

o perfil multiplo de Tom Jobim impede que ele seja reco­nhecido. ao contrano de Joao Gilberto. como urn musico bossa-novista. Tom e Joao Gilberto foram os criadores da nova tendencia. 9 que os levou a fazer experimentac;oes for­mais Ii maneira das vanguardas hist6ricas e. como e de pra­xe nesse tipo de procedimento. a romper com determina­dos repert6rios e praticas do nosso passado musical.

poderiamos dizer que esta seria a faceta "moderna" do com­positor. Agora. e importante registrar que Tom costumava adotar atitudes mais conciliat6rias com rela<;ao Ii tradi<;ao. o que configura certamente 0 seu perfil "modernista". Ou seja. ao retomar caminhos ja trilhados por determinados JUusicos que admirava. como Heitor Villa-Lobos. desenvol­via uma atitude. Ii maneira do Modernismo brasileiro. tan­to de rejei<;ao ao passado imediato da arte e da cultura bra­sileiras - a poesia parnasiana. 0 discurso bacharelesco e a pintura academica. entre outras tradi<;oes - quanto de profundo carinho para com determinados legados musicais.

Discuti anteriormente 0 conceito de modernidade acio­nado pelos artistas e intelectuais no Brasil dos anos 50. epo­ca em que Tom Jobim iniciou sua carreira artistica. Acho im­portante registrar que a ideia de modernidade se atualizava no rol dos debates que tiveram inicio principalmente no fi­nal dos anos 30 e inicio dos anos 40. com 0 advento no pais. como ja foi mencionado. da musica dodecafOnica e a forma­c;ao do Movimento Musica Viva. e na virada dos anos 40 e ao longo dos 50. quando a arte abstrata entrou no Brasil. Os artistas de ambos os movimentos se distinguiram no ce­nario cultural e angariaram urn numero siguificativo de ad­versarios por adotarem atitudes combativas de negac;ao de pressupostos caros aos modernistas. como 0 nacionalismo e a reverencia a determinadas tradi<;oes que conformariarri. a brasilidade.

Vamos nos restringir aqui ao comentario sobre os em­bates no universo musical. Como vimos. a introduc;ao da musica dodecafOnica no Brasil. assim como a criac;ao do movimento Musica Viva. ficou a cargo de Hans-Joachim Koellreutter. compositor alemao refugiado do nazismo que

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aqui se instalou a partir de 1937. Logo que chegou ao Bra­sil. Koellreutter procurou dar continuidade aos procedimen­tos vanguardistas ja iniciados na Europa. entre eles a intro­dU<;ao dos princfpios do dodecafonismo musical. atacando frontalmente a lideran<;a de Villa-Lobos num cenario mu­sical que via como excessivamente nacionalista. Com a cria­<;ao do Musica Viva. em 1944. movimento integrado por compositores brasileiros proeminentes. como Claudio San­toro e Guerra Peixe. as criticas a orienta<;ao modernista se acirraram e passaram a ser feitas em tom de manifesto. En­gajados politicamente. Koellreutter e seus companheiros de movimento utilizavam argumentos de teor socialista para defenderem princfpios funcionais e universais. os quais de­veriam ser aplicados nao s6 a musica. como tambem a arte em geraI. Em termos musicais. os pressupostos internacio­nalistas defendidos pelo Musica Viva significavam uma ai­ternativa as praticas modernistas de incorpora<;ao do foldo­reo Assim. em vez de destacar os repert6rios folc16ricos -principalmente rurais - valorizados pelos modernistas. os musicos adeptos do Musica Viva procuravam apagar os res­qufcios agrarios e pre-capitalistas implantados no pals. Con­gruentes com a concep<;ao de modemidade que vigorava no momento. defendiam uma estetica que correspondesse a etapa capitalista que diagnosticavam para 0 Brasil. caracte­rizada pela industrializa<;ao e pelo desenvolvimento urbano.

Vimos. portanto. que Jobim iniciou a carreira no Rio de Janeiro. no infcio dos anos 50. quando 0 debate entre "mo­demos" e "modernistas" ja havia se instaurado atraves da musica e das artes pIasticas. entre outras expressoes artisti­cas. E importante registrar. para os prop6sitos desta discus­sao. que se Jobim contou com Koellreutter. urn legitim~ re-

presentante da perspectiva "modema". como seu primeiro instrutor. ele estudou tambem com Tomas Teran. musico modernista espanhol radicado no Brasil e ligado a Villa-Lo­bos. A informa<;ao referente aos preceptores musicals de Tom Jobim nos coloca a dificuldade de c1assificar as suas composi<;oes a partir dos criterios convencionais que se pau­tam pela oposi<;ao entre "erudito" e "popular". Jobim co­me<;ou a estudar arquitetura no final da decada de 40. na Escola Nacional de Belas-Artes. e logo desistiu do curso. re­tomando entao os seus estudos de musica com Lucia Bran­co. Nessa fase. Jobim dedicou-se a musica dassica. exercitan­do-se com pe<;as de musicos das mais diferentes tradi<;oes. da barroca. com Bach. a c1assico-romantica. com Beethoven e Chopin. e a modema. com Ravel. Debussy. Stravinski e Villa-Lobos. Em seguida. Tom estudou harmonia com Paulo Silva. a epoca professor da Escola Nacional de Musica.

Tom Jobim mostrava-se desenvolto ao levar informa<;oes da "alta cultura" para 0 mundo do entretenimento. Apare­ceo entretanto. pelo menos na parte sinf6nica de sua obra. uma outra faceta do compositor brasileiro que 0 aproxima de Heitor Villa-Lobos: a preocupa<;ao construtiva. ao utilizar musicalmente procedimentos recorrentes do modemismo brasileiro no sentido de fortalecer a identidade nacional. Villa-Lobos agiu dessa maneira principalmente na fasedas Bachianas brasileiras. obra que come<;ou a compor em 1930 e que teve continuidade ao longo da decada de 40. Ao contra­rio dos Choros. criados pelo compositor nos anos io e 20. epoca em que a preocupa<;ao com a nacionalidade nao 0 im­pedia de realizar experimenta<;oes formais. mostrando-se afinado com as vanguardas europeias. as Bachianas sao con­cebidas com urn espfrito grandioso. 0 compromisso cada

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vez maior que 0 compositor passou a assumir com a cons­tru<;iio nacional, ou seja, com urn projeto totalizante, levou­o a recorrer a uma estetica que se pauta pelo excesso, nota­damente sinfonico. No caso das Bachianas, niio se trata de urn excesso carnavalizado, mas, pelo contrario, de uma mu­sicalidade grandiloquente e grave, incorrendo no registro monumental que caracterizou a expressiio artistica dos anos 30 associada a regimes politicos autoritarios e centralizado­res, como 0 nazismo e 0 stalinismo.

Bachianas brasileiras nO 7, pe<;a sinfonica de 1942 que Villa­Lobos dedicou a Gustavo Capanema, entiio ministro da Edu­ca<;iio do Estado Novo de Vargas, mostra semelhan<;a com Sinfonia da Alvorada, obra encomendada a Tom e Vinicius pelo presidente Juscelino Kubitschek para ser tocada na inaugura<;iio da capital federal, em 21 de abril de 1960.

Bachianas nO 7 se divide em quatro partes - "Preludio (Pon­teio)"; "Giga (Quadrilha Caipira)"; "Toccata (Desafio)"; e "Fuga (Conversa)" -, e cada qual se ref ere a uma determi­nada manifesta<;iio musical do pais. A despeito de conceber Bachianas brasileiras nO 7 tomando como modelo a forma da suite barroca, a maneira de Johann Sebastian Bach, VilIa-Lo­bos criou, por meio da orquestra<;iio e de outros recursos musicais, urn efeito grandioso para essa obra. Urn tom gran­diloquente, por exemplo, e introduzido no "Preludio" pela presen<;a de um aparatoso conjunto de instrumentos, dis­tanciando-se, portanto, do estilo simples (no sentido de niio monumerltal) das suites de Bach.

A Sinfonia da A1vorada, de Tom e Vinicius, niio chegou a ser executada na data prevista, mas foi gravada pela Colum­bia em 1961. Niio se trata propriamente de uma sinfonia: na pe<;a, alternam-se longas passagens em prosa poetica, Ii­das por Vinicius, e trechos musicais, orquestrados ou a car-

go de urn coral, em que a presen<;a de Villa-Lobos e eviden­teo A Sinfonia se divide em cinco movimentos: "0 planalto deserto", "0 homem", "A chegada dos candangos", "0 tra­balho e a constru<;iio" e "Coral". Essa estrutura evoca a divi­siio tripartite de as sertiles: 0 primeiro movimento da Sinfo­nia parece corresponder a primeira parte da epopeia em prosa de Euclides da Cunha, "A terra"; os dois movimentos seguintes, a segunda parte, "0 homem"; 0 quarto, a terceira, "A luta"; 0 movimento final e uma especie de coda. Coeren­te com 0 tom solene e epico do texto, que por vezes lembra a prosa de Euc1ides, a musica de Jobim e grave e grandi­loquente, mas sempre marcada pela presen<;a de ritmos sincopados e onomatopeias musicais que desde 0 periodo modernista eram utilizados para significar a brasilidade. Em texto publicado na capa do disco, Tom Jobim descreve a na­tureza e a cultura do Planalto Central como realidades co­nectadas a urn passado ja consolidado em terras brasileiras:

Seternbro, sertiio no estio. Frio seco. ( ... ) A 2' parte aborda 0

Hornern: seu espirito de conquista, sua viol~ncia, sua for<;a, seus desejos e seus sofrimentos para atingir 0 altiplano. ( ... ) Na 3' parte os rnodemos pioneiros retomam 0 trabalho dos velhos bandeirantes. ( ... ) "A chegada dos candangos" conta da vinda desses hornens de olhos puxados e zigomas salien­tes; hornens que em toda sua pobreza ainda encontram urn jeito de rir e cantar. Hornens sern os quais Brasilia niio exis­tiria. Segue-se a 4' parte: '0 trabalho e a constru<;li.o." ( ... ) Se­gue-se, na 5' parte, 0 coral final, cornernorativo da realiza­<;li.o. ( ... ) 0 Brasil aparece em toda a sua nostalgia e grande'za. Vrna nova civiliza<;li.o se esbo<;a. Herdeiro de todas as cultu­ras, de todas as ra<;as, tern urn sabor todo pr6prio.

Tom revolve 0 passado em busca de refer~ncias heroi­cas para os "candangos" que constroem Brasilia. Assim, os "homens de olhos puxados e zigomas salientes" - pobre9-'

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e miscigenados - sao equiparados aos bandeirantes - eli­te paulista de ascendencia portuguesa - pela sua pratica desbravadora. Ao revisitar determinadas tradic;oes cultu­rais, Tom procede como os modernistas brasileiros que, em vez de romper radicalmente com 0 passado ou de correr aceleradamente em direc;ao ao futuro, seguindo 0 exemplo das vanguardas europeias, tomam urn caminho pr6prio, in­corporando determinadas tradic;oes que elegem como im­portantes.

Se levarmos em conta a participac;ao de Tom na criac;ao do estilo bossa-nova, 0 qualitativo "minimalista" se torna ainda mais apropriado ao compositor, principalmente na fase inicial do movimento, em que ele fez parcerias com Newton Mendonc;a, com "Desafinado" (1958) e "Samba de uma nota 56" (1960). Aiem dos seus componentes metalin­guisticos citados, "Desafinado" e "Samba de uma nota 56" se estruturam de maneira convergente com os principios de "forma e func;ao" que orientam a arquitetura construtivista moderna. Em que pesem as polemicas criadas entre os ar­tistas dessa tradic;ao sobre 0 que seria genuinamente cons­trutivista, poderiamos afirmar que 0 espirito da bossa nova e muito parecido com 0 dos projetos urbanisticos e arquite­tllnicos de Lucio Costa e Oscar Niemeyer relativos a criac;ao da nova capital federal no final dos anos 1950.

Assim, na produc;ao de Jobim encontramos tanto obras pautadas pelo excesso quanto outras caracterizadas pela es­tetica do'minimo. 0 importante talvez seja reconhecer que, em se tratando de analisar 0 processo de composic;ao de Tom Jobim, os te'rmos "minimo" e "maximo" nao devem ser acionados para cristalizar urn estilo a partir da escolha de urn em detrimento do oiltro, no sentido de se configurarem como polos diametralmente opostos de convivencia impen-

savel. Seria tambem empobrecedor considerar a obra e a postura de Tom Jobim a partir de urna ou duas experiencias esteticas.

TomJobim, sem duvida, mostrou-se afinado com 0 estilo musical da bossa nova desde os seus prim6rdios, em 1958,

passando a ser reconhecido como urn dos criadores do esti-10, principalmente com relac;ao aos aspectos harmonicas da nova tendencia. Mas nao podemos nos esquecer que 0 com­positor ja estava predisposto a inovar musicalmente no ini­cio da carreira, 0 que era de esperar de urn musico que fu­giu da formac;ao convencional de conservat6rio.

Ao que parece, houve urna feliz coincidencia entre a as­pirac;ao de Joao Gilberto e os demais bossa-novistas por urna estt~tica concisa e absolutamente nova e 0 procedimento mi­nimalista e experimental de Tom, 0 que nos leva a afirmar que seria inadequado reduzir a trajet6ria de Tom Jobim a sua experiencia com a bossa nova - urna vez que a bossa nova optou pelo minimo, enquanto Tom sempre se colocou entre 0 minimo e 0 maximo, entre 0 moderno e 0 moder­nista, por vezes mobilizando as duas modalidades normal­mente vistas como excludentes nurna mesma obra.

1.4 A MPB e 0 exercicio da critica contextual

Foi com 0 surgimento da canc;ao politizada, no inicio dos anos 60, e da MPB, em meados da decada, que a canc;ao pas­sou a atender a apelos externos, tanto politicos quanto so­ciais. 0 primeiro tipo de musica apareceu no bojo da expe­riencia do CPC (Centro Popular de Cultura), criado em 1961

pela UNE (Uniao Nacional dos Estudantes), que se notabili­zou no periodo pela proposic;ao de uma arte engajada e afi­nada com postulados nacionalistas. A canc;ao de feitio par-

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ticipante teve prosseguimento ao longo da decada atraves . do espetaculo Opiniao, que passou a ser realizado a partir do final de 1964 no Teatro de Arena, e teve tambem como pal­co os festivais da can~o que se criaram em 1965 e tiveram grande repercussilo ate 0 final da decada.

Acredito, entretanto, que seria empobrecedor para a ana­lise pensar os formatos da can~ilo da bossa nova e da can- ' ~ilo participante a partir de uma dicotomia entre texto e contexto, como se a bossa nova privilegiasse apenas a fol'­

rna e a can~ao engajada, 0 conteudo. Se can~iies como "De­safinado" levam as ultimas consequt!ncias a experimenta~ao formal, isso nao significa que elas nao dialoguem com 0 en­torno. "Desafinado" utiliza 0 recurso a metalinguagem para comentar uma especie de conservadorismo cultural que le­varia a urna escuta passiva, avessa a qualquer experit!ncia musical que provocasse uma sensa~ao de estranhamento. Por outro lado, M can~iies politizadas que nao sao isentas de elabora~ao estetica, resultando de urn intense dialogo entre 0 politico e 0 estetico. Esse e 0 caso, por exemplo, de "Maria Moita", can~ilo de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (1964) que, a despeito da simplicidade estilistica, e represen­tativa de esmero furmal, pOis a letra, que remete a situa~iies tipicas da sociedade patriarcal brasileira, casa perfeitamen­te com a musica inspirada em cantigas de roda.

Mas 0 tema proposto para esta se~ilo e 0 desenvolvimen­to da ideia de MPB a partir de meados dos anos 60. Pode­damos dizer, numa primeira tentativa de explicar esse fentlmeno, que seus criadores, musicos de uma gera~ilo pos­terior a da bossa nova, procuraram conciliar a veia experi­mental de compositores e interpretes como Tom Jobim e Joilo Gilberto com as iriforma~iies politicas e culturais de urn momenta marcado pela busca de igualitarismo social,

de liberdade politica e pelo sentimento de brasilidade. Mes­mo que a inspira~ilo musical viesse de Recife, como e 0 caso de Edu Lobo, familiarizado com a cidade onde desde meni­no passava as ferias de verilo, nilo se tratava de urna propos­ta regionalista, mas da cria~ao de uma linguagem que ex­pressasse 0 Brasil. E embora se diferen~asse do intimismo da bossa nova e adotasse urn estilo mais exuberante, a can­¢o emepebista, tal como a que a precedeu, nilo descnidou do apuro formal. Assim, compositores como Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, a quem se costuma atribuir 0 papel de fundadores da MPB, levaram a serio a adequa~ilo entre musica e letra e criaram can~iies consideradas magistrais

A ideia de MPB (Musica Popular Brasileira) foi surgindo aos poucos, ao longo dos anos 60, acompanhando as trans­forma~iies ocorridas na perspectiva politica e na sensibili­dade estetica da gera~ilo que sucedeu a da bossa nova. No inicio dos anos 60, os postulados que fundamentaram a es­tetica do menos come~avam a perder a hegemonia, pois se as metas desenvolvimentistas e 0 interesse pelas questiies nacionais tinham continuidade, elas se atualizavam. 0 mo­mento agora era 0 de pensar 0 Brasil em todas as suas ta­cetas - 0 urbano, 0 rural e 0 sertanejo, 0 asfalto e 0 morro -, sem se restringir a Zona SuI do Rio de Janeiro, 0 que pas­sou a demandar uma representa~ilo artistica diferente da forma minimalista da bossa nova. Tra~ar musicalmente 0

Brasil, entretanto, nilo siguificava exalta-Io discursivamen­te; os elementos musicais e poeticos da can~ilo interagiam de maneira equilibrada no sentido de eriar urna imagem ar­tistica do pais. Assim, musica e letra em plena correspon­dt!ncia passaram a comentar determinados aspectos da nos­sa cultura, procedimento que por si s6 refor~ava a ideia de brasilidade. Urn born exemplo e "Arrastiio", composi~ilode

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Edu Lobo e Vinicius de Moraes de 1965 que, interpretada por Elis Regina no I Festival de Musica Popular Brasileira da TV Excelsior de Sao Paulo, ganhou 0 primeiro lugar e proje- I tou nacionahuente 0 compositor. A letra fala da condi<;ao do ! pescador, dos perigos que ele enfrenta no mar, das entida· .

I des do candomble a que recorre; a melodia, tipica da cha- 'j mada "can<;ao de festival", contem urna passagem em que a \! voz da urn saIto ascendente de sete semitons, prolongando ,I

a nota aguda e em seguida descendo lentamente urn inter­valo de uma oitava, urn efeito emocionante que fazia todo o publico do festival, em extase, cantar junto com 0 inter­prete. "Ponteio" e outra composi<;ao de Edu Lobo (em par­ceria com Jose Carlos Capinam) representativa do estilo de can<;ao de festival que vai concorrer para a configura<;ao da MPB. Vencedora do III Festival da TV Record de 1967, a musi­ca, pela pr6pria tematica nordestina realizada em letra e musica, assumia, naquele momento, urn carater politico, ao mesmo tempo em que era resultado de urn fino artesanato musical.

Mas poderiamos dizer que se a MPB foi se criando aos poucos, a partir de algumas mudan<;as que substituiram a sensibilidade intimista da bossa nova por urn registro ex­pansivo, a estetica criada no Beco das Garrafas sem duvida deu uma grande contribui<;ao para 0 desenvolvimento des­se construto. 0 Beco das Garrafas foi urn espa<;o criado no final dos anos 50, localizado na rua Duvivier, em Copacaba­na, com casas de espetaculo que apresentavam interpretes ligados ao samba-{:an<;ao. Logo no inicio da decada de 60, en­tretanto, os mu;icos do Beco passaram a acompanhar as inova<;oes trazidas pela bossa nova, com as boates Bacara, Bottle's e l.ittle Club apresentando uma programa<;ao mais instrumental voltada para este novo estilo. E se a musica de-

senvolvida no Beco incorporava a base harmonica e ritmica da bossa nova, ela era interpretada, no entanto, de uma for­ma que destoava da sensibilidade cool que caracterizava 0

estilo bossa-novista. Uma cantora que surgiu no Beco e representativa de urna

maneira de cantar que foge ao intimismo da bossa nova: Elis Regina. E entre os grupos que tambem surgiram naque­Ie espa<;o e incorporaram as bases da bossa nova, abrindo mao, porem, de sua sensibilidade cameristica, destacam-se o Sexteto Bossa Rio (Sergio Mendes ao piano, Paulo Moura ao sax, Pedro Paulo ao pistom, Octavio Bailly ao contrabai­xo, Dom Urn Romao it bateria e Durval Ferreira ao violao), 0

Bossa 3 (Luis Carlos Vinhas ao piano, Tiao Neto ao contra­baixo e Edison Machado it bateria) e 0 Tamba Trio (Luizinho E<;a ao piano e voz, Bebeto Castilho ao contrabaixo, it flau­ta, sax e voz, Helcio Milito it bateria, percussao e voz). Inter­pretes como Elis Regina, Wilson Simonal e Leny Andrade se faziam acompanhar de arranjos que recorriam a uma pro­fusao de instrumentos jazzisticos, desenvolvendo urn estilo de interpreta<;ao mais virtuosistico, em que a voz se sobre­punha aos instrumentos em vez de dialogar com 0 violao, como antes fazia Joao Gilberto. No plano instrumental, vol­tavam os pratos e baterias, que os musicos da bossa nova haviam dispensado em busca de urn arranjo que se caracte­rizava pela discri<;ao.

Nao seria conveniente definir urn estilo unico Hue pu­desse representar a musicalidade desenvolvida no Beco das Garrafas, devido it diversidade musical ali encontrada, em­bora se possa afirmar que todos os que se apresentavam na­quele reduto fugiam do estilo contido e conciso da bossa nova. Como argumentei anteriormente, acredito que esta atitude e significativa de urn momento hist6rico em que'se

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promoveu urna atualiza~o do imaginario desenvolvimentis­ta no Brasil, passando-se a contemplar em nossa cultura nao s6 os seus aspectos "finos" - encontraveis, por exemplo, na Zona SuI do Rio de Janeiro e cantados pela bossa nova -, como tambem aqueles que se definem pela contamina~o entre os diferentes e desiguais segmentos culturais do pais. De qualquer maneira, 0 conceito de MPB surge a partir de ' . 1964 nao exatamente como decorrencia dos impasses cria­dos com 0 golpe militar, mas sobretudo a partir das refle­xoes dos compositores sobre a questiio da brasilidade.

A meu ver, as apresenta<;oes do espetiiculo Opinitio que tiveram inicio no final de 1964 (dirigido por Augusto Boal e escrito e produzido por Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Paulo Pontes e Armando Costa e apresentado por Nara Leao, Ze Keti e }oao do Vale) concorreram para 0 de­senvolvimento da ideia de MPB. 0 Opinitio contribuiu nao s6 com a musicalidade, mas tambem com 0 estabelecimento de urn tipo de postura que ira singularizar a futura MPB: 0

dialogo intenso e 0 trabalho conjunto de musicos com ar­tistas de outras areas e com intelectuais que se mostram ati­vos na cena cultural, como dramaturgos, diretores de tea­tro e de cinema, poetas, artistas plasticos e ensaistas.

1.5 Chico Buarque de Holanda e a MPB

Chico Buarque de Holanda e urna figura representativa da estirpe de compositores que criaram a ideia de MPB. Ele co­me<;ou a lidar com musica ainda universitario, em Sao Pau­lo, quando cursava Arquitetura e Urbanismo na USP e parti­cipava de shows promovidos pelos estudantes. Em 1965, musicou 0 poema "Morte e vida Severina", de Joao cabral de Melo Neto, para ser encenado como pe<;a teatraL Nesse

mesmo ano, lan<;ou seu primeiro disco: urn compacto com as musicas "Pedro pedreiro" e "Sonho de urn carnaval". Mas sua carreira musical deslanchou mesmo a partir de 1966, no Rio de Janeiro, quando sua composi<;ao "A banda" concorreu no II Festival da Musica Popular Brasileira, promovido pela TV Record, e obteve 0 primeiro lugar junto com "Dispara­da", musica de Geraldo Vandre e Theo de Barros. "A banda" alcan<;ou urn grande sucesso de publico e Chico passou a ser conhecido nacionalmente. 0 compositor - como outros de sua gera<;ao - continuou concorrendo aos premios dos fes­tivais da can~o ao longo dos anos 60, obtendo sempre os primeiros lugares, como e 0 caso tambem de Edu Lobo.

o curso de Arquitetura foi abandonado e Chico Buarque se tornou urn cancionista, criando uma situa<;ao inusitada no cenano do show business, pelo fato de ele levar para esse dominio informa<;oes de areas consideradas "eruditas", dia­logando intensamente com pessoas ligadas ao cinema, ao teatro e a literatura. Filho de Sergio Buarque de Holanda, historiador, crftico literano e ensaista ligado ao Modernis­mo, Chico se mostrou desde 0 inicio a vontade ao lidar com a conjun<;ao letra e musica, procurando adequa-las nurn tipo de artesanato que foge aos padrOes da musica comer­cializada. Suas letras, sobretudo, sao bastante apreciadas, e atribuem-se a elas alta qualidade poetica.

Como compositor, Chico e poliffinico, razao pela qual nao seria possivel enquadra-lo em nenhuma modalidade de estilo ou genero musical. Na entrevista publicada em A MPB

em discusstio, ele afirmou que nao s6 come<;ou a fazer musi­ca, como se tornou urn bossa-novista a partir do momenta em que, ainda adolescente, ouviu Joao Gilberto interpretar "Chega de saudade". Quando iniciou realmente sua carreira, alguns anos mais tarde, Chico procurou no samba, a manei-

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ra de loao Gilberto, 0 elemento basico a ser trabalhado, em­bora os dois tenham lidado com esse procedimento de ma­neiras diferentes. loao Gilberto realizou uma sintese com os sons pesquisados e criou, a partir desse procedimento, a for­mula musical da bossa nova. Chico operou nurna outra cha­ve, sem se prender a urn estilo definido, mas elegendo urna certa tradi~ao do samba para ser recriada, como e 0 caso do repertorio legado por Noel Rosa. Em "A Rita" (LP Chico

Buarque de Hollanda, 1966), musica do inicio de sua carreira, Chico incorpora poetica e musicalmente 0 espirito de Noel, tanto na coloquiaJidade da letra quanto no formato de sam­ba que compoe, alem de citar explicitamente 0 nome do compositor de Vila Isabel, como na estrofe:

A Rita levou meu sorriso No sorriso dela Meu assunto Levou junto com ela E 0 que me e de direito Arrancou-me do peito Etemmais Levou seu retrato, seu trapo, seu prato Que papeU Uma imagem de Sao Francisco E urn born disco de Noel

Chico argumenta, na entrevista citada, que nao se consi­dera 0 unico de sua gera~ao a adotar esse procedimento incorporativo, apesar de ele pr6prio ter aderido, mesmo como disc!pulo, a atitude da bossa nova de romper radical­mente com grande parte do nosso legado musical. Essa ati­tude de ruptura, entretanto, nao teria durado mais do que tres anos, pois algum tempo depois alguns musicos ligados a bossa nova, como Carlos Lyra e Nara Leao, come~aram a

retomar 0 contato com uma musica popular que tinha sido renegada pela bossa nova. Segundo Chico, aquele tipo de ne­ga~iiO era estrategico, pois a bossa nova dependia disso para se afirmar. Assim, para que fosse possivel a existencia da bossa nova, era necessario que Noel Rosa fosse negado, a despeito de loao Gilberto fazer a sua releitura de dassicos dos anos 30, como as musicas de Ary Barroso. Chico tam­bem lembra a guinada de Nara Leao, que, de criadora da bossa nova, passa, no espetaculo Opiniiio, ao se apresentar ao !ado de Ze Keti e loao do Vale, e ao gravar pouco depois Car­tola e Nelson Cavaquinho, a se aproximar de uma musicali­dade mais ligada as camadas populares. E, para conduir, Chico lembra 0 pr6prio Vinicius de Moraes, que, depois da parceria com Tom no primeiro momento da bossa nova, passou a compor com Carlos Lyra e Baden Powell can~oes que ja nao se poderiam considerar como bossa-novistas. Chico refere-se ao disco gravado por Maria Bethiinia em 1965, Maria Bethiinia canta Noel Rosa (RCA), que teria provoca­do urn certo impacto pelo fato de Noel ter sido colocado, naquela epoca, nurna especie de "index estetico". Chico en­tao argumenta que uma atitude mais conciliat6ria para com o passado musical inevitavelmente viria mais cedo ou mais tarde, e que ele e os musicos de sua gera~ao foram os pro­motores dessa abertura.

A despeito da diversidade da obra musical de Chico Buar­que e do reconhecido apuro formal de suas can~oes, ele se tomou particularmente reconhecido por suas musicas po­litizadas. "Tern mais samba" (1964), can~ao composta no ini­cio de sua carreira, parece compartilhar 0 espirito de urn ide:irio de esquerda que se difundiu na epoca, caracterizado por urn dialogo com 0 marxismo e com certas concep~oes cristas, como 0 elogio do despojamento e da humildad~.

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A A~ao Popular (AP), por exemplo, grupo de esquerda que surgiu em 1962 e transitou do cristianismo para 0 maoismo, se singularizou por valorizar os homens do povo, sobretudo os trabalhadores rurais. "Tern mais samba" !ida com a ideia de reden~ao pela humildade, razao por que 0 denomino "samba ftanciscano". Segundo as narrativas sobre Sao Fran­cisco de Assis, ele teria atualizado radicalmente em suas praticas e na constitui~ao de sua identidade a figura de Cristo, principalmente por abandonar a postura mfstico­contemplativa, recorrente na tradi~ao crista, e assumir urna atitude comprometida com 0 dia a dia e 0 popular. Em "Tern mais samba" valoriza-se 0 pequeno, 0 homem comum e o cotidiano. Dignificar 0 cotidiano e as pessoas que se vol­tam para as pequenas coisas nao significa, entretanto, para essa perspectiva neoftanciscana, fazer 0 elogio da banalida­de ou se mostrar complacente para com 0 homem media­no, urna vez que ja se percebe nesse samba urna sensibili­dade brechtiana que, se valoriza 0 homem comurn e 0 aqui e agora, por outro lado faz 0 elogio da vitalidade, da mudan­~a hist6rica. A maneira de Bertolt Brecht, Chico Buarque re­jeita, em "Tern mais samba", a subjetividade romantica cen­trada na placidez do olhar ou dos astros, os reffigios idilicos incompatlveis com a maneira de estar no mundo do ho­mem moderno, e opta pela materialidade viva ("Tern mais samba no encontro que na esperaJ tern mais samba a mal­dade que a ferida"; ou "Tern mais samba nas maos do que nos olhosj tern mais samba no chao do que na lua"), pelo movimento do dia,a dia das cidades e a louva~o do traba­Iho ("Tern mais samba no homem que trabalhaJ tern mais samba no som que vern d~ rua"). 0 ideal de despojamento aparece tambem na musicalidade e na interpreta~ao de

"Tern mais samba". A composi~ao e cantada pelo pr6prio Chico, cuja voz pequena confere urn tom intimista a can­~o, e 0 acompanhamento faz uso apenas de flauta, violiio e uma discreta percussao. A situa~ao muda no estribilho ("Vern que passa teu softerj Se todo mundo sambasse seria tao faci1 viver"), quando a percussao se torua mais viva e entra urn coro de vozes femininas, como se reafirmando a promessa de felicidade atraves do samba.

"Tern mais samba" revela uma compensa~1io para 0 infor­tUnio no tempo presente. Se a atmosfera esta fechada, som­bria, e possfvel reverter a situa~ao com urna mudan~a de postura. "Sambar", neste caso, significa assumir uma posi­~ao de maior comprometimento com a vida. Esta can~ao pode ser contraposta estrategicamente as cria~oes musicais de Chico do final da decada, principalmente porque se ob­serva urna mudan~a de teor em suas can~oes a partir de 1968, quando foi editado 0 Ato Constitucional nO 5 e a res­tri~ao as liberdades politicas se intensificou. Ao que parece, o AI-5 e 0 marco a partir do qual 0 compositor substitui a perspectiva de uma reden~ao a ser realizada no presente pela utopia de urn futuro libertador. E e tambem a partir dai que a palavra "samba" aparece em sua obra como meta­fora de liberta~ao polftica, de urn amanha transformado, mais justo. Ao proceder desse modo, criando imagens de urna reden~ao postergada para 0 futuro, Chico nao esta so­zinho, pois comparti1ha com os companheiros de sua gera­~ao urna visao ut6pica e otimista com rela~ao ao que esta por vir. Chico entao se singulariza ao uti1izar em suas can­~oes metaforas recorrentes de urn dia futuro em que todo mundo vai sambar, analogo, por sua vez, ao raiar do dia ou outras imagens de uma era solar de liberta~ao, opostas a vi-

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sao do momenta politico como sotumo e notumo. Adelia Bezerra de Menezes, em Desenho mag/co: poesia e politica em Chico Buarque, acrescenta (p. 67) mais urn dado para a com- . preensao da utopia de Chico: em can~oes como ''Apesar de voc~", "Quando 0 camaval chegar" e "Cordao" l~-se que 0

futuro, alem de "liberador", e tambem "vingativo". "Apesar de voc~" inaugura em 1970 esse tipo de vies ut6pico e ao mesmo tempo revanchista. Ao analisar esta can~ao. Adelia Bezerra de Menezes argumenta que Chico se refere ao pre­sente como 0 imperio das "for~s da reten~ao". do "bloqueio das expansoes vitais". da "conten~ao". do "aprisionamento da energia", enfatizando nas letras 0 "amor reprimido". 0

"grito contido". 0 "samba no escuro". como vemos na letra

de "Apesar de voc~". can~ao de 1970:

Hoje voce e quem manda Falou. ta falado Nao tern discus sao A minha gente hoje anda Falando de lado E olhando pro chao. viu Voce que inventou esse estado E inventou de inventar Toda a escuridao Voce que inventou 0 pecado Esqueceu-se de inventar o perdiio

Por outro lado. segundo a autora (p. 75). 0 amanhii e vis­to como a epoca das "pulsoes da energia". da "fecundidade". Assim 0 tempo presente e associado a morte. enquanto se reserva para 0 fuwro as "metaforas da vida".

Apesar de voce Amanha Ita de ser Outro dia

Eu pergunto a voce Onde vai se esconder Da enorme euforia Como vai proibir Quando 0 gala insistir Emcantar Agua nova brotando E a gente se amando Semparar

A promessa de revanche aparece sem sutileza na segun-

da parte da can~ao:

Quando chegar 0 momenta Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros. juro Todo esse amor reprimido Esse grito contido Este samba no escuro Voce que inventou a tristeza Ora, tenha a fineza De desinventar Voce vai pagar e e dobrado Cada lagrima rolada Nesse meu penar

Se a revanche e transferida para 0 futuro. trata-se. entre­tanto. de uma revanche carnavalizada. Apresenta urn com­ponente agonico. sem duvida. mas que e totalmente imerso numa experi~ncia carismatica. em que os jardins florescem. esbanja-se poesia e a alterniincia entre noite e dia se liberta

de constrangimentos de qualquer tipo. 0 carisma. portan­to, alem de se traduzir numa experH~ncia revolucionaria. apresenta tambem urn teor altamente criativo.

Na decada seguinte. em 1984. Chico Buarque compos.

em parceria com Francis Hime. "Vai passar". uma can~~o

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que teve impacto e ficou conhecida como "samba da aber­tura politica". Neste samba, os compositores reintroduziram a ideia de carisma e de camavaliza<;ao. A musica e estrutu­rada como samba-enredo, e a tematiza<;ao de um desfile ao : mesmo tempo civico e camavalesco nao se restringe a letra; ritmo, arranjo e interpreta<;ao se incumbem de passar 0 re- • cado de que 0 futuro libertador esta proximo. Afinal, a epo­ca e de abertura politica. A composi<;ao inicia-se com a for­mula consagrada de revert!ncia a escola de samba que pede passagem:

Vai passar Nessa avenida um samba popular Cada paralelepipedo Da velha cidade Essa noite vai Se arrepiar Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais Que aqui sangraram pelos nossos pes Que aqui sambaram nossos ancestrais

A partir dessa abertura, a historia recente do Brasil e con­tada a maneira de um enredo de escola de samba. Diferente, entretanto, do recorte positivo que os sambas-enredo fazem da historia do Brasil, selecionando, a maneira da historia monumental, os grandes feitos heroicos, aqui escolhe-se urn passado negativo, que, ao contrmo de conferir honra, pro­voca um sentimento de vergonha. Trata-se de um passado ainda pre~ente, visto como

Pagina infeliz da nossa hist6ria Passagem desbotada na memoria Das nossas novas gera<;5es

A narrativa prossegue' seguindo a forma c1assica do sam­ba-enredo, so que, em vez de grandes homens, os protago-

nistas ou sao os figuriies inescrupulosos que oprimem e Ie­sam a na<;ao -

Donnia A nossa patria mae tao distraida Sem perceber que era subtraida Em tenebrosas transa<;5es

- ou sao suas vitimas, numa refert!ncia explicita aos exila­dos, presos politicos e torturados -

Seus filhos Erravam cegos pelo continente Levavam pedras feito penitentes Erguendo estranhas catedrais

o relato reafirma a tristeza quando menciona a alegria que, quando vinha, era "fugaz", advinda de "uma ofegante epidemia que se chamava camaval". Fiel a forma samba­enredo, a historia chega ao fim de maneira apoteotica, te­cendo loas aos personagens da Ultima ala a desfilar. E e a partir desse instante que a descri<;ao assume a linguagem camavalesca no que ela tern de mais transgressivo, recor­rendo a imagens chulas e caricaturais: a "ala dos bariies fa­mintos", 0 "bloco dos napoleiies retintos" e os "pigmeus do bulevar". Conc1ama-se todos aver "uma cidade a cantar" e a liberdade evoluindo como passista de escola de samba. E eis que a liberdade (ou a democracia) e representada de maneira estropiada, quase como urn ferido de guerra, car­regando 0 estandarte do "sanatorio geral" em que se trans­formou 0 Brasil.

Mas Chico Buarque e polifOnico, como ja dissemos, e se­ria empobrecedor reduzi-Io a condi<;ao de compositor enga­jado politicamente. A sua obra politizada e descrita por ele como "can<;iies de circunstancia", que foram contamina<@s

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pelo momenta pOlitico da ditadura militar e que contesta­yam 0 regime. Sao musicas que ele nao renega, na medida em que foram feitas no calor do momento, mas que repre­sentam uma parte muito pequena de seu repertorio.

Uma das caracteristicas de Chico e a sua sensibilidade de . dramaturgo, como ele proprio admitiu na entrevista citada anteriormente:

Acho que eu tenho eSSa marca. ( ... ) E eu acho que to conse­quencia mesmo da minha forma~ao. ( ... ) Quando eu come­cei a fazer musica profissionaImente, meu primeiro traba­Iho foi para teatro. Logo em seguida fiz musica para Gorki, para 0 espetaculo do Jose Celso. Eu comecei a compor can­~oes para teatro, escrever textos para teatro. ( ... ) Mesmo que eu escreva hoje uma can~ao que nao tenha nada a ver com o teatro, permaneceu algo dessa experiencia no meu proces­so de cria~o.

Chico se notabilizou, de fato, com as can~1ies cujas letras davam voz a alma feminina, ou mesmo a sensibilidade do travesti, como e 0 caso de "Geni", musica criada para a 6pe­ra do malandro. As can~1ies do primeiro tipo sao varias, sen­do que uma das primeiras, "Com a¢car, com afeto", Chico fez em 1967 a pedido de Nara Leao. Segundo ele, Nara que­ria "uma musica sobre aquele tipo de mulher sofredora, que fica esperando". Outra can~ao a que ele se ref ere e "Olhos nos olhos", que fez em 1976 para Maria Bethania cantar, que ela gravou no LP Passaro proibido. Em "Folhetim", can~ao tambem mada para a 6pera do malandro, quem fala e uma prostituta, como vemos na letra:

, Se acaso me quiseres Sou dessas mulheres Que s6 dizem sim Por uma coisa a toa

Uma noitada boa Urn cinema, urn botequim

1.6 Nara Lelio: da bossa nova a Tropicalia

A trajetoria de Nara Leao coincide exatamente com a traje­t6ria da musica no Brasil da bossa nova a MPB, e dai a Teo­picalia e a p6s-Tropicalia. Nara Leao se projetou no cenario artistico brasileiro por atuar em diversas frentes. Aiem de cantora e eventualmente atriz - representando 0 unico pa­pel feminino em Pobre menina rica, musical de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes montado em 1963, e no legendario show Opiniiio, que teve inicio em dezembro de 1964 -, notabili­zou-se como agitadora cultural e politica no Rio de Janeiro do final dos anos 50 e dos anos 60, assumindo atitudes inu­sitadas para a epoca, levando-se em conta a sua condi~ao de mulher e de interprete de composi~1ies populares. Pode­riamos aprofundar esta questao argumentando que Nara ajudou a criar uma nova realidade no cenario musical, no sentido de atuar, assim como outros compositores de sua ge­ra~ao, nao so como artista, mas tambem como intelectual (se lidarmos com aquela concep~o mais ampla de intelec­tual que vimos anteriormente).

Se a forma~ao escolar de Nara nao foi exatamente a mais convencional, na medida em que sua familia a teria deixa­do a vontade para abandonar os estudos em 1958, com 16

anos, ela, por outro lado, come~ou desde cedo, com 12 anos, a estudar violao. Suas primeiras aulas de violao se deram com Patricio Teixeira, reconhecido no meio musical como cantor e instrumentista, e posteriormente com 0 professor de violao classico S610n Ayala. Constam tambem na bio­grafia de Nara as aulas de musica que teve com 0 maestro

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Moacir Santos em 1959. A partir do momenta em que foi . liberada dos estudos formais, ela come~ou a atuar na vida musical do Rio de janeiro desde muito jovem, passando a conviver com musicos de varias faixas etarias que se nota­bilizaram por criar 0 estilo musical bossa-nova. 0 aparta­mento em que morava com os pais, na avenida AWintica, tornou-se lendario nas narrativas sobre a hist6ria da bossa nova, exatamente por abrigar musicos que criaram 0 estilo em noitadas de viol1io, entre os mais frequentes Roberto Menescal, Carlos Lyra, Ronaldo Boscoli e joao Gilberto. Ser- . gio Cabral, bi6grafo de Nara (Nara Ledo - uma biograjia), afir­ma que, apesar de mais nova, ela sempre ocupava uma po­si~ao de destaque no grupo nao s6 por dominar 0 violao, como tambem por se mostrar uma critica arguta de ques­toes musicais.

N ara teve uma participa~ao intensa nos shows de bossa nova que aconteceram no final da decada de 50, embora s6 tenha gravado um disco com can~6es bossa-novistas em 1971, razao pela qual 0 disco foi intitulado Dez anos depois.

Sua estreia como cantora se deu em 13 de novembro de 1959, em show na Escola Naval intitulado "Segundo coman­do da opera¢o bossa nova". Em 1962, entretanto, movida por preocupa~oes poifticas que passou a comungar com companheiros de gera¢o, principalmente os cineastas Jiga­dos ao Cinema Novo, como Caca Diegues, com quem se ca­sou, Nara deu uma guinada em sua carreira. Reaproximou­se de Carlos Lyra, seu antigo companheiro de bossa nova, de quem estava afastada, e pas sou a comungar com ele a ideia de utilizar a musica para conscientizar as pessoas so­bre as mazelas poifticas e sociais do pais. Assim, em 1963 atuou como protagonista de Pobre menina rica, espetaculo

IIlusicai de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes que estreou em mar~o na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana.

Em 1963, a cantora gravou pela Elenco 0 seu primeiro disco, intitulado Nara. Algumas das can~oes interpretadas no disco, como "Maria Moita", de Carlos Lyra e Vinicius, e ·0 morro - feio nao e bonito", de Carlos Lyra e Gianfran­cesco Guarnieri, se tornaram paradigmaticas para a carac­teriza~ao da chamada "musica de protesto" que se criou no Brasil a epoca. Ha quem atribua a este disco, pelas novida­des tematicas e musicais nele introduzidas, que 0 distin­guem das musicas da bossa nova, a preeminencia na cria­~ao de um estilo que passaria, a partir de meados da decada de 60, a ser chamado de MPB. Se a bossa nova refletia a sen­sibilidade da Zona Sui do Rio de janeiro, 0 repert6rio do pri­IIleiro disco de Nara, num movimento diferente, retrata a preocupa~ao de se falar do Brasil, em yoga no momento.

Nara Leao, portanto, atuou em seu primeiro disco como uma especie de agitadora cultural, 0 que e congruente com a sua guinada poi!tica. Em 1964, por exemplo, as vesperas do golpe militar, assinou documento de apoio ao Comando

. dos Trabalhadores Intelectuais (Cl'I) junto com artistas e in­te1ectuais reconhecidos, como Di Cavalcanti, ~nio Silveira, Edison Carneiro, Barbosa Lima Sobrinho, Oscar Niemeyer e Paulo Mendes Campos. E logo ap6s 0 golpe, em abril, Nara participou do show a remedio e bossa, na Escola Paulista de Medicina, cantando "Opiniao", musica de Ze Keti qu~, inten­cionalmente ou nao, aludia aos acontecimentos poifticos. Nesse mesmo contexto do show, Nara liderou um movimen­to antirracista contra 0 Hotel Danubio, que recusou a hos­pedagem dos musicos negros Dom Salvador e Dom Um.

Fundamentada no esplrito da epoca de valoriza~ao do po­pular, Nara passou a se interessar pela busca das raizes Cia

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musica brasileira. Assim, em 1964, depois de uma viagem a Belem, onde visitou Luis da Camara Cascudo, procurando informar-se sobre a musica folcl6rica nordestina, resolveu visitar varias capitals do Nordeste para pesquisar musicas 10-cais. Numa dessas viagens, conheceu em Salvador Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethania, que iniciavam, na epoca, suas carreiras.

Nara viajou nesse mesmo ano para os Estados Unidos, onde teve contato com as cria~oes musicais de musicos en­gajados na luta pelos direitos civis, como Joan Baez, Bob Dylan e Pete Seeger. Ii interessante notar, quanto a este pon­to, que as propostas culturais dos artistas de esquerda brasi­leiros e norte-americanos coincidiam, no sentido de valori­zar as manifesta~oes artisticas populares, a que se atribulam vitalidade e autenticidade.

Gravou tambem em 1964 seu segundo LP, Opinido de Nara

(Philips), cujo titulo foi extraido do samba do mesmo nome de Ze Keti. Este segundo disco em multo lembrava 0 primei­ro pelo criterio da escolha do repert6rio, entremeando mu­sicas de sambistas tradicionais, como Ze Keti, com composi­tores considerados "modemos", que, no momento, criavam a MPB, como Edu Lobo, Sergio Ricardo, Baden Powell e VJni­cius de Moraes. Este disco significou urna guinada na traje­t6ria da Nara, pois I' sobretudo a partir dele que ela troca a imagem de musa e mentora da bossa nova para a de canto­ra engajada, fazendo declara~oes de autocritica a imprensa por ter patticipado da bossa nova, uma estetica "alienada", que ignorava as ~assas populares e seus dilemas. Opiniao de Nara inspirou 0 dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, conhe­cido como Vianinha, a criar 0 show Opiniao, que estreou em 11 de dezembro de 1964 no Teatro de Arena da rua Siqueira Campos, em Copacabana.

A participa~ao de Nara no show Opiniao foi urn capitulo it parte em sua carreira. Os produtores do espetaculo -Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes -, oriundos do Centro Popular de Cultura (CPC), vinculado it Uniao Nacional dos Estudantes (UNE) e fechado pelo gover­no militar logo ap6s 0 golpe de Estado, eram ligados ao Par­tido Comunista Brasileiro. 0 diretor era Augusto Boal; 0

diretor musical, Dori CaymJni; e 0 grupo musical era com­posto por Roberto Nascimento (violao), Alberto Hekel Tava­res (flauta) e loao lorge Vargas (bateria). Nara Leao, Ze Keti e Joao do Vale eram dubles de musicos e atores, pois ao mes­mo tempo que se mostravam como compositores e inter­pretes, atuavam como atores. Nara Leao representava uma garota tipica da Zona SuI carioca, Ze Keti, urn personagem periferico, como 0 "favelado" tambem carioca, e Joao do Vale, 0 nordestino despossuido e avassalado pelo agreste maranhense.

Ii importante registrar os varios momentos em que a cantora, desde que assumiu posi~oes politicas de esquerda, se viu amea~ada por grupos que defendiam 0 regime mi­litar. Sergio Cabral relata a prop6sito, na biografia de Nara (p. 89), 0 episOdio de 14 de janeiro de 1965, em que "extre­mistas de direita emporcalharam a fachada do Teatro de Arena com desenhos da foice e do martelo e com pala­vroes". E 0 "Informe JB", coluna do Jornal do Brasil, registra na mesma epoca a forma~ao no Rio de Janeiro de uma "es­querda narista".

Nara se tomou conhecida em todo 0 pais ap6s gravar "A banda" (Philips) em 1966, de Chico Buarque. Ambos (can­tora e compositor) passaram a contar, a partir dai, com urn publico bern mais amplo. E para espanto, talvez, de quem esperasse uma atitude dogmatica da cantora, Nara dol mos'::

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tras de flexibilidade em varios momentos. Sergio Cabral in­forma, por exemplo (p. 137), que em julho de 1967 Nara as­siste de urna janela do Hotel Danubio, em Siio Paulo, ao lado de Caetano Veloso, a passeata de compositores contra a gui­

tarra eU!trica, e se mostra critica com relac;iio a manifes­tac;iio, que pareceria, segundo ela, "passeata do Partido In­tegralista". Ja nessa epoca Nara admitia 0 seu aprec;o por Roberto Carlos, 0 que era urna atitude ousada num cenario em que se criava forte polarizac;iio entre a MPB e a Jovem Guarda. Tambem de maneira surpteendente para uma can­tora alinhada com programas de esquerda desde a primeira metade da decada de 60, Nara participa do Tropicalismo, gravando em 1968 uma das faixas do Tropicalia ou Panis et

Circensis, disco-manifesto do movimento. Nara interpretou, nesse LP, 0 bolero "Lindoneia", composic;iio de Caetano Ve-

1 loso que dialogou com 0 quadro Lindoneia, Gioconda do subUr- ,

bio, de Rubens Gerchman. Nara Leiio deixou urna discografia nurnerosa, compreen­

dendo urn repert6rio niio s6 de generos musicais variados, como tambem vinculados a diferentes propostas esteticas. Da mesma forma que cantou canc;oes politizadas, principal­mente na segunda metade dos anos 60 - periodo do show Opiniilo -, Nara gravou em 1977 0 LP Meus amigos silo um ba­

rato, em que em cada faixa interpretava uma composic;iio de urn amigo. Entre os amigos que participaram do disco estiio Caetano Veloso, Roberto Menescal, Ronaldo Btiscoli, Gilber­to Gil, Edu Lobo, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Tom Jobim e Chico Buarque. Como se ve, a escolha foi ecletica.

2. Antecedentes da can~ao critica

2.1 A genese da can~iio brasileira

Jairo Severiano, em Uma hist6ria da musica popular brasiJeira:

das origens d modernidade, afirma que a can<;iio brasileira teve origem no periodo colonial e foi surgindo gradualmente ate que, no final do seculo XVIII, concretizou-se sob a forma da modinha. Se nos orientarmos pelas informac;oes de Jairo Se­veriano e de Mario de Andrade, observaremos que, nos seus prim6rdios, a modinha apresentava algumas caracteristicas da canc;iio critica, sobretudo pelo seu transito entre a "alta" e a "baixa cultura". A maior referencia da modinha foi Do­mingos Caldas Barbosa, poeta satirico que recorria ao impro­>'iso. Domingos foi para Portugal na decada de 1770, onde se tornou compositor de modinhas e lundus e se apresentava na corte de dona Maria I. Severiano (p. 17) descreve urn pro­cesso curioso: Caldas Barbosa introduz a modinha em Portu­gal, que J.a se modifica ao ser incorporada por musicos "de formac;iio emdita, que passaram a trata-la de forma requin­tada, sob nitida influencia da musica operistica italiana". As

transformac;oes nao param por ai, pOis, depois de passar por esse processo, a modinha teve contato com as arias por­tuguesas, tomando entiio a forma cameristica que pas sou a caracteriza-la. Com a vinda da corte de dom Joiio V,I para 0

Brasil, em 1808, a modinha retomou modificada, expressan­do como nenhuma outra musica a tematica amorosa.

Mario de Andrade analisa esse genero em Modinhas impe­

riais (p. 6), citando, alem de Domingos Caldas Barbosa, os poetas que foram "melodizados em modinhas", dos "mes-.

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tres cia Escola Mineira" aos poetas do Romantismo. Sobre as origens da modinha, Mario de Andrade afirma:

Os documentos e textos mais antigos se referindo a ela ja desigoam pe,as de saliio, e todos concordam em dar it mo­dinha urna origem erudita, ou peJo menos da semicultura burgoesa. Melo Morais Filho a fum como "descendente em linha reta da melodia italiana" ( ... )

jairo Severiano (p. 17) analisa de maneira sucinta a for­ma musical cia modinha, afirmando que ela e composta "ge­rahnente em duas partes, com 0 predominio do modo me­nor, das linhas mel6dicas descendentes e dos compassos binario e quaternario".

o lundu e outro genero que surge no periodo colonial e que, diferentemente das origens europeias da modinha, nas­ce, segundo Severiano (p. 19), "da fusao de elementos musi­cals de origens branca e negra, tornando-se 0 primeiro ge­nero afro-brasileiro da can~ao popular".

Mario de Andrade, no Didanano musical brasileiro (p. 291), define 0 lundu como "Canto e dan~a populares no Brasil du­rante 0 sec. XVIII, introduzidos provavelmente pelos escra­vos de Angola, em compasso 2/4 onde 0 primeiro tempo e frequentemente sincopado". De maneira semelhante a mo­dinha, 0 lundu experimentou urn processo de eruditiza~ao, ao ter substituido 0 seu acompanhamento de "instrumentos de cordas dedilhadas", segundo Mario de Andrade (p.291), pelo piano tpcado nos saloes. Quanto a esse aspecto, Seve­riano (p. 20) faz referencia ao fato de que 0 lundu passou a ser composto "de forma elitizada por musicos de escola, chegando a posteridade quase que apenas partituras edita­das a partir dessa fase". Outra informa~ao importante: 0

lundu deixou de ser apenas uma dan~a nas ultimas decadas

do seculo XVIII; assim, alem da coreografia, passou a se con­cretizar tambem em can~ao. Nesse caso, trata-se do "lundu de saliio". Mas alem desse subgenero mais elitizado que se desenvolveu nos salOes, 0 lundu originou tambem formas mais populares, como e 0 caso do samba.

Outro genero citado por jairo Severiano e a valsa bra­sileira, que, na virada do seculo XIX, transformou-se de mu­sica instrumental em can~ao, processo que contribuiu para que ela se tornasse mais popular. A partir de entao se tor­nou a musica romantica por excelencia, s6 sendo suplanta­da muito mais tarde pelo samba-can~ao, que atingiu a ple­nitude no final dos anos 1940.

Severiano reune num feixe os generos polca, mazurca, schottisch, habanera e tango, que chegaram todos ao Brasil em meados do seculo XIX. Essas dan~as, provenientes da Eu­ropa, se misturaram aqui a ritmos africanos, dando origem, na decada de 1870, ao tango brasileiro, ao maxixe e ao cho­roo Outro processo importante foi 0 abrasileiramento da ma­neira de executar os instrumentos musicais - no caso, 0

violao, 0 cavaquinho e 0 piano. Severiano aponta 0 que os tres generos tem em comum: 0 ritmo binario, a sincope afro-brasileira e a polca C01ll0 genero matriz. Quanto ao tango brasileiro, Severiano (p. 29-30) atribui a sua cria~ao, na decada de 1870, a Henrique Alves de Mesquita, ao mistu­rar a habanera e 0 tango espanhol com elementos da polca e do lundu. Mas quem realmente deu uma fei~ao brasileira ao genero, segundo ele, teria sido Ernesto Nazareth, crian­do urn ritmo mais pr6ximo do batuque e do lundu.

Essa caracteristica da obra de Nazareth explica, de cer­ta forma, 0 enorme interesse que ele despertou em Darius Milhaud, 0 compositor frances Jigado ao Grupo dos Seis

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(grupo modernista radicado em Paris). que viveu no Rio de Janeiro em 1917 e 1918 como adido de Paul Claudel. entao embaixador da Fran~a. 0 apre~o de Milhaud pela musica brasileira. principalmente a popular. inspirou-o a compor duas obras: Ie bam! sur Ie tott (1919) e Saudades do Brast1 (1921).

A prime ira se estrutura a partir de cita~oes de diferentes pe~as do repert6rio musical brasileiro. urbano e rural. e a segunda. Saudades do Brasil. num procedimento diferente. e criada como uma homenagem a Ernesto Nazareth. na me­dida em que Milhaud. em vez de citar 0 compositor brasi­leiro. tenta captar a sua sensibilidade. Em artigo de 1924

para Ariel. revista musical do Modernismo brasileiro. Mi­Ihaud. a prop6sito. faz uma crftica contundente it influen­cia francesa no meio musical brasileiro. 0 que nos leva a entender por que ele valoriza muito mais as figuras de Er­nesto Nazareth e Marcelo Thpinamba do que a de Villa­Lobos. Isso se explica pelo fato de que 0 compositor frances

tenderia a se interessar principahnente pela musica popu­lar urbana. mostrando-se pouco afeito ao estilo de Villa-Lo­bos. que. segundo ele. seguiria a orienta~ao de Debussy. Ve­jamos trecho de artigo de Milhaud (p. 264-266) para Ariel:

E de lamentar que os trabalhos dos compositores brasileiros desde as obras si:nf1\nicas ou de musica de camera. dos srs. Nepomuceno e Oswald. as Sonatas Impressionistas do sr. Guerra ou as obras de orquestra do sr. Villa-Lobos ( ... ) sejam urn reflexo das diferentes fases que se sucederam na Euro­pa; de Brhluns a Debussy. e que 0 elemento nacional nao seja expresso de urna maneira mais viva e mais original. A influencia do foldore brasHeiro. tao rico de ritmos e de uma linha mel6dica tao particular. se faz raramente sentir nas obras dos compositores cariocas. ( ... )

Seria de desejar que os musicos brasileiros compreendes­sem a importiincia dos compositores de tangos. de maxixes.

de sambas e de cateretes. como Thpynamba ou 0 genial Na­zareth. A riqueza ritrnica. a fantasia indefinidamente reno­vada. a verve. 0 "entrain". a inven~ao mel6dica de uma ima­gina~ao prodigiosa. que se encontram em cada obra destes dois mestres. fazem destes ultimos a gl6ria e 0 mimo da Arte Brasileira. (Milhaud. 1924. p. 264-266)

2.2 Primeiros tempos do samba

Quando se fala dos primeiros tempos do samba. os pesqui­sadores de musica popular no Brasil referem-se it decada de 1910 e invariavehnente a Tia Ciata. que teria reinado sobe­rana em meio it classe media negra do Rio de Janeiro. Tia Ciata se notabilizou por abrir as portas de sua casa aos mu­

sicos de samba e choro na pra~a Onze. entre os quais se destacavam Donga. Joao da Baiana. Sinhil e Pixinguinha.

Carlos Sandroni. em Feiti~o decente - transforma~iies do sam­ba no Rio deJaneiro (1917-1933). mostra como 0 samba e 0 cho­ro se constituiram como generos musicais na mesma epoca - inicio do seculo XX - e compartilharam os mesmos es­

pa~os. Esse relacionamento pr6ximo se estendeu pelos anos 1920. em que. segundo Sandroni (p. 105). "na maioria das grava~oes comerciais de samba. foram os musicos de choro que se responsabilizaram pelo suporte harmilnico e pela or­namenta~ao mel6dica de flauta. trombone etc.". Embora 0

nosso tema seja a can~ao e 0 choro tenha assumido um ca­rater instrumental. e importante mencionar que el~ sempre aparece. nos relatos dos musicos que viveram aqueles "pri­meiros tempos". relacionado ao samba. ainda que ocupando posi~oes hierarquicas diferentes. Sandroni (p. 105-106) fez

uma sintese das diversas narrativas dos musicos sobre a di­visao de espa~os na casa de Tia Ciata. argumentando que la

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o status "respeitavel" era afinnado na sala de visitas, com a dan¥! de par enla~ado e a musica dos choros, baseada em generos de proveniencia europeia, como a polca, a valsa etc.: em resurno, a festa mais "civilizada", no dizer do pr6prio Pi­xinguinha. Por oposi~ao, na sala de jantar, ficava a esfera In­tima, onde prevalecia, protegido por urn "biombo cultural", urn divertimento do tipo afro-brasileiro.

Sandroni fez uma interpreta<;ao propria desse tipo de de­marca<;ao de territ6rio (p. 106), procurando desconstruir a ideia - sustentada por alguns pesquisadores - de que ela pudesse indicar uma separa<;ao rigida entre as duas cultu­ras. Assim, segundo 0 autor, a exist~ncia do biombo que se­parava a sala de visitas da sala de jantar nao seria indicado­ra da aus~ncia de comunica<;ao entre as duas alas. 0 biombo nao serviria, portanto, para "interditar", "mas para marcar uma fronteira pela qual, sob certas condi<;oes, passava-se constantemente". Sandroni toma como exemplo a presen<;a de pessoas brancas e da elite na roda de samba.

Mas entrando na conversa sobre as transforma<;oes do samba, os pesquisadores de musica popular costumam en­fatizar as novidades musicais e comportamentais introduzi­das pelos sambistas cariocas do final dos anos 1920. 0 que e visto como inusitado, em termos musicais, e 0 desenvolvi­mento de uma linguagem diferente das formas "maxixadas" do samba criado na decada anterior, que tinha como cena­rio, entre outros espa<;os, a casa de Tia Ciata, que mencio­namos anter,iormente, e como figuras de destaque Donga e Sinht'>o Assim, se a puIsa<;ao do samba de Donga, por exem­plo, atendia as conven<;oes da dan<;a de salao, a cad~ncia do samba dos anos 20 se adequava a coreografia das escolas de samba recem-institufdas em favelas cariocas como Estacio e Mangueira, que contava com passistas individualizados. Se-

gundo Jose Ramos Tinhorao (em Pequena hist6ria da musica popular: da modinha d can~a:o de protesto), 0 samba praticado pela gera<;ao de Donga e SinM sofreria a influ~ncia do ma­xixe devido a sua execu<;iio por musicos de orquestras das gravadoras e do teatro musicado, bastante familiarizados com aquele ritmo.

Uma opiniiio sustentada pelos pesquisadores de musica durante muito tempo provocou pol~micas recentes: 0 argu­mento de que 0 novo samba era criado na base do impro­visa das rodas de batucada, enquanto 0 samba da decada de 1910, desenvolvido por musicos com maior forma<;ao tee­nica, se fazia a partir de urn processo de composi<;ao mais elaborado. Os proprios instrumentos utilizados pelos sam­bistas do Estacio, como 0 tamborim, 0 surdo, a cuica e 0

pandeiro, seriam toscos se comparados com os instrumen­tos de sopro e corda utilizados pela gera<;ao anterior. Dando continuidade ao argumento, costuma-se dizer que, quando os sambistas do morro recorriam ao violiio, faziam-no sem aprimoramento tecnico.

Carlos Sandroni, no livro citado sobre 0 samba, questio­na de maneira radical esse tipo de afirma<;ao. Uma primeira obje<;iio que ele levanta refere-se ao suposto aprimoramen­to tecnico dos sambistas da prime ira gera<;ao, pois Donga e SinM nao tiveram aprendizado musical que os habilitasse a ler partituras. Quanto ao uso de instrumentos de sopro e corda, quem os utilizava eram os musicos do chol"9 e niio

. propriamente os sambistas que tocavam na casa de Tia Ciata. Assim, segundo Sandroni (p. 140), 0 unico musico "versado em teoria musical. musico de orquestra, maestro e arranjador" que frequentava a casa das baianas era POOn­guinha.

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Niio e meu objetivo entrar no merito da questao, mas acredito que seria importante refietirmos sobre 0 epis6dio do registro do samba "Pelo telefone" por Donga, em 1916. Todas as interpreta~oes feitas ate agora sobre 0 assunto siio consensuais quanta ao seguinte ponto: 0 gesto de Donga teria sinalizado para urn momento de transi~o de padroes culturais de uma sociedade do tipo tradicional para Urn mundo em processo de moderniz~iio. Primeiro porque, ate aquele momento, era comum os sambas serem criados co­letivamente na casa de Tia Ciata, como teria sido 0 caso de "Pelo telefone", de acordo com relatos de musicos que fre.. quentavam 0 local. Ao registr,l-io como seu, identificando­se como autor, Donga assume uma atitude pr6pria de quem incorpora os valores do indivfduo moderno. Em segundo lu­gar, a partir do sucesso conquistado pela musica no carna­val de 1917 - "Pelo telefone" foi gravada pelo cantor Baia­no e editado pela Casa Edison - a palavra "samba" passa a ser proferida regu1armente e adquire grande popularidade. E urn terceiro aspecto tern a ver com a pr6pria composi~iio, cuja letra mostra-se ainda indefinida entre 0 rural e 0 urba­no. Na verdade. todas as circunstancias em torno do samba "Pelo telefune" indicam essa situa~o de transitoriedade en­tre 0 tradicional e 0 moderno. entre 0 rural e 0 urbano.

o carater "folcl6rico" da can~iio revela-se niio apenas em trechos da letra, mas tambem no pr6prio processo de com­posi~iio. Sandroni comenta, a prop6sito (p. 118), que "uma parte significativa dessa composi~iio e fruto direto do sam­ba fo1c16rico tal como praticado no Rio. nas salas de jantar das tias baianas, no infcio do seculo XX", assim como se re­

fere a uma maneira "folcl6rica" de trabalhar trovas popu­lares de domfnio pUblico, modificando-as de acordo com

as conveniencias musicais. Aiem desse carater coletivo do processo de composi~iio, 0 autor faz uma analise detalhada (p. 130) das "duas dic~oes poeticas" da musica: uma "folcl6-rica" e outra "autoral", uma vinculada a "tradi~iio", outra a "modernidade".

Com rela~iio as novidades comportamentais, tanto os pesquisadores quanto os pr6prios atores envolvidos no pro­cesso de produ~iio musical do periodo enfatizam 0 surgi­mento de uma nova atitude entre os sambistas do final dos anos 1920, notadamente os do Estacio. Assim, de acordo com essas narrativas, se as duas modalidades de samba - a dos anos 1910 e a do final da decada de 1920 - se criam sem duvida a partir dos elementos da cultura negra, uma e outra gera~ao lidariam com a heran~a africana de maneiras diferentes. Os musicos das comunidades baianas da Cidade Nova e adjacencias tenderiam a adotar urn estilo de vida pequeno-burgues, na medida em que se orientariam por urn ideal de respeitabilidade. Tia Ciata, casada com urn funcio­mirio publico ligado a pOlicia, tern a sua casa descrita niio apenas como urn abrigo para sambistas e choroes, mas tam­bern como urn espa~o que abrigava pessoas importantes da vida politica. SinhO, urn dos frequentadores da casa, e sem­pre mencionado como alguem que aspirava a uma posi~iio superior na hierarquia social. Assim, na condi~o de pianis­ta do Clube Flor do Abacate, no Catete, teria se vinculado a figuras de destaque nos mundos das letras e da politica.

Os sambistas que surgem nos anos 1920, pelo contrario, pouco afeitos a modelos burgueses, teriam se ligado so­bretudo a redutos associados a boemia e ao cotidiano das popula~oes faveladas. Desenvolvendo uma sensibilidade di­ferente dos compositores da gera~iio anterior, concentra-

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vam-se na tematica da "orgia", "malandragem" ou "vadia­gem". Urn exemplo recorrente de composi.;ao afinada com os valores boemios e "A malandragem", samba de estreia de Bide (Alceblades Barcelos), integrante da primeira gera~ao de musicos do Estacio. A letra desse samba (gravado por Francisco Alves em 1927) consiste na fala ironica de urn malandro anunciando que esta prestes a abandonar a vida de orgia e virar "almofadinha". Ii interessante observar que se 0 personagem do malandro ja era familiar na literatura brasileira desde 0 seculo XIX e no samba desenvolvido pelos compositores cariocas dos anos 1910, e a partir do final dos anos 1920 que "malandro" se torna sinonimo de "sambis­ta". E 0 lugar por excelencia da pratica da malandragem, se­gundo a maioria dos pesquisadores, seria 0 morro do Esta­cio, que abrigava sambistas importantes como os irmaos Alceblades (Bide) e Rubens Barcelos, Ismael Silva, Nilton Bas­tos, Baiaco e Brancura.

As narrativas sobre a constitui~ao da identidade de sam­bista, a partir dos anos 1920, descrevem-no nao apenas co­mo uma especie de subempregado, mas tambem como "ma­landro", "biscateiro" e proxeneta. A proximidade do Estacio com a zona de prostitui~ao do Mangue teria em muito con­tribufdo para a sobrevivencia dos seus compositores, que se reuniriam nos bares ftonteiri~os entre a zona de meretrfcio e 0 largo do Estacio, local que Ihes permitia nao s6 explorar o jogo e a prostitui~ao, como tambem se dedicar it cria~ao de sambas. 'Bide, em depoimento para 0 Museu da Imagem e do Som, refere-se a uma sinuca da pra~a Tiradentes, bas­tante ftequentada' por ele e outros sambistas, e descreve tambem a maneira improvisada de se fazer os sambas nos botequins, onde as melodias salam "de cabe~a". E depreen-

de-se do seu relato que 0 sambista, neste universo, era urn duble de compositor e valentao, apto para a pratica de ca­poeira e habituado ao porte de armas. Bide e tambem recor­rentemente citado como criador de novos parametros para o samba, alem de inventor nao s6 de instrumentos - 0 sur­do, por exemplo -, mas tambem do oficio de instrumentis­tao Bide e Mar~al (outro musico importante do Estacio) ~or­naram-se parceiros constantes e, dentre varias de suas composi~oes, destaca-se "Agora e cinza", gravada original-

" mente por Mario Reis em 1933.

Ismael Silva e outro compositor do Estacio que, de acordo com os relatos, s6 se ocupava com samba e jogo de cartas. E tanto Ismael quanto Bide desenvolveram, desde 0 inicio de suas carreiras, a tematica da malandragem. Ismael Silva se consagrou, por exemplo, ao utilizar essa tematica na letra que escreveu para a composi~ao "Se voce jurar", de 1931, em parceria com Francisco Alves e Nilton Bastos. A letra tern ini­do com 0 segufnte recado do sambista para a sua musa:

Se voce jurar Que me tem amor Eu posso me regenerar Mas se e para fingir, mulher A orgia assim niio vou deixar

Bide, por sua vez, compoe a figura do malandro no pr6-prio corpo, ao se vestir com os indefectfveis terno branco e colarinho engomado. No caso de Cartola (Angenor de Olivei­ra), da Mangueira, 0 pr6prio apelido refere-se it corporalida­de, isto e, ao chapeu que usava e que constitula pe~a indis­pensavel do figurino do malandro. Alias, entende-se melhor o tipo de indumentaria do malandro quando se leva em con-

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ta que, ao mesmo tempo em que sinaliza para uma busca de respeitabilidade, ao copiar 0 modelo universal do terno burgues, ela traduz a op~ao pelo inverso da condi~ao bur­guesa, na medida em que, ao fazer uso da cor branca, acio­na 0 signo da diferen~a. Cartola, em suas narrativas, fala so­bre 0 universo boemio da Mangueira do final dos anos 1920 e refere-se a existencia, na epoca, de dois tipos de blocos: os de "sujo", aos quais ele pertencia, e os familiares, aos quais o acesso lbe era interditado.

Quanto ao estilo musical desenvolvido por esta segunda gera~ao de sambistas, e curiosa observar que, apesar da lin­guagem debochada da tematica malandra, iniciaram-se, a partir do final dos anos 1920, os contatos entre os morros e a cidade. Noel Rosa e sempre citado como urn mediador en­tre os compositores dos morros e os musicos cariocas das classes media e alta. Noel teria sido urn dos primeiros musi­cos deste segmento branco e de classe media a subir os mor­ros, como 0 da Mangueira e 0 do Estacio, e conviver com os sambistas desses redutos. Os sambistas do morro, em seus relatos, costumam reclamar da explora~ao a que foram sub­metidos no inicio de suas carreiras por compositores e in­terpretes ja conhecidos, como Francisco Alves e Mano Reis, negociando com eles a parceria de suas musicas. A despeito dessas situa~oes dificeis na trajetoria de compositores como Bide e Cartola, e a partir do final dos anos 1920 que 0 sam­ba produzido nos morros come~ou a ser valorizado como mercadoria e a ser apreciado por segmentos das classes alta e media da cidade. 0 caso de Cartola, porem, mostra que esse processo nem sempre foi tao linear assim. Contempo­raneo de Noel - nasceu apenas dois anos antes dele - e seu amigo, teve sambas gravados por cantores de sucesso

como Carmen Miranda e Francisco Alves nos anos 1930; em 1940, foi convidado por Villa-Lobos para participar das gra­va~oes de musica brasileira feitas por Leopold Stokowski num navio ancorado na pra~a Maua, no Rio de Janeiro. Apos esse perlodo inicial de reconhecimento, porem, seguiu-se urn perlodo de dificuldades financeiras e outros contratem­pos que 0 fizeram desaparecer do cenano musical por mais de uma decada. Redescoberto em 1956 lavando carros na rua pelo jornalista Sergio Porto, Cartola teve uma nova oportunidade; e foi so em 1974, numa idade em que os can­cionistas costumam ja ter deixado para tras 0 melhor de sua carreira, que gravou seu prlmeiro album. A partir dai, suas can~oes foram imediatamente reconhecidas como obras-pri­mas. Nelas, chama a aten~ao nao apenas uma visao de mun­do dura e desencantada, rara num cancionista brasileiro, como tambem passagens harmonicas inesperadas. Uma can­~ao como "Tive, sim" ilustra ambas essas caracterlsticas: en­quanta 0 eu lirico conta a amada que conheceu no passado urn amor tao completo quanto 0 atual com outra mulher, a harmonia, apos uma Iinha melodica ascendente que culmi­na na palavra "paz", guina para uma regiao surpreendente, gerando uma instabilidade que perdura por alguns com­passos, recriando no plano da musica 0 clima de mal-estar gerado pela confissao desconfortavel. Em "Acontece" esse efeito e talvez ainda mais impactante: em apenas 11 versos brutais em que 0 eu lirico confessa a mulber que nao a ama mais, a tonalidade passa de do maior para urn insolito re sustenido maior no momento em que a letra preve 0 som­mento da mulber rejeitada - "vai chorar, vai sofrer, e voce nao merece" -, voltando abruptamente para a dominante de do maior no verso mais cruel de todos, que retoma 0 ti-

tulo: "mas isso acontece".

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ti justamente na decada de 1930, marcada pela ascensao de Vargas ao poder e pela afirma~ao do dinone modernista, que 0 samba se transformou em sfmbolo nacional. Houve nesse momento uma inversao do ideario de constru~ao da identidade nacional concebido na decada anterior, como 0

desenvolvido por Mario de Andrade no Ensaio sobre a mUsica brasileira, de 1928. Nesse texto-manifesto, Mario propunha a contribui~ao das musicalidades de todas as regioes e etnias do pais para 0 estabelecimento da identidade nacional. Fun­

damentando-se nessa perspectiva, defendia radicalmente a representa~ao do Brasil atraves da sintese promovida pelas tres ra~as - portuguesa, negra e indigena -, recusando 0

procedimento de pensar 0 pais a partir de urn unico ele­mento, tanto cultural quanto geografico. Ao contrario, por­tanto, da proposta de Mario de Andrade, que operava com a ideia de fusao, a inteligencia dos anos 1930 optou por con­centrar no Rio de Janeiro a escolha dos ingredientes Msicos para a constru~ao da identidade nacional. entre os quais 0

samba se destaca pelo seu valor emblematico. Em reflexao bastante original sobre 0 tema, desenvolvida em 0 misterw do samba, Hermano Vianna argumenta que, nos anos 1930, recorre-se ao mito da "descoberta" do samba, como se de uma certa forma 0 morro contivesse 0 samba em essencia. Assim, nao s6 0 samba, como tambem 0 Brasil, passa a os­tentar uma natureza camavalesca.

E, curiosamente, tomou-se como simbolo nacional justa­mente uma musicalidade que, para os padroes modernistas da decada de 1920 -;- que apostava numa estetica mais ela­borada, como a de Villa-l.obos -, se caracterizava por uma extrema simplicidade. S6 no final da decada 0 samba dei­xou de ser valorizado em sua "naturalidade", pois 0 genero

come~ou a softer uma serie de desenvolvimentos, responsa­veis em grande medida pelo surgimento do samba dvico, ou samba-exalta~ao. Esta nova modalidade de samba se pro­jetou com muita for~a, num vies mais sinfonico e monu­mental, a partir de "Aquarela do Brasil", que Ary Barroso compos em 1939.

Getlilio Vargas, assim que assumiu 0 poder em 1930, en­trou em contato com os artistas e intelectuais modernistas e incorporou de imediato 0 seu projeto musical. Getlilio mostrou-se habil, entretanto, ao conciliar a ideia de "forma­~ao" contida nesse projeto, que remete ao terreno da "alta cultura", com a predisposi~ao que assumiu desde 0 inicio para prestigiar as manifesta~oes populares sob quaisquer formas que se apresentassem, vinculadas ou nao a industria cultural. Assim, evitando uma orienta~ao de mao unica, no sentido de comprometer-se apenas com alguns segmentos intelectuais, Vargas estendeu 0 seu campo de a~ao para ou­tras arenas culturais. ti dessa maneira que, na primeira de­cada de seu governo, tanto viabilizou 0 ensino de canto or­feonico nas escolas, ligado ao ideal de forma~ao do povo brasileiro, quanto se envolveu com 0 mundo do puro entre­tenimento e da carnavaliza~ao.

Vejamos 0 panorama da musica de entretenimento ao longo dos anos 1930. Nessa decada, dois generos camava­lescos que praticamente se recriaram na decada anterior, o samba e a marchinha, se consolidaram e se diversifica­ram, dando margem ao aparecimento de subgeneros, como a marcha-rancho e 0 samba-enredo. Ambos passaram a con­tar com urn publico cada vez mais heterogeneo, que os con­sumia atraves nao s6 dos desfiles, como tambem dos novos meios de comunica~ao de massa, como 0 radio, a industria

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fonografica tecnicamente aperfei<;oada e 0 cinema. Os des­

files de escolas de samba se institucionalizaram a partir de

1930, quando passaram a ser patrocinados pelo Estado. As marchinhas tambem sofreram urn processo de instituciOo

naliza<;iio, ao se criarem concursos anuais para premiar as

composi<;1ies mais aclamadas pelo publico, em que os patro­

cinadores publicos e privados se alternavam. Em fevereiro

de 1930, por exemplo, a revista 0 Cruzeiro instituiu urn con­

curso carnavalesco para a premia<;iio de marchinhas, para 0

qual se inscreveram compositores ja conhecidos, como Ary

Barroso e Lamartine Babo. Mas talvez seja mais importante

registrar, com rela<;iio a esse concurso, a composi<;iio do jUri,

constituido de pessoas ligadas a vida intelectual e artistica,

como 0 escritor Humberto de Campos, 0 poeta Olegario

Mariano e os compositores eruditos Octivio Bevilacqua, Lu­ciano Gallet e Oscar Lorenzo Fernandes, ligados ao Moder­

nismo musical. 0 perfil do corpo de jurados niio deixa de

ser intrigante, principalmente se nos damos conl:<! de que

varios desses artistas e intelectuais manifestavam desprezo

para com a musica que visava ao mero entretenimento.

A modalidade samba-enredo, que surgiu com 0 desenvol­

vimento das escolas de samba, revelava urna forte afinidade

com urn tipo de sensibilidade modernista dominante na era

Vargas, que se pautava pelo culto a brasilidade. Caracteriza­

va-se por urn andamento mais lento, linha mel6dica longai e estribilho curto e facil de memorizar, com uma narrativa

que se aproximava do epico, tematizando grandes feitos e

grandes nomes da hist6ria do Brasil. A marchinha carnava­

lesca, cuja concep<;iio sugere 0 procedimento parodistico

com rela<;iio aos hinos militares, orientava-se tambem, em j alguns casos, para a exalta<;iio da brasilidade atraves do elo-

gio da diversidade etnica do Brasil. Ambos os generos musi­cals dialogavam, cada urn a seu modo, com 0 ideal de in­

tegra<;iio presente nas concep<;1ies culturais e politicas do

momento.

Mais importante, entretanto, que arrolar a diversidade

de generos e subgeneros musicais nos anos 1930, e notar

que a partir dessa decada 0 termo "musica popular" se re­

definiu, embaralhando as classifica<;1ies modernistas que

opunham 0 "populario" (como vimos, sinonimo de folclore

ou de musica niio contaminada pelos meios de comunica­

<;iio de massa) ao "popularesco" (musica divulgada por esses

meios de comunica<;iio). Assim, se alguns intelectuais mOo

dernistas continuavam lidando com esse tipo de oposi<;iio,

as a<;1ies culturais do governo Vargas a ignoravam e encam­

param de diversos modos as manifesta<;1ies populares. Men­

cionamos anteriormente a promo<;iio de premia<;1ies de mar­

chinhas carnavalescas pelo Estado e os setores privados.

E em 1933, como relata Roberto Moura em Cartola: todo tem­po que eu vtver (p. 94), "0 carnaval foi oficializado, niio s6

as escolas, mas tambem acontecimentos como batalhas de

confete, banhos de mar a fantasia, ranchos, blocos, grandes

sociedades, baile do Municipal - nurn completo camaval

legislativo".

Tornou-se comurn a partir dos anos 1930 0 desenvolvi­mento, entre alguns musicos populares, como Ary Barroso

e Lamartine Babo, de urna sensibilidade afinada com a pro­

posta modernista de se esbo<;ar urn perfil do Brasil atraves

da musica. Ary Barroso, movido por urn espirito nacionaJis­

ta, come<;ou a desenvolver nesse periodo urn estilo musical

que se tornou conhecido como "samba-exalta<;iio". Ao recor­

. rer a este estilo, Ary, de urna certa maneira, criou, no te~

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no do popular, urn tipo de concep~ao musical compativel com a do Modernismo, ou com 0 tipo de estetica nacionaIis­ta de cunho monumental que Villa-Lobos desenvolveu prin­cipalmente a partir dos anos 1930. E ao se converter ao ideal de brasilidade, Ary aproximou-se dos musicos eruditos que desenvolviam 0 projeto musical modernista, engajando-se, inclusive, nas campanhas de canto orfeOnico concebidas por Villa-Lobos. Entre as musicas de exalta~ao civica compostas por Ary, "Aquarela do Brasil", de 1939, se destacou, por va­rios motivos. Urn deles e que "Aquarela" introduziu no sam­ba urn espirito epico, preparando 0 terreno para as grandes narrativas desenvolvidas posteriormente pela modalidade samba-enredo, que tematizam feitos de antepassados. Poeti­camente, ''Aquarela" constr6i os personagens - 0 "mulato inzoneiro" e a "morena sestrosa" - sem 0 concurso do tem­po, nurn processo semelhante ao da Odisseia, em que as figu­ras sao congeladas nurn eterno presente. A parte musical e mais complexa, pois 0 seu componente excessivo joga ao mesmo tempo com 0 tom solene e 0 carnavalesco, e 0 ritmo sincopado se mostra mais pr6ximo da tradi~ao da dan~ do que do hinano.

Entre os compositores de marchinhas, Lamartine Babo e quem mais incorpora a sensibilidade modernista de repre­sentar a brasilidade, embora ela se revele sempre de forma jocosa. Vejamos 0 exemplo do "Hino do carnaval brasileiro", de 1939, em que Lamartine exalta, de maneira carnavali­zada, a consiru~ do Brasil a partir das tres ra~as, ou me­ihor, de tres tipos ra?ais do sexo feminino:

Salve a morena A cor morena do Brasil fagueiro ( ... )

Salve a loirinha Dos olhos verdes cor das nossas matas Salve a mulata Cor do cafe, nossa grande produc;ao

A letra do "Hino do carnaval brasileiro" e ambigua, dei­xando 0 ouvinte intrigado em saber se ele faz parodia do es­pirito ufanista comum no periodo ou se ele proprio se rende a esse tipo de sensibilidade, que celebra, entre as riquezas do Brasil, a variedade em termos raciais. Esse efeito se torna mais nitido com a interpreta~ao, que conta com a voz vi­gorosa e ao mesmo tempo bem-humorada de Almirante e com a orquestra~ao, que recorre a instrumentos da banda militar, como tambores e cornetas. 0 espirito civico e 0 car­navalesco convivem no processo de composi~o e na manei­ra como a marcha de Lamartine e interpretada.

Tambem em 1939 estabeleceu-se por decreto que 3 de janeiro seria 0 dia oficial da Musica Popular Brasileira, que foi comemorado com urn grande espetaculo musical do qual participaram Carmen Miranda, Francisco Alves, Donga e Heitor dos Prazeres. E a partir de 1940 Villa-Lobos come­~ou a promover concentra~oes orfeonicas que reuniam mi­lhares de crian~as e adolescentes e que contavam com a participa~ao de musicos populares bastante conhecidos a epoca, como Augusto Calheiros, Francisco Alves e Silvio Caldas. Villa-Lobos regia corais constituidos de verdadeiras massas populares em estadios de futebol. com a presen~ de Vargas.

Em 1940, urn encontro inusitado entre musicos eruditos e populares pas sou a representar simbolicamente 0 valor conferido por Vargas e Villa-Lobos a can~ao popular. Tudo resultou de urn projeto etnografico levado a cabo pelo maes­tro Leopold Stokowski, regente da Orquestra SinfOnica t1a

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Filadelfia, com a colabora~ao de Villa-Lobos. Stokowski, con- .. tratado pelo Departamento de Estado americano, teria pe­dido a Villa-Lobos que reunisse musicos populares "autenti­cos" que 0 auxiliassem a fazer uma serie de grava~i5es com uma orquestra de jovens. 0 local escolhido para as gra­va~i5es foi 0 navio Uruguai, aparelhado com um estlidio de grava~ao completo fornecido pela Columbia, e os trabalhos foram abertos ao publico. Para acompanhar os musicos (Car­tola, Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, Jararaca e Ratinho, entre outros), Stokowski trouxe a orquestra sinf6-nica All-American Youth Orchestra.

Tudo leva a crer que Getlilio Vargas construiu 0 seu ca­risma recorrendo, no plano cultural, tanto aos repert6rios eruditos fornecidos pelos projetos de inova~ao artistica quanto aos elementos carnavalizantes da cultura.

Ao longo de seu governo, Vargas estabeleceu liga~i5es com musicos populares, como Carmen Miranda e os inte­grantes do Bando da Lua, con junto que acompanhava a can­tora. Em livro de memorias, AIoysio de Oliveira relata que Vargas e sua filha AIzira, conhecida como AIzirinha, gosta­yam do Bando da Lua, e que ele e os outros musicos da ban­da costumavam frequentar os saraus do Palacio Guanabara. ViIIa-Lobos tambem cultuava 0 contato com musicos po­puIares, gosto que desenvolvia desde os tempos de adoles­cente. Villa come~ou a carreira musical aos 16 anos, tocan­do em cinemas, bares, hoteis e cabares, e suas primeiras composi~i5~s consistiram em valsinhas, schottischs, dobrados e outros generos pppulares. Data dessa epoca a sua convi­vencia com compositores como Eduardo das Neves, Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros, entre outros. A partir do Estado Novo, corn a predorninancia de uma ideologia que vi-

sava juntar a moderniza~ao e a tradi~ao, 0 contato de Villa com os musicos populares se tornou mais estreito, 0 que fa­cilitou a aproxirna~ao de Villa-Lobos corn Cartola. Roberto Moura, refor~ando essa tese na biografia de Cartola, afirma que Villa-Lobos, alem de transitar pelos meios oficiais e de musica de concerto, podia tambem ser encontrado num bar com Joao Pernambuco, to cando violao, ou no Buraco Quen­te, na Mangueira, ao !ado de Cartola.

A encampa~o da Radio Nacional pelo governo, ern 1940,

foi um ato representativo da atitude conciliatoria do gover­no Vargas corn rela~ao ao ideal educativo modernista e a frui~ao desinteressada oferecida pela industria do entrete­nimento. Ern vez de adotar 0 modelo de forma~ao que irn­perou no periodo modernista corn a Radio Sociedade do Ri? de Janeiro (futura Radio Roquette-Pinto), por exemplo, a Ra­dio Nacional adotou 0 modelo norte-americano. A prirneira, concebida nos anos 1920 pelo antropologo Roquette-Pinto e pelo cientista Henrique Moritze, seguiu a orienta~ao da BBC de Londres e foi operada como um veiculo predoroinan­temente didatico, cuja programa~ao consistia ern musica erndita e de palestras educativas. Ja a Radio Nacional, irn­plementada quase duas decadas depois, alternava ern sua programa~ao entretenimento e irradia~ao de cornicios, alem de ter a publicidade como principal fonte de renda.

2.3 Os "an os de ouro" (1920-1930)

Ha uma tradi~ao de criticos musicais que aplicam 0 termo "anos de ouro" as decadas de 1920 e de 1930, ern referencia ao que veem como uma grande transforma~ao na musica popular carioca. De fato, nao M como negar que esse pe-

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rfodo e pr6digo com rela~ao a novidades' tanto na cultura quanto na sociedade em gera1. Mas devemos ter urn certo cuidado para nao nos deixarmos guiar por concep~oes evo­lucionistas que tendem a pensar as mudan~as de forma li­near, como se ap6s 0 processo de moderniza~ao prevaleces­se 0 novo, e 0 velho s6 sobrevivesse como "resquicio" de urn tempo anterior. Se nao M d1ivida de que 0 Rio se moderni­zava naquele momento no sentido indicado pelo "progres­so" economico, tecnol6gico e cultural, por outro, a cidade cultivava estilos de vida associados ao "arcaico" ou a urn re­gistro "primitivo", pouco condizentes com 0 processo civili­zador em curso. Devemos ter em vista tambi'm que esse es­tado de coisas descrito niio corresponde a uma experiencia dual em que campo e cidade disputassem a hegemonia no espa~o citadino, mas que, em vez de se colocarem como polos de oposi~oes, "primitivo" e "civilizado", "antigo" e "novo", desenvolviam uma convivencia efetiva.

o Rio de Janeiro das decadas de 1920 e de 1930 manti­nha contatos tanto com a provincia quanto com metr6po­les europeias e norte-americanas. A influencia norte-ameri­cana, mais recente, passou a se fortalecer com 0 advento do cinema falado, do radio e das novas tecnicas de grava~ao. Di­ferentes informa~oes eram portanto introduzidas na cidade, criando urn cenario complexo que nao se definia a partir de urn pensamento dual ou pela ideia de sintese. "Hibridismo" talvez fosse a palavra mais adequada para descrever as con­di~oes apresentadas pelo Rio de Janeiro a epoca e tambi'm a sua musicalidade. Noel Rosa, por exemplo, reconhecido como urn compositor sensivel as linguagens que se desen­volviam no Rio de Janeiro, come~ou a carreira musical com­pondo em 1929 a embolada "Minha viola". Nessa mesma

epoca, Noel compos tres can~oes sertanejas, como "Festa no ceu" (1929), "Mardade da cabocla" e "Sinha Ritinha" (ambas de 1931). 1.amartine Babo, alem de tematizar as novidades culturais e as modas que entravam na cidade, compos com Ary Barroso, em 1931, "No rancho fundo", alem de duas cantigas juninas: "Chegou a hora da fogueira" (1933) e "Isto e la com Santo Antonio" (1934). Assis Valente, outro cancio­nista proficuo dessa gera~ao, criou tambem composi~oes juninas, como "Cai, cai, balao" (1933), "Acorda, Sao Joao" (1934), "Mais urn balao" e "Olhando 0 ceu todo enfeitado" (ambas de 1935).

Muitos compositores cariocas mostraram-se ageis para captar os estilos de vida e as linguagens desenvolvidos no Rio de Janeiro e para lidar com os meios de comunica~ao que surgiram no perfodo. Atentos tanto as transforma~oes quanto as realidades ja estruturadas, mostraram-se flexiveis para experimentar formas diferentes, compativeis com uma

consciencia voltada para 0 presente e para os seus valores transit6rios, mutaveis. Adotaram, portanto, uma atitude incorporativa para com os temas e expressoes triviais cria­dos constantemente no cotidiano da cidade, cada vez mais transformada pelo processo de moderniza~ao.

Noel Rosa e aqui tornado como figura paradigmatica pelo fato de atuar como urn compositor "critico". Apesar de re­conhecidamente boemio e de nao ter contato com a intelli­gentsia modernista, ele se destaca, entre os compositores de sua gera~ao, por combinar a utiliza~ao do modelo coloquial sugerido pelos modernistas com 0 vocabulario vulgar das camadas populares e as expressoes ingenuas e provincianas da vida suburbana. Outro aspecto a ser considerado e que Noel nao se limitou a tematizar a vida urbana; atuou tam-

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bern no sentido de confonnar a Jinguagem musical it mo­derniza~ao emergente. Este tipo de sensibilidade irreverente encontra a sua fonna musical nurna estetica contida, avessa ao excesso estilistico, que exige arranjos mais simples, com o concurso de poucos instrumentos, e na maneira intimista de interpretar as can~oes. Por outro lado, a simplicidade es­tetica parece convergir com urna especie de op~ao francis­cana pelo "baixo", por urn tipo de sensibilidade que se de­senvolve no submundo da prostitui~ao, do jogo, da trapa~ e do 6cio em geral.

o samba "Com que roupa?", de 1929, inauguta 0 estilo coloquial que vai marcar a obra de Noel dai em diante. A letra comenta situa~oes cotidianas de segmentos de certa fonna avessos ao estilo de vida pequeno-burgues, como e 0

caso do "cabra trapaceiro" fugindo da figura do "urubu" (tenno utilizado para nomear 0 credor). Este samba e signi­ficativo da atitude tomada por Noel - e por vanos artistas modernistas - no sentido de assurnir esteticamente a mo­dernidade e ao mesmo tempo recusar nao s6 os seus valores basicos, mas tambem os novos personagens engendrados por ela. 0 compositor se contrapos it vida burguesa tanto na vida quanto na arte; por urn lado, colocou-se de fora, sem assurnir os papeis convencionais por ela prescritos; por ou­tro, fez uso da ironia e da par6dia. Em "0 orvalho vern cain­do" (samba de 1933, em parceria com Kid Pepe), Noel abor­da a figura do vagabundo e os objetos familiares it sua vivencia noturna: a cama "e uma folha de jornal", 0 corti­nado "e 0 vasto ceu de aniI" e 0 despertador "e 0 guarda­civil". Em "Tres apitos", composi~ao de 1931, 0 mundo re­presentado na can~o - no qual 0 trabalho se contrapoe it arte, a maquina ao piano - corresponde it rela~ao que 0

sujeito lirico estabelece com 0 mundo. Assim, 0 poeta de "Tres apitos", ao mesmo tempo em que comenta 0 mundo moderno, se exc1ui da vida industrial que 0 caracteriza: se a operaria "faz pano", ele faz "versos".

Falamos anterionnente na maneira despojada de Noel in­terpretar as can~oes, 0 que e inusitado para urna epoca em que predomina 0 estilo operistico dos grandes cantores de radio, como e 0 caso de Francisco Alves. Esse estilo interpre­tativo utiliza urn acompanhamento correspondente, fazen­do usa de instrumentos de corda mais cameristicos, como 0

bandolim e 0 vioIao. Jose Ramos Tinhorao, em encarte para a cole~ao de discos Hist6ria da mUsica popular bTllSl1eira, da Abril Cultural, fala sobre a habilidade de Noel em conciliar os extremos na convivencia com os musicos. Da mesma for­ma que partilhava a vida boemia com compositores se­mianalfabetos, como Ismael Silva, Canuto e Antenor Garga­lhada, com os quais compunha sambas batucados, convivia com musicos sofisticados, como Romualdo Peixoto (Nono) e Osvaldo Gogliano (Vadico). Segundo Tinhorao (p. 1-2), esse tipo de atitude permitia a Noel aprimorar suas composi~oes e "adiantar-se ao gosto medio do seu tempo". Tinhorao tam­bern observa a corre~ao pros6dica das composi~oes de Noel, exemplificando com 0 samba "Pra que mentir" (composto com Vadico em 1935), 0 qual faria parte das "pequenas obras-primas da linguagem coloquial" criadas pelo compo­sitor de Vila Isabel.

Noel trabalhou tambem com revistas radiofOnicas. A pri­meira, intitulada a barbeiro de Niter6i, de 1935, foi criada como par6dia da 6pera a barbeiro de Sevilha, de Rossini, para o programa humoristico "Clube da Esquina", da Radio Clube do Brasil. Outras revistas radiofOnicas se sucederam, como

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Ladriio de galinha (1935) e A noiva do condutor (1936). Joao Ma­ximo e Carlos Didier, bi6grafos do compositor, lembram que 0 procedimento parodistico e recorrente em Noel e ci­

tam alguns exemplos, como "Com que roupa?", composi~ao que parte de uma brincadeira com 0 Hino Nacional, e ou­tras composi~oes escritas sobre algumas melodias, como "Cheek to cheek", "Diga-me esta noite", "Gigolette" etc.

Lamartine Babo compartilha com Noel Rosa 0 senso de humor e a sensibilidade para captar a linguagem corrente da cidade. Como compositor, Lamartine foi 0 mais versa­til de sua gera~ao, criando musicas de diferentes g~neros, como marchas, valsas, operetas, musicas juninas, sambas, tangos, foxes e outros, embora tenha se notabilizado pelas marchinhas camavalescas que alcan~aram grande populari­dade, como "0 teu cabelo nao nega", "Linda morena", "His­t6ria do Brasil", "Grau dez" (em parceria com Ary Barroso) e "Rasguei a minha fantasia". "A-B-surdo" e uma marcha que Lamartine fez em parceria com Noel Rosa em 1931, cujo tema, como 0 titulo indica, e 0 estranhamento causado pela estetica futurista. Eis 0 teor da letra, que pelo nonsense pare­ce muito pr6xima da sensibilidade dadaista:

Nasci na praia do Vizinho oitenta e seis Vai fazer urn mes Vai fazer um mes A minha tia me emprestou cinco mil-n!is Pra comprar pasteis Pra compvar pasteis

CORD

E futurismo, menina E futurismo, menina Pois nao e marcha Nem aqui nem Ia na China

• ( ... ) Seu Dromedario e um poeta de juizo E uma coisa louca E uma coisa louca Pois s6 faz versos quando a Ina vem saindo La do ceu da boca La do ceu da boca

o perfil ecietico de Lamartine nos surpreende com cria­~oes inusitadas. Depois de ouvirmos, por exemplo, as suas irreverentes marchinhas camavalescas, podemos nos sur­preender com obras de extremo lirismo, como a valsa "Eu sonhei que tu estavas do linda", de 1941, e os sambas-can­~oes "Serra da Boa Esperan~a", de 1937, e "No Rancho Fun­do", que compos com Ary Barroso em 1931. Quanto a este aspecto, Lamartine e Noel se mostram bastante diferentes. Lamartine parecia usar heteronimos para criar as suas com­posi~oes liricas e as humoristicas, devido as diferen~as en­tre os dois tipos, enquanto nas composi~oes de Noel atuava o mesmo sujeito lirico, independentemente do g~nero mu­sical em questao. Para Lamartine, a mudan~a de g~nero musical abria uma brecha para mudar de identidade; para Noel, 0 humor nao era incompativel com a temura, ou mes­mo com 0 sofrimento, raziio pela qual 0 sujeito se manti­nha. A identidade de Lamartine, de qualquer modo, se con­solida atraves da veia humoristica, que 0 levou desde cedo a compor operetas como Cibele, de 1920, e outras posteriores, como Viva 0 amor e Lola. Tal como Noel, tambem parodiou 0

estilo operistico, como no caso da marchinha "Ride palha­

~o", que compos em 1934. Ary Barroso fez parte dessa gera~ao de compositores

e criou tambem urn repert6rio musical variado, de mar-.,.

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chinhas carnavalescas a sambas exuberantes no feitio de "Aquarela do Brasil". Apesar de normalmente reconhecido como 0 autor de "Aquarela", e sua imagem por conta disso ser associada ao samba-exalta~iio, Ary compos varias outras modalidades de samba que fogem a esse modelo. A lingua­gem coloquial de "Camisa amarela", por exemplo, musica de 1939, contrasta visivelmente com "Aquarela", como ve­

mos na letra:

Encontrei 0 meu peda~o na Avenida De camisa amarela Cantando a Florisbela, oi A Florisbela Convidei-o a voltar pro! casa Em minha companbia Exibiu-me urn sorriso de ironia E desapareceu no turbilhiio da Galeria ( ... ) Voltou as 7 horas da manhii Mas, s6 na quarta·feira Cantando a Jardineira, oi A Jardineira Me pediu, ainda zonzo, Urn copo d'agua com bicarbonato Meu peda~o estava ruim de fato Pois caiu na cama e nao tirou nem 0 sapato ( ... ) o meu peda~o me domina, me fascina, Ele e 0 tal Por isso nao levo a mal Pegou a camisa, a camisa amarela Botou fogo nela , Gosto dele assim Passada a brincadeira Eleepramim (Meu Senbor do Boniim)

A musica de "Camisa amarela", com transi~oes harmoni­cas complexas e uma linha mel6dica elaborada, se adapta plenamente a tematica. AIem da pros6dia perfeita - 0 acen­to da melodia coincide sempre com 0 da letra -, a linha mel6dica e marcadamente ascendente sempre que os versos reproduzem os refriios carnavalescos ("A Jardineira" e "A Florisbe!a") cantados pelo foliiio que e 0 protagonista. 0 pro­cesso de composi~iio de "Camisa amarela", artesanal e cri­tico, evoca 0 que mais tarde vai caracterizar a bossa nova.

2.4 Os anos 1950, 0 samba-can~ao e outros sambas

o infcio dos anos 1950 foi marcado pe!a diversidade na cria­~iio de sons populares no Brasil. Por urn !ado, a forte sen­sibilidade nacionalista, caracteristica de compositores e in­terpretes que iniciaram suas carreiras nas decadas de 20,

de 30 e de 40, como e 0 caso de Ary Barroso e Araci de Almeida, pas sou a conviver com 0 gosto de novos musicos e cantores pelas can~oes norte-americanas de Cole Porter, George Gershwin e tantos outros, e tambem pelo estilo in­terpretativo do brasileiro Dick Farney, que, em sua estada nos Estados Unidos, em 1946, fez contatos e se apresentou com musicos americanos importantes, como Nat "King" Cole, David Brubeck e Bill Evans. 0 samba, desde 0 periodo modernista simbolo de brasilidade por excelencia, pas sou a admitir cada vez mais subcategoriza¢es, que viio 90 sam­ba-can~ao surgido nos anos 20 ao sambabJue, denomina~iio pejorativa cunhada por criticos de vies nacionalista para de­signar uma modalidade de samba que creditavam a influen­cia de baladas norte-americanas e a maneira de cantar de Bing Crosby. Johnny AIf, 0 principal seguidor dessa tenden-

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cia iniciada por Dick Farney, iniciou a carreira de pianista ' ' em 1952 e integrou em seguida 0 conjunto formado pelo violonista Fafa Lemos, apresentando-se na boate Monte Carlo. Tambem nesse anD gravou seu primeiro disco, De ci­garro em cigarro, com Luis Bonfa.

A recep~ao da musica popular tornou-se cada vez mais segmentada, pois se 0 publico do samba considerado tra­dicional continuou fiel ao estilo, havia audiencia tambem para as diferentes estiliza~5es do samba, e urn largo espec­tro da popula~ao absorvia os ritmos regionais, tanto nacio­nais quanto estrangeiros. 0 baiao, por exemplo, criado por Luis Gonzaga nos anos 40, foi recriado em 1952 por Hum­berto Teixeira com a composi~ao "Kalu", interpretada por Dalva de Oliveira. As can~5es regionais do Centro-SuI, como a moda caipira, mantiveram seu publico cativo, 0 que nao impediu a entrada no pais da guarania paraguaia e do bole­ro mexicano.

Alguns compositores e interpretes que mais tarde se tor­naram importantes no cenario musical iniciaram suas car­reiras no inicio dos anos 50. E 0 caso de Tom Jobim, que come~ou a trabalhar como pianista de boate, e em 1952,

junto com Radames Gnattali, tornou-se arranjador na Con­tinental. Foi tambem nesse momento que Tom comp6s as suas primeiras musicas, como 0 samba-can~ao "Incerteza", com Newton Mendon~a. Em 1953, Tom Jobim e Billy Blanco escreveram "Sinfonia do Rio de Janeiro", de cuja grava~ao participaram varios musicos. Em 1954, em parceria com Billy Blanco, Tom obteve seu primeiro sucesso, "Teresa da praia", gravada nit Continental naquele mesmo anD por Dick Farney e Lucio Alves, com acompanhamento de Tom e seu con junto e coro.

Ant6nio Maria foi figura marcante no cenario carioca desse periodo. Alem de programas de televisao e radio em que atuava desde 1951, exercia as atividades de compositor, roteirista de shows e espeta:culos de revista e, principalmen­te, jornalista, pois foi um importante cronista das noites da boate Vogue, que apresentava grandes nomes da musica po­pular e reunia a boemia da Zona SuI. Como compositor, des­tacou-se com 0 samba-can~ao "Ninguem me ama", parceria com Fernando Lobo, interpretado por Nora Ney em 1952.

Nora Ney, que criou urn estilo sofisticado e dramatico de interpretar sambas·can~5es, lan~ou seu primeiro disco em 1952, depois de cantar em boates do Rio. Dolores Duran fez um percurso semelhante, embora se destacasse tambem como compositora.

Outra figura marcante foi Ary Barroso, que, ja conhecido como pianista e compositor desde as decadas de 20 e de 30,

manteve seu prestfgio na decada de 50. Ary tfnha em co­mum com Ant6nio Maria a versatilidade, atuando como mu­sico, locutor esportivo e ativista sindical, entre outras ati­vidades. Contraditorio, comp6s em 1952 0 samba-can~ao

"Risque", depois de passar anos atacando esse estilo musical por considera-Io urn estrangeirismo no samba. Em 16 de mar~o de 1953, a frente de uma delega~ao de dirigentes da Sbacem, teve um encontro com GetUlio Vargas no Palacio do Catete. Comemorou seus 50 anos em 1953 com urna grande festa em sua casa, a qual compareceu, entre outras pessoas conhecidas, 0 enta~ ministro da Justi~a, Tancredo Neves.

Algumas cantoras tiveram forte presen~a no periodo. Eli­sete Cardoso, por exemplo, conhecida desde os anos 40, fez sua estreia na televisao no inicio da decada seguinte em pro­grama de Ary Barroso. Angela Maria, com urn estilo de in-

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terpreta~iio diferente do de EJisete, mais operistico, e no inf­cio muito influenciada por Dalva de Oliveira, atuava numa pauta mais popular e tomou-se a grande cantora do radio dos anos 50. Seu primeiro sucesso foi em 1952 com a grava­~iio do samba "Niio tenho voce", de Paulo Marques e Ari Monteiro. Foi-lhe conferido 0 titulo de Rainha do Radio em 1954 e, segundo reza a lenda, 0 presidente Getl1lio Vargas a apeJidou de Sapoti, em referencia it do~ra de sua voz e it sua cor.

Varios cancionistas da epoca se aventuraram pelo samba­can~iio, mas a figura paradigmatica como compositora - e cantora - do genero e sem dlivida Dolores Duran. Carlos Lyra, em entrevista (A MPB em discussiio), a ve como "uma pre­cursora importantissima da bossa nova". A primeira vista, a observa~iio pode causar estranheza - nada menos cool e contido do que a voz embargada da cantora Dolores, ou que as imagens belas, mas derramadas, de algumas letras da cancionista Dolores, como estes de ''A noite do meu bern": "Hoje/ eu quero a rosa mais linda que houver/ e a primeira estrela que vier/ para enfeitar a noite do meu bern." Mas na obra surpreendentemente vasta dessa artista que morreu antes dos 30 anos ha muita coisa que niio se enquadra nos padroes tradicionais da dor de cotovelo. Uma can~iio como "Fim de caso" aponta para urn tipo de relacionamento amo­roso "modemo", em que mulher e homem atuam em pe de igualdade: afinal. e a mulher que - constatando que a rela­~iio saiu da 'fase do "s6 you se voce for" para uma outra em que "ja niio temos/, nem vontade de brigar" - propoe a se­para~iio: "estou desconfiada/ que 0 nosso caso/ esta na hora de acabar". A melodia, em modo maior. que costumamos associar it leveza e it alegria, parece enfatizar que 0 fim do

caso niio e exatamente 0 fim do mundo. Em Dolores, a cen­tralidade da tematica amorosa, e dos desencontros amo­rosos, convive por vezes com uma atitude nem urn pouco rnelodramatica. Na tipologia das rela~oes amorosas de "0 neg6cio e amar" (letra musicada postumamente por Carlos Lyra), Dolores ve com identica ironia 0 machismo agressivo e a submissiio feminina: "Tern homem que briga/ pela bern­amada/ Tern mulher maluca/ que atura porrada". E quando, na rnesma letra, a cancionista fala em "amores it vista" e "amores a prazo", ja estamos em pleno territ6rio da "Teresa da praia" de Tom Jobim e Billy Blanco, que tern urn namo­rado para 0 veriio e outro para 0 invemo, e a urn passo da "Garota de Ipanema", que "niio e s6 minha/ que tambem passa sozinha". Composi~oes como essas, ou como as duas parcerias com Jobim - "Estrada do sol" e "Por causa de voce" -, configuram urn tra~o de uniiio entre 0 mundo no­tumo dos sambas-can~oes do qual Dolores e, sem dlivida; urn dos principais representantes - 0 mundo de "Castigo", "SoJidiio" e tantas outras - e 0 universo ensolarado da bos­sa nova.

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3. A desconstrudio da can~ao (mas nao da critica)

3.1 A desconstru~ao tropicalista da can~ao

o fenomeno do fim da canc;ao tern side anunciado por algu­

mas personalidades. Chico Buarque, por exemplo, em entre­

vista para a Folha de S. Paulo (26/12/2004), argumentou que

talvez a canc;ao "seja urn fenomeno do seculo 20", cuja tra­

jetoria foi assim descrita: "Noel Rosa formatou essa musica

nos anos 30. Ela vigora ate os anos 50 e ai vern a bossa nova,

que remodela tudo." 0 estilo musical do rap, segundo

Chico, seria de "certa forma uma negac;ao da canc;ao tal

como a conhecemos" e talvez "0 sinal mais evidente de que

a canc;ao ja foi, passou". Chico, ao fazer essa dec1arac;ao, pa­

rece partir do pressuposto de que se trata de urn processo

irreversivel, de que 0 momento atual e 0 da predominancia

das vozes das periferias. E se 0 fenomeno do rap the desper­

ta interesse e pelo seu significado social, e nao propriamen­

te como "artista e criador". Exc1uindo-se, portanto, desse

processo mo so por questoes geracionais e de c1asse, como

tambem por ver-se de cetta forma como discipulo de Tom

Jobim ao tomar a can<;iio como urn artesanato, Chico nao

ve outra saida senao a de "refazer da melhor maneira possi­

vel" aquilo que ja fez ao longo de sua carreira.

Apesar de nao compartilhar com Chico a visao de urn

processo irreversivel com relac;ao ao fim da can<;iio, 'concor­

do com as enfases por ele colocadas nas composic;oes de

Noel Rosa e nas posteriores da bossa nova, mostrando-as

como representativas de experiencias em que a canc;ao al­

canc;a a sua plenitude. Nos casos citados, privilegia-se no

processo de composic;ao a correspondi!ncia conceitual ent:re

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musica e letra, chegando-se mesmo a operar de maneir ' . . d a muslta a, no terreno menos nobre do "popular", com pro-: ' cedimentos metalinguisticos. Nota-se a ado<;ao dessa tecni- ' ca em "Gago apaixonado", samba de Noel Rosa de 1931 que exige do interprete a habilidade de gaguejar musicalmente, fazendo jus ao teor da letra, e em "Desafinado" (1958) e "Samba de uma nota s6" (1960), musicas de Tom Jobin! e Newton Mendon<;a que, como mencionei, se tomaram pa­radigmaticas do momento heroico de cria<;ao do estilo [bos-sa nova] por se estruturarem a partir de correspondencias perfeitas entre musica e letra, na medida em que uma e ou­tra se comentam reciprocamente.

Acredito que a forma can<;ao softeu urn abalo, no Brasil, a partir da 'Ii"opicaIia. Nao pretendo dizer com isso que a can<;ao tropicalista seja inferior as anteriores, mas que ela perde em autonomia, ja que a estetica tropicalista recorre muito a elementos visuais e performaticos e a diversas for­mas de cita<;ao, como a par6dia e 0 pastiche, sobretudo atra­Yes dos arranjos. Ao contrano, portanto, de urn disco de bos­sa nova, que por si s6 e revelador do estilo musical, perde-se muito da estetica tropicalista se a experiencia com 0 movi­mento se restringe a musicalidade. 0 'Ii"opicalismo, para ser entendido, requer nao s6 a ftui<;ao dos discos e de suas ca­pas igualmente conceituais - criadas por artistas como Ro­geno Duarte e Helio Oiticica -, como tambem a analise de seus espetaculos.

Isso nao· significa que eu entenda como perfomI<iticos apenas os espetacu.los histrit>nicos, que fazem usa de recur­sos grandiosos no palco, como fantasias, cores em profusao, coreografias e demais elementos. Joao Gilberto, com seu ter­no e gravata convencionais, nao deixa de realizar uma per­formance com 0 banquinho e 0 vioIao. E se a 'Iropicalia fez

uso de capas de discos coloridas, as da bossa nova, a cargo de Cesar Vilella, designer que se consagrou por seus traba­!hos para a gravadora Elenco, traziam desenhos geometri­cos e fotografias em alto-contraste em preto e branco. As capas de Cesar Vilella se mostravam, portanto, bastante afi­nadas com 0 estilo contido dos cantores e com 0 seu desem­penho discreto no palco. 0 que estou dizendo e que e in!­possivel entender a can<;ao tropicalista somente a partir dos seus elementos poetico-musicais, embora eles se realizem de maneira complexa, recorrendo a procedimentos intertex­tuais e dialogando, assin!, com a literatura, as artes pIasti­cas, 0 cinema e 0 teatro. E que a can<;ao tropicalista s6 se realiza completamente nao apenas atraves da voz (e de ou­tros transmissores musicais), como tambem do corpo, ja que os tropicalistas assurnem radicalmente 0 palco atraves de diversas mascaras e coreografias. A estetica tropicalista opera com urn conceito unificador, fazendo entao com que musica, letra, arranjos, imagem artistica, capas de discos, cenarios e outros elementos mantenham entre si urna cor­respondencia estreita.

Com rela<;ao aos arranjos, e in!portante observar que os instrumentos musicais utilizados atuam tambem como ale­gorias: nao e s6 a sonoridade especifica do instrumento que e relevante, mas tambem 0 que ele significa e representa no contexto em que e utilizado. Assim, ao adotar a guitarra eletrica - proveniente do rock e do ie-ie-ie - nUD;l cenano musical marcado por posi<;oes nacionalistas exacerbadas, os tropicalistas assurnem urna atitude de incorpora<;ao da cultura de massa e do elemento estrangeiro; de maneira semelliante, ao incluir violinos em suas orquestra<;oes, mos­tram-se receptivos a sonoridade kitsch nurn momento de va­loriza<;ao do conceito de born gosto introduzido pela bOssa

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nova: voz contida. violiio aaistico. percussao discreta e pal­

conu. Meu argumento. portanto. e de que a can<;ao tropicalista

nao e mais 0 artefato completo. totalmente contido na uni­

dade musica-letra. que fora a can<;ao bossa-nova. pois ela s6

se completa com elementos extemos - arranjo. interpreta­<;ao. ate mesmo capa de disco. Agora. Mum outro vies pelo qual se pode pensar a desconsttu<;ao tropicalista da can<;ao. referente ao uso de procedimentos intertextuais. Citam-se. alem de composi<;1ies que fazem parte do cancioneiro nacio­nal e estrangeiro. os mals diferentes elementos de tradi<;oes culturals tambem distintas. provenientes tanto do universo pop como tambem da "alta cultura". As cita<;1ies aparecem na propria forma de esttuturar a can<;ao. nos arranjos inusi­

tados de Rogerio Duprat para 0 LP Tropicatia ou Panis et dr­censis (1968) e ate mesmo nas performances do grupo.

Mas 0 que define a can<;ao tropicalista. alem da alegada falta de autonomia? Poderiamos come<;ar analisando ':Ale­gria. alegria". de 1967. uma das can<;oes instauradoras do movimento. Nao sao poucos os criticos que a veem como

uma can<;ao apropriada para 0 contexto do final dos anos 60. na medida em que letra e musica assumiam e comen­tavam as informa<;1ies recentes trazidas pelo rock intema­cional. como era 0 caso dos Beatles. Augusto de Campos inaugurou esse tipo de comentario ao argumentar. em co­

luna de 0 Estado de S. Paulo em 1967 (publicado posterior­mente [1968] em Balanro da bossa: antologia mtica da modema mUsica popular brasileira. p. 141). que "Alegria, alegria" apre­

sentaria. como novidade.

o imprevisto da realidade :urbana. mUltipla e fragmentaria, captada. isomorficamente. atraves de uma Iinguagem nova,

tambem fragmentaria. onde predominam substantivos-esti­Iha~os da "implosiio informativa" moderna: crimes, espa­~onaves, guerrilhas, cardinales. caras de presidentes, beijos. dentes, pernas. bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot. E 0

mundo das "bancas de revista", 0 mundo de "tanta noticia". isto e, 0 mundo da comunica~iio rapida, do "mosaico info!­mativo" de que fala Marshall MeLuhan. ( ... )

Em entrevista concedida ao Jornal do BrQS11 (10/8/85). Cae­tano Veloso diz que os tropicalistas procuravam virar tudo pelo avesso a epoca do movimento. razao pela qual nao fa­

zia sentido para eles continuar fazendo can<;oes de amor­principalmente "depois daquelas can<;1ies magistrais do

Tom" e da bossa nova. Naquele momenta em que falava. en­tretanto (meados dos anos 80). muitos anos ap6s 0 movi­mento. ele se sentia Ii vontade para fazer can<;oes de amor. embora admitisse que era "mals uma aproxima<;ao da can­<;ao do que do amor". De fato. ao longo de sua carreira. Cae­tano tern criado can<;1ies das mais diferentes modalidades.

Uma delas e de fato a can<;ao em que 0 sujeito lirico se de­clara ao ser amado ou mesmo a urn amigo numa linguagem amorosa. ou afetuosa. Na maioria das vezes Caetano toma como tema alguem que faz parte da sua vivencia pessoal ou com quem tomou contato em situa<;oes ou lugares do Rio

de Janeiro. Nesse sentido, 0 sujeito lfrico de Caetano con­trasta vivamente com a faceta dramat6.rgica de Chico Buar­que. que. como comentamos. encama diferentes persona­gens. inclusive do sexo feminino.

Uma outra modalidade de can<;ao criada por Caetano e aquela em que ele faz uso de cita<;1ies. Muitas vezes. ao ado­tar esse procedimento, ele recorre ao pastiche. numa atitu­de carinhosa com rela<;ao Ii tradi<;ao do nosso cancioneiro; outras vezes, principalmente Ii epoca do movimento tEo-

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picalista, ele aciona a par6dia, lidando mais ironicamente com 0 passado cultural. Em "Saudosismo", por exemplo, can~iio de 1969, Caetano proclama a retomada da linha dissonante inaugurada por Joiio Gilberto, admitindo que os tropicalistas aprenderam "com Joiio/ pra sempre a ser desa­finados". A maneira de urn manifesto, 0 letrista diz a que veio: retomar as experimenta~oes esteticas dos musicos da bossa nova, incomodando os ouvidos habituados a urna es­cuta convencional, ou, como diria Sousiindrade, poeta apre­ciado pelos poetas concretos e pelos tropicalistas, "desafinar o coro dos contentes". A estrutura musical de "Saudosismo" e a da bossa nova, captando 0 espirito de "Chega de sauda­de". A letra e ambigua, pois ela nos leva a crer, desde 0 ini­cio, que se trata de uma reverencia incondicional a bossa nova por parte do compositor. De fato, Caetano reverencia e homenageia JOiio Gilberto e os musicos bossa-novistas. No final, entretanto, ao pronunciar a frase "Chega de saudade", Caetano, paradoxalmente, ao mesmo tempo que alude ao titulo da can~iio de Tom e Vinicius, lembra providencial­mente que M tambem uma atitude de ruptura com rela~iio a bossa nova.

Uma outra musica que tomo como paradigmatica do ge­nero can~o-cita~iio e "Paisagem util", que Caetano Veloso compoe na fase tropicalista (LP Caetano VeJoso, 1968). 0 titu­lo inverte 0 sentido de "lnutil paisagem", composi~iio de Tom Jobim e Aloisio de Oliveira de 1964. "Inutil paisagem" e prenhe de subjetividade, dando voz a urn sujeito Jirico que se sente s6. Vejam,os a letra:

Mas praque Pra que tanto ceu Pra que tanto mar, Praque

De que serve esta onda que quebra E 0 vento da tarde De que serve a tarde Inlitil paisagem ( ... )

A inversiio completa, entretanto, da-se apenas no titulo, pois "Paisagem util", de maneira inusitada, reune os espiri­tos solar e noir, alternando poetica e musicalmente a melan­colia presente em "Inutil paisagem" com a celebra~iio do co­tidiano. A can~iio se inicia com a plena positividade dos versos:

Olhos abertos em vento Sobre 0 espa~o do Aterro

"Paisagem util" surpreende 0 ouvinte habituado com a tradi~iio poetica construtivista ao lidar com temas concre­tos - objetos e informa~oes que povoam 0 espa~o moder­nizado do Aterro do Flamengo, como os autom6veis que "parecem voar" e a "Iua oval da Esso" - de maneira intros­pectiva, fazendo jus, dessa maneira, a concep~iio de "lnutil paisagem". Mas se a interioridade de "Inutil paisagem" e cantada a partir do estilo musical da bossa nova, com ins­

trumenta~iio e interpreta~iio pequena, "Paisagem util" e uma marcha-rancho que recorre a urn arranjo exuberante com cordas e metais.

Num certo ponto do desenvolvimento da musica, natu­reza e cultura do Aterro siio contempladas -

o ceu vai longe suspenso Em luzes de luas mortas Luzes de uma nova aurora Que mantem a grama nova E 0 dfa sempre nascendo

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- para em seguida comentar 0 cenario urbano povoado de transeuntes com urn destino certo - "Quem vai ao cinemaJ Quem vai ao teatro/ Quem vai ao trabalho/ Quem vai des­cansar" -, de artistas - "Quem canta, quem canta/ Quem pensa na vida" - e flaneurs - "Quem olha a avenida/ Quem espera voltar". Neste trecho Caetano alude a Chico Buarque, nao apenas por !he imitar 0 modo de cantar, mas tambem pela sucessao de versos iniciados por "quem", os quais tra­zem a lembran<;a varias passagens de can<;oes de Chico: "Quem canta comigo/ canta 0 meu refrao" ("Meu refrao"), "Estou vendendo urn realejo/ Quem vai levar?/ Quem vai Ie­var?" ("Realejo") e, e claro, "Quem te viu, quem te yeo ..

Logo depois, tambem de maneira inesperada, no interva-10 que prepara 0 pr6ximo tema, ouvem-se acordes de bossa­nova que introduzem a passagem poetica "Os autom6veis parecem voar". A marcha-rancho e retomada em sequencia e, como que preparando a introdu<;ao do tema lunar, Caeta­no come<;a a cantar como urn interprete de boleros, soltan­do a voz e pronunciando os erres a maneira de Nelson Gon­<;alves na seguinte passagem:

Mas ja se acende e flutua No alto do ceu Ulna lua Oval, vermelha e azul No alto do ceu do Rio

o tom intimista retorna com a estrofe final. que substitui, entretanto, 0 espfrito cool e sofisticado de "Imitil paisagem" por urn reglstro kitsch, porem triste, lembrando urn circo re­tratado por Fellini: ,

Uma lua oval da Esso Comove e ilumina 0 beijo . Dos pobres tristes felizes Cora~oes amantes do nosso Brasil

"Eu sou neguinha?" (1987) e outro born exemplo do mo­do como Caetano retrabalha material alheio, infundindo ambiguidades no 6bvio. 0 ponto de partida aqui e "Eu sou negao" de Geronimo, uma afirmac;:ao inequivoca de orgulho etnico: "E ai chegaram os negros/ com toda a sua beleza/ com toda a sua cultural com toda a sua tradi<;ao ( ... ) Eu sou negao/ Meu cora<;ao e a liberdade." Caetano, trocando 0

masculino pelo feminino, 0 aumentativo pelo diminutivo e a afirmativa pela interrogativa, cria urna can<;ao em torno do tema da ambiguidade, da mulatice no sentido lato: a con­dic;:ao de estar entre, de ser 0 terceiro elemento que trans­cende as polaridades dualistas: "totahnente terceiro sexo/ totalmente terceiro mundo".

"Muito romantico" (LP Multo, 1978) e urn exemplo de puro pastiche, em que Caetano faz uma imitac;:ao carinhosa de Roberto Carlos, a quem dedica a composic;:ao. Os recur­sos ingenuos e mel6dicos das can<;oes de Roberto Carlos sao inseridos na letra e no arranjo, convivendo com 0 estilo mals cerebral de Caetano. 0 vocabulano preciosista do pri­meiro, com constru<;oes como "nenhuma forc;:a vira me fa­zer calar" ou "com todo mundo podendo brilhar no can­tico" mistura-se, no texto, com expressoes coloquiais de Caetano, como "eu nao douro pflula". A letra comenta tam­bern a musica. Urn momenta de suspensao harmonica, por exemplo, coincide com a frase "tudo 0 que eu quero e urn acorde perfeito maior", indicando equih'brio com urn duplo significado.

Gilberto Gil utiliza esse procedimento de dialogar com a bossa nova - no caso, a can<;ao "Eu preciso aprender a ser s6", de Marcos e Paulo Sergio Valle - com "Eu preciso aprender a s6 ser", de 1973. A letra da canc;:ao de Marcos e Paulo Sergio Valle trabalha 0 tema tradicional da perda-do

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objeto amado, que acarreta a necessidade de aceitar a soli­dao. Ao deslocar a posi~ao de duas palavras, "ser" e "so", Gil introduz urna postura zen, menos convencional no reperto­rio do cancioneiro popular: 0 que se impoe, diante do sofri­mento, e aprender nao a viver sozinho e sim a contentar-se com a existencia pura e simples.

A Tropicalia traz de volta as cores e os adomos rejeitados pela bossa nova, embora nao abandone 0 preto e branco, pensando urn Brasil hfbrido e cheio de contrastes, em que a voz pequena convive com os excessos vocais, com lugar tanto para 0 registro fino quanto para 0 mau gosto, tanto para 0 clean quanto para 0 sentimental e 0 kitsch. 0 Tropica­Iismo rompeu radicahnente com 0 pros em preto e branco e ao mesmo tempo 0 incorporou. Dito de outra forma, a TropicaIia inaugurou urn pros colorido, fragmentado e uni­versal, criando uma nova imagem para 0 Brasil, embora ad­mita que 0 preto e branco seja constitutivo de varios desses fragmentos. A cor local e recuperada, sem duvida, embora nao atenda a expedientes exoticos, folclorizantes. Mesmo porque 0 movimento incorpora, como prescrevia Oswald de Andrade no "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", "0 melhor da nossa tradic;ao lirica" - como as can~oes sentimentais e melodramaticas divulgadas pela Radio Nacional -, sem deixar de contemplar "0 melhor da nossa demonstra~ao modema" -, como as can~oes da bossa nova interpretadas por Joao Gilberto. Ii como se 0 receituario de Oswald, no sentido de sermos "apenas brasileiros de nossa epoca", nao se completasse sem 0 modelo de desafina~o legado pelos bossa-novistas. .

Ao reintroduzirem no cenano artistico a estetica exces­siva outrora rejeitada pelos bossa-novistas, os tropicalistas, diferentemente, por exemplo, dos musicos vinculados ao

projeto nacional-popular, que sujam as can~oes com infor­ma~oes oriundas de camadas sociais proletarias, mrais e mesmo lumpen, os musicos baianos, partindo de urn crite­rio menos sociologico e mais cultural, procuram borrar as can~oes com 0 excesso de tinta da tradic;ao kitsch M muito instaurada no pais. E nao se limitam a esse procedimento, pois instauram a ambiguidade aliando 0 clean (como 0 esti-10 de Joao Gilberto) ao sujo (como 0 dramalhiio de Vicente Celestino), 0 intimista (Nara Leao) ao extrovertido (Chacri­nha), 0 fino (a poesia concreta) ao brega (0 bolero), 0 nacio­nal (os sons regionais nordestinos) ao estrangeiro (as infor­ma~oes do rock), e assim por diante.

Urn born exemplo talvez seja uma can~ao pouco explora­da pela critica, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, lan~ada em 1968 no LP Caetano VeJoso, intitulada "No dia em que eu vim­

meembora":

No dia em que eu vim-me embora Minha mae chorava em ai Minha irma chorava em ui E eu nem olhava pra tnls ( ... ) Mala de couro forrada com pano forte brim caqui Minha av6 ja quase morta Minha mae ate a porta Minha inna ate a rna E ate 0 porto meu pai ( ... ) E quando eu me vi sozinho Vi que nao entendia nada Nem de pro que eu ia indo Nem dos sorrhos que eu sorrhava Senti apenas que a mala de couro que eu carregava Fedia, cheirava mal Mora isto ia indo, atravessando, seguindo

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Nem chorando nem sorrindo Sozinho pra Capital ( ... )

Afinada com a letra, a melodia, que lembra uma toada nordestina, e arrastada, tal como a fala de uma pessoa simples a fazer urn relata da partida. 0 arranjo conspurca duplamente a execu~ao da musica: por urn lado, Caetano provoca urn estranhamento no ouvinte ao utilizar instru­mentos extraidos do universo do rock, como 0 6rgao ele­tronico e uma percussao tipica do i~-i~-i~ dos anos 1960,

ao inves de recorrer a instrumentos "autenticamente" nor­destinos; por outro, 0 cantor e acompanhado por The Beat Boys, urn despretensioso e desconheeido con junto de i~-ie. i~ argentino. Alem de estrangeiro, 0 conjunto musical nao se propoe fazer experimentalismos musicais, como e 0 caso de Os Mutantes, dedicando-se a dar continuidade a estetica "faeil" de uma certa tradi~ao do rock. Augusto de Campos, em Bala11fo da bossa, faz uma analise instigante de "No dia em que eu vim-me embora", ao dizer que a can<;ao "versa urn tema caymmiano caracteristico - a migra<;ao para 0 Sul -, mas de urn modo diferente, sem aquele dengo de Peguet

um ita no norte ou Saudade da Bahia. A poetica de Caetano e muito menos lirica, de uma tragieidade seca e realistica, nua e crua".

Em 1972, Caetano Veloso tematiza explieitamente a tra­di<;ao maculada da musica popular na composi~ao "Drama", que Maria Bethania interpreta no LP com 0 mesmo nome. A letra tern 0 seguinte teor:

( ... ) Minha pessoa existe Estou sempre alegre ou triste Somente as emo~oes

Dramal E ao fun de cada ato Limpo no pano de prato As maos sujas do sangue das can~oes

Num procedimento inverso ao de Caetano em "No dia em que eu vim-me embora", Bethania prof ere 0 canto sobre "as maos sujas do sangue das can~oes" com uma interpreta­<;1io dramatica, ressaltada pelo arranjo sofisticado, com pia­no, cordas e metais, como se a musica fizesse de fato parte do repert6rio tradicional e nao fosse urn pastiche da tradi­eional can<;ao passional e dramatica.

3.2 0 rock e a can~ao

No inieio dos anos 70, enquanto os musicos baianos se en­contravam no exflio em Londres, desenvolveu-se aqui urna agita<;ao a que se atribuiu urn teor contracultural. Entraram em cena, nesse momento, artistas que ja haviam partieipa­do do Tropicalismo e que passaram a usar a linguagem do rock para colocar em xeque, entre outras coisas, as condi­<;oes culturais e politicas do pais que viam como opressivas.

Antes de dar continuidade a discussao, porem, fa~amos urn flashback para 0 cenario tropicalista do final dos anos 60,

para vennos a irrup<;ao inusitada dessa perspectiva con­tracultural, de certa fonna avant la lettre, na apresenta<;1io da can<;ao "13 proibido proibir", por Caetano Veloso, no III Fes­tival Intemaeional da Can<;ao da 1V Globo, em 1968. Tudo come<;ou durante a apresenta<;ao da can<;ao, a partir do pro­testo de Caetano contra a desclassifica<;ao da musica "Ques­tao de ordem", de Gilberto Gil. Caetano recebeu prolonga­das vaias da plateia. Os Mutantes, que 0 acompanhavam, continuaram tocando, de costas para 0 audit6rio, enquanto

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Caetano proferiu 0 discurso cujo teor transcrevemos em parte:

Mas e isso que e a juventude que diz que quer tomar 0 po­del'? ( ... ) Voc~s nao estiio entendendo nada, nada, nada, ab­solutamente nada. ( ... ) Eu hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival ( ... ) e faz~·la ex­plodir foi Gilberto Gil e ft!i eu. Nao foi ninguem, foi Gilber-to Gil e ft!i eul Voc~s estiio por foral ( ... ) Mas que juventude e essa? ( ... ) Voc~s silo iguais sabem a quem? ( ... ) Aqueles que foram na Rada Viva e espancaram os atoresl Voc~s niio dife­rem em nada deles ( ... ) Voc~s estilo querendo policiar a mu· sica brasileira. ( ... ) Mas eu e Gil ja abtimos 0 cantinho. 0 que e que voc~s querem? Eu vim aqui para acabar com isso! Eu quero dizer ao jUti: me desclassifique. Eu nilo tenho nada a ver com isso. ( ... ) Gilberto Gil esta comigo, para n6s acabar­mos com 0 festival e com toda a irnbecilidade que reina no Brasil. ( ... ) N6s, eu e ele, tivemos coragem de entrar em to­das as estruturas e sair de todas. E voc~s? Se voc~s forem ( ... ) em politica ( ... ) como sao em estetica, estamos feitosl ( ... )

Outra pondera~ao importante: a nova perspectiva polfti-ca foi apresentada nao apenas na can~ao em si, inspirada numa das palavras de otdem do Maio de 68 em Paris -"Ii proibido proibir" -, mas tambem na propria forma co­

mo Caetano reagiu as vaias que !he foram dirigidas. Quanto a can~ao, nao so 0 espirito da letra mostrou-se estranho as ideias polfticas hegemonicas no Brasil naquele momento -de direita e de esquerda -, como a incorpora~ao da guitar­ra eletrica, proveniente do rock, foi vista como transgressi­

va num meio caracterizado por posicionamentos nacionalis­tas e puristas, tendejltes a valorizar insttumentos acusticos. Convem observar, a proposito, que os musicos baianos, ao incorporarem em 1967 a guitarra eletrica e a batida do ie-ie-ie a sua musica, empreenderam uma mudan~a em suas

trajetorias semelhante a guinada de Bob Dylan para 0 rock em 1965. Dylan come~ou a carreira no cenario norte-ame­ricano identificado com uma estetica esquerdizante, retori­ca, voltada para urn futuro momento de liberta~ao, como exemplifica a can~ao "When the ship comes in", de 1964, em que os "inimigos" do povo sao afogados no mar numa cena a que nao faltam evoca~6es da Biblia: "como GoIias,

eles serao conquistados". No inicio de sua carreira, em 1965, Caetano Veloso com­

pos "Samba em paz", can~ao que apresenta, como "When the ship comes in", 0 espfrito evocativo de urn futuro re­dentor:

o samba vai crescer quando 0 povo perceber que e 0 dono da jogada. ( ... ) o samba nilo vai chorar mais toda a gente vai cantar. o mundo vai mudar e 0 povo vai cantar urn grande samba em paz. (LP Vellasa, Bethania, Gil)

E 0 episodio da apresenta~ao de "Ii proibido proibir" en­contra uma analogia com 0 vivenciado por Bob Dylan em 1965, no Newport Folk Festival, considerado pelos artistas e intelectuais de vies socialista como 0 templo sagradp da mu­sica folcIorica "pura", nao "comercial". Dylan introduziu a guitarra eletrica e a batida do rock em seu som, desper­

tando forte rea~ao negativa por parte dos cultores da "au­tenticidade". E foi tambem a partir desse momento que 0

discurso de Dylan passou a ser mais voltado para 0 presente

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concreto do que para um futuro ut6pico. "Mr. Tambourine Man" (1965), can~ao representativa da nova sensibilidade que Dylan desenvolve a partir desse momento, e compara­vel a 'Wegria, alegria", de Caetano (1967). Na letra de "Mr.

Tambourine Man", 0 eu lirico dirige-se a um mitico "Bo­mem do Pandeiro", pedindo-lhe uma can~ao, dizendo-lhe que ele vive nurn mundo desencantado. A rua - cenario privilegiado da musica de protesto - e agora "a antiquissi­rna rua vazia", e "esta morta demais para sonhos". 0 eu liri­co quer embarcar no "navio magico" do Bomem do Pandei­ro, e esta "pronto para ir a qualquer lugar"; diz-lhe que se ele ouvir versos ao som de seu pandeiro, e apenas "um pa­Iha~o esfarrapado" que 0 segue, que nao e digno de aten~ao, pOis "e apenas urna sombra ( ... ) 0 que ele persegue". Seu ape-10 termina com as palavras: "Que eu esque~a sobre 0 hoje ate amanhii." 0 rompimento de Dylan com a postura enga­jada dos seus primeiros discos nao podia ser mais claro.

Podemos enta~ pensar, de certa forma, a introdu~ao da guitarra e do rock naquele momento hist6rico como reve­ladora da substitui~ao de uma ret6rica ut6pica por uma estetica do aqui e agora. Este tema da conversao ao coti­diano tem muito em comum com a sensibilidade denomi­nada por Octavio Paz (em Os filhos do barro, p. 194-195) de "p6s-ut6pica", que se desenvolveria principalmente no p6s­Segunda Guerra e que questionaria profundamente a eren­~a dos "modernos" na ruptura com 0 passado e com 0 pre­sente em nome da reden~ao a ser realizada no futuro. 1sso nao significa que a'Visao p6s-ut6pica seria complacente com o estado atual das coisas, pois ela tambem se mostraria cri­tica com rela~ao ao munde atual A diferen~a e que, em vez de projetar as solu~oes para 0 futuro, a nova tendencia, pelo contrario, investiria no tempo presente, e 0 recriaria, pro-

curando recuperar, segundo Paz, os seus valores "corporais, intuitivos e magicos". E se 0 conceito de revolu~ao pres­supoe uma ruptura radical com 0 passado em nome da "or­ganiza~ao da sociedade futura", os movimentos politicos contemporaneos lidariam com a ideia mais anarquica de re­beliao, convergente com as reivindica~oes das minorias et­nicas e culturais preocupadas com a legitima~ao de suas identidades.

Uma analise arguta da diferen~a instituida pela Tropica­lia foi realizada por Flora Siisseldnd (cat<Hogo da exposi~ao Tropicalia, intitulado Uma revolUfiio na cultura brasileira [1967-1972J, p. 47), que estabelece um contraste entre a "dimen­sao coral caracterfstica da produ~ao cultural brasileira de fins dos anos 60", exemplificada com 0 canto em unissono da can~ao "Pra nao dizer que nao falei de flores", de Geral­do Vandre, em setembro de 1968, durante urn festival da can~ao promovido pela TV Globo, no Rio de Janeiro, e as en­to~oes ao estilo tropicalista. No primeiro caso, teriamos as "tentativas de produ~ao de 'frentes unicas' de resistencia, na arte e na can~ao de protesto brasileira de enta~, em seu desejo de cantar "a urna s6 voz", e de, via emocionaliza~ao e "palavras de ordem, refraos, produzir uma homogeneida­de coral e urn possivel paralelismo na a~ao coletiva". No se­gundo caso, caracterizado pela estetica tropicalista, vemos o interesse em "provocar 0 publico e expor-lhe suas cisoes, sublinhando disparidades, descompassos, trabalhalJ.do com urna multiplicidade descontinua de dic~oes, materiais, com imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamen­te e potencializam tensoes".

o fato e que, ao proceder de maneira irreverente com re­la~ao aos dogmas da esquerda tradicional, Caetano confun­diu as polaridades politicas e criou uma identidade pUblica

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inclassificavel, 0 que the angariou, segundo Flora Siissekind (em Literatura e vida literaria, p. 28), opositores a esquerda­"os estudantes" - e a direita - "os pais de familia". Assim, a linguagem ambfgua desenvolvida por Caetano mostrou-se

bastante peculiar entre os dois "fogos" da cena politica. E e importante lembrar que Caetano Veloso e Gilberto Gil fo­ram presos em 1968 como infratores da moral e dos bons costumes e nao propriamente por motivos de subversao po­litica, 0 que indica que a sua transgressao se configurou no plano cultural.

Relevadas ou nao pelos intelectuais que se notabilizaram

nos anos 60, as questoes introduzidas pela TropicaIia mati­zaram urn cenario cultural ate entao dominado por formu­la~oes nacional-populares gestadas em decadas anteriores.

Uma das novidades introduzidas foi a substitui~ao do com­promisso nacional por urna articula~o do local com 0 glo­bal, bem como a da categoria "povo" - tao cara as concep­

~oes politicas de varias tendencias ha muito arraigadas -por "massas". Outro aspecto igualmente importante foi a ado~ao de urna perspectiva pOlitica mais ampla, nao restri­ta ao sistema politico-partidario e de certa forma ligada ao universo contracultural "Parque industrial", por exemplo,

composi~ao de Tom Ze incluida no album Tropiccilta ou Pants et circensts, de 1968, e interpretada por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Os Mutantes, compartilha com a con­

tracultura a. critica a padroniza~ao criada pela sociedade industrializada. A eritiea tropicalista, tambem virulenta, confere um tom lo~al ao cenario, ao comentar 0 deslum­bramento com 0 "avan~o industrial" made in Brazl1, em que "bandeirolas" provincianas .convivem com 0 "sorriso engar­rafado", que "ja vem pronto e tabelado". Tudo muito facil: "e somente requentar e usar".

Outras composi~oes tambem se mostram representati­vas da sensibilidade contracultural, ao tecer um eomentario critico ao modelo familiar instituido pela burguesia, com alusao recorrente ao clima repressivo, repetitivo e "careta" das refei~oes nas salas de jantar. "Panis et circensis", compo­

si~ao de Caetano Veloso e Gilberto Gil, tem a letra cons­truida a partir de contrastes entre as imagens oniricas do psicodelismo - "Soltei os panos sobre os mastros no arj Soltei os tigres e os leoes nos quintais" -, com referencia

as "folhas de sonho", e a realidade da "sala de jantar", em que as pessoas s6 se ocupam "em nascer e morrer". Musi­calmente, a propria op~ao pelo rock, considerado a epoca a linguagem transgressiva por excelencia, e a interpreta~ao dos Mutantes conferem 0 eontorno contracultural a can~ao.

"Eles", de Caetano Veloso (LP Caetano VeJoso, 1968), outro exemplo de can~ao tropicalista afinada com 0 espirito da contracultura, alude a mentalidade maniqueista e a concep­

~o de tempo daqueles que se reunem "em volta da mesa" e se comportam de maneira previsivel. Assim, entre outras coisas, "eles" "tem certeza do bem e do mal", "sao todos fe­lizes durante 0 Natal", "apenas tem medo de morrer sem di­nheiro" e sempre se reportam ao "dia de amanha". Obser­

ve-se a estrofe final:

Em volta da mesa Longe da ma~a Durante 0 Natal Eles guardam dinheiro Obemeomal

Gilberto Gil, em disco do mesmo ano, apresenta a com­posi~o "Ele falava nisso todo dia", tomando tambem como tema 0 individuo inserido na fanu1ia, que, como urn auto-

mato, tende a repeti~o compuisiva:

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Ele faIava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia A heranc;a, a seguranc;a, a garantia Pra mulher, para a filhinha, pra familia FaIava nisso todo dia

Ele falava nisso todo dia Ele faIava nisso todo dia o seguro da familia, 0 futuro da familia o seguro, 0 futuro Falava nisso todo dia ( ... ) Era um rapaz de vinte e cinco anos Era urn rapaz de vinte e cinco anos Hoje ele morreu atropelado em fi'ente it companhia de seguro Ohl que futurol Oh! Rapaz de vinte e cinco anos

Em ambas as can,,6es, 0 que se discute e 0 sacrificio do presente em nome do futuro. Nao se trata, entretanto, de urn futuro utopico, redentor, mas de urn tempo que remete it seguran"a em moldes burgueses. E se analisarmos essa concep"ao de tempo it luz de Octavio Paz (Os filhos do barro, p. 190-191), veremos que ele a observa atraves de urn uni­

verso mais amplo que inclui a etica protestante, 0 espirito capitalista e as atitudes das vanguardas historicas - poli­ticas e esteticas - que pontificaram no final do seculo XIX e inicio do seculo xx. Religiosos, capitalistas, politicos e ar­tistas teriani em comum, nesse pedodo, a tendencia a pos­tergar as realiza,,6e~ para 0 futuro, 0 que implicaria fazer do presente urn eterno momento de prepara"ao para 0 dia que vira. A propria idade moderna se iniciaria, segundo Paz, com a enfase conferida ao futuro e ancorada numa concep­"ao da historia como processo linear e progressivo. Aconte-

ceria nesse momento a "coloniza"ao do futuro", empreen­dida, it maneira do marxismo, por meio da trajetoria conti­nua das classes sociais rumo ao estagio avan"ado da socie­dade industrial sem classes.

Acredito que, no caso brasileiro, iniciamos essa expe­riencia com a Tropicalia. Se a rebeliao tropicalista foi inter­rompida com a prisao de Caetano e Gil em 68 e seu exilio em 69, os musicos baianos deram continuidade, entretanto, ao gesto receptivo - e mesmo devorativo, it maneira de Oswald de Andrade -, com rela"iio as informa,,6es criadas sucessivamente pelo rock internacional, 0 reggae, 0 rap e outras sonoridades contemporaneas, cada qual correspon­dendo a urna bandeira cultural especffica. Assim, antecipan­do-se aos movimentos politico-partidarios, Gilberto Gil, nos anos 70, reafirmou a causa dos negros jamaicanos atraves da versao brasileira de "No woman no cry", de Bob Marley, e, nas decadas seguintes, enveredou radicalmente pelas va­rias modalidades da musica negra, do reggae ao soul. Caeta­no tambem se rendeu ao reggae - "Nine out of ten", de Transa (1972), e certamente a primeira can"ao brasileira a mencionar 0 reggae - e celebrou, em VeW (1984), a exube­rancia dionisiaca dos "indios e padres e bichas, negros, mu­lheres e adolescentes", "que fazem 0 carnaval" e "velam pela alegria do mundo". Assim, a sensibilidade dos musicos baianos convergiu com uma consciencia atualizada do mun­do, que substituiu a homogeneidade fundamentada no con­ceito de classe social pela representa"ao da diferen~a.

Como observa JUlio Naves Ribeiro em Lugar nenhum ou Bora Bora? Narrativas do "rock brasaeiro anos 80", os Mutantes, surgidos no contexto da Tropicalia, foram 0 primeiro con­junto de rock nacionallevado a serio por uma parte da cd­tica, que via 0 genero como entretenimento para adolesaen-

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tes. Ao contrario da Jovem Guarda, os Mutantes usavam arranjos complexos (muitos deles assinados pelo musico erudito Rogerio Duprat) e letras elaboradas, incorporando elementos da nova fase dos Beatles iniciada com 0 album Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band, de 1967. Teve gran­de impacto na participac;ao nos festivais da canc;ao, em que sua irrever~ncia irritava sobretudo os defensores de uma musica "autenticamente" brasileira. Com 0 fun do Tropica­lismo e 0 exilio de Caetano e Gil, por alguns anos 0 conjun­to continuou mantendo vivo 0 espirito anarquico do mo­vimento. Em 1970, sua regravac;ao de "Chao de estrelas", classico de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, foi recebida "como uma provocac;ao ao establishment da MPB", observa Ribeiro.

Retomando 0 tema da gerac;ao que comec;a a pontificar no cenario artistico do inicio dos anos 70, conhecida como "p6s-tropicalista", podemos dizer que ela atualizou a lingua­

gem do rock para as condic;oes locais, num momento -p6s-Ato Institucional n° 5 - de repressao cultural e politi­ca. Sem pretender fazer urn levantamento exaustivo de no­mes que se encaixam nesse tipo de sensibilidade, poderia citar, s6 a titulo de exemplo, os letristas e poetas Waly Salo­mao (a epoca Waly Sailormoon), Capinam, Torquato Neto e os musicos Jards Macale, Raul Seixas, Sergio Sampaio e Luiz Melodia. Jards Macale e Waly Salomao criaram em parceria "Vapor barato", rock de 1970 que se tomou emblematico do estado de espirito do momenta e foi gravado por Gal Costa no LP Gal a todo vap.or, de 1972. Prefiro comentar, no entan­to, uma composic;ao menos conhecida da dupla, intitulada "Mal secreto":

Nao choro Meu segredo e que sou urn rapaz esforc;ado

Fico parado, calado, quieto Nao corro, nao choro, nao converso Massacro men medo, mascara minha dor Jii sei softer Nao preciso de gente que me oriente Se voc~ me pergunta: "como vai7" Respondo sempre igual: "tudo legalJ" Mas quando voc~ vai embora Movo meu rosto no espelho Minha alma chora Vejo 0 Rio de Janeiro Comovo, nao salvo, nao mudD Meu sujo olho vermelho Nao fico parado, nao fico calado, nao fico quieto COITO, choro, converso E tudo mais jogo num verso Intitulado Mal Secreto (LP Jards MacaU, 1972)

A sujeira tematizada nesse momenta ja nao e contrapos­ta a Jimpeza burguesa em termos de classe social: 0 que se releva aqui e 0 plano do comportamento. 0 que est:l. em jogo e 0 "sujo olho vermelho" de quem ja sabe "softer", sem afinidades com 0 olho inexpressivo do careta. Na gravac;ao do disco de Macale, os instrumentos utilizados para 0 arran­

jo - baixo eletrico, violao e bateria - mant~m sintonia perfeita com a tematica gauche de "Mal secreto", que, niio por acaso, e concebida como rock. 0 violao e tocado por

Jards Macale e 0 baixo eletrico por Lanny Gordin, que cos­tumava manejar a guitarra a maneira de Jimi Hendrix. Ma­cale articula a letra destacando sua pros6dia perfeita, e 0

arranjo primoroso faz uma especie de comentario paralelo: assim, quando Macale canta 0 verso "Vejo 0 Rio de Janeiro", o ritmo de rock e substituido momentaneamente pela ba­tida da bossa nova, numa clara alusao a associac;ao entre a

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cidade e 0 estilo musical. Essa breve evoca<;ao da bossa nova tern 0 efeito de contrastar 0 clima solar da velha escola do barquinho e da praia com 0 clima notumo e depressivo do rock p6s-tropicalista; e 0 "morro" da paisagem carioca can­tada em tantos dl:ssicos bossa-novistas aqui se alterna com a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verba "morrer".

Jards Macale foi urn dos mais importantes "malditos" do chamado periodo p6s-tropicalista, que foi analisado por Pau­lo Henriques Britto (em ''A tematica notuma no rock p6s­tropicalista", no livro Do samba-can~ilo d tropicalia, organiza­do por Paulo Sergio Duarte e Santuza Cambraia Naves). Em seu artigo, Britto observa que, nos anos que se seguiram a promulga<;ao do AI-5, a prisao e 0 exilio de varios nomes im­portantes da MPB, alguns dos artistas ligados a Tropicalia ou por ela influenciados produziram uma musica que combi­nava urn certo ethos contracultural (0 impacto das imagens do festival de Woodstock ainda era recente) com urn tom de desespero e asfixia, retomando toda urna tematica associa­da ao samba-can<;ao - fim de noite, fim de caso, solidao -, acrescida de alguns ingredientes novos: loucura, exilio, im­potencia. 0 disco de estreia de Macale, lards Macalli (1972), e talvez 0 mais perfeito representante do genero, contendo urn punhado de can<;oes que captaram muito bern 0 clima do momento. AIem de "Mal secreto", comentada anterior­mente, podemos citar tambem "Meu amor me agarra &

geme & trerrie & chora & mata" e "Movimento dos barcos" (ambas de Macale e Capinam), "Vapor barato" (de Macale e Waly Salomao), e uma can<;ao do estreante Luiz Melodia, "Farrapo humano". Na sua carreira subsequente, Macale as­sumiu outras personae bern diversas da que representou nes-

se perfodo, tendo inclusive revitalizado 0 samba de breque, genero celebrizado por Moreira da Silva, 0 Kid Morengueira (Macalli canta Moreira, 2001). Melodia, que pouco depois lan­<;aria seu album de estreia, Luiz Melodia (1973), viria a afir­mar-se como urn cantor e cancionista notavel, combinando informa<;oes do samba de morro (ele foi criado no morro de Sao Carlos, no Rio de Janeiro) com elementos de samba-can­<;ao, rock e soul music, manifestando uma personalidade exuberante que nada tinha a ver com 0 r6tulo de "maldito". Por outro lado, Sergio Sampaio, outro nome importante do perfodo, jamais conseguiu libertar-se da imagem de "maldi­to", e apesar do talento revelado em seu primeiro album solo (Eu quero Ii botar meu bloco na rua, 1973), sua carreira nao chegou a decolar. Sergio havia sido lan<;ado em disco em 1971 por Raul Seixas, nurn album "ma1dito" sob mais de urn aspecto, mal divulgado e mal distribufdo, intitulado Socieda­de da Gril-Ordem Kavernista apresenta Sessilo das 10 (do qual par­ticiparam tambem Edy Star e Miriam Batucada). Em 1973, Raul tomou-se nacionahnente conhecido com 0 sucesso de "Ouro de tolo", em que adota urn estilo de cantar influen­ciado pelo de Bob Dylan; a partir daf, assumindo a persona do "maluco beleza", uma versao menos noturna do "maldi­to", tomou-se urn dos principais nomes do rock brasileiro dos anos 70. 0 outro nome central do rock do periodo e 0

da paulista Rita Lee, que fizera parte do conjunto Os Mutan­tes. Com uma nova banda, chamada Thtti Frutti, Iqta lan­C;OU urn dos discos fundamentais do rock do perfodo, Fruto proibido (1975). Mais para 0 final da decada, ja com novo par­ceiro, Roberto de Carvalho, a musica de Rita Lee afasta-se gradativamente do rock, assumindo urn tom mais pop, em can<;oes que, com suas letras bem-humoradas e maliciosas

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e seu ritmo danc;ante, mais de um critico ja comparou as marchinhas cariocas classicas: "Lan~a-perfume" e "Caso se­rio" (ambas de 1980) sao dois bons exemplos dessa fase de sua produ~ao.

A gera~ao 70 da continuidade a maneira tropicalista de desconstruir a can~ao. Alem das experimenta~oes formais empreendidas por seus compositores, alguns deles, como Luiz Melodia, se notabilizaram pelas performances no pal­co, 0 que mostra a proximidade tanto com a tradi~ao do rock quanto com a Tropicalia. Esse tipo de atua~ao foi res­ponsavel pelo vinculo que Luiz Melodia e Jards Macale es­tabeleceram com !tamar Assump~ao, musico da chamada "vanguarda paulista", tendencia que teve como nomes cen­trais ltamar Assump~ao e Arrigo Barnabe. Um dos albuns mais importantes do grupo e Clara Crocodl1o (1980), que com­bina elementos de musica erudita - atonalismo e dodecafo­nismo - e arranjos requintados com a sensibilidade pop das revistas de quadrinhos. Outro nome importante associa­do ao movimento e 0 de Luiz Tatit, music610go e cancionista que fundou em 1974 0 Grupo Rumo. Numa serie de albuns bem recebidos pela critica mas de escasso sucesso comer-. cial, 0 Rumo explorou de forma criativa 0 potencial musical contido nos ritmos e nas modula~oes da fala brasileira.

Ainda que nao chegasse a configurar-se como um mo­vimento, 0 chamado Clube da Esquina foi uma tendencia da musica popular brasileira com caracterfsticas pr6prias. 0 grupo surgiu em Belo Horizonte, em torno de Milton Nasci­mento; seus principais nomes sao Wagner Tiso, Fernando Brant, Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura, LO Bor­ges e Marcio Borges. Carioca criado no interior de Minas, Milton teve uma forma~ao 'musical ecletica em que entra­ram 0 rock dos Beatles e ritmos hispanicos, musica de igreja

e temas folcl6ricos mineiros, alem da bossa nova e 0 samba. possuidor de uma das vozes mais marcantes entre os voca­listas masculinos de sua gera~ao, destacou-se inicialmente no Festival Internacional da Can~ao de 1967 como interpre­te e autor (em parceria com Fernando Brant) de "'fravessia". Nos anos 70, Milton e seus companheiros de grupo grava­ram uma serie de albuns bem recebidos pela crftica, que considerava suas melodias ricas e seus arranjos requintados. Os ritmos variados e letras que celebravam recantos de Mi­

nas evocavam um certo clima contracultural e ao mesmo tempo protestavam contra 0 momenta politico opressor que opals atravessava. Em 1972, 0 album duplo de Milton Clube da Esquina, assinado tambem por LO Borges, consolidou a importiincia dessa vertente da MPB.

Mais conhecida nos redutos alternativos do que pela grande mldia, Angela Ro Ro surgiu no cenario musical em 1979, como compositora, instrumentista (piano) e cantora. Fiel, em grande medida, ao esplrito incorporativo dos musi­cos populares brasileiros com rela¢o ao repert6rio legado pela tradi~ao, Ro Ro selecionou parte desse repert6rio e, juntando-o com informa~oes estrangeiras, 0 recriou de ma­neira original. A partir do leque diversificado de estilos bra­sileiros, Ro Ro se voltou, num primeiro momento, para 0 samba-can~ao, de que extraiu nao apenas 0 elemento musi­cal, mas tambem sua ambiencia de fossa, de dor de cotove-10. Em termos musicais, recriou Dolores Duran; em termos mais amplos de forma~ao de uma atitude, Ro Ro reencarnou Maysa, atualizando 0 perfil maldito que a cantora de olhos verdes penetrantes e corpo volumoso exibia nos anos 50 em uma versao gay. Alem do samba-can~ao, inclui com a mes­ma familiaridade 0 jazz, 0 blues e suas deriva~oes, como 0 rhythm 'n' blues e 0 rock ao estilo Janis Joplin, incorporando

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tambem a esta mistura a dramaticidade da chanson ftancesa de Jacques BreI e da musica de caban~ alemii de Kurt WeilL Ao desenvolver esse estilo, Ro Ro passou a prenunciar urn certo estilo de rock brasileiro que vai se desenvolver na de­cada de 80 e que atualiza a sensibilidade gauche.

Esse rock, segundo Julio Naves Ribeiro, contem uma car­ga simb6lica associada a diversos mitos ligados ao contexto do rock: particularmente 0 surgimento no meio cultural, atraves da musica, de uma nova "gera~ao" com atitudes em comum e caracterizada por urn comportamento "irreveren­te" com rela~iio as gera~6es anteriores. 0 critico Tarik de Souza, na contracapa de BRock: 0 rock brasileiro dos anos 80, de Arthur Dapieve, comenta: "0 movimento que instalou Bra­silia no mapa pop, traduziu para 0 pais do carnaval punks, new waves, g6ticos e p6s-modemos num aggiomamento vo­raz que bagun~ou 0 coreto dos contentes antecedentes." Em urn breve resumo, 0 rock brasileiro dos anos 80 se inspirou nos motes do punk anglo-americano: 0 desprezo de urn apu­ro tecnoformal da musica - qualquer urn poderia consti­tuir urna banda de rock - e 0 culto antiestrelismo, de abo­li~iio da distiincia entre artista e publico. A influencia da "atitude punk" se manifestou na utiliza~iio de uma lingua­gem despojada, de estreita comunica~iio com os aficiona­dos, fosse ela politizada (anarquica) ou hedonista. Segundo interpreta~6es de epoca, 0 rock que se afirmava no Brasil rompia com as f6rmulas esteticas consideradas gastas do "rock progressivo" dos anos 70, com seus superastros e seus arranjos pesados e r,ebuscados. Os roqueiros brasileiros des­sa gera~ao, tal como suas contrapartes no rock anglo-ameri­cano, dispensavam 0 apoio. dos grandes nomes da gera~iio anterior, as estrelas da MPB, e utilizando uma linguagem mais coloquial dos jovens da epoca, seguindo os pariimetros

de informalidade que caracterizavam 0 novo rock p6s-punk e new wave.

A categoria "simplicidade" adquiriu no novo rock brasi­leiro urn sentido diferente do que tinha na bossa nova. A simplicidade bossa-nova, afirma Luiz Tatit em 0 siculo da can­fao, vern de urn processo de "triagem" de elementos formais de generos da musica brasileira e estrangeira, como 0 sam­ba, 0 samba-can~iio e 0 jazz norte-americano. Como ja vi­mos, os musicos bossa-novistas usavam urn minima de ele­mentos musicais, evitando os excessos - 0 d6 de peito, os arranjos majestosos - associados a emo~6es exacerbadas. Ja no caso do despertar dos roqueiros dos anos 80, a simplici­dade tinha a ver com a atitude punk de valorizar 0 precario e improvisado, uma vez que muitos dos musicos ainda nao tinham muita competencia tecnica como instrumentistas. A ideia era aproximar-se do "publico jovem", enfatizando urna poetica simples, valorizando "mensagens" diretas e 0

"pulso", mais do que melodia e harmonia, reduzida aos dois ou tres acordes basicos do rock. Nesse discurso, pobreza for­mal e urn valor positivo e niio uma deficiencia.

Segundo Ribeiro, no periodo 1985-86, marcado pelo fes­tival intemacional Rock in Rio, pelo investimento de gra­vadoras e radios FM no rock brasileiro e pelo sucesso da ban­da RPM, 0 rock perdeu seu aspecto amador e surgiu urn racha entre os roqueiros: de urn lado, alguns continua­ram fieis a atitude do "fa~a voce mesmo", enquanto outros compraram 0 discurso da "evolu~iio" e foram se sofistican­do musicalmente. Estes, ao "evoluir", foram naturalriJ.ente aproximando-se da MPB, niio no sentido de "resgatar" urna musica "autenticamente" nacional, mas sim, pelo contrario, recorrendo a combina~6es da MPB com musica estrangeira, tal como, duas decadas antes, haviam feito os musicos liga-

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dos ao movimento tropicalista. Assim, por exemplo, Cazuza em "Brasil" faz uma leitura por inversao da "Aquarela do Brasil" de Ary Barroso, nurna postura antiufanista, de de­nlincia; e em "Faroeste caboclo", a Legiao Urbana utiliza, nurna balada "a maneira do folk rock americano" como as de Bob Dylan, elementos pros6dicos dos repentes nordesti­nos. Mas 0 ponto ressaltado por Ribeiro que mais nos inte­ressa aqui e 0 aspecto critico das can<;oes do "rock anos 80". o seu argumento e de que, pelo fato de incorporarem di­ferentes tradic;oes culturais, os roqueiros "anos 80" operam a maneira das praticas consideradas "modemistas" e, prin­cipalmente, "p6s-modernistas": eles levam as Ultimas con­sequ~ncias 0 procedirnento de dialogar corn os textos lega­dos por diferentes repert6rios culturais e corn a cultura de massa, e criticam a postura das vanguardas hist6ricas do inicio do secuJo XX Una sua obsessao pela ideia de ruptura". o dialogo mencionado corn tradic;oes diversificac;las inclui, segundo Ribeiro, 0 recurso a citac;oes musicais, literarias ou cinematograficas: assim, Cazuza, na composic;ao "S6 as rnaes sao felizes", cita figuras consideradas "malditas" no mundo artistico: Lou Reed, Luiz Melodia, Allen Ginsberg e Rirnbaud. Na Legiao Urbana, Renato Russo faria 0 mesmo ern "Eduardo e Monica", ao descrever 0 gosto do persona­gem feminino por "Bandeira, Bauhaus [que perrnite urna dupla leitura, remetendo tanto a escola construtivista ale­rna, que inaugurou a concepc;ao de design modemo, quanto ao con junto 'inglt!s p6s-punk da decada de 801, Van Gogh, Mutantes, Caetano e Rirnbaud".

Assirn, algumas baudas de rock dos anos 80, como Barao Verrnelho (e Cazuza ern sua carreira solo), Legiao Urbana, Titas e Paralarnas do Sucesso, adotaram algumas das prati-

cas caracteristicas da MPB, e desse modo alcanc;aram maior respeitabilidade critica e urn publico mais diversificado. Ja os que perrnaneceram atrelados a urna estetica e atitude es­tritamente roqueiras - como Ultraje a Rigor e Joao Penca & Seus Miquinhos Amestrados - ficaram restritos ao nicho roqueiro.

Ainda segundo JUlio Naves Ribeiro, 0 rock brasileiro co­mec;ou no final dos anos 50, corn as gravac;oes da dupla de irrnaos Celly e Tony Campello. Ern particular, duas versoes de canc;oes estrangeiras, "Banho de lua" e "Esrupido Cupi­do" - urn rock italiano e urn norte-americano, respectiva­mente -, tiveram enorrne sucesso. Mas foi s6 ern meados dos anos 60 que 0 rock nacional se firrnou como gt!nero musical, corn 0 fenomeno da Jovem Guarda. 0 r6tulo vern do nome de urn programa de televisao que divulgava os ar­tistas ern questao: Roberto Carlos (0 principal representan­te do grupo), Erasmo Carlos, Jerry Adriani, Ronnie Von, Car­los Imperial e Wanderlea, entre outros. Embora gravassem covers de rocks estrangeiros no inicio, aos poucos foram criando urn repert6rio pr6prio, corn destaque para a dupla Roberto-Erasmo: eram canc;oes que falavam dos mesmos temas que os rocks importados - namoros, autom6veis, travessuras adolescentes -, mas continham refert!ncias bra­sileiras. Ribeiro observa que, apesar do sucesso que conquis­taram, principalmente entre as camadas de menor poder aquisitivo, os musicos da Jovem Guarda eram tachados de "alienados" pela parcela mais politizada da juventude de classe media que venerava os grandes nomes da MPB.

Nos seus melhores momentos, a dupla Roberto-Erasmo e responsavel por algumas criac;oes que se tomaram classicos do nosso cancioneiro, atualizando motivos atemporais tJa

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musica popular. Em "Detalhes", urn tema caracteristico do samba-can~ao tradicional - 0 fim de caso - e revisitado com marcas caracterfsticas do presente (infcio dos anos 70):

Se urn outro cabeludo aparecer na sua rna E isto !he trouxer saudades minhas, a culpa e sua o ronco baru!hento do seu carro A velha cal~a desbotada ou coisa assim Imediatamente voc~ vai lembrar de mim

Nas can~oes de Roberto e Erasmo, chama a aten~ao tam­bern a utiliza~ao agil e precisa da linguagem coloquial dos jovens de classe media de seu tempo. Em "Se voce pensa", por exemplo, a irrita~ao com a pessoa amada e expressa nao apenas pelo teor dos versos, como tambem pela melodia in­sistente, em modo menor, em que cada estrofe culmina nurn enfatico "nada": "seu orgulho nao valel nada! nada!". Dentro da modalidade amor-e-raiva a obra-prima da dupla e "Sua estupidez," urna can~ao magistral que con juga uma melodia delicada, quase eterea, com uma letra em que pa­lavras e expressoes agtessivas sao utilizadas para expressar arnor: "use a inteligencia uma vez s6", "quantos idiotas vi­vern s61 sem ter arnor", "sua estupidez nao!he deixa ver que eu te arno". Com can~oes como essas, Roberto Carlos conse­guiu gtanjear, ao lado da imensa popularidade junto ao gtande publico, 0 respeito dos consumidores mais exigen­tes de musica popular.

3.3 A Soul music no. Brasil e outras negritudes musicais

Os anos 1960, no Brasil, foram marcados pela diversidade musical. Concomitantemente com a MPB, por exemplo, que apostava na ideia modernista das tres ra~as, surgirarn nessa mesma decada sensibilidades mais negras que mesti~as,

como e 0 caso de Jorge Ben (atual Jorge Ben Jor), que lan~ou em 1963 0 LP Samba esquema novo (Philips). Este disco inaugu­rou 0 procedimento do musico, presente em toda a sua tra­jet6ria, de aludir ao universo negto em termos poeticos e musicais. As letras, de maneira recorrente, comentam as ori­gens africanas da tradi~ao com a qual Jorge Ben se identifi­ca, evocando, entre outros elementos, entidades do candom­ble e santos cat6licos apropriados pelos negros. Sao Jorge e o santo mais citado nas composi~oes de Jorge Ben, 0 que tern aver, alem do sincretismo religioso, com 0 fato de se­rem homonimos. Quanto a musicalidade, Jorge Ben cria urn samba estilizado que alguns crfticos, a epoca, c1assificam como samba-rock. Armando Pittigliani, 0 produtor do disco, fala na contracapa, com bastante conhecimento de causa, sobre a maneira percussiva de Jorge Ben usar 0 violao:

o samba de Jorge Ben, da batida de seu violiio a linha mel6-dica e letra de suas composi~oes, revela urn novo caminho nos horizontes de nossa musica popular. ( ... ) Seu inato talen­to musical proporcionou-Ihe descobrir uma nova puxada para 0 nosso samba, fazendo do violiio urn instrumento, so­bretndo, de ritrno. Na sua batida tanto se destaea 0 baixo como 0 desenho rftmico de sua pontna~iio na maneira toda sua de tocar. Urn exemplo disso e 0 fato de varias faixas des­te disco niio contarem com 0 contrabaixo na orquestra~o. Somente 0 violiio de Jorge ja da a necessaria marca~o dis­pensando, portanto, aquele instrumento de ritrno. 0 balan~o do acompanhamento repousa quase sempre no seu violiio.

Nos anos 1970, Tim Maia introduziu no Brasil, de manei­ra idiossincratica, 0 estilo soul music. A can~ao "Primavera" (Tim Maia, 1970), de autoria de Cassiano e Silvio Rochael, tornou-se a trilha sonora do verao de 1970. Se 0 tema da le­tra segue os cliches das can~oes sentimentais, a interpre1;a­~ao de Tim Maia, assim como 0 arranjo, congruente com 0

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espfrito soul. causou a impressao de que algo inusitado te­ria acontecido com a musica popular no Brasil. Depois da experiencia inaugural de Tim Maia. apareceram outros mu­sicos e grupos musicais no Rio e em Sao Paulo responsaveis pelo surgimento da black music (expressao usada it epoca para designar os grupos de soul music. ou funk) no Brasil. como Gerson King Kombo. Toni Tornado. e as bandas Dom Salvador e Grupo Aboli~ao e Black Rio. Esta ultima formou­se em 1976 e trouxe como novidade a fusao do samba com o soul e 0 jazz. alem de contar. como argumenta Jose R0-berto Zan em artigo sobre a banda Black Rio para a revista ArtCultura. com instrumentistas e arranjadores experientes.

Constituidos preferencia1mente por musicos que profes­savam a ideologia dos movimentos de afirma~ao da cultura negra. esses grupos orientavam-se pelo lema black is beautiful e pelas interpreta~oes virtuosfsticas de cantores norte-ame­ricanos como James Brown. Marvin Gaye. Isaac Hayes e gru­pos como Earth. Wind and Fire e Commodores. que criavam ritmos basicamente dan~antes. Essas forma~oes musicais eram responsaveis pela realiza~ao dos bailes funk que reu­niam milhares de pessoas em c1ubes. como 0 Renascen~.

no bairro carioca Andaraf. e quadras de sub11rbios. Ao longo dos anos 1970 Jorge Ben come~ou. aos poucos.

a fazer uso do soul. de inicio incorporando-lhe a orquestra­¢o e a tematica do "orgulho negro". Ja em 1970 ele lan~ 0

disco Negro € lindo; em 1978. abra~a 0 soul definitivamente. no LP A banda· do Z€ Pretinho. e no ano seguinte reafirma essa tendencia com 0 album Salve simpatia. Em show de Jorge Ben de 1982. intitulado Energta. realizado no Teatro Fenix e pro­duzido e gravado pela TV Glc;>bo. Tim Maia subiu ao palco e cantou com ele a musica "Lorraine". E mais de uma decada

depois. em 1993. quando 0 nome do compositor ja havia mudado para Jorge Ben Jor. na letra de "Mo~a bonita". do disco 23 Jorge Ben Jor (Warner Music). Jorge. nao por acaso. c1amava por Tim Maia.

Com a sua chegada ao Brasil. a soul music introduziu no cenano cultural questoes relativas ao movimento dos direi­tos civis dos negros norte-americanos. 0 leitor poderia in­dagar como eu encontraria indfcios de posicionamento po­litico num tipo de musica que. ao contrano da tradf~ao das protest songs. ou da chamada "can~ao engajada" brasileira. que confere proeminencia it mensagem contida na letra. caracteriza-se. de maneira diferente. pelo ritmo dan~ante e pelas letras cujo teor festivo. na maioria das vezes. passa longe da reflexiio politica. E eu responderia dfzendo que. df­ferentemente dos compositores de can~oes de protesto. que utilizam 0 discurso. os musicos soul passam 0 seu recado atraves da "atitude" assumida. ao utilizarem nao apenas 0

som associado it cultura negra. mas tambem os seus signos: o cabelo no estilo black power; a indumentaria com cami­sas estampadas. cordoes prateados no pesco~o e ca1~s boca de sino; e a uma coreografia que recorre muitas vezes a uma dan~a em grupo com movimentos sincronizados.

Mas 0 fato e que se criou. com 0 advento da cultura soul. uma polemica em torno do conceito de "autenticidade". Para os criticos musicais de vies nacionalista e defensores da ideia de MPB. um estilo musical originario do triiingulo racial que constituiria a brasilidade. a ado¢o por musicos locais de urn ritmo estrangeiro revelaria uma especie de macaquea~ao da cultura musical do Tio Sam e uma perda das verdadeiras referencias brasileiras. Jose Roberto Zan. em artigo citado. referiu-se it associa~ao da estetica da banda

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Black Rio. pelos criticos que se orientavam pelo projeto na­cional-popular. a urn posicionamento que incorreria numa especie de "colonialismo cultural"_

Foi a partir dessa discus sao que os fundamentos moder­nistas da critica musical perderam a sua hegemonia e passa­ram a concorrer com urna proposta cultural que fortalecia o elemento negro e. em muitos casos. negava 0 postulado da rniscigena<;ao. E foi tambem a partir dai que os termos "autfultico" e "nacional" passaram a ser ressignificados. Na medida em que as chamadas rninorias negras passaram es­trategicamente a investir nurn conceito de na<;iio que nao se confunde com 0 Estado-na<;ao. mas com popula<;oes ne­gras e perifericas que habitam territ6rios localizados no Bra­sil e em outras regioes do planeta. ser "autentico" passou a significar assumir a identidade negra.

Talvez a musicalidade mals representativa dessa nova realidade politica seja a criada em fun<;ao do hip-hop. A no­<;ao de comunidade utilizada pelos rappers remete. num primeiro momento. as mudan<;as e atualiza<;oes por que passam alguns movimentos politicos e culturals no Brasil principalmente a partir da decada de 1980. Envolvidos em praticas de certo modo autonomas em rela<;ao ao sistema politico-partidario oriundo das institui<;oes liberals classicas. os atores sociais e culturais emergentes promovem um des­locamento do conceito de na<;ao. 0 espa<;o geografico que corresponde as fronteiras do Estado-na<;ao e substituido por um outro. ctijo limite obedece a urn corte transversal no planeta determinad? pela trajet6ria (real ou ficticia) de membros das comunidades em questiio. sejam elas etnicas. de orienta<;ao sexual. de genero etc. Por outro lado. os no­vos atores se propoem a conferir novos significados a alguns

conceitos legados pelo Ilurninismo. particularmente os de "cidadania" e "democracia". ou a ressignifica-Ios. Sonia Al­varez. Evelina Dagnino e Arturo Escobar. organizadores do livro Cultura e polftica nos movimentos sodais Jatino-americanos. afirmam no prefacio que os movimentos sociais mals recen­tes na America Latina reinterpretaram os principios da de­mocracia formal liberal. como os conceitos de democracia e cidadania e. por extensao. 0 pr6prio conceito de politico.

Sonia Alvarez. Evelina Dagnino e Arturo Escobar afir­mam. a prop6sito dessas novas praticas culturais na Ame­rica Latina:

Ii significativo que os movimentos sociais que surgiram da sociedade civil na America Latina ao longo das duas Ultimas decadas ( ... j tenham desenvolvido versoes plurais de uma cultura politica que vilo muito alem do (rejestabelecimento da democracia formal liberal. Assim. as redefini~oes emer­gentes de conceitos como democracia e cidadania apontam para dire~oes que confrontam a cultura autoritaria por meio da atribui~o de novo sigoificado as no~oes de direitos. es­pa~os publicos e privados, formas de sociabilidade. etica. igualdade e diferen~a e assim por diante. Esses processos mUltiplos de re-sigoifica~ilo revelam cIaramente defini~oes alternativas do que conta como politico.

Os rappers associam-se. via de regra. a comunidades que se fundamentam nas tradi<;oes afro-brasileiras. buscando reconfigurar a identidade negra em moldes atualizados. Es­ses atores costumam recorrer. em alguns casos. a ,urna es­trategia que Paul Gilroy denomina. em 0 Atlantico negro. de "politica de transfigura<;ao". Segundo Gilroy. esta politica orienta 0 surgimento. entre outras coisas. de um certo tipo de contracultura que. entre outras ousadias. recria sua ge­nealogia em termos criticos e morais.

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Vou tomar como primeiro exemplo Marcelo D2, urn rapper carioca que, a despeito de nao se vincular estreita­mente a sua comunidade de origem e de nao construir a sua persona artistica atraves de criterios etnicos, constitni a sua identidade musical recorrendo a uma genealogia que co­loca como ancestrais tanto os sambistas do partido-alto e repentistas quanto os musicos norte-amerrcanos do Africa Bambataa. Esse culto aos antepassados sambistas e da tradi­~ao do hip-hop e explicito em "Val vendo", composi~ao que D2 cria em parceria com Mario Caldato, terceira faixa do CD solo intitulado A. procura da batida pe/fetta, lan~ado em 2003. D2 parece buscar nesses musicos urn legado tanto musical quanto comportamental, ou uma "atitude", como se diz na linguagem dos rappers. "Samba de primeira" - faixa 6 do CD solo anterior de D2, Eu tiro e onda (1998), que (onta com a participa~ao de musicos ligados a linha bossa-novista, como Joao Donato e Dom Urn Romao, entre outros artistas vinculados a tradi~oes musicais diferentes - e urna especie de manifesto do "rap catioca", cujos autores sao Marcelo D2 e DJ Nut's. A letra presta homenagem aos sambistas do par­tido-alto, propondo a jun~ao do hip-hop com 0 samba, que preve, entre outras coisas, 0 "DJ no pandeiro".

Na humildade, CD que Nega Gizza lan~a em 2003, em mui­to contribui para a discus sao referente aos mecanismos al­ternativos de constru~oes identitarias desenvolvidas pelos rappers. Na primeira faixa do disco, intitulada "Filme de ter­ror", Nega Gizza faz urna crftica a urn aspecto do imagirui­rio modernista muito difundido entre n6s, que sustenta 0 Brasil como Estado-na¢o ("pals do futebol" e "paiS do car­naval"), enfatizando 0 aspecto das desigualdades socials e

racials:

Pais da democracia racial da mulata exporta~ao da beleza natural Brasil na~iio feliz urn pafs tropical Pafs da pedofilia, futebol e carnaval

No final da musica, dando prosseguimento a sua ava­Iia~ao critica das representa~oes grandiosas e ufanistas do pais, Gizza cita 0 "Hino da Independencia" e inverte 0 seu

significado, ao cantar:

Niio vou morrer pelo Brasil Niio vou morrer pelo Brasil Niio vou morrer pelo Brasil

Este tipo de procedimento converge com a maneira co­mo a rapper seleciona ingredientes para criar a sua persona, buscando-os, de preferencia, no repert6rio legado pela tra­di~ao negra e pelas informa~oes culturals de seu reduto de origem, a Cidade de Deus.

Urn terceiro exemplo e tornado do rap paulista, com os Racionals MC's, cujo CD Sobrevivendo no inferno traz na faixa 12 a composi~ao "Salve". Neste rap, 0 narrador e urn deten­to que salida as comunidades do outro lado do muro da pri­sao, referindo-se as regioes perifericas de Sao Paulo (Vila Calu, Branca Flor, Paranapanema, Aracati), do Rio de Janeiro (Borel, Cidade de Deus) e outros lugares, assim como "todos os DJs, todos os Me's! que fazem do rap a trilha sonora do gueto". Na faixa 1 do mesmo CD, a can~ao "Jorge da Capa­d6cia", de Jorge Ben, e interpretada na integra, traduzindo­se numa homenagem ao compositor que, como Tim Mala, representa urna especie de ancestral brasileiro do rap. Nao por acaso, Jorge Ben e Tim Mala sao reverenciados por in-

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troduzirem, cada um a seu modo, a soul music no Brasil, sendo provavel que Jorge Ben seja tambem visto como 0 in­trodutor de urn canto falado que de certo modo ja aponta para 0 rap.

Esses tres exemplos sao ilustrativos de uma perspectiva que difere radicalmente de alguns pressupostos que nortea­ram a MPB em sua constitui<;ao nos anos 1960, como 0 pro­jeto nacional-popular. Se a MPB era crftica com rela<;iio aos rumos do Estado-na<;ao, principalmente a partir do golpe militar de 1964, seus musicos, entretanto, passaram ages­ta-la no inicio da decada como uma maneira de costurar 0

Brasil atraves da musica popular. 0 ideario modernista -notadamente 0 de Mario de Andrade - de construir a iden­tidade nacional por meio da musica restringia-se ao domi­nio erudito, enquanto que os formuladores da MPB trazem esta discus sao para 0 terreno da can<;ao popular. Outra cate­goria importante para a confec<;ao da ideia de MPB e a de "povo", pensado organicamente como urna totalidade fecha­da, que coincide com as fronteiras geograficas do pais. Se os festivals da can<;ao que proliferaram em meados dos anos 60 realmente consagraram a MPB, a forma<;ao do conceito em muito se deveu as propostas e praticas artisticas do CPC (Centro Popular de Cultural, que tomavam como lema a fra­se "Ha 0 novo onde esta 0 povo".

A recorrencia dos rappers a ideia de comunidade sugere, portanto, uma redefini<;ao dos postulados e das praticas po­liticas que se fundamentam em pressupostos "modemos" herdados do Iluminismo. Recorramos aos autores citados anteriormente - Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar -, que, a proposito do que estamos discutindo, di­zem que as politicas culturais dos movimentos socials emer-

gentes sao vistas como "fomentadoras de modemidades ai­temativas". Os autores remetem a Fernando Calderon, urn dos autores do livro por eles organizado, que se refere a al­guns movimentos que pretendem ser ao mesmo tempo mo­demos e diferentes, como seria 0 caso de indios que, sem rejeitar suas identidades originais, postulam tambem con­di<;iies definidas pelos paradigmas da modernidade ociden­tal. Uma perspectiva semelhante e defendida por Anderson, musico do AfroReggae, que em entrevista (A MPB em discus­

sao) defendeu um projeto educacional para Vigario Geral, sua comunidade de origem. De acordo com a sua proposta, que converge com a da ONG AfroReggae, da qual participa, a par da transmissao dos valores locais, atraves do ensino das informa<;iies legadas pelos segmentos negros da comu­nidade, entre as quais se incluem a tecnica da capoeira e as musicalidades que se desenvolveram na area, e necessario que tambem se criem condi<;iies para que os jovens de Viga­rio Geral tenham acesso a universidade. Assim, trata-se de conciliar 0 valor conferido as tradi<;iies locais com a propos­ta, de cunho universal, de ascensao social para os jovens da comunidade.

Este tipo de projeto apresentado pela gera<;ao emergente de musicos, particularmente os rappers, apresenta, portan­to, uma natureza hibrida: ao mesmo tempo que recria ge­nealogias e valoriza fortemente a comunidade de origem e a negritude, busca incorporar esses segmentos, via informa­<;iies modemas, a nova .ordem mundial. Ii interessante ob­servar que, ao contrario da perspectiva modemista, como a de Mario de Andrade, cuja proposta e introduzir 0 Brasil, com uma identidade fortalecida, no concerto das na<;iies, 0

que aqui esta em jogo e 0 local (e nao 0 nacional) em dialo-go com 0 intemacional.

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De maneira bastante conectada com a desconstru~ao do projeto nacionalista que remonta ao Modernismo, ha entre os rappers outra pratica que merece ser considerada: a ten­dencia a dissolver a acep~ao de autor tal como foi construi­da na modernidade ocidental. 0 que se perde, nesse caso, e a figura do autor como uma especie de demiurgo, ou engenhei­ro - isto e, aquele que, utilizando a prancheta e seus ins­trumentos tecnicos, cria a obra a partir de urn projeto abso­lutamente original e a partir do nada. A propria estrutura musical do rap, 0 sampling, e significativa dessa mudan~a. Assim, a esse compromisso do artista moderno, ou "enge­nheiro", com a inova~ao constante, prefere-se a atitude de recriar e atualizar estrategicamente determinadas tradi~oes. Nao e sem razao, portanto, que os antropologos que se pro­poem a analisar 0 fenomeno musical do rap tendam a ass~ ciar 0 rapper com a figura do brico!eur, tal como desenvolVl­da por Claude Levi-Strauss em 0 pensamento se!vagem. 0 que esta em jogo, na verdade, ao se utilizar a ideia do brico!eur, e pensar 0 rap como colagem. Oriunda do Alto Mo~e~i~mo (inicio do seculo XX) e acionada pelas vanguardas hlSt~ncas, notadamente no campo das artes plasticas, com PIcasso e Braque, entre outros, a pratica da colagem inspira Levi­Strauss a criar a categoria do brico!eur, embora a colagem modernista pressuponha uma bricolagem com a participa­~ao do engenheiro, na medida em que todo artista modernis­ta, alem de apresentar urn projeto, atua simultaneamente como autor e critico de arte.

Em que pesem as semelhan~as do artista modernista ~ do rapper como brico!eurs, radicaliza-se no rap 0 procedi­mento da colagem. A propria linguagem do rap se estrutura a partir da colagem, levando 0 recurso as cita~oes do r~per­torio legado pela tradi~ao (musical, cinematografico, litera-

rio etc.) as ultimas consequencias. Ao agir dessa fonna, 0

rapper cria uma tensao entre a suposta referencialidade a realidade dura contida em sua narrativa e 0 procedimento intertextual que costuma adotar. Em Marcelo D2, esta con­duta e recorrente. No CD Eu tiro e onda, anterionnente cita­do, M procedimentos intertextuais, como na faixa 8, "0 Imperio contra-ataca" (B. Negao, z. Gon~alves, R. Nuts, M. D2, J. R. Bertrami, B. Alien, Jackson), em que sao citados fil­mes, como Guerra nas estre!as, discos, como os LPs Confron­tation, de Bob Marley (1983) e Tim Maia Raciona! (1974), bern como programas jornaHsticos, ao se referir ao noticiario da 1V Thpi, Rep6rter Esso, que foi ao ar nas decadas de 50 e 60. Nessa composi~ao, Marcelo D2 concilia tennos historica­mente colocados em antinomia, pelo menos em certas tra­di~oes artisticas dos "tempos modernos": 0 plano da refe­rencialidade, alusivo ao cotidiano nu e ern de habitantes de periferias cariocas, e 0 da intertextualidade, que remete a filmes, discos e programas de radio e 1V.

Ha outra tradi~ao do rap brasileiro que recorre a uma perspectiva mais realista, representada por MY Bill e Ra­cionais MC's. Os artistas dessa linha costumam proceder a urn tipo de descri~ao do inferno periferico das grandes d­dades brasileiras que se aproxima do Naturalismo. MY Bill, por exemplo, descreve a condi~ao "sinistra" do personagem bandido que constroi: "eu carrego uma Nove e uma HK/ com odio na veia pronto para atirar". Em "Traficando infonna­~ao", MY Bill diz: "Seja bem-vindo ao meu mundo sinistro." Numa maneira de agir semelhante, em "Periferia e perife­ria", os Radonais MC's aludem ao seu lugar de origem como urn "pesadelo periferico". E Nega Gizza, na faixa dtada, "Fil­me de terror", substitui a imagem solar do pais do futebol e do camaval por outra de tons escuros:

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Filme de terror e 0 que eu vejo Botar a chapa quente e meu desejo

Ao adotar uma narrativa supostamente naturalista, 0 nar­rador muitas vezes se coloca na posic;ao do bandido. 0 trafi­cante e humanizado, e urn "mano", mas um "mano" que su­cumbiu ao inferno das periferias.

Atraves desse tipo de construc;ao artistica, 0 rap empreen­de tambem um outro tipo de ruptura com a tradic;ao mo­derna, negando, em sua pratica, 0 postulado da autonomia da obra de arte. Ao assumir esta atitude, 0 rap aparece como urn canal que permite essa articulac;ao da arte com a vida e a construc;ao de identidades. Um bom exemplo dessa postu­ra e fornecido por Nega Gizza, que, ao ser solicitada em en­trevista na internet para mandar uma mensagem para as mulheres do rap, argumenta que nao faz parte de um gru­po feminino, mas de um grupo de rap. Na mesma entrevis­ta, define 0 rap como "a revoluc;ao dos costumes" e da "cul­tura", assim como faz apologia da ac;ao. E argumenta que 0

rap precisa ser "a voz de todos que acreditam na forc;a da transformac;ao". Em alguns casos, esse procedimento e tao radicalizado que suprime a categoria do "artista". MY Bill, por exemplo, tem declarado em varias entrevistas e em si­tuac;oes em que fala ao publico, que nao se define como artista, mas como militante.

Ii nesta pauta da militancia que muitos rappers cons­troem as suas personae artisticas. E ha casos, como 0 de Nega Gizza, em que se da a realizac;ao musical da "polftica da transfigurac;ao" mencionada por Paul Gilroy. Em "Larga o bicho" (faixa 3 do· CD Na humildade), por exemplo, Nega Gizza e Ieda Hills criam uma especie de manifesto da mu­

Iherno rap:

Nao sou mulata, nao sou mula: sou cauhao Sou a granada que explode a solidao A emo~ao nao tem limite em minha vida Nao sou metida, sou apenas atrevida Venenosa, barro duro, perigosa, corajosa. sou fonnosa, vaidosa Acelerando 0 pensamento positivo eu nao aturo conversinha de bandido Ate mesmo Nega Gizza you rimando sem neurose em zigue~zague vou versando

Essa receita de mulher, congruente com 0 cenario do rap, e descrita com aspereza, indicando que a realidade em que vivem nao permite nenhuma concessao a pieguice, a lingua­gem edu1corada e a cenarios cor-de-rosa. Assim, a palo seco, Gizza e Hills entoam 0 refrao:

Ii som de preto, meu nego Ii som de preto

As narrativas recorrentes entre os rappers analisados se conformam atraves de uma mescla de estilos: entre 0 epico e a linguagem "baixa", que incorpora as expressoes do submundo do trafico e 0 dialeto pr6prio da populac;ao fave­lada. 0 epico procura dar conta do tema das trajet6rias tu­multuadas, das dificuldades de percurso dos habitantes das periferias brasileiras que, tal como os her6is mfticos da tra­dic;ao helenica, tem de se submeter a diversas provas para alcanc;ar um objetivo; no caso, a pr6pria sobrevivencia fisi­ca e moral num meio extremamente pobre e violento. As­sim, aqueles que se destacam no inferno das nossas perife­rias, assumindo os embates com os diversos demonios que assolam esses redutos, sao heroicizados, assim como tam­bem se constroem perfis demiurgicos de supostos ancestrais que se destacaram pela bravura. ja 0 tom coloquial atua go

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sentido de impedir os excessos do epico, com a predisposi­<;ao desse estilo para 0 uso de linguagens e tons elevados. Tambem 0 recurso a linguagem vulgar acentua a cor local de cada reduto periferico, atento a sua identidade pr6pria, alem de permitir que se desenvolvam formas que con­vergem com urn referente que se pressupoe duro, ~d_verso. Criam-se, portanto, textos condizentes com a condl<;ao dos habitantes dos redutos perifericos que, segundo a interpre­ta<;ao dos rappers, oscila entre a tragedia e a festa, entre a morte e a exalta<;ao da vida, entre a Quaresma e 0 camaval,

entre 0 luto e 0 escracho. Essa forma de narrativa rap que se desenvolve em perife­

rias brasileiras em muito se distancia de urn procedimento que, a primeira vista, seria hiperrealista, ou mesmo natura­lista. Seria posslvel dizer que 0 rap, pelo menos em algumas experiencias brasileiras, e salvo pela forma. Ao adotar 0 ar­tificio, evita-se 0 que Levi-Strauss, em 0 pensamento selvagem, chamaria de uma busca pelo "tamanho natural" e, conse­quentemente, 0 desvio do ideal de "redu<;ao artistica", para­metro estetico da sociedade ocidental desde que, nos "tem­pos modemos", substituiu-se 0 simb6lico pelo figurativo na

obra de arte.

4. Considera~oes finais: A can~ao critica hoje

o panorama musical e muito diversificado atualmente, 0

que nos impede de fazer analises e proje<;oes de maneira univoca. Thdo e posslvel no mundo de hoje, nao regido pe­las polaridades que fundamentaram 0 discurso modemo, em termos disso ou daquilo. Ha quem de continuidade nao s6 a can<;ao, mas tambem a can<;ao critica, assim como M quem s6 se preocupe com a can<;ao em si ou com a critica em si (neste caso, sem a forma can<;ao). Em meio a diver­sidade de generos, subgeneros ou mesmo sonoridades in­c1assificaveis que se criam atualmente, ha espa<;o para 0

cancionista~ Esse espa<;o, entretanto, e multifacetado, e nao se pode dizer que exista urn modelo de can<;1io que centrali­ze a audiencia, como ocorria algumas decadas atras. Entre os cancionistas, ha quem tenha como meta dar continni­dade a certas tradi<;oes, enquanto outros sao mais propen­sos a inovar 0 repert6rio musical. Ha tambem exemplos de compositores, como Paulinho da Viola, que operam com ambas as orienta<;oes. Paulinho e assumidamente vinculado a tradi<;ao do samba, e e como sambista que, segundo a cri­tica, tern trabalhado a can<;ao como urn artesanato fino. Por outro lado, Paulinho da Viola e tambem reconhecido para­doxalmente como urn renovador do samba. Digo paradoxa!­mente porque e muito comum a constru<;ao de sua,persona - por ele mesmo, as vezes, e pela imprensa - como urn defensor da tradi<;ao, das raizes do samba. Essa imagem pode estar associada as discretas apari<;oes do compositor na vida publica, ou mesmo a interpreta<;ao literal da letra de urn dos seus sambas mais conhecidos, "Argumento" (1975), que assim reza:

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'l\\ legal Eu aceito 0 argumento Mas niio me altere 0 samba tanto assim Olha que a rapaziada ta sentindo a falta De urn cavaco, de um pandelro Ou de urn tamborim

Paulinho da Viola pratica 0 "desenvolvimento" do sam­ba, mas nao se pode dizer que as informa~oes que ele traba­lha sejam restritas aquele universo, ou que ele assuma uma atitude de resguardo para com 0 que nao e familiar ao sam­ba. As suas can~oes de harmonia requintada pare cern resul­tar de urn dialogo com 0 choro e outros ritmos, e a sua des­treza como interprete e instrumentista remete muito mais a urn registro contemporaneo e cosmopolita - como e 0

caso de determinadas tradi~oes do jazz - do que a uma ambiencia referenciada ao samba em comunidade, com suas festas especificas, como 0 pagode. Paulinho da Viola tende a assurnir uma postura dl:ssica no palco e na vida. Por exemplo, em entrevista concedida a Roberto Jose Bozzetti Navarro e divulgada em sua tese de doutorado, "Paulinho da Viola e as interfaces do moderno no Brasil", 0 compositor se define como urn "artesao" sempre a procura de urn "mes­tre" e admite que valoriza 0 "aprendizado" e a "disciplina". Coincidentemente, Ricardo Benzaquen de Araujo tambem atribui a Paulinho urna atitude c!;l:ssica. Em "0 mundo como moinho" (publicado em Decantando a Republica 1, p. 138), 0

autor faz uma analise da letra de "Argumento", demons­trando que ela se ref ere a urna discussao musical em que 0

letrista se posiciona de maneira indefinida entre 0 antigo e o moderno, como se observa no verso: "Ta legal, eu aceito 0

argumento/ mas nao me altere 0 samba tanto assim". Segun­do Benzaquen, logo depois dessa "ambfgua demonstra~ao

de apego a modernidade", ele diz: "Sem mania de passado/ sem querer ficar do lado/ De quem nao quer navegar/ Fa~a como 0 velho marinheiro/ que durante 0 nevoeiro leva 0

barco devagar". Benzaquen destaca aqui as ideias de "len­tidao" e "prudencia", "ambas vinculadas a urn ideal que rejeita tanto urn conservadorismo cego quanto as inova~oes homogeneizadoras", definfndo, portanto, urna posi~ao in­termedLiria.

Paulinho da Viola tern uma maneira muito pr6pria de fa­zer inova~oes musicais, pois ele promove 0 desenvolvimen­to do samba tradicional sem acionar 0 discurso de ruptura. Essa atitude do compositor parece convergir com a sensi­bilidade modernista brasileira tal como interpretada por Silviano Santiago (em "Permanencia do discurso da tradi~ao no modernismo"), que tenderia a pensar a "tradi~ao como novidade". Em Verdade tropical, Caetano Veloso afirma que Paulinho da Viola se volta para a tradi<;ao com uma perspec­tiva diferente da usual. Para ele, nao se trata de preservar praticas tradicionais consideradas intocaveis, e sim de dar continuidade, com as necessanas atualiza~oes, a urn certo legado do passado musical.

Ha cancionistas que, ao contrario da posi~ao conciliado­ra de Paulinho da Viola, se mostram mais explicitos com re­la~ao ao projeto de inovar e, consequentemente, de romper com determinadas tradi~oes. Esse e 0 caso, por exemplo, de Adriana Calcanhoto, que, em entrevista concedida ao Nil­cleo de Estudos Musicais da Unfversidade Candido Mendes (UCAM), professou a sua adesao ao procedimento conciso e intimista da bossa nova. Adriana e bossa-nova sobretudo em sua obsessao pela simplicidade, 0 que ela admite ao dizer que, se no momenta faz can<;oes de dois ou tres acordes, no

• futuro, "quando for grande", vai fazer com urn acorde s6.

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Os modelos de simplicidade evocados por Adriana sao sobre­tudo ligados a tradic;ao moderna, como e 0 caso de Calder, representativo para ela do que seria "0 maximo de simplici­dade". Adriana faz profissao de fe contra 0 que ve como re­buscado e barroco.

Os caminhos de Adriana tampouco sao lineares, pOis e1a incorpora as tradic;oes da bossa nova e a tropicalista, 0 que e curioso, ja que 0 Tropicalismo, paradoxalmente, concilla o legado da bossa nova com os repert6rios que, por serem considerados excessivos e de mau gosto, foram rejeitados pelos musicos bossa-novistas. Com relaC;ao a bossa nova, Adriana recupera 0 registro vocal cameristico e minimalis­ta criado por Joao Gilberto; por outro lado, a cantora assu­me uma atitude tropicalista ao transitar com desenvoltura pelos universos da musica pop e da cultura de massa, ao mesmo tempo que se mostra familiarizada com procedi­mentos mais experimentais. Instada a falar sobre esse aspec­to, Adriana admite que sua musica e permeada de "informa­c;ao e redundancia", nurna alusao a urn texto de Augusto de Campos ("lnformac;ao e redundancia na musica popular", publicado em BaJaTifo da bossa) que analisa a complexidade de nossa musica popillar. Adriana exibe um lado tropicalis­ta ao fazer urn trabalho que nao se restringe a canc;ao, es­tendendo-se pelas capas dos CDs, pela corporalidade e pelas performances.

Na entrevista mencionada, Adriana discorre sobre 0 tema da intertexttialidade, na medida em que ela dialoga com as artes pffisticas, com 0 teatro, com a poesia e com a litera­tura. Adriana tem d~senvolvido trabalhos artisticos os mais diversos: fez capas de discos, musicou poemas de Mario de Sa-Carneiro e de Jacques Pr~vert e fez leitura de textos poe­ticos, entre outras atividades que transbordam a func;ao de

cantora e compositora de musica popillar. Com relac;ao ao envolvimento de Adriana com as artes plasticas, consta na sua biografia que ela posou para There Camargo, teve con­versas com Lygia Pape, leu (performaticamente) textos de

Lygia Clark e levou para 0 palco urn dos parangoles de He­lio Oiticica. E seu vincu10 com a poesia se da principalmen­te atraves de suas parcerias com poetas-letristas, como An­

tonio Cicero e Waly Salomao. Adriana se define como "uma artista de palco", lembrando que mesmo nos shows em que recorre apenas a voz e ao violiio ela faz citac;oes corporais. A artista chega a radicalizar, dizendo peremptoriamente: "0 que eu fac;o e imagem."

Adriana opta pela estetica do minimo, mas recusa a uni­formidade. Um recurso utilizado nurn disco pode nao ser repetido no proximo, ja que, via de regra, a palavra de or­dem e experimentar. Maritimo (1998), por exemplo, e urn CD que faz usa do sampling de maneira inusitada, ao incorpo­rar apenas as mlisicas de Caetano Veloso. Nos discos seguin­tes, Adriana conta com bandas que fazem seu pr6prio som.

Ao que parece, a canc;ao critica tem continuidade no mo­mento atual, apesar de se apresentar, em alguns casos, em forntatos diferentes, por meio de artistas conceituais que li­dam com a musica, mas recusam autodefinic;oes em termos de linguagens artisticas especializadas. Pedro Luis (e a Pa­rede) e outro exemplo de artista que e dificil c1assificar. Comec;ou sua trajet6ria artfstica com 0 Cobra Coral, grupo criado por Marcos Leite na Cultura Inglesa no final dos anos 70. Com 0 tempo, as atividades do grupo se expandiram e 0

coral passou a abrigar musicos populares e eruditos. 0 Co­bra Coral inovou ao introduzir a atuac;ao cenica, 0 que foi levado tao a serio que os integrantes do grupo fizeram for­mac;ao em expressao corporal 0 grupo passou a atuar no

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show business e se tomar conhecido, chegando a cantar em uma pe<;a de Nestor de Hollanda Cavalcanti e de Hamilton Vaz Pereira, que era diretor do AsdrUbal Trouxe 0 Trombo· ne, com participa<;ao c~nica de Regina Case tocando uma tubafake.

A vincula<;ao de Pedro Luis com 0 Asdrtibal e bastante significativa da indissocia<;ao, a epoca, entre as linguagens artisticas, pois em tomo desse grupo teatral se reuniram niio s6 musicos da estirpe de Pedro Luis, mas tambem poe· tas que, como Chacal- tambem performatico -, criaram na decada anterior 0 movimento da chamada "poesia mar­ginal". Nao por acaso, Pedro Luis, ligado a Perfeito Fortuna, participou tambem da cria<;iio do Circo Voador no infcio dos anos 80, integrando a Banda Voadora, que fazia sonoplastia para a casa, e depois participou do Ultimo espetaculo do AsdrUbal, Afarra da Terra.

Pedro Luis tern experimentado diferentes linguagens mu· sicais, como 0 demonstra a banda que criou em 1984 e que durou sete anos, denominada Urge. Essa banda, segundo ele (em entrevista para 0 Nucleo citado), se inspirou no espfrito de protesto do punk rock, embora ele niio tenha estabeleci· do nenhuma liga<;ao com 0 movimento. Em 1991, Pedro Luis come<;ou a experi~ncia com a banda Pedro Luis e a Pa· rede. A novidade fntroduzida pela banda, segundo 0 compo­sitor, e a de levar a percussao brasileira para urn universo pop, que e, segundo ele, 0 que Lenfne e Carlinhos Brown fazem atualmente. Essa escolha por uma musica regida pelo pulso 0 coloca ao lad9 tambem dos grupos musicais de Re­cife, representados, por exemplo, pelo Manguebeat. Dando continuidade a esse trabalho ritmico, Pedro Luis tambem e urn dos responsaveis pela cria<;ao do Monobloco, workshop que funciona como escola de percussao. Segundo Pedro

Luis, foi a primeira experi~ncia de forma<;ao de urn bloco. escola, com a participa<;ao de Celso Aivim, que era profes. sor na Pr6·Arte e passou a dar aula de bateria no Monobloco.

Em que pese a predomin~ncia do pulso na musica de Pedro Luis, ele niio se descuida da parte poetica, fazendo usa da par6dia, de cita<;oes literarias e musicais, alem de incorporar a linguagem da rna, como e 0 caso do "Rap do Real", em que trabalha com pregoes. Pedro Luis costuma ler poesia, habito que 0 levou a fazer a gradua<;ao em letras, na UFRJ.

A experi~ncia de Pedro Luis evoca 0 acontecimento que lhe e contempor~neo de cria<;ao das bandas em Recife que nao se restringem a musicalidade, constituindo'se, como di. zem os nativos, em uma "cena" cultural mais ampla. Assim, fenomenos como 0 do chamado Manguebeat nao sao apenas musicais, mas consistem tambem em atitudes assumidas pe­rante 0 cenfirio cultural e social mais amplo. DJ Dolores, urn dos mentores da "cena" Mangue, costuma deixar claro que a concep<;ao de musica dele e de seus companheiros - como Chico Science, morto prematuramente em urn acidente de carro, em meados da decada de 90 - tern affnfdades eleti. vas com a sensibilidade punk, que v~ em cada disco ou espe. taculo nao s6 a musica, como tambem a "atitude".

o Mangue tern sido visto como urn paradigma do proce. dimento atual de substituir projetos regionalistas ou que se fundam na ideia do nacional pela proposta de con~ctar 0

local- no caso, as cirandas, os maracatus e os cocos - com o nacional - 0 samba - e 0 global - 0 punk, 0 hip'hop, o dub e 0 rock. Esse procedimento musical corresponde a proposta mais ampla do Manguebeat de lidar com a incor. pora<;ao de contrarios: a de ligar a realidade dos manguezais de Recife, meio ambiente propicio para a prolifera<;ao de

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caranguejos, com as antenas parab6licas ligadas it experi@n­cia atual de globaliza<;ao.

Urn discurso recorrente do Mangue e 0 de contrapor 0

"ecossistema Mangue" ao de outras regioes de Pernambuco, como a Zona da Mata e outras regioes "aridas". Monica Sil­va e Sousa, em disserta<;ao de mestrado sobre 0 Mangue intitulada "A 'reinven<;ao' do Nordeste na voz plugada de Pernambuco: Da tradi<;ao it contemporaneidade pelos cami­nhos do Manguebeat", comenta:

o deslocamento da associa~ao mais comum que ainda e fei­ta da musica nordestina ao forro, ao xote e ao baiao, tipicos do sertao ( ... ) para a miisica praieira e urbana como a ciran­da, 0 frevo, 0 coco de roda e 0 maracatu, ritmos que apare­cem na maioria dos grupos; ou ainda para a jun~o que a zona da mata faz dessa proximidade Jitoranea entre a dda­de e 0 som tipicamente <\spero e rasgado da rudeza dos ca­naviais.

Ha urn aspecto do Mangue que deve ser registrado, dada a sua converg@ncia com 0 procedimento critico que analisa­mos ao longo deste livro: 0 fato de que tudo ali se cria a par­tir de urn conceito, ou de escolhas. Fred Zero Quatro, por exemplo, urn dos criadores da "cena", declarou a Rejane Calazans (em sua tese "Mangue: a lama, a parab6lica e a rede") que discordava da tend@ncia a se pensar 0 Mangue como urn "movimento", por achar a palavra comprometida com a no<;ao de vanguarda. Fred entao argumenta que a ati­tude vanguardista seria incompativel com a pretensao dos musicos de incorporarem suas bandas it industria fonogra­fica. A plena consci@ncia que Fred mostra com rela<;ao as suas escolh<\s 0 coloca na condi<;ao de "compositor critico". Rejane Calazans faz refer@ncia it participa<;ao de Fred Zero Quatro no Conselho de Cultura de Recife e it atua<;ao de OJ

Dolores e Renato L. como colunistas no Diario de Pernambuco, o que nos chama tambem a aten<;ao para 0 perfil de musico com 0 qual lidamos, que assume ftm<;oes na vida publica, conformando-se, portanto, a urna certa no<;ao de intelectua1

Esse e 0 caso, por exemplo, de alguns poetas que sao tambem letristas, como Antonio Cicero. Conhecido como poeta, letrista, fil6sofo e ensaista, Cicero declarou em entre­vista - tambem concedida para 0 Nucleo de Estudos Musi­cais - que se tornou letrista por acaso. Sua irma, a cantora e compositora Marina, musicou, pelos idos dos anos 80, al­guns poemas dele sem 0 seu consentimento e ele acabou gostando do resultado, passando a desenvolver concomitan­temente, a partir desse epis6dio, a atividade de letrista.

Letra de musica e poema nao se confundem para Cicero. Segundo ele, a letra e concebida visando it can<;ao como produto final. Ela tern que manter uma correspond@ncia com a musica, ou seja, alem dos aspectos isom6rficos, am­bas t@m que compartilhar 0 mesmo espfrito. 1a 0 poema, nas suas palavras, "e feito em si pr6prio", "e urn objeto autotelico". A can<;ao impoe uma forma que teria que ser negociada entre 0 musico e 0 letrista, em caso de parceria. E enquanto a cria<;ao de poesia da bastante liberdade ao au­tor para incorrer em experimentalismos e ate de correr 0

risco de se tornar hermetico, 0 compositor de musica po­pular, pelo contrario, tern urn compromisso com 0 enten­dimento imediato.

Cicero tambem diferencia 0 poema da letra de' musica com rela<;ao aos processos de cria<;ao e frui<;ao. No caso da poesia escrita, ela nao s6 demanda tempo tanto de quem a faz quanto do leitor, e urna coisa tern a ver com a outra, pois o tempo aplicado it cria<;ao de urn poema reverte em densi­dade, tornando a leitura mais dificil. Outro aspecto levan-

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tado por Cicero e que. enquanto a leitura da poesia escrita exige cada vez mais paciencia de quem a cultiva no esforc;o de entende-Ia. as pessoas escutam musica de modo descon­centrado e descontraido. como que sem pensar. Ii que nao s6 as letras. em sua maior parte. nao requerem muita refle­xao. mas mesmo as que sao capazes de sustentar uma escu­ta mais reflexiva admitem tambem. grac;as a musica. uma audic;ao despreocupada. Ja a poesia escrita nao pode ser ade­quadamente frufda. a menos que oleitor se coloque na tem­poralidade pr6pria do poema. interessando-se pelas suas "referencias intemas. referencias extemas e as intertextua­

lidades". Nao deixa de ser curiosa essa observac;ao de Antonio Ci­

cero. na medida em que ele se mostra ousado ao usar pro­cedimentos literanos em suas letras. Em "Virgem" (1987). por exemplo. composic;ao que fez em parceria com Marina Lima. Cicero cita a expressao "inocentes do Leblon". que abre 0 poema do mesmo nome de Carlos Drummond de Andrade. publicado em Sentimento do mundo (1969):

Os inocentes do Leblon nao viram 0 navio entrar. Trouxe bailarinas? trouxe imigrantes? trouxe urn grama de radio? Os inocentes. definitivamente inocentes. tudo ignoram, mas a areia e quente. e Ita urn oleo suave que eles p~ssam nas costas. e esquecem.

Vejamos a canc;ao de Marina e Antonio Cicero:

As coisas niio precisam de voce Quem disse que eu Tinha que precisar? As luzes bri1bam no Vidigal

E niio precisam de voce. Os Dois lrmiios tambem niio precisam

o Hotel Marina quaudo acende Niio e por nos dois Nem lembra 0 nosso amor Os inocentes do Leblon. Esses nem sabem de voce Nem viio querer saber. E 0 Farol da llba s6 gira agora Por outros olhos e armadilhas o Farol da Ilha procura agora Outros olhos e armadilhas Outros olhos e armadilhas

Ricardo Domeneck. jovem paulista de 34 anos. radicado em Berlim. e poeta. ensaista e DJ. e concedeu entrevista em 11 de julho de 2008 ao Nucleo de Estudos Musicais. Nessa entrevista. Domeneck se declarou leitor e adepto de Witt­genstein. razao pela qual tern como meta borrar as dicoto­mias tanto em termos poeticos quanto existenciais. Como DJ. encarrega-se da festa chamada NBI. que se realiza as quartas-feiras na casa de eventos Kulturneuheim (localizada

no cruzamento da rua Eberswalder Strasse com a avenida Schoenhauser Allee). Ecletico com relac;ao ao gosto musical. Domeneck. de maneira parecida com Adriana Calcanhoto. afirma gostar daquilo que e experimental dentro do pop. como fazem as bandas My Bloody Valentine e Sonic Youth.

Assim. como DJ. mistura sons brasileiros. como 0 funk. com musicas estrangeiras.

Conceituahnente. segundo Domeneck. 0 trabalho de DJ seria 0 mesmo do poeta. porque tanto em urn como em outro 0 procedimento e 0 da colagem. no sentido de des­locar sintagmas de seu contexto original para a criac;ao <Je

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urn outro texto. 0 seu trabalho musical. nesse sentido. se­ria mais poetico. Urn aspecto interessante do trabalho de Ricardo Domeneck como DJ e 0 fato de ele s6 usar a can~ao. recusando-se a incorporar a musica instrumental. Segundo Ricardo. a musica instrumental 0 impossibilitaria de criar urn texto. jol que para ele a ideia se configura atraves de palavras.

Dutro aspecto importante da proposta de Domeneck re­fere-se ao uso de dta~iies em seus poemas. Citar. para ele. nao significa urn exercfcio vazio de erudi~ao. no sentido de criar urna linguagem hermetica. mas. com urn prop6sito di­ferente. significa reconhecer que tudo jol foi dito. razao pela qual ele cita tanto trechos de musica pop quanto de poe­mas. tanto Wittgenstein quanto Bjork (a qual. por si s6 jol e urna referenda no sentido de juntar a "alta" e a "baixa" cultural. Faz parte dessa atitude que recusa hierarquias entre a "alta" e a "baixa" cultura a valoriza~ao da perfor­mance. na discotecagem e na leitura de poesia. Domeneck critica. dessa maneira. a impomncia que se confere no Bra­sil a poesia escrita. que nao e oralizada. razao pela qual os nossos trovadores conquistam urn lugar de destaque. Para exemplificar 0 que diz. Ricardo Domeneck cita a sextina, forma poetico-musical da Idade Media que. por si s6. corro­bora para desmontar 0 preconceito com rela~ao a poesia oral. afirmando que passou a ter urn grande respeito "pelos poetas que seguiram cantando". E procura relativizar a im­portfulcia da 'poesia escrita argumentando que 0 papel pas­sou de suporte a urn fim em si mesmo. apesar de admitir que. a partir do momenta em que a poesia se tornou es­crita, desenvolveu caracteristicas que nao tinha anterior­mente. Domeneck questiona a afirma~ao de que a poesia oral teria morrido com os trovadores. argumentando que.

se isso tivesse ocorrido. nao teriamos os compositores que temos hoje.

Assim. de acordo com esse argumento. a poesia oral do passado transformou-se no formato de can~ao que temos hoje em dia. motivo pelo qual Domeneck questiona 0 deba­te atual sobre 0 fim da can~o. Segundo ele. em vez de mor­te da can~o. estariamos diante de urn renascimento. Dome­neck dol 0 exemplo da musica eletronica. com 0 surgimento do techno e das raves no come~o da decada de 1990. que teriam levado muita gente a achar que seria 0 tim da can­~ao. E foi nesse momento que surgiu 0 trip-hop na Inglater­ra com a Portishead. banda experimental que nao dispensa as letras - cantadas por Beth Gibbons - e cujos poetas Do­meneck considera "fabulosos". Tal como a Portishead. exis­tern. segundo ele. muitas bandas que fazem musica eletro­nica e que continuam trabalhando com letras.

Domeneck constr6i urn argumento segundo 0 qual nao haveria uma substitui~o da can~ao tradicional por sonori­dades regidas pelo pulso. apesar do momento atual presen­ciar a volta da cultura disco. Ao controlrio desse argumento. haveria uma alternanda entre as musicas puIs antes e as cantadas que apenas dependeria do estado de espirito do ouvinte. Domeneck exemplifica com sua pr6pria proltica. afirmando que hol momentos em que ele nao tern interesse em palavras. em que prefere ficar meio inconsciente e se deixar levar pelo pulso. Esses momentos nao seriam muito diferentes dos rituais primitivos em que as pessoas dan~a­vam ao som de tambores. Mas hol outros momentos. mar­cados pela dor de cotovelo e pelo sentimento de paixao. em que as pessoas se voltam para a can~o. Domeneck en­fatiza esse ponto dizendo que a can~ao - ou a poesia - s6 vai morrer "no dia que n6s ficarmos mudos". Entretanto.

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"enquanto a linguagem existir e as pessoas levarem pe na bunda, as pessoas tiverem dor de cotovelo, as pessoa. tive­rem medo de morrer, as pessoas VaG continuar tentando en­tender isso atraves da linguagem". Domeneck reafirma por­tanto a sua discordancia quanto a uma presumivel morte da can~1io, pois ela estaria, quando muito, em processo de mu­dan~a. Ele parte do pressuposto de que a forma de can~ao que se desenvolveu na decada de 1960 estaria se transfor­mando com as novas tecnologias a disposi~ao dos musicos.

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Este livro foi composto na tipologia Swift. em corpo 10/15. e impresso em papel off~white 80g/m2

no Sistema Cameron da Divisao Grafica da Distribuidora Record

Afastando-se de qualquer preconceito nacionalista. este volume aborda as muta­~oes por que passou nosso cancioneiro. que. do samba ao hip hop de hoje. se abriu ao dialogo com tradi~oes musicais vindas de outros paises - tal como. alias. 0 pro­prio samba. que tern suas origens em rit­mos africanos_ Nao se trata aqui de uma visao evolucionista. mas de uma analise reflnada sobre as implica~oes da chamada can~ao critica. a qual serve de flo condutor ao estudo.

A autora situa 0 surgimento desse tipo de can~ao no final dos anos 1950. quando a composi~ao musical estabelece fortes vin­culos com 0 contexto cultural. e 0 artista se torna uma especie de intelectual atuante. Nao interessava mais apenas fazer musica. mas tambem conectar a arte com os deba­tes culturais de seu tempo. tal como sera configurado por Caetano Veloso e Chico Buarque. Como diz de forma lapidar San­tuza Cambraia Naves: "E ao estender a ati­tude critica para alem dos aspectos formais da can~ao. 0 compositor popular tornou-se urn pensador da cultura."

Sem pretensoes de totaliza~ao nem de esgotamento do tema. este trabalho apre­senta uma reflexao essencial para 0 leitor que queira entender os rumos contempo­raneos da musica popular no Brasil.

Evando Nascimento

Santuza Cambraia Naves e professora de antropologia do Departamento de Socio­logia e Politica da PUC-Rio e pesquisadora de musica popular. Aiem de varios ensaios academicos. e autora de: a violiio azul: mo­dernismo e miisica popular; Da bossanova d tro­picalia; A MPB em discussiio - entrevistas. em coautoria com Frederico Oliveira Coelho e Tatiana Bacal. e VelD.