DUBAR Crise Identidades

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Claude Dubaí A CRISE DAS IDENTIDADES A interpretação de uma mutação Edições Afrontamento

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  • Claude Duba

    A CRISE DAS

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    ISCOMMquina de escreverPorto, Portugal: 2006

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  • A crise das identidades profissionais

    A noo de identidade profissional presta-se a confuses que necessrio tentar diminuir desde o incio. Como expliquei no primeiro captulo, no designo, por estes termos, as categorias que servem para classificar os indivduos em funo da sua actividade de trabalho (em Frana, as CSP, categorias socioprofissionais). E tambm no viso as classificaes que servem, num determinado momento, para algum se designar a si prprio atravs do seu emprego (e que so extremamente diversas). Chamo identidades profissionais s formas identitrias no sentido definido no fim do primeiro captulo (configuraes Eu- -Ns) e assim podemos detect-las no campo das actividades de trabalho remuneradas. Esta noo aproxima-se daquela que Sainsaulieu chama identidades no trabalho e que, para ele, designa modelos culturais ou lgicas de actores em organizao'. Mas ela distingue- -se atravs dum aspecto importante: as formas visadas no so s relacionais (identidade de actores num sistema de aco), elas so tambm biogrficas (tipos de trajectrias ao longo da vida de trabalho). As identidades profissionais so maneiras socialmente reconhecidas para os indivduos se identificarem uns aos outros, no campo do trabalho e do emprego^.

    Esta elaborao conceptual pretende-se simtrica da do captulo precedente em matria das formas identitrias no campo da vida privada. Mas se, em matria da famlia e da vida privada, a noo de crise no talvez evidente e tem que ser longamente justificada, em matria do trabalho, emprego e relaes profissionais, ela est omnipresente, desde h

    (1) Cf. Renaud Sainsaulieu. Videntit au travail. Les effets culturels de Vorganization, Paris, Presss de Ia Fondation nationale des Sciences politiques, 1985 (l. ed. 1977). Esta obra fundadora comporta, na edio de 1985, um novo prefcio que estabiliza em quatro modelos culturais o nmero de identidades tpicas detectadas nas empresas e prope apelaes tornadas clssicas: reforma, fuso, negociao e afinidade (cf. cap. 1).

    (2) Cf. Claude Dubar, Identits collectives et individuelles dans le champ professionnel, TVait de sociologie du travail, Bruxelas, De Boeck, 1994, p. 363-380. Este texto explicita o ponto de vista subjacente noo de forma identitria e prope as quatro apelaes seguintes: fora do trabalho, categorial, da empresa e de rede, explicitando as diferenas em relao quelas de Renaud Sainsaulieu.

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    trinta anos para c, nos discursos sobre a sociedade francesa, talvez mais do que nas outras sociedades industrializadas comparveis. Mas o seu significado est longe de ser unvoco. Pelo menos podem-se distinguir trs significados da palavra crise consoante ela se aplica ao emprego (o mais corrente), ao trabalho (o mais complexo) ou s relaes de classe (o mais escondido). Neste captulo, seguirei estas trs pistas, tentando esclarecer a natureza do processo que est em causa. Partindo da dinmica do capitalismo como destruio criadora e o processo de racionalizao, interessar-me-ei pelas evolues do emprego e pelas transformaes do trabalho, do ponto de vista do seu significado e das relaes sociais que elas pem em jogo. De facto, a questo das relaes subjectivas em relao ao emprego, as implicaes no trabalho e nas suas relaes sociais desembocar numa tentativa de elucidar o que significa a crise das identidades profissionais no sentido que acabo de recordar.

    O PROCESSO DE MODERNIZAO: RACIONALIZAO E DESTRUIO CRIADORA

    Marx e Weber perceberam ambos muito bem a novidade radical introduzida pelo capitalismo na histria. Aquilo a que o primeiro chamava revoluo incessante das foras produtivas , o segundo fazia dela um aspecto maior do processo histrico de racionalizao. Segundo Weber, este ltimo consiste em difundir por toda a parte, em todas as esferas da actividade, uma nova lgica de pensamento e de aco, uma racionalidade fim-meios que visa a optimizao dos resultados, mas tambm o domnio do futuro pela previso. talvez Schumpeter que, acumulando os dois pontos de vista precedentes, encontrar a frmula mais sugestiva; a destruio criadora que , segundo ele, esse processo que consiste, atravs do capital e dos seus detentores, em destruir constantemente as antigas formas de produo e de troca para as substituir por formas mais inovadoras, isto , ao mesmo tempo tecnicamente mais eficazes e finaceiramente mais rentveis^.

    o que hoje em dia se chama de forma corrente modernizao. preciso voltar a esta noo antes de ver as suas implicaes no emprego, no trabalho e nas relaes de classe. Porque ela d aso a interpretaes muito diversas, s vezes passionais, por tocar em representaes e crenas fortemente enraizadas nas subjectividades. A modernizao uma palavra que amedronta porque ela muitas vezes compreendida exclusivamente como processo de privatizao, de adopo de normas de rentabilidade financeira e de organizao selectiva, implicando despedimentos e flexibilidade. A modernizao no raras vezes qualificada em primeiro lugar como econmica e sinnimo de triunfo da racionalidade

    (3) Cf. Joseph A. Schumpeter, Capitalisme, socialisme et dmocratie, Paris, Payot, 1965 (l. ed. 1942). Neste clssi co, Schumpeter faz um balano crtico da doutrina marxista, estando de acordo com Marx sobre o facto de que duvidoso que o capitalismo possa sobreviver. Paralelamente, ele duvida tambm que o socialismo possa funcionar, particularmente por causa da sua interpretao muito particular da democracia.

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    instrumental"*, do reino do dinheiro, da nica preocupao do crescimento da produtividade que se tornou, para alguns, uma verdadeira ameaa. Ora, o que Weber designava pela expresso racionalidade meios-fins (Zweckrationalitt), era, para ele, o resultado dum longo processo histrico que era antes de mais aplicado a todas as culturas e religies (ftizendo-as passar duma dominao comunitria da magia a formeis mais societrias de adeso privada e voluntria, cujo protestantismo representava, segundo ele, o resultado), depois s fdosofias e a outros sistemas cognitivos {fazendo-as passar da metafsica especulativa a formas de reflexo crtica sobre o conhecimento), e finalmente economia e poltica. A economia, enquanto gesto de recursos raros, racionalizou-se e tornou-se moderna pelo e no capitalismo que impe a lgica do mercado e da concorrncia. Mas, ao mesmo tempo, a empresa, tornando-se a unidade de base da competio no mercado, racionalizava a sua organizao para a tornar o mais competitiva possvel e para melhor dominar o futuro. a razo pela qual o empresrio constitui, para Weber, assim como para Schumpeter, uma figura eminente da modernidade (cf. cap. 1). simultaneamente aquele que consegue conquistar uma posio (mais ou menos duradoura) no mercado e construir uma empresa de alto rendimento (com uma durao varivel), isto , moderna. Mas esta modernidade coloca um problema, hoje como ontem, talvez mais hoje do que ontem^. Sem dvida porque ela parece mais destrutiva do que criadora, mais incontrolvel do que dominada, mais perigosa do que promissora.

    E no entanto a dupla empresa-mercado como vector da racionalizao no se encontra apenas, para Weber, orientada para a procura sistemtica do lucro (imediato) mais elevado, como est tambm procura do domnio do tempo (futuro), do domnio do futuro pela previso, da capacidade de conquistar e conservar posies avantajosas. um ponto capital porque supe formas especficas de concorrncia, fundadas sobre vantagens competitivas, fundadas sobre a antecipao. Para o conseguir, preciso inovar. A realizao de inovaes a lgica dos investimentos tcnicos - incluindo a organizao - mas tambm dos humanos. aquilo que Schumpeter tinha previsto: a inovao, tcnica e humana, tornou- -se a fora produtiva decisiva da racionalizao capitalista moderna. uma destruio criadora porque ela tende a pr em funcioncimento formeis novas de actividades (de produto, de processo de organizao, de formao) que permitem adquirir vantagens compe-

    (4) A expresso racionalidade instrumental no pertence a Max Weber, mas aos filsofos da escola de Franqueforte (Adorno, Horkeimer, Habermas...). Eles designam assim a subordinao de todas as lgicas de aco consolidao do sistema tecno-burocrtico, o do dinheiro e da potncia, que se afasta e se disjunta dos mundos vividos pelos indivduos.

    (5) surpreendente constatar a sada, durante o mesmo perodo, de trs obras que se interrogam, de forma crtica, sobre a noo de modernidade e sobre aquilo em que se est a tornar, cf. Antony Giddens, Les consquences de ta modemit. Paris, LHarmattan, 1994 (1." ed., 1991), Charles Tciylor, Maaise dans la modemit, Paris, Cerf, 1993 (l. ed., 1989) e Alain Touraine, Critique de la modemit. Paris, Fayard, 1992. possvel encontrar um ponto comum a estas trs reflexes, para l de numerosas diferenas: a evoluo social e humana em curso no aquela que tinha sido antecipada pelos grandes pensadores da modernidade (cf. cap. 1).

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    titivas, no s a curto prazo (incio de oportunidades), mas a mdio e longo prazo (domnio da tecnologia, do saber produzir), o domnio do tempo, o dos relgios, que constitui 0 desafio principal da modernizao. Ora, este implica um terceiro grande actor no processo, um actor capaz de assegurar as condies de inovao e regular as trocas, um actor cuja lgica no instrumental, mas reguladora, um actor que no tenha como objectivo o lucro privado mas o bem comum. o actor pblico.

    Esta posio no partilhada por todos os analistas. Alguns consideram que hoje j no so os Estados mas os grupos industriais e financeiros privados que querem dominar o mundo para a amontoar um imenso proveito e que se assiste dissoluo da identidade dos Estados-Nao'' e ao triunfo do ultraliberalismo. Nesta perspectiva, a inovao torna- -se puramente destruidora, unicamente submetida aos imperativos da rentabilidade imediata e da concorrncia desenfreada, puramente especulativa. Mas, ser isto defensvel? A preocupao a mdio e a longo prazo poder ser evacuada da estratgia das grandes firmas multinacionais? Podero estas ltimas dispensar os investimentos pblicos? 0 mercado mundial poder desenvolver-se sem outra regra que no a da lei do mais forte? A competio mundial no implicar mais inovaes produtivas? Embora nada permita responder afirrnativamente a estas questes, o debate continua vivo.

    Sem dvida, o que h de novo, desde h meio sculo, que a condio principal da inovao j no o gnio dum inventor ou o ethos pessoal dum empresrio, a investigao cientfica e, especialmente, a transferncia da investigao produo. Sobretudo desde a ltima guerra que os actores que desempenharam um papel determinante neste processo por intermdio dos grandes programas de investigao, decididos e realizados pelas instncias polticas, so os grandes Estados-Nao, aos quais chamamos as grandes potncias. 0 termo instrumental no nos deve pois desnortear: trata-se, a tempo, tanto duma lgica poltica como econmica, tanto duma lgica de rentabilidade (privada) como de domnio (pblico). Foram as guerras mundiais, substitudas pela conquista do espao e a guerra fria (e mais recentemente as guerras de interveno, no Golfo, no Kosovo...), que permitiram s grandes empresas (pblicas ou privadas) de armamento, aos complexos militares e industriais fomentar a inovao graas incorporao da investigao cientfica na produo. A questo das polticas econmicas, dos objectivos de aco pblica est pois no seio da modernizao que tem como desafio principal o saber produzir. 0 domnio das tecnologias e da organizao pois o futuro. No s um assunto das empresas ou de mercado, tambm um assunto poltico, um assunto de Estado.

    (6> Cf. Philippe Delmas, Le maitre des horloges. Paris, Odile Jacob, 1991. Para alm de situar o domnio do tempo no centro do processo histrico da modernizao, este livro mostra claramente o papel desempenhado pelos grandes Estados nos desenvolvimentos recentes da mundializao. Mas ele tambm constata que o Estado vive uma crise de identidade que decorre do facto do regresso do privado, das fracturas entre grupos sociais e geraes e da perda de legitimidade. Ele convoca uma revoluo social que reabilite a aco pblica, inclusive num Estado europeu que encontrou finalmente a sua identidade...

    (7) Cf. Ignacio Ramonet, Gopolitique du chaos, Paris, Galile, 1997, p. 11 e 25.

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    nesta fase que intervm um novo estdio do processo de modernizao a que se chama, cada vez com mais frequncia, mundializao. Em primeiro lugar, trata-se, escala planetria, do domnio dos mercados financeiros sobre as trocas. Doravante, os capitais circulam sem fronteiras, em tempo real, e tendem a impor a sua lgica de rentabilidade imediata a todas as transaces financeiras. Mas trata-se tambm duma vasta competio pelo domnio das tecnologias, das fontes de riqueza e de inovao, de produes do futuro. A questo que aqui se pe saber como e por quem sero reguladas estas trocas de capitais, de tecnologias, de saberes. Porque a modernizao no s a de capitais e sabe- res, tambm a das regras, ainda muito insuficientes e muito incertas. claro que se est a desenhar um movimento que ultrapassa o quadro dos Estados-Nao e que tenta, com resultados aleatrios, definir novas regras a nvel mundial em matria de emprstimos financeiros (Banco Mundial e Fundo Monetrio Internacional) e em matria de trocas (Organizao Mundial do Comrcio)*. So claras as confrontaes, as dilaceraes em torno, deste desafio decisivo que representa o acesso ao mercado mundial e aos seus recursos, s tecnologias do futuro, s formas de organizao modernas. claro que a Europa tenta ter meios de participao nesta concorrncia internacional e nesta nova regulao. Aquilo que muito menos claro so os incidentes deste processo de modernizao, neste fim de milnio, na vida quotidiana dos indivduos, e as conseqncias deste processo nas condies de vida, nos salrios e antes de mais nos empregos.

    A EVOLUO DOS EMPREGOS; O CASO FRANCS

    Em matria de empregos, este processo histrico de modernizao (racionalizao e destruio criadora) toma historicamente a forma de escoamento**. Os empregos agrcolas tradicionais foram primeiro destrudos para alimentar a grande maquinaria industrial. A Inglaterra da segunda metade do sculo XIX foi a primeira a ver sua populao agrcola cair de maneira brutal e dramtica. a poca das leis da pobreza que no resolvem muito a questo social, a do pauperismo, mas que acabam por acelerar o xodo rural e a expanso da indstria, primeiro da manufactura e depois fabril. Todos os outros pases conhecero o mesmo processo, em pocas e modalidades diversas. A Frana rural, cara a Per- nand Braudel, desestrutura-se lentamente durante mais dum sculo e meio mas s muda em profundidade depois da II Guerra Mundial. 0 fim dos camponeses desemboca numa segunda Revoluo Francesa* que, em meado dos anos 1960, faz entrar a Frana na era

    (8) 0 resultado da negociao que no se assumiu em Seattlc, em Dezembro de 1999, e que deu azo uma mobilizao colectiva inesperada, decisiva para o futuro da regulao mundial e para demonstrar a capacidade da Unio Europia a pesar sobre as decises, constituindo assim um teste essencial da sua potncia efectiva.

    (9) Em Frana, a teoria do escoamento foi difundida nomeadamente por Alfred Sauvy; cf. La machine et le chmage, Payot, 1957.

    (10) Cf. Henri Menras, La seconde Jivolution &anaise, 1965-1984, Gailimard, 1988. Esta obra est

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    Isto porque, na sociedade francesa, o escoamento no acontece ou processa-se mal. A terciarizao est de facto em curso (mesmo se este termo esconde vrios processos hetergeneos). Em 1968, 44% da mo-de-obra francesa estava empregada na indstria, mas esta taxa s representa 28% em 1998. Em 1968, o sector tercirio mercante e no mercante, representa, em Frana, 45% de activos, e em 1998 representa 66%. 0 operrios, no senso do INSEE, que representavam perto de 40% da populao activa (mais de metade so homens) no recenseamento de 1975, s representam um pouco mais de 20% no recen- seamento de 1999'. Mas uma parte importante da antiga mo-de-obra operria no escoada, sem dvida por falta de emprego acessvel, mas tambm pela falta de mobilidade e de uma poltica de converso eficaz dos antigos aos novos empregos. Aquilo que se multiplica, por si mesmo mas tambm por causa duma fraco importante de filhos de operrios que no tm diplomas convertveis no mercado de trabalho, so as situaes de desemprego, com uma durao mdia cada vez mais longa"", de precaridade (empregos com durao limitada, empregos com subsdios no renovveis, trabalho temporrio, etc.), e a reforma antecipada (a populao activa com mais de 50 anos baixa desde o incio dos anos 1980, a das mulheres mais rpido do que a do homens). A Frana particularmente visada por este no-escoamento. Ele provoca formas diversas daquilo a que se comea a chamar, a partir da segunda metade dos anos 1980, por excluso'.

    E se fcil ver a destruio, j a criao mais difcil. E, no entanto, ela tambm aconteceu. Robert Castel lembra regularmente' que a populao francesa nunca teve, no fim

    Franois Dubet e Danilo Marcutelli hesitam ao caracterizar a sociedade francesa dos anos 1990, nenhum dos termos sociedade ps-industrial, sociedade ps-moderna, sociedade de consumo, sociedade capitalista avanada... lhes parece conveniente. Eles constatam conflitos maiores de interpretao e a falta de princpio de totalidade. Isto tudo no constituir um indcio lagrante de crise identitria, ao mesmo tempo que uma crise da sociologia cl.ssica? Cf. Dans quelle socii vivons-nous?, Seuil, 1998.

    (16) No momento ein que escrevo este livro, os quadros de recepseamento de 1999 relativos estrutura da populao activa por CSP ainda no tinham sido divulgados. Debrucei-me sobre os resultados do Enqute emploi de 1998 que falam de 22,8% de operrios (39,9% em 1968), 20,1% de empregados (14,5% em 1968) e 35,9% de profisses intelectuais superiores e intermdias (13,1 de quadros mdios e superiores em 1968)... Assim, em trinta anos, passar-se- de 28% a 56% de empregados, profisses intermdias e superiores assalariadas. De salientar que as mulheres so quase to numerosas quanto os homens.

    (17) 0 desemprego de longa durao (inscrio com mais de um ano na ANPE [Agence Nationale pour 1emploil s cresceu ao longo dos anos 1980. A antiguidade mdia no fundo de desemprego duplica entre 1975 e 1989. Ao longo dos anos 1990, depois um ligeiro decrscimo, o desemprego de longa durao comeou a crescer antes de estabilizar, cf. Dider Demazire, Le chmage de longue dure. Paris, PUF, col. Que sais-je?, 1995.

    (18) Cf. Serge Paugam (ed.), exclusion, Vtat des savoirs. Paris, La Dcouverte, 1996. Na sua introduo, Serge Paugam demonstra claramente em que que a noo, tornada oficial no incio dos anos 1990 (nomeadamente, no seguimento da lei sobre o RMI [Revenue Minimum dlnsertion] em Frana e de investigaes que acompanharam a sua execuo), j tem pouco a ver com aquela dos anoS 1960 e 1970 que designava os grupos sociais caracterizados por uma excluso de facto. Doravante a noo est ligada a uma tomada de conscincia colectiva duma ameaa que pesa sobre sectores cada vez mais numerosos e mal protegidos da populao, p. 14-15.

    (19) A frmula encontra-se em Robert Castel, Centralit du travail et cohsion sociale, em Jacques

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    do sculo XX, tantos assalariados (19,6% em 1995) e que estes representam 86% da populao activa, tanto em 1995 como em 1975. J no so sem dvida os mesmos perfis de assalariados porque, se as formas de emprego se diversificaram muito, tambm o trabalho se transformou. Pode-se tentar resumir de forma esquemtica: a antiga sociedade salarial, industrial, manual, conflitual e negociadora deu lugar a uma nova, terciarizada, informatizada, menos conflitual mas menos regulada. As categorias compostas de assalariados com mais licenciaturas aumentaram muito em efectivos assim como em peso relativo; quadros superiores e mdios (nomes anteriores ao recenseamento de 1982), profisses intelectuais superiores e intermedirias (nomes dados depois), empregado(a)s, maiorita- riamente femininos (em trinta anos a populao activa integrou 5 milhes de mulheres, para um milho de homens...), duplicaram praticamente em 25 anos. Algumas actividades conheceram uma progresso sem precedentes: informtica, comercial, de investigao e desenvolvimento, conselho, educao e formao, sade e trabalho social, segurana... Um dos problemas mais importantes que estes empregos gerados no so ocupados - com algumas excepes - por aqueles que ocupavam os empregos que foram destrudos (nem mesmo muitas vezes pelos seus filhos). Da estes dados de dualizao do mercado de trabalho e da sociedade, da fractura social, da nova pobreza, da precarizao que se multiplicam, muitas vezes a alto nvel, desde h vinte cinco anos e, especialmente, desde meados dos anos 1990.

    Castel tem razo ao falar de degradao da sociedade salarial sob o ponto de vista das regulaes econmicas, da proteco social dos assalariados e dos riscos de desfilia- o** dos menos diplomados, dos mais frgeis, dos menos protegidos. Ele tem razo quando fala de crise a propsito dos efeitos da competividade erigida pela simples lei econmica e da flexibilidade promovida ao estatuto do imperativo nico da gesto dos empregos. Ele tem razo ao encontrar uma raiz na hegemonia crescente do capital financeiro que faz frente aos regimes de proteco do trabalho construdos no mbito dos Estados-Nao^'. por isso que a execuo de novas polticas sociais por parte dos Estados - e doravante tambm da Europa - constitui uma exigncia vital para fazer face a

    irgoat e outros (ed.), Le monde du travail. Paris, La Dcouverte, 1998, p. 53. Ela sintetiza uma longa argum entao desenvolvida no fim do livro Les mtamorphoses de la question sociale. Une chronique du salarial, Paris, Fayard, 1995. no fim duma longa anlise histrica que Castel conclui a propsito da degradao da sociedade salarial que decorre duma crise do Estado Social que se deve ao mesmo tempo a uma perda de eficcia (falta de meios suficientes mas no s) e a uma crise de legitimidade (na seqncia da sua perda de eficcia mas no s). Esta questo ser retomada no captulo 5, a propsito das polticas de ajuda insero dos jovens.

    (20) A noo de desfliao introduzida por Robert Castel coloca no entanto problemas na medida em que deixa supor que a alternativa, para os mais desamparados, se situa entre a filiao na sociedade salarial (pelo emprego, pela proteco social, pelo rendimento do trabalho) e o isolamento, a falta de laos sociais, a dependncia (pelo RMl). Ora, existe uma terceira via que a da associao a movimentos de defesa e d e luta colectiva como, por exemplo, o movimento dos desempregados e/ou aquele dos sem. TVata-se d u m a forma de filiao que no nem imaginria, nem dependente...

    (21) Cf. a nota 19 da pgina precedente.

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    esta degradao. Mas ela no pode resolver tudo; a crise do emprego, a crise de regulao e do mercado de trabalho, faz-se acompanhar duma crise do trabalho. A questo do trabalho em si prprio, isto , do seu significado^^, dever tambm ser colocada do ponto de vista da inovao (econmica), da integrao (social) e da produo de identidade (pessoal)? Como sair desta crise que est a transformar a Frana num doente do trabalho^*.

    AS TRANSFORMAES DO TRABALHO: TENDNCIAS E INCERTEZAS

    A questo precedente s se coloca se se pensar que o trabalho assalariado tem um futuro. Se, pelo contrrio, se pensar que o trabalho-emprego est em vias de desaparecer assim como a sociedade salarial, que a desafectao em relao ao trabalho progride por todo o lado, que se caminha em direco a uma sociedade do tempo escolhido e da multiactividade, ento a perspectiva diferente^"*. Que esta possa constituir um projecto poltico global, a longo prazo, utpico no melhor significado da palavra, legtimo. Que ela descreva uma tendncia de referncia, uma evoluo em curso, um movimento que conduza ao fim do trabalho, j muito mais contestvel. Em Frana, o debate sobre este tema mesclou constantemente estes dois registos: o das tendncias de referncia e o do projecto desejvel*. De momento, debruar-me-ei sobre o primeiro. Afirmar, sob este ponto de vista, que o trabalho continua central no funcionamento econmico como na estruturao social e no desenvolvimento psquico simplesmente tentar interpretar o

    (22) Chamo significado do trabalho, a componente das identidades profissionais que diz respeito ligao com a situao do trabalho, simultaneamente actividade e s relaes de trabalho, ao compromisso de si prprio na actividade e ao reconhecimento de si prprio pelos colegas (e nomeadamente aqueles que julgam o resultado), cf. a ltima parte de La sodalisation, obra citada, 1991, p. 199-256.

    (23) Cf. Jacques De Bandt, Christophe Dejours, Claude Dubar com Charles Gada, Catherine Teiger, La France, malade du travail. Paris, Bayard, 1995.

    (24) Cf. Andr Gorz, Le travail-fantme, em Le monde du travail, obra citada, 1998, p. 30-32. Este texto retoma argumentos longamente desenvolvidos em Misres du prsent, richesse du possible. Paris, Galile, 1997. a justaposio de afirmaes que dizem respeito s tendncias objectivas de emprego e do trabalho assalariado (que Gorz chama trabalho-emprego) e s atitudes subjectivas dos jovens dos vrios pases industrializados que valorizam o seu desenvolvimento que cria um mal-estar constante. 0 retrato feito do trabalho-emprego voluntariamente denegrido para contrastar com as aspiraes dos jovens em matria de actividades enriquecedoras. No o caso da obra que apresenta as atitudes dos jovens alemes em relao ao trabalho: Rainer Zoll, Nouvel individualisme et solidarits quotidiennes. Paris, Kim, 1992.

    (25) Encontramos uma ilustrao entre julgamento de facto sobre as evolues do trabalho e julgamento de valor sobre o trabalho na obra de Dominique Mda, Le travail, une valeur en voie de dis- parition. Paris, Aubier, 1995. A autora tem tendncia a assimilar o resultado das pesquiss dos investigadores que cita a propostas de princpio sobre o valor do trabalho, assim como tambm resvala regularmente de uma anlise do conceito de trabalho nos grandes sistemas filosficos para apreciaes sobre as actividades ou relaes de trabalho na sociedade actual. Este resvalamento tambm foi detectado por Dominique Schnapper em Contre la fn du travail. Paris, Textuel, 1997.

  • A crise das identidades

    sentido do processo histrico em curso e no tomar uma posio poltica ou tica sobre as orientaes que devem triunfar. A confuso entre os dois registos arrisca-se a chegar a um impasse; aquele que consiste em separar radicalmente o econmico do social e do psquico e aquele que deixa ao poltico muito poucas coisas^.

    A tese que aqui desenvolverei a seguinte; as mudanas no trabalho, reconhecveis atravs dos trabalhos de investigadores (e as minhas prprias observaes), so contraditrias. Evolues, encetadas durante algum tempo, so mais tarde bloqueadas, tendncias manifestas num dado contexto so muito incertas num outro, transformaes impressionantes num sector so quase invisveis, e por vezes contrrias, num outro sector. E a razo pela qual a inveno duma nova forma identitria, ao mesmo tempo organizao do Ns (societrio) e nova configurao do Eu (relacionai e biogrfico) que pode ter sido detectada aqui ou ali, no parece acontecer. Hoje, a sua emergncia est em crise. Para o demonstrar, tentarei apoiar-me nalguns trabalhos que permitem detectar tendncias difceis de realizar, em matria de trabalho, no perodo recente. Priviligiei trs, sabendo que a minha seleco arbitrria e explicitamente orientada; trata-se de tendncias que tm incidncias identitrias importantes, que misturam a racionalizao e a inovao, que se referem a relaes no trabalho e no a formas e categorias de emprego, que concernem as exigncias que os empregadores e os decisores polticos alegam para recrutar, formar ou gerir os recursos humanos e a maneira como os assalariados lhes reagem'''.

    O trabalho como resoluo de problemas

    A primeira recai sobre a prpria definio daquilo que o cerne da actividade do trabalho. Ela tornou-se, cada vez com mais frequncia e sob formas muito variadas, uma actividade de resoluo de problemas e no de execuo mecnica de instrues, de aplicao de procedimentos preestabelecidos. Esta primeira tendncia est evidentemente religada a

    (26) E.sta impotncia do poltico uma dimenso capital. Ela motiva, por exemplo, anlises de Jeremy Rifkin em La n du travail, trad.. Paris, La Dcouverte, 1996 (l. ed. 1995), que se debrua sobre a sociedade americana, onde, segundo o autor, a dualizao social j foi feita e a excluso das minorias (pretos dos guetos, hispnicos...) um dado adquirido. A transposio para a Frana, esboada por Michel Rocard no seu prefcio, parece-me perigosa na medida em que d crdito tese segundo a qual j no h nada de positivo, de formativo a esperar das actividades regidas pelo mercado e em que o nico objectivo vita! consiste n a passagem dos destinos consagrados ao nico trabalho produtivo a destinos consagrados ao uso solidrio e criativo dos tempos livres (p. XVII). Esta ideia parece-me muito contestvel.

    (27) O reconhecimento das tendncias pesadas beneficiou de duas snteses muito ricas em resultados de pesquisa; J. Kergoat, J. Boutet, H. Jacot, D. Linhart, (ed.), Le monde du travail. Paris, La Dcouverte, 1998, c M. De Coster e F. Pichault (ed.), Ti-ait de sociologie du travail, Bruxelas, De Boeck, 1994 (2.* ed. 1997). E le foi tambm facilitado pela organizao do Colquio Le Travail. Recherches et prospectives, Lyon, Dezembro de 1992, cujas diversas comunicaes foram publicadas em nmeros especiais de revistas como Sociologie du travail, Futur antrieur, Projet, etc. Ele tambm se inspirou em teses desenvolvidas em 1. De Bandt, C. Dejours, C. Dubar, C. Gdea, C. Teiger, La France, malade du travail, Paris, Bayard, 1995.

  • A crise das identidades profissionais

    estas formas mais importantes de racionalizao que foram a automatizao dos meios de produo e a informatizao dos dispositivos de trabalho. desde os anos 1950 e 1960 que se encontram as primeiras formas nas indstrias de processo, (cimenteiras, indstrias petroqumicas, siderurgia, nuclear, por exemplo), cujo problema a gesto de fluxo. Mas tambm as encontramos em gestao, a partir do incio dos anos 1950, ntis primeiras oficinas automatizadas, dotadas de mquinas de transferncia, das fbricas Renault, estudadas por Alain Touraine^*. No incio dos anos 1960, Pierre Naville fazia o balano destas formas de produo a que ele chamava automao e considerava que elas eram muito minoritrias na indstria francesa e que a sua generalizao no era uma certeza^. Trinta anos mais tarde, a inveno do microprocessador, o estmulo da concorrncia, os imperativos de gesto e a eliminao de numerosas tarefas repetitivas realizadas pelas mquinas permitiram a este modelo da vigilncia activa de processo contnuo tornar-se mais corrente, no s na indstria mas tambm nos servios.

    Esta forma de trabalho, mesmo se se alastrar, no suprime para sempre o taylo- rismo*. Simplesmente, houve uma parte do trabalho operrio que se transformou profundamente; o trabalho em cadeia, imortalizado por Chaplin em Os Tempos Modernos, j no a figura dominante do trabalho operrio moderno. Alis, preciso homenagear os ergnomos franceses*' que foram sem dvida dos primeiros a distinguir, nos operrios especializados em cadeia, o trabalho terico (as tarefas a cumprir segundo o gabinete dos mtodos) do trabalho real (a actividade do trabalho, o que faz aquela ou aquele que

    (28) Cf. Alain Touraine, Uvolulion du travail ouvrieraux usines Renault, Paris, Ed. do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), 1955. Esta obra , sem dvida, a primeira em Frana a argumentar, com base em observaes e anli.ses, sobre aquilo em que se tornar, trinta anos mais tarde, o modelo de competncia. Cf. Claude Dubar, La sociologie du travail face la qualification et la competence, Sociologie du travail, 2/1996, p. 179-196.

    (29) Cf. Pierre Naville, Fers Vautomatisme social?, Gailimard, 1963. Contrariamente ao pessimismo de Friedmann em relao s evolues do trabalho operrio, Naville analisa positivamente o duplo movimento de automatizao integrado na produo e o desenvolvimento da formao humana e social na sociedade. Mesmo se ele antecipa dramas no processo de racionalizao que revolucionam a estrutura dos empregos, no adere postura trgica de Friedmann, apostando na excluso do trabalho apenas como forma de compensar a alienao do taylorismo...

    (30) 0 debate ps-taylorista ou neo-taylorista, encetado a partir do incio dos anos 1970 na sociologia do trabalho, parece-me hoje muito menos virulento j que foi largamente dissecado: os dois movimentos coexistem constantemente: um movimento que visa captar e at mesmo valorizar os saberes e o savoir-faire dos operadores (operrios, tcnicos, engenheiros...) para permitir a inovao e um movimento que visa ignorar e controlar estas competncias desenvolvidas na actividade do trabalho para conseguir realizar o maior lucro possvel e racionalizar a produo. Tudo depende do momento do ciclo considerado (inovao, estandardizao, reconverso) e da conjuntura visada.

    (31) CL F. Daniellou, A. Laville, C. Teiger, Fiction et ralit du travail ouvrier, Les Cahiers franais, n. 209, 1983, p. 39-45. A origem da teorizao das diferenas entre trabalho prescrito e trabalho real vem dum inqurito de 1969-1972 numa fbrica de montagem de televises do Oeste de Frana, onde a anlise ergonmica do trabalho permitiu pr em evidncia as formas inditas de actividade, de resoluo de problemas, de inventividade por parte dos trabalhadores considerados, no entanto, como no qualificados e simples executantes.

  • !"(j6 : A crise das identidades

    executa a sua tarefa). 0 operador no passivo, totalmente subjugado, ele elabora modos operatrios que mobilizam os seus prprios recursos, ele gera constantemente um conjunto de acontecimentos que lhe permitem decidir aces a conduzir, ele readapta os objectivos prescritos e desenrasca-se com os meios que dispe, ele executa competncias incorporadas para conseguir os seus resultados. Resumindo, o trabalho tido como o mais mecanizado e considerado como o menos qualificado j , sua maneira, uma actividade de resoluo de problemas, nem que seja s por causa das vicissitudes e do mal funcionamento desconhecido do sistema de produo. Mas esta actividade no reconhecida e, pior que isso, ignorada no s atravs da organizao e imposio de contrariedades temporais, como tambm pelo salrio e falta de perspectiva de futuro, de reconhecimento e de carreira.

    Ora, aqueles que observam e analisam as transformaes do trabalho, tendo em conta 0 trabalho real e no s prescrito, parecem estar de acordo quando reconhecem que, desde os anos 1960, em contextos variados, o prescrito tem tendncia para se apagar quando o nvel de exigncia tende a aumentar^. Sem dvida que ainda muito cedo para retraar habilmente as etapas do processo que, das greves dos operrios especializados no incio dos anos 1970 aos grupos semiautnomos do fim dessa mesma dcada, chegou, por via dos crculos de qualidade, e dos grupos projecto, em relao com a automatizao e a difuso massiva da micro-informtica, a estes dispositivos de gesto que se difundiam em todas as grandes empresas que procuravam a competitividade. De qualquer forma, a paisagem modificou-se e o cerne da actividade de trabalho mais banalizado deslocou-se: 0 acto produtivo alarga-se, desloca-se em direco a montante, tende a tornar- -se actividade de gesto global de processo, de fluxos fsicos e de informaes; ele intelectual iza-se e ganha autonomia.

    Que fique bem claro o que quero dizer: no porque os dirigentes das empresas perceberam tudo que podem abusar destas competncias incorporadas e antes ignoradas, no porque eles alargaram aos assalariados o poder de reflectir sobre as formas de organizao, os modos operatrios que os incitaram a elaborar dignsticos e a propor transformaes que as relaes sociais de trabalho mudaram completamente, que o reconhecimento dos assalariados de execuo um dado adquirido e que o poder hierrquico j no existe.

    (32) Cf. Franois Gurin, Ractivit de travail, em Le monde du travail, obra citada, p. 176. 0 autor, ergnom o, mostra bem em que que a diminuio do prescrito pode, em certos contextos, fazer-se acom panhar dum crescimento dos resultados. Existe, de facto, vrias formas de prescrever seno os meios, pelo m enos os objectivos a atingir, explcitos ou implcitos. Cf. o artigo de Corinne Chabaud, in Les analy- ses du trauail. Enjeux e t formes, CEREQ (Centre dtudes et des recherches sur les qualifications), n." 54, 1990.

    (33) Cf. Gilbert de Terssac, Autonomle dans te travait. Paris, PUF, 1992. Esta obra tem o mrito de mostrar concretamente como que a regulao conjunta, publicada por Jean-Daniel Rcynaud em Les rgtes d u je u (A. Colin, 1989), se difunde nas empresas, ao mesmo tempo que se difundem a automatizao da produo e a informatizao dos dispositivos de trabalho. Concentradas no incio nas indstrias de processao, estas formas de regulao de origem espalham-se a outros sectores e transformam os dispositivos anteriores de controlo e a ligao ao trabalho dos operadores.

  • A crise das identidades profissionaisiH .

    0 que eu quero dizer que o trabalho, mesmo o mais comum, tornou-se um desafio para o reconhecimento de si, um espao de palavra a investir (ou no), um campo de problemas a gerir e para tentar resolver (ou no), um universo de obrigaes implcitas e j no de contrariedades explcitas de obedincia*"*. Quem diz desafio, diz ao mesmo tempo incerteza e grande implicao. 0 trabalho, mesmo assalariado, tornar-se-, para cada vez mais assalariados, uma ocasio de criatividade pessoal e colectiva, reconhecida e valorizada ou, pelo contrrio, uma necessidade de sobrevivncia pelo cumprimento de tarefas cada vez mais insignificantes? Nada est ainda decidido. 0 recurso criatividade** dos assalariados, para resolver os problemas e rentabilizar os investimentos, faz-se acompanhar de racionalizaes que dividem e fragmentam as actividades e so exercidas ao mesmo tempo pelos colectivos. A concorrncia e a competio penetram nas empresas, dividem os assalariados ainda mais quando se fazem acompanhar pela reduo de empregos e de racionalizao dos recursos humanos. Eis o que permite compreender o desen- cadeamento, nas empresas assim como em toda a sociedade, do modelo da competncia, ao longo dos anos 1980 e 1990.

    O trabalho como realizao de competncias

    Aqui, abordamos uma segunda tendncia difcil que prolongou e inflectiu a precedente. Em Frana, a partir de meados dos anos 1980*, a lgica competncia desenvolveu-se quase em simultneo nas organizaes de trabalho e em certos segmentos do sistema educativo. Antes de mais, ela consiste no questionamento duma concepo muitas vezes qualificada como burocrtica da qualificao, previamente adquirida e sancionada por

    (34) Cf, Josiane Boutet, Quand le travail rationalise le langage, Le monde du travail, obra citada, p. 153-164. A autora demonstra claramente porque que que os dispositivos de gesto recorrem, de forma crescente, palavra e aos textos dos assalariados. Mas estes repousam com frequncia numa concepo tecnicista e mecnica da comunicao distinta duma concepo compreensiva e intersubjectiva. Se o saber comunicar se est a tornar uma competncia profissional, na sua dimenso cognitiva, ele s produtor de identidade na sua dimenso social, que supe uma reapropriao pessoal e colectiva destes instrumentos de gesto. Para exemplos de reapropriaes em contextos muito diferentes da grande empresa burocrtica, cf. Delphine Mercier, Frdric Schaud, Pierre TVipier, Management Tools in the process of Olobalization, C. Mako e C. Warhust (ed.), The Management and Organization o f Firm in the Global Context, University of Gdll Press, 1999, p. 127-136.

    (35) Lembremos que o trabalho no s pena e labor mas tambm obra e criao. Em alemo, como em ingls, ele descreve-se atravs de duas palavras: labor e work, arbeit e werk. Cf., sobre este ponto, Hannah Arendt, Condition de 1hom m e modeme, trad.. Paris, Gailimard, 1973. A questo da criatividade como produo de obras para si est no seio do processo de identidade pessoal. Cf. cap. 5.

    (36) Lucie Tnguy e Franoise Rop, Sauoirs e t comptences Vcole et dans Ventreprise, Paris, CHar- mattan, 1996. A anlise comparativa dos dispositivos como os referenciais de competncia no ensino tcnico (ou a formao contnua) e os acordos de empresa como o da siderurgia (Cap 2000 - Centre dAffaires de rvrenges) demonstram bem a lgica comum que liga a individualizao dos saberes, posta em prtica atravs das competncias em relao s situaes, e o desafio da avaliao social.

  • ; 98 c r i^ das jdentidades

    um diploma, dando direito a uma contratao, a um nvel de classificao (e de salrio), que corresponde ao nvel do diploma e que assegura de seguida a progresso salarial, mais ou monos automtica, pela antiguidade. Na altura, foi o Conselho Nacional do patronato francs que, de acordo com consultores, lanou uma verdadeira batalha para impor esta noo de competncia, muitas vezes em norne da noo de qualificao, ao mesmo tempo que a empresa era objecto duma vasta reabilitao na sociedade francesa e era redefinida como uma comunidade contratual competitiva''. A competncia, para os tericos da administrao dita participativa, era antes de mais toda a contribuio dos assalariados para a competitividade da sua empresa. Cabe, pois, empresa avali-la (pela contratao), desenvolv-la (pelo trabalho e pela sua organizao) e reconhec-la (pelo salrio e, s vezes, pela carreira). Ao longo desta primeira fase, a formao contnua dos assalariados, gerida na e pela empresa, transformava-se num desafio estratgico e dava lugar a diversas inovaes, por vezes em estreita relao com as transformaes da organizao do trabalho e da gesto (s vezes baptizada como previso dos empregos e at das competncias),

    Foi ao longo deste perodo que se elaborou e se difundiu aquilo a que eu chamei algures uma verdadeira vulgata da competncia que depressa se tornou numa espcie de credo da administrao e dos consultores. Saber, .saber-fazer, saber-estar tornavam-se os trs pilares da competncia, depre.ssa substitudos pelas qualidades a exigir e/ou a desenvolver em todos os assalariados: iniciativa, responsabilidade e trabalho de equipa. Eu chamei a ateno noutro livro que se encontram, quase palavra por palavra, estas qualidades nas recomendaes dos anos 1950 para a formao de quadros considerados na altura como administrativos. A formao contnua, frequentemente acompanhada da colocao de grupos diversos (qualidade, progresso, etc..) pode ser analisada como o lugar duma verdadeira batalha identitria' que permite seleccionar os assalariados dotados dessas qualidades e ajudar os outros a adquiri-las. Aquilo que ligava estas atitudes entre el2is era a iden-

    (37) Cf. Yvon Cannac e a CEGOS, La Bataille de la comptence. Paris, ditions dOrganisation, 1984. Este livro marca o pontap de sada duma ofensiva do CNPF (Conseil National du Patronat Franais) para substituir a lgica das qualificaes negociadas colectivamente a partir de diplomas profissionais pela das competncias individualmente adquiridas no ttabalho e reconhecidas s pela empresa com base nos seus desempenhos. De facto, o diploma continua a ser o filtro para uma contratao, o que relativiza a novidade desta lgica num contexto de grande desemprego e de inflao dos diplomas. Cf. as anlises desenvolvidas em C. Dubar e C. Gada (ed.), La promotion sociale en France, Presses Universitaires du Septen- trion, 1999.

    (38) Em 1983 h dois livros que saem quase em simultneo em Frana e que contribuem para difundir esta form a de administrao: H. Peter e P. Waterman, Le prix de Vexcellence, Paris, Interditions e G. Archier c H. Syryex, Uentreprise de troisime type. Paris, Edio de Organisation.

    (39) Cf. C. Dubar e P. Tripier, Sociologie des professions. Paris, A. Colin, 1998, p. 230 e s.(40) Cf. Danile Linhart, Le torticolis de 1autruche. Limpossible modemisation des entreprises fran-

    aises. Paris, Seuil, 1991. 0 que o autor chama batalha identitria a estratgia de gesto que consiste em desvalorizar as identidades colectivas, de profisso ou classe, para converter os assalariados (aqueles que sobram) a uma identidade de empresa que, mesmo em caso de sucesso, raramente desemboca num reconhecimento.

  • A crise das identidades profissionais

    tidade de empresa, a concordncia com os seus objectivos estratgicos e a mobilizao para os realizar. Aqueles que eram postos de lado sentiam-se ameaados; a sua no participao ou a sua participao crtica designava-os ora como incompetentes, ora como contesta- trios. Os anos 1980 foram tambm a poca em que o movimento sindical, j enfraquecido nas grandes empresas privadas ou privatizadas, sofreram um novo decrscimo.

    0 perodo seguinte (anos 1990) iria ser marcado por uma nova ordem da competncia. De facto, a seguir ao final dos trs gloriosos, a conjuntura econmica ensombrou-se outra vez, o desemprego comeou a subir, inclusive o desemprego de executivos, e as estratgias dos grandes grupos inflectiram-se de forma notria.

    Doravante, nem pensar em jogar a cartada da identidade de empresa que implica carreiras internas e pesadas, dispendiosas operaes de formao e uma administrao participativa aleatria. A nova noo que ento se difundiu foi a da empregabilidade"**. Ela implicava uma mudana mais importante porque primeiro j no era s a empresa que era colectivamente responsvel pelas competncias dos seus assalariados, cada assalariado era responsvel pela aquisio e manuteno das suas prprias competncias"**. A implementao do balano de competncia, pela lei de Dezembro de 1991, vai efectivamente nesse sentido. A carta europeia da formao ao longo da vida (life long leaming), em 1996, deu a esta derradeira evoluo a sua marca europeia"**.

    Ao cabo deste percurso, a lgica da competncia acaba por ser sensivelmente muito modificada. J no nem a escola, nem a empresa (mesmo coordenadas) que produzem as competncias que os indivduos necessitam para aceder ao mercado de trabalho, obter um rendimento e serem reconhecidos; so os prprios indivduos. Eles so responsveis pela sua competncia, nos dois significados do termo: cabe-lhes a eles adquiri-las e so eles que sofrem se no as tiverem. 0 balano da competncia permitir-lhes- saber at onde podero ir neste processo. Eles devem constituir uma carteira de competncias que devero mostrar se quiserem ser contratados. A ideia de cheque individual de formao tem o mesmo significado; a responsabilidade da sua prpria formao. A competncia, sendo a qualificao incorporada no sujeito, interiorizada ao longo do seu percurso, aprendida activamente ao longo das suas formaes, pode ser vendida ou alugada, durante um tempo, a uma empresa que precise para qualquer um dos seus objectivos e se no encontrar melhor num outro pretendente. A empregabilidade antes de mais isto: manter-se em estado de competncia, de competitividade no mercado (como nos mantemos em boa forma fsica) para se poder ser, talvez um dia, contratado para uma misso precisa e

    (41) Cf. Bernard Gazier, Cemployabilit, radiograpfiie dun concept, Sociologie du travail, 3, 1990, p. 76-98, bem como Les stratgies des ressources humaines, Paris, La Dcouverte, Repres, 1993. preciso ressalvar que, em Frana, a ANPE(Association National pour TEmploi) contribui muito para a difuso deste termo.

    (42) Assim, a doutrina aproximava-se muito da teoria neo-clssica do capital tiumano para a qual a formao concebida como investimento individual a rentabilizar, cf. Dubar e Gada, La promotion sociale en France, Lille, Presses Universitaires du Septentrion, 1999, p. 47-49.

    (43) Ibid., p. 56-60.

  • ; ; ;]00^ _ A crise das identidades

    limitada, uma prestao determinada. De facto, estas so palavras novas para uma relao antiga: a do profissional e dos seus clientes, a relao de servio.

    O trabalho como relao de servio

    talvez a transformao mais significativa do trabalho j que recai sobre o seu prprio significado. E ainda por cima ela concerne potencialmente toda a gente: assalariados do sector privado e da funo pblica, da grande empresa e das PME (Pequena Mdia Empresa), assalariados atpicos e no assalariados. Ela acompanha, ao mesmo tempo, as evolues do trabalho industrial, agrcola, artesanal e o movimento de terciarizao das actividades. Ela coloca no seio da actividade do trabalho a relao com o cliente, interna ou externa, final ou intermediria, directa ou indirecta. Ela faz da conana uma componente central da relao, e da satisfao do cliente um elemento essencial do sucesso de empresa e do reconhecimento de si. Ela acompanha um movimento de transformao da organizao burocrtica, annima e fechada, numa empresa-rede que religa pequenas unidades directamente em contacto com o mercado.

    Nas grandes empresas, o movimento inicia-se quando se difundem os imperativos de qualidade e os preceitos da administrao participativa. Cada assalariado deve considerar-se como um fornecedor dum ou vrios clientes e cliente dum ou vrios fornecedores. Esta relao cliente-fornecedor o centro dos dispositivos de qualidade total. Ela tambm a justificao das reorganizaes da gesto da produo e, para alm disso, da empresa inteira. J no se trata de produzir primeiro e de vender em seguida aquilo que foi produzido. Trata- -se de responder s exigncias do mercado, de colocar o cliente final no centro das actividades, de reagir perante as evolues dos seus desejos, de antecipar os seus comportamentos de compra e de tentar suscit-los. As reorganizaes mais importantes da produo so justificadas por ele: o mesmo a tempo, por exemplo, consiste em engrenar uma produo a partir duma encomenda optimizando a qualidade, minimizando os atrasos, integrando a gesto da produo gesto comercial global. um trunfo decisivo na concorrncia.

    Mas a mudana da forma organizacional que decisiva: as PME ditas inovadoras servem de modelo"* ,^ a a relao com o cliente sempre foi valorizada e considerada como uma vantagem competitiva. Ela mais personalizada, mais prxima e tambm mais flexvel. Sm all is beautitull: o espao local, as relaes de confiana, a partilha duma cultura com um so valorizadas^*. Doravante, com base neste modelo que o marketing vai

    (44) Cf. Michel J. Piore e Charles F. Sabei, The Second Industrial Divide. Possibiiities for Prosperity, Nova loi-que, Basic Books, 1984. Este livro marca uma viragem nas estratgias de gesto; ao descobrir as prestaes das PME inovadoras do Silicon Valey, o as de milie Romagne, os gestores vo doravante privilegiar o alargamento nas pequenas estruturas interligadas. isto que dar origem empresa-rede.

    (45) Sobre o modelo das PME, e nomeadamente dos sistemas industriais localizados e os processos identitrios construdos em torno do sistema de troca local funcionando com base na confiana fundada

  • A crisdasidMitidades profissionai _________________ _ j | g

    ganhar uma importncia crescente nas empresas que querem aproximar-se dos clientes, agarrar-se s suas exigncias, tornar-se reactivos. Por isso, a grande empresa transforma-se; descentraliza-se, reduz a burocracia, divide-se em unidades interligadas e torna- -se, afinal de contas, uma empresa-rede mundializada^. Graas informatizao, a organizao centralizada e burocrtica transforma-se assim numa rede de unidades consideradas como PMEs que so postas em concorrncia umas com as outras, a partir de projectos e indicadores de performances. A relao entre o centro e as unidades torna-se anloga quela que rene um chefe que d ordens e os seus subalternos.

    A empresa-rede que emerge deste movimento j no vende s produtos, vende tambm {e compra), s vezes unicamente, os servios. Estes ltimos que s representavam 48% do trabalho em 1975, representam 66% em 1992. Foram os servios mercantis nas empresas aqueles que mais cresceram; servios informticos, financeiros, comerciais, conselhos. Muitas vezes, a grande empresa tem ao mesmo tempo os seus servios/clientes internos e a sua rede de clientes/fornecedores externos; ao coloc-los em concorrncia, o mercado penetra na empresa, ao mesmo tempo que a empresa tenta organizar o seu mercado. Assim, alguns servios estandardizam-se, e at se industrializam, e at se taylorizam, ao passo que outros personalizam-se, praticam a co-produo do servio pela realizao duma relao de profissional com o cliente'"'. a empresa-rede que define misses para resolver problemas, encontrar ou implantar inovaes, alargar e fidelizar a sua clientela.

    Este modelo, muito antigo, da relao de servio entre um profissional reconhecido como tal e os seus clientes (client e no apenas customer) torna-se, ao longo dos anos 1980-1990, em Frana, um verdadeiro modelo de referncia, no s na empresa privada inovadora mas tambm no mundo do servio pblico. Trata-se de transformar os funcionrios em profissionais, isto , em fornecedores de servios a usurios com os quais esto ligados por uma relao de confiana cujas necessidades, na melhor das hipteses, eles procuram satisfazer. uma pequena revoluo cultural que assim solicitada no mundo da administrao francesa onde reina ainda com frequncia a cultura burocrtica do controlo, da proteco hierrquica e o encerramento em relao aos administrados^. uma

    sobre a partilha duma identidade cultural comum, cf. Jean Saglio, change social et identit collective dans les systmes industrieis localiss, Sociologie du travail, XXXIIl, 4/1991, p. 529-544.

    (46) Sobre a empresa-rede, tal como ela se generaliza hoje em dia um pouco por todo o lado nos pases industrializados, cf. Manuel Castells, La socit en rseau, trad.. Paris, Fayard, 1998. A, o autor afirma que, neste tipo de sociedade em gestao, qual ele chama capitalismo de informao, a identidade torna-se o desafio mais importante do processo em curso porque a procura duma identidade torna-se a origem primeira da significao social, ela torna-se a nica fonte de sentido, ela inscreve-se numa aposio bipolar entre Rede e Si prprio (p. 23-24).

    (47) Cf. Jean Gadrey, Les Services, em Le monde du travail, obra citada, p. 83-92, assim como Jacques de Bandt, Les Services dans les socits industrielles. Paris, Economica, 1985.

    (48) Cf. os trabalhos do Centro de sociologia das organizaes e nomeadamente Catherine Grmion, Lidentit dans 1administration, in J. Chevailier (ed.), Videntitpolitique. Paris, PUF, 1994, p. 270-278, assim como Jcan-Pierre Dupuy e Jean-Claude Thoenig, Uadministration en miettes. Paris, Fayard, 1985.

  • 1102; _ _ A crise t e identidades

    autntica conversa identitria que est em desafio num mundo onde se encontram ainda com frequncia identidades categoriais produzidas por uma longa histria.

    A CRISE DAS IDENTIDADES CATe GORIAIS DE PROFISSO

    Assistiu-se, em Frana, desde h trinta anos, ao desmatelamento de sectores inteiros da economia que eram organizados, s vezes desde h muito tempo, sobre a base de comunidades de ofcios"* e que tinham resistido, mais ou menos, s racionalizaes anteriores. Depois do fim dos agricultores*, a Frana assistiu, impotente, ao fecho das minas de carvo e ao declnio dos mineiros de fundo**, crise da siderurgia e total transformao do trabalho dos siderurgistas**, s alteraes na metalurgia que provocaram despedimentos, encerramentos de fbricas e reconverses dolorosas dos metalrgicos**, etc.

    Uma determinada forma colectiva de praticar o seu ofcio, de se organizar e de se definir atravs dela, de estruturar toda a sua vida em torno da profisso, parece estar a afun- dar-se para dar lugar a um outro mundo.

    A identidade de ofcio o exemplo-tipo de identidade comunitria que supe, ento, a existncia duma comunidade no seio da qual se transmitem maneiras de fazer, de sentir e de pensar que constituem ao mesmo tempo valores colectivos (a conscincia orgulhosa) e referncias pessoais (um ofcios nas mos). Geralmente, ela implica identificaes precoces, por parte dos rapazes, ao ofcio do pai que se transmite na famlici, antes mesmo de se aprender com um patro (s vezes o prprio pai) no local de trabalho. Ela repousa em comunidades pertinentes da aco colectiva*"* que permitem ao mesmo tempo a defesa dos interesses dos trabalhadores que se identificam com os seus lderes sindicais, mas tambm o reconhecimento de comunidades de interesses que reagrupam empregados e empregadores em torno de objectivos comuns, super-regras** que cisse- guram, nomeadamente, a sobrevivncia e o desenvolvimento da firma.

    As identidades de ofcio supem, para se reproduzirem, uma relativa estabilidade das regras que as organizam e das comunidades que as suportam. Elas encontram-se sobre-

    (49) Sobre este termo aplicado ao mundo dos ofcios, cf. Denis Segrestin, Lephnom ne corporatiste. Essai sur Vavenir des systmes professionnels ferms. Paris, Fayard, 1984.

    (50) Cf. Henri Mendras, La fn despaysans, Paris, A Colin, 1967,(51) Cf. Claude Dubar, Grard Gayot, Jacques Hdoux, Sociabilit minire..., obra citada, 1982.(52) Cf. Jean Gustave Padioleau, Quand la France s enferre, Paris, PUF, 1981. Cf. tambm Serge

    Bonnet, V hom m e de fer, t. 4, Paris, Ed. do CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), 1982-1986.(53) Cf., nomeadamente, Michel Pinon, Dsarrois ouvriers. Familles de mtallurgistes dans les

    mutations industrieUes et sociales, Paris, UHarmattan, 1987.(54) Cf. Denis Segrestin, Les commnauts pertinentes de 1action colective, Revue franaise de

    sociologie, 2, 1980.(55) Cf. Jean-Daniel Reynaud, Les rgles du jeu. Action collective et rgulation sociale. Paris, A. Colin,

    1989.

  • A crise das identidades profissionais

    tudo onde existem mercados fechados de trabalho relativamente ou totalmente ao abrigo da concorrncia e beneficiando do apoio do Estado. Quando as fronteiras se abrem, quando as barreiras alfandegrias baixam e quando as polticas pblicas se tornam mais liberais, estes mercados fechados esto ameaados. Foi o que aconteceu, em Frana, desde h trinta anos para c, aps um longo perodo de proteccionismo. Por isso, uma nova diviso internacional do trabalho provocou o declnio inexorvel das actividades outrora florescentes. No era a primeira vez que este facto se produzia na histria da economia francesa. Mas, desta vez, o choque foi particularmente duro. Uma paisagem completamente nova emerge desta mutao.

    A crise das identidades de ofcio prejudicou, antes de mais e especialmente, os operrios que tinham entrado nas minas, nas fbricas, nos estaleiros ao longo dos anos 1950 e 1960. Entre eles, muitos eram antigos camponeses e nomeadamente trabalhadores imi- grados. Eles tinham sido mais ou menos bem integrados nestas comunidades de ofcio, no sindicalismo e nas formas de regulao caractersticas do Estado-Providncia. Ao longo dos anos 1980 e 1990, eles viram-se no desemprego, na pr-reforma ou em situaes de precaridade. J no podiam transmitir o seu ofcio aos filhos e toleravam com muita dificuldade 0 desabamento do seu mundo anterior. , sem dvida, o aspecto mais dramtico desta crise identitria: a impossibilidade de transmitir aos seus filhos os saberes e os valores dum ofcio reconhecido e valorizado.

    Mas, esta crise no se alargou a outras categorias de assalariados. De facto, as identidades de ofcio constituem um caso particular, sem dvida historicamente muito antigo, duma forma identitria mais geral qual chamei forma categorial e que supe a predominncia do colectivo sobre os indivduos que a compem ao mesmo tempo que a interiori- zao de normas muito pregnantes em matria de qualificao, de progresso salarial ou de direitos adquiridos. Essas normas ligadas aos modos de regulao em vigor (lei, regulamento, conveno ou costume) concernem tambm os agentes da funo pblica, que consideram com frequncia que a sua mobilizao no trabalho no reconhecida e que os seus direitos adquiridos esto ameaados.

    Em muitas investigaes levadas a cabo ao longo dos anos 1980 e 1990, estes agentes sentiram-se bloqueados, sem esperana de carreira, sem reconhecimento por parte dos seus dirigentes. A grande maioria considera que as regras do jogo mudaram e que eles so prejudicados. A sua esperana numa progresso hierrquica, por antiguidade ou por con-

    (56) Cf. Catherine Paradeise, La marine marchande, un marche du travail ferm, Revue franise de sociologie, 24, 1984.

    (57) Sobre a crise dos anos 1880 e os seus efeitos nos operrios de offcios, cf. Grard Noiriel, Les ouvriers dans la socit franaise. Paris, Seuil, 1986, p. 83-106.

    (58) Cf. Franoise Hurstel, Identit de pre et classe ouvrire Montbliard aujourdhui, Je/Sur Vin- dividualit, Messidor, 1987, p. 155-180. 0 mesmo tipo de transmisso no parece ter sido referenciado entre mes e fdhas; preciso lembrar que os ofcios fazem parte do universo masculino.

    (59) Cf. Claude Dubar e Pierre Tripier, Sociologie des professions, obra citada, p. 153-155.(60) Cf. C. Dubar, La socialisation, obra citada, cap. X, p. 217-228.

  • 4 A crise das identidades

    curso, esvaiu-se, em grande parte por causa da chegada de jovens licenciados - com frequncia desqualificados mas tendo um nvel de estudos muito mais elevado - que tm mais hipteses do que eles de ganhar os concursos e que j no partilham a cultura profissional deles. Eles so tambm confrontados com comportamentos de risco por parte dos utentes, com a violncia dos transportes ou de certos estabelecimentos escolares, com um desprezo por parte de alguns dos seus utentes. Desrespeitados pelos seus clientes, desvalorizados pelos seus chefes, sofrem uma identidade com falta de reconhecimento. Esta crise da identidade profissional talvez afecte mais aqueles que, pelo seu passado, militaram em sindicatos e esperaram transformaes revolucionrias da sociedade francesa. frustrao precedente acrescenta-se uma decepo talvez ainda mais profunda; a de ver afundar-se as convices e as esperanas sem poder continuar a encontrar causas ou responsveis. Esta frustrao pode, por vezes, virar-se contra ela prpria e engendrar formas extremas de desamparo.

    Assitn, a transformao dum ofcio aprendido, transmitido, incorporado numa actividade tornada incerta, mal reconhecida, problemtica, constitui o exemplo da crise identitria no sentido da sociologia interaccionista*. Desde h muito tempo, em Chicago e em outros stios, alguns socilogos fizeram da socializao profissional, das construes e crises identitrias, da relao de servio e dos seus paradoxos um dos seus objectos de anlise privilegiados. Pondo em questo, mais ou menos radicalmente, a distino cannica dos funcionalistas entre protisses e ocupaes, eles tentaram perceber em que que toda a vida profissional, num contexto de mudanas permanentes, de reviravoltas de conjuntura o u de poltica, constitua um percurso (career) atravessado por crises, isto , marcado por incertezas, viragens (tuming points) e provas, confrontado com problemas de definio de si mesmo e de reconhecimento por parte dos outros.

    Ento, muito tentador interpretar estas tendncias de transformao do trabalho como actividades de resoluo de problemas, de pr em prtica competncias e realizar relaes de servio como a difuso progressiva, no mundo do trabalho, em Frana, durante o perodo considerado, duma nova maneira de estar no trabalho, de sentir, de pensar e de viver as actividades profissionais que destabilizaram todas as formas anteriores de representao e de aco, todas as antigas identidades profissionais. Mas, se acontecer, 0 risco para minimizar um problema-chave da vida do trabalho ser grande, uma questo mais importante da sociologia do trabalho que tambm um desafio importante do perodo recente: o das relaes de poder no trabalho, dos conflitos de trabalho e das relaes de classe.

    (61) Unna parte dos textos de Everett Hughes foi consagrada ao desenvolvimento duma perspectiva sociolgica interaccionista sobre as profisses que evidenciam esses conceitos de socializao profissional e de crise identitria ligada a ciclos de vida {career) e nomeadamente s viragens da existncia {tuming potnt). Esse esquema aplica-se, segundo o autor, tanto s ocupaes como s protisses, cf. E. C. Hughes, Le regardsociologique, Ed. de la MSH, 1998, p. 59-136. Para uma sntese do ponto de vista interaccionista sobre os grupos profissionais, cf. C. Dubar e P. TVipier, Sociologie des professions, obra citada, 1998, cap. 5.

  • A crise das identidades profissionais

    IDENTIDADES NO TRABALHO, CONFLITOS SOCIAIS E RELAES DE CLASSE

    Em Frana, uma das caractersticas mais importantes dos ltimos trinta anos parece ser 0 desvanecimento dos conflitos de classe. Tudo acontece como se a escaiada do tema das identidades acompanhasse o declnio do tema da luta de classes. , alis, aquilo que reconhece Renaud Sainsaulieu quando explica porque qe, desde o fim dos anos 1960, o tema da identidade aparecia no contexto dum questionamento da luta de classe como princpio nico da identidade. De facto, constata-se, trinta anos depois, que a longo prazo, a tendncia de recuo dos conflitos salariais. Pelo menos, conflitos visveis, compatibilizados, por exemplo, a partir das jornadas de greve (de cerca de 4 milhes entre 1971 e 1976 a 352 840 em 1997). Porque os pequenos conflitos no faltaram, muitas vezes considerados como conflitos cada vez mais numerosos, com frequncia motivados por reivindicaes de reconhecimento e de dignidade e, finalmente, de identidade. Que identidade? Que relao entre estes conflitos particulares e os antigos conflitos de classe, estas reivindicaes de identidade e as clssicas reivindicaes salariais?

    Se se percorrer a lista destes conflitos, desde o Maio de 68, ltimo grande conflito histrico que se apresenta a si prprio como um conflito de classe, encontram-se conflitos de toda a espcie. Em primeiro lugar, conflitos profissionais que mobilizam, na rua, categorias inteiras que se opem a medidas pblicas que os concernem, reivindicando a criao de postos de trabalho, protestando contra a degradao das suas condies de trabalho, defendendo ou reivindicando um estatuto: os professores (fim de 1987, princpio de 1989, Maro de 1998...), as assistentes sociais (nove semanas no Outono de 1991), os mdicos (1983, 1990, 1996...), os camionistas (1984, 1985, 1997...), os enfermeiros (sete meses em 1988- -1989...), etc. Para alguns, pode-se falar de reconhecimento de identidades colectivas, da inveno de novas formas de aco e de representao. o caso das coordenaes surgidas em diversos destes conflitos e nomeadamente naquele, emblemtico, das enfermeiras. 0

    (62) Cf. Bernard Hrault e Didier Lapeyronnic, Conflits et identit, em La nouvelle socit franaise, A. Colin, 1998, p. 181-212. Penso que a frmula utilizada pelos autores no completamente justa; muitos conflitos, em Frana, desde h trinta anos para c, guardam uma dimenso de luta de classe ao mesmo tempo que outros conflitos. Esta dimenso de oposio de classe dos assalariados aos dirigentes simultaneamente mais defensiva e mais estritamente ligada ao econmico. , como analisava Paui Bouffartigue, ao mesmo tempo o fim da excepo francesa e a interferncia dos desafios polticos. Cf. Le brouiliage des classes, in J.-P. Durand e F.X. Merrien (ed), Sortie de sicle. La France en mutation. Paris, Vigot, 1990, p. 96-130.

    (63) Cf. a entrevista de Renaud Sainsaulieu com Guy Jobert, Lidentit et les relations de travail, ducation permanente, nmero especial Formation et dynamiques identitaires, 128, 1996-3, p. 189.

    (64) Cf. Hrault e Lapeyronnie, obra citada, p. 182.(65) Cf. Danile Kergoat, Franoise Imbert, Hlne Le Doar, Danile Snotier, Les infermires e t leur

    coordination, Lamarre, 1989. Neste livro, as autoras tentam construir a figura do enfermeiro coordenado como nova forma de identidade colectiva em construo, diferente daquela do militante tradicional ao mesmo tempo pela tomada de conscincia da dimenso sexuada e pela exigncia de democracia directa ligada aco.

  • pili _ _ _ A crise das identidades

    Estado o destinatrio principal, mas no exclusivo, destes conflitos que no se apresentam certamente como luta de classes, mas que afirmam a existncia colectiva dum grupo profissional, dum colectivo de assalariados, incluindo a sua dimenso sexuada, duma profisso em iuta contra um sistema administrativo, burocrtico, poltico que ignora os seus verdadeiros problemas, as suas reivindicaes salariais, mas que ignora tambm o seu verdadeiro papel econmico e social. As enfermeiras no querem simplesmente inscrever-se no sala- riado, elas tambm querem inventar novas formas de expresso colectiva.

    Em seguida, o perodo marcado por diversas greves de estudantes do ensino superior e secundrio, conflitos educativos que j no tm o carcter revolucionrio, at mestno insurreccional do Maio de 68, mas que podem comportar aspectos inditos de protesto moral (final de 1986 contra o projecto Devaquet depois do assassinato de Malik Oussekine). Mas os seus objectivos essenciais so a oposio seleco e a reclamao de meios, inclusive para lutar contra o insucesso escolar (cf. a longa greve dos professores de Seine-Saint-Denis em Maro-Abril de 1998 ou dos estudantes do liceu em 1999). Estes conflitos mostram at que ponto o sistema educativo se tornou estratgico e o desafio do sucesso escolar decisivo (as exigncias recaem cada vez mais sobre os mtodos de ensino, os locais, as ajudas para o sucesso escolar...) no s para a integrao social mas tambm para a construo identitria individual.

    0 perodo est tambm repleto de conflitos orientados para a defesa dos empregos, a mobilizao contra a onda de despedimentos, contra o fecho da fbricas, de lugares (mineiros, siderurgistas, assalariados de Vilvoorde ou de Michelin...). preciso reconhec- -lo: muito poucos destes movimentos atingiram os seus objectivos. Na esmagadora maioria dos casos ocorreu a supresso de empregos, o fecho das fbricas e, s vezes, graas a um plano social ~ at mesmo ao nvel dum grupo inteiro (cf. a Conveno geral da proteco social da siderurgia) -, uma fraco dos assalariados reconverteu-se, enquanto outra acedia pr-reforma e uma outra caa no desemprego. Todos estes movimentos ilustraram at que ponto o escoamento foi mal feito na sociedade francesa onde as regulaes so fracas e onde as estruturas preventivas de formao, reconverso, mobilidade so muitas vezes ou inexistentes ou ineficazes...

    Finalmente, dois conflitos recentes escapam s categorias precedentes. A grande greve de Dezembro de 1995 foi desencadeada pelo questionamento dos regimes especiais de reforma, nomeadamente o dos ferrovirios. Ela susteve-se em crenas exacerbadas de questionamento dos servios pblicos, do estatuto das empresas nacionais, de meios atribudos e da perenidade dos regimes de reforma. Primeiro, aquilo que estava em causa no era s um reflexo corporativista de defesa era tambm e, sobretudo, a afirmao da legiti-

    (66) N.T.: A 5 de Dezembro de 1986, na seqncia das manifestaes de estudantes contra a lei Devaquet que pretendia instaurar um regime de seleco de entrada nas universidades, Malik Oussekine, um jovem francs de origem argelina brutalmente assassinado pela polcia. No dia seguinte, o ministro do ensino superior Alain Devaquet demite-se e, um pouco por toda a Frana, os estudantes saem rua impunhando cartazes: Eles mataram Malik.

  • A crise das identidades profissionais

    midade da prpria noo de servio pbJico, do seu reconhecimento. Uma grande parte do pblico que apoiou os grevistas no se enganou. 0 movimento dos desempregados de Dezembro de 1997 totalmente indito porque historicamente improvvel: mesmo se existem precedentes, ele representa uma mobilizao colectiva indita daqueles que depressa ganharam o rtulo de excludos, uma passagem da resignao revolta que permite constatar at que ponto as formas de aco colectiva sobrevivem crise e se renovam constantemente.

    A comparao parece-me interessante j que ela permite distinguir formas tradicionais e novas forrras de conflitos sociais. No conflito dos trabalhadores dos servios pblicos, trata-se antes demais de defender uma identidade estatutria contra um Estado-patro que a pe em causa, material e simbolicamente. No movimento dos desempregados, trata-se de afirmar colectivamente uma dignidade humana (os mnimos sociais actuais no so suficientes para a preservar) e de lutar juntos contra uma estigmatizao infamante. Estes dois exemplos manifestam, de duas maneiras diferentes, o carcter simblico dos conflitos sociais e a importncia identitria daquilo a que Segrestin tinha chamado as comunidades pertinentes da aco colectiva. Mas, num caso, tratava-se de reafirmar a unidade de grupos profissionais antigos face aos riscos de deslocao, desvalorizao, negao estatutria. No outro, tratava-se de construir uma identidade colectiva, dum gnero novo, a partir de indivduos confrontados com o desemprego, com riscos de marginalizao, de desfiliao e de excluso social. No primeiro caso, o individualismo, as condutas de desistncia (inseparveis das questes de reforma), as provaes do no-reconhecimento constituem experincias vividzis contra as quais preciso reagir, comeando relaes de afinidade e construindo um colectivo novo.

    a partir duma identidade de situao partilhada por um grupo desprovido de memria colectiva e um tanto estigmatizado pela partilha duma condio desvalorizada. TVata-se aqui da criao duma identidade nova pela mobilizao pessoal, da constituio dum grupo improvvel contra os pesos do fechado sobre si prprio e as culpabilidades do estigma. Se a constituio de tais grupos no excepcional (cf. os exemplos evocados por Emmanuelle Reynaud, desde as microculturas de oficinas at aos movimentos de mes solteiras, passando pelos grupos de mulheres em luta), ela continua a ser rara porque

    (67) Cf. o nmero especial da revista Sociologie du travail dedicado s grandes greves de Dezembro d 1995.

    (68) Cf. Didier Demazire e Maria Tcrsa Pignoni, Chmeurs: du silence la rvolte, Hachette, 1998.(69) Cf. Emmanuelle Reynaud, Identit collective et changemcnt social; les cultures collectives

    comme dynamique rfaction, Sociologie du travail, 2/1992, p. 159-177. A resposta dada por Emmanuelle Reynaud parece-me diferente da de Segrestin: primeiro, porque quase todos os seus exemplos so de movimentos de mulheres que ligam, como as enfermeiras coordenadas, a dinmica de emancipao feminina (cf. cap. 1) constituio de identidades de situao, isto provisrias e parciais, de tipo societrio (Gesellschaft) e no comunitrias (Gemeinschaft), em seguida porque estas identidades incertas so culturas da aco, lugares de elaborao de trocas sociais e no de defesa de prerrogativas (masculinas) duma profisso...

  • i]08 _ _ _ A crise das identidades

    implica sempre um custo elevado; na mesma dinmica, trata-se de modificar o seu sistema normativo, de criar laos informais e de se comprometer pessoal e intensamente numa empresa colectiva incerta que se refaz a partir do societrio e no do comunitrio^. isto que a torna, ao mesmo tempo, improvvel e naturalmente inovadora.

    Neste ltimo caso, qual o adversrio visado? Porque que ainda se trata (ou no) dum conflito de classe? uma pergunta estratgica para compreender a crise das identidades profissionais. Porque ela obriga a distinguir radicalmente duas formas identitrias confrontadas individualizao das situaes de emprego e de trabalho. A primeira, a identidade categorial, aquela que est inscrita numa continuidade, numa forma histrica preexistente que lhe fornece a sua identificao principal (por outro). 0 colectivo preexiste e preforma a individualizao. Esta constitui apenas a especificao duma forma de tipo comunitrio, ao mesmo tempo referencial e restritiva. A identidade colectiva no trabalho , em primeiro lugar, defensiva, s vezes fiisionat (Sainsaulieu). Ela est merc dum conflito perdido, duma separao mortal do grupo de pertena. A segunda, a identidade de rede, aquela que resulta duma ruptura, que implica uma identificao nova (para si), que atravessa a provao da individualizao muitas vezes forada, que afronta a questo da reconstruo duma forma societria, ao mesmo tempo voluntria e incerta. A identidade colectiva no trabalho uma inovao, uma criao institucional (Sainsaulieu) que implica um processo de elaborao, de negociao de regras e normas, de referncias comuns. Este processo inclui necessariamente uma parte de conflito, mas tambm de cooperao, de avanos e recuos, de compromissos e riscos.

    Estamos na interseco de dois paradigmas, de duas maneiras de pensar os laos entre construo de individualidade e construo social. No primeiro, o social como relao de classe, de explorao salarial, de dominao flagrante; os assalariados s podem construir a sua identidade de dominados resistentes se se reunirem. 0 conflito - como conflito de classe - uma confrontao que ou s pode reforar as identidades estabelecidas dos protagonistas ou faz eclodir a identidade colectiva do perdedor em indivduos abandonados aos tormentos da desfliao. 0 conflito como momento e provao duma construo d o actor colectivo uma confrontao que pode permitir uma superao do isolam ento inicial e constituir uma experincia decisiva no acesso a uma identidade nova, ao mesrno tempo pessoal e societria. Aquilo que o exame retrospectivo parece mostrar claramente 0 declnio dos conflitos de primeiro tipo (que necessrio assimilar ao colapso da adeso sindical, nomeadamente nos sindicatos de classe) e uma subida lenta, incerta, s vezes pouco visvel, dos conflitos de segundo tipo^. um elemento crucial daquilo a que chamo a crise das identidades profissionais.

    (79) Segundo as definies ideal tpicas dadas na introduo, o societrio uma construo contigente, e m situao, de laos voluntrios, muitas vezes provisrios e limitados a uma esfera da existncia. Ele exige, por isso, uma mobilizao pessoal que no existe no comunitrio.

    (71) verdade que desde h muito os conflitos que se apresentavam como afrontamentos de classe, no discurso dos seus lderes, constituam, de facto, confrontaes, jogos sem resultados, no seio dos

  • A crise das identidades profissionais

    CONCLUSO

    Nas experincias destes ltimos trinta anos, em matria de emprego e de desemprego, de actividades e de relaes de trabalho, de movimentos sociais, os modelos culturais detectados por Renaud Sainsalieu nas organizaes de trabalho dos anos 1960 sofreram evolues significativas, Eu tinha detectado algumas destas dinmicas aquando da investigao colectiva dos anos 1986-1989, com base nos assalariados das grandes empresas privadas face a formaes inovadoras. Novas investigaes, nos anos 1990, trouxeram novos elementos que permitem, com base em snteses precedentes, defender a tese duma crise das formas identitrias herdadas dos trinta gloriosos.

    Aquilo a que Sainsaulieu tinha chamado a identidade de reforma e que caracterizava, no fim dos anos 1980, os discursos dos assalariados que se consideravam marginalizados, perifricos na empresa ou no servio, e que se diziam ameaados de excluso evoluiu em direco a modalidades novas, completamente marcadas pela excluso do trabalho, a provao do desemprego total ou a pr-reforma. Esta forma identitria foi construda atravs de actos de atribuio, de etiquetagem no trabalho, situando-a fora do modelo de competncia. Como que os assalariados concernidos viveram esta provao identitria terrvel que constitui a excluso do emprego? Esta primeira forma de crise identitria , sem dvida, a mais terrvel. Ela combina uma relao de exterioridade em relao ao emprego e uma relao instrumental ao trabalho que torna delicada a reconverso nos outros papis, em particular familiares, sobretudo para os homens. Aquilo a que, s vezes, se chama o fechado sobre si prprio no esclarece em nada os processos sociais e psquicos da marginalizao que implicam todas as esferas de existncia, incluindo a da cidadania. Voltaremos a ela no ltimo captulo.

    Aquilo a que Sainsaulieu designava com a expresso modelo fusionah, com base em observaes directas de conflitos sociais nos quais a identificao dos operrios ao seu lder implicava uma forma de ns que primava absolutamente sobre o eu, tnhamo-lo

    quais os desafios de reconhecimento identitrio eram importantes e cuja soluo podia confortar ao mesmo tempo a lgica de gesto de sucesso econmico e as lgicas salariais de reconhecimento identitrio. Um exemplo disso dado por Pascale Trompette, La ngociation dans 1entreprise'. symbolique de 1'honneur et recompositions iientmsy>, Revue franaise de sociologie, XXXVIII-4, 1997, p. 791-822.

    (72) 0 ltimo livro colectivo de R. Francfort, F. Osty, R. Sainsaulieu e P. Uhalde, Les mondes sociaux de 1entreprise, Paris, Descle de Brouwer, 1997, indica o desenvolvimento, durante os anos 1990, duma cultura de servio pblico que sobretudo analisada como defensiva, especialmente face s privatizaes e ao desenvolvimento das formas de precarizao. Ainda no se sabe muito bem e se trata dum modelo novo ou da reactivao do modelo antigo.

    (7.3) Cf. a ltima parte de La socialisation, obra citada, p. 201-252, e o ltimo captulo de Sociologie des professions, obra citada, p. 225-259.

    (74) Cf. Dominique Schnapper, Upreuve du chmage. Paris, Gailimard, 1994 (!. ed., 1981). Nesta nova edio, o autor faz o balano dos trabalhos recentes sobre o desemprego c os desempregados e encontra uma confirmao para a tese de manuteno da centralidade do trabalho na sociedade francesa dos anos 1980 e 1990.

  • A crise das identidades

    rebaptizado de identidade categoriai para designar a argumentao daqueles que, desconfiando da gesto participativa e das inovaes da formao, adoptavam formas de participao dependente, nostlgicas das proteces de identidade de ofcio. Esta crise das identidades de ofcio, sob as palavras duras da racionalizao, continua a reproduzir-se na histria do capitalismo, desde h mais de dois sculos, sob formas cada vez mais especficas. J se viu em que que ela difere das crises precedentes e como ela toma a forma dum sentimento de bloqueio. Se ela no desemboca necessariamente na excluso do emprego, supe, com frequncia, alternativas dolorosas entre reconverso incerta e reclassificao em empregos muitas vezes desvalorizados. Esta crise identitria coloca tambm a questo da transmisso intergeracional no seio das classes populares ou do assalariado mdio.

    Aquilo a que Sainsaulieu chamava modelo negociatrio coloca problemas diferentes. Pela minha parte, eu tinha proposto a expresso identidade de empresa para designar a lgica argumentativa dos assalariados muito implicados nas inovaes da sua empresa e que estavam espera de poder trocar esta contribuio importante por uma promoo interna, fosse ela qual fosse. Esta forma identitria no parece ter resistido s novas vagas de racionalizao dos anos 1990. Ela j no representa um modelo de referncia para a nova gesto obcecada com as redues efectivas e com a reduo das linhas hierrquicas. Ela j no representa um modelo atractivo para os quadros por seu turno a braos com os desempregados que se consideram maioritariamente como assalariados comuns. Ela j no se enquadra na ltima verso do modelo da competncia que preconiza a mobilidade externa voluntria e valoriza a empregabilidade. por isso que ela continua a ser problemtica e mal elucidada; como que se pode gerir esta reconverso de si que vai substituindo os antigos percursos de ascenso interna? Como que se pode projectar um futuro quando a empresa com a qual nos tnhamos identificado desaparece do horizonte? Qual a alternativa a esta identificao interna quando no existe um outro modelo de colectivo?

    Sobra o ltimo modelo que Sainsaulieu designava pela expresso modelo de afinidade e ao qual eu tinha chamado primeiro identidade incerta e depois identidade individualista para propor por fim o termo identidade de rede. Esta forma tinha sido induzida, quase exclusivamente, pelos discursos dos jovens licenciados que se sentiam desqualificados e que imaginavam uma mobilidade externa na empresa onde trabalhavam. Ela s remetia para tipos de colectivo muito personalizados, muitas vezes femeros, centrados sobre relaes afectivcis, em rede. Ela era a nica a ser organizada em torno da antecipao dum percurso dc mobilidades voluntrias, apesar de todos os riscos previsveis. Era o nico caso onde a noo de precaridade, utilizada at aqui de maneira quase unicamente negativa, podia adquirir uma conotao positiva; uma espcie de precaridade identificante^*, isto , uma conduta de explorao incessante dum meio profissional, atravs de experincias curtas mas cada vez mais enriquecedoras. A vida de artista disso

    (7.5) Encontrei esta expresso num relatrio de pesquisa coordenado por Anne-Chantal Dubernet relativo aos jovens em insero na regio do Pas do Loire; cf. o relatrio intitulado Les conirats prcaires en questions, CEREQ, (Centre dtudes et des recherches sur les qualifications) 1996, policopiado.

  • A crise das identidades profissionais .................................... ..............................................

    um bom exemplo. Trata-se duma forma identitria similar dos actores cujas caractersticas e percursos se conhecem melhor hoje em dia. Tendo em conta todas as anlises precedentes, pode-se dizer que hoje a nica forma identitria valorizada e protegida pela crise? Ns retomaremos esta questo no ltimo captulo deste livro.

    Eis uma segunda interpretao da crise das identidades, inteiramente complementar da forma do captulo precedente. Todas as formas anteriores de identificao a colectivos ou a papis estabelecidos tornaram-se problemticos. As identidades tayloriana, de ofcio, de classe, de empresa, esto desvalorizadas, destabilizadas, erh crise de no-reconhecimento. Todos os ns anteriores, marcados pelo comunitrio e que tinham permitido identificaes colectivas, modos de socializao do eu pela integrao definitiva a estes colectivos so suspeitas, desvalorizadas, destruturadas. 0 ltimo grito do modelo da competncia supe um indivduo racional e autnomo que gere a suas formaes e os seus perodos de trabalho segundo uma lgica empresarial de maximizao de si .

    Esta forma muito individualista mas tambm muito incerta, esta identidade de rede muito ligada sociedade em rede que se constri atravs da mundializao, primeiro no trabalho e depois por todo o lado. Esta forma virada para a realizao de si, a plenitude pessoal, num contexto de forte competio, coloca os indivduos na obrigao de afrontar a incerteza e, cada vez com mais frequncia, a precaridade ao tentar dar-lhe um sentido. Mas esta forma no estar, tambm ela, em crise permanente?

    Se 0 resultado de trinta anos de crise do emprego, de transformao do trabalho no sentido da responsabilidade individual, da valorizao da competncia pessoal e da empregabilidade de cada um, foi fazer desta ltima forma identitria a nica desejvel no futuro, a nica susceptvel de reconhecimento temporrio, a nica a propor nova gerao, ento entrmos numa crise identitria permanente. Dever, cada um, no futuro.

    (76) Cf. as duas obras publicadas no mesmo ano sobre os actores: Catherine Paradeise, Les comdiens, Paris, PUF, 1997, e Pierre-Michel Menger, La profession de comdien, Paris, Ministre de la Culture, 1997. Nesta ltima obra, o autor revela as noes de self-marketing permanenb> (autopromoo permanente) e de autoproduction (et mise en scne) de soi [autoproduo (e encenao) de si prprio) que, aliadas constatao do carcter decisivo das redes pode levar a considerar estes actores (e sem dvida os outros artistas) como representantes eminentes desta nova forma identitria que marcada por crises recorrentes (perodos de desemprego, inseguranas, falhanos...).

    (77) Sobre este modelo ultraliberal, vulgo a empresa de si prprio, cf. Bob Audrey, Le travail aprs la crise. Ce que chacun doit savoir pour gagner sa vie au XIX sicle. Paris, Interditions, 1994.

    (78) Em La Socit en rseau, Manuel Castells afirma: Nunca o trabalho foi to essencial ao processo de criao mas nunca os trabalhadores foram to vulnerveis face organizao, indivduos isolados no seio duma rede flexvel que nem sabe sequer exactamente onde se situa (p. 322). No se pode ser mais claro, a forma identitria assim visada, esta identidade de rede produzida pela - e produtora da - sociedade de rede est bem implantada no trabalho mas continua to incerta e mvel quanto a evoluo do prprio trabalho.

    (79) Uma hiptese mais congruente em relao do captulo precedente, consistiria em pensar que a diferena entre o questionamento dos papis profissionais (e das categorias de emprego), pela extenso do modelo da competncia e da emergncia de novos projectos de carreira tornada mais difcil pelas incertezas dos mercados, vai ter tendncia para se reduzir e que as identidades de rede se vo desenvolver graas antecipao de novas carreiras ligadas a novas redes de emprego...

  • A crise das identidades

    veader-se, por uns tempos, a urp empregador ou tentar a sua sorte na criao duma empresa incerta? 0 estatuto da Funo Pblica, ltimo baluarte da estabilidade da vida, acabar por ceder s palavras duras da necessria concorrncia