Post on 14-Jul-2015
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 1/14
~!
le
!n d
lod
,ne!
!lot
I\m
IDa :
ro n
pri,
do!
tIUt
de i
da:
de
hU l
am
sell
ftc.
dei
I~a(
:sa(
af
SUI
prj
me
un
sa~
Es
,aU
p l
AMIN MAALOUF
AS IDENTIDADES
ASSASSINAS
Traducao
d e
SUSANA SERRAS PEREIRA
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 2/14
o:r o0'>C(l)
. . . . . . ,
~(l)
0...r . r . J
r o. . . c :c. , . . . ,
So:
~r o
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 3/14
1
Uma vida de escrita ensinou-me a desconfiar das pala-
vras. As que parecem mais limpidas sao muitas vezes as mais
traidoras. Urn destes falsos amigos e precisamente a palavra
«identidade». Acreditamos saber tudo 0 que ela quer dizer,
e continuamos a confiar nela mesmo quando, insidiosamente,
ela se poe a dizer 0 contrario.
Longe de mim a ideia de redefinir mais uma vez a nocao
de identidade. Esta e a questao primordial da filosofia desde 0
«Conhece-te a ti mesmo» de Socrates ate Freud, passando por
tantos outros mestres; aborda-Ia de novo nos nossos dias,
exigiria muito maior competencia e coragem do que as que
possuo. A tarefa a que me proponho e infinitamente mais
modesta: tentar compreender a razao que leva hoje tantas pes-
soas a cometerem crimes em nome da sua identidade religiosa,
etnica, nacional ou outra. Tera sido sempre assim desde 0
dealbar dos tempos, ou existem realidades especfficas ao nosso
tempo? Os meus raciocfnios parecerao por vezes demasiado
elementares. Isto acontece porque desejaria conduzir a minha
reflexao 0mais serena, 0mais paciente, 0mais lealmente pos-
17
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 4/14
AMIN MAALOUF
sfvel, sem recorrer a nenhuma especie de jargao nem a
nenhum atalho enganador.
Naquilo a que se convencionou chamar «urn documento
de identidade» encontramos 0 nome proprio, 0 apelido, a data
e lugar de nascimento, a fotografia, a enumeracao de certos
traces ffsicos, a assinatura, por vezes tambern a impressao
digital - toda uma panoplia de indices para demonstrar, sem
confusao possfvel, que 0 portador deste documento e Fulano,
e que nao existe, entre os milh6es de seres humanos, uma so
pessoa com quem ele possa ser confundido, seja ela 0 seu
sosia ou 0 seu irmao gerneo.
A minha identidade e aquilo que faz com que eu nao seja
identico a qualquer outra pessoa.
Definida deste modo, a palavra identidade e uma nocao
relativamente precisa e que nao deveria prestar-se a confusao.
Serao verdadeiramente necessarias longas dernonstracoes para
estabelecer que nao existem, nem poderao existir dois seres
identicos? Mesmo se, amanha, se chegasse, como se teme,
a «clonar» seres humanos, os proprios clones nao seriam iden-tieos, rigorosamente, senao no instante do seu «nascimento»: ,
desde os seus primeiros passos na vida, tornar-se-iam dife-
rentes.
A identidade de cada pessoa e constituida por uma multi-
tude de elementos, que nao se limitam evidentemente aos que
figuram nos registos oficiais. Existe, claro, para a maior parte
das pessoas, a pertenca a uma tradicao religiosa; a uma nacio-
nalidade, por vezes a duas; a urn grupo etnico ou lingufstico;
a uma familia mais ou menos alargada; a uma profissao; a uma
instituicao; a urn determinado meio social... Mas a lista e bern
18
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
mais extensa, virtualmente ilimitada; pode sentir-se uma pertenc
mais ou menos forte a uma provincia, a uma aldeia, a urn bairr
a urn cla, a uma equipa desportiva ou profissional, a urn grup
de amigos, a uma empresa, a urn partido, a uma associacao
a uma comunidade de pessoas que partilham as mesmas pa
x6es, as mesmas preferencias sexuais, as mesmas diminuicoe
ffsicas, ou que se acham confrontadas com os mesmos proble
mas.
Estas pertencas nao tern, evidentemente, todas a mesm
importancia, pelo menos, nao ao mesmo tempo. Mas nenhum
delas e totalmente desprovida de importancia. Elas sao os el
mentos constitutivos da personalidade, poder-se-ia quase diz
«os genes da alma», na condicao de precisarmos que na su
maior parte nao sao inatos.
Se cada urn desses elementos se pode encontrar num
grande numero de individuos, jamais encontraremos a mesm
combinacao em duas pessoas diferentes, e e justamente iss
que produz a riqueza de cada urn, 0 seu valor proprio, aquil
que faz de cada pessoa urn ser singular e potencial ment
insu bsti tuivel.
Acontece por vezes que urn acidente, feliz ou infeliz, o
mesmo urn encontro fortuito, tenham urn maior peso no noss
sentimento de identidade do que a pertenca a uma heranc
milenar. Imaginemos 0caso de urn servio e de uma muculma
na que se tivessem conhecido, ha vinte anos arras, num cafe d
Sarajevo, que se tivessem apaixonado e casado. Nunca poderiam
ter tido da sua identidade a mesma percepcao que urn casa
inteiramente servio ou inteiramente muculmano; a sua visa
da fe, tal como da patria, nao seria a mesma. Cada urn dele
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 5/14
AMIN MAALOUF AS IDENTIDADES ASSASSINAS
teria em si as pertencas que os pais lhes legaram a nascenca,
mas ja nao as entenderia do mesmo modo, nao Ihes daria 0
mesmo Iugar.
Nao abandonemos ainda Sarajevo. Deixemo-nos ficar, em
pensamento, numa investigacao imaginaria, Observemos, na
rua, urn homem de 50 anos.
Em 1980, esse homem teria proclamado: «Sou jugoslavo»,com orguIho e sem ernocao: instado a urn maior detaIhe, teria
dito que habitava a Republica Federada da Bosnia Herzegovina,
e que vinha, incidentalmente, de uma familia de tradicao
muculrnana.
o mesmo homem, reencontrado doze anos mais tarde,
quando a guerra se encontrava no auge, teria respondido
espontaneamente e com vigor: «Sou muculmano!» Talvez
tivesse tambern deixado crescer a barba regulamentar. Teria
igualmente acrescentado que era bosnio e nao teria apreciado
nada que the lembrassem que outrora se havia orgulhosamente
afirmado jugoslavo.
Hoje, 0 nosso homem, interrogado na rua, afirmaria pri-
meiro que era bosnio, e depois que era muculmano; ia de facto
a caminho da mesquita, acrescentaria; mas faria tambern ques-
tao de afirmar que 0 seu pals fazia parte da Europa e que espe-
rava ve-lo urn dia aderir a Uniao Europeia.
Este mesmo personagem, se 0 reencontrarmos no mesmo
sitio daqui a vinte anos, como querera ele definir-se? Qual das
suas pertencas pora em primeiro lugar? Europeu? Muculma-
no? Bosnio? Outra coisa qualquer? Balcanico, talvez?
Nao me arrisco a fazer urn prognostico. Todos estes ele-
mentos fazem efectivamente parte da sua identidade. Este
homem nasceu numa familia de tradicao muculmana; pertence,
pela lingua, ao eslavos do SuI que estiveram outrora reunidos
no contexto de urn mesmo Estado e que hoje ja nao 0 est
vive numa terra que ora foi otomana, ora austriaca, e que t
o seu papel nos grandes dramas da historia europeia. Em c
epoca, uma das suas pertencas inchou, se assim posso dizer
ponto de ocultar todas as outras e de se confundir com a
identidade total. Ao longo da sua vida, ter-Ihe-ao contado t
a especie de fabulas. Que era proletario e nada mais doisso. Que era jugoslavo e nada mais. E, mais recentemen
que era muculmano e so isso; ter-lhe-ao mesmo feito c
durante alguns meses dificeis, que tinha mais em comum c
os homens de Cabul do que com os de Trieste!
Em todas as epocas, encontrou pessoas que 0 levar
a considerar que possuia uma so pertenca maior, tao supe
as outras em todas as circunstancias que se poderia legitim
mente chamar «identidade». Para uns, a nacao, para outro
religiao ou a classe social. Mas bastaria passear 0 seu o
sobre os diferentes conflitos que se desenrolam no mundo p
se dar conta de que nenhuma pertenca prevalece de m
absoluto. Onde as pessoas se sentem ameacadas na sua fe
pertenca religiosa que parece resumir toda a sua identida
Mas se e a sua lfngua materna e 0 seu grupo etnico qu
encontram ameacados, as pessoas bater-se-ao ferozmente c
tra os seus proprios correligionarios, Os turcos e os curdos
ambos muculmanos, mas tern uma lfngua diferente; sera 0
conflito menos sangrento? Os hutus, tal como os tutsis,
catolicos e falam a mesma lingua, te-los-a isso impedido d
massacrarem? Os checos e os eslovacos sao ambos catoli
tera isso favorecido a vida em comum?
Todos estes exemplos para insistir no facto de que se e
20
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 6/14
AMIN MAALOUF
tir, em qualquer momento, entre os elementos que constituem
a identidade de alguern, uma certa hierarquia, esta nao e imu-
tavel, muda com 0 tempo e modifica profundamente os com-
portamentos.
As pertencas que contam na vida de cada um nem sempre
sao aquelas, consideradas primarias, que advern da lfngua, da
pele, da nacionalidade, da cIasse social ou da religiao. Tome-
mos 0caso de um homos sexual italiano na altura do fascismo.
Para eJe, este aspecto especffico da sua personalidade tinha a
sua importancia, imagino, mas nao mais do que a sua activida-
de profissional, as suas escolhas polfticas ou as suas crencas
religiosas. De subito, a repressao estatal abate-se sobre ele,
sente-se ameacado pela humilhacao, pela deportacao, peJa
morte - ao escolher este exemplo, apelo evidentemente a cer-
tas reminiscencias literarias e cinernatograficas. Este homem,
pois, que tinha sido, alguns anos antes, um patriota e talvez um
nacionalista, ja nao conseguiria regozijar-se ao ver desfilar as
tropas italianas, sem diivida tera mesmo chegado a desejar a
sua derrota. Por causa da perseguicao, as suas preferencias
sexuais iriam dominar as outras pertencas, eclipsando ate a
pertenca nacional que atingia, a epoca, 0 seu paroxismo. Ape-nas depois da guerra, numa Italia mais tolerante, 0 nosso
homem se sentiria de novo plenamente italiano.
Muitas vezes, a identidade que proclamamos, decalca-se
- pela negativa - da do adversario. Um irlandes cat61ico
diferencia-se dos ingleses primeiro pela religiao, mas afirrnar-
-se-a, face a monarquia, republicano, e se nao conhece suficien-temente 0gaelico, falara pelo menos 0 ingles ao seu modo; um
dirigente cat6Iico que se exprimisse com 0 sotaque de Oxford
apareceria quase como um renegado.
22
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
Haveria ainda dezenas de exemplos para ilustrar a c
plexidade - por vezes sorridente, muitas vezes tragic a
dos mecanismos da identidade. Citarei varies ao longo das
ginas que se seguem, uns de modo sucinto, outros em m
detalhe; sobretudo os que dizem respeito a regiao de o
venho - 0Pr6ximo Oriente, 0Mediterraneo, 0mundo ar
e, em primeiro lugar, 0 Libano. Um pals onde somos leva
constantemente a interrogarmo-nos sobre as nossas perten
as suas origens, as nossas relacoes com os outros eo luga
sol ou a sombra que estas nos permitem ocupar.
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 7/14
2
Acontece-me fazer algumas vezes aquilo a que chamaria
«0 meu exame de identidade», como outros fazem 0 seu exame
de consciencia. 0meu objectivo nao e - te-lo-ao compreen-
dido - reencontrar em mim mesmo uma qualquer pertenca
«essencial» em que me possa reconhecer. A atitude que adopto
e precisamente a contraria: remexo a minha memoria para
encontrar 0 maior mimero possfvel de elementos da minha
identidade, reiino-os, alinho-os e nao renego nenhum deles.
Venho de uma famflia originaria do SuI daArabia, implan-
tada nas montanhas libanesas desde ha seculos, e que se espa-
lhou depois, por migracoes sucessivas, pelos diversos cantos
do globo, do Egipto ao Brasil, e de Cuba a Australia. A minha
famflia orgulhou-se sempre de ter sido tanto arabe como crista,
provavelmente desde 0 seculo II ou III, quer isto dizer, muito
antes da ernergencia do Islao e antes mesmo do Ocidente se ter
convertido ao cristianismo,
o facto de ser cristae e de ter por lingua materna 0 arabe,a lfngua sagrada do Islao, constitui urn dos paradoxos funda-
mentais que forjaram a minha identidade. Falar esta lfngua
25
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 8/14
AMIN MAALOUF
tece, para mim, Iacos com todos os que a utilizam todos
os dias nas suas oracoes e que, na sua grande maioria, a conhe-
cern bern menos do que eu; quando nos encontramos na
Asia Central e deparamos com urn velho erudito a entrada deuma medersa' timurida, basta dir igirmo-nos a ele em arabe
para nos sentirmos em terra amiga, e para que ele fale com 0
coracao, como nunca se atreveria a fazer em russo ou em
ingles.Esta lingua e-nos comum, a ele, a mim, e a varies milhoes
de outras pessoas. Por outro lado, a minha pertenca ao cris-
tianismo - seja ela profundamente religiosa ou apenas
sociol6gica, essa nao e a questao - cria tambem eIa urn laco
significativo entre mim e os varies milhoes de cristaos no
mundo. Muitas coisas me separam de cada cristae, como
de cada arabe e de cada muculmano, mas existe tambem entre
mim e cada urn deles urn parentesco inegavel, num caso, reli-
gioso e intelectual, no outro, linguistico e cultural.
Dito isto, 0 facto de ser por urn lade arabe e por outro cris-
tao e uma situacao muito especff ica, muito minoritaria e nem
sempre facil de assumir; essa situacao marca profunda e dura-
douramente uma pessoa; tratando-se de mim, nao poderei
negar que ela foi determinante na maior parte das decisoes que
tive de tomar ao longo da vida, incluindo a de escrever estelivro.
Assim, ao considerar separadamente estes dois elementos
da minha identidade, sinto-rne pr6ximo, quer pela lingua quer
pela religiao, de uma boa metade da humanidade; ao conside-
rar estes dois criterios simultaneamente, vejo-me confrontado
com a minha especificidade.
IEscola coranica, (N. da T.)
26
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
Poderia retomar esta mesma observacao em relacao a
outras pertencas: 0 facto de ser frances, partilho-o com cerca
de 60 milhoes de pessoas; 0 facto de ser libanes, partilho-o
com oito a dez milhoes de pessoas, se tivermos em conta a
diaspora; mas 0 facto de ser por urn lado frances e p~r outro
Iibanes, com quantas pessoas 0 partilho? Alguns milhares,
quando muito.
Cada uma das minhas pertencas me liga a urn vasto mime-ro de pessoas; entretanto, quanta mais numerosas as pertencas
que tenho em conta, mais especif ica se revela a minha identi-
dade.Se me alargasse urn pouco sobre as minhas origens, deve-
ria esclarecer que nasci no seio da comunidade dita greco-
-catolica, ou melquita, que reconhece a autoridade do papa,
continuando, no entanto, fiel a certos ritos bizantinos. Vista de
longe, esta pertenca e apenas urn pormenor, uma c.urios.idad~;
vista de perto, eIa e urn aspecto determinante da minha identi-
dade: num pais como 0Lfbano, onde as comunidades mais po-
derosas se bateram durante seculos pelo seu territ6r io e pelo
seu quinhao de poder, os membros de comunidades muito
minoritarias como a minha raramente pegaram em armas e
foram sempre os primeiros a exilar-se. Pela minha parte, sem-
pre recusei envolver-me numa guerra que considerava absurdae suicida; mas este juizo, este olhar distante, esta recusa em
pegar nas armas, nao deixam de estar relacionados com a
minha pertenca a uma comunidade marginalizada.
Melquita, pois. Entretanto, se alguem se entretivesse a
procurar, urn dia, 0 meu nome nos registos civis oficiais
_ que, no Lfbano, receio, sao estabelecidos em funcao da per-
tenca rel igiosa - , nao seria entre os melquitas que me encon-
traria mencionado, mas antes no registo dos protestantes. Por
27
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 9/14
AMIN MAALOUF
que razao? Levaria muito tempo a contar. Contentar-me-ei
aqui em dizer que existiram na nossa familia duas tradicoes
rivais, e que eu fui, durante toda a infancia, testemunha desses
confrontos; testemunha e, por vezes, mesmo joguete - se me
inscreveram na escola francesa dos padres jesuitas, foi porque
a minha mae, resolutamente catolica, me pretendia subtrair
a influencia protestante que entao prevalecia na minha familia
paterna, que encaminhava tradicionalmente as criancas para
escolas americanas ou inglesas. Foi em con sequencia disto
que acabei por me instalar, durante a guen·a do Lfbano, em
Paris e nao em Nova Iorque, Vancover ou Londres, e que me
pus a escrever em frances.
Valera a pena alinhar outros pormenores ainda da minha
identidade? Falar da minha avo turca, do seu marido maronita
do Egipto, e desse outro avo, morto muito antes de eu nascer, e
de que me dizem ter sido poeta, livre-pensador, franco-macae
talvez, e, em todo 0 caso, ferozmente anticlerical? Recuar ate
esse tio-tetravo que foi 0 primeiro a traduzir Moliere para 0
arabe e a leva-lo a cena, em 1848, no tabuado de urn teatro oto-
mano?Nao, e mais do que suficiente. Paro aqui, para perguntar:
. estes varies elementos diversos que moldaram a minha identi-
dade e desenharam, nas suas grandes linhas, 0meu itinerario,
quantos dos meus semelhantes os partilham comigo? Talvez
mesmo nenhum. E e precisamente sobre isto que gostaria
de insistir: gracas a cada uma das minhas pertencas, conside-
rada isoladamente, tenho urn certo parentesco com urn grande
mimero dos meus semelhantes; gracas aos mesmos criterios,
tornados em conjunto, tenho a minha identidade propria, que
nao se confunde com nenhuma outra.
Extrapolando ao limite, direi: com cada ser humano, tenho
28
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
pertencas em comum; mas ninguern no mundo partilha t
as minhas pertencas ou sequer uma grande parte delas; em
Iacao as dezenas de criterios que poderia invocar, bastaria
simples meia-duzia para estabelecer com precisao a m
identidade especffica, diferente da de urn outro, seja ele 0
proprio filho ou 0meu pai.
Antes de me lancar na escrita das paginas preceden
hesitei durante muito tempo. Deveria alongar-me tanto, d
o comeco do livro, sobre 0meu proprio caso?
Por urn lado, era importante para mim dizer, servindo-
do exemplo que me e mais familiar, de que maneira,
alguns criterios de pertenca, se pode afirmar por urn lad
lacos que nos un em aos nossos semelhantes e por out
nossa especificidade. Por outro lado, nao ignorava que, qu
mais longe se vai na analise de urn caso particular, m
se corre 0 risco de ouvir como resposta que esse e, prec
mente, urn caso particular.
Finalmente, atirei-me a agua, persuadido que toda a
soa de boa-fe que tentasse fazer 0 seu proprio «exame de i
tidade», nao tardaria a descobrir que tambem e , tanto comourn caso particular. A humanidade inteira e feita apenascasos particulares, a vida e geradora de diferencas, e, se ex
«reproducao», os resultados nunc a sao identicos, Cada pes
sem excepcao alguma, e dotada de uma identidade cornpos
bastaria colocar a si mesma algumas questoes para rev
fracturas esquecidas, ramificacoes insuspeitadas, e para
descobrir complexa, unica, insubstituivel.
E assim, justamente, que se caracteriza a identidade
cada urn de nos: complex a, iinica, insubstituivel, que na
confunde com qualquer outra. Se insisto neste ponto, ecausa do habito de pensamento ainda tao espalhado, e a m
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 10/14
AMIN MAALOUF
olhos extremamente pernicioso, segundo 0 qual, para afirmar
a nossa identidade, deveria simplesmente dizer-se: «eu sou
arabe»; «eu sou frances»; «eu sou negro»; «eu sou servio»;
«eu sou muculmano»; «eu sou judeu»; quem alinhe, como eu
o fiz, as suas rmiltiplas pertencas, e imediatamente acusado de
querer «dissolver» a sua identidade no caldo informe onde
todas as cores se apagariam. E , no entanto, 0 inverso que eu
procuro afirmar. Nao que todos os seres humanos sao serne-lhantes, mas que cada urn deles e diferente. Sem diivida, urn
servio e diferente de urn croata, mas cada servio e tambem
diferente de todos os outros servios e cada croata e igualmente
diferente de todos os outros croatas. E, se urn cristae libanes
e diferente de urn muculmano libanes, nao conheco dois cris-
taos libaneses identicos, nem dois muculmanos, tal como nao
existem no mundo dois franceses, dois africanos, dois arabes
ou dois judeus identicos, As pessoas nao podem ser trocadas
umas com as outras, e e frequente encontrarmos, no seio da
mesma familia ruandesa ou irlandesa, libanesa ou argelina ou
bosnia, entre dois irrnaos que viveram no mesmo ambiente,
diferencas aparentemente mfnimas, mas que os farao reagir,
em materia de politica, de religiao ou de vida quotidiana, nosantipodas urn do outro; que chegarao mesmo a fazer do pri-
meiro urn assassino e do segundo urn homem de dialogo e de
conciliacao.
Tudo 0 que acabei de dizer, poucas pessoas se atreveriam
a contestar explicitamente. Mas comportamo-nos como se nao
fosse esse 0 caso. Por facilidade, englobamos as pessoas mais
diversas no mesmo vocabulo; por facilidade tambern, atribui-
rno-lhes crimes, actos colectivos, opinioes colectivas - «os
servios massacraram ...», «os ingleses destruiram ...», «os judeus
confiscaram ...», «os negros incendiaram ...», «os arabes recusa-
30
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
ram ...». Emitimos friamente juizos sobre esta ou aquela p
lacao que consideramos «trabalhadora», «habil» ou «pre
cosa», «susceptivel», «manhosa», «orgulhosa» ou «obst
da», juizos que terminam muitas vezes em sangue.
Sei que nao e realista esperar de todos os nossos cont
poraneos que modifiquem de urn dia para 0outro os seus h
tos de expressao, Mas parece-me importante que cada ur
nos tome consciencia do facto de que as nossas palavrassao inocentes e de que as mesmas contribuem para perpe
preconceitos que demonstraram ser, ao longo da Historia,
versos e assassmos.
Porque e 0 nosso olhar que aprisiona muitas vezes
outros nas suas pertencas mais estreitas e e tarnbern 0 n
olhar que tern 0 poder de os libertar.
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 11/14
A identidade nao e algo que nos seja entregue na sua form
inteira e definitiva; ela constroi-se e transforma-se ao longo d
nossa existencia, Muitos livros ja 0 afirmaram e explicaram
copiosamente, mas nao e imitil sublinha-Io uma vez mais: o
elementos da nossa identidade que ja estao em nos ao nascer
mos nao sao muito numerosos - algumas caracterfsticas ffs
cas, 0 sexo, a cor ... E mesmo af, alem do mais, nem tud
e inato. Ainda que nao seja evidentemente 0meio social qu
determina0
sexo, e este, apesar de tudo, que determina0
sentido dessa pertenca: nascer rapariga em Cabul ou em Oslo na
tern 0mesmo significado, a jovem nao vive a sua feminilidad
(ou qualquer outro elemento da sua identidade) da mesm
maneira ...
Tratando-se da cor, poder-se-ia formular urn comentario
similar. Nascer negro em Nova Iorque, em Lagos, em Pretori
ou em Luanda, nao tern a mesma significacao, poder-se-ia
quase dizer que nao se trata da mesma cor, do ponto de vist
identitario. Para uma crianca que ve a luz na Nigeria, 0 ele
mento mais determinante para a sua identidade nao e 0 se
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 12/14
AMIN MAALOUF
negro, mas 0 ser ioruba, por exemplo, em vez de haussa. Na
Africa do SuI, ser negro ou branco continua a ser urn elemento
significativo da identidade; mas a pertenca etnica - zulu,
xhosa - e, pelo menos, igualmente importante. Nos Estados
Unidos, descender de urn antepassado ioruba em vez de urn
haussa e perfeitamente indiferente; e sobretudo entre os bran-
cos - itaIianos, ingleses, irlandeses ou outros - que a origem
etnica e determinante para a identidade. Por contraste, umapessoa que tivesse, entre os seus antepassados, brancos e
negros seria apelidada de «negra» nos Estados Unidos
enquanto na Africa do SuI seria considerada «mestica». '
Que razao leva a nocao de mesticagern a ser tida em conta
em certos paises e nao em outros? Porque sera. a pertenca
etnica determinante em certas sociedades e nao em outras?
Poderiamos avancar, para cada caso, algumas explicacoes
mais ou menos convincentes. Mas nao e isso 0 que me preo-
cupa nesta altura. Apenas mencionei estes exemplos para
insistir no facto de que mesmo a cor e 0 sexo nao sao elemen-
tos «absolutos» de identidade ... Com maior razao, todos os
outros elementos sao ainda mais relativos.
Para avaliarmos0
que e realmente inato entre os elementos. de identidade, existe urn jogo mental eminentemente revela-
dor: imagine-se urn bebe que e retirado do seu meio no momento
preciso do seu nascimento para ser colocado num meio dife-
rente; compare-se entao as «identidades» diversas que poderia
adquirir, os combates que teria de travar e aqueles a que seria
poupado ... Sera necessario lembrar que ele nao teria nenhuma
memoria da «sua» religiao de origem, nem da «sua» nacao,
nem da «sua» lfngua, e que poderia vir a achar-se a combater
encarnicadamente aqueles que deveriam ter sido os seus?
E bern verdade que 0 que determina a pertenca de uma
34
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
pessoa num dado grupo e, essencialmente, a influencia de o
trem; a influencia dos que the sao proximos - pais, compa
nheiros, correligionarios - que tentam apropriar-se del
e a influencia dos que se encontram do outro lado, e procuram
exclui-lo. Cada urn de nos deve desbravar urn caminho ent
as vias para onde nos empurram e aquelas que nos proibem
ou cujo terreno minam sob os nossos pes; nenhum de nos e
partida urn ser iinico; nao nos contentamos em «tomar conciencia» da nossa identidade, tornamo-nos 0 que somo
adquirimos essa consciencia passo a passo.
A aprendizagem inicia-se muito cedo, desde a primeir
infancia. Voluntariamente ou nao, os nossos modelam-nos
dao-nos forma, inculcam-nos as crencas famiIiares, os ritos,
atitudes, as convencoes, a lfngua materna, e tambern as fraque
zas, as aspiracoes, os preconceitos, os rancores, assim com
os diversos sentimentos de pertenca e de nao pertenca,
E desde muito cedo tambern, em casa e na escola ou n
ruas da vizinhanca, surgem os primeiros conflitos. Os outro
fazem-nos sentir, pelas palavras, pelos olhares, que somo
pobres ou aleijados, demasiado baixos ou demasiado alto
escuros ou demasiado louros, circuncidados, nao circuncidados ou orfaos - estas inumeraveis diferencas, minimas o
significativas, que tracam os contornos de cada personalidade
forjam os comportamentos, as opinioes, os receios, as amb
coes, que se revelam muitas vezes eminentemente formativa
mas que frequentemente nos ferem para sempre.
Sao estas feridas que determinam, em cada etapa da vid
a atitude dos homens em relacao as suas pertencas e a hiera
quia entre essas atitudes. Quando se foi perseguido pela su
5/12/2018 Maalouf, Identidades - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maalouf-identidades-55a4d86d19d97 13/14
AMIN MAALOUF
religiao, quando se foi humilhado ou insultado por causa
da cor da pele, ou do sotaque, ou dos habitos nao sofisticados,
nunca isso se apagara da memoria. Insisti ate aqui constan-
temente no facto de a identidade ser constituida por pertencas
rmiltiplas: mas e indispensavel insistir outro tanto no facto
de ela ser una e de a vivermos como urn todo. A identidade de
uma pessoa nao e uma justaposicao de pertencas autonornas,
nao e urnpatchwork',
e urn desenho sobre uma pele esticada;
se se tocar numa so das pertencas, e toda a pessoa que vibra.
Temos, alern disso, frequentemente, a tendencia a reco-
nhecermo-nos na pertenca que mais e atacada; por vezes,
quando nao temos forca para a defender, dissimulamo-Ia, refu-
giando-se ela entao no fundo de nos mesmos, acocorada na
sombra, a espera da vinganca; assumindo-a ou ocultando-a,
proc1amando-a discretamente ou em voz bern alta, e com ela
que nos identificamos. A pertenca que esta em causa - a cor,
a religiao, a lingua, a classe sociaL. - invade en tao toda a
identidade. Os que a partilham sentem-se solidarios, reiinem-
-se, mobilizam-se, encorajam-se reciprocamente, colocam-se
juntos contra «os do outro lado». Para eles, «afirmar a sua
identidade», torna-se forcosamente urn acto de coragem, urn
acto libertador ...No seio de cada comunidade marcada surgem naturaI-
mente os condutores. Enraivecidos ou calculistas, pronunciam
os discursos inflamados «ate as ultimas consequencias» que
sao 0balsamo sobre a ferida. Dizem que nao se deve mendigar
dos outros 0 respeito, que este e urn direito, que se deve antes
impo-lo aos outros. Prometem vitoria ou vinganca; inflamam
os espiritos e servem-se por vezes dos meios extremos que
IEm ingles no original. (N. da T.)
36
AS IDENTIDADES ASSASSINAS
alguns dos seus irmaos sofredores teriam talvez sonhado em
segredo. Deste modo, 0 cenario esta montado, a guerra pode
comecat Se ela chegar, «os outros» te-la-no merecido, «nos»
temos a memoria exacta de «tudo 0 que eles nos fizeram
passar» desde 0 inicio dos tempos. Todos os crimes, todas as
vingancas, todas as humilhacoes, todas as fraquezas, os nomes,
as datas, os mimeros.
Por ter vivido num pais em guerra, num quarteirao sujeito
a bombardeamentos que vinham do quarteirao vizinho, por ter
passado uma ou duas noites numa cave transformada em abrigo,
com a minha mulher gravida e 0 meu filho de tenra idade,
ouvindo 0 ruido das explosoes do lado de fora e do lade de
dentro mil boatos sobre a iminencia de urn ataque emil his-
torias sobre farnilias assassinadas, sei perfeitamente que 0
medo pode empurrar nao importa quem para 0 crime. Se, em
vez de boatos passageiros, t ivesse havido no meu quarteirao
urn verdadeiro massacre, teria eu conservado 0 sangue-frio
durante tanto tempo? Se, em vez de passar dois dias nesse
abrigo, tivesse tido de passar ai urn mes, teria eu recusado em-
punhar a arma que me teriam posto nas maos?
Prefiro nao me colocar estas questoes com demasiada
insistencia, Tive a sorte de nao ter sido posto a prova comdureza, tive a sorte de sair muito cedo da fornalha, com os
meus incolumes, tive a sorte de poder conservar as maos lim
pas e a consciencia em paz. Mas digo «a sorte», sim, porque
as coisas poder-se-iam ter passado de modo completamente
diferente, se, no inicio da guerra do Lfbano, eu tivesse dezas-
seis anos em vez de 25, se tivesse perdido urn ente querido, s
tivesse pertencido a urn outro meio social, a uma outra comu
nidade ...Apos cada novo massacre etnico, perguntamo-nos, com
3