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O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E OS LIMITES

AO PODER DE TRIBUTAR

Um caminho à concretização da Justiça Fiscal

Pseudônimo: Ihering

2010

2

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 4

CAPÍTULO 1

A EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E AS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR 7

1.1 Do poder à Constituição: a evolução da relação jurídica tributária 7

1.2 A tutela constitucional tributária 11

1.2.1 Limitações constitucionais ao poder de tributar 12

CAPÍTULO 2

O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA 19

2.1 Noções sobre o principio da capacidade contributiva 19

2.1.1 Evolução histórica mundial 19

2.1.2 Evolução no direito brasileiro 21

2.1.3 Capacidade contributiva e sua relação com o princípio da igualdade 23

2.1.4 Conceito e conteúdo do princípio da capacidade contributiva 25

2.2 O principio da capacidade contributiva na Constituição Federal de 1988 26

2.2.1 A expressão “sempre que possível” 27

2.2.2 Tributos sujeitos ao principio da capacidade contributiva 29

2.2.3 O principio da capacidade contributiva e a extrafiscalidade 30

2.3 A aplicação do princípio da capacidade contributiva como limite à tributação 32

2.3.1 O princípio da capacidade contributiva e o mínimo existencial 33

2.3.2 O princípio da capacidade contributiva e a proibição do confisco. 35

3

2.4 O princípio da capacidade contributiva como meio de promoção de justiça fiscal 40

CONCLUSÃO 46

REFERÊNCIAS 49

4

INTRODUÇÃO

A atividade tributária pode ser encontrada desde o surgimento das primeiras

organizações sociais, apesar de só ter seu pleno desenvolvimento a partir dos tempos

modernos. A noção de tributo desenvolve­se junto com a evolução da sociedade, alcançando

hoje status de pacto fundamental. Assim, atualmente a tributação é instituto consolidado na

vida moderna, principalmente por ser ela um instrumento garantidor do Estado Democrático

de Direito.

A Constituição Federal de 1988, nascida sob o prisma do Estado Democrático de

Direito, trouxe insculpida em seus dispositivos uma gama de princípios aptos a sustentar e dar

efetividade às garantias e direitos fundamentais dos cidadãos. Tais preceitos passam também a

reger a relação jurídica tributária, os quais, de um lado, impõem ao ente tributante, certas

limitações ao poder de tributar e de outro, garantem aos contribuintes, certos direitos

fundamentais.

No entanto, em que pese a instituição de um extenso rol de direitos e garantias

para o contribuinte e a fixação de limitações constitucionais ao poder de tributar, a realidade

tributária brasileira se caracteriza por conter uma excessiva carga tributária, que acaba por

violar diretamente os princípios previstos pela Constituição. Um sistema tributário no qual o

volume arrecadatório atinge níveis cada vez maiores torna­se um sistema extremamente

injusto e desigual, que se afasta por completo do ideal estabelecido pela Lei Fundamental.

Dessa forma, diante do cenário atual, é grande o movimento em prol de uma

ampla reforma tributária. Todavia, é de se ressaltar que muito embora haja a necessidade de

certas mudanças, o melhor recurso que se apresenta, salvo melhor juízo, é o de garantir a

efetiva aplicação dos preceitos já dispostos na Constituição Federal, principalmente aqueles

relativos ao Sistema Tributário Nacional. Isso porque normas que protegem o contribuinte e

que limitam a atuação estatal já existem, resta, entretanto, que sejam bem aplicadas.

5

Nesse diapasão, surge o princípio da capacidade contributiva como um dos

principais instrumentos aptos à promoção da tão almejada justiça fiscal. Com efeito, tal

preceito efetivamente aplicado é capaz de promover uma tributação mais justa e adequada, já

que atua como meio de graduação dos tributos, além de se apresentar como verdadeiro

princípio limitador da atividade tributária.

Como dito, é pela aplicação do princípio da capacidade contributiva que certos

limites à atuação fiscal são impostos. Isso ocorre porque de um lado garante­se ao cidadão

que o mínimo necessário para sua existência de forma digna não seja tributado; por outro

lado, veda­se que a tributação não atinja patamares tão elevados que seja considerada

confiscatória. Assim, somente dentro do contexto estabelecido por tais limites haverá

capacidade contributiva apta a ser tributada. Caso contrário, haverá uma violação ao sistema

tributário, devendo a tributação que ultrapasse tais limites ser considerada inconstitucional.

O presente trabalho, portanto, tem por objetivo o estudo do princípio da

capacidade contributiva como meio de promoção de justiça fiscal. Para isso, a análise será

divida em dois capítulos.

No primeiro capítulo, como forma de compreender melhor a questão, será

estudada a evolução jurídica tributária dando enfoque para a atual concepção. Ainda, será

visto uma breve noção que hoje se tem de tributo e sua disciplina jurídico­constitucional

trazida pelo ordenamento brasileiro. A análise das limitações constitucionais ao poder de

tributar terá item próprio dada a sua importância para o Sistema Tributário Nacional.

O segundo capítulo centrará suas atenções no princípio da capacidade

contributiva. Terá por objetivo estabelecer noções sobre tal preceito, fixar sua aplicação no

direito brasileiro e também demonstrar sua relação com outros princípios constitucionais.

Nesse momento, dar­se­á enfoque a aplicação do princípio da capacidade contributiva como

meio limitador da atuação fiscal, relacionando­o com a proteção do mínimo existencial e com

a proibição do confisco. Estabelecidas tais questões, trar­se­á, ao final do segundo capítulo, o

entendimento buscado nesse trabalho, qual seja, de que uma efetiva aplicação do princípio da

capacidade contributiva constitui­se um meio apto à promoção da tão almejada justiça na

tributação.

Não se tem por pretensão esgotar o assunto, dada a complexidade e importância

do tema. Na realidade, o objetivo primordial do presente trabalho cinge­se em estabelecer

6

uma reflexão acerca do princípio da capacidade contributiva, buscando demonstrar que sua

efetiva aplicação pode ser considerada como importante instrumento na busca de uma

tributação mais ideal e equitativa, capaz de diminuir as desigualdades sociais e garantir o

pleno desenvolvimento econômico do país, consagrando assim a finalidade buscada pelo

preceito da justiça fiscal.

7

1 A EVOLUÇÃO RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E AS LIMITAÇÕES

CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR

1.1 Do Poder à Constituição: a evolução da relação jurídica tributária

Tributo, Direito e Tributação encontram­se presentes na vida do homem desde os

tempos mais remotos 1 . Foi a partir da formação das primeiras comunidades que se constatou a

necessidade de se estabelecer alguma forma de imposição fiscal. Com o passar do tempo, a

Teoria da Tributação foi evoluindo, afastando­se do ideal inicial de poder, alcançando,

hodiernamente, uma acepção de pacto fundamental 2 , regida e protegida pelos preceitos e

garantias constitucionais.

A aceitação e compreensão da imposição fiscal decorreram de um longo processo

doutrinário e normativo. A análise da evolução da Teoria da Tributação se faz necessária

como forma de compreender a noção que se tem hoje da relação jurídica tributária, fruto de

grandes aperfeiçoamentos, mas marcada por certas coerções e arbítrios do passado.

O Direito Tributário não surgiu como direito autônomo, mas sim como um ramo

derivado do Direito Administrativo. Por conta dessa origem, tinha­se uma “concepção

administrativa” do Direito Tributário, determinando que a relação entre Fisco e contribuinte

fosse marcada pela subordinação dos administrados às ordens do Estado 3 . Assim, a natureza

da relação jurídica tributária se baseava na relação de poder, justificada pelo poder de polícia

1 NOGUEIRA, Alberto. Teor ia dos Pr incípios Constitucionais Tr ibutár ios: a nova matr iz da cidadania democrática na pós­modernidade tr ibutár ia. Rio de Janeiro: Saraiva, 2008, p. 29. 2 PEZZI, Alexandra Cristina Giacomet. Dignidade da pessoa humana: mínimo existencial e limites à tributação no estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008, p. 73.

3 PONTES, Helenilson Cunha. Coisa Julgada Tr ibutár ia e Inconstitucionalidade. São Paulo: Dialética, 2005, p.13.

8

da Administração Pública 4 .

No entanto, vale ressaltar que muito embora derivada da relação de poder, a

tributação tinha certos limites, não havendo uma liberdade absoluta no poder de tributar. Por

atingir a propriedade do contribuinte, a imposição tributária deveria estar disposta em lei,

instrumento esse que, segundo Helenilson Cunha Pontes 5 “conferiria legitimidade racional

para a restrição dos direitos de liberdade e propriedade, segundo a ótica do pensamento

liberal”.

Dessa forma, o tributo vinha definido em lei e era caracterizado essencialmente

em função da lei, sendo que o próprio texto legal impunha certas hipóteses determinadas, sem

a necessidade de outro título para que a obrigação se constituísse 6 . Acerca desse entendimento

estabelecido na época, Otto Mayer 7 , administrativista alemão, sustenta que embora a lei fosse

necessária para possibilitar a tributação, já que “a imposição é um ataque à propriedade, por

isso necessita de um fundamento legal”, o “dever geral de o sujeito pagar impostos é uma

fórmula destituída de sentido”.

Em momento seguinte, construiu­se uma nova teoria acerca da relação jurídica

tributária com base nas idéias preconizadas pelo italiano A.D.Giannini. Tal movimento

buscou limitar a importância que a legalidade exercia na teoria da relação de poder,

conjugando­a, agora, com o momento da formação do vínculo obrigacional. Dessa forma,

defendia­se que a relação jurídica tributária é fruto de uma relação obrigacional criada por lei. Ricardo Lobo Torres 8 , ao discorrer sobre tal teoria, assim aduz:

O núcleo da definição passou a ser o vínculo obrigacional, pois a relação jurídica se firmava entre dois sujeitos – credor e devedor do tributo – que se subordinavam à lei em igualdade de condições. O tributo, portanto, tinha na lei a sua fonte ou causa, mas se definia principalmente em função do fato gerador que dava nascimento à

4 Segundo Ricardo Lobo Torres, no Estado de Polícia “as garantias da liberdade se enfraquecem, conseguintemente. O tributo já não o obtém o rei através dos pedidos dirigido às cortes, senão o impõe em decorrência da Razão do Estado” (TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patr imonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p.53).

5 PONTES, Helenilson Cunha. Coisa Julgada Tr ibutár ia e Inconstitucionalidade. São Paulo: Dialética, 2005, p.13.

6 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de dir eito financeiro e tr ibutár io. 13 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.233.

7 MAYER, Otto. Derecho Administr ativo alemán. Buenos Aires: Depalma, 192, p.185­196, apud PONTES, Helenilson Cunha. Op. cit., p.14. 8 TORRES, Ricardo Lobo. Op.cit., p.233­234.

9

obrigação tributária, nova estrela na constelação financeira.

Assim, a relação tributária passa a ser considerada uma verdadeira relação jurídica

na qual, segundo A.D. Giannini 9 :

A potestade financeira (potestà finanziaria) do Estado se manifesta,não na relação creditícia derivada da lei tributária, mas apenas na emanação dessa lei, a qual, quando entra a fazer parte do ordenamento jurídico, vincula o ente público tanto quanto o devedor.

Tal teoria foi adotada por diversos doutrinadores brasileiros, tendo influenciado

também na elaboração do Código Tributário Nacional.

Não obstante o avanço no conceito de relação jurídica tributária, a teoria centrada

no ideal da obrigação criada por lei foi alvo de críticas. Alegava­se que tal entendimento não

soube demonstrar como o Estado, detentor da soberania, iria fazer valer o princípio da

igualdade com o contribuinte. A crítica partia também do fato de a teoria defender uma

relação emanada exclusivamente da lei, furtando­se da aplicação das regras constitucionais

dispostas acerca do sistema tributário, relegando­a apenas à esfera da legislação ordinária.

Ainda, e por fim, confundia­se, segundo Ricardo Lobo Torres 10 , “o plano da norma e da

definição abstrata do fato gerador com o plano do contingente e da ocorrência concreta do

fato gerador”.

Diante da influência do direito processual na esfera do direito tributário,

desenvolve­se a Teoria da relação procedimental, influenciada essencialmente pelos ensinamentos de Enrico Allorio e Gian Antonio Micheli. Tais autores defendiam que a

relação jurídica tributária não deveria nascer apenas da subsunção de um fato à norma, sendo

necessária para a instituição do vínculo obrigacional a realização de um procedimento que

formalizasse essa imposição tributária.

Tal teoria não teve grandes adeptos no direito brasileiro, mas se ressalta a sua

grande importância para a compreensão e desenvolvimento do fenômeno do lançamento

tributário 11 .

Após a análise dessas teorias, chega­se ao ideal da relação jurídica tributária

9 GIANNINI, Achille Donato. I Concetti Fondamentali del Dir itto Tributar io. Turim: UTET, 1956, p.48, apud TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., p.234. 10 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tr ibutár io. 13 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.234.

11 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., p.235.

10

defendida pela doutrina moderna. Hodiernamente a Constituição atinge papel fundamental

para a tributação. A relação jurídica tributária passa a ser analisada precipuamente sob o

enfoque dos preceitos constitucionais e sobre a ideologia defendida pelo Estado de Direito.

Resta claro, no entanto, que a teoria da obrigação derivada da lei ainda continua

vigente. O Código Tributário Nacional, em vigor desde 25 de outubro de 1966, nasceu sob o

enfoque da obrigação tributária nascida e fundamentada ex lege, tanto que o seu artigo 114

dispõe que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (grifo nosso).

Ocorre que essa “situação definida em lei” é agora influenciada e complementada

pelos princípios e regras constitucionais, formando, segundo Alberto Nogueira 12 , um “corpo

sistêmico híbrido”.

Klaus Tipke e Joachim Lang são os principais doutrinadores dessa nova

concepção de análise da relação jurídica tributária. Em sua doutrina defendem que a análise

das normas tributárias deve ter por base os postulados do Estado de Direito formal e

material 13 . Helenilson Cunha Pontes 14 , ao analisar a tese defendida por tais autores, assim

sistematiza a visão que Tipke e Lang fazem da norma tributária:

O Estado de direito formal assegura no Direito Tributário o princípio da tributação conforme a lei (Grundsatz der Gesetzmässigkeit der Besteurung) concretizado pelo princípio da determinação das leis tributárias (Prinzip der Bestimmtheit von Steuergesetzen) e pela proibição de leis tributárias retroativas (Verbot rückwirkender Steuergesetze), enquanto o Estado de direito material, além das garantias asseguradas pelo Estado de direito formal, postula a concretização com uma “ordem jurídica constitucional de valores” (Wertordnung des Grundgesetzes), em que assumem lugar de destaque a justiça, os direitos fundamentais, a igualdade e a liberdade dos indivíduos. No Estado de direito material, a lei tem que preencher uma função de justiça, não apenas de segurança jurídica.

Com efeito, a grande importância desse enfoque constitucional consiste na

harmonização da relação jurídica tributária, já que se buscam equilibrar dois lados opostos,

quais sejam: a liberdade do indivíduo­contribuinte e a atuação do Estado Fiscal.

Nesse contexto, constata­se que a relação jurídica tributária, segundo essa

12 NOGUEIRA, Alberto. Teor ia dos Pr incípios Constitucionais Tr ibutár ios: a nova matr iz da cidadania democrática na pós­modernidade tr ibutár ia. Rio de Janeiro: Saraiva, 2008, p. 131. 13 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Steuerrecht. 15 ed. Köln: Verlag Dr. Otto Schmidt, 1996, p. 72­77 apud PONTES, Helenilson Cunha. Coisa Julgada Tributár ia e Inconstitucionalidade. São Paulo: Dialética, 2005, p.20.

14 PONTES, Helenilson Cunha. Op. cit., p.20­21.

11

moderna teoria, afasta­se do conceito meramente ex lege do Código Tributário Nacional para assumir verdadeiro papal ex constitucionis. Assim, passa a incidir sobre a obrigação tributária os direitos e garantias individuais, o princípio da segurança jurídica, do ideal de justiça e

solidariedade social, dentre outros.

Nesse norte, muito mais que influência, a Constituição passa efetivamente a reger

as relações jurídicas tributárias. Afasta­se por completo a noção inicial de obrigação tributária

na qual o Estado estabelecia uma imposição fiscal sem ter o contribuinte qualquer

salvaguarda. Atualmente, protege­se constitucionalmente aquele que sofre a incidência

tributária.

Mas, vale ressaltar que não se está aqui a dizer que há agora completa igualdade

na relação entre o Estado e os contribuintes. Tal relação sempre foi muito conflituosa

principalmente pela voracidade fiscal cada vez maior. As normas tributárias a todo o

momento são objeto da repulsa social, já que ainda não se tem um sistema tributário

efetivamente justo.

No entanto, não se pode olvidar que com a Constituição Federal de 1988 o direito

tributário brasileiro passou a dispor de uma série de normas que limitam constitucionalmente

a atuação do poder estatal na seara tributária. Assim sendo, todo e qualquer conflito na seara

tributária irá acabar, quase que inevitavelmente, infringindo normas constitucionais, sendo

necessário para a solução da lide não só a observância de sua legislação específica, como

também a interpretação e a ponderação do arcabouço principiológico presente na Lei

Fundamental.

São diversos princípios e regras que tutelam a relação jurídica tributária e que

terão uma análise pormenorizada em tópico próprio, dada a sua importância.

1.2 A tutela constitucional tributária

É sabido que o Estado deve sempre ter por fim maior o atingimento do interesse

público. Para que possa exercer a atividade estatal e satisfazer as inúmeras necessidades

coletivas, a Administração Pública necessita de recursos. Dessa forma, uma das principais

preocupações do ente estatal é obter numerários através de receitas públicas para que assim

possa ter aportes financeiros aptos a subsidiar a sua atuação. E os tributos, indubitavelmente,

12

figuram como a principal fonte dessas receitas.

O tributo, segundo Ricardo Lobo Torres 15 , surgiu com a “paulatina substituição da

relação de vassalagem do feudalismo pelos vínculos do Estado Patrimonial, com as suas

incipientes formas de receita fiscal protegidas pelas primeiras declarações de direito”.

A teoria da tributação moderna, como visto no tópico anterior, é fruto de uma

longa evolução. Com efeito, afasta­se da relação inicial de poder para hoje conceber uma

relação jurídica tributária na qual se busca pôr o contribuinte em pé de igualdade com o

Estado.

A soberania financeira, pertencente ao povo e não mais ao soberano, transfere­se

de forma limitada ao Estado, sendo regida pelas regras constitucionais. Na verdade, o ente

estatal já se constitui limitadamente, no espaço aberto do consentimento. O tributo, nesse

prisma, segue a mesma regra, nascendo de modo limitado pela própria autolimitação da

liberdade 16 .

Nesta feita, o Estado Fiscal caracteriza­se como aquele que recebe

constitucionalmente poderes do povo para a arrecadação de receitas tributárias que

subsidiarão a atuação estatal na busca do interesse publico. Ressalta­se que, na realidade, é o

ônus tributário um verdadeiro contrapeso necessário para a conservação, tanto da vida em

sociedade, quanto da própria existência do Estado 17 .

Como visto, tal poder fiscal não é nem absoluto, nem ilimitado. A tributação,

embora vital para a existência do Estado, só pode ocorrer nos limites circunscritos pelo texto

constitucional.

O Código Tributário Nacional, em seu artigo 3º, traz a definição legal de tributo:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Em tal dispositivo constata­se a preocupação do legislador em constar que o

15 TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patr imonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 2.

16 Id., Curso de direito financeiro e tr ibutár io. 13 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.64. 17 NOGUEIRA, André Murilo Parente; ROSSO, Maria Izabel Souza. O Estado fiscal e o poder de tr ibutar . Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revista juridica/index.htm. Acesso em 26.07.2010.

13

tributo é uma prestação “instituída em lei”. Efetivamente, o princípio da legalidade assume

vital importância em matéria tributária, tornando­se uma das grandes garantias do

contribuinte. Ainda, com a constitucionalização da relação jurídica tributária, o tributo não

deve mais respeito só à lei, mas também à Constituição Federal.

O poder de tributar encontra­se amplamente disciplinado no texto constitucional,

sendo o campo predileto do labor constituinte 18 . Quanto ao tema, a Lei Fundamental

disciplina a matéria de forma exaustiva e a analítica. Dessa forma, há na Constituição

brasileira um extenso rol de dispositivos reguladores do exercício da tributação, limitando a

atuação estatal nesta seara 19 .

Na verdade, da análise da Lei Fundamental podemos entender o Sistema

Tributário Nacional, o qual, segundo o mestre Aliomar Baleeiro 20 , se “movimenta sob a

complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que limitam os excessos acaso

detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos individuais”.

O ponto central desse Sistema Tributário Nacional são as disposições acerca das

limitações constitucionais do poder de tributar que inclusive possuem seção específica no

texto constitucional (Seção II – artigos 150­152). Tais disposições atuam na defesa do

contribuinte, limitando o exercício da potestade estatal, na medida em que trazem diversos

princípios e regras a serem obedecidos pelo Estado na atuação da atividade tributária. Essas

limitações terão estudo pormenorizado no próximo subitem.

1.2.1 Limitações constitucionais ao poder de tributar

Os direitos fundamentais assumem vital importância nos ideais defendidos pelo

Estado Democrático de Direito. Todavia, não é de hoje que esse tema tem seu prestígio

reconhecido. O artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já preconizava

18 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tr ibutár io brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.36.

19 Aliomar Baleeiro, sobre o tema, aduz que “Nenhuma Constituição excede a brasileira, a partir da redação de 1946, pelo zelo com que reduziu a disposições jurídicas aqueles princípios tributários. Nenhuma contém tantas limitações expressas em matéria financeira”. (BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tr ibutar . 7. ed. rev. e comp. à luz da Constituição de 1998 até a Emenda Constitucional n. 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.2­3).

20 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit., p.2.

14

que “Não tem Constituição a sociedade em que não estiver assegurada a garantia dos direitos

(fundamentais), nem determinada a separação dos poderes” 21 .

A Constituição Federal de 1998 traz em seu Título II um rol de “Direitos e

garantias fundamentais”. No entanto, tais preceitos não têm a pretensão de se tornarem um rol

taxativo, tratando­se de um verdadeiro “catálogo aberto”. Ainda, as disposições expressas não

se limitam apenas ao referido Título, pois há em outras partes do texto constitucional normas

que tratam do assunto.

Nesse sentido, pode­se verificar que certos direitos fundamentais vinculam a

atividade financeira e fiscal do Estado restringindo, na maioria das vezes, a sua atuação. Por

conseguinte, resta claro que as limitações constitucionais do poder de tributar figuram não só

como as principais normas que moderam o exercício da imposição fiscal, como também

garantem os direitos fundamentais que protegem o contribuinte.

A relação jurídica tributária, nascida sob o prisma das normas constitucionais,

caracteriza­se por tentar harmonizar interesses que pareciam contrapostos. A relação entre

Fisco e contribuinte nunca foi a mais amigável, já que a sensação de desigualdade entre as

partes sempre se impôs. Contudo, os direitos fundamentais surgem como uma balança que

busca equilibrar o poder do ente estatal concedendo direitos e garantias ao contribuinte.

Dessa forma, constata­se que o Direito Tributário Moderno, por ser regido por

diversas normas constitucionais, necessita respeitar os preceitos e garantias insculpidos na Lei

Fundamental, sob pena da imposição fiscal ser considerada além de ilegítima, igualmente

inconstitucional.

Luciano Amaro 22 , ao tratar das limitações constitucionais ao poder de tributar,

sintetiza bem a questão ao defender que elas “integram o conjunto de traços que demarcam o campo, modo, a forma e a intensidade de atuação do poder de tributar (ou seja, do poder, que emana da Constituição, de os entes políticos criarem tributos)”.

As leis tributárias caracterizam­se por serem essencialmente leis interventivas,

pois restringem a liberdade e a propriedade do indivíduo­contribuinte, mesmo sem o seu

21 DELGADO, José Augusto. Os direitos fundamentais do contribuinte. Revista Fórum de Direito Tributár io: RFDT, v. 3, mai/jun 2003.

22 AMARO, Luciano. Direito tr ibutár io brasileiro. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p.107, grifos do autor.

15

consentimento 23 . Por conseguinte, o estabelecimento de limites à atuação fiscal se mostra

imprescindível.

Como visto, a Constituição Federal de 1988 não se olvidou ao estabelecer

restrições ao poder de tributar do Estado. Tais limitações no texto constitucional não se

restringem à forma expressa, estando presente também de modo implícito. Nesses parâmetros

que deve ser compreendido o Sistema Tributário Nacional.

Sobre o assunto, Helenilson Cunha Pontes 24 expõe o sistema tributário “como

sistema de limites que permite reconhecer ao indivíduo (sujeito passivo tributário) uma

posição jurídica constitucionalmente privilegiada diante do ente tributante, titular da potestade

tributária”.

Reunidas principalmente nos artigos 150 a 152 da Constituição Federal as

limitações constitucionais ao poder de tributar se apresentam das mais diversas formas:

princípios gerais de tributação, regras de competência e imunidades.

No que tange aos princípios gerais de tributação, a Lei Fundamental consagra o

princípio da legalidade como um dos principais vetores em matéria de imposição fiscal.

Efetivamente, tal preceito figura como importante limite na atuação do Estado, já que garante

ao contribuinte que o Fisco somente irá instituir ou majorar tributos sob o comando de lei

(artigo 150, inciso I, Constituição Federal).

O princípio da legalidade possui uma densa carga valorativa, sendo informado,

segundo Eduardo Sabbag 25 , “pelos ideais de segurança jurídica e justiça – vetores que não

podem ser solapados na seara da tributação”.

Outro vetor essencial à tributação é a proteção à dignidade da pessoa humana. Tal

preceito, além de ser um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, apresenta­se na

seara tributária como um limite de ingerência da atuação estatal na esfera particular do

contribuinte, com relação direta à proteção da liberdade e da propriedade do cidadão 26 .

23 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tr ibutár io. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 74.

24 PONTES, Helenilson Cunha. Coisa Julgada Tr ibutár ia e Inconstitucionalidade. São Paulo: Dialética, 2005, p.23.

25 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tr ibutár io. São Paulo: Saraiva, 2009, p.24.

26 ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 331.

16

Assim, pode­se perceber que o princípio da dignidade da pessoa humana, na

condição de valor jurídico fundamental do Estado Democrático de Direito, representa um

“valor­guia” que, além de alcançar os direitos fundamentais, irradia seus efeitos a toda ordem

jurídica, sendo considerado como o princípio de maior hierarquia axiológico­normativa do

ordenamento.

Na busca de uma conceituação desse preceito, precisos são os ensinamentos de

Ingo Sarlet 27 , em estudo sobre o tema, no qual traz a seguinte definição:

(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co­responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Como dito, o princípio da dignidade da pessoa humana atua em matéria tributária

como um limite de intervenção da atuação fiscal na esfera privada do contribuinte. Dessa

forma, um dos principais corolários desse preceito é a concepção do princípio do mínino

existencial, que busca salvaguardar da ingerência estatal o montante vital para a subsistência

do indivíduo. Nesse espeque, a tributação não poderá ultrapassar tal limite, sob pena de,

atingindo a dignidade da pessoa humana, restar viciada pela inconstitucionalidade.

Ainda, é de se ressaltar o princípio da igualdade. Disposto como direito e garantia

individual (artigo 5º, caput, e inciso I, da Constituição Federal), o preceito é tratado no texto constitucional em relação à seara tributária no artigo 150, II e tem por objetivo vedar a

instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação

equivalente.

Humberto Ávila 28 , em seus apontamos, delimita bem a dimensão normativa do

princípio da igualdade em matéria tributária como limite ao poder de tributar:

Quanto ao nível em que se situa, caracteriza­se, na feição de princípio e de regra, como uma limitação de primeiro grau, porquanto se encontra no âmbito das normas que serão objeto de aplicação e, na função de postulado, como limitação de segundo grau, já que orienta o aplicador na relação que deve investigar relativamente aos sujeitos, ao critério e à finalidade da diferenciação; quanto ao objeto, qualifica­se

27 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.62.

28 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tr ibutár io. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 349.

17

como uma limitação positiva de ação e também negativa, na medida em que exige uma atuação do Poder Público para igualar as pessoas (igualdade de chances, ações afirmativas), bem como proíbe a utilização de critérios irrazoáveis de diferenciação ou o tratamento desigual para situações iguais; quanto à forma, revela­se como uma limitação expressa, material e formal, na medida em que, sobre ser expressamente prevista na Constituição Federal (art. 5º e art. 150, II), estabelece tanto o conteúdo quanto a forma da tributação.

No que tange ao direito tributário, o princípio da igualdade é constantemente

relacionado com o princípio da capacidade contributiva (artigo 145, parágrafo 1º,

Constituição Federal). Essa dependência ou autonomia entre esses dois preceitos será

pormenorizada no próximo capítulo.

Além dos princípios gerais da tributação brevemente analisados anteriormente, há

outros, que não serão aqui vistos, pois refogem dos objetivos deste trabalho. Acrescenta­se,

inclusive, que os preceitos dispostos no artigo 150 e seguintes não têm a pretensão de se

tornarem um rol taxativo, já que o próprio artigo 150, em seu caput, expressamente dispõe que as limitações devem ser consideradas “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao

contribuinte”.

Afora os princípios gerais de tributação, têm­se também como decorrência das

limitações constitucionais do poder de tributar as regras que delimitam a competência, bem

como o instituto da imunidade. Entretanto, mais uma vez, por não fazerem parte do substrato

desse trabalho, tal análise não será aprofundada.

Diante de tudo que fora exposto, verifica­se que o constituinte brasileiro teve uma

sensível preocupação em tutelar os direitos e garantias dos contribuintes de modo a lhes

ofertar meios de defesa e proteção na relação jurídica tributária. Tais disposições deverão ser

respeitadas pelo legislador na elaboração da norma e também pelo intérprete quando da

aplicação do texto.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988 consagrou um Sistema Tributário

Nacional no qual muitos enxergam a existência de um verdadeiro Estatuto dos Contribuintes.

Dentre tais preceitos, com intuito de desenvolver o ideal buscado nesse trabalho, será dada

projeção, no próximo capítulo, ao princípio da capacidade contributiva e sua relação com os

princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proteção de mínimo existencial,

além da vedação ao confisco.

Muito mais do que os conceituar, buscar­se­á demonstrar como a aplicação

inequívoca de tais preceitos pode transformar a busca do ideal da justiça fiscal em efetiva

18

realidade, objetivo tão almejado pela sociedade contemporânea.

19

2 PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

Fixado no ideal de justiça fiscal, o estudo do princípio da capacidade contributiva

é de vital importância, inclusive como forma de efetivar a concreção do princípio da

igualdade na seara do Direito Tributário.

Nesse contexto, necessário se faz a análise da evolução histórica do princípio da

capacidade contributiva de modo a entender a atual acepção que se tem desse preceito. Ainda,

essencial é a definição de seu conceito e conteúdo, em especial no âmbito da Constituição

Federal de 1988.

Por fim, impende relacioná­lo com os demais princípios constitucionais com o

objetivo de verificar sua aplicação no sistema tributário brasileiro, especialmente no que tange

aos limites mínimos e máximos possíveis para uma tributação justa e adequada.

2.1 Noções sobre o princípio da capacidade contributiva

2.1.1 Evolução histórica mundial

O desenvolvimento do princípio da capacidade contributiva e a preocupação com

a justiça na tributação não são recentes, remontando­se, inclusive, à época do surgimento do

tributo. José Domingues de Oliveira 29 ressalta que “o anseio pela justiça na decretação e

liquidação dos impostos deriva do tronco filosófico da justiça distributiva que deita raízes na

Grécia Antiga”.

Em 1215, com a outorga da Magna Carta na Inglaterra ficou estabelecido um rol

29 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 21.

20

de garantias ao cidadão, como a liberdade de ir e vir, direito à propriedade privada, além do

princípio “no taxation without representation” . O entendimento de que “não há tributação sem representação” fez com que o monarca necessitasse do prévio consenso geral do reino

para que pudesse exigir tributos, não podendo mais agir somente por sua vontade. Além disso,

o texto britânico trazia em seu artigo 12 um embrião do preceito da capacidade contributiva,

ao determinar que o tributo devesse ser “moderadamente fixado” 30 .

Já em 1776, na célebre obra “A Riqueza das Nações”, Adam Smith, em ataque à

doutrina mercantilista e sob a influência do liberalismo, consolida os preceitos de justiça e de capacidade contributiva, defendendo que todos deveriam contribuir para as despesas públicas na razão de seus haveres, sendo que “é na observância ou não­observância deste princípio que

consiste o que se denomina equidade ou a falta de equidade da tributação” 31 .

Uma vez lançado tal ideal, os povos civilizados já não mais permitiam a

instituição de tributos em desrespeito ao princípio da capacidade contributiva. Nesse

momento, várias revoltas podem ser encontradas como forma da população se insurgir contra

tributações excessivamente altas 32 .

Figurando como importante marco na concepção do Estado de Direito, a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 não se furtou de garantir a justiça

na tributação, tendo seu artigo 13 preconizado que “Para a manutenção da força pública e para

as despesas da administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser repartida

entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades” 33 .

Diante da consolidação do preceito da justeza da tributação, as demais

Constituições liberais lançadas à época positivaram o ideal da capacidade contributiva, tendo

30 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contr ibutiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p.15.

31 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1998, p.100, apud GODOI, Marciano de Seabra. Justiça, igualdade e dir eito tr ibutár io. São Paulo: Dialética, 1999, p.188.

32 Regina Helena Costa cita algumas dessas revoltas: “a Boston Tea Party, evento no qual os norte­americanos rebelaram­se contra a tributação inglesa das importações efetuadas pelas Colônias, entre elas a de chá, e que se constituiu em importante precedente da Independência (1773); a Revolução Francesa, que teve como causa, dentre outras, a precária situação do governo de Luís XVI, que obrigava a sangrar o povo com impostos (1789); e a Inconfidência Mineira, provocada pela opressiva política fiscal da Coroa Portuguesa, por ocasião da coleta da “derrama” (1789)” (COSTA, Regina Helena. Op. cit., p.16). 33 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Pr incípio constitucional da capacidade contr ibutiva. Porto Alegre, S.A. Fabris, 2001, p.19­20 (grifos nossos).

21

sido inclusive previsto pela Constituição Brasileira de 1824.

No entanto, apesar de toda essa evolução do princípio da capacidade contributiva

ao longo dos séculos acredita­se que a efetiva introdução do referido preceito à dogmática

jurídico­tributária deu­se apenas em 1929, em decorrência dos ensinamentos de Benvenuto

Griziotti, mestre maior da Escola de Pavia 34 .

Apesar de muito criticada à época, a doutrina defendida por Griziotti ganha um

defensor no ano de 1961, diante da tese elaborada por Emilio Giardina. Em extensa

monografia sobre o tema, Giargina busca concretizar e efetivar o princípio da capacidade

contributiva, regra que vinha expressamente disposta no artigo 53 da Constituição Italiana 35 .

A partir daí, consolida­se de vez a capacidade contributiva como princípio

jurídico, preceito este que ganha destaque em grande parte das Constituições da era moderna,

pois se reconhece a sua importância para a realização do ideal da justiça no âmbito do direito

tributário atual.

2.1.2 Evolução no direito brasileiro

O Brasil, seguindo a forte tendência mundial, não se absteve de introduzir no

ordenamento jurídico nacional o princípio da capacidade contributiva. Conforme explanado

anteriormente, a Constituição Imperial de 1824, sob a influência dos ideais liberais, já

trouxera em seu artigo 179, inciso XV, a regra de que “ninguém será exempto de contribuir

para as despezas do Estado em proporção dos seus haveres” 36 .

Em franco retrocesso, os textos constitucionais posteriores pouco ou nada

trataram em relação à capacidade contributiva. Entretanto, na Constituição de 1946 o referido

preceito volta a ser reconhecido constitucionalmente, tendo sido destacado pelo artigo 202

que determinava que “os tributos terão caráter pessoal sempre que isso for possível, e serão

34 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 22.

35 Nota de DERZI, Misabel in BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tr ibutar . 7. ed. rev. e comp. à luz da Constituição de 1998 até a Emenda Constitucional n. 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.722.

36 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Pr incípio constitucional da capacidade contr ibutiva. Porto Alegre, S.A. Fabris, 2001, p.25.

22

graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”.

A consolidação de tal preceito à época não foi de fácil assimilação pelos

doutrinadores brasileiros. Não obstante tais vozes em contrário, Aliomar Baleeiro 37 , sem

receio, foi um dos grandes defensores do princípio da capacidade contributiva, tendo inclusive

consagrado tal preceito em sua clássica obra “As Limitações Constitucionais ao Poder de

Tributar”.

Embora o instituto já estivesse ganho importância, a Emenda Constitucional n. 18

de 1965 acabou por revogar o artigo 202 da Constituição de 1946, excluindo a capacidade

contributiva da Lei Fundamental. Igual retrocesso se manteve na Carta de 1967 e na Emenda

Constitucional n. 01 de 1969.

As omissões nos referidos textos constitucionais foram efetivamente um atraso

para o sistema tributário brasileiro, uma vez que, nos precisos ensinamentos de Aliomar

Baleeiro 38 :

Desde muitos séculos, pensadores e moralistas, à luz do Direito ou da religião, clamam por impostos justos, sem que se acordem nos caracteres de tais tributos. Contemporaneamente, tende a tornar­se geral a crença de que a justiça tributária deve repousar na personalidade e na graduação dos tributos, segundo a capacidade econômica do contribuinte.

Com efeito, reflexo desse ideal defendido por Baleeiro o princípio da capacidade

contributiva volta a ser considerado pelo constituinte, sendo consagrado pela Constituição

Democrática de 1988, no artigo 145, parágrafo 1º.

Pode­se constatar, portanto, que o princípio da capacidade contributiva consolida­

se no ordenamento jurídico brasileiro, tendo inclusive proteção constitucional. Para seu

efetivo entendimento, a análise não se deve limitar apenas ao referido dispositivo, mas sim ser

colhida na totalidade do sistema, conjugando­o com outros preceitos constitucionais 39 . Assim,

37 Baleeiro, ao comentar sobre o referido dispositivo, assim se pronunciou: “Cláusula nova, estranha às Constituições brasileiras anteriores, ainda que comum a outras Cartas Magnas deste pós­guerra, o art. 202 brotava de profundas raízes plantadas há 400 anos, pelo menos, no solo repisado das aspirações humanas. Estava o embrião no art. 179, nº15, da Carta Constitucional, de 1824”. (BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tr ibutar . 7. ed. rev. e comp. à luz da Constituição de 1998 até a Emenda Constitucional n. 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.687). 38 Ibid., p.688. 39 GREGORIO, Argos Magno de Paula. A harmonização da capacidade contributiva com os princípios formadores do subsistema constitucional tributário brasileiro. Revista Tr ibutár ia e de Finanças Públicas, São Paulo, v. 16, n. 79, p. 36­67, mar. 2008, p. 44.

23

é pela harmonia das normas do Sistema Tributário Nacional que se retira a verdadeira

essência do referido princípio.

Dessa forma, seguindo o mister desse trabalho, analisar­se­á a seguir o conceito

de capacidade contributiva, buscando verificar sua relação com o primado maior da

igualdade.

2.1.3 Capacidade contributiva e sua relação com o princípio da igualdade

Para a exata compreensão do conteúdo e conceito do princípio da capacidade

contributiva, um dos principais pontos a ser analisado é a sua relação com o princípio da

igualdade.

Muito embora a aparente divergência entre os doutrinadores acerca da relação

entre estes dois princípios, os estudiosos em sua grande maioria acabam por consentir no fato

de que o princípio da igualdade apresenta­se e concretiza­se, no âmbito do Direito Tributário,

através do princípio da capacidade contributiva.

José Domingues de Oliveira 40 corrobora tal entendimento e explicita que esta

também a posição da melhor doutrina. Ao sustentar essa linha de raciocínio, destaca o

pensamento de Guillermo Ahumade 41 (“isonomia tributária se consubstancia na ‘igualdade

jurídica informada pela teoria da capacidade contributiva’”); Dino Jarach 42 (“igualdade

tributária ‘quer dizer igualdade em condições iguais de capacidade contributiva’”); Ricca

Salerno 43 (“uma repartição justa, igual, uniforme do imposto consiste nisso: que indivíduos de igual condição econômica paguem as mesmas quotas, e indivíduos de condição diversa, quotas diferentes), dentre outros.

40 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 22 e segs.

41 AHUMADA, Guillermo. Tratado de Finanzas Pública. v. 1. Buenos Aires: Ed. Plus Ultra. 1969, p. 296 apud OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 22.

42 JARACH, Dino. Curso Super ior de Derecho Tr ibutar io. Buenos Aires: Liceo Professional Cima. 9. ed. p. 126 apud OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Ibid., p. 22. 43 SALERNO, Rica APUD JAQUES; Paulino. Da Igualdade Perante a Lei. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense. 1957, p. 201 apud OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Ibid., p. 22 (grifos do autor).

24

Seguindo este entendimento, temos ainda a posição de Misabel Derzi 44 , que de

forma clara assim defende:

Ora, o critério básico, fundamental mais importante (embora não seja o único), a partir do qual, no Direito Tributário, as pessoas podem compor uma mesma categoria essencial a merecer o mesmo tratamento, é o critério da capacidade contributiva.

Ele operacionaliza efetivamente o princípio da igualdade no Direito Tributário. Sem ele, não há como aplicar o mais importante e nuclear direito fundamental, ao Direito Tributário: a igualdade.

Na realidade, deve­se entender o princípio da igualdade como um preceito maior,

aplicável a qualquer ramo do direito, já que decorrente de direito individual fundamental. Por

outro lado, a capacidade contributiva revela­se como um princípio menor, ou mesmo um

subprincípio daquele maior, caracterizando­se por ser um critério essencial, mas não

exclusivo, que concretiza o primado da igualdade na seara do direito tributário 45 .

Dessa forma, o âmbito de aplicação do princípio da igualdade é muito mais

amplo, não se limitando apenas à imposição fiscal. Em decorrência disso, a incidência da

igualdade direcionada especificamente ao campo do direito tributário fica para o princípio da

capacidade contributiva.

No entanto, em que pese essa clássica concepção, a doutrina procurou aprofundar

tal entendimento como forma de precisar a identificação do liame existente entre capacidade

contributiva e o princípio da igualdade 46 . Quem melhor alcançou tal objetivo foi José

Domingues de Oliveira 47 que, com maestria, especificou e definiu o alcance da igualdade no

direito tributário, defendendo que tal preceito desdobra­se em várias facetas, nas quais:

a) Se todos são iguais perante a lei, todos devem ser por ela tributados (princípio da generalidade);

b) O critério de igualação ou desigualação há de ser a riqueza de cada um, pois o tributo visa a retirar recursos do contribuinte para manter as finanças públicas; assim, pagarão todos os que tenham riqueza; localizados os que têm riqueza (logo,

44 Nota de DERZI, Misabel in BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tr ibutar . 7. ed. rev. e comp. à luz da Constituição de 1998 até a Emenda Constitucional n. 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.696­697 (grifos nossos). 45 GODOI, Marciano de Seabra. Justiça, igualdade e dir eito tr ibutár io. São Paulo: Dialética, 1999, p.192.

46 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contr ibutiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p.40.

47 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 13 (grifos nossos).

25

contribuintes) devem todos estes ser tratados igualmente – ou seja – tributados identicamente na medida em que possuírem igual riqueza (princípio da igualdade tributária);

c) Essa “riqueza” só poderá referir­se ao que exceder o mínimo necessário à sobrevivência digna, pois até este nível o contribuinte age ou atua para manter a si e aos seus dependentes, ou à unidade produtora daquela riqueza (primeira acepção do princípio da capacidade contributiva, enquanto pressuposto ou fundamento do tributo);

d) Essa tributação, ademais, não pode se tornar excessiva, proibitiva ou confiscatória, ou seja, a tributação, em cotejo com diversos princípios e garantias constitucionais (direito ao trabalho e à livre iniciativa, proteção à propriedade), não poderá inviabilizar ou até mesmo inibir o exercício de atividade profissional ou empresarial lícita nem retirar do contribuinte parcela substancial de propriedade (segunda acepção do princípio da capacidade contributiva, enquanto critério de graduação e limite da tributação).

Dessa forma, com base nesse entendimento, constata­se que como princípio

maior, a igualdade desenvolve­se em diversos campos de atuação, sendo que, no campo do

direito tributário, ela se desdobra em várias diretrizes. O preceito da capacidade contributiva é

apenas uma destas facetas que atuam com o fito de efetivar a busca do fim maior da justiça

fiscal, afinal, “ser justo, em suma, é tratar a todos com Igualdade 48 ”.

2.1.4 Conceito e conteúdo do princípio da capacidade contributiva

Estabelecidas a relação entre igualdade e capacidade contributiva, mister a

conceituação e detalhamento deste último princípio.

Na busca de uma definição mais completa, José Domingues de Oliveira 49 defende

que a exata compreensão do conceito deve se operar em dois sentidos, conforme o conteúdo

apresentado. Pelo primeiro sentido, objetivo ou absoluto, a capacidade contributiva significa “a existência de uma riqueza apta a ser tributada (capacidade contributiva como pressuposto

da tributação)”; já no segundo sentido, o subjetivo ou relativo, tal princípio constitui­se na “parcela dessa riqueza que será objeto da tributação em face de condições individuais

(capacidade contributiva como critério de graduação e limite do tributo)”.

Dessa forma, constata­se que pela própria concepção do preceito da capacidade

contributiva já se revelam certos mandamentos que deverão ser cumpridos para que se

48 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 35. 49 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Op. cit., p. 36.

26

possibilite a aplicação justa da tributação. Tais regras destinam­se precipuamente ao

legislador que terá que as respeitar na elaboração da norma tributária sob pena de torná­la

inconstitucional.

O ponto de partida da tributação é a necessidade de que o fato a ser tributado

revele certa riqueza (sentido objetivo ou absoluto), pois só desse modo a capacidade

contributiva se revelará. Se o fato não demonstrar riqueza alguma, não poderá o legislador

elegê­lo apto à incidência da norma tributária.

Ainda, necessário estabelecer a graduação da exação, sendo que a definição do

montante tributável deve levar em conta as especificidades do contribuinte, não podendo

atingir a parcela destinada à sua mantença digna, bem como não podendo alcançar patamar

que seja considerado confiscatório (capacidade contributiva como critério de graduação e

limite do tributo).

Quanto ao conceito do princípio da capacidade contributiva, utilizar­se­á das

precisas palavras de Regina Helena Costa 50 , nas quais, em consagrada obra sobre o tema, traz

sua definição:

O conceito de capacidade contributiva, ainda que o termo que o expressa padeça da ambigüidade e da imprecisão características da linguagem do direito positivo, pode ser singelamente definido como a aptidão da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário para suportar a carga tributária, numa obrigação cujo objeto é o pagamento de imposto, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação.

Entendidas tais questões, necessária se faz a análise do princípio da capacidade

contributiva agora sob o enfoque do ordenamento jurídico brasileiro, buscando compreender o

objetivo e o alcance desse preceito perante o Sistema Tributário Nacional.

2.2 O princípio da capacidade contributiva na Constituição Federal de 1988

Conforme já exposto, a Constituição Federal de 1988, diferentemente da Carta

anterior, consagra o princípio da capacidade contributiva em seu artigo 145, parágrafo 1º, in verbis:

50 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contr ibutiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p.107.(grifos nossos).

27

§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Para uma melhor compreensão do mandamento constitucional, imprescindível

uma análise pormenorizada do referido dispositivo, buscando entender o exato alcance que o

instituto possui no ordenamento tributário brasileiro.

Dessa forma, passa­se a tecer algumas considerações essenciais ao perfeito

entendimento do preceito da capacidade contributiva na Constituição Federal.

2.2.1 A expressão “sempre que possível”

O artigo 145, parágrafo 1º, da Lei Fundamental, em sua essência repete o teor do

texto constitucional de 1946, artigo 202, que dispunha: “Os tributos terão caráter pessoal,

sempre que possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”.

Da análise dos dois dispositivos, constata­se uma mudança de local da expressão

“sempre que possível”, que agora se localiza no início do texto. Essa alteração da norma

passou a gerar certas controvérsias acerca do real objetivo do constituinte com esse comando

constitucional. Assim, partindo da premissa que nenhuma norma disposta na Constituição

Federal é desprovida de certo sentido, imperiosa a análise do verdadeiro alcance dessa

expressão.

No artigo 202, da Lei Fundamental de 1946, a expressão “sempre que possível”

dirigia­se de forma clara à pessoalidade dos tributos, já que inserida imediatamente após essa

regra. Agora, no texto de 1988, a referida expressão encabeça o comando constitucional,

passando a ser aplicável também à capacidade econômica do contribuinte.

Ocorre que uma superficial análise literal da expressão pode levar ao

entendimento de que tanto o caráter pessoal, quanto a graduação segundo a capacidade

econômica do contribuinte seriam um regra de facultativa aplicação 51 .

Entretanto, o entendimento dominante afasta esta faculdade de aplicação,

51 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contr ibutiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p.91.

28

defendendo que o sentido do “sempre que possível”, longe de se relacionar à

discricionariedade do legislador, seria o de efetivamente tornar obrigatória a aplicação do

comando constitucional. Isso porque tal disposição deve ser interpretada como vinculativa e

obrigatória, excetuando­a apenas quando efetivamente impossível a sua aplicação à

pessoalidade e à graduação dos impostos.

Nesse sentido, Misabel Derzi 52 :

A pessoalidade sempre que possível, a que se refere a art. 145, p.1º, não é norma permissiva, nem confere poder discricionário ao legislador. Ao contrário, o advérbio sempre acentua o grau de imperatividade e abrangência do dispositivo, deixando claro que, apenas sendo impossível, deixará o legislador de considerar a pessoalidade para graduar os impostos de acordo com a capacidade econômica do contribuinte.

Dessa forma, há uma obrigatoriedade no artigo 145, parágrafo 1º, comando que

somente poderá ser desconsiderada quando houver concreta impossibilidade prática na sua

aplicação.

A não aplicação do dispositivo constitucional só será possível como forma de

atingir certos objetivos muito bem definidos e pontuados por Ricardo Lobo Torres 53 , a saber:

“a) adequar o princípio da capacidade contributiva à natureza do imposto e à técnica de sua

incidência; b) compatibilizar esse princípio de justiça com a extrafiscalidade”.

Com efeito, o primeiro objetivo trazido por Ricardo Lobo Torres busca

excepcionar a aplicação do comando constitucional quando não houver viabilidade jurídica na

sua incidência (impossibilidade de mensurar a capacidade contributiva do contribuinte), dada

as particularidades da exação (natureza e técnica de incidência). Já o segundo objetivo visa

adequar o artigo 145, parágrafo 1º, às atividades extrafiscais do Estado, permitindo­o agir na

busca de outros ideais que refogem à simples arrecadação de tributos.

Portanto, o princípio da capacidade contributiva, longe de ser considerado uma

norma meramente programática, deverá ter sua aplicação obrigatória sempre que isto for possível. Desse modo, necessária uma postura atuante do legislador para que faça valer o comando constitucional e assim possa garantir que as imposições tributárias nasçam

52 Nota de DERZI, Misabel in BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tr ibutar . 7. ed. rev. e comp. à luz da Constituição de 1998 até a Emenda Constitucional n. 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.694.

53 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de dir eito financeiro e tr ibutár io. 13 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.96.

29

respeitando as particularidades de cada contribuinte, observância esta essencial para a

efetivação de uma tributação mais justa e adequada.

2.2.2 Tributos sujeitos ao princípio da capacidade contributiva

Afora a mudança de disposição da expressão “sempre que possível”, o texto

constitucional de 1988 também inovou em relação ao de 1946 no que pertine ao seu alcance.

Na Constituição pretérita o comando dirigia­se expressamente a todos os tributos, já a atual prevê sua aplicação somente a impostos. Nesse contexto, necessário analisar se a aplicação do artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal realmente se limita ao âmbito dos impostos.

José Domingues de Oliveira 54 , em sua obra sobre o princípio da capacidade

contributiva, é enfático ao defender que tal preceito incide sobre todas as espécies tributárias,

não se limitando apenas aos impostos. Em suas razões, o referido autor defende que se

somente certo tipo de tributo tivesse que respeitar tal comando estar­se­ia concebendo “um

sistema tributário apenas ‘parcialmente’ adequado à capacidade contributiva”, o que

realmente não pode prevalecer.

Isso ocorre porque ao se limitar o campo de atuação do princípio da capacidade

contributiva gera­se a redução da incidência do primado da igualdade no campo do direito

tributário, o que fere e fulmina o sistema como um todo.

Nesse contexto, constata­se que a aplicação do princípio da capacidade

contributiva não deve se limitar somente aos impostos, podendo ser estendido às demais

espécies tributárias. Esse, inclusive, foi o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal

no julgamento da ADI n. 948/GO, ao aplicar o preceito à taxa judiciária progressiva, e no RE n. 232.393, quando tratou da taxa de lixo do Município de São Carlos, entre outros.

Em seu voto no referido recurso extraordinário, o Relator Ministro Carlos

Velloso 55 aduz que:

(...) deve­se entender que o cálculo da taxa de lixo, com base no custo do serviço

54 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 47.

55 STF, RE 232393, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 12/08/1999, DJ 05­04­ 2002 PP­00055 EMENT VOL­02063­03 PP­00470, p. 479.

30

dividido proporcionalmente às áreas construídas dos imóveis, é forma de realização da isonomia tributária, que resulta na justiça tributária (C.F., art. 150, II). É que a presunção é no sentido de que o imóvel de maior área produzirá mais lixo do que o imóvel menor. (...). A presunção é razoável e, de certa forma, realiza, também, o princípio da capacidade contributiva do art. 145, p.1º, da C.F., que, sem embargo de ter como destinatária os impostos, nada impede que possa aplicar­se, na medida do possível, às taxas. (grifos nossos)

Assim, verifica­se que apesar de o artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição

Federal, dispor a obrigatoriedade do respeito à capacidade contributiva apenas para impostos,

tal preceito também deverá ser observado às demais espécies tributárias sempre que as

particularidades dessas exações permitirem.

2.2.3 Capacidade contributiva e extrafiscalidade

Tecidas as considerações acerca da aplicação do princípio da capacidade

contributiva a todas as espécies tributárias, necessária a verificação se esse preceito se

coaduna quando a atividade tributante tiver finalidade extrafiscal.

A tributação em regra geral possui natureza fiscal, ou seja, visa à arrecadação de

recursos para o custeio das necessidades públicas. No entanto, os tributos também podem

servir como forma de atingir fins extrafiscais, que fogem do ideal meramente arrecadatório,

almejando ideais outros, que têm por objetivo estimular, induzir ou até mesmo coibir certos

comportamentos 56 .

Com a instituição cada vez mais freqüente de tributos com finalidade extrafiscal,

indaga­se se a limitação constitucional da capacidade contributiva incidiria ou não sobre tais

exações.

Um primeiro entendimento defende a total incompatibilidade entre a tributação

extrafiscal e o princípio da capacidade contributiva. Desse modo, ao utilizar da

extrafiscalidade, excepcionar­se­ia o primado da capacidade contributiva, já que tais institutos

não se coadunam. José Domingues de Oliveira 57 critica essa posição, já que este modo de

pensar, conforme ele, acabaria por retirar toda a utilidade prática do preceito da capacidade

56 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contr ibutiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p.71.

57 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 54.

31

contributiva.

Para o referido doutrinador há sim efetiva compatibilidade entre os dois institutos

uma vez que “a destinação extrafiscal o tributo não altera a natureza jurídico­constitucional do

instituto e não libera o legislador para, através dele, burlar a Constituição e o senso comum de

justiça” 58 .

Com efeito, salvo melhor juízo, este parece ser o melhor entendimento.

No entanto, é necessário observar que a aplicação do preceito da capacidade

contributiva no âmbito da tributação extrafiscal deverá se operar de modo atenuado. Essa

incidência mais tênue ocorre porque na extrafiscalidade buscam­se outras finalidades

públicas, como forma de salvaguardar direitos constitucionais diversos, que se afastam do

ideal da tributação segundo a riqueza.

Regina Helena Costa 59 corrobora de tal entendimento ao expor que:

O princípio da capacidade contributiva cede ante a presença de interesse público de natureza social ou econômica que possa ser alcançado mais facilmente se se prescindir da graduação dos impostos consoante a capacidade econômica do sujeito.

(...) Nesses casos teremos derrogações parciais do princípio, pois o postulado da capacidade contributiva não resta completamente afastado quando da tributação extrafiscal.

Mas, em que pese estas possíveis derrogações parciais do princípio da capacidade

contributiva face à extrafiscalidade, tal preceito continua a valer em sua integralidade no que

tange aos limites da tributação, ou seja, proibindo que a exação tributária atinja o mínimo vital

do contribuinte e que alcance níveis confiscatórios.

Nesse contexto, definidas as aplicações do princípio da capacidade contributiva

no ordenamento jurídico brasileiro fica evidente que tal preceito constitui um dos principais

limites ao poder de tributar, já que condiciona a aplicação da norma às especificidades do

sujeito passivo da relação jurídica tributária.

Com efeito, o ideal da capacidade contributiva sustenta todo o Sistema Tributário

Nacional e visa precipuamente a manter o mínimo vital do contribuinte, evitar que a

58 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade Contr ibutiva: Conteúdo e Eficácia do Pr incípio. 1 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 55.

59 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contr ibutiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p.72­73. (grifos nossos).

32

tributação atinja nível confiscatório e não cercear outros direitos fundamentais. Fixam­se,

assim, limites para a tributação, os quais serão agora pormenorizados.

2.3 A aplicação do princípio da capacidade contributiva como limite à tributação

Conforme visto, as limitações constitucionais do poder de tributar devem ser

respeitadas no momento de se auferir a capacidade contributiva de um contribuinte. Os

preceitos insculpidos pela Constituição Federal acerca do Sistema Tributário Nacional

direcionam a atuação do Estado Fiscal para que esta seja realizada de modo justo e igualitário.

Assim, busca­se que a tributação seja feita de acordo com a razoabilidade e que respeite os

direitos fundamentais do contribuinte.

Os parâmetros limitadores da atividade tributante se apresentam em dois

patamares: em seu patamar mínimo busca­se o respeito à dignidade da pessoa humana,

resguardando da tributação o mínimo existencial necessário à sobrevivência do indivíduo; já

no seu patamar máximo protege­se o contribuinte do tributo com efeito de confisco, ou seja,

evita­se que a tributação seja tão excessiva que aniquile a propriedade do contribuinte.

Dessa forma, pretende­se que ao se respeitar o princípio da capacidade

contributiva a tributação possa se operar de forma justa, salvaguardando o montante

necessário a garantir o mínimo vital do contribuinte e impedindo que a carga tributária não

exceda ao limite máximo, atingindo níveis considerados confiscatórios.

Com efeito, a atividade tributária somente será considerada legítima e

constitucional se realizada nos limites razoáveis estabelecidos pela Constituição, ou seja, uma

tributação que não atinja nem o limite mínimo, nem o máximo possível. Seguidas tais

diretrizes o ideal da justiça fiscal estará mais perto de ser alcançado, garantindo uma

tributação que além de satisfazer as necessidades públicas, seja apta também a diminuir as

desigualdades sociais e a promover o devido desenvolvimento econômico do país.

Nesse contexto, necessária a análise detalhada da relação entre o princípio da

capacidade contributiva e seus limites estabelecidos, ressaltando a proteção do mínimo

existencial como limite mínimo e o da vedação ao confisco como limite máximo.

33

2.3.1 O princípio da capacidade contributiva e o mínimo existencial

A teoria do mínimo existencial tem origem alemã, onde em 1873 desenvolveu­se

uma primeira noção do instituto ao se resguardar da tributação um valor mínimo que fosse

necessário à subsistência do cidadão. A partir desse primeiro embrião, a doutrina alemã

passou a aprofundar a teoria, tendo influenciado também outros países. Mas, foi no segundo

pós­guerra que o primado do mínimo existencial se consolidou, passando a estar presente nas

principais Constituições da época.

A Constituição Brasileira de 1946, seguindo o entendimento mundial, trouxe em

seu artigo 15, parágrafo 1º, a regra de que “São isentos do imposto de consumo os artigos que

a lei classificar como o mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento

médico das pessoas de restrita atividade econômica” 60 . Nos textos constitucionais seguintes,

apesar da importância em se proteger o mínimo vital, não houve mais previsão acerca de tal

imunidade.

O constituinte brasileiro de 1988 também não adotou a teoria do mínimo

existencial de forma expressa. No entanto, isso não significa que tal primado não tenha

aplicação no ordenamento pátrio. A proteção do mínimo existencial pode ser perfeitamente

extraída da Constituição Federal através do princípio da dignidade da pessoa humana e dos

preceitos preconizados pelo Estado Social. Diante dessa interpretação principiológica,

consolida­se o ideal defendido por Klaus Tipke 61 de que “o Estado não pode, como Estado

Tributário, subtrair o que, como Estado Social, deve devolver”.

A relação entre o princípio da capacidade contributiva e o mínimo existencial se

desenvolve na medida em que o primeiro protege o segundo. Há entre os institutos uma

ligação inseparável que limita o poder de tributar do Estado.

O Direito Tributário Moderno ao se basear na sensível proteção dos direitos

fundamentais do contribuinte deve resguardar da tributação o mínimo vital, não podendo

adentrar nessa esfera, sob pena de inconstitucionalidade. Isso ocorre porque a grande

preocupação da tributação contemporânea não se cinge apenas à função arrecadatória, tendo

60 PEZZI, Alexandra Cristina Giacomet. Dignidade da pessoa humana: mínimo existencial e limites à tributação no estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008, 120.

61 YAMASHITA, Douglas; TIPKE, Klaus. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contr ibutiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.

34

também por escopo a promoção de uma verdadeira justiça fiscal apta a distribuir riquezas e

garantir o desenvolvimento econômico.

Dessa forma, com base nos preceitos da teoria da justiça fiscal, defende­se que a

capacidade contributiva só se apresentará quando a riqueza do contribuinte ultrapassar o

mínimo necessário para a sua sobrevivência. Assim, a possibilidade de tributação não ocorre

com a simples existência de riqueza, sendo imperioso que tal riqueza exceda ao mínimo

necessário para a realização dos direitos constitucionais básicos 62 . Nesse contexto, deve­se

obedecer a regra da intributabilidade do patamar mínimo, já que na realidade não há aqui

sequer capacidade contributiva.

Luciano Amaro 63 expõe com precisão a relação existente entre capacidade

contributiva e intributabilidade do mínimo existencial:

O princípio da capacidade contributiva inspira­se na ordem natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo modo em que terra seca não adianta abrir poço à busca de água. Porém, na formulação jurídica do princípio, não se quer apenas preservar a eficácia da lei de incidência (no sentido de que esta não caia no vazio, por falta de riqueza que suporte o imposto); além disso, quer­se preservar o contribuinte, buscando evitar que uma tributação excessiva (inadequada à sua capacidade contributiva) comprometa os seus meios de subsistência, ou o livre exercício da profissão, ou a livre exploração de sua empresa, ou o exercício de outros direitos fundamentais, já que tudo isso relativiza sua capacidade econômica.

Em relação à definição do montante a ser considerado como mínimo para uma

existência digna, não é razoável conceber um quantum fixo. Isso ocorre porque o valor varia

conforme as necessidades da população em determinada época, do local, da conjuntura

econômica, entre outros fatores. Assim, o mais correto é considerá­lo como um conceito

elástico, a ser definido no caso concreto.

Klaus Tipke 64 , na busca de estabelecer um parâmetro limítrofe, entende que o

mínimo existencial não pode ficar abaixo do mínimo considerado pela Seguridade Social. Já

Fábio Goldschmidt 65 defende a utilização do salário mínimo, definido pelo artigo 7º, inciso

IV, da Constituição Federal, como montante intributável, já que destinado a satisfazer as

62 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. O pr incípio do não­confisco no dir eito tr ibutár io. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p.169.

63 AMARO, Luciano. Direito tr ibutár io brasileiro. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p.138.

64 YAMASHITA, Douglas; TIPKE, Klaus. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contr ibutiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.

65 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. Op. cit., p. 170.

35

necessidades básicas do indivíduo (“mínimo existencial individual”) e de sua família

(“mínimo existencial familiar”).

Deve­se também entender que a proteção do mínimo vital não se limita à

população de baixa renda ou a uma classe específica, devendo ser uma garantia aplicável a

todas as pessoas 66 , já que todos têm o direito de ver respeitada a sua dignidade.

Percebe­se, então, que não há capacidade contributiva quando apenas existe o

mínimo existencial 67 . Só depois de ultrapassado tal limite é que o contribuinte poderá passar a

sofrer a incidência tributária.

Deste modo, a tributação só será legítima (e constitucional) se salvaguardar o

montante necessário para que o indivíduo viva com dignidade e, uma vez ultrapassado tal

montante, deverá ainda haver o devido respeito às garantias do contribuinte, em especial ao

princípio da capacidade contributiva. Apenas assim ter­se­á um sistema tributário justo, apto a

garantir e efetivar os direitos fundamentais daqueles que sofrem a imposição fiscal.

2.3.2 A capacidade contributiva e a proibição do confisco

Estabelecidos os limites mínimos de tributação como forma direta de proteger o

montante necessário para as necessidades vitais do indivíduo e por conseqüência proteger sua

própria dignidade, necessário se faz agora estabelecer qual é o limite máximo no qual o

Estado não poderá ultrapassá­lo ao exercer a atividade fiscal.

Não se pode ignorar que no atual estágio do Estado Democrático de Direito o

indivíduo ganha papel principal de proteção, tanto que o texto constitucional de 1988 já

começa dispondo acerca dos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, é o Estado que

passa a existir em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a

finalidade recíproca, e não o meio da atividade estatal 68 .

66 SANTIN, Janaína Rigo. Princípio da capacidade contributiva e mínimo isento: análise no ordenamento jurídico brasileiro. Revista da AJURIS: Associação dos J uízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 36, n. 113, p. 195­207, mar. 2009, p. 198.

67 VAREJÃO, José Ricardo do Nascimento. Pr incípio da igualdade e dir eito tr ibutár io. São Paulo: MP, 2009, p. 188.

68 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.68.

36

Todavia, não se pode esquecer também que a satisfação das necessidades públicas

somente pode se operar se houver recursos que financiem a atuação estatal. Ocorre que tais

necessidades crescem avassaladoramente e, por conseguinte, eleva­se a carga fiscal na mesma

medida.

Desse modo, imperioso o estabelecimento de critérios de tributação capazes de

limitar a ingerência fiscal sobre o contribuinte, de modo a evitar o total aniquilamento do

patrimônio daquele que sofre a imposição fiscal. Nesse contexto, surge o princípio da vedação

do confisco como um limite à tributação.

Confiscar, segundo definição traduzida do Black’s law dictionary 69 , significa um ato de apreender a propriedade em prol do Fisco, sem que seja oferecida ao prejudicado

qualquer compensação em troca. Apresenta caráter de penalização, resultante da prática de

algum ato contrário à lei.

Assim, pode­se perceber que o tributo e o confisco caracterizam­se por buscar fins

opostos. Enquanto a exação tributária, de acordo como definida pelo artigo 3º, do Código

Tribunal Nacional, não pode ser instituída em decorrência de sanção de ato ilícito, o confisco

está invariavelmente ligado a essa noção. Já em relação ao alcance desses institutos, percebe­

se que “o tributo limita a propriedade, e se justifica para a própria garantia do direito de

propriedade, ao passo que o confisco subtrai e aniquila a propriedade” 70 .

Mas, em que pese tais incompatibilidades, fácil é perceber que os conceitos se

aproximam quando se buscam estabelecer limites razoáveis à tributação. É na fixação de um

“patamar máximo” que se aplica o instituto do confisco no âmbito do direito tributário,

emprego este que ora melhor se analisa.

A Constituição Federal de 1988 não se olvidou de aplicar o ideal confiscatório na

seara tributária ao expressamente prever como importante limitação ao poder de tributar a

regra de que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar

tributo com efeito de confisco (artigo 150, inciso IV).

69 BLACK, Henry Campbell. Confiscation. Law dictionary. 6. Ed. St. Paul: West Publishing, 1990 apud GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. O pr incípio do não­confisco no dir eito tr ibutár io. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 46.

70 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. Op. cit., p. 48.

37

Misabel Derzi 71 , ao comentar o referido dispositivo, assim se manifesta:

“tecnicamente, tributo e confisco não se confundem, mas o que no art. 150, inciso IV, se veda

é que a lei regule o tributo de modo que ele gere os mesmos efeitos econômicos que o

confisco geraria”.

Na realidade, o comando constitucional explicitado não busca proibir o confisco,

mas sim evitar que uma tributação excessiva redunde em penalização 72 . Dessa forma, quer­se

impedir que a exigência da carga tributária seja tão vultuosa que acabe gerando o mesmo

efeito que o confisco geraria.

Nesse viés, ressalta­se que em certas ocasiões o texto constitucional de modo

excepcional permite a confisco (artigo 5º, inciso XLVI, alínea “b”, e artigo 243, parágrafo

único). Assim, o confisco não é de todo proibido pela Lei Fundamental. Entretanto, a análise

aqui será centrada apenas no ideal transmitido pelo artigo 150, inciso IV, ou seja, à absoluta

vedação da utilização do tributo com efeito de confisco.

A proteção constitucional busca coibir o confisco na seara tributária, entendido

este como aquele que acaba por aniquilar a propriedade, atingindo­a na sua substância e

essência 73 . E mais, busca também proteger o contribuinte da tributação com efeito de confisco, que é aquela que “afronta a sua própria natureza jurídica e converte a hipótese de incidência

em mero pretexto para a tomada do patrimônio do contribuinte, sem indenização e sem que ao

mesmo seja imputado qualquer ilícito” 74 .

Dessa forma, deve­se compreender o conceito de “efeito de confisco” de modo

mais abrangente do que o do simples confisco, já que o primeiro “destina­se a atacar não

somente o confisco disfarçado de tributação, mas também toda a imposição que, mediata ou

indiretamente, redunde na supressão de parte substancial da propriedade” 75 .

71 Nota de DERZI, Misabel in BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tr ibutar . 7. ed. rev. e comp. à luz da Constituição de 1998 até a Emenda Constitucional n. 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.573.

72 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. O pr incípio do não­confisco no dir eito tr ibutár io. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 49.

73 TORRES, Ricardo Lobo. Direitos fundamentais do contr ibuinte. São Paulo, 200, p, 170 apud GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. Op. cit., 49. 74 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. Op. cit., p. 49. 75 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. Op.cit., p. 50.

38

O direito de propriedade deve ser protegido pelo Estado pois é a própria

propriedade que por essência guarnece a tributação. Se não houver propriedade como haverá

patrimônio a ser tributado? Por isso, defende Ricardo Lobo Torres 76 que a relação entre

direito de propriedade e o direito tributário deve ser entendida como dialética, havendo entre

tais direitos uma verdadeira dependência recíproca.

Claro que não se está a dizer que a proteção à propriedade seja absoluta. O que se

procura é evitar que essa mesma propriedade seja atingida em seu limite máximo 77 .

Ressalva­se, todavia, que muito embora seja o direito de propriedade o principal

enfoque da proteção da vedação ao confisco, outros direitos são salvaguardados, tais como a

livre iniciativa, exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, o desenvolvimento

econômico, o exercício de atividades empresariais e industriais, entre outros.

Na realidade, o princípio do não­confisco engloba todos os direitos fundamentais,

já que representa “o elo entre a tributação e os demais direitos constitucionais; tem a função

de dizer que o sistema tributário não pode vir em prejuízo daqueles” 78 .

Ao passo que o mínimo existencial significa o limite mínimo para que possa haver

tributação, o princípio do não confisco relaciona­se ao seu limite máximo. Nessa senda, se a

capacidade contributiva não pode ser auferida quando a riqueza estiver dentro do mínimo

vital, o tributo também não poderá ser tão excessivo a ponto de ir além dessa capacidade, sob

pena de ser considerado confiscatório.

Esses limites – mínimo e máximo – deverão servir de norte ao legislador no

momento de instituir a norma tributária. Mas, conforme tratado no tópico relativo ao mínimo

existencial (item 2.3.1), não há como antever e estabelecer um parâmetro fixo, no qual a partir

de tantos “x” o tributo passa a ser considerado confiscatório. Esse não é um preceito

matemático, pois é influenciado por diversos fatores que transmudam conforme a época,

local, economia, etc..

76 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de dir eito financeiro e tr ibutár io. 13 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.66.

77 PEZZI, Alexandra Cristina Giacomet. Dignidade da pessoa humana: mínimo existencial e limites à tributação no estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008, 107.

78 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. O pr incípio do não­confisco no dir eito tr ibutár io. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 61.

39

Alguns doutrinadores defendem, ainda, que o limite a ser considerado para efeito

de confisco deve levar em conta a totalidade da tributação sofrida pelo contribuinte, o que

dificulta mais a fixação de um parâmetro único 79 . Entretanto, salvo melhor juízo, deve­se dar

prevalência ao entendimento que defende que o limite confiscatório não vem pré­fixado na

norma. Na realidade, somente pela análise in concreto que poderá se definir se há ou não uma tributação exarcebada.

Ressalte­se, entretanto, que em que pese o legislador tenha liberdade de atuação

entre os limites estabelecidos pela capacidade contributiva e que esses limites não venham

pré­fixados, não é razoável levar a tributação à margem máxima, à beira do confisco, pois

segundo Klaus Tipke 80 , isso seria atuar de modo imprudente, tanto sob o ponto de vista

econômico, quanto social.

É o primado da razoabilidade que deve nortear a tributação. Quanto ao tópico,

impede trazer a crítica de José Augusto Delgado 81 :

Toda carga tributária que ultrapasse o princípio da razoabilidade em comparação com o patrimônio financeiro e econômico do contribuinte e que o impeça de desenvolver as condições de sua cidadania, em qualquer dos níveis permitidos, pessoal ou profissional, tem características de confisco.

Há de se considerar que a jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal Federal, em seus últimos pronunciamentos, tem acenado para a fixação do entendimento de que a exigência tributária no Brasil alcança limites que não podem mais ser aumentados. É uma maneira sutil de preparar a conscientização jurídica para considerar confisco algo mais que venha impor ao contribuinte maiores responsabilidades tributárias, pela incapacidade de suportá­las.

Conclui­se, assim, pela importância do princípio da capacidade contributiva como

“balança” da tributação, já que é através desse preceito que se afasta a exação tributária de

seus pólos extremos, seja quando atinja o mínimo vital, seja quando vá além, alcançando

níveis confiscatórios.

79 Essa é a posição de Ives Granda Martins (MARTINS, Ives Granda da Silva. Direitos fundamentais do contribuinte. In: ___ (Coord.). Direitos fundamentais do contr ibuinte. Pesquisas Tr ibutár ias. Nova Série, 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 49 apud PEZZI, Alexandra Cristina Giacomet. Dignidade da pessoa humana: mínimo existencial e limites à tributação no estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008, 111).

80 Ressalta o referido autor que “a experiência ensina que com a elevação da carga tributária cresce a resistência aos tributos – por meio da estruturação fática redutora de tributos, mediante a exploração de lacunas legais, por meio de elisão fiscal, por meio de sonegação fiscal e mediante a transferência de fontes tributárias para o Exterior”. (YAMASHITA, Douglas; TIPKE, Klaus. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contr ibutiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 48).

81 DELGADO, José Augusto. Os direitos fundamentais do contribuinte. Revista Fórum de Direito Tributár io: RFDT, v. 3, mai/jun 2003.

40

É pela capacidade contributiva que se define a esfera de atuação do legislador.

Mas, muito mais do que atuar dentro desse parâmetro, é vital, ainda, que a carga tributária

brasileira seja iluminada pelo princípio da razoabilidade, pois só assim o postulado da

dignidade da pessoa humana será respeitado e o ideal da justiça fiscal atingido.

2.4 O princípio da capacidade contributiva como meio de promoção de justiça fiscal

O dever de pagar tributos já é uma imposição consolidada na sociedade moderna.

No entanto, muito embora a tributação seja hoje uma obrigação que deriva da lei e até mesmo

da Constituição Federal, não significa necessariamente que seja justa.

Assim sendo, para que o ordenamento jurídico seja bem aplicado é essencial que o

Sistema Tributário Nacional se valha de todos os preceitos dispostos na Constituição Federal,

dando especial atenção às limitações constitucionais ao poder de tributar. Agindo assim,

estará apto a se tornar um verdadeiro promotor de justiça fiscal.

Todo o Estado de Direito tem o dever de estabelecer um Direito justo e aqui se

inclui também a necessidade de se construir um Direito Tributário justo 82 . Nesse contexto

surge a importância do princípio da justiça fiscal para o ordenamento jurídico. Tal preceito

tem por objetivo atuar como: a) princípio estruturante do sistema jurídico­tributário; e b)

princípio hermenêutico fundamental de aplicação das normas jurídicas tributárias 83 .

Segundo os ensinamentos de Paulo Caliendo 84 , a justiça fiscal como princípio

estruturante deve ser entendida como preceito no qual outros princípios derivam e buscam

orientação. Ainda, caracteriza­se por direcionar a instituição e aplicação da norma tributária,

exigindo que ela tenha um valor ou fim, abstendo­se de atuações sem fundamentos éticos ou

meramente formais.

Também a justiça fiscal deve ser entendida como princípio hermenêutico que deve

82 YAMASHITA, Douglas; TIPKE, Klaus. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contr ibutiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 15.

83 CALIENDO, Paulo. Da justiça fiscal: conceito e aplicação. Revista de Interesse Público, Porto Alegre, n. 29, p. 159­196, jan./fev. 2005, p. 195.

84 Ibid., p. 196.

41

atuar como verdadeiro preceito de aplicação normativa, devendo ser necessariamente

observado no momento de concreção e interpretação da norma.

Estabelecido o vital papel que a justiça fiscal exerce perante o ordenamento

jurídico, impende ressaltar a fundamental importância do princípio da capacidade contributiva

na concreção da justeza na tributação.

O princípio da capacidade contributiva tem sua relevância destacada no sistema

tributário por se tratar de um instrumento que legitima os meios de discriminação na

tributação, além de possibilitar a graduação dos tributos. Efetivamente, é através desse

preceito que se poderá estabelecer uma tributação mais equitativa, baseada nos ideais de

justiça fiscal. Isso ocorre porque ao se respeitar a real capacidade contributiva daquele que

sofre a exação estará se limitando o âmbito de atuação do Estado, impondo restrições à

atividade tributária.

Como visto, o princípio da capacidade contributiva atua como um “balizador” no

exercício da atividade fiscal, estabelecendo o limite mínimo e máximo da tributação. Pelo

limite mínimo, deve­se respeito ao montante necessário à existência do indivíduo,

salvaguardando da tributação a quantia necessária à sua subsistência digna. Já pelo limite

máximo, tem­se a impossibilidade da tributação atingir níveis tão elevados que sejam

considerados confiscatórios.

Dessa forma, busca­se estabelecer que a capacidade contributiva do contribuinte

só estará presente quando sua renda ultrapassar a quantia necessária a sua sobrevivência. Por

outro lado, a tributação não poderá ser excessivamente alta, a ponto de aniquilar a liberdade e

a propriedade do contribuinte, sob pena de ser considerada confiscatória.

No entanto, não apenas estes limites de tributação são suficientes para garantir a

efetivação da justiça fiscal. Necessário também que a aplicação do princípio da capacidade

contributiva se dê de modo razoável, buscando estabelecer uma tributação total que seja

equitativa e ponderada para aqueles que sofrem a exação fiscal.

Ocorre que no atual cenário da tributação brasileira o princípio da capacidade

contributiva não tem a devida aplicação, sendo muitas das vezes completamente ignorado ou

deturpado tanto pelo legislador, quanto pelo aplicador da norma tributária. Sucede que ao se

tributar em desrespeito à capacidade contributiva está se afastando do ideal da justiça fiscal, o

que acaba por gerar ainda mais desigualdades sociais e violar a dignidade e outros direitos

42

fundamentais do contribuinte.

Nessa senda, torna­se vital para o Sistema Tributário Nacional que o princípio da

capacidade contributiva tenha uma correta aplicação.

Para isso, essencial é a análise de como o Supremo Tribunal Federal vem

aplicando o princípio da capacidade contributiva em seus julgados. Quanto ao tópico, utilizar­

se­á dos estudos feitos por Leonel Cesarino Pêssoa 85 acerca da jurisprudência proferida pela

Suprema Corte acerca da questão.

Da análise dos acórdãos sobre o tema, constata­se que o princípio da capacidade

contributiva é utilizado pelas partes litigantes de duas diferentes formas. De um lado, serve

como fundamento de defesa dos contribuintes na busca da preservação de seus direitos

fundamentais. De outro lado, é alegado pelo Fisco com o objetivo de embasar a arrecadação

fiscal sobre determinado fato.

Assim, utiliza­se do princípio da capacidade contributiva para proteger fins

diversos. Os contribuintes o utilizam como forma de garantir que não irão ser tributados além

de suas capacidades contributivas. Já o Fisco o emprega para garantir que sempre onde houver

expressão de capacidade contributiva, mesmo que mínima, haverá tributação.

Dessas alegações, constata­se pela análise da jurisprudência que os Ministros do

Supremo Tribunal Federal dão preferência, na maioria das vezes, aos interesses do Fisco,

garantindo que sempre onde houver algum sinal de capacidade contributiva pode haver

tributação.

Ressalte­se, entretanto, para constar, que os interesses dos contribuintes são

salvaguardados pelo Supremo Tribunal Federal em certos casos, como por exemplo, no que

tange à cobrança progressiva dos impostos reais com base na capacidade contributiva.

Inclusive, há a Súmula n. 656 que consolida tal entendimento acerca da impossibilidade de tal

cobrança para o imposto de transmissão de bens imóveis ­ ITBI. Com relação ao imposto de

transmissão causa mortis e doação – ITCMD, a questão teve sua repercussão geral

reconhecida no recurso extraordinário n. 562.045, estando pendente de julgamento.

Mas, na realidade, grande parte dos julgados adota o princípio da capacidade

85 PESSÔA, Leonel Cesarino. O princípio da capacidade contributiva na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito GV, São Paulo, n.9, p. 95­106, jan./jun. 2009.

43

contributiva como fundamento para a tributação, salvaguardando assim a atuação fiscal. Essa,

inclusive, é a conclusão de Leonel Cesarino Pessôa 86 , após analisar cerca de setenta acórdãos

da Suprema Corte sobre o tema, ao constatar que nesses julgados “o princípio da capacidade

contributiva foi utilizado pelos ministros do STF, em alguns poucos acórdãos, para proteger o

interesse do contribuinte e quase sempre para proteger o interesse do fisco”.

Nesse contexto, defende­se uma inversão de entendimento, inclusive aquele que

vem sendo adotado pelo Supremo Tribunal Federal, acerca do princípio da capacidade

contributiva como forma de efetivação do primado da justiça fiscal. Entende­se que tal

preceito deve ser aplicado de modo a proteger os direitos fundamentais do contribuinte,

tornando a tributação mais equitativa e equilibrada. Deve­se, portanto, buscar restringir a

utilização da capacidade contributiva como fundamento para que toda e qualquer

manifestação de riqueza reste tributada, passando a utilizá­la como um efetivo limite à

tributação.

Ressalta­se que a aplicação do princípio da capacidade contributiva que aqui se

entende adequada não busca proteger o contribuinte apenas da incidência individualizada da

exação fiscal, mas sim resguardá­lo do montante global da carga tributária. Ou seja, defende­

se que os limites à tributação devam ser respeitados não só a cada tributo instituído e cobrado,

mas também em relação à totalidade da carga tributária suportada pelo contribuinte.

Porém, muito embora já haja na Constituição Federal certos parâmetros (mínimo e

máximo) para a tributação, o Brasil possui uma carga tributária total cada vez maior, que

cresce avassaladoramente ao passar dos anos, sendo hoje considerada uma das mais elevadas

do mundo.

E mais, a realidade tributária brasileira caracteriza­se por ser extremamente

desigual, pois a imposição fiscal tem maior impacto nas classes de renda mais baixa, sendo

que as classes de poder aquisitivo mais elevado pouco sofrem com os tributos. Isso ocorre

porque grande parte da arrecadação tributária se dá na tributação sobre o consumo, situação

na qual fica praticamente impossibilitada a verificação da real capacidade contributiva do

contribuinte indireto. Portanto, o que se tem é que os pobres acabam por comprometer

parcela muito maior de seu patrimônio do que aquela retida pelos ricos, constituindo numa

86 PESSÔA, Leonel Cesarino. O princípio da capacidade contributiva na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito GV, São Paulo, n.9, p. 95­106, jan./jun. 2009, p. 103.

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verdadeira distorção de conceitos.

Por outro lado, apesar da elevada carga tributária recolhida aos cofres públicos, a

contraprestação estatal não se apresenta em consonância com o montante arrecado, já que

oferece pouco ou mal os serviços que deveria oferecer. Tal situação reflete diretamente nos

menos abastados, que necessitam de uma atuação positiva do Estado para suprirem

necessidades como saúde, educação, entre outras.

Efetivamente, ao se estabelecer uma carga tributária cada vez mais excessiva, está

se violando não só o princípio da capacidade contributiva, mas também os direitos

fundamentais e a própria dignidade do contribuinte. Outro não é o entendimento de José

Delgado 87 ao defender que não é nem necessário invocar “conceitos modernos construidores

dos direitos fundamentais do contribuinte para assentar a afirmação de que a dignidade

humana e a cidadania estão sendo gravemente feridas por essa carga tributária que está sendo

imposta ao brasileiro”.

Portanto, o quadro da tributação hoje no Brasil está à beira de um colapso. Nessa

conjuntura, é grande o movimento a favor de uma profunda reforma tributária. No entanto,

muito mais do que se pensar em mudar a atual legislação tributária, entende­se necessário que

as normas já existentes sejam efetivamente aplicadas.

De nada adianta alterar o texto legal se os direitos fundamentais já previstos para

o contribuinte continuarem a ser ofendidos. Necessita­se sim de muitas mudanças, mas a

principal iniciativa do Estado deve se pautar em dar aplicabilidade às garantias já existentes

daquele que sofre a exação. Conforme Norberto Bobbio 88 já defendia o “problema

fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto justificá­los, mas o de

protegê­los”.

O princípio da capacidade contributiva, como visto, ganha grande destaque vez

que através desse preceito é possível distribuir e graduar a carga tributária de forma mais

equitativa, buscando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a redução das

desigualdades sociais e a promoção do desenvolvimento econômico.

87 DELGADO, José Augusto. Os direitos fundamentais do contribuinte. Revista Fórum de Direito Tributár io: RFDT, v. 3, mai/jun 2003.

88 Afirmação ressaltada por Ricardo Lobo Torres na apresentação do livro de Bobbio: BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. São Paulo: Campus, 1992, p.24 apud DELGADO, José Augusto. Op. cit.

45

Ainda, caracteriza­se tal instituto como meio limitador da atuação fiscal, impondo

limites mínimos e máximos possíveis para a tributação. Além de estabelecer limites, o

princípio da capacidade contributiva mostra­se fundamental também como forma de graduar

os tributos, fixando­o de acordo com as possibilidades de pagamento de cada contribuinte.

Também serve como parâmetro de razoabilidade para a aferição da carga tributária total

passível de ser suportada.

Portanto, clama­se por uma efetiva aplicação do princípio da capacidade

contributiva já que tal preceito caracteriza­se por ser um verdadeiro instrumento de concreção

do primado da justiça na tributação. Paulo Caliendo 89 corrobora tal entendimento ao dispor

que:

Tudo que produzir um agravamento da carga tributária de um contribuinte que não possuir um fundamento na sua capacidade contributiva e, por outro lado, não proceder a uma vinculação lógica entre o fator de discriminação adotado e a desigualdade de tratamentos jurídicos a que se procedeu será considerado como desarrazoado e inconstitucional.

Deve­se afastar a idéia de que meras alterações legislativas vão solucionar a

desigual forma de tributação atual. Necessário sim diversas mudanças, mas entende­se que a

principal atitude para efetivamente mudar a carga tributária distorcida que sem tem hoje deve

se pautar na completa alteração do modo de pensar o Sistema Tributário Nacional. Deve ele

ser entendido de forma global, em consonância com os demais preceitos constitucionais.

Dessa forma, será capaz de fazer propagar os objetivos e fundamentos presentes na

Constituição Federal.

Só assim o direito tributário brasileiro poderá ser considerado meio promotor de

justiça fiscal e dos direitos fundamentais do contribuinte. Normas já existem, resta, todavia,

que sejam bem aplicadas pois, como já dizia Ruy Barbosa o povo deve ser julgado não pela

Constituição que tem, mas pelo modo como a pratica 90 .

89 CALIENDO, Paulo. Da justiça fiscal: conceito e aplicação. Revista de Interesse Público, Porto Alegre, n. 29, p. 159­196, jan./fev. 2005, p. 177 (grifos nossos). 90 Pensamento trazido por Betina Treiger Grupenmacher in GRUPENMACHER, Betina Treiger. A reforma tributária e a afronta aos direitos fundamentais. Revista Fórum de Direito Tr ibutár io: RFDT, v.5, set./out. 2003.

46

CONCLUSÃO

Com a evolução da Teoria da Tributação, a relação jurídica tributária afastou­se

da idéia inicial de poder para hoje alcançar o status de pacto fundamental. Efetivamente,

como forma de garantir a manutenção do Estado Democrático de Direito, é necessário que o

ente estatal tenha recursos para subsidiar sua atuação. Por outro lado, como ser integrante da

sociedade, cabe ao cidadão o dever de contribuir para a mantença do Estado onde vive.

Assim, consolida­se a obrigação tributária como a principal fonte de recursos que

subsidia a atividade estatal, devendo esta imposição ser cumprida pelos contribuintes em

decorrência do “preço” a ser pago por pertencer a um Estado politicamente organizado.

A atuação estatal tem por fito garantir a busca do interesse público, buscando

atender as necessidades sociais. Outro não deveria ser seu enfoque, já que a Constituição

Federal de 1988 é clara ao trazer como um de seus objetivos principais a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária, na qual a proteção da dignidade da pessoa humana

apresenta­se como fundamento central da sociedade moderna.

Dessa forma, constata­se que a Lei Fundamental buscou proteger o cidadão,

conferindo para isso diversos direitos e garantias individuais, além de procurar limitar a

atuação estatal, que deverá sempre se pautar, como visto, na busca do interesse público.

No que tange ao Direito Tributário, a Constituição Federal não se absteve da

proteção do cidadão­contribuinte, trazendo um extenso rol de dispositivos que protegem o

sujeito passivo da relação jurídica tributária. Preocupou­se, ainda, em estabelecer uma série de

limitações ao poder de tributar. Nesse contexto, apresenta­se a tributação moderna como

instituto diretamente vinculado aos ditames constitucionais, devendo respeitá­los sob pena de

inconstitucionalidade.

No entanto, em que pese a preocupação em se estabelecer limites à atuação fiscal,

a realidade que se apresenta no cenário brasileiro é a de uma carga tributária cada vez maior

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que, além de ultrapassar qualquer parâmetro de razoabilidade, acaba por ofender diretamente

a própria dignidade do contribuinte.

Tal ofensa ocorre porque se tem um Sistema Tributário extremamente injusto e

desigual, no qual a população de baixa renda compromete parte muito maior de seu

patrimônio do que aquela suportada pela classe mais rica. Dessa forma, constata­se que o

Sistema Tributário Nacional apresenta­se de forma distorcida, já que são as classes mais

baixas que acabam por contribuir proporcionalmente mais.

Assim, a situação atual é marcada por uma carga tributária sem limites e por uma

tributação injusta e desproporcional que acabam por aumentar ainda mais as desigualdades

sociais do país, além de figurar como verdadeiro empecilho ao livre desenvolvimento

econômico brasileiro.

Nesse momento, apresenta­se o princípio da capacidade contributiva como um

dos principais instrumentos hábeis a estabelecer uma tributação mais justa. Tal preceito

caracteriza­se por ser um verdadeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão em

matéria tributária, tornando­se também essencial para a equalização do impacto da carga

tributária brasileira na seara individual do contribuinte.

Previsto no artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal, o princípio da

capacidade contributiva constitui­se em preceito apto a concretizar o princípio da igualdade

na seara do Direito Tributário. Assim, o referido dispositivo tem importância vital para o

Sistema Tributário Nacional.

O princípio da capacidade contributiva atua como importante instrumento

limitador da atividade tributária e protetor dos direitos dos contribuintes. É através desse

preceito que os tributos são graduados de acordo com a capacidade de cada qual. Além disso,

ele impõe limites para a tributação, buscando impedir que o montante destinado ao mínimo

existencial do indivíduo seja respeitado e que a carga tributária venha a atingir níveis

confiscatórios.

Dessa forma, o ente estatal somente poderá tributar se salvaguardar a parcela

necessária para que uma pessoa viva dignamente, esse é o seu parâmetro mínimo. Dentro

desse montante, sequer se pode considerar que há capacidade contributiva, sob pena de ofensa

direta à dignidade do indivíduo. Com relação ao parâmetro máximo, não pode a tributação

atingir níveis tão elevados que sejam considerados como confiscatórios, já que fere isso fere

48

de imediato os direitos fundamentais do contribuinte garantidos pela Constituição.

Nessa senda, constata­se que a tributação deverá respeitar o princípio da

capacidade contributiva, observando os limites mínimos e máximos estabelecidos. É através

desse preceito que se estabelece a esfera de atuação do legislador. Mas, muito mais do que

agir dentro dessa “parcela disponível”, é essencial que a atividade tributária atue com

razoabilidade.

Como visto, a carga tributária atual brasileira está longe de se mostrar razoável,

sendo considerada uma das mais altas do mundo. Ainda, tem­se no Brasil uma tributação

extremamente injusta e desigual. Assim, é grande o movimento a favor de uma ampla e

profunda reforma tributária. Entretanto, como aqui se buscou demonstrar, é evidente que

muitas mudanças devem ser realizadas. Ocorre que de nada adianta alterar a legislação se os

direitos e garantias do contribuinte já dispostos na Constituição Federal continuarem a ser

desrespeitados.

Muito mais do que ter o espírito renovador, é preciso que o legislador e o

aplicador da norma tributária passe a considerar o Sistema Tributário Nacional sob o espírito

do preceito da justiça fiscal e da proteção dos direitos dos contribuintes. E é nesse contexto

que se considera a vital importância de uma efetiva aplicabilidade do princípio da capacidade

contributiva como verdadeiro instrumento apto a concretizar a tão almejada tributação justa,

adequada e equilibrada.

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