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DIREITO CONSTITUCIONAL AMBIENTAL BRASILEIROANTONIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN * Ministro do Superior Tribunal de Justia, ExProcurador de Justia em So Paulo, Fundador e exPresidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde e do BRASILCON Instituto Brasileiro de Poltica e Direito do Consumidor

1 Constitucionalizao do Ambiente e Ecologizao da Constituio Brasileira 1.1 Introduo A riqueza de "terra e arvoredos", que surpreendeu e, possivelmente, encantou Pro Vaz de Caminha em 1500, finalmente foi reconhecida pela Constituio brasileira de 1988, passados 488 anos da chegada dos portugueses ao Brasil. Tantos anos aps, ainda h fartura em "terra e arvoredos", mas, definitivamente, o pas mudou. Passou de Colnia a Imprio, de Imprio a Repblica; alternou regimes autoritrios e fases democrticas; viveu diferentes ciclos econmicos; migrou do campo para as cidades; construiu meios de transporte modernos; fomentou a indstria; promulgou Constituies, a comear pela de Dom Pedro I, de 1824; aboliu a escravatura e incorporou direitos fundamentais no dilogo do dia-a-dia. Como evidente, tudo nesse perodo evoluiu, menos a percepo da natureza e o tratamento a ela conferido. Somente a partir de 1981, com a

Ex-Procurador de Justia em So Paulo. Fundador e ex-Presidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde e do BRASILCON - Instituto Brasileiro de Poltica e Direito do Consumidor. Professor convidado de Direito Ambiental Comparado e Direito da Biodiversidade, na Universidade do Texas. Relator-geral da Comisso de Juristas da Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente. Membro do Sleering Committee da Comisso de Direito Ambiental da UICN. Conselheiro do CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente. Co-Presidente da INECE International Network for Environmental Compliance and Enforcement.A12

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BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes; LEITE, Jos Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2007. parte II, p. 57-130.

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promulgao da Lei n. 6.938/81 (Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente), ensaiou-se o primeiro passo em direo a um paradigma jurdico-econmico que holisticamente tratasse e no maltratasse a terra, seus arvoredos e os processos ecolgicos essenciais a ela associados. Um caminhar incerto e talvez insincero a princpio, em pleno regime militar, que ganhou velocidade com a democratizao em 1985 e recebeu extraordinria aceitao na Constituio de 1988. Numa poca de saudvel globalizao do debate

constitucional 59 , poucos, exceo dos iniciados, do-se realmente conta do avano extraordinrio que as Constituies significaram na evoluo dos povos e regimes polticos contemporneos. Realmente, difcil ao cidado mediano aquilatar o papel simblico e prtico da norma constitucional no processo civilizatrio, como marco indicador da transio entre dois modelos de Estado: um, avesso a rdeas pr-definidas; outro, regrado por plos normativos objetivos, simultaneamente freio de autoridade e medida de liberdade. As primeiras Constituies tinham por objetivo principal estabelecer, no plano institucional, a mecnica governamental bsica e, na perspectiva substantiva, resguardar o cidado contra governantes arbitrrios, penas vexatrias ou cruis, assim como contra apropriao da propriedade privada sem justa causa ou indenizao. No era sem razo, portanto, que a Constituio se organizava em feixes heterogneos de direitos obrigaes de cunho a um s tempo bilateral (= indivduo versus Estado) e negativo (= imposio ao Estado de deveres de non facere). Muito desse arranjo bipolar coisa do passado. Hoje, em boa parte do mundo, alm de ameaas liberdade fsica e poltica, as pessoas comuns

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Fala-se, inclusive, em "constitucionalismo global", cf. ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Virgnia Law Review, v. 83, p. 771,1997. 2

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se preocupam com receios de outra natureza e grandeza, tpicos daquilo que se vem denominando sociedade de riscos 60 . Nesse complexo quadro de aspiraes individuais e sociais, ganham relevo categorias novas de expectativas (e a partir da, de direitos), cujos contornos esto em divergncia com a frmula clssica do eu-contra-o-Estado, ou at da sua verso welfarista mais moderna, do ns-contra-o-Estado 61 . Seguindo tal linha de anlise, a ecologizao do texto constitucional traz um certo sabor hertico, deslocado das frmulas antecedentes, ao propor a receita solidarista temporal e materialmente ampliada (e, por isso mesmo, prisioneira de traos utpicos) do nstodos-em-favor-do-planeta. Nessa, comparando-a com os paradigmas anteriores, nota-se que o eu individualista substitudo pelo ns coletivista, e o tpico ns welfarista (o conjunto dos cidados em permanente exigncia de iniciativas compensatrias do Estado) passa a agregar, na mesma vala de obrigados, sujeitos pblicos e privados, reunidos numa clara, mas constitucionalmente legitimada, confuso 62 de posies jurdicas; finalmente, e em conseqncia disso tudo, o rigoroso adversarismo, a tcnica do eu/ns contra o Estado ou contra ns mesmos, transmuda-se em solidarismo positivo, com moldura do tipo em favor de algum ou algo. No h a simples reordenao cosmtica da superfcie normativa, constitucional e infra-constitucional. Ao revs, trata-se de operao mais sofisticada, que resulta em trplice fratura no paradigma vigente: a diluio das posies formais rgidas entre credores e devedores (a todos se atribuem, simultaneamente, o direito ao meioCf. BECK, Ulrich. Risk society: toward a new modernity. London: Sage, 1992. LEITE, Jos Rubens Morato; AYALA, Patrick de Arajo. Direito ambiental na sociedade de risco. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 61 Sobre a evoluo histrica do Estado Social, cf. ASA BRIGGS. The Welfare State in historical perspective. In: ASA BRIGGS. The Collected Essays of Asa Briggs. Urbana, University of Illinois Press, 1985, p. 177 62 "Confuso" aqui no seu sentido usual do Direito das Obrigaes. Segundo o Cdigo Civil de 2002, "Extingue-se a obrigao, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor" (art. 381, repetindo idntica regra do Cdigo de 1916). 3A1260

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ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de proteg-lo); a irrelevncia da distino entre sujeito estatal e sujeito privado, conquanto a degradao ambiental pode ser causada, indistintamente, por um ou pelo outro, e at, com freqncia, por ambos de maneira direta ou indiretamente concertada; e, finalmente, o enfraquecimento da separao absoluta entre os componentes naturais do entorno (o objeto, na expresso da dogmtica privatstica) e os sujeitos da relao jurdica, com a decorrente limitao, em sentido e extenso ainda incertos, do poder de disposio destes (= dominus) em face daqueles (= res). O que causou essa intrigante, no obstante obscura, mudana de estrutura constitucional? Errar quem apostar em uma inovao de moda, por isso efmera, destituda de bases objetivas e alheia a necessidades humanas latentes e prementes, que usualmente antecedem o desenho da norma. Dificilmente, na experincia comparada, encontramse instncias em que transformaes constitucionais de fundo sucedem por simples acidente de percurso ou capricho do destino. Aqui, sucede o mesmo, pois a crise ambiental, acirrada aps a Segunda Guerra 63 , que libertar foras irresistveis, verdadeiras correntes que levaro ecologizao da Constituio, nos anos 70 e seguintes. Crise ambiental essa que ningum mais disputa sua atualidade e gravidade. Crise que multifacetria e global, com riscos ambientais de toda ordem e natureza: contaminao da gua que bebemos, do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos, bem como perda crescente da biodiversidade planetria. J no so ameaas que possam ser enfrentadas exclusivamente pelas autoridades pblicas (a frmula do nscontra-o-Estado), ou mesmo por iniciativas individuais isoladas, pois vtimas so e sero todos os membros da comunidade, afetados indistintamente 64 , os de hoje e os de amanh, isto , as geraes futuras.63

Cf. MCNEILL R. Something new under the sun: an environmental history of the twentieth-century world, W.W. Norton, 2001. 64 FREYFOGLE, Eric T. Should we green the bill? University of Illinois Law Review, v. 1992, p. 166. 4A12

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So riscos que insegurana poltica, jurdica e social acrescentam a insegurana ambiental, patologia daquilo que o legislador brasileiro, com certa dose de impreciso, chama de meio ambiente ecologicamente equilibrado 65 e, por vezes, de qualidade ambiental 66 . Em tal pano de fundo, bem se compreende que, nos dias atuais, os cidados no se satisfaam com uma simples carta de direitos bsicos, do tipo Bill of Rights, destinada a livrar os cidados dos abusos do Estado-Rei, sempre pronto para espalhar opresso entre seus sditos. Hoje, espera-se mais dessas salvaguardas, em especial que sejam dirigidas no apenas contra o Poder Pblico solitrio, mas que tambm vinculem uma poderosa minoria de sujeitos privados que, em vrios terrenos e no ambiental em especial, aparecem no exatamente como vtimas indefesas de abusos estatais, mas, ao contrrio, como srios candidatos repreenso e correo 67 por parte da norma (inclusive a constitucional) e de seus implementadores. S em meados da dcada de 70 por uma conjuno de fatores, que no interessa aqui esmiuar os sistemas constitucionais comearam, efetivamente, a reconhecer o ambiente como valor merecedor da tutela maior 68 ; esse, sem dvida, um daqueles raros momentos, que ocorrem de tempos em tempos, em que o senso de civilizao redefinido, para usar a expresso feliz do gegrafo Carl O. Sauer 69 . H, em tal constatao, um aspecto que impressiona, pois na

Constituio da Repblica, art. 225, caput. Lei n. 6.938/81, art. 2, caput. 67 RODGERS JNIOR, William H. Environmental law. 2. ed. St. Paul: West Publishing Co., 1994, p. 66. 68 Aqui cabe destacar a experincia dos antigos pases comunistas do leste europeu, dos primeiros a constitucionalizar o meio ambiente (por exemplo, a Polnia, em 1976), mas que pouco fizeram para implementar tais garantias. Para uma anlise da situao aps a queda do Muro de Berlim, cf. BROWN, Elizabeth F. In defense of environmental rights in East European constitutions. University of Chicago Law School Roundtable, 1993, p. 191-217. GRAVELLE, Ryan K. Enforcing the elusive: environmental rights in East European constitutions. Virginia Environmental Law Journal, v. 16,1997, p. 633-660. 69 SAUER, Carl O. The agency of man on the earth. In: THOMAS JR., William L. (ed.). Man's role in changing the face of the earth. v. 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1956, p. 68.66

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histria do Direito poucos valores ou bens tiveram uma trajetria to espetacular, passando, em poucos anos, de uma espcie de nada-jurdico ao pice da hierarquia normativa, metendo-se com destaque nos pactos polticos nacionais. Olhando em volta, seguro dizer que a constitucionalizao do ambiente uma irresistvel tendncia internacional, que coincide com o surgimento e consolidao do Direito Ambiental 70 . Mas, constitucionalizar uma coisa; constitucionalizar bem, outra totalmente diversa. Ningum deseja uma Constituio reconhecida pelo que diz e desprezada pelo que faz ou deixa de fazer 71 . Nessa evoluo acelerada, numa primeira onda de constitucionalizao ambiental, sob a direta influncia da Declarao de Estocolmo de 1972, vieram as novas Constituies dos pases europeus que se libertavam de regimes ditatoriais, como a Grcia (1975) 72 , Portugal (1976) 73 e Espanha (1978) 74 . Posteriormente, num segundoConsolidao esta que no pacfica, pois, lembra Vladimir Passos de Freitas, alguns ainda relutam em aceitar o Direito Ambiental como "um ramo novo do Direito que se distingue de todos os demais". FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituio Federal e a efetividade das normas ambientais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 26. 71 Sobre as conseqncias das normas constitucionais, mormente daquelas definidoras de direitos, cf. ALEXY, Robert. A Theory of constitucional rights. Traduo de Julian Rivers. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 365. 72 Trata-se do art. 24: 1) A proteo do meio ambiente natural e cultural constitui uma obrigao do Estado. O Estado tomar medidas especiais, preventivas ou repressivas, com o fim de sua conservao. A lei regula as formas de proteo das florestas e espaos com arborizados em geral. Est proibida a modificao da afetao das florestas e espaos arborizados patrimoniais, salvo se sua explorao agrcola tiver prioridade do ponto de vista da economia nacional ou de qualquer outro uso de interesse pblico; 2) A gesto do territrio, a formao, o desenvolvimento, o urbanismo e a extenso das cidades e regies urbanizveis so regulamentadas e controladas pelo Estado, com o fim de assegurar a funcionalidade e desenvolvimento das aglomeraes humanas e as melhores condies de vida possvel; 3) Os monumentos assim como os lugares histricos e seus componentes esto sob a proteo do Estado. A lei fixa as medidas restritivas da propriedade para assegurar esta proteo, assim como as modalidades e natureza da indenizao dos proprietrios prejudicados. 73 Estabelece o atual art. 66 ("Ambiente e Qualidade de Vida") da Constituio portuguesa: "1 Todos tm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. 2 Incumbe ao Estado, por meio de organismos prprios e por apelo e apoio a iniciativas populares: a) Prevenir e controlar a poluio e os seus efeitos e as formas prejudiciais de eroso; b) Ordenar e promover o ordenameto do territrio, tendo em vista uma correcta localizao das actividades, um equilibrado desenvolvimento scio-econmico e paisagens biologicamente equilibradas; c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e stios, de modo a garantir a conservao da natureza e a preservao de valores culturais de interesse histrico ou artstico; d) Promover o 6A1270

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grupo, ainda em perodo fortemente marcado pelos padres e linguagem de Estocolmo, foi a vez de pases como o Brasil 75 . Finalmente, aps a Rio92, outras Constituies foram promulgadas ou reformadas, incorporando, expressamente, novas concepes, como a de desenvolvimento sustentvel, biodiversidade e precauo. O exemplo mais recente deste grupo retardatrio a Frana, que em 2005 adotou sua Charle de l'environnement 76 .

aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de remoo e a estabilidade ecolgica". 74 A Constituio espanhola inspirou-se, genericamente, na Declarao de Estocolmo e, de modo mais imediato, na Constituio portuguesa de 1976. Cf., nesse ponto, MATEO, Ramn Martin. Manual de derecho ambiental. Madrid: Trivium, 1995, p. 107. Assim dispe seu art. 45: "1) Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente adecuado para el desarrollo de la persona, as como el deber de conservalo; 2) Los poderes pblicos velarn por la utilizacin racional de todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar la calidad de vida y defender y restaurar el medio ambiente, apoyndose en la inexcusable solidariedad colectiva; 3) Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en los trminos que la ley fije se establecern sanciones penales o, en su caso, administrativas, as como la obligacin de reparar el dao causado". 75 Sobre a proteo constitucional do meio ambiente no Brasil, dentre outros, BENJAMIN, Antnio Herman V. (coord.). Dano ambiental, preveno, reparao e represso, funo ambiental. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. BENJAMIN, Antnio Herman V.; SCOLI, Jos Carlos Meloni; SALVINI, Paulo Roberto. Manual prtico da promotoria de justia do meio ambiente. So Paulo: Procuradoria-Geral da Justia, 1997. FIORDLLO, Celso Antnio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislao aplicvel. So Paulo: Max Limonad, 1997. DERANI, Cristiane. Direito ambiental econmico. So Paulo: Max Limonad, 1997. MJLAR, Edis. A ao civil pblica na nova ordem constitucional. So Paulo: Saraiva, 1990. SILVA, Jos Afonso da. Direito ambiental constitucional. So Paulo: Malheiros, 1994. LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito ambiental brasileiro. 12. ed. So Paulo: Malheiros, 2004. FREITAS, Vladimir Passos de. Direito administrativo e meio ambiente. Curitiba: Juru, 2004, e Direito ambiental em evoluo. Curitiba: Juru, 1998 (coord.). 76 A Charte de l'environnement fala, expressamente, em desenvolvimento sustentvel (prembulo e art. 6), princpio da precauo (art. 5), e diversidade biolgica (prembulo). Cf., ainda, dentre outras, a Constituio argentina de 1994, na qual se observa, claramente, a influncia da definio de desenvolvimento sustentvel de "Nosso Futuro Comum" (a exigencia de que "las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras"): "Artculo 41 Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservado. El dao ambiental generar prioritariamente la obligacin de recomponer, segn lo establezca la ley. Las autoridades proveern a la proteccin de este derecho, a la utilizacin racional de los recursos naturales, a la preservacin del patrimonio natural y cultural y de la diversidad biolgica, y a la informacin y educacin ambientales. Corresponde a la Nacin dictar las normas que contengan los pres supuestos mnimos de proteccin, y a las provncias las necesarias para complementarias, sin que aqullas 7A12

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Sob o prisma terico, a abordagem constitucional do ambiente admite diversos enfoques. Em todos eles, contudo, interessar conhecer os possveis modelos ticos e tcnicos que vm sendo propostos e utilizados, para, a partir da, melhor apreciar suas repercusses concretas no campo legislativo ordinrio e na implementao das normas jurdicoambientais. Nessa empreitada, o estudo comparado deveras til, no s para projetar a nova viso constitucional em tela panormica, mas tambm para aproxim-la, internamente, dos fundamentos scio-culturais que informam o comportamento de seus destinatrios. Afinal, como bem lembra Mark Tushnet, a "experincia comparada legalmente irrelevante, a no ser que possa se conectar com argumentos j disponveis no sistema jurdico interno" 77 . O pior risco, nesses momentos de reviravolta constitucional, importar idias, objetivos, princpios e instrumentos de uma tradio jurdica sem entender, na origem, sua gnese e insero cultural 78 . O presente ensaio volta a ateno, essencialmente, para os aspectos tcnicos da constitucionalizao, o que obriga a abstrair completamente questes mais amplas, como o fenmeno dos "transplantes legais", to visveis nessa matria 79 . Somente de forma indireta ou superficial, aqui e ali, comentam-se, por serem inevitveis, alguns arranjos institucionais que decorrem do texto constitucional, bem como as influncias ticas que acabam por nele se refletir 80 . A constitucionalizao do ambiente emerge, nos primeiros momentos, em

alteren las jurisdicciones locales. Se prohibe el ingreso al territorio nacional de residuos actual o potencialmente peligrosos y de los radiactivos". 77 TUSHNET, Mark. The possibilites of comparative constitucional law. Yale Law Journal, v. 108,1999, p. 1307. 78 HOWARD, A. E. Dick. The indeterminacy of constitutions. Wake Forest Law Review, v. 31, p. 403,1996. 79 Sobre "transplantes legais", cf., genericamente, WATSON, Alan. Legal transplants: an approach to comparative law. 2 ed. 1993. No campo ambiental, cf. WIENER, Jonathan B. Something borrowed for something blue: legal transplants and the evolution of global environmental law. Ecology Law Quarterly, v. 27, p. 1295, 2001. 80 Cf., quanto aos fundamentos ticos do Direito Ambiental, BENJAMTN, Antnio Herman V. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Caderno Jurdico, Escola Superior do Ministrio Pblico de So Paulo, ano 1, n. 2, p. 151-171, 2001. 8A12

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frmula estritamente antropocntrica, espcie de componente mais amplo da vida e dignidade humanas; s mais tarde, componentes biocntricos so borrifados no texto constitucional ou na leitura que deles se faa; nesse ltimo caso, pelo menos, mitigando a vinculao normativa exclusiva a interesses de cunho estritamente utilitarista 81 . Inicialmente, ser feita uma breve abordagem dos

fundamentos constitucionais do Direito Ambiental e das caractersticas gerais dos modelos existentes, para, em seguida, tratar da convenincia (benefcios e riscos) da constitucionalizao. Aps, analisar-se- a proteo do meio ambiente na Constituio brasileira de 1988, destacando a evoluo histrica da matria, as tcnicas nela adotas (direitos e deveres fundamentais, princpios ambientais, funo ecolgica da propriedade, objetivos pblicos vinculantes, programas pblicos abertos, instrumentos, e ecossistemas especialmente resguardados). Finalmente, antes das concluses, brevemente, sero tecidas consideraes a respeito da Ordem Pblica Ambiental constitucionalizada, do Estado de Direito Ambiental e da implementao das disposies constitucionais. 1.1.1 Importncia da anlise dos fundamentos constitucionais do Direito Ambiental A ecologizao da Constituio no cria tardia de um lento e gradual amadurecimento do Direito Ambiental, o pice que simboliza a consolidao dogmtica e cultural de uma viso jurdica de mundo. Muito ao contrrio, o meio ambiente ingressa no universo constitucional em pleno perodo de formao do Direito Ambiental. A experimentao jurdico-ecolgica empolgou, simultaneamente, o legislador infraconstitucional e o constitucional. Considerando a lentido da prtica constitucional,

precipitado falar em teoria constitucional do ambiente como algo que se81

Cf. Karl-Heinz Ladeur, EnvironmenUil constitutional law, in Gerd Winter (ed.), European Environmental Law: a comparative perspective. Aldershot: Dartmouth, 1994, p. 18. 9

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aflora natural e facilmente no discurso dos constitucionalistas. Isso, apesar de o Direito Ambiental, como disciplina jurdica, ter alcanado, nos dias atuais, o patamar da maturidade, com ares de autonomia 82 , aps uma evoluo de pouco mais de trinta anos, muito breve para os padres jurdicos normais. Mas nem mesmo aqui, isto , no terreno mais slido do panorama infraconstitucional, a obra est totalmente construda. Um dos piores erros dos jus-ambientalistas enxergar, nos "direitos ambientais", concepes auto-evidentes, para as quais descaberia ou seria desnecessrio procurar subsdios dogmticos ou explicao terica. Em outras palavras, seria puro desperdcio de tempo e energia a verificao das bases tericas da disciplina, notadamente aquelas de fundo constitucional, na medida em que ningum, nem mesmo seus crticos, ainda se do ao trabalho de questionar a importncia e legitimidade da ateno que o Direito vem dedicando e deve dedicar degradao ambiental. Nada mais equivocado. O contedo e o campo de aplicao do Direito Ambiental parecem insuficientemente explorados na mesma proporo em que a disciplina aparenta se justificar e se bastar em si mesma. Muito menos o campo dos direitos e obrigaes que a compem, relaes jurdicas altamente complexas e ainda cobertas por uma certa aura de ambigidade 83 e muito de incerteza, o que, em rigor, prejudica seu entendimento e, pior, dificulta sua efetividade, podendo mesmo, em certas circunstncias, inviabilizar a realizao concreta de seus elevados objetivos. Em pases conhecidos por prestarem obedincia a norma ordinria e ignorarem ou desprezarem a norma constitucional (como o Brasil), mais relevante ainda essa busca dos fundamentos remotos do Direito Ambiental, pouco importando que ele, na superfcie, transmita uma

82 83

No se tome, contudo, autonomia por independncia. SAX, Joseph L. The search for environmental rights. In: Journal of Land Use & Environmental Law, v. 6,1990, p. 96. 10

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falsa

aparncia

de

consistncia

e

consolidao.

Evidentemente,

a

diligncia e a configurao tericas devem comear e terminar pela norma constitucional, pois no papel da Constituio confirmar, em juzo posterior, o Direito Ambiental aplicado (e, infelizmente, amide malaplicado), mas determinar, de forma preambular, seus rumos e at existncia. Os fundamentos dorsais do Direito Ambiental, ao contrrio do que se dava com as disciplinas jurdicas clssicas, encontram-se, em maior ou menor medida, expressamente apresentados em um crescente nmero de Constituies modernas; a partir delas, portanto, que se deve montar o edifcio terico da disciplina. Somente por mediao do texto constitucional enxergaremos espera-se um novo paradigma tico-jurdico, que tambm poltico-econmico, marcado pelo permanente exerccio de fuga da clssica compreenso coisificadora, exclusivista, individualista e fragmentria da biosfera. Coube Constituio do Brasil, mas tambm de muitos outros pases repreender e retificar o velho paradigma civilstico, substituindo-o, em boa hora, por outro mais sensvel sade das pessoas (enxergadas coletivamente), s expectativas das futuras geraes, manuteno das funes ecolgicas, aos efeitos negativos a longo prazo da explorao predatria dos recursos naturais, bem como aos benefcios tangveis e intangveis do seu uso-limitado (e at no-uso). O universo dessas novas ordens constitucionais, afastando-se das estruturas normativas do passado recente, no ignora ou despreza a natureza, nem a ela hostil. Muito ao contrrio, na Constituio, inicia-se uma jornada fora do comum, que permite propor, defender e edificar uma nova ordem pblica, como ser visto adiante, centrada na valorizao da responsabilidade de todos para com as verdadeiras bases da vida, a Terra. 1.2 Caractersticas dos modelos constitucionais ambientais11A12

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A

constitucionalizao

de

determinado

valor

ou

bem,

notadamente em momentos de ruptura poltica, no , vale repetir, mero exerccio aleatrio, traduzindo, com freqncia, certo modelo normativo, que cobia reescrever, em maior ou menor medida, a estrutura constitucional e infraconstitucional ento vigente. Um estudo comparado dos regimes de proteo constitucional do meio ambiente vai identificar cinco caractersticas comuns, que, de uma forma ou de outra e com pequenas variaes, informam seus textos 84 . Primeiro, adota-se uma compreenso sistmica (= orgnica ou holstica) e legalmente autnoma do meio ambiente, determinando um tratamento jurdico das partes a partir do todo, precisamente o contrrio do paradigma anterior. Com apoio nas palavras de Pontes de Miranda, empregadas em outro contexto, possvel afirmar que nesses dispositivos constitucionais "no se veio do mltiplo para a unidade. Vai-se da unidade para o mltiplo 85 . Alm disso, indisfarvel o compromisso tico de no empobrecer a Terra e a sua biodiversidade, almejando, com isso, manter as opes das futuras geraes e garantir a prpria sobrevivncia das espcies e de seu habitat. Fala-se em equilbrio ecolgico, prevem-se reas protegidas, combate-se a poluio, protege-se a integridade dos biomas e ecossistemas, reconhece-se o dever de recuperar o meio ambiente degradado, tudo isso indicando o intuito de assegurar no amanh um planeta em que se mantenham e se ampliem, quantitativa e qualitativamente, as condies que propiciam a vida em todas as suas formas. Terceiro, estimula-se a atualizao do direito de propriedade, de forma a torn-lo mais receptivo proteo do meio ambiente, isto , reescrevendo-o sob a marca da sustentabilidade. Esboa-se, dessa84 85

Ibid., p. 105. PONTES DE MIRANDA. Comentrios Constituio de 1967. 1.1. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 313 (grifo no original). 12

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maneira, em escalas variveis, uma nova dominialidade dos recursos naturais, seja pela alterao direta do domnio de certos recursos ambientais (gua, p. ex.), seja pela mitigao dos exageros degradadores do direito de propriedade, com a ecologizao de sua funo social, como melhor ser visto adiante. Quarto, desenha-se uma clara opo por processos decisrios abertos, transparentes, bem-informados e democrticos, estruturados em torno de um devido processo ambiental (= due process ambiental 86 ). O Direito Ambiental constitucionalizado ou no uma disciplina profundamente dependente da liberdade de participao pblica e do fluxo permanente e desimpedido de informaes de toda ordem. Em regimes ditatoriais ou autoritrios, a norma ambiental no vinga, permanecendo, na melhor das hipteses, em processo de hibernao letrgica, espera de tempos mais propcios sua implementao, como se deu com a Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente, de 1981, at a consolidao democrtica (poltica e do acesso justia) do pas, em 1988. Finalmente, em Constituies mais recentes, observa-se uma ntida preocupao com a implementao, isto , com a indicao, j no prprio texto constitucional, de certos direitos e deveres relacionados eficcia do Direito Ambiental e dos seus instrumentos, visando a evitar que a norma maior (mas tambm a infraconstitucional) assuma uma feio retrica bonita distncia e irrelevante na prtica. O Direito Ambiental tem averso ao discurso vazio; uma disciplina jurdica de resultado, que s se justifica pelo que alcana, concretamente, no quadro social das intervenes degradadoras. 1.3 Convenincia da proteo constitucional do ambiente No debate constitucional, uma pergunta inicial que se pe a seguinte: seria a constitucionalizao da proteo do ambiente, se no86

BENJAMIN, Antnio Herman V. Os princpios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense, v. 317, p. 34,1992. 13

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indispensvel, pelo menos til atuao do legislador ordinrio e do implementador (rgos ambientais, juzes, Ministrio Pblico, ONGs e vtimas de degradao)? A experincia comparada parece indicar que, embora no necessariamente imprescindvel, o reconhecimento constitucional expresso de direitos e deveres ambientais , jurdica e praticamente, benfico, devendo, portanto, ser estimulado e festejado. Um regime constitucional cuidadosamente redigido, de modo a evitar dispositivos nebulosos e de sentido incerto, pode muito bem direcionar e at moldar a poltica nacional do meio ambiente 87 . No passado, antes mesmo do movimento de

constitucionalizao da proteo do ambiente, a inexistncia de previso constitucional inequvoca no inibiu o legislador, aqui como l fora, de promulgar leis e regulamentos que, de uma forma ou de outra, resguardavam os processos ecolgicos e combatiam a poluio. Foi assim, p. ex., no Brasil, com o Cdigo Florestal (1965), a Lei de Proteo Fauna (1967) e a Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente (1981), normas extremamente avanadas e todas editadas em perodo anterior Constituio de 1988. Ainda hoje, uns poucos, mas importantes, sistemas jurdicos, a incluindo-se os Estados Unidos 88 , protegem o ambiente sem contar com apoio expresso ou direto na Constituio. Nesses casos, como ocorreuGRAVELLE, Ryan K. Enforcing the elusive: environmental rights in East European constitutions. In: Virginia Environmental Law Journal, v. 16, 1997, p. 660. 88 Ao contrrio da Constituio da Repblica, vrias Constituies Estaduais incorporaram, expressamente, a proteo do meio ambiente. Uma das razes que levaram ao naufrgio das vrias emendas apresentadas, no incio dos anos 70, no Congresso norte-americano, foi o enorme sucesso na aprovao de leis ambientais modernas e inovadoras, como o NEPA National Environmental Policy Act de 1969, vitrias essas que fortaleceram o argumento da desnecessidade de uma emenda constitucional (SCHLICKEISEN, Rodger. The argument for a constitutional amendment to protect living nature. In: SNAPE, William J. Biodiversity and the law. Washington: Island Press, 1996, p. 221). Dos cinqenta Estados, mais de um tero deles conta com normas constitucionais expressas reconhecendo e protegendo o meio ambiente (THOMPSON JR., Barton H. Environmental Policy and the State Constitutions: the potential role of substantive guidance. In: Rutgers Law Journal, v. 27, 1996, p. 871). 14A1287

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aqui antes de 1988, doutrinadores e juzes procuram "depreender de outros princpios ou de outros direitos um princpio de defesa do ambiente, com as decorrncias inerentes" 89 . No obstante essa constatao de razovel inofensividade da lacuna constitucional, razes vrias recomendam a constitucionalizao do ambiente, uma tendncia mundial que no passou despercebida ao constituinte brasileiro de 1988. Superada especficos. 1.4 Benefcios da constitucionalizao Mais do que um abstrato impacto poltico e moral 90 , a constitucionalizao do ambiente traz consigo benefcios variados e de diversas ordens, bem palpveis, pelo impacto real que podem ter na (re)organizao do relacionamento do ser humano com a natureza. Alguns apresentam carter substantivo, material ou interno, isto , reorganizam a estrutura profunda de direitos e deveres, assim como da prpria ordem jurdica. Outros, diversamente, relacionam-se com a afirmao concreta ou implementao das normas de tutela ambiental so benefcios formais ou externos. Trata-se-, primeiramente, dos benefcios substantivos. 1.4.1 Primeiro benefcio substantivo: estabelecimento de um dever constitucional genrico de no degradar, base do regime de explorabilidade limitada e condicionada O primeiro aspecto positivo que se observa nos vrios regimes constitucionais do meio ambiente, especialmente no brasileiro, a instituio de um inequvoco dever de no degradar, contraposto ao89

a

questo

genrica

da

convenincia

da

constitucionalizao, oportuno tratar dos seus benefcios e dos riscos

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1993, p. 472. 90 PRIEUR, Michel. Droit de l'environnement. 5. ed. Paris: Dalloz, 2004, p. 65. 15A12

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direito de explorar, inerente ao direito de propriedade, previsto no art. 5, XXII, da Constituio Federal. No campo dos recursos naturais e do uso da terra, tal transmudao explorabilidade proteo dos implica plena vizinhos) (com e a substituio in-condicionada pelo regime amplos de e definitiva (com do regime mnimos limitada de e e na limites

pulverizados, decorrentes, p. ex., das regras de polcia sanitria e da explorabilidade sistemticos, condicionada limites centrados

manuteno dos processos ecolgicos). Limitada, porque nem tudo que integra a propriedade pode ser explorado; condicionada, porque mesmo aquilo que, em tese, pode ser explorado, depende da observncia de certas condies impostas abstratamente na lei e concretamente em licena ambiental exigvel. Trata-se de dever constitucional auto-suficiente e com fora vinculante plena, dispensando, na sua aplicao genrica, a atuao do legislador ordinrio. , por outro lado, dever inafastvel, tanto pela vontade dos sujeitos privados envolvidos como a pretexto de exerccio de discricionariedade administrativa. Vale dizer, dever que, na estrutura do edifcio jurdico, no se insere na esfera da livre opo dos indivduos 91 , pblicos ou no. ainda dever de cunho atemporal e transindividual, o que traz conseqncias, como ser analisado em seguida, no campo da prescrio, do direito adquirido e da livre movimentao ou transferncia de bens no mercado; como dever de ordem pblica, no cabe escolha entre respeitlo ou desconsider-lo, abrindo-se, nessa ltima hiptese, a avenida dos instrumentos ONGs. preventivos, reparatrios e sancionatrios, postos disposio do Estado, das vtimas e dos sujeitos intermedirios, como

91

BROOKS, Richard O. A constitutional right to a healthful environment. Vermont Law Review, v. 16, p. 1110, 1992. 16

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Por ltimo, formulado como dever intrnseco ao direito de propriedade, cabe ao obrigado, que pretenda exercitar seu domnio ou posse, provar que o far em conformidade com as exigncias da manuteno dos atributos essenciais do meio ambiente. Aqui, outra conseqncia do reconhecimento constitucional do dever: a inverso do nus da prova da inofensividade, matria que se manifestar, com maior clareza, na aplicao do princpio da precauo. 1.4.2 Segundo benefcio substantivo: a ecologizao da propriedade e da sua funo social Como sabido, todas as Constituies filiadas ao princpio da livre iniciativa garantem o direito de propriedade privada, inclusive a do Brasil 92 . A grande diferena entre as Constituies mais antigas e as atuais que nestas o direito de propriedade aparece ambientalmente qualificado. Em rigor, a crise ambiental dos ltimos cem anos no deixa, at certo ponto, de ser tambm um dos subprodutos dos exageros do modelo anterior de domnio, em que, mngua de determinaes legais explcitas restritivas da explorao predatria e no sustentvel dos recursos naturais, preconizava-se que ao proprietrio tudo era permitido inclusive destruir o que lhe pertencesse desde que respeitados alguns limites mnimos, como j visto, conectados satisfao de contrainteresses de seus vizinhos individuais e das normas de polcia sanitria. certo que mesmo as Constituies editadas na primeira metade do sculo XX atribuam ao direito de propriedade uma funo social. No bastou, seja porque o Judicirio e a doutrina civilstica nunca investiram muito na concretizao dessa destinao social, seja porque a prpria idia de funo social no levava, necessria e claramente, a uma

92

No caso da Constituio brasileira, cf. os arts. 52, XXII ("direito de propriedade") e 170, caput ("livre iniciativa"). 17

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maior sensibilidade com a fragilidade da natureza. Fazia-se necessrio contrabalanar a hiper-nfase no direito de propriedade 93 . Era imperioso, pois, contrabalanar o rigor privatstico e a viso ambientalmente assptica da funo social (= coisificao exagerada da natureza), corrigindo, j a meio caminho, as distores produzidas por uma doutrina e jurisprudncia alheias sorte do meio ambiente. A princpio, tal aspirao foi tentada com o uso da funo social da propriedade, j que seu objetivo original, embora no exatamente ambiental, era viabilizar a interveno do Estado na regulao do trabalho, das relaes contratuais e do mercado em geral, o que, em tese, abriria as portas para outros e novos valores sociais de ndole psindustrial. Da que, at a dcada de 70, imaginava-se que, como expresso renovadora do contedo do direito de propriedade, a funo social genrica serviria de ponto de partida e apoio ao ajustamento conclamado pelas novas demandas sociais abrigadas pelo Estado Social, a se incluindo o meio ambiente. do meio Em tal tica, mesmo tal sem no um reconhecimento explcito ambiente como quadro

constitucional, uma releitura interpretativa (legislativa e judicial) da funo social bastaria para legitimar um novo regime jurdico da natureza, agregando aspectos ecolgicos ao uso (e abuso) da propriedade. Mas, o Brasil tem prtica, a transformao e a evoluo do Direito via labor exegtico levam tempo. E tempo exatamente o que no temos em sede ambiental, diante do carter catastrfico ou irreversvel 94 de muitos dos atentados natureza. Sendo assim, logo a frmula da ampliao interpretativa da funo social da propriedade mostrou-se insuficiente, tanto no campo doutrinrio como no terreno da jurisprudncia. No fcil mudar, por meio to indireto, fragmentrio e

93 94

SCHLICKEISEN, Rodger. Op. cit., p. 222. PRIEUR, Michel. Op. cit., p. 945. 18

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incerto, todo um paradigma de explorao no sustentvel dos recursos naturais. Sem falar que, at hoje, a funo social, em si mesma, ainda busca sua afirmao concreta no campo das decises judiciais. A ecologizao da Constituio, portanto, teve o intuito de, a um s tempo, instituir um regime de explorao limitada e condicionada (= sustentvel) da propriedade e agregar funo social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explcito componente ambiental. Os arts. 170, VI, e 186, II, da Constituio brasileira, inserem-se nessa linha de pensamento de alterao radical do paradigma clssico da explorao econmica dos chamados bens ambientais. Com novo perfil, o regime da propriedade passa do direito pleno de explorar, respeitado o direito dos vizinhos, para o direito de explorar, s e quando respeitados a sade humana e os processos e funes ecolgicos essenciais. A tutela expressa do meio ambiente nas Constituies mais recentes, por poder constituinte originrio ou derivado, reitera a funo social da propriedade, ou, para utilizar a expresso de Guilherme Purvin, enfatiza a "dimenso ambiental da funo social da propriedade" 95 . Tambm relegitima, numa perspectiva mais ampla e profunda, direitos que, de uma forma ou de outra, os indivduos e a coletividade, no obstante o silncio do texto constitucional, sempre foram considerados detentores, na medida em que correlates a limites intrnsecos do direito de propriedade privada, justificados sob o imprio da preservao da vida e de suas bases naturais. Em tal equao renovada da propriedade e dos direitos de us-la, no so incomuns, nem causam estranheza, o reconhecimento da inverso do nus da prova da inofensividade da atividade proposta, como aludido atrs, bem como a ampliao da exigncia de licenciamento (com

95

FIGUEIREDO, Guilherme Jos Purvin de. A propriedade no direito ambiental: a dimenso ambiental da funo social da propriedade. 2. ed. Rio de Janeiro: ADCOAS/Ed. Esplanada, 2005, p. 20 (grifo no original). 19

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"licenas" com prazo certo) e a responsabilidade objetiva na reparao dos danos causados 96 . Numa palavra, a fica evidenciado o fim redistributivo do Direito Ambiental, reorganizando o endereamento dos benefcios e custos ambientais. Trata-se de inverso da injusta realidade da degradao ambiental, que, na sua essncia, no deixa de ser uma apropriao indevida (e, agora, tambm constitucionalmente desautorizada) de atributos ambientais, em que os benefcios so monopolizados por poucos (= os poluidores) e os custos so socializados entre todos (= a coletividade, presente e futura). 1.4.3 Terceiro benefcio substantivo: a proteo ambiental como direito fundamental Alm da instituio desse inovador "dever de no degradar" e da ecologizao do direito de propriedade, os mais recentes modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao nvel no de um direito qualquer, mas de um direito fundamental 97 , em p de igualdade (ou mesmo, para alguns doutrinadores, em patamar superior) com outros tambm previstos no quadro da Constituio, entre os quais se destaca, por razes bvias, o direito de propriedade. Assim posta, a proteo ambiental deixa, definitivamente, de ser um interesse menor ou acidental no ordenamento, afastando-se dos tempos em que, quando muito, era objeto de acaloradas, mas juridicamente estreis, discusses no terreno no jurgeno das cincias naturais ou da literatura. Pela via da norma constitucional, o meio ambiente alado ao ponto mximo do ordenamento, privilgio que

96

CHIAPPINELLI, John A. The right to a clean and safe environment: a case for a constitutional amendment recognizing public rights in common resources. Buffalo Law Review, v. 40, p. 604, 1992. 97 BRANDL, Ernst; BUNGERT, Hartwin. Constitutional entrenchmerit of environmental protection: a comparative analysis of experiences abroad. Harvard Environmental Law Review, v. 16, p. 8-9,1992. 20A12

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outros valores sociais relevantes s depois de dcadas, ou mesmo sculos, lograram conquistar. Tanto como dever de no degradar, como na frmula de direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a constitucionalizao presta-se para contrabalanar as prerrogativas tradicionais do direito de propriedade, o que enseja novas e fortalece velhas limitaes implcitas e explcitas, acima referidas. Concretamente, portanto, pode-se ganhar muito, no terreno dogmtico e da implementao, com o estabelecimento de um direito fundamental dessa natureza. Assim, dentre outros benefcios diretos, temos que, como direito fundamental, sua norma estatuidora conta com aplicabilidade imediata 98 , tema a que se voltar adiante. 1.4.4 Quarto benefcio substantivo: legitimao constitucional da funo estatal reguladora Uma das misses das normas constitucionais estabelecer o substrato normativo que circunda e orienta o funcionamento do Estado. Nesse sentido, a insero da proteo ambiental na Constituio legitima e facilita e, por isso, obriga a interveno estatal, legislativa ou no, em favor da manuteno e recuperao dos processos ecolgicos essenciais. Em tempos de declnio de confiana nas instituies estatais 99 e de reduo da presena do Estado na economia, providncia bemvinda. Da interveno excepcional e pontual, tpica do modelo liberal, passa-se interveno imposta e sistemtica. Em tal cenrio, j no se requer apelos a desastres naturais (liberalismo), nem a catstrofes econmicas (welfarismo) para justificar o protagonismo ecolgico do Estado. Para tanto, basta a crise ambiental, devidamente notada pelo texto constitucional.

98

"As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata" (Constituio da Repblica, art. 5, 1). 99 BROOKS, Richard O. A constitutional right to a healthful environment, cit., p. 1107. 21A12

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Ou seja, diante do novo quadro constitucional, a regulao estatal do ambiente dispensa justificao legitimadora, baseada em tcnicas interpretativas de preceitos tomados por emprstimo, pois se d em nome e causa prprios. Em face da explorao dos recursos naturais, a ausncia do Poder Pblico, por ser a exceo, que demanda cabal justificativa, sob pena de violao do dever inafastvel de (prontamente) agir e tutelar. Nessa linha de pensamento, os comandos constitucionais fincam, como ser tratado em seguida, os marcos divisrios daquilo que se pode denominar ordem pblica ambiental constitucionalizada, baseada na explorabilidade limitada e condicionada da natureza, atrs mencionada. Os direitos ambientais so umbilicalmente associados

agenda renovada do Welfare State, bem mais complexos que os direitos constitucionais clssicos, dirigidos, de modo preponderante, quando no exclusivo, em face do Estado, deste se esperando uma absteno e no, em rigor, uma interveno. Diferentemente do modelo liberal de Estado, por certo se est diante de interveno estatal, que deve ser, a um s tempo, preventiva (e de precauo) e positiva, na esteira do reconhecimento de que esta uma era que, cada vez mais, demanda governabilidade afirmativa 100 . Por isso, a verbalizao do discurso constitucional de proteo do ambiente no anuncia, como desiderato principal, um non facere; ao contrrio, inegavelmente prega e exige prestaes positivas a cargo do Estado, mensagem irrecusvel que vem em reforo dos deveres infraconstitucionais de garantia pelas autoridades pblicas dos processos ecolgicos essenciais 101 . Uma demanda para que assegure, como direito de todas as pessoas, certo nvel de liberdade contra riscos ambientais e,

100

TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. 3. ed., v. 1. New York: Foundation Press, 2000, p. 16. 101 PRIEUR, Michel. Op. cit, p. 65. 22A12

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ao mesmo tempo, acesso aos benefcios ambientais 102 e recuperao da degradao j causada. Encargo afirmativo esse que, sem opo expressa do constituinte, contaria com frgil amparo constitucional e difcil defesa, no universo dos conflitos dirios pelo uso e contra o abuso dos recursos naturais. 1.4.5 Quinto benefcio substantivo: reduo da discricionariedade administrativa Vistos por outro ngulo, os comandos constitucionais reduzem a discricionariedade da Administrao Pblica, pois impem ao administrador o permanente dever de levar em conta o meio ambiente e de, direta e positivamente, proteg-lo, bem como exigir seu respeito pelos demais membros da comunidade, abrindo ao cidado a possibilidade de questionar "aes administrativas que de forma significativa prejudiquem os sistemas naturais e a biodiversidade" 103 . Da que ao Estado no resta mais do que uma nica hiptese de comportamento: na formulao de polticas pblicas e em procedimentos decisrios individuais, optar sempre, entre as vrias alternativas viveis ou possveis, por aquela menos gravosa ao equilbrio ecolgico, aventando, inclusive, a no-ao ou manuteno da integridade do meio ambiente pela via de sinal vermelho ao empreendimento proposto. desse modo que h de ser entendida a determinao constitucional de que todos os rgos pblicos levem em considerao o meio ambiente em suas decises (art. 225, caput, e 1, da Constituio brasileira), adicionando a cada uma das suas misses primrias no por opo, mas por obrigao a tutela ambiental. No Brasil, o desvio desse dever pode caracterizar improbidade administrativa e infraes a tipos penais e administrativos.

102 103

SAX, Joseph L. The search for environmental rights, cit., p. 95. SCHLICKEISEN, Rodger. Op. cit., p. 222. 23

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1.4.6 Sexto benefcio substantivo: ampliao da participao pblica Por derradeiro, entre tantos outros benefcios substantivos da constitucionalizao, possvel ampliar os canais de participao pblica, sejam os administrativos, sejam os judiciais, nesse ltimo caso, com o afrouxamento do formalismo individualista, que a marca da legitimao para agir tradicional 104 . Em alguns casos, conforme a dico utilizada pelo legislador constitucional, essa legitimao ampliada pode vir a ser automaticamente aceita pelo Poder Judicirio, sem necessidade de interveno legislativa. correto e justo dizer que, no Direito moderno, o legislador que atribui o benefcio (qualidade ambiental) ou a misso (proteger o meio ambiente, como dever de todos) tambm distribui, explcita ou implicitamente, os meios e, entre eles, os instrumentos processuais e meios administrativos de participao no esforo de implementao. Logo, possvel extrair da norma reconhecedora da tutela ambiental, como valor essencial da sociedade, um potencial poder processual de participar do processo decisrio administrativo ou ingressar em juzo em favor prprio ou de outros co-beneficirios. Isso porque os direitos e obrigaes constitucionais s tm sentido na medida em que podem ser implementados e usados 105 . Sem a possibilidade de questionamento coletivo, administrativo e judicial, dos comportamentos degradadores de terceiros, qualquer garantia dada ao cidado estar gravada com o smbolo da infecundidade e ineficcia do discurso jurdico.

104

Conforme, nesse ponto, BENJAMIN, Antnio Herman V. A insurreio da aldeia global contra o processo civil clssico. Apontamentos sobre a opresso e a libertao judiciais do meio ambiente e do consumidor. In: MILAR, Edis. Ao civil pblica: Lei 7.347/85 reminiscncias e reflexes aps dez anos de aplicao. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 70-151. 105 ANTIEAU, Chester James; RICH, William J. Modera constitutional law. 2. ed., v. 3. St. Paul: West Group, 1997, p. 660. 24A12

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Claro que tal exerccio exegtico dispensvel no Brasil, pois a Constituio no s abre claramente a possibilidade da implementao processual coletiva (art. 129), como, mesmo antes dela, o ordenamento infraconstitucional j se encaminhara nessa direo (Lei n. 7.347/85, cuidando da ao civil pblica). So esses, ento, alguns dos benefcios substantivos,

materiais ou internos da constitucionalizao do regime ambiental. Sero vistos, em seguida, outros benefcios, de cunho formal (ou externo), isto , vantagens que se destacam no terreno da compreenso ou realizao formal da tutela jurdica do meio ambiente. 1.4.7 Primeiro benefcio formal: mxima preeminncia e proeminncia dos direitos, deveres e princpios ambientais A regra constitucional vem dotada, como marca exterior das mais relevantes, de preeminncia e proeminncia 106 ; aquela, significando superioridade, atribui-lhe posio hierrquica superior, demandando obedincia estrita do ordenamento que lhe inferior; esta, indicando perceptibilidade, confere-lhe visibilidade mxima no anfiteatro superlotado das normas que compem o sistema legal de um pas. Com a superioridade, busca-se afinidade estrita entre

mandamento constitucional e disposio ordinria; da maior visibilidade, espera-se mais fcil e massificado conhecimento pelos destinatrios e, a partir da, respeitabilidade e efetividade alargadas. Constituio, por estar na pirmide do ordenamento, imputa-se o maximante da respeitabilidade e da visibilidade. Como bem lembra Jos Afonso da Silva, pela via da constitucionalizao "certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamento do existir

CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituio da Repblica Portuguesa anotada. 3. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1993, p. 45-46. 25A12

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comunitrio" 107 . hierarquia

Trata-se,

por

conseguinte, legislativo

de

norma de

superior

na

legislativa;

santurio

dotado

preeminncia

normativa (Canotilho), pois cuida de valores fundamentais da sociedade. Sobre ela, diz-se ser um modelo para os cidados, propiciando, por tudo isso, um catalisador de uma moralidade ecolgica 108 e uma maior probabilidade de conhecimento, especialmente pelos implementadores (Administrao e Judicirio). A preeminncia normativa da norma constitucional ocasiona, na palavra de Canotilho e Moreira, trs conseqncias jurdicas imediatas. Inicialmente, a interpretao das normas infraconstitucionais deve ser feita da forma mais concordante com a Constituio o princpio da interpretao conforme Constituio; alm disso, tais normas, se desconformes com a Constituio, sero invlidas, no podendo ser aplicadas pelos tribunais. Finalmente, exceto se inquestionavelmente inexeqveis em si mesmos, os dispositivos constitucionais tm aplicao direta, existam ou no leis e regulamentos intermedirios; aplicao que se d, inclusive, contra ou era lugar de lei ou regulamento que norma constitucional se oponha 109 . A preeminncia e a proeminncia do texto constitucional traduzem-se, no campo prtico, em inequvoco valor didtico. Estar o meio ambiente l, no lugar mais elevado na hierarquia jurdica 110 , serve de lembrana permanente da sua posio dorsal entre os valores indisponveis da vida em comunidade. Na vastido do ordenamento, o abrigo constitucional aparta os valores e interesses fundamentais dos que, no obstante sua eventual salvaguarda jurdica em outros textos normativos, cedem lugar ou soSILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 1994, p. 41. 108 SCHLICKEISEN, Rodger. Op. cit., p. 222. 109 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Op. cit., p. 45-46. 110 NEURAY, Jean-Franois. Droit de l'Environnement. Bruxelles: Bruylant, 2001, p. 149. 26A12107

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sacrificados em favor daqueles. No ordenamento, acima do resto; mas, principalmente, no simbolismo da "mente da sociedade" 111 , acima de tudo mais. Naqueles pases em que o pblico est firmemente a par dos problemas ambientais e da necessidade de agir, a proteo constitucional do meio ambiente pode pouco ou nada acrescentar, principalmente quando formulada na forma de objetivos pblicos vagos, de frgil implementao judicial. So pases em que, por fora da presso pblica, ao Estado indiferente ter ou no ter um traado constitucional mnimo, que o empurre para fora da inao prpria do sistema do laissez-faire. exatamente nos pases sem tradio ambiental em que a questo da degradao chama a ateno fundamentalmente da elite e da classe mdia 112 , enquanto boa parte da populao dedica-se a assegurar um prato de comida que a previso constitucional ser til, tanto para educar o povo como para guiar o processo decisrio estatal 113 . 1.4.8 Segundo benefcio formal: segurana normativa Alm disso, a constitucionalizao, especialmente em

Constituies rgidas como a do Brasil 114 , acompanhada por uma maior segurana normativa, seja porque os direitos e garantias individuais so considerados norma ptrea 115 , seja ainda em decorrncia da previso de um procedimento rigoroso para as emendas constitucionais 116 . Em ambos os casos, o resultado um valioso atributo de durabilidade legislativa no ordenamento, o que funciona como barreira desregulamentao e a

FREYFOGLE, Eric T. Should we green the bill? University of Illinois Law Review, p. 166, 1992. 112 FERNANDES, Edesio. Constitutional environmental rights in Brazil. In: BOYLE, Alan E.; ANDERSON, Michael R. (eds.). Human rights approaches to environmental protection. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 275. 113 BRANDL, Ernst; BUNGERT, Hartwin. Constitutional entrenchment of environmental protection: a comparative analysis of experiences abroad. Harvard Environmental Law Review, v. 16, p. 84, 1992. 114 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 47. 115 Constituio da Repblica, art. 5, 2, e art. 60, 4, IV. 116 Constituio da Repblica, art. 60. 27A12

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alteraes ao sabor de crises e emergncias momentneas, artificiais ou no. Nisso reside, de certa maneira, a razo principal do inchao temtico das Constituies modernas, com a incluso de vasto campo de matrias, sob "o sentimento de que a rigidez constitucional anteparo ao exerccio discricionrio da autoridade" e "o anseio de conferir estabilidade ao direito legislado sobre determinadas matrias" 117 . Como indicam Brandl e Bungert, tambm a est a explicao para que, na euforia dos processos de redemocratizao, pases que acabam de libertar-se de regimes ditatoriais tendam a regular constitucionalmente um universo vastssimo de aspectos da vida individual e social, muitos deles mais apropriados para tratamento pelo legislador ordinrio. O temor de retrocesso autoritrio d flego e legitimidade aos mais diversos interesses e busca do anteparo constitucional 118 . 1.4.9 Terceiro benefcio formal: substituio do paradigma da legalidade ambiental Por outro lado, por fora da constitucionalizao, substituiu-se o paradigma da legalidade ambiental 119 pelo paradigma da constitucionalidade ambiental. Embora se inclua tal benefcio entre os de natureza formal, a verdade que ele determina uma ambiciosa reestruturao da equao jurdico-ambiental, com implicaes muito mais amplas do que uma singela alterao cosmtica da norma e da sua percepo social. Constitucionalizar, nesse enfoque, denota que a

constitucionalidade toma o lugar da legalidade na funo de veculo e

117

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. So Paulo: Malheiros, p. 74. 118 BRANDL, Ernst; BUNGERT, Hartwin. Op. cit., p. 83. 119 Antes de 1988, protegia-se o meio ambiente apenas pela fora da lei; assim, p. ex., o Cdigo Florestal de 1965, a Lei de Proteo Fauna de 1967 (antigo Cdigo de Caa) e a Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente. 28A12

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resguardo de valores essenciais 120 , firmando-se, a partir da, uma ordem pblica ambiental constitucionalizada, temas que sero abordados mais adiante. 1.4.10 Quarto benefcio formal: controle da constitucionalidade da lei Outra importante vantagem de cunho formal da

constitucionalizao permitir o controle de constitucionalidade de atos normativos hierarquicamente inferiores (controle formal e material) 121 . Como se sabe, "todas as normas que integram a ordenao jurdica nacional s sero vlidas se conformarem com as normas da Constituio Federal" 122 . Nesse sentido, a Constituio "fala diretamente para o parlamento e pode ajudar a influenciar e moldar o debate legislativo" 123 . Essa conformidade com os padres constitucionaisno se satisfaz apenas com a atuao positiva de acordo com a Constituio. Exige mais, pois omitir a aplicao de normas constitucionais, quando a Constituio assim o determina, constitui tambm conduta inconstitucional 124 .

Naquele caso, tem-se a inconstitucionalidade por ao; neste, por omisso 125 , seja por deixar-se de praticar ato legislativo, seja pela displicncia na afirmao de ato executivo. Tal controle de constitucionalidade, nos termos da Constituio da Repblica, pode ser exercido tanto de modo difuso como concentrado. L, por via de exceo, a cargo de qualquer interessado, em processo judicial em curso; aqui, por ao direta de inconstitucionalidade,

FAVOREU, Louis et al. Droit constitutionnel. Paris: Dalloz, 1998, p. 343 e 345. Essa faceta da constitucionalizao me foi lembrada por Rogrio Campos, poca estudante de graduao da UnB, durante palestra que proferi no Superior Tribunal de Justia, em Braslia, em 10 de maio de 2001. 122 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 47. 123 THOMPSON JR., Barton H. Op. cit., p. 906. 124 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 48. 125 Constituio da Repblica, art. 103, 2.121

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respeitada a legitimao ativa em numerus clausus prevista no art. 103 da Constituio brasileira. 1.4.11 Quinto benefcio formal: reforo exegtico prambiente das normas infraconstitucionais Por derradeiro, a norma constitucional, sobretudo em pases com firme tradio constitucional, uma poderosa ferramenta exegtica. Seu uso faz-se prevalente no cotidiano da prtica administrativa ou judicial. Nessa perspectiva, traz a si o papel de servir de verdadeiro guia para a boa compreenso da norma infraconstitucional por juzes, administradores e outros destinatrios. Exatamente porque a proteo constitucional do meio

ambiente situa-se numa posio elevada na hierarquia das normas (= preeminncia), sua simples existncia determina a (re)leitura do direito positivo nacional 126 passado, presente e futuro em particular, no balanceamento de interesses conflitantes 127 . 1.5 Riscos da constitucionalizao Alguns riscos podem ser apontados no processo de insero do meio ambiente no quadro constitucional. Nenhum deles, contudo, seriamente obstou a constitucionalizao crescente da proteo do meio ambiente. O interesse que despertam mais acadmico que prtico, pois raramente so verbalizados de forma ordenada e aberta nos debates recentes de reforma constitucional. A oposio que se faz constitucionalizao da tutela ambiental no de oportunidade, mas de contedo e de forma, pois alguns preferem ver na Constituio um texto vago e ambguo, repleto de conceitos jurdicos indeterminados e obrigaes abertas, com isso evitando-se ou dificultando-se a utilizao direta e eficaz do comando constitucional pelas vtimas de degradao.

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NEURAY, Jean-Franois. Op. cit., p. 149. LADEUR, Karl Heinz; PRELLE, Rebecca. Environmental assessement and judicial approaches to procedural errors: a European and comparative law analysis, cit., p. 26. 30

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De um lado, fala-se nos perigos da constitucionalizao de conceitos, direitos, obrigaes e princpios insuficientemente amadurecidos, mal-compreendidos, ou at incorretos ou superados (p. ex., a noo de equilibro ecolgico). A idia aqui que a Constituio recinto para institutos e conceitos maduros, que gozem de ampla aceitao poltica e cientfica. Em outras palavras, a Constituio no seria lugar para experimentos de polticas pblicas e muito menos para noes ainda em formao ou em teste nas suas disciplinas de origem. De outra parte, decorrncia das garantias previstas na prpria Constituio, h, como j notado, todo um procedimento mais rigoroso para modificao da norma constitucional, o que dificulta sua atualizao e retificao. Como curial, o meio ambiente, os seus componentes, as ameaas degradadoras do processo econmico 128 e o conhecimento tecnolgico so dinmicos, sempre em permanente transformao e evoluo 129 . No por outra razo que as leis ambientais so conhecidas exatamente pela sua mutabilidade; nelas, segurana jurdica sinnimo de contnua adaptao e alterao, ao contrrio do que se d e se espera em outras esferas da regulao jurdica. Por derradeiro, tanto mais em pases sem forte tradio constitucional, h sempre o receio das normas constitucionais retricas, com mnimo ou nenhum impacto concreto na operao jurdica do cotidiano das pessoas 130 . Aquele que pouco valoriza o texto constitucional

Acertadamente lembrava Pontes de Miranda que "O processo econmico o mais instabilizador, revolvente, mvel, de todos, exceto a Moda" (Comentrios Constituio de 1967.t.I. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 313). 129 KISS, Alexandre; SHELTON, Dinah. Manual of European Environmental Law. Op. cit., p. 9. 130 Fenmeno este que sucede at mesmo em naes com forte tradio constitucional. o caso, p. ex., da pfia aplicao que se faz nos Estados Unidos das normas de proteo ambiental inseridas nas Constituies dos Estados federados. Nem mesmo Estados com dispositivos constitucionais inequvocos so poupados. emblemtico o caso da Pennsylvania, cuja Constituio assim dispe: "O povo tem o direito ao ar limpo, gua pura, e preservao dos valores naturais, paisagsticos, histricos e estticos do meio ambiente. Os recursos naturais pblicos so propriedade comum de todas as pessoas, incluindo as futuras geraes. Como depositrio (trustee) desses recursos, o Estado deve conserv-los e mant-los para o benefcio de todos" (art. I, 27). Como bem resume 31A12

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em campos mais tradicionais, pouca ateno, certamente, dedicar tutela ambiental, constitucionalizada ou no. 1.6 Tcnicas de constitucionalizao do meio ambiente no Direito Comparado So mltiplas as vantagens da constitucionalizao do meio ambiente, j vistas. Um exame da experincia estrangeira 131 revela que a norma constitucional, comumente, estabelece uma obrigao genrica de no degradar, fonte do regime de explorabilidade limitada e condicionada dos recursos naturais; ecologiza o direito de propriedade e sua funo social; atribui perfil fundamental a direitos e obrigaes ambientais; legitima a interveno estatal em favor da natureza; reduz a discricionariedade administrativa no processo decisrio ambiental; amplia a participao pblica, em especial, nas esferas administrativa e judicial; agrega preeminncia e proeminncia questo e aos conflitos ambientais; robustece a segurana normativa; substitui a ordem pblica ambiental legalizada por outra de gnese constitucional; enseja o controle da constitucionalidade da lei sob bases ambientais; e, por fim, refora a interpretao pr-ambiente das normas e polticas pblicas. Tais prisioneiros semntico da e benefcios, tcnica efeitos. ou Para contudo, do nem sempre normativo o aparecem escolhido da todos pelo

conjugados simultaneamente no texto constitucional, pois so desenho constituinte, um leque variado de opes, na sua expresso formal, valor bem entender sentido norma constitucional, apreender seus limites e fragilidades, e aplic-la com efetividade, crucial, pois, examinar a formulao levada a cabo pelo legislador.

William Rodgers, na Pensilvnia e em outros Estados que constitucionalizaram a proteo do meio ambiente, tais normas no encontraram maior ressonncia prtica ou jurisprudencial, "algumas delas sendo explicitamente sepultadas por decises judiciais sob o argumento de que tais dispositivos no seriam auto-executveis" (Environmental law, cit., p. 66). 131 Uma das melhores anlises da experincia estrangeira pode ser encontrada em BRANDL, Ernst; BUNGERT, Hartwin. Op. cit., p. 83. 32A12

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Sejam direitos, obrigaes e princpios, sejam objetivos, programas pblicos e instrumentos de implementao, o certo que a norma constitucional busca regular ora o uso dos macrobens e microbens ambientais (gua, fauna, solo, ar, florestas), ora as atividades humanas propriamente ditas, que afetam ou podem afetar o meio ambiente (biotecnologia, minerao, energia nuclear, caa, agricultura, turismo, construo civil). Mas ao faz-lo, nem sempre a Constituio alcana, como seria desejvel, tal desiderato. No caso da Constituio brasileira de 1988, v-se facilmente que o legislador inclinou-se por um desenho constitucional pluriinstrumental, rico em possibilidades dogmticas e prticas, embora heterogneo na perspectiva de seu real valor no plano da eficcia. Como corretamente indica Eros Roberto Grau, a Constituio, nos moldes em que est posta, "d vigorosa resposta s correntes que propem a explorao predatria dos recursos naturais, abroqueladas sobre o argumento, obscurantista, segundo o qual as preocupaes com a defesa do meio ambiente envolvem proposta de retorno barbrie 132 . A forma mais til de estudar essas tcnicas constitucionais , de preferncia, partir de um sistema nacional e, da, promover as conexes necessrias com o Direito Comparado. Seja pela extenso do tratamento que deu matria, seja pela importncia que os tribunais vm a ela emprestando nas decises que prolatam, seja ainda pela diversidade das tcnicas que abraou, a Constituio de 1988 convida, como poucas, a esse exerccio de prospeco acadmica. 1.7 Introduo ambiental Constituio de 1988: da miserabilidade opulncia ecolgico-constitucional A Constituio Federal de 1988 sepultou o paradigma liberal que via (e insiste em ver) no Direito apenas um instrumento de organizao da vida econmica, unicamente orientado a resguardar certasGRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 255 (grifo no original). 33A12132

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liberdades bsicas e a produo econmica, assim reduzindo o Estado acanhada tarefa de estruturar e perenizar as atividades do mercado, sob o manto de certo asseptismo social. Abandonou, pois, o enfoque convencional da Constituio condenada a se tornar "um simples regulamento econmico-administrativo, mutvel ao sabor dos interesses e convenincias dos grupos dominantes" 133 . Ao mudar de rumo inclusive quanto aos objetivos que visa a assegurara Constituio, como em outros campos, metamorfoseou, de modo notvel, o tratamento jurdico do meio ambiente, apoiando-se em tcnicas legislativas multifacetrias. Uma Constituio que, na ordem social (o territrio da proteo ambiental, no esquema de 1988), tem como objetivo assegurar "o bem-estar e a justia sociais" (art. 193), no poderia mesmo deixar de acolher a proteo do meio ambiente, reconhecendo-o como bem jurdico autnomo e recepcionando-o na forma de sistema, e no como um conjunto fragmentrio de elementos; sistema esse que, no custa repetir, organiza-se na forma de uma ordem pblica ambiental constitucionalizada. Ao abraar essa concepo holstica e juridicamente autnoma do meio ambiente, o constituinte de 1988 distancia-se de modelos anteriores, praticamente fazendo meia-volta, especialmente ao admitir que: o meio ambiente dispe de todos os atributos requeridos para o reconhecimento jurdico expresso, no patamar constitucional;

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COMPARATO, Fbio Konder. O papel do juiz na efetivao dos direitos humanos. In: Direitos humanos: vises contemporneas. So Paulo: Associao de Juzes para a Democracia, 2001, p. 16. 34

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tal reconhecimento e amparo se d por meio de uma percepo ampliada e holstica, isto , parte-se do todo (= a biosfera 134 ) para se chegar aos elementos; o todo e os seus elementos so apreciados e juridicamente valoriza dos em uma perspectiva relacional ou sistmica 135 , que vai alm da apreenso atomizada e da realidade material individual desses mesmos elementos (ar, gua, solo, florestas, etc); a valorizao do meio ambiente se faz com fundamentos ticos explcitos e implcitos, uma combinao de argumentos antropocntricos mitigados (= a solidariedade intergeracional, vazada na preocupao com as geraes futuras), biocntricos e at ecocntricos (o que leva a um holismo varivel, mas, em todo caso, normalmente, acoplado a certa atribuio de valor intrnseco natureza); o discurso jurdico-ambiental passa, tecnicamente, de tricotmico a dicotmico, pois, decorrncia da linguagem constitucional, desaparece o ius dispositivum, j que a voz do constituinte expressou-se somente por dispositivos do tipo ius cogens e ius interpretativum, o que banha de imperatividade geral as normas constitucionais e a ordem pblica ambiental infraconstitucional; a tutela ambiental deve ser viabilizada por instrumental prprio de implementao, igualmente constitucionalizado, como a ao civil pblica, a ao popular, as sanes administrativas e penais e a responsabilidade civil pelo dano ambiental, o que nega aos direitos e s obrigaes abstratamente assegurados a m sorte de ficar ao sabor do acaso e da boa vontade do legislador ordinrio.

KISS, Alexandre; SHELTON, Dinah. Manual of European Environmental Law, cit., p. 36. 135 Nesse sentido, veja-se que a Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81) define meio ambiente como "o conjunto de condies, leis, influncias e interaes de ordem fsica, qumica e biolgica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas" (art. 3, I grifou-se). 35A12

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Quanto a esse ltimo ponto, cabe notar que a nfase nos instrumentos de implementao um dos mais louvveis aspectos da Constituio de 1988. ntido o desiderato de evitar que a norma constitucional vire refm do destino retrico, expediente pouco honroso, mas cmodo e funcional, um sempre modelo de disposio regulao daqueles protetria que, dos espertamente, advogam

vulnerveis que d com uma mo e tire com a outra. Esse conjunto de inovaes constitucionais, substantivas e formais, mais cedo ou mais tarde haver de levar, no plano mais amplo da Teoria Geral do Direito, a uma nova estrutura jurdica de regncia das pessoas e dos bens. Da autonomia jurdica do meio ambiente decorre um regime prprio de tutela, j no centrado nos componentes do meio ambiente como coisas; muito ao contrrio, trata-se de um conjunto aberto de direitos e obrigaes, de carter relacional, que, como acima referido, verdadeira ordem pblica ambiental, nascida em bero constitucional. No , pois, sem razo, que Jos Afonso da Silva afirma que todo o "captulo do meio ambiente um dos mais importantes e avanados da Constituio de 1988" 136 ; nesse sentido, salienta Vladimir Passos de Freitas que o constituinte "dedicou ao tema, antes no tratado a nvel constitucional, todo um Captulo", alm de ter inovado "na forma de repartio de poderes" 137 . Captulo dos mais modernos, casado democrtica diviso de competncias legislativas e de implementao no terreno ambiental, e a tratamento jurdico abrangente, a tutela do meio ambiente, como ser analisado, no foi aprisionada somente no art. 225. Na verdade, saltou-se do estgio da miserabilidade ecolgico-constitucional, prpria das Constituies liberais anteriores, para um outro que, de modo adequado, pode ser apelidado de opulncia ecolgico-constitucional. Um feito e136 137

SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 717. FREITAS, Vladimir Passos de. Direito administrativo e meio ambiente. Curitiba: Juru, 2004, p. 31. 36

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tanto, que muito deve queles que, no Brasil e l fora, impulsionados pela misso de "celebrao da vida", para usar as palavras de Tribe 138 , insurgiram-se contra a ordem jurdica antinatureza e, pelo menos formalmente, venceram. De toda sorte, o captulo do meio ambiente nada mais que o pice ou a face mais visvel de um regime constitucional que, em vrios pontos, dedica-se, direta ou indiretamente, gesto dos recursos ambientais. So dispositivos esparsos que, mais do que complementar, legitimam (funo ecolgica da propriedade 139 ), quando no viabilizam (ao civil pblica e ao popular 140 ), o art. 225. Procedente, pois; a observao de Luis Roberto Barroso no sentido de que "as normas de tutela ambiental so encontradas difusamente ao longo do texto constitucional" 141 . Contudo, bom lembrar que, assim modelada e apesar de seus inegveis avanos, a Constituio de 1988 no foi inteiramente revolucionria, ambiente e no contexto mapa do Direito Comparado. desenvolvido Pelo por contrrio, algumas beneficiou-se da tendncia internacional de constitucionalizao do meio utilizou legislativo Constituies estrangeiras que a antecederam, com uma pitada, aqui e ali, de saudvel e criativa originalidade. Ou seja, o constituinte, no desenho ambiental da Constituio, no trilhou propriamente caminhos desconhecidos; ao contrrio, compartilhou o exemplo de outros pases em especial, Grcia, Portugal e Espanha, atrs mencionados instauradores de um regime constitucional de carter ps-industrial e psmoderno. Importou parte significativa do que se v no texto constitucional em resposta crescente demanda poltica interna de melhor proteo doTRIBE, Laurence H. From environmental foundations to constitutional structures: learning from nature's future. In: Yale Law Journal, v. 84, 1975, p. 549. 139 Conforme, por exemplo, o art. 186, II, da Constituio da Repblica. 140 Sobre ao popular ambiental, LEITE, Jos Rubens Morato. Ao popular: um exerccio de cidadania ambiental. Revista de Direito Ambiental, v. 17, p. 123-140, jan./mar. 2000. 141 BARROSO, Luis Roberto. A proteo do meio ambiente na Constituio brasileira. Revista Forense, v. 317, p. 177,1992. 37A12138

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ambiente, mas tambm por razes de convenincia (se possvel copiar, para que inventar?) e reverncia a uma expressiva tendncia mundial, encabeada por documentos internacionais 142 como a Declarao de Estocolmo de 1972 e a Carta Mundial da Natureza de 1982. De toda sorte, ao atento observador no passar despercebido que a Constituio brasileira, conquanto siga, s vezes de modo literal, os passos de outras Constituies e, visivelmente, o discurso e a linguagem da Declarao de Estocolmo de 1972, nem por isso deixa de ser, pontual e globalmente, um texto que enuncia estrutura, formulaes e remdios sui generis para os problemas ambientais brasileiros. Tudo isso faz com que nela se encontre, diz Edis Milar, "um dos sistemas mais abrangentes e atuais do mundo sobre a tutela do meio ambiente" 143 . 1.8 O meio ambiente nos regimes constitucionais anteriores: vida, sade, funo social da propriedade e outros fundamentos para a interveno estatal Tirante uma ou outra providncia legislativa de regncia utilitarista dos recursos naturais no perodo colonial e imperial, a tutela legal do ambiente, no Brasil, teve incio, de modo fragmentrio, na dcada de 30, ganhou flego nos anos 60, e consolidou-se nas dcadas de 80 e 90. Quais os fundamentos constitucionais utilizados, poca da edio desses atos legislativos, para justificar e legitimar a interveno do legislador, se, como se sabe, s a Constituio de 1988 abrigou, expressamente, a proteo ambiental como direito e dever de todos? Ontem, no Brasil como, ainda hoje, em alguns pases , os tribunais, confrontados com o silncio constitucional e com a falta de porto mais seguro, exercitavam sua criatividade e identificavam, na penumbra de outros direitos, garantias de cunho ambiental. Um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado pode ser e, historicamente,

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Alis, essas duas razes no aparecem somente entre ns; nesse sentido, HOWARD, A. E. Dick. The indeterminacy of constitutions, cit., p. 405. 143 MILAR, Edis. Direito do ambiente. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 211. 38A12

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tem sido derivado indiretamente da Constituio, por meio da interpretao de dispositivos que asseguram outros valores tradicionais 144 , como a vida 145 (j que sem meio ambiente adequado inviabiliza-se a vida humana e dos outros seres), a sade 146 (sob o argumento de que o ser humano no pode viver so em ambiente degradado 147 ), a dignidade da pessoa humana, o due process, a funo social da propriedade, a disciplina da produo e consumo 148 , ou, ainda, a partir das regras constitucionais que fixam as competncias legislativa e de implementao da Unio, Estados e Municpios. Lembra Diogo de Figueiredo Moreira Neto, um dos pioneiros do Direito Ambiental brasileiro, que a Constituio de 1967 referia-se ecologia apenas uma vez, ao dispor, no art. 172, sobre a obrigatoriedade de "prvio levantamento ecolgico" de terras sujeitas a intempries e calamidades, no mesmo dispositivo tambm vedando ao proprietrio de terras o fomento pblico, com incentivos e auxlio, quando inadequado o uso que dela fizesse 149 .

BRANDL, Emst; BUNGERT, Hartwin. Op. cit., p. 21. "Embora no contemplado expressamente o bem jurdico 'ambiente' no atual texto constitucional, ele est nsito no direito fundamental vida, nos termos do art. 153 da Constituio vigente" (CABRAL, Armando. Direito ao meio ambiente como direito fundamental constitucionalizado. Revista de Direito Agrrio e Meio Ambiente, ano II, n. 2, p. 12, ago. 1987. (grifou-se) 146 Cf. FERNANDES, Edesio. Op. cit., p. 268. Segundo Hlio Gomes, " axioma popular que a sade o maior e o melhor bem da vida" (GOMES, Hlio. Direito de cura. Direito, v. 15, 1942, p. 90). E continua: "Sendo assim um bem to estimvel, a sade no poderia deixar de ser legalmente protegida e amparada. E o foi. Os pases civilizados criaram o chamado DIREITO SADE constitucionalmente consagrado entre ns pela Carta Magna de 1937, embora leis anteriores j cuidassem da matria" (p. 92). Ao contrrio do meio ambiente, a sade foi formalmente tratada, sob vrios enfoques, por diversas Constituies anteriores a 1988 (ELIAS, Paulo Eduardo. A sade como poltica social no Brasil, cit, p. 136). 147 Sobre a evoluo da "sade" "eco-sade", cf. JACQUEMIN, Dominique. cologie, thique et Cration: de la Mode Verte l'tique cologique, Louvain-la-Neuve, Artel. Fides, 1994, p. 157-161. 148 A Constituio de 1969 previa, expressamente, a competncia da Unio para legislar sobre "defesa e proteo da sade" (art. 8, XVII, c, in fine) e "produo e consumo" (art.8, XVII, d). 149 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poltica agrcola e fundiria e ecologia. Revista Forense, v. 317, p. 74, 1992.145

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fato que, antes de 1988, as Constituies brasileiras no estavam desenhadas de modo a acomodar os valores e as preocupaes prprios de um paradigma jurdico-ecolgico 150 , padro normativo este que invertido na Constituio de 1988, seduzida pela tcnica dos conceitos ("equilbrio ecolgico", "ecossistemas"), objetivos (tutela da biodiversidade per se), direitos (direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado), deveres (dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras geraes), princpios (da preveno, da precauo e da reparao integral, p. ex.), instrumentos (reas protegidas e Estudo Prvio de Impacto Ambiental, p. ex.), tudo sob a influncia e a inspirao da Ecologia e da gesto ambiental. Paulo Affonso Leme Machado, na primeira edio do seu Direito ambiental brasileiro, pregava, ainda em 1982, que o meio ambiente merecia "melhor formulao na Constituio Federal. O fato, contudo, da inexistncia de um ordenamento especfico no pode ser entendido como inibidor das regras sobre a defesa e proteo da sade notadamente" 151 . E acrescentava:Se de um lado a Constituio no tratou o ambiente de forma abrangente e global, de outro lado, muitas matrias que integram o tema ambiente foram contempladas no texto maior do pas. Assim, guas, florestas, caa, pesca, energia nuclear, jazidas, proteo sade humana foram objeto das disposies constitucionais 152 .

Realmente, a lacuna nas ordens constitucionais anteriores a 1988 no foi bice srio e intransponvel regulamentao legal de controle das atividades nocivas ao ambiente ou, mais comumente, aos seus elementos. Tanto assim que nesse perodo de vazio constitucional, deu-se a promulgao do Cdigo Florestal, de 1965, e da Lei n. 6.938/81Para Feldmann e Camino, "Nas Constituies anteriores, as normas ambientais eram incipientes, restringindo-se a dispositivos de defesa e proteo sade ou eventual meno preservao do patrimnio histrico e funo social da propriedade" (FELDMANN, Fbio Jos; CAMINO, Maria Ester Mena Barret. O direito ambiental: da teoria prtica. Revista Forense, v. 317, p. 95,1992). 151 LEME MACHADO, Paulo Affonso, Direito ambiental brasileiro, cit., p. 8. 152 Ibid., p. 8. 40A12150

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(Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente), ainda hoje dois marcos vigentes na evoluo do Direito Ambiental brasileiro. 1.8.1 A sade ontem O Ministro Jos Celso de Mello, escrevendo sob o imprio da Carta Constitucional de 1969, apontava que "A tutela jurdica do meio ambiente decorre da competncia legislativa sobre defesa e proteo da sade" 153 . Ao contrrio do meio ambiente, a sade, como valor prprio e separado do ncleo-me "vida", foi formalmente tratada, sob vrios enfoques, pelas Constituies anteriores de 1988 154 . falta de reconhecimento expresso, no restava ao intrprete outra alternativa que no equiparar degradao ambiental a degradao sanitria, ou, pior, incluir aquela no universo difuso dos poderes estatais de regulao da "produo e do consumo". Sem dvida, em ambos os casos estamos diante de uma argumentao de cunho estritamente antropocntrico, com indisfarvel contedo economicista e utilitarista. Naquele perodo, tal raciocnio, no obstante sua inegvel fragilidade, at que vingou e serviu para dar sustentao interveno legislativa, recebendo, inclusive, respaldo judicial. Hoje, contudo, em juzo retrospectivo, possvel verificar o carter limitado embora ainda vlido, como ser visto abaixo desse esforo, posto que eticamente insuficiente e dogmaticamente frgil. Eticamente insuficiente porque, como ser tratado adiante, a tutela ambiental gradual e erraticamente abandona a rigidez de suas origens antropocntricas e acolhe uma viso mais ampla, de carter biocntrico (ou mesmo ecocntrico), ao propor-se a amparar a totalidade da vida e das suas bases 155 . Realmente, nem sempre a degradao ou atMELLO FILHO, Jos Celso de. Constituio Federal anotada. So Paulo: Saraiva, 1984, p. 40. 154 ELIAS, Paulo Eduardo. Op. cit., p. 136. 155 A Constituio da Repblica refere-se preservao e restaurao de "processos ecolgicos essenciais" (art. 225, 1, I); evidentemente, "essenciais" sobrevivncia do 41A12153

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destruio integral de um ecossistema ou espcie afetam, de modo visvel e calculvel, a sade humana. Dogmaticamente frgil porque o direito sade no se confunde com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: dividem uma rea de larga convergncia (e at de sobreposio), mas os limites externos de seus crculos de configurao no so, em rigor, coincidentes. Quase sempre quando se ampara o ambiente est-se beneficiando a sade humana e vice-versa. De fato, h aspectos da proteo ambiental que dizem respeito, de maneira direta, proteo sanitria. Assim com o controle de substncias perigosas e txicas, como os agrotxicos, e com a preocupao sobre a potabilidade da gua e a respirabilidade do ar. Concepes vizinhas, sim, mas de maneira alguma idnticas. Inmeras vezes, na interveno do legislador ambiental, bom que se diga, a sade humana tem papel secundrio, perifrico e at simblico, como sucede com a proteo de certas espcies ameaadas de extino (o mico-leo-dourado, p. ex.) ou de manguezais, no imaginrio popular ainda associados a ecossistemas malcheirosos, insalubres e abrigo de mosquitos disseminadores de doenas. Em algumas situaes a proibio, p. ex., da caa de espcies peonhentas ou perigosas aos seres humanos, como o jacar e a ona a determinao legal protetria chega mesmo a reduzir a segurana imediata e at a pr em risco a vida das populaes que vivem nas imediaes do habitat desses animais 156 .

planeta, como o conhecemos, concepo que ultrapassa a frmula tradicional da sobrevivncia do homem. 156 Citem-se dois exemplos concretos. Na Bahia, j no encontramos a ararinha-azul em liberdade. A sua extino na natureza certamente teve impacto zero na vida das pessoas, e muito menos na sua sade. Do mesmo modo, no Equador (Ilhas Galpagos), das 14 subespcies de tartaruga gigantes, com peso de at 270 kg, existentes em 1535, quando os europeus chegaram ao local, trs j esto extintas e uma quarta, a da Ilha de Pinta, tem um s indivduo sobrevivente, "Solitrio Jorge". Qual o impacto direto do desaparecimento de Jorge na sade da populao local, do Equador ou mesmo do mundo? A extino de uma espcie sempre lastimada, mas quase nunca por suas conseqncias sanitrias. 42A12

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Na leitura da Constituio, seja em favor da sua boa interpretao, seja para viabilizar uma implementao correta de suas normas, s vezes necessrio separar, de um lado, o direito de no ser atingido por poluentes ou pela degradao ambiental e, de outro, o direito proteo da natureza em si considerada. Naquele caso, o objetivo da interveno no salvaguardar a natureza per si, mas o meio ambiente como veculo de possveis danos pessoa ou propriedade. Nesse caso, diversamente, o que se visa a assegurar , em primeiro plano, a manuteno do equi