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Enteógenos, civilização e barbárie
Leila Marrach Basto de Albuquerque1
“A simples vista, la parra de la ebriedad trepa por la columna de la religión, pero en realidad
es la columna de la religión la que se sustiene sobre la parra de la ebriedad.”
(Javier Esteban - Los intoxicados de Dios y el lobo blanco)
“Por isso os seres humanos usam drogas desde o princípio dos tempos: para tentar escapar
do estreito cárcere da cultura, para dar uma espiada no paraíso.”
(Rosa Montero - A louca da casa)
Introdução
Esta comunicação discute o uso de substâncias psicoativas em dois contextos
específicos: por um lado, como experimento científico levado por um cientista de modo
improvisado, que busca estados especiais fazendo uso de diferentes recursos, como exibido
no filme Viagens Alucinante (RUSSEL, 1980) e, por outro, entre populações onde esta prática
se dá no interior de rituais religiosos e/ou de cura e, portanto, inserido na própria cultura.
Recorro, para tal, à ideia de civilização sem a sua pesada carga ideológica conferida
pelo evolucionismo, mas me valendo das suas imagens como metáforas para operar um jogo
de inversão, quando o símbolo máximo da civilização, a ciência e a sua racionalidade
invadem objetos fora da sua jurisdição. Ao lidar com a ideia de civilização em outro solo
cultural, como entre os povos nativos das Américas, portadores de uma cultura material
diferente da ocidental moderna mas detentores de um rico e complexo sistema simbólico,
os índices civilizatórios da modernidade ganham sua particularidade e, em certas
circunstâncias, exibem traços de “barbárie”.
1 Doutora em Ciências Sociais: Sociologia e Política pela PUC-SP e pesquisadora do Centro de Documentação e Memória - CEDEM da UNESP - São Paulo.
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Norbert Elias (1990) chama de processo civilizador a construção de um padrão de
relações humanas que se dá com o fim do feudalismo, quando ocorre a centralização do
Estado moderno. Novos regulamentos éticos, morais e de comportamento, regrados por
instituições se disseminam e ocupam um lugar na sociedade e na vida das pessoas. São
práticas sociais que implicam em uma pedagogia coletiva que transcende o indivíduo,
configurando regras consensuais de comportamento.
Esse novo padrão moral e de costumes alicerça novos modos de saber e de conhecer
o mundo e o homem - a ciência. Como narrativa hegemônica da modernidade, o
conhecimento científico inaugura novos mapas do mundo e do homem que condicionam
seus objetos de estudo e os seus requisitos de um conhecimento legítimo no âmbito do
universo moderno: objetividade, neutralidade e universalidade. Nesse sentido, desenvolve
um conjunto de regras que, reunidas, conformam a sua metodologia. Fazer uma pesquisa
científica é respeitar tais regras, é seguir um ritual de procedimentos portadores de
moralidade e etiqueta próprios, na compreensão e explicação deste novo mapa do mundo.
Ora, os rituais são ações cautelosas, são cuidados instituídos para situações específicas e só a
elas dizem respeito. Assim, as particularidades do sujeito e do objeto da ciência definem
modos de agir, sentir e pensar - o seu método - que só a ele dizem respeito, pois foram
construídos para a sua jurisdição. Fora dela, são outros os cuidados a serem respeitados.
Barbárie
O filme Viagens Alucinantes, baseado na novela de Paddy Chayefsky foi inspirado nas
experiências de John C. Lilly, na década de 1980, que através de tanques de isolamentos e
utilização de LSD procurava produzir privação sensorial e estados alterados de consciência.
Na história, o professor de medicina de Harvard, Dr. Jessup, procede a essas
experiências de privação de sentidos a partir das quais vivencia alucinações, estados oníricos
e místicos e alegorias religiosas bíblicas. Fica-se sabendo, também, que na sua infância tivera
visões religiosas e, com a morte dolorosa do pai, deixa de crer em Deus, o que justifica a sua
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busca por estados alterados de consciência como modo de encontrar um sentido para a sua
existência.
O contexto mais amplo onde se situa o enredo do filme mostra ingredientes
estereotipados da vida universitária dos anos 60: vestimentas e decoração de inspiração
indiana, menção à ioga e festinhas de estudantes e professores com uso de maconha.
Para justificar seus experimentos, Dr. Jessup menciona alguns reconhecidos
estudiosos de estados alterados de consciência (associados ou não ao misticismo) como Tart
e Deikman, mas afirma não saber o que está procurando em termos científicos. Entretanto,
espera elaborar uma metodologia para proceder a experimentos controlados e declara:
Interesso-me especialmente por experiências religiosas. A razão de trabalhar com
esquizofrênicos agora é que a experiência religiosa é muito significante na
esquizofrenia. Existe uma limitação no trabalho com animais [...] eles não contam
o que acontece na consciência deles. Nisso é preciso seres humanos. Você não
prende seres humanos e coloca eletrodos no crânio. Então eu uso uma técnica de
transe induzido e o tanque de isolamento é o menos arriscado.
Vemos, portanto, na origem das peripécias do Dr. Jessup, uma mistura de traumas de
infância, inquietações religiosas e improviso científico.
Assim, com tais disposições o nosso médico-cientista dá início às suas viagens
alucinantes em busca de privação dos sentidos através da imersão em tanques de
isolamento. Ele descreve, ao seu colega que o acompanha e monitora o aparelho, as
imagens que experimenta: nuvens, peixes, o pai doente, a Bíblia, imagem de Jesus
queimando no crucifixo que vai se transformando em um bode.
O encontro com um antropólogo da Universidade do México, Dr. Eccheverria, lhe traz
informações sobre um grupo indígena “isolado” que ainda pratica rituais toltecas sagrados
em cerimônias usando cogumelos. Neste caso, para os nativos, a experiência evoca uma
alucinação comum a todos os participantes, pois expressa a própria mitologia do grupo. O
xamã lhe explica que ao experimentar o cogumelo “sua alma voltará à primeira alma, se
parecerá com a matéria incriada, se lançará no vazio e verá uma mancha que se converterá
em uma fenda. [...]. E desse nada sairá sua alma incriada”.
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Neste ponto, Dr. Jessup direciona sua busca para um estado de natureza primordial
como se fosse uma trilha fisiológica até nossa consciência primitiva: o sistema límbico, e
declara:
Todos procuramos isso tentando nos locupletarmos, entender a nós mesmos,
entrar em contato conosco, encarar nossa realidade, explicar, ampliar a nós
mesmos. Desde que dispensamos Deus, não temos nada para explicar esse horror
sem sentido chamado vida. Penso que o verdadeiro Eu, original, o primeiro Eu, é
mensurável, quantificável, tangível e encarnado, e eu vou achá-lo.
O nosso personagem participa, então, do ritual com o grupo indígena e experimenta
novas alucinações como luzes, animais, figuras fantasmagóricas, seres mascarados, areia,
esfinge, vê sua mulher e, no transe, acaba matando um lagarto. Na volta a Boston, leva a
poção preparada pelo xamã para ser analisada e talvez sintetizada.
Em Boston, experiências com a poção de cogumelos trazem novas alucinações,
sempre relacionadas ao universo cristão, como anjo, besta, e cruzes. Resolve, então,
combinar o seu uso com a imersão no tanque, numa sucessão de experimentos que o levam
a uma regressão dentro da espécie humana, como ele a entende. Suas alucinações o
conduzem a uma paisagem pré-histórica de savanas, bosques, montanhas, lagos e afirma
assistir ao aparecimento do primeiro humano, “pequeno, 1,30 metros, coberto de pelos
como um chimpanzé, mas ereto. Eu sou um deles. Lindo!” Suas alucinações apresentam
elementos de representação religiosa e da natureza. Em síntese, Dr. Jessup acredita que a
droga ativou a externalização de um Eu mais primitivo. Afirma:
Peço que faças um pequeno salto quântico comigo e aceites o conceito
anticonvencional de que outros estados de consciência são tão reais quanto o
estado atual [...]. Temos milhares de anos armazenados nesse computador
chamado ‘mente’. Temos trilhões de genes dormentes em nós, um passado
evolutivo inteiro. Talvez eu tenha esbarrado nisso.
A sucessão de experimentos dessa natureza produz regressões cada vez mais
radicais e violentas que se manifestam espontaneamente através de alterações físicas e
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sanguíneas, próprias de um símio, levando-o a um comportamento feroz contra animais e
pessoas.
No último dos seus experimentos Dr. Jessup regride à origem do cosmo e arrisca-se a
se perder e a se desintegrar na “viagem”, sendo resgatado por sua esposa. Conclui: “Eu
estava naquele momento último da terra que é o começo da vida. É o nada. Simples e
horroroso nada. A verdade final. Verdade é o que é transitório. É a vida humana que é real”.
Suas palavras expressam a valorização e o retorno ao estado de consciência rotineiro.
O que isso quer dizer? Indica, claramente, o abandono das ambições que o levaram,
por caminhos tão obtusos a buscar explicações à margem das construídas pelas convenções
sociais da sua cultura moderna, ocidental e hegemônica e, sub-repticiamente, uma
valorização dos processos evolutivos em direção à civilização. Porém, quero chamar a
atenção para o modo selvagem como a sua busca foi conduzida, sob o rótulo de
“experimentos científicos”. Mais ainda, caso tivesse seguido todos os rigores do método
científico, seria este o mais adequado para avaliar e ter contato com os estados alterados de
consciência induzidos?
Civilização
No seu artigo “O uso ameríndio do caapi” Pedro Luz (2004) reúne estudos sobre o
uso da Banisteriopsis caapi e espécies similares entre os povos nativos amazônicos,
investigando o simbolismo associado ao cipó presente na cosmologia desses grupos. Esta
planta de poder comparece, também, na etnobotânica nativa dos povos tratados pelo autor:
os de língua Pano, Aruák e Tukano. Nesse sentido, quero extrair deste texto elementos que
revelam as diversas dimensões do seu uso intimamente relacionadas ao conjunto cultural
aos quais pertence e, principalmente, ao modo como servem-se do cipó cercados por rituais
refinados, portadores de concepções éticas e morais que conduzem as experiências da
embriaguez e os estados especiais. Obviamente, o sentido conferido ao uso dessa planta -
chamada de nixi pae, tanto o cipó como a bebida resultante do seu preparo - está ligado à
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noção de natureza e cultura desses povos. Lagrou (1991, p. 28, apud LUZ, 2004, p.38) explica
que:
entre os Kaxinawá o conceito de natureza está próximo da noção grega de physis,
isto é, a natureza possui alma, vontade própria e uma ordem própria, sendo a
cultura apenas uma das possibilidades dessa ordem. Isso se revela no conceito
nativo de yuxin, que é visto não como algo sobrenatural ou sobre-humano, mas
como uma força vital permeando todo fenômeno vivo em qualquer parte do
mundo.
É, pois, no interior de cosmovisões como esta - claramente vitalista - que se dão as
experiências com substâncias propiciadoras de estados alterados de consciência. Tais
experiências têm o estatuto de sonhos para esse povo, que por sua vez, são portas de
entrada para a dimensão espiritual e o verdadeiro lado não ordinário da realidade, isto é,
uma outra realidade, poderosa e não cotidiana. As experiências com o consumo do nixi pae
permeiam as diversas dimensões da vida coletiva, conferindo-lhes um sentido espiritual,
como na atividade produtiva, definindo as peculiaridades do yuxin segundo os sexos, no
enfrentamento da morte e garantindo um bom destino no pós-mortem.
Entre os Yaminawa, essas substâncias fazem parte da noção de pessoa, que é
concebida como corpo, sombra e espírito. Em sonho ou sob o efeito da bebida shori, que
tem por base a Banisteriopsis caapi, o espírito ou força vital podem abandonar o corpo, mas
esses riscos são relevantes e desejados, pois por meio deles obtém-se conhecimento e
poder. Chamo a atenção para a importância dos cuidados rituais nessas experiências. Luz
(2004, p. 42) explica:
Embora também os sonhos deem acesso ao mundo dos espíritos, o fazem de
maneira descontrolada. Já o shori tomado no contexto ritual, dá acesso
controlado àquele mundo, uma vez que as visões são dirigidas pelos
procedimentos rituais e pelo canto. [...] Sob o efeito do shori os eventos narrados
nos mitos são testemunhados, a própria sequência narrativa dos mitos é como a
sequência narrativa de um sonho ou das visões induzidas pelo shori, que é
precisamente como os Yaminawa experimentam o mundo dos espíritos e,
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consequentemente, o tipo de lógica narrativa que eles esperam. [...] É o shori que
possibilita aos espíritos cantarem através do xamã. O canto xamânico, koshuiti,
que propicia a cura, está inextricavelmente ligado ao shori.
O consumo dessas substâncias propiciatórias de visões e sonhos é sempre cercado de
restrições culturais, como abstinência sexual, proibições alimentares e restrição no contato
com sangue, que expressam os valores morais e as virtudes compartilhados pelo grupo.
Também entre os Ashaninka, os seus mitos servem de alerta a esses cuidados, pois
descrevem circunstâncias da ineficácia do uso da Banisteriopsis caapi por personagens que
não observaram as interdições estipuladas pelo grupo.
Observam-se, nesses grupos, que os mitos que cercam o uso ritual de tais
beberagens comportam advertências éticas relacionadas aos poderes que tais substâncias
proporcionam, especialmente ao xamã. Em muitos casos, essa experiência de saber/poder
pode ser tenebrosa e há o medo de não saber retornar e enlouquecer. Daí a importância dos
mitos contidos nos cantos, do ritual e da condução do xamã.
Aliás, a importância do xamã é crucial, pois se podem encontrar “monstros” que
habitam o outro mundo. Com o seu canto ele oferece uma narrativa que organiza as visões
para os diferentes participantes da sessão. Além disso, na interação com os seres da outra
realidade, o xamã não só troca de corpo, como também de linguagem. Sobre os Airo-pai, Luz
(2004, p. 50) explica:
Essa troca de corpo implica numa troca de linguagem, uma vez que os seres da
outra realidade têm sua própria língua. Essa linguagem ritual usa o vocabulário
normal Airo-pai com formas gramaticais específicas e com as palavras possuindo
significados diferentes.
O preparo, a dosagem e as explicações do seu uso são, também, tarefas do xamã, o
que envolve uma hierarquia e uma pedagogia compartilhadas coletivamente. Para Luz
(2004, p. 60), “O xamã é, portanto, o mediador, um intérprete da experiência, é ele que
domina o código que dá inteligibilidade às visões, sendo sua fala apaziguadora, uma vez que
esta revela que as visões são interpretáveis [...]”.
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O uso dessas substâncias se dá por vários motivos, como entrar em contato com a
dimensão espiritual, com os deuses, com os ancestrais, curar males, retornar ao princípio do
mundo, preparar para a morte, obter conhecimento e poder. O propósito é parte da
cosmovisão do grupo e sempre realizado dentro de rituais.
Quero chamar a atenção para a presença regular, entre esses grupos, da busca por
um tempo primordial ou um estado de natureza intocado pela cultura.
Ao ingerir o caapi, aquele que o fez é transportado ao tempo e ao lugar de
origem, onde o Sol e as pessoas ainda não estavam separados. Pela dança, pelo
canto e pelos encantamentos, eles refazem a grande viagem primordial da sucuri
como uma nova gênese do mundo. Ao fim da festa o mundo está outra vez forte e
novo como nos primeiros dias da criação (LUZ, 2004, p.57).
Assim, tais substâncias fazem parte da esfera sagrada dessas coletividades e o seu
uso se dá acompanhado de rituais elaborados e instituídos, e deles se extraem explicações
para o destino após a morte, conhecimento verdadeiro, princípios morais e recursos
terapêuticos.
Experiências de êxtase e embriaguez foram acompanhadas e pesquisadas em outro
contexto por Philippe de Felice, professor, sociólogo e teólogo protestante no início do
século XX. Ele se dedicou a cuidar de alcoólatras e procurou entender por que, apesar dos
danos que esta bebida causa à saúde e à vida social dos seus consumidores, eles se viciam e
não abandonam o seu uso. O resultado do seu empenho está no livro Venenos sagrados.
Ebriedad divina: ensayo sobre algunas formas inferiores de la mística ([1936] 2010). Ao longo
de suas pesquisas, Felice identifica uma íntima relação entre a embriaguez e o êxtase místico
em diversas religiões. Entre os sufis, o vinho está sempre presente na busca da união
perfeita com a divindade. O mesmo acontece entre os místicos judeus que creem em “un
vino anterior a la creación del mundo y conservado en el paraíso” (p.15). Imagens
semelhantes são encontradas no cristianismo, especialmente na ação do Espírito Santo e na
Última Ceia. Ao lado de outras expressões religiosas, essas analogias levam o autor afirmar
que: “De hecho, las perturbaciones de orden psicológico e fisiológico que preceden y
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acompañan a los éxtasis místicos no dejan de tener analogias com las que provoca el abuso
de bebidas alcohólicas”. (FELICE, 2010, p. 22)
Porém, Felice não se prende apenas ao álcool e explora tais conexões em outras
substâncias como o ópio, a coca, a ayahuasca, o tabaco, o hachiche, a maconha, a ibogana, o
peyote e o soma, entre outras, tratando também das toxicomanias modernas. Em todos os
casos afirma que a resposta deve ser buscada no terreno religioso, seriam substâncias
enteógenas, aquelas que proporcionam meios de comunicação com o sagrado. Sobre estes
“ebrios de Dios” ele diz:
¿que son en realidad sino la experiência de uma evasión y uma transcendencia de
si mismo, fruto de la comunión inmediata, com la ayuda de ciertas sustâncias,
com un mundo misterioso de energias sobrehumanas? Es impossíble ignorar el
caráter místico de uma experiência como ésta (p. 65).
Chamo a atenção para o pressuposto deste autor: para ele, a busca do êxtase, seja
qual for, atende à necessidade de que o homem sente de transcender a si mesmo (FELICE,
2010, p. 25). Seria um pressuposto antropológico.
Além disso, Felice oferece exemplos de que a obtenção de estados místicos se faz
dentro de uma ordem, seguindo certos procedimentos ou rituais. Cita os ensinamentos de
Santa Tereza para quem, na obtenção do êxtase ou do matrimônio espiritual, a alma deve
superar três estados: a oração de quietude, a oração de união e a oração de elevação. São
experiências de transcendência, mas que reverberam no corpo. O autor explica:
Santa Tereza há podido advertir, recordando sus próprias experiências, que tal
estado psíquico entraña algunas perturbaciones orgânicas entre las que destacam
una relentización de la respiración y de la circulación, la neblina que inunda los
ojos, el entumecimiento de los miembros , la torpeza de la lengua y, em general,
uma espécie de plácida somnolencia (p. 22).
Certamente, estas sensações são muito semelhantes às que o corpo experimenta
com a ingestão de substâncias psicoativas. São próprias de estados místicos. Recordo, então,
o pioneiro artigo do antropólogo Marcel Mauss, Técnicas corporais onde, citando práticas
indianas e chinesas muito antigas, afirma: “Este estudo sócio-psicobiológico da mística deve
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ser feito. Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em ‘comunicação com
Deus’” (1974, p. 233).
Luz lembra, ao final do seu artigo, que ao lado da estrutura ritual e das expectativas
culturais deve ser considerada, também, a ação das moléculas químicas (princípios ativos)
das plantas nos corpos, o que daria margem para negociação do indivíduo em relação às
crenças coletivas. Nesta mesma direção, Camargo (2014, p. 226), ao tratar da medicina
popular, alerta para
a presença elementos de ordem material e imaterial que passam a compor o
conjunto ritualístico da cura, desempenhando cada um duplo papel, embora
complementares: papel sacral e papel funcional. [...] No papel sacral, percebe-se a
prevalência do pensamento subjetivo de explicações passíveis de diferentes
interpretações, enquanto, no papel funcional, prevalece o pensamento passível
de verificação empírica.
A autora está chamando a atenção para o valor simbólico compartilhado
coletivamente e para os componentes químicos das plantas medicinais, respectivamente.
Isto é, o corpo sofreria uma reação bioquímica que é interpretada simbolicamente nos
rituais de cura e que, aqui, quero estender aos usos de substâncias psicoativas em rituais
xamânicos e às experiências místicas em geral.
Conclusão e alguns fios soltos
Civilização e barbárie são rótulos “civilizadores” para lidar com o outro e atendem a
situações de domínio colonial. Civilização também está ligada à ideia de conhecimento, mas,
sobretudo, ao da modernidade: a ciência. Uma das características do conhecimento
científico é avaliar os outros conhecimentos a partir de uma escala própria. Outra
característica é ser hegemônico, ou seja, não considerar legítimas outras formas de saber e
outros objetos fora da sua jurisdição. (ALBUQUERQUE, 2003)
Esta é a disposição do nosso cientista do filme: fundamentado no poder do seu saber
científico, atira-se, sem cuidados, em uma experiência alucinógena desconhecida. Procura,
confusamente, resgatar a religiosidade perdida da infância e acredita poder encontrá-la
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nesse auto-experimento. Mais adiante acrescenta o desejo de atingir o estado de natureza
primordial que lhe permitiria “medir e quantificar” o verdadeiro Eu. Nesse processo, seus
esforços são uma sucessão de equívocos e de atos prepotentes de imposição da linguagem
científica e, ao mesmo tempo, de desrespeito aos ritos do método científico e desprezo aos
conhecimentos de tradições culturais familiarizadas com as substâncias psicoativas. Ao se
apropriar do cogumelo e incluí-lo na sua imersão no tanque de água, viola o sentido dado ao
seu uso, os conhecimentos transmitidos pelo xamã e o ritual que cerca essa experiência
mística. Em vez de construir um objeto, ele o arromba, desconsiderando outros modos de
acesso a essa experiência, outras epistemologias. O resultado, compatível com seus
procedimentos, é uma volta a um estado selvagem perigosamente violento e sem controle
algum. Do ponto de vista civilizatório, seu empenho, bem como os resultados a que chegou,
cabem dentro do escopo da noção de barbárie.
Já no âmbito do xamanismo, como foi visto, as plantas de poder fazem parte dos
modos de agir, sentir e pensar das populações envolvidas, e o seu uso assenta-se em uma
cosmovisão compartilhada pelos membros do grupo presente nos seus mitos e nos seus
rituais. A complexidade que cerca as experiências místicas se expressa de diversas maneiras:
o saber do xamã, a sua condução do ritual, os ensinamentos morais transmitidos pela
mitologia, o respeito aos tabus alimentares, sexuais entre outros. Mas quero destacar a
troca de linguagem para lidar com o mundo sagrado. Esta troca significa o reconhecimento
dos limites da linguagem cotidiana que, como toda linguagem, tem sua particularidade.
Como afirma Luz (2004, p. 66), “Em relação à Banisteriopsis caapi há fatos que só ela revela
e que estão para além das palavras” (66). Assim, ao mudar o sentido das palavras o xamã
cria um outro mundo, o mundo da transcendência no qual, pelo êxtase, pode-se obter
poder, conhecimento, cura dos males, explicações para a morte e uma boa viagem ao
mundo dos mortos. Enfim, modos civilizados de lidar com o poder das plantas.
Para finalizar, apresento a hipótese da presença de substâncias psicoativas na origem
das experiências místicas. Esta ideia não é nova. Terence McKenna (1995) já a apresentou
em seu livro O Alimento dos deuses. Ela expõe de modo inegável a importância da mediação
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do corpo nos contatos com o sagrado. Então, pergunto: o que significa essa saudade de um
estado de natureza, anterior à cultura, que parece comparecer em diferentes situações e
contextos históricos? Será que as inúmeras imagens e sublimações do corpo que se
encontram nas religiões do presente poderiam nos contar alguma coisa daquelas
experiências primordiais e a sua domesticação pelas igrejas?
Referências
ALBUQUERQUE, Leila Marrach Basto de. Sujeito e realidade na ciência moderna. São Paulo:
Annablume, 2003
CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas medicinais e o sagrado: a
etnofamarcobotânica em uma revisão historiográfica da medicina popular no Brasil. São
Paulo: Ícone, 2014.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar,
1990.
ESTEBAN, Javier. Los intoxicados de Dios y el lobo blanco. In: FELICE, Philippe de. Venenos
sagrados. Embriaguez divina: ensayo sobre algunas formas inferiores de la mística. Madrid:
Amargord, 2010.
FELICE, Philippe de. Venenos sagrados. Embriaguez divina: ensayo sobre algunas formas
inferiores de la mística. Madrid: Amargord, 2010.
LUZ, Pedro. O uso ameríndio do caapi.In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAUJO, Wladimyr Sena
(orgs.). O uso ritual da Ayauasca. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo Fapesp, 2002.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: E.P.U.; EDUSP, 1974. Vol. II.
McKENNA, Terence. O alimento dos deuses. Rio de Janeiro: Record, 1995.
MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.