Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar: análise ... · RESUMO . As limitações...

181
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar: análise de sua fundamentalidade ante a razão pública NITERÓI 2007

Transcript of Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar: análise ... · RESUMO . As limitações...

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EMSOCIOLOGIA E DIREITO

BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI

Limitações Constitucionais ao Poder deTributar: análise de suafundamentalidade ante a razão pública

NITERÓI 2007

2

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI

LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR: ANÁLISE DE SUA FUNDAMENTALIDADE

ANTE A RAZÃO PÚBLICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Professor Doutor Cláudio Pereira de Souza Neto

Niterói, 2007

3

BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI

LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR: ANÁLISE DE SUA FUNDAMENTALIDADE ANTE A RAZÃO PÚBLICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.

Aprovada em de setembro de 2007. BANCA EXAMINADORA: _____________________________________________________________________

Prof. Dr. Cláudio Pereira de Souza Neto – Orientador UFF

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. José Fernando de Castro Farias

UFF

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Lodi Ribeiro

UERJ

Niterói, 2007

4

A Deus, senhor de tudo e todos.

5

Agradecimentos

Ao meu orientador, Professor Doutor Cláudio Pereira de Souza Neto, pelas preciosas

palavras nos momentos mais importantes.

A todos os professores do PPGSD, dos quais tive a honra de colher lições

inestimáveis.

Aos funcionários do PPGSD, pela habitual cordialidade e eficiência.

À minha família, pelo apoio, amor e carinho constantes.

6

Pois a palavra do Senhor é reta, e toda a sua obra é segura. Ele ama a justiça e a eqüidade; a terra está cheia da fidelidade do Senhor. Sl. 33,4-5

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 14

1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. NORMAS SUPERCONSTITUCIONAIS E SEU EXCESSO. RISCO DE RUPTURA DO REGIME CONSTITUCIONAL. ______________________________________________________ 18

1.1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. O PROBLEMA DA SUPERCONSTITUCIONALIZAÇÃO EXCESSIVA DE NORMAS.______________________________________________________________________ 19

1.1.1 Democracia. A democracia deliberativa como democracia material (e não puramente formal). A necessidade de se garantir liberdades básicas para o exercício da democracia pelos cidadãos. ______________________________________________ 21 1.1.2 Cláusulas pétreas. Sua irrevogabilidade. A conseqüente tensão entre constitucionalismo e democracia.__________________________________________ 29

1.2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A OBSCURIDADE CONCEPTUAL NA DEFINIÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS DECORRENTES DISSO. EFEITOS NA PRÁTICA DEMOCRÁTICA. _________ 37

1.2.1 O contexto de elaboração da Constituição de 1988. A influência da conjuntura na consagração de direitos. _________________________________________________ 38

1.3 A FUNDAMENTALIDADE MATERIAL DA CONSTITUIÇÃO: NECESSIDADE DE PARÂMETROS DE JUSTIFICAÇÃO PAUTADOS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA. ESCOLHA PELA RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS. ______________________________________________________________ 44

2 A RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS COMO PARADIGMA PARA A DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO. ___________________ 49

2.1 CONCEITO INICIAL. _______________________________________________ 49

2.2 OS MOTIVOS E AS FORMAS PELOS QUAIS A RAZÃO É PÚBLICA. RAZÕES NÃO-PÚBLICAS. RAZÃO SECULAR.____________________________ 52

2.3 RAZÃO PÚBLICA. IDEAL DE RAZÃO PÚBLICA. A NOÇÃO DO DEVER DE CIVILIDADE.__________________________________________________________ 55

2.4 CARACTERES ESTRUTURAIS DA RAZÃO PÚBLICA.__________________ 58 2.4.1 As questões políticas fundamentais às quais se aplica a idéia de razão pública. _ 58 2.4.2 As pessoas a quem a idéia de razão pública se aplica. _____________________ 61 2.4.3 O conteúdo da razão pública, como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça. ____________________________________________________ 63

8

2.4.4 A aplicação das concepções razoáveis de justiça em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático. __ 66 2.4.5 A verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.______________________________ 68

2.5 O CONTEÚDO DA RAZÃO PÚBLICA, OBJETIVAMENTE. ______________ 70

2.6 A INCORPORAÇÃO DO DISSENSO À IDÉIA DE RAZÃO PÚBLICA. O CONSENSO MEDIATO, NA FORMA DE ACEITABILIDADE RACIONAL, COMO COROLÁRIO DA TOLERÂNCIA SOCIAL – REMESSA AO CONSENSO JUSTAPOSTO. _________________________________________________________ 74

2.7 A DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE ACORDO COM OS PARÂMETROS DEFINIDOS PELA RAZÃO PÚBLICA. ____________ 80

3 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. DISPOSITIVOS CORRELATOS A DIREITOS SUBJETIVOS DO CONTRIBUINTE. APRECIAÇÃO DESSAS REGRAS ANTE O CRITÉRIO LEGITIMADOR DA RAZÃO PÚBLICA. ____ 85

3.1 TRIBUTOS E DIREITOS DO CIDADÃO. A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO POPULAR, POR MEIO DO CONSENSO, PARA A OUTORGA E LIMITAÇÃO DE PODERES TRIBUTÁRIOS. ______________________________________________ 91

3.2 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR. A REDAÇÃO CONSTITUCIONAL. SEPARAÇÃO INICIAL ENTRE DISPOSIÇÕES RELATIVAS AOS INDIVÍDUOS DAS DEMAIS, RELATIVAS À ESTRUTURA DO SISTEMA FEDERAL. ___________________________________________________ 97

3.3 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR DESTINADAS A RESGUARDAR DIREITOS SUBJETIVOS AOS CIDADÃOS. CONSIDERAÇÕES DIANTE DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO. ______________________________ 100

3.3.1 A legalidade. ____________________________________________________ 100 3.3.2 A isonomia. _____________________________________________________ 108 3.3.3 A irretroatividade. ________________________________________________ 122 3.3.4 A anterioridade. __________________________________________________ 126 3.3.5 O não-confisco. __________________________________________________ 131 3.3.6 A vedação à utilização de tributos interestaduais ou intermunicipais como restrição do tráfego de pessoas.__________________________________________________ 138 3.3.7 A imunidade de impostos sobre os templos de qualquer culto. _____________ 140 3.3.8 A imunidade de impostos sobre os partidos políticos, sindicatos e entidades filantrópicas. _________________________________________________________ 143

3.3.8.1 Partidos políticos._____________________________________________ 144 3.3.8.2 Entidades sindicais dos trabalhadores. ____________________________ 147 3.3.8.3 Instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos. _______ 149

3.3.9 A imunidade de impostos sobre livro, jornal e periódico, bem como sobre o papel destinado à sua impressão. ______________________________________________ 152 3.3.10 O direito de conhecer a carga de impostos incidentes sobre o consumo. _____ 157

3.4 OBSERVAÇÃO FINAL QUANTO ÀS IMUNIDADES: ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS ABRANGIDAS, À VISTA DA RAZÃO PÚBLICA. ___________ 159

3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA FUNDAMENTALIDADE DAS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. ___________ 160

CONCLUSÃO ___________________________________________________________ 163

9

REFERÊNCIAS. _________________________________________________________ 171

10

ABREVIATURAS, SIGLAS, SÍMBOLOS E EXPRESSÕES

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

Apud Após

Art. Artigo

CF Constituição Federal

CONFAZ Conselho Nacional de Política Fazendária

Coord. Coordenador

Coords. Coordenadores

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil

EC Emenda Constitucional

Ed. Editor

Et alii E outros

ICMS Imposto sobre operações de Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços

de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação

Id. Ibid. Mesmo autor, mesma obra

IE Imposto sobre Exportação

II Imposto sobre Importação

IPI Imposto sobre Produtos Industrializados

IPTU Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana

IPVA Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores

ISS Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza

nº Número

org. Organizador

orgs. Organizadores

Op. Cit. Obra citada

p. Página

PNEF Programa Nacional de Educação Fiscal

pp. Páginas

§ Parágrafo

§§ Parágrafos

RDT Revista de Direito Tributário

ss. Seguintes

STF Supremo Tribunal Federal

11

v.g. Por exemplo

vol. Volume

12

RESUMO

As limitações constitucionais ao poder de tributar integram elemento importantíssimo do Estado democrático de Direito. Ao mesmo tempo em que ditam o modo pelo qual os tributos (principal fonte de manutenção do Estado) devem ser instituídos, limitam a potestade estatal a determinados requisitos formais de validade, assim como a proíbem com relação a certas pessoas ou coisas. Esses ditames costumam ser enxergados indistintamente como garantias individuais do contribuinte – conseqüentemente, imutáveis ao longo do tempo. No entanto, a imutabilidade dessas regras constitucionais vem sendo bastante discutida em virtude de sua contraposição ao exercício da democracia pelos cidadãos, os quais, mesmo querendo modificá-las para ampliar a ação estatal ou seus ritos, ficam proibidos ante a insuperável vedação de reforma de cláusulas desse talante. O presente trabalho investiga a efetiva fundamentalidade dessas regras constitucionais, ante o parâmetro da razão pública, nos moldes desenhados por John Rawls.

13

ABSTRACT

The constitutional limitations on the power of tax are a very important element of the Democratic State of Law. At the very same time they impose the way by which the taxes (major source of the State maintenace) might be collected, the constitutional limitations on the power of tax restraint this power to some formal requirements of validity, as well as they forbid it regarding to some people or things. These rules are usually seen altogether as individual taxpayers guarantees – and so, perennial. However, this character of these constitutional rules is being highly discussed because of its opposition to the participation on democracy by the citizens, who, even willing to change these rules so the state could increase its taxation action or its rituals, remain tied by the supreme prohibition of reform. This research investigates the real fundamentality of the constitutional limitations on the power of tax, before the criteria of public reason conceived by John Rawls.

14

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa se destina a investigar as limitações constitucionais ao poder de

tributar que conferem direitos subjetivos aos cidadãos, sob o prisma do princípio democrático,

a fim de estabelecer um elo entre o direito tributário, a teoria da constituição e a filosofia do

direito.

A doutrina jurídica, em sua grande maioria, ao discorrer sobre as limitações

constitucionais ao poder de tributar, pouco se dedica à análise das normas constitucionais

tributárias em face da teoria da constituição – e muito menos ainda em face da filosofia do

direito. Talvez pela idéia de que a autonomia de cada ramo da ciência do Direito pressupõe

um estudo compartimentado das suas disciplinas (em particular, da tributação), talvez por

inspirações positivistas (que de há muito dominam o chamado Direito Público), a doutrina

jurídica tributária adotou um viés essencialmente formalista.

Diante disso, as regras constitucionais relativas a tributos passaram a ser enxergadas

essencialmente sob o ponto de vista técnico-normativo, o que reduziu a tarefa da maior parte

dos doutrinadores a retratar o significado de cada dispositivo constitucional e suas

implicações no ordenamento jurídico, além de abordar como a jurisprudência – basicamente

do Supremo Tribunal Federal – se manifesta sobre cada uma delas.

Essa diminuição do espectro de ação da doutrina asfixiou, de certo modo, a discussão

sobre a natureza das normas constitucionais relativas às limitações ao poder de tributar.

Esparsa é a abordagem acadêmica, pelos doutrinadores tributários, sobre a fundamentalidade

das normas constitucionais tributárias – relegada à teoria da constituição, e, mesmo assim, de

antemão repelida pela doutrina positivista como celeiro de teses temerárias.

Como conseqüência básica surge a limitação do ensino dos novos juristas sobre o

tema. As grades curriculares das Faculdades de Direito não abrem espaço para esse tipo de

discussão, institucionalizando o raciocínio formalista e aumentando a desconfiança sobre o

15

chamado ‘pós-positivismo’ (rótulo para o apanhado de teorias subversivas, quase uma

‘ciência do bem e do mal’ que se presta unicamente a desestabilizar o Éden jurídico).

Tal dogmatização adquire ares oficiais quando (i) se atribui cegamente o invólucro de

‘cláusulas pétreas’ a todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, que passam (ii) a

ser alcunhadas invariavelmente de princípios sem que se discuta o porquê de qualquer dessas

duas considerações. A filosofia para os filósofos, a teoria para os teóricos, a técnica para os

técnicos.

Ocorre que essa concepção das regras constitucionais tributárias esbarra num

problema essencial, que é a obscuridade do próprio texto constitucional. Em momento algum

a Constituição da República diz expressamente que as limitações ao poder de tributar são

cláusulas pétreas. A consideração de que os direitos subjetivos atribuídos pelas limitações

constitucionais ao poder de tributar são normas fundamentais é, em si, uma construção

doutrinária – que, no entanto, não é questionada pela esmagadora maioria da doutrina.

O problema acima conduziu à formulação de uma hipótese: a de que a autonomia do

Direito Tributário não pressupõe o estudo hermeticamente fechado das regras constitucionais

tributárias, sendo necessária uma análise interdisciplinar entre a teoria da constituição e a

filosofia do Direito1.

A teoria da constituição, ao abordar a fundamentalidade dos direitos, levanta uma

questão essencial que é o aparente confronto entre a democracia e o constitucionalismo. A

ênfase em uma dessas vertentes pressupõe a diminuição da outra, o que leva a um pressuposto

de que só as regras destinadas a proteger o núcleo irredutível dos direitos fundamentais dos

cidadãos podem ser consideradas normas constitucionais irrevogáveis. Por contraponto, as

demais regras não compõem o cerne constitucional; cristalizá-las significará engessar o

sistema jurídico, aumentando o risco de rupturas diante da ilegitimidade do texto

constitucional.

No entanto, a teoria da constituição por si só não responde o que seria a

fundamentalidade do direito, nem mesmo quais direitos são essenciais para o exercício da

democracia. Daí advém a busca no campo da filosofia do Direito.

Há inúmeras correntes filosóficas, nas mais variadas direções, no que tange os direitos

fundamentais. A idéia dessa categoria de direitos leva invariavelmente à idéia de justiça. Por 1 Valemo-nos, a propósito, de James Buchanan, para quem “It made no sense to me to analyse taxes and public

outlays independent of some consideration of the political process through which decisions on these two sides of the fiscal account were made. Public finance theory could not be wholly divorced from a theory of politics”. – BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 44.

16

isso mesmo, foi necessária uma escolha teórica dentro do leque interminável de estudos

filosóficos da justiça.

A opção foi feita pela concepção de razão pública desenvolvida por John Rawls ao

longo de sua vida. Rawls foi responsável pela retomada das discussões de justiça na filosofia

norte-americana na última metade do século XX, desenvolvendo uma obra bastante rica sobre

os aspectos que conduziriam a uma teoria da justiça neocontratualista, que resgata (dentre

outros) elementos kantianos à luz de uma sociedade democrática numerosa e hipercomplexa,

composta por pessoas livres e iguais. A idéia de Rawls é conducente à democracia

deliberativa, em que os cidadãos efetivamente participam da deliberação democrática, não

sendo apenas massa de manobra de grupos oligárquicos que tomam decisões importantes.

Rawls traz institutos estruturantes da sua teoria: o conceito de estrutura básica da

sociedade, os dois princípios de justiça básica, os elementos constitucionais essenciais e a

razão pública são os principais desses ingredientes que coexistem e se comunicam na busca

pela justiça por eqüidade, que pressupõe a prioridade do justo sobre o bem – rompendo

definitivamente com a teoria utilitarista e a intuicionista, como ele mesmo denomina, as quais

priorizam o bem em relação ao justo.

Demais disso, a teoria da justiça de Rawls, desenvolvida a partir de argumentos de

filosofia da moral, encontrou importante paralelo na teoria política econômica, no pensamento

de James Buchanan. A idéia de Buchanan, embora não seja idêntica à de Rawls, segue linha

de raciocínio bastante similar ao tentar justificar o modo pelo qual os representantes do

Estado adotam determinadas posições políticas – dentre elas, aquelas relativas à ação

tributante. Por isso mesmo, autores pátrios pioneiros como Ricardo Lobo Torres realçam a

importância dessa concepção teórica.

Assim, optamos pela razão pública porque ela reflete o procedimento argumentativo a

ser desenvolvido para justificar as regras e condutas estatais diante do princípio democrático.

A razão pública, concebida como o procedimento de checagem de assuntos que tocam a

esfera de imparcialidade política (e, conseqüentemente, a estrutura básica da sociedade) é um

instituto altamente viável para uma proposta de investigação da efetiva fundamentalidade das

limitações constitucionais ao poder de tributar.

Logo, o estudo diante da estrutura básica da sociedade, dos princípios de justiça ou

mesmo dos elementos constitucionais essenciais, necessariamente se faria permear pela idéia

de razão pública. Em última análise, ainda que a investigação fosse apresentada como traçada

diante de qualquer desses institutos rawlsianos, ela seria feita mesmo pela razão pública,

17

como procedimento discursivo que é, quanto à efetiva fundamentalidade das normas

constitucionais.

Exatamente por estudar o tema por um ângulo pouco falado pela doutrina brasileira,

esbarramos num desafio mais motivador enquanto mais árduo: a aridez do material pátrio

sobre a matéria. Se nos motiva a inovação, freia-nos a já exposta asfixia doutrinária.

Com relação ao trabalho em si, percebe-se um recorte inicial quanto às regras

constitucionais que, nada obstante constarem da Seção constitucional das limitações ao poder

de tributar, não consagrem direitos subjetivos aos cidadãos. Dessa forma, as regras

relacionadas com o federalismo ou a separação de poderes não foram incluídas no presente

estudo, por comportarem discussão diversa quanto à sua fundamentalidade.

O trabalho se apresenta então em três capítulos, que podem ser percebidos da seguinte

forma.

O primeiro capítulo aborda a concepção da teoria da constituição sobre as normas

fundamentais, apontando a tensão entre o constitucionalismo e a democracia, avultada pelo

problema específico dos compromissos político-corporativos adotados pela Constituição da

República promulgada em 1988.

O segundo capítulo, por sua vez, apresenta a idéia de razão pública em si, a fim de

demonstrar seu raio de ação limitado à estrutura básica da sociedade e às questões de justiça

básica na democracia deliberativa.

No terceiro capítulo as normas constitucionais ao poder de tributar são apresentadas,

uma a uma, seguidas de um recorte entre aquelas destinadas a tutelar direitos subjetivos aos

cidadãos e outras, relativas basicamente ao federalismo – o qual, por mais importante que

seja, não possui relação direta com a cooperação na deliberação democrática. As regras

consagradoras de direitos dos cidadãos são, então, acompanhadas das considerações que a

doutrina jurídica tributária traça a respeito delas, assim como se busca responder da pergunta

central do trabalho: quais dessas normas constitucionais podem ser consideradas cláusulas

pétreas?

Após, seguem as conclusões do trabalho.

Decerto que a pesquisa que ora apresentamos não se destina a encerrar o tema.

Contudo, se de algum modo nossa proposta servir para fomentar o debate interdisciplinar

sobre o tema da fundamentalidade das limitações constitucionais ao poder de tributar por um

prisma não formalista, ela já terá cumprido a sua função.

18

1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. NORMAS

SUPERCONSTITUCIONAIS E SEU EXCESSO. RISCO DE RUPTURA DO REGIME

CONSTITUCIONAL.

Inicialmente, de modo a facilitar a compreensão do tema, importante contextualizar-se

o problema da caracterização dos direitos subjetivos fundamentais na Seção das Limitações

ao Poder de Tributar constantes da Constituição da República Federativa do Brasil,

promulgada em 05 de outubro de 1988, diante da tensão existente entre constitucionalismo e

democracia, bem como de questões correlatas à participação na deliberação democrática pelos

cidadãos.

Fala-se em direitos subjetivos fundamentais, à medida que o presente trabalho não se

debruçará sobre todos os dispositivos constitucionais das limitações, mas somente aqueles que

conferem direitos aos contribuintes (ou, na acepção mais ampla dada pelo parágrafo único do

art. 121 do Código Tributário Nacional, sujeitos passivos da obrigação principal, por

englobar ainda terceiros que se relacionem diretamente com o Estado em virtude de

obrigações tributárias2).

De todo modo, começamos agora pelo estudo da tensão entre o constitucionalismo e a

democracia para, posteriormente, abordarmos a delimitação do conteúdo essencial (e,

portanto, imutável) da constituição diante do princípio democrático. Após isso, será analisada

a enorme dificuldade fornecida pela Constituição da República em definir-se objetivamente o

que seja direito fundamental e, ao final do capítulo, veremos parâmetros no próprio regime

democrático para legitimação e conceituação do que pode, ou não, ser considerado cláusula

constitucional pétrea, dotada de irrevogabilidade e irrestringibilidade.

2 “Art. 121. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I – contribuinte, quando tenha

relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.

19

1.1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. O PROBLEMA

DA SUPERCONSTITUCIONALIZAÇÃO3 EXCESSIVA DE NORMAS.

As teorias da constituição, desde os tempos de Jefferson4, discutem a questão da

imutabilidade de dispositivos constitucionais. Desde há muito tempo constitucionalistas –

especialmente norte-americanos e europeus – debatem acerca do problema de se consagrar

direitos que não possam ser revogados, ou restringidos, no mesmo ordenamento

constitucional, diante da inexorável vinculação das gerações futuras às decisões de tempos

remotos5.

Essa vinculação irresistível das gerações futuras a algo decidido de modo terminativo

em um outro contexto histórico-social, induz a uma ruptura constitucional periódica – que

pode ser em espaços mais curtos ou mais longos de tempo, porém já é previsível por assim

dizer6. Quanto a isso, vale frisar, a par de qualquer problema teórico, que a chamada

revolução constitucional representa um risco para a sociedade7, o Estado e a própria

democracia, já que uma constituição é formalmente a base jurídica que estrutura toda uma

nação. Assim, se se concebe que toda uma constituição seja revogada periodicamente, para 3 Aproveitamos a expressão utilizada por Oscar Vilhena Vieira. 4 Sobre o embate entre Jefferson e Madison, recomenda-se a leitura de VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e

sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. 5 “A domesticação jurídica do poder constituinte veiculada pelo estabelecimento de limites ao poder constituinte

derivado ou poder de revisão originará, por sua vez, outros movimentos de perplexidade jurídica e política. Referimo-nos ao chamado paradoxo da democracia: como ‘pode’ um poder estabelecer limites às gerações futuras? Como pode uma constituição colocar-nos perante um dilema contramaioritário ao dificultar deliberadamente a ‘vontade da gerações futuras’ na mudança de suas leis? Revelar-se-á, assim, o constitucionalismo de uma antidemocraticidade básica impondo à soberania do povo ‘cadeias para o futuro’(Rousseau)?” – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6a. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 74.

6 “[...] if individual preferences are such as to generate a cycle, then such a cycle, or such inconsistency, is to be preferred to consistency, since the latter would amount to the imposition of the will of some members of the group on others”. – BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 45.

7 “O verdadeiro problema – a verdadeira aporia do Estado Constitucional – levantado pelos limites materiais do poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a idéias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? Por outras palavras que se colheram nos Writings de Thomas Jefferson: uma geração de homens tem o direito de vincular outra? [...] A resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu sua força normativa. Os limites são limites do poder de revisão como poder constituído, não são ‘limites para sempre’, vinculativos de toda e qualquer manifestação do próprio poder constituinte. Em sentido absoluto, nunca a ‘geração’ fundadora pode vincular eternamente as gerações futuras. Esta é uma das razões justificativas de previsão, em algumas constituições, de uma revisão total. Caso contrário, a falta de alternativa evolutiva abriria o campo da Revolução Jurídica.” – Id. Ibid., p. 1051.

20

que uma nova seja feita, então o Estado necessariamente terá um prazo de vida definido – já

que cada constituição cria um Estado diferente, com feições, instituições e limitações de ação

próprias. Isso, sem contar que todas as relações jurídicas existentes no país deverão ser

reavaliadas, de tempos em tempos, o que

[...] na esfera econômica pode inibir investimentos, principalmente a mais longo prazo, pois sem regras estabelecidas e confiáveis dificilmente haverá grande disposição do setor produtivo em ampliar sua atuação, pelo menos nas esferas produtivas. Também para o sistema político a volatilidade da Constituição é algo indesejável. Sem que as regras sejam bem estabelecidas, e sobre elas não haja constante disputa, dificilmente o sistema se estabiliza, criando um ambiente de tranqüilidade para a alternância no poder.8

Por isso mesmo, a fim de evitar o risco de esfacelamento da estrutura estatal e de

fragilização da própria democracia, além da segurança jurídica dos cidadãos9, passou-se a

discutir a questão dos direitos fundamentais em face do princípio democrático.

A questão ganha mais corpo quando saímos do Estado liberal clássico para o Estado

democrático de Direito, o qual tem como prerrogativa básica a participação na deliberação

democrática pelos próprios cidadãos, os quais se supõem livres e iguais.

Nesse contexto, torna-se recorrente o dizer que “os mortos não devem governar os

vivos”10, uma vez que, se a sociedade se dinamiza e os fatos, sua história, cultura e economia

mudam, conseqüentemente se pressupõe que determinadas bases jurídicas tenham que se

adaptar aos novos tempos, periodicamente. Tal se dá porque a consagração de direitos

constitucionais sabidamente não possui apenas reflexos no mundo jurídico, mas enfeixa uma

série de efeitos no mundo concreto11, que talvez não fossem mais desejados em determinada

época posterior.

8 VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit, pp. 133-134. 9 “Para que uma Constituição seja legítima, faz-se necessário o assentimento do povo ao ordenamento

constitucional que lhe é apresentado. Entretanto, a fim de que se estabeleça e seja respeitada, ela deve transmitir um mínimo de segurança jurídica a seus comandados. Uma Constituição estável, difícil de ser modificada, garante a segurança que o cidadão espera do Poder Público.” – NOGUEIRA, Cláudia de Góes. A impossibilidade de as cláusulas pétreas vincularem as gerações futuras, Revista de Informações Legislativas, Brasília: Senado Federal, a. 42, n. 166, 2005. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_166/R166-05.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2007.

10 ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo. Democracia, Preferencias y Negociación. Disponível em: <http://www.uv.es/CEFD/2/paramo.html#41>. Acesso em: 09 fev. 2007.

11 “If the individuals’ capacities and objectives are given, the only way the pattern of outcomes can be changed is by alteration of the rules. And changes in the rules, observely, will alter the outcomes that emerge from any society of individuals”. – BUCHANAN, James M. The reason of rules. In: ______. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 10, 2000, p. 19.

21

A dimensão objetiva estende a incidência dos direitos fundamentais sobre novos campos e searas e amplia o espaço de aplicação das normas constitucionais, que vão se irradiar para praticamente todos os domínios da vida social. Inobstante, este fenômeno, em princípio positivo e promissor, não deve chegar ao ponto de amputar todo o espaço de liberdade das instâncias sociais, limitando em demasia seus caminhos, que cumpre manter abertos numa sociedade que se pretenda pluralista e democrática. Convém recordar que quanto mais se estende a Constituição, menos sobra para o poder decisório das maiorias, vale dizer, mais se constrange a autonomia política do povo12.

Assim se pode perceber a chamada tensão entre constitucionalismo e democracia. De

um lado, a busca pela consagração de direitos em nome da liberdade e da própria democracia

(que se pressupõe sempre no exercício de todo um espectro de liberdades básicas); de outro, a

busca pela possibilidade de não engessar a escolha das liberdades pelos cidadãos apenas em

virtude de decisões tomadas em um dado momento histórico – ou, na lapidar expressão, a

“instituição do governo dos mortos sobre os vivos”.

A fim de permitir uma melhor compreensão do tema, segue abaixo uma breve

abordagem sobre a democracia em si, para, após, verificar-se como a excessiva proibição de

reforma de dispositivos constitucionais pode afetá-la.

1.1.1 Democracia. A democracia deliberativa como democracia material (e não puramente

formal). A necessidade de se garantir liberdades básicas para o exercício da democracia pelos

cidadãos.

Historicamente a humanidade se submeteu a diversos ciclos de democracia e tirania,

desde os tempos mais remotos (no mundo ocidental, podemos começar pela tirania dos

egípcios, passando por períodos de tirania e democracia na Grécia e em Roma, os quais se

fizeram acompanhar por um longo período de tirania na Europa), até os mais recentes, como

percebemos a partir da ascensão da democracia liberal burguesa, passando ao Estado de bem-

estar social e, posteriormente, ao que se convenciona de Estado de Direito. Este último

[...] implica sobretudo o papel determinante de certas instituições, bem como das práticas judiciais e legais que a elas estão associadas. Ele existe enquanto as instituições desse tipo são governadas de maneira razoável, de

12 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 138.

22

acordo com os valores políticos que a elas se aplicam: a imparcialidade e a coerência, a adesão à lei e o respeito pelos precedentes13.

O chamado “Estado de Direito” teve agregada recentemente a expressão democrático,

a fim de reforçar que a existência do Estado deve ser concebida não mais a partir dele próprio,

mas sim a partir dos cidadãos que ele governa14.

Nessa esteira, surge a pergunta: democrático, mas de que tipo?

Inicialmente concebeu-se a democracia participativa como a forma de democracia

típica do Estado Democrático de Direito; porém, a noção de democracia participativa

mostrou-se insuficiente para o efetivo exercício da cidadania pela sociedade15.

É bastante factível pensar que os representantes da população reúnam-se e decidam

questões das mais variadas em nome de seus representados – e, sob a óptica da democracia

representativa o povo está decidindo, ainda que indiretamente, “por intermédio de seus

representantes”. Todavia, a democracia meramente representativa se mostra apenas um rito,

distante da sociedade, sem conteúdo substantivo por si só – o que, conseqüentemente, permite

tornar a democracia um simulacro, porquanto os cidadãos podem perfeitamente se tornar mera

massa de manobra e não terem o menor conhecimento do que se passa, dos problemas que

ocorrem, da magnitude dos problemas que ocorrem, e serem guiados como cegos por pessoas

mal-intencionadas. Ou seja, existe o risco iminente de uma tirania disfarçada (entendida aqui

como a impossibilidade de os cidadãos terem qualquer voz ativa no processo de deliberação

acerca de questões importantes).

É de se considerar, ainda, que uma democracia meramente representativa não agrupa

as decisões dos legisladores em torno de um interesse comum, já que, como meros

representantes de setores diversos da sociedade, os elaboradores das normas “seek to further

their own differential interests, and [...], as a consequence, there is no relationship between

13 RAWLS, John. O domínio do político e o consenso justaposto. In: ______. Justiça e Democracia. Tradução

de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 377. 14 “O Estado Democrático de Direito surge como a modalidade mais avançada do chamado Estado de Direito,

incorporando conteúdos da etapa anterior (Estado Social de Direito) e fazendo recair a tônica sobre o aspecto da participação dos cidadãos na realização de seus fins”. – NOGUEIRA, Alberto. Os limites da legalidade tributária no Estado Democrático de Direito. 2a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 34.

15 “A democracia não deve ser vista apenas como método despido de conteúdo humanista, e menos ainda como um método exclusivamente voltado para a seleção de lideranças encarregadas do processo decisório, até porque ‘as instituições políticas são obras dos homens [...] não se assemelham às árvores que, uma vez plantadas, estão sempre a crescer enquanto os homens estão a dormir’”. – LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 33.

23

majority voting rules and public sector efficiency, defined at either the public-private sector

margin or within the public sector itself”16.

Esse tipo de democracia, mais formalista do que propriamente perseguidora real de

acesso sócio-político e de igualdade de chances aos cidadãos, desenha o chamado “Estado de

bem-estar social”, o qual sofreu severas críticas de parte a parte17.

Basta ver, por um lado, o modo pelo qual esse regime democrático, ao se preocupar

apenas com a mantença dos indivíduos, segundo autores liberais como John Rawls, é

considerado ineficiente, porquanto

em um estado de bem-estar social, o objetivo é que ninguém fique abaixo de um padrão decente de vida, e que todos possam receber certas proteções contra acidentes e a má-sorte, por exemplo, seguro-desemprego e assistência médica. A redistribuição de renda serve a esse propósito quando, ao fim de cada período, aqueles que precisam de assistência podem ser identificados. Esse sistema pode permitir grandes desigualdades hereditárias de riqueza que são incompatíveis com o valor eqüitativo das liberdades políticas [...], como também grandes disparidades de ganho que violam o princípio da diferença. Embora se esforce para assegurar a igualdade eqüitativa de oportunidades, o sistema é insuficiente, ou ainda ineficaz, dadas as disparidades de riqueza e a influência política por elas permitida.18

Por outro lado, esse mesmo modelo recebe críticas de autores neomarxistas como, por

exemplo, a de Carole Pateman, para quem esse modelo acarreta a perda dos ideais

democráticos clássicos, sobretudo a igualdade, que se reduz à igualdade perante a lei: se a

presença do cidadão na política se faz sentir apenas através do ato eleitoral e a participação se

faz presente apenas na escolha do representante, a influência do cidadão na política é

mínima19.

Por isso mesmo Canotilho afirma que

O Estado constitucional é “mais” do que o Estado de direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para “travar” o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power). [...] O Estado “impolítico” do Estado de

16 BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as

public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 109. 17 “A rigor, neste fim de século, o Estado do Bem-Estar social está em xeque tanto nos países que já o

consagraram, quanto naqueles que o aspiram, mas não chegaram ao estágio de adotá-lo” – MARTINS, Ives Gandra da Silva. Das cláusulas pétreas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal, 15 anos: mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003, p. 191.

18 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XVIII.

19 Apud LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Op. Cit., p. 22.

24

direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual “todo o poder vem do povo” assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de “charneira” entre o “Estado de direito” e o “Estado democrático” possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático. Alguns autores avançam mesmo a idéia de democracia como valor (e não apenas como processo20), irrevisivelmente estruturante de uma ordem constitucional democrática.21

Ou seja, sem que se atribua uma base de legitimidade política, calcada nas

deliberações democráticas do próprio povo, haverá uma ampla participação política formal,

porém pouca representatividade das instituições sociais – o que esvazia o Estado e suas ações

de qualquer suporte na sociedade. Claro, uma vez que

[...] a natureza dos arranjos, mesmo daqueles que se afiguram como representativos, não é condição suficiente para o atendimento continuativo das preferências da maioria dos cidadãos22. E mais, esta dimensão deve ser mais adequadamente apreendida como desempenho do sistema, e não como representatividade.23

Passou-se então a buscar um novo modelo de democracia24, o qual permita de fato aos

cidadãos participarem ativamente da deliberação pública, conhecendo o fórum político e

pressupondo-se como livres e iguais25. Surge, então, a idéia de democracia deliberativa26.

20 A respeito, cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de

Janeiro: Renovar, 2006. 21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.Cit., p. 100. Grifos do original. 22 No mesmo sentido, realçamos James Buchanan, para quem “since political outcomes emerge from a process in

which many persons participate rather than from some mysterious group mind, why should anyone have ever expected ‘social welfare functions’ to be internally consistent?” – BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 45.

23 Id. Ibid., p. 88. 24 “A que democracias está se fazendo referência, do ponto de vista da realidade contemporânea? O que reformar

e ampliar, o que restringir? No mínimo, eu diria, à democracia de massas, cujo pressuposto essencial é o sufrágio universal e que se caracteriza, nos termos propostos por Dahl, por um alto grau de liberalização e participação. Cabe, creio, a partir de uma concepção minimalista que entende democracia como método, examinar os elementos constitutivos da democracia real, a partir de uma perspectiva institucional, como forma primeira de examinar o papel atribuído à participação política e ao Legislativo”. Id. Ibid., p. 30.

25 “[...] as pessoas são consideradas livres e iguais em virtude de possuírem, no grau necessário, as duas faculdades da personalidade moral, quais sejam, a capacidade de ter senso de justiça e a capacidade de ter uma concepção do bem. Associamos essas faculdades aos dois elementos principais da idéia de cooperação, a idéia de termos eqüitativos de cooperação e a idéia de benefício racional, ou bem, de cada participante”. – RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 78. No mesmo sentido, BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000,

25

[...] a democracia deliberativa busca conciliar essas duas tradições em que se cinge o pensamento político moderno, e o faz de modo a sustentar a sua cooriginariedade. O estado de direito é entendido como condição de possibilidade da democracia. [...] No entanto, a harmonização ora proposta entre democracia e estado de direito não se limita a eles. Abarca também diversos outros direitos caracterizados sob a rubrica da “liberdade dos modernos”. [...] Os direitos fundamentais são aqui considerados não só “condições procedimentais da democracia”, mas também “condições para a cooperação democrática”. Se os cidadãos não têm sua autonomia privada respeitada, não têm por que cooperar. Observe-se, todavia, que o estado de direito não é considerado um limite, mas uma condição necessária, um elemento constitutivo da democracia27.

A partir daí se percebe, portanto, que a democracia deliberativa é um “passo adiante”,

do ponto de vista da efetiva mobilização popular, em relação à democracia meramente

participativa28. Decerto que elas não são opostas e que uma não significa a inexistência da

outra29: a democracia deliberativa é exercida formalmente mediante um processo democrático

representativo30. A diferença é que, na democracia deliberativa, a representação passa a ser

p. 110: “In sum, my suggestion is that we extend to politics the same norm that has traditionally been extend to law [regra da igualdade]”.

26 Tecendo uma análise aristotélica da democracia deliberativa, Luis Fernando Barzotto considera que “a democracia deliberativa constitui-se na aplicação da razão prática teleológica à vida política, de um modo análogo ao que ocorre na vida individual: é a racionalidade que se define pela orientação a um bem: o bem comum (política) e a vida boa (indivíduo). O sujeito do poder é a comunidade de animais político-racionais vinculados a uma concepção comum do bem. O funcionamento do poder dá-se segundo uma concepção de justiça que se expressa em regras e decisões, e a finalidade do poder é o bem comum, que nada mais é do que o conjunto de condições que permitem a vida boa para cada um dos membros da comunidade”. – BARZOTTO, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 83.

27 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., pp. 57-58. 28 “Em contraposição à democracia baseada nos interesses, o modelo deliberativo pensa a democracia como uma

forma de razão prática, um processo no qual cidadãos se unem publicamente para tratar de ideais, objetivos e metas, relativos a problemas de ordem coletiva. Para tanto, fazem os indivíduos uso da argumentação, enquanto meio de intercâmbio entre diferentes concepções acerca do bem, tendo sempre em vista o bem comum”. – RICHE, Flávio Elias. Revisitando a deliberação pública. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 8-9.

29 “[...] O fato de a representação pelo parlamento ser volitiva tanto quanto discursiva demonstra que representação e argumentação não são incompatíveis. Pelo contrário, um conceito adequado de representação deve se referir – como Leibholz salienta – a alguns “valores ideais”. Representação é mais do que – como Kelsen propõe – “atuação em vez ou no lugar de” (Vertretung); e mais do que – como Carl Schmitt sustenta – fazer o repraesentandum existente. Para ser certa, ela inclui elementos de ambos, ou seja, ela é necessariamente tanto normativa como real, mas esses elementos não exaurem o conceito. A representação necessariamente sustenta uma pretensão de correção. Assim, um bem-amadurecido conceito de representação deve incluir uma dimensão ideal, que conecte decisão e discurso. A representação é, assim, definida pela conexão de dimensões normativas, factuais e ideais.” – ALEXY, Robert. Ponderação, jurisdição constitucional e representação popular. Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 302.

30 Rawls chega a afirmar que as próprias liberdades básicas que compõem a democracia deliberativa “requerem alguma forma de regime democrático representativo [...]”. RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188. No mesmo sentido, CALAZANS, Paulo Murillo. Entre liberais e republicanos – a co-originalidade. In:

26

vista agora não como uma prova cega da legitimidade, mas apenas um critério para

formalização da participação pelos cidadãos em decisões importantes.

De todo modo, a democracia deliberativa ao mesmo tempo pressupõe e ocasiona, com

o passar do tempo (e sua conseqüente maturidade), o domínio do político pelos cidadãos31, e

não apenas que estes elejam formalmente seus representantes para que decidam em seu lugar,

presumindo-se a legitimidade de qualquer decisão advinda do processo legislativo. Logo, fica

claro que

Para que haja democracia, é preciso que as pessoas tenham condições de expor e debater francamente as suas idéias e projetos, de falar e serem ouvidas. Ela pressupõe um regime que trate todas as pessoas como livres e iguais, que respeite a dignidade intrínseca de cada ser humano e que busque a inclusão no espaço público deliberativo daqueles que, pelas adversidades da vida, foram dele excluídos. Ela exige, portanto, a garantia de direitos básicos para todas as pessoas, visando não apenas à contenção do arbítrio do Estado e dos poderosos em prol das liberdades política e individual de cada um, mas também a garantia de condições mínimas de vida para os hipossuficientes, a fim de que aquelas liberdades possam ser realmente usufruídas e não se tornem uma mera fachada para a opressão estatal ou privada.32

A democracia deliberativa exige, desse modo, que os cidadãos participem ativamente

das deliberações dos assuntos mais importantes, tomando conhecimento do que é decidido e

chancelando argumentativamente, segundo critérios políticos que atendam ao bem público (e

não apenas os seus particulares33), essas mesmas decisões. Somente assim se poderá falar em

legitimidade, de fato, das instituições jurídicas.

VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 245, sobre a “secular questão da impossibilidade factual da onicracia”. Calazans aponta para um viés habermasiano, apoiado em Seyla Benhabib, no sentido de se retirar dos parlamentos o monopólio da deliberação e da produção normativa.

31 “A partir do enfrentamento entre a proposta liberal, que enfatiza a primazia da autonomia privada (direitos individuais fundamentais), e a posição republicana, que prestigia a autonomia pública (soberania popular), vários pensadores contemporâneos vêm trabalhando no sentido de construir uma ponte que possa aproximar, como aspectos co-originais, ambos espectros da democracia, onde, por um lado, se verifique que a garantia da ampla participação dos cidadãos no processo político depende da institucionalização de determinados direitos e garantias fundamentais, e, por outro, que é o próprio exercício do discurso público igual e livre que permite a efetiva realização dos direitos fundamentais elencados como tais pelas sociedades e suas ordens normativas”. CALAZANS, Paulo Murillo. Op. Cit., p. 240.

32 SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 17-18.

33 “O intérprete constitucional, em uma república democrática e pluralista, circunscreve-se a um uso público da razão: não deve recorrer a argumentos compartilhados apenas entre os adeptos de sua visão de mundo, mas a argumentos que se refiram a valores políticos tendentes ao consenso entre as diversas doutrinas abrangentes” – SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO,

27

A legitimação mediante o argumento pelos cidadãos, em contraposição à democracia

meramente formal, é ilustrada, dentre outros, por Robert Alexy, para quem

Agora é possível desenhar a imagem de um modelo de democracia que contém não mais do que um sistema de tomada de decisões centralizado em torno dos conceitos de eleição e regra da maioria. Esse seria um modelo de democracia puramente decisional. Um conceito adequado de democracia deve, entretanto, compreender não apenas decisão, mas também argumento. A inclusão da argumentação no conceito de democracia cria a democracia deliberativa. A democracia deliberativa é uma tentativa de institucionalizar o discurso enquanto um mecanismo possível de tomada de decisões públicas. Por essa razão, a conexão entre o povo e o parlamento não deve ser unicamente determinada por decisões expressas em eleições e votos, mas também por argumentos. Nesse sentido, a representação do povo pelo parlamento é, ao mesmo tempo, volitiva ou decisional e argumentativa ou discursiva.34

Mediante a participação mais ativa dos cidadãos, concebidos como livres e iguais

numa sociedade pluralista, a democracia deliberativa ganha ares de maior legitimidade35, e

essa legitimidade perdura por um tempo muito maior, mostrando-se ainda muito mais robusta

do que mediante a democracia meramente participativa – já que os cidadãos constantemente

cooperam na deliberação acerca de casos importantes, ainda que a conjuntura social seja

modificada, o que lhes permite alterar até mesmo (e principalmente) as instituições e as regras

que compõem a estrutura básica da sociedade.

Por isso que

Se partimos da idéia, sedutora no início, de que o contexto social e as relações entre as pessoas devem se desenvolver no decorrer do tempo em conformidade com acordos livremente consentidos ao termo de um processo eqüitativo e plenamente honrados, segue-se imediatamente que devemos saber quando os acordos são livres e quais são as circunstâncias necessárias para que sejam eqüitativos. [...] O papel das instituições que fazem parte da estrutura básica é garantir condições justas para o contexto social, pano de fundo para o desenrolar das ações dos indivíduos e das associações. Se essa estrutura não for convenientemente regulada e ajustada, o processo social deixará de ser justo, por mais justas e eqüitativas

Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 740. Para uma maior compreensão do conceito de doutrinas abrangentes, cf. o capítulo II do presente estudo.

34 ALEXY, Robert. Op. Cit., p. 302. 35 “Acrescente-se, ainda, que com a contínua observação e participação em tais atividades deliberativas, os

cidadãos seriam levados a aprimorar seus respectivos entendimentos acerca das opções políticas existentes, desenvolvendo, pois, suas capacidades ativas de cidadania, de respeito mútuo e de comprometimento coletivo, gerando inclusive uma compreensão mais aprofundada da própria democracia – o que termina por conferir à mesma maior legitimidade”. – RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., pp. 10-11. Grifos do original.

28

que possam parecer as transações particulares consideradas separadamente.36

Para que esse modelo democrático se desenvolva de fato, é necessário consagrar-se

determinados direitos, certas liberdades, para garantir a efetiva participação na deliberação

democrática pelos cidadãos37. Esses direitos logicamente não podem ser refreados (salvo para

assegurar outros igualmente essenciais), sob pena de minar-se a própria democracia como um

todo38. A questão, todavia, é situar e delimitar quais são esses direitos39, a fim de que a

democracia não faleça por superdosagem de seu próprio remédio40.

A partir daí, surge o problema da consagração excessiva de direitos nas cartas

constitucionais41, dado o rigorismo com que a ciência jurídica trata os ditos direitos

fundamentais.

36 RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 13-14. 37 Nesse tom, Jean Rivero e Hugues Moutouh abordam o Estado Constitucional como garante do exercício da

democracia, afirmando que “O Estado constitucional não é a forma mais consumada do Estado de direito porque realiza completamente o princípio de uma ordem jurídica hierarquizada, em que cada norma inferior encontra a condição de validade numa norma de nível superior, mas porque se caracteriza por um certo conteúdo do direito vigente, que atende ao duplo objetivo da garantia fundamental das liberdades das pessoas e da proteção da ordem democrática liberal”. – RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 145. Grifos do original.

38 “Tal como são um elemento constitutivo do Estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática, dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os cidadãos [...] para o seu exercício [...]; (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício [...]; (3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, económicos e culturais, constitutivos de uma democracia económica, social e cultural [...]. Realce-se esta dinâmica dialéctica entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjectivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjectivos a prestações sociais, económicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., pp. 290-291. Grifos do original.

39 “Por outro lado, a positivação constitucional de limites de revisão não elimina a necessidade de selectividade dos princípios, pois bem pode acontecer que alguns destes sejam limites genuínos respeitantes a autoidentificação material da esfera jurídico-constitucional e outros sejam limites conjunturalmente justificados. O problema está em saber como dar operacionalidade a esta distinção”. – Id. Ibid., p. 1055.

40 Direcionando a questão para a efetividade desses direitos, Ives Gandra aduz que “A pergunta que se coloca, no início do século XXI, é se devem as Constituições sinalizar direitos que o Estado não pode assegurar ou ser apenas uma Carta de Princípios, deixando, em face da conjuntura, à produção legislativa infraconstitucional tais direitos”. – MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., p. 190.

41 “[...] o princípio democrático, que postula o direito de cada geração de se autogovernar, é incompatível com uma interpretação muito extensiva das chamadas ‘cláusulas pétreas’”. – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro:

30

As constituições democráticas, ao estabelecerem que certos direitos e instituições encontram-se acima do alcance dos órgãos ordinários de decisão política ou, mesmo, fora de sua competência, por força das limitações materiais ao poder de reforma, atuam como mecanismos de autovinculação, ou pré-comprometimento, adotados pela soberania popular para se proteger de suas próprias paixões e fraquezas. Protegendo metas de longo prazo, constantemente subavaliadas por maiorias ávidas em maximizar seus interesses individuais imediatos, as Constituições também funcionariam como mecanismo de proteção contra inconsistências temporais, defendendo, assim, as sociedades de suas próprias miopias. O constitucionalismo democrático traça, neste sentido, um conjunto de limitações à maioria com o propósito de favorecer a dignidade humana e fortalecer a própria democracia, estabelecendo os princípios e as meta-regras a partir das quais o sistema democrático deve funcionar, sem, no entanto, poder suprimi-los.49

Desse modo, a fim de preservar o que há de mais precioso na Constituição ao longo do

tempo e de se excluir, por conseguinte, a possibilidade de supressão formal dos direitos

fundamentais50, entram em cena as chamadas cláusulas pétreas51, as quais nada mais são do

fundamentais, constituem as bases institucionais da República). Frise-se desde já que a Constituição, ao vedar a deliberação e não apenas a vigência da norma, impede que questões tendentes a revogar, ainda que indiretamente, tais liberdades, sejam sequer debatidas – o que nitidamente restringe o debate acerca de questões constitucionais importantes, limitando até mesmo o fórum político público (e não somente as normas resultantes desse fórum no âmbito do processo legislativo) a outras questões de menor importância.

48 “Limites expressos ou textuais são os limites previstos no próprio texto constitucional. As constituições selecionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas matérias à disponibilidade do poder de revisão. [...]

Outras vezes, as constituições não contêm quaisquer preceitos limitativos do poder de revisão, mas entende-se que há limites não articulados ou tácitos, vinculativos do poder de revisão. Esses limites podem ainda desdobrar-se em limites textuais implícitos, deduzidos do próprio texto constitucional, e limites tácitos imanentes numa ordem concreta de valores pré-positiva, vinculativa da ordem constitucional concreta”. – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., pp. 1050-1051. Grifos do original.

49 VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 19. 50 [o poder de reforma constitucional] “É inquestionavelmente um poder limitado, porque regrado por normas da

própria Constituição que lhe impõem procedimento e modo de agir, dos quais não pode arredar sob pena de sua obra sair viciada, ficando mesmo sujeita ao sistema de controle de constitucionalidade. Esse tipo de regramento da atuação do poder de reforma configura limitações formais, que podem assim ser sinteticamente enunciadas: o órgão do poder de reforma (ou seja, o Congresso Nacional) há de proceder nos estritos termos expressamente estatuídos na Constituição”. – SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1999, p. 67.

51 “O adjetivo pétrea vem de pedra, significando “petroso” e, no sentido figurativo, “duro como pedra”, “insensível”. Tem-se, pois, que, constitucionalmente falando, cláusula pétrea é aquela imodificável, irreformável, insuscetível de mudança formal. Assim, cláusulas pétreas são cláusulas de irreformabilidade total ou parcial da Constituição, em defesa da perenidade da obra do legislador constitucional. São limites fixados ao conteúdo ou substância de uma reforma constitucional e que operam como verdadeiras limitações ao exercício do Poder constituinte derivado.” – NOGUEIRA, Cláudia de Góes. Op. Cit., p. 83. Além disso, “as cláusulas superconstitucionais também servem como princípios que auxiliam a interpretação constitucional, suprindo as dificuldades e tensões impostas pela desformalização do direito constitucional que acompanham a implementação de uma Constituição tão vasta como a brasileira”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 29.

31

que os dispositivos constitucionais que consagram expressamente esses direitos subjetivos

públicos dos cidadãos em qualquer esfera52.

A fundamentalidade formal, geralmente associada à constitucionalização, assinala quatro dimensões relevantes: (1) as normas consagradoras de direitos fundamentais, enquanto normas fundamentais, são normas colocadas no grau superior da ordem jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-se submetidas aos procedimentos agravados de revisão; (3) como normas incorporadoras de direitos fundamentais passam, muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão [...]; (4) como normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, ações e controlo, dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais [...].53

A questão que se coloca, contudo, é a identificação que a Constituição mantém com

relação à sociedade a qual ela serve, seja pelo ponto de vista temporal (dadas as contínuas

modificações sociais que levam a um distanciamento do preceituado pela Carta Política) ou

mesmo em termos materiais (os quais, ultrapassando a concepção meramente formalista de

cláusulas irrevogáveis, levam a uma investigação da essência do texto constitucional, a fim de

corrigir eventuais erros do constituinte e considerar que alguns dispositivos equivocadamente

inseridos no rol de direitos e garantias fundamentais, sejam tratados como regras comuns). Ou

seja, trata-se de analisar a legitimidade dos próprios direitos tachados pelo constituinte

originário de fundamentais54.

Isso porque, ao consagrar um determinado rol de normas como indiscutíveis, como

regras básicas e inescapáveis do jogo político público, o propósito de resguardar a democracia

pelas cláusulas pétreas pode acabar ocasionando o efeito oposto: reduzem-se as possibilidades

de deliberação pelos próprios cidadãos (“senhores” da constituição, por assim dizer, já que

52 O tema adquire maior relevância para o presente trabalho na órbita tributária, o que será discutido mais

aprofundadamente no capítulo III. Vale por ora destacar que, com a consagração desses direitos de modo intangível, “[...] a Constituição determinou de modo negativo, isto é, através de proibições, o conteúdo possível das leis tributárias e, indiretamente, dos regulamentos, das portarias, dos atos administrativos tributários etc.

Em outros termos, a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, ao fazerem uso de suas competências tributárias, são obrigados a respeitar os direitos individuais e suas garantias. O contribuinte tem a faculdade de, mesmo sendo tributado pela pessoa política competente, ver respeitados seus direitos públicos subjetivos, constitucionalmente garantidos”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 406-407.

53 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 379. Grifos do original. 54 Canotilho chega a dizer que “Se quisermos um estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos,

temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do poder político”. Op. Cit., p. 100.

32

esta serve àqueles e não o contrário55) e a constituição pode passar a ter sua base de

legitimidade questionada, ampliando-se o risco de uma indesejável56 revolução

constitucional. Assim,

[...] caso esses dispositivos superconstitucionais sejam mal formulados, compreendidos ou interpretados, poderão servir como barreira intransponível às decisões majoritárias, protegendo privilégios ou instituições incompatíveis com as necessidades impostas por uma história em constante fluxo. Nesse sentido, o constitucionalismo torna-se instrumento antagônico à democracia.57

Ao se impedir a deliberação sobre determinados assuntos importantes, as gerações

futuras vêem-se tolhidas exatamente das discussões mais essenciais à democracia, que são as

liberdades básicas, cristalizadas na irrevogabilidade formalista dos direitos fundamentais.

Aflora assim a tensão entre constitucionalismo e democracia58.

O primeiro aspecto a ser considerado é o da rigidez das cláusulas jusfundamentais. Como “condições para a cooperação na deliberação democrática”, os direitos fundamentais não só possibilitam que seja

55 “As leis devem sempre regular-se, e regulam-se de fato, pelo regime, e não o regime pelas leis”. Aristóteles

apud BARZOTTO, Luis Fernando. Op. Cit., p. 68. 56 Dada a insegurança de um novo ordenamento constitucional, “al Estado se le ha presentado un problema

adicional: si bien su instauración y sus cambios significaron un trauma social, porque supusieron la necesidad de adaptación a nuevas realidades, se mantuvo un ritmo evolutivo que iba abriendo nuevas expectativas”. – VALADÉS, Diego. Consideraciones sobre el Estado Constitucional, la Ciencia y la Concentración de la Riqueza. Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003, p. 55.

57 VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit.,, p. 29. 58 Para ilustrar essa tensão, basta ver-se, por um lado, a premissa constitucionalista de que “a concepção

democrática de lei escrita trazia o risco intrínseco de que todo o direito se tornasse um instrumento dos caprichos momentâneos do povo” (BARZOTTO, Luis Fernando. Op. cit., p. 67) e, por outro, a visão democrática de que “para que as cláusulas pétreas não se convertam num instrumento antidemocrático, de tirania constitucional de uma geração sobre as seguintes, elas têm que ser interpretadas à luz do princípio democrático, como garantias das condições de possibilidade de uma democracia efetiva e substancial, instruídas para impedir que a empreitada intergeracional de construção de um destino coletivo por pessoas livres e iguais não se perca no caminho, tragada por adversidades, miopias, paixões momentâneas ou fraquezas”. – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 19-20. Decerto que esse antagonismo é apenas aparente: não se trata de concepções opostas da constituição, já que “a relação entre democracia e constitucionalismo não significa alternativas excludentes, mas princípios que podem e devem conviver simultaneamente” – PEIXINHO, Manoel Messias. Teoria democrática dos direitos fundamentais. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 218; porém “a correta dosagem dos ingredientes desta fórmula é essencial para o seu sucesso. Por um lado, constitucionalismo (limitações ao poder) em excesso pode asfixiar a vontade popular e frustrar a autonomia política do cidadão, como co-autor do seu destino coletivo. Por outro, uma ‘democracia’ sem limites tenderia a pôr em sério risco os direitos fundamentais das minorias, bem como outros valores essenciais, que são condições para a manutenção ao longo do tempo da própria empreitada democrática” – SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 5-6.

33

proferida uma decisão majoritária, mas também lhe impõem limites, podendo obstar até mesmo os desideratos reformadores do poder constituinte derivado. Ora importa ressaltar que esses limites representam não uma violação da soberania popular, mas uma garantia das precondições indispensáveis para a sua efetiva manifestação. [...] Obviamente, se, a contrario sensu, a norma não constitui uma “condição para a cooperação na deliberação democrática”, não há por que configurar um limite material ao poder de reforma. Isso representaria uma grave violação da soberania popular.59

Daí surgem, então, teorias que abordam os direitos fundamentais sob um aspecto não

puramente formalista, mas afirmam a existência de materialidade nos direitos fundamentais, o

que, segundo determinados critérios, permitiria identificar um núcleo democrático na

constituição – esse, sim, irredutível para o exercício da democracia pelos cidadãos60.

Não desconhecemos o velho refrão: “nem tudo que é legal justo é”. Esta dicotomia entre justiça e Direito é tão avelhantada quanto a humanidade. A lei, também o sabemos, é antes de tudo veículo de qualquer conteúdo, da justiça e da injustiça, da igualdade e da desigualdade. Nem por isso e até por isso devemos cuidar de insuflar no Direito-Sistema os valores pelos quais a vida vale a pena ser vivida: liberdade, igualdade, justiça e segurança. Se o Direito é “dever-ser”, como diz Lourival Vilanova, “é dever-ser de algo”. Esta precisamente a questão. Estamos mais preocupados com o que deve-ser do que propriamente com o dever-ser, que é meramente instrumental, neutro de valor. Quanta amargura em ver Enno Becker recomendando dever ser o Direito Tributário alemão a expressão jurídica do nacional-socialismo de Hitler61. É disso que se trata. Se a lei aceita qualquer conteúdo, bastando o domínio da máquina do Estado, devemos fazer política para que o Direito seja justo. E devemos deslocar a legitimidade do sistema jurídico do plano formal e político para o plano axiológico e, dentre as várias axiologias, admitir como legítima apenas a que prestigie os valores da liberdade, da igualdade, do pluralismo, da solidariedade e da democracia. O Direito, como instrumento de poder, tem sido, ao longo dos tempos, o

59 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, pp. 236-237. 60 “No presente estudo, consideram-se ‘materialmente fundamentais’ aqueles preceitos que configuram

‘condições para a cooperação na deliberação democrática’”. – Id. Ibid., p. 235. 61 Foi exatamente essa flexibilidade excessiva do regimes nazi-fascistas que levou os vários sistemas de direito a

consagrar cartas mais amplas de direitos, engessando mais a ação estatal e protegendo mais a pessoa dos cidadãos: “Depois que os fatos verificados na Alemanha durante a República de Weimar, e em muitos outros países, demonstraram com que facilidade movimentos eversivos da ordem democrática podiam se apoderar do poder desfrutando as possibilidades oferecidas a eles propriamente da aplicação dos princípios do constitucionalismo, interveio assim uma ulterior evolução, por efeito da qual passaram a fazer parte deste compêndio uma série de princípios, em parte pelo menos parecidos com aqueles já acolhidos nos Estados Unidos desde o início do período aqui considerado, a começar por aqueles que estabelecem a “rigidez” da Constituição e o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e, sobretudo, em alguns países, isso determinou uma reavaliação da função do Poder Judiciário, revirando as posições às quais tinha se chegado no período que seguiu a Revolução Francesa”. – PIZZORUSSO, Alessandro. O processo de constitucionalização na Europa. In: PIMENTEL JR., Paulo Gomes (coord.). Direito Constitucional em Evolução: perspectivas. Curitiba: Juruá, 2005, p. 25.

34

instrumento da opressão. Sob as altas pressões do mundo moderno estamos chegando aos pontos de mutação.62

A análise dos direitos fundamentais pelo ponto de vista material abstrai, portanto, da

mera positivação constitucional de um rol de determinadas regras e liberdades que não podem

ser objeto de reforma. Considerando-se a Constituição como o documento que ampara

juridicamente o Estado democrático de Direito, o qual pressupõe uma sociedade pluralista de

cidadãos livres e iguais, esse diploma não deveria se prestar apenas a uma determinada

conjuntura (engessando as gerações futuras), porém atender ao máximo de gerações possíveis,

consolidando um determinado modelo democrático forjado à base de deliberações pelos

próprios cidadãos63 – até porque “a justificação nunca é definitiva e eterna, senão que leva

sempre a novas legitimações”64.

Por isso mesmo a concepção democrática da constituição tenta encontrar-lhe um

núcleo irrestringível, a fim de evitar a hiperinflação de liberdades e outros dispositivos

constitucionais erigidos à categoria de supernormas, intocáveis por quem quer que seja. Vale

a máxima de que um sistema65 será tanto mais perfeito quanto menos princípios houver66, a

fim de se lhe assegurar unidade e consistência. Assim, diminui-se a quantidade de dispositivos

irrestringíveis67 e se abre a Constituição para sua identidade reflexiva68 com a sociedade – o

que é benéfico para a democracia como um todo, porquanto

62 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,

2005, pp. 52-53. 63 “Neste quadro, a maximização das cláusulas pétreas representa um sério atentado contra o princípio

democrático, que postula que o povo deve ter, a cada momento, o poder de decidir os rumos que pretende seguir.” – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 15.

64 TORRES, Ricardo Lobo. As imunidades tributárias e os direitos humanos: problemas de legitimação. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 307.

65 “Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito”. – BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 227.

66 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 37. 67 “Assim sendo, o poder constituinte derivado, que admite a reforma do texto constitucional, é excepcional e

destina-se a oferecer uma possibilidade permanente de atualização da Constituição”. – LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante. Política, constituição e justiça: a legitimidade da jurisdição constitucional e a consolidação das instituições democráticas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal, 15 anos: mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003, p. 134.

68 “A identidade da constituição não significa a continuidade ou permanência do “sempre igual”, pois num mundo sempre dinâmico a abertura à evolução é um elemento estabilizador da própria identidade. Neste sentido se compreende a sugestão do conceito de desenvolvimento constitucional para significar o conjunto de formas de evolução da constituição [...] e para exprimir aquilo que se poderá chamar a garantia de

35

embora essas condições [constitucionais] possam ter sido justas numa época anterior, os resultados acumulados de um grande número de acordos, cada qual aparentemente justo, produzirão efetivamente ao longo do tempo, em combinação com as contingências históricas e as tendências da sociedade, alterações das relações entre os cidadãos, assim como possibilidades que lhes são oferecidas, de tal forma que as condições para acordos livres e eqüitativos não mais ocorrerão69.

Desse modo, resta claro que a cristalização demasiada de preceitos constitucionais, ao

invés de resguardar a democracia, tiraniza a própria constituição, obrigando seus cidadãos a

um regime de injustiças – dado o absoluto distanciamento, com o passar do tempo, entre o

regime preconizado pela lei fundamental (estático) e a realidade social (dinâmica)70, aliado à

impossibilidade de novos ajustes nos acordos previamente firmados pelo constituinte

originário.

O certo é que, sendo a Constituição a principal das leis, a primeira delas – a normal fundamental para mim não passa de uma “intentio majoris legislatoris” – o frágil homem que a elabora, como legítimo representante do povo ou como usurpador do poder, pretende, em alguns pontos, dar toques de definitividade à sua obra, que considera superior, embora sirva, no máximo, para o período em que vive, à luz daquela conjuntura. Em outras palavras, o constituinte, ao pretender imutáveis determinadas cláusulas, normas, princípios ou ideologias, impõe sua inalterabilidade, não permitindo que os poderes constituídos, que poderão se tornar poderes constituintes derivados, venham, quanto àquelas cláusulas, a exercer seu poder legiferante. Ao assim agirem, todavia, esquecem que a história da raça humana muda em velocidade crescente e as conjunturas tendem a se modificar com celeridade cada vez maior, exigindo novos regramentos, impondo novos desafios que não podem ficar amarrados por legisladores sem visão antecipatória.71

identidade reflexiva. Garantir a identidade reflexiva de uma constituição significa dotar a constituição de capacidade de prestação em face da sociedade e dos cidadãos”. – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 1059. Grifos do original.

69 RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13.

70 A excessiva cristalização de dispositivos constitucionais engessa a democracia e inviabiliza o principal parâmetro de legitimação social sob a concepção liberalista proposta, dentre outros, por John Rawls, que é a razão pública. A ampla fundamentalização de disposições constitucionais no plano jurídico adquire, no plano político (em termos de razão pública), ares do que é concebido por Rawls como verdade inteira, avesso à própria idéia de democracia por impedir o exercício da razão pública: torna-se dogma que não pode ser contestado, por ser a única verdade cabível a um determinado número de casos, tão-somente porque ‘o constituinte originário o quis assim’. O conceito de verdade inteira será abordado adiante, no capítulo II, ao ser explorada a razão pública de modo mais exaustivo.

71 MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., pp. 181-182.

36

Daí o dizer-se que o constitucionalismo, em uma república democrática e pluralista,

deve se restringir à esfera da imparcialidade política72, e o chamar-se de fundamentalismo a

técnica legislativa constitucional de se considerar o máximo de direitos como fundamentais ao

homem e, em última análise, à estrutura do Estado e à manutenção da democracia.

A idéia de concepções fundamentalistas dos direitos fundamentais se traduz pela tentativa de inserir, no campo do que está fechado ao dissenso político, doutrinas abrangentes particulares. São fundamentalistas por não tratarem as demais doutrinas como dignas de igual respeito, não lhes reconhecendo a possibilidade de atribuírem conteúdo às prescrições legais mesmo se apoiadas pelas deliberações majoritárias. Ao incorporarem pretensões abrangentes [...] e, ato seguinte, procederem à fundamentalização-releitura de diversos dispositivos constitucionais relativos à intervenção do Estado na economia, essas interpretações cerceiam o espaço democrático e tornam constitucionalmente necessário o que é politicamente contingente.73

Com isso advém a cautela do princípio democrático em se dizer que as cláusulas

pétreas devem se destinar à salvaguarda de valores nucleares e fundamentais da constituição e

servir como princípios auxiliares da interpretação constitucional. “Tem-se, desta maneira, um

constitucionalismo social desformalizado, em que impera uma cultura jurídica positivista,

porém submetido a regras superconstitucionais que pretendem assegurar a intangibilidade dos

valores ético-constitucionais fundamentais”74.

Cabe, destarte, avaliar o que seria esse núcleo irredutível segundo a concepção

democrática de constituição.

Essa questão necessariamente nos remete ao texto constitucional de 1988, que, a fim

de assegurar o exercício da democracia pelos cidadãos brasileiros após um longo período de

ditadura, consagrou expressamente a irrevogabilidade de quase uma centena de regras e

72 SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e

fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 716-717. Por isso mesmo, “toda pretensão de se controlar os resultados produzidos pelo procedimento democrático que extrapole a defesa dos requisitos mínimos para o funcionamento da democracia será espúria e injustificável”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 22.

73 A transcrição envolve alguns conceitos trabalhados pormenorizadamente no capítulo II do presente, ao estudar-se a razão pública nos moldes desenvolvidos por John Rawls. De todo modo, importante realçar que “o que está fechado ao dissenso é a estrutura básica do Estado Democrático de Direito”. – SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 720-721. E até pelo raciocínio transcrito acima, os autores chegam à conclusão de que “o processo de dupla fundamentalização por que passa a Constituição de 1988 deve ser legitimado a partir de argumentos restritos à esfera da imparcialidade política, evitando doutrinas fundamentalistas dos direitos fundamentais” (Id. Ibid., p. 740).

74 VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 29.

37

princípios, além de possuir um outro dispositivo que, de modo aberto, considera irrevogáveis

“outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”75.

Tal maximização logicamente encontra críticas pelo princípio democrático, ante o

conseqüente emperramento da democracia que ela paradoxalmente produz. Entrementes, é

importante verificar ainda o contexto político de elaboração da Carta Constitucional de 1988 e

a obscuridade conceitual do que possa objetivamente, no texto constitucional, ser considerado

cláusula pétrea ou não.

1.2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A OBSCURIDADE CONCEPTUAL NA

DEFINIÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS

DECORRENTES DISSO. EFEITOS NA PRÁTICA DEMOCRÁTICA.

A Constituição da República de 1988, denominada carinhosamente de “constituição-

cidadã”, é a Constituição brasileira com a maior carta de direitos ditos “fundamentais” em

toda a história da nação, considerados irrevogáveis pelo constituinte derivado.

Essas liberdades, hoje expressamente constantes de uma lista apresentada no art. 5o da

Constituição a título de direitos e deveres individuais, são agregadas a uma série de outras, as

quais, nada obstante não estarem ali incluídas, somam-se-lhes em virtude de seu §2o, o qual

também considera, para todos os seus efeitos, as demais “decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do

Brasil seja parte”76.

Tais direitos são considerados irrevogáveis por força do art. 60, §4o, da Constituição, o

qual veda a deliberação de qualquer proposta de emenda ao texto constitucional tendente a

abolir, dentre outras regras, os direitos e garantias individuais (listados exatamente pelo artigo

5o).

Ocorre que essa hipertrofia do constituinte leva a problemas da ordem mais grave

numa democracia: a interpretação do sistema jurídico como um todo77. Não é possível

75 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 5o., §2o.

“Como tal se interpretou ‘o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte’ (ADIN 939, RDA 198/123 e RTJ 151/755)”. CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Constituição Federal interpretada pelo STF. 8a. edição. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 33. Voltaremos ao tema no capítulo IV.

76 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. 77 Nem tocaremos no assunto da efetividade dos direitos, por ser tema da mais alta complexidade e

absolutamente diverso do foco do trabalho. Realçamos, contudo, a opinião de Ives Gandra da Silva Martins, para quem “As Constituções de Portugal e do Brasil não fugiram à regra de um Estado veiculador de direitos sem condições de os garantir, mormente em face da universalização da economia e da competitividade

38

entender peremptoriamente como funciona um sistema jurídico, o que esperar dele, diante de

um texto aberto como o da Constituição de 1988. A confusão se mostra tão grande que

autores se desencontram mesmo quanto à concepção do próprio Estado brasileiro: se de bem-

estar social (criticado por autores como John Rawls, o qual, como visto anteriormente,

entende ser um Estado fadado ao fracasso) ou de democracia deliberativa78.

Se a própria caracterização do Estado brasileiro (o que definirá, em última análise, sua

priorização entre o bem e o justo) não é uníssona, muito maior divergência se dá quando o

assunto é interpretar os direitos fundamentais ante a abertura conceitual da Constituição – que

se reflete em grande vulto na área da tributação, tendo em vista que as Limitações ao Poder

de Tributar podem ser consideradas ou não, de acordo com a concepção utilizada, uma

extensão dos direitos “decorrentes do regime ou dos princípios” adotados pela Constituição.

1.2.1 O contexto de elaboração da Constituição de 1988. A influência da conjuntura na

consagração de direitos.

A primeira grande característica da Constituição da República de 1988 é a sua ruptura

com décadas de regime ditatorial militar. A Constituição surgiu após um esforço de

mobilização por toda a população e significou, por isso mesmo, o fim de inúmeras restrições e

opressões políticas sofridas pelos cidadãos.

A Constituição de 1988, então, “não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores

predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais”79. Por isso mesmo,

boa parte do anteprojeto de constituição (elaborado pela chamada Comissão Afonso Arinos)

selvagem que esta acarreta, à luz de um modelo substitutivo do homem pela máquina e gerador de desemprego estrutural”. Op. Cit., p. 190.

78 Nesse sentido, cf., p.e., Luís Fernando Barzotto, para quem “propõe-se interpretar a democracia na Constituição de 1988 como uma democracia deliberativa” (Op. Cit., p. 175) e Consuelo Yoshida, para quem o Brasil é um “Estado de bem-estar social” (YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Morozimato. A implementação dos direitos fundamentais e o paradigma constitucional: as novas concepções e os desafios aos operadores do direito. In: POZZOLI, Lafayette; SOUZA, Carlos Aurélio Mota de (orgs.). Ensaios em homenagem a Franco Montoro. São Paulo: Loyola, 2001, p. 250). Esse embate em John Rawls se situa na concepção do bem sobre o justo ou do justo sobre o bem e se recomenda a leitura da introdução e do primeiro capítulo de sua Teoria da Justiça para maior aprofundamento da questão. Aparentemente essa divergência se situa apenas no plano filosófico; todavia, no capítulo IV da presente segue exposto que a divergência doutrinária em consagrar todas as limitações ao poder de tributar como direitos fundamentais ou restringi-las a uma esfera de imparcialidade política nada mais é do que transpor essa concepção do Estado brasileiro (se priorizando o bem ou o justo) para a esfera dos direitos do contribuinte.

79 PRADO, Ney. Atitudes diante da Constituição de 1988. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 144.

39

foi reescrita ou modificada, de acordo com os impulsos políticos da Assembléia Nacional

Constituinte80.

Uma dessas modificações – talvez a mais sensível e significativa – deu-se no artigo

436 do anteprojeto, o qual tratava das Emendas à Constituição. O referido dispositivo (artigo

60 da Constituição promulgada) possuía, dentre várias regras, uma em especial, constante de

seu §8o (o qual terminou por ser o §4o no texto final), que tratava exatamente da

irreformabilidade do texto constitucional. Dizia ele que “não será objeto de deliberação a

proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República”81, sem incluir quaisquer

liberdades concedidas pela Carta Política.

A proposta inicial da Comissão Afonso Arinos, então, era a de consagrar uma série de

liberdades sob a alcunha de direitos e garantias (constantes dos artigos 8o a 56, os quais,

totalmente reformulados e redistribuídos ao longo do texto constitucional final, concentraram-

se no art. 5o), porém não engessar o texto constitucional limitando a deliberação das gerações

futuras. No entanto, o que ocorreu foi ampliar-se a gama de liberdades inicialmente

concedidas (chegando mesmo à imprecisão desses direitos, dado o §2o do art. 5o da

Constituição promulgada) e, ao mesmo tempo, refrear a liberdade deliberativa das gerações

futuras, relativamente a uma série de outros assuntos importantes para o exercício da

democracia. Consagrou-se, então, um pacote pronto de liberdades, o qual é eternamente

ampliável, porém irrestringível a qualquer tempo.

Como conseqüência disso, a Constituição de 1988 tornou-se um documento de

atribuição extremada de direitos, a qual se deu por uma soma daquelas várias já consagradas

pelo anteprojeto (que, todavia, não possuía nenhuma previsão de irrevogabilidade) com

outras, sendo o produto final protegido pela formalidade antidemocrática. Surgiu, então, a

chamada “constituição cidadã”.

No Brasil, [...] o receio de uma volta ao passado levou, o constituinte, a distender, consideravelmente, o espectro das cláusulas pétreas, numa constituinte dominada em suas lideranças pelas esquerdas e que teve no Presidente da República e Governador de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas, seus mais fiéis defensores. [...] O certo é que o predomínio das correntes ideológicas de esquerda, de um lado, e o receio de um retorno a um Estado menos democrático, de outro, levou o constituinte brasileiro a alargar a imodificabilidade da Constituição,

80 Decerto que parte dessa modificação se deu por força das aspirações nitidamente parlamentaristas do

anteprojeto; todavia esses instrumentos parlamentares modificados não tocam o aspecto ora desenvolvido, de concessão de liberdades aos cidadãos.

81 BRASIL. Constituição Federal; anteprojeto da Comissão Afonso Arinos; índice analítico comparativo. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

40

muito além do exemplo português, e muito além do que seria ideal para uma Constituição pudesse estar sempre adaptada ou viesse a ser adaptável às circunstâncias e à história.82

A Constituição da República de 1988, portanto, tem sua elaboração marcada

inicialmente por esse misto de euforia de fim do regime militar aliado a um medo de retorno

do mesmo, juridicamente demonstrado pela amplitude dos dispositivos tidos como

irrevogáveis pelo Constituinte originário. “Ao impor essas limitações às gerações futuras o

constituinte demonstrou a sua mais absoluta desconfiança no sistema político que estava

sendo produzido”83.

Esses sentimentos externaram o que Ney Prado chamou de antiautoritarismo. Para o

autor, o Constituinte de 1988 preocupou-se muito mais com a punição do passado do que com

a preparação do futuro. E esse antiautoritarismo teve, na verdade, preconceitos voltados para

instituições públicas – enquanto instrumentos de opressão social –, mas também para

instituições privadas – instrumentos de exploração dos trabalhadores pelos detentores dos

meios de produção. “Os constituintes, com o compreensível desejo de corrigir os males do

passado, esqueceram do Brasil que está por vir. Impregnados de preconceito, a rigor, não

redigiram uma autêntica Constituição: fizeram uma anticonstituição”.84

Por isso mesmo, movida por tantas emoções (e, conseqüentemente, pouco

racionalismo), a par de tentar consolidar a democracia por longas datas, a Constituição

terminou por se apresentar como um diploma conjuntural e circunstancial – em outras

palavras, casuístico85 –, além de altamente comprometido com determinadas classes e não

com a sociedade como um todo.

A Carta de 1988, como já consignado, tem a virtude suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a consolidação do mais longo período de estabilidade política da história do país. Não é pouco. Mas não se trata, por suposto, da Constituição da nossa maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Por vício e por virtude, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de

82 MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., p. 179. O autor atribui ainda a consagração ampla de direitos à

presença, no Brasil, dos constitucionalistas portugueses Jorge Miranda, José Joaquim Gomes Canotilho e Marcelo Rebelo de Souza. Id. Ibid., p. 177.

83 NOGUEIRA, Cláudia de Góes. Op. Cit., p. 85. 84 PRADO, Ney. Op. Cit., pp. 152-153. 85 “O produto final de seu trabalho foi heterogêneo. De um lado, avanços, [...]. De outro, no entanto, o texto

casuístico, prolixo, corporativo, incapaz de superar a perene superposição entre o espaço público e o espaço privado no país”. – Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003, p. 182. No mesmo sentido, Ney Prado, Op. Cit., pp. 153-154.

41

interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e privilégios corporativos. A euforia constituinte – saudável e inevitável após tantos anos de exclusão da sociedade civil – levou a uma Carta que, mais do que analítica, é prolixa e corporativa.86

Assim, a Constituição nasceu já pronta para ser objeto de críticas, tão-logo a euforia

inicial passasse87. A unanimidade de pensamento, apesar de existir quanto à libertação

política, mostrou-se, diante do texto final (altamente fragmentado e heterogêneo, resultante da

consagração dos anseios de diversas classes sociais e do próprio Estado88, estes por vezes

conflitantes89), apenas momentânea e aparente. Com isso surgiu um problema: buscar o

“verdadeiro significado da democracia”90.

Ora, a própria busca pelo significado da democracia (como um dos reflexos do projeto

de Estado delineado pela Constituição) demonstra que não havia um consenso quanto ao mais

básico para uma sociedade pluralista que se pretende justa e razoável. Como conceber um

Estado democrático de Direito, ou mesmo uma sociedade bem ordenada, sem se saber sequer

qual a democracia desenhada pela Constituição? A pergunta se coloca ainda mais contundente

se considerarmos que as bases desse problema são formalmente irreformáveis, diante da

radical consagração de liberdades propiciada pela Carta Política.

86 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do

Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 224-225. No mesmo sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 129: “Aproveitando a fragilidade do sistema representativo e a fragmentação do sistema partidário, os interesses corporativos tiveram presença marcante durante a Constituinte. O empresariado, principalmente o nacional, também trabalhou arduamente durante o processo constituinte, alcançando diversos privilégios na redação final do texto. [...] A abertura às pressões externas, no entanto, também permitiu uma ação tremendamente eficaz de lobbies e grupos de pressão na defesa de interesses privados junto aos constituintes. Isso facilitou que interesses mais diversos e contraditórios fossem acolhidos no seio da Constituição de 1988.”

87 “Hoje ela [a “Constituição cidadã”] é criticada – eu mesmo o faço –, mas naquele momento a Constituição tinha que ter uma marca muito forte de liberdade democrática, e ela tem, e de reivindicação social. Depois de tantos anos de abastardamento da vida política brasileira, de marginalização da população, tinha que haver isso.” CARDOSO, Fernando Heneique. in Dr. Ulysses – o homem que mudou o Brasil. Célia Soibelmann Melhem e Sonia Morgenstern Russo (org.). São Paulo: Prêmio, 2004, p. 98. Sobre a convivência da Assembléia Nacional Constituinte, cf., na mesma obra, os depoimentos de outros constituintes, como Mario Covas e Nelson Jobim.

88 “[...] a Constituição foi o resultado de uma determinada conjuntura política em que nenhum dos grupos conseguiu estabelecer hegemonicamente seu projeto político. Assim, diversos dispositivos constitucionais resultam da força de maiorias meramente eventuais, aglutinadas especialmente para a inserção de um tópico no texto constitucional”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 133.

89 “Com efeito, da nada adiantam seus princípios, do Tiítulo I e suas abundantes setenta e duas declarações de liberdades e garantias, esmiuçadas no quilométrico artigo 5o do Título II se, contraditoriamente, elas acabam sendo anuladas pela complicada máquina do estado intervencionista e fiscalista que vem minudentemente construída nos sete Títulos restantes”. PRADO, Ney. Op. Cit., p . 154.

90 Id. Ibid., p. 145.

42

Daí o dizer-se, por exemplo, que “uma imposição do texto constitucional tal como

aprovado em 1988, poderia representar uma incapacidade do Estado constitucional em se

adaptar às novas condições sociais e políticas, identificadas na política de governo”91, ou

mesmo que “para uma Constituição muito mais voltada para o transformar do que para o

conservar, esta limitação vai longe demais na garantia do status quo”92.

Mas o problema não se limita à contextualização da redação constitucional. Há ainda

uma questão mais pungente, que diz respeito à interpretação do texto da Constituição de 1988

diante da abertura conceitual quanto às regras e liberdades consideradas fundamentais.

O conjunto de dispositivos constitucionais indefinidos tidos como irrestringíveis pelas

gerações futuras encontra-se na conjugação dos artigos 60, §4o, e 5o, §2o, da Carta.

O artigo 60, §4o, possui uma lista de regras e liberdades consideradas irrevogáveis.

Dentre aquelas, importa-nos o inciso IV, que se refere aos “direitos e garantias individuais”.

Ao mesmo tempo, o art. 5o da Constituição (único do capítulo de direitos e deveres

individuais e coletivos, o qual se localiza no Título de direitos e garantias fundamentais93),

em seu §2o abre o leque da irrevogabilidade para “outros decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do

Brasil seja parte”.

Com isso, surge outro problema fulcral na construção da democracia brasileira: afinal

de contas, quais são objetivamente os direitos tidos como irreformáveis pelo constituinte? O

campo da subjetividade ampliou-se enormemente. Em última análise, é possível dizer que a

palavra final sobre quais são os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros fica a cargo do

Supremo Tribunal Federal. Até lá (e até que se sedimente a jurisprudência do Supremo

91 LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante. Op. Cit., pp. 134-135. 92 SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:

TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 41.

93 Devido a essa diferença conceitual entre os dispositivos da Constituição, Cláudio Pereira de Souza Neto traz ainda uma discussão preliminar que merece destaque. “O problema se torna ainda mais enigmático quando relacionado ao tema dos limites materiais ao poder de reforma. A que se refere o artigo 60, §4o, inciso IV? Aos “direitos e garantias individuais”, como está expresso no Texto, ou aos “direitos e garantias fundamentais”? A Constituição, ao mencionar, como detentores do status de cláusula pétrea, apenas os “direitos e garantias individuais”, dá espaço para se argumentar que somente aqueles inseridos no art. 5o são considerados realmente fundamentais. Se o critério da interpretação literal desse dispositivo é combinado com o da posição topográfica do §1o do art. 5o, passa a contar com um argumento formalista bastante incisivo a corrente doutrinária qu restringe o sistema de direitos fundamentais aos estabelecidos no art. 5o. No entanto, se a Constituição, no art. 60, §4o, IV, fala genericamente em “direitos individuais”, por que considerar que apenas os formalmente fundamentais (art. 5o) devem contar com esse tratamento especial? Os direitos constitucionais individuais que não são direitos fundamentais figuram como cláusulas pétreas? O que define, afinal, se uma norma é ou não cláusula pétrea?”. Mais à frente o autor ainda considera, diante do §2o do art. 5o, que a Constituição consagrou a abertura do sistema brasileiro de direitos fundamentais. SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 231-232.

43

Tribunal Federal, o qual não raras vezes muda seus entendimentos) podemos enfrentar

décadas sem a menor segurança do que seja ou não direito básico – e, conseqüentemente,

irrestringível – dos cidadãos. Isso sem contar que a palavra final ficará a cargo de umas

poucas pessoas, não eleitas pela população, as quais terão que adotar as decisões políticas

mais importantes para a sociedade94.

Ronald Dworkin, ao abordar todas as controvérsias surgidas em virtude do uso de

termos vagos na consagração de direitos pela constituição americana e pela Bill of Rights

trouxe um questionamento quanto às decisões que serão tomadas pela Corte Constitucional.

Qualquer caso subsumido em garantias constitucionais “vagas” coloca duas questões: (1) que decisão é exigida pela adesão estrita, isto é, fiel, ao texto da Constituição ou à intenção daqueles que o adotaram? (2) Que decisão é exigida por uma filosofia política que adota uma concepção estrita, isto é, estreita, dos direitos morais que os indivíduos têm contra a sociedade?95

É de se dizer, assim, que a abertura conceitual da Constituição não apresenta nenhuma

vantagem aos cidadãos. Se por um lado ela possui uma boa intenção de resguardar direitos,

por outro ninguém sabe quais são esses direitos. Ao que parece, nem o próprio constituinte

sabia ao certo, mas no afã de consagrá-los abriu a irrevogabilidade também para o terreno do

desconhecido. Numa sociedade pluralista e altamente complexa, tratar os direitos

fundamentais dessa forma é no mínimo temerário.

De todo modo, resta claro diante disso que

sem ir além da análise formal (levando em conta, na atividade interpretativa, apenas critérios como o modo de positivação da norma e o seu lugar na topografia constitucional), deixa o imbróglio acima sumariado sem solução. A análise da forma jurídica se mostra gravemente incapaz de

94 “Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é

prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham as suas preferências e valores ao jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação de poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o Direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico. Ela substitui, em suma, o governo da lei pelo governo dos juízes.” – SARMENTO, Daniel. Livres e iguais – estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 200.

95 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 210. Frise-se que a ponderação de Dworkin limita-se a um texto que tem conceitos abertos em um rol taxativo; mais aguda ainda se mostra a problemática brasileira, que além de ter diversos conceitos abertos como direitos expressamente consagrados, sequer possui um rol definido desses direitos.

44

chegar a um bom termo quanto à definição de abrangência do sistema brasileiro de direitos fundamentais.96

Torna-se assim necessário buscar um parâmetro de materialidade para a definição do

que efetivamente seja direito fundamental. Esse parâmetro se coloca sob dois aspectos. O

primeiro deles é definir, ainda que se trate do art. 5o da Constituição, o que é direito

fundamental ou não (assumindo-se, nesse ponto, que o constituinte equivocou-se na

fundamentalização de determinados direitos, e abstraindo-se totalmente da forma adotada por

ele ao inserir determinados direitos no rol de irrevogabilidade – o que leva inclusive a um

questionamento dos incisos arrolados no art. 5o). O segundo deles é estabelecer

objetivamente, ante a indefinição do §2o do art. 5o (ou seja, dada a abertura conceitual da

Constituição), o que seja um direito decorrente do regime e dos princípios adotados pela Carta

Política.

O presente trabalho se situa na investigação sob o segundo ponto de vista. As

limitações constitucionais ao poder de tributar não foram expressamente consagradas como

irreformáveis pelo art. 60, §4o, da Constituição; porém, são consideradas irreformáveis pela

doutrina especializada do direito tributário, em virtude exatamente da conjugação, a esse

dispositivo, do §2o do art. 5o, e da premissa básica de que “o Estado, ao exercer a tributação,

deve observar os limites que a ordem constitucional lhe impôs, inclusive no que atina com os

direitos subjetivos públicos das pessoas”97. Não discordamos da premissa de respeito aos

direitos fundamentais, que de fato se mostra como um postulado básico de qualquer relação

jurídica num Estado democrático de Direito. O problema todo é definir, sem comprometer as

gerações futuras, quais são esses limites intransponíveis e irredutíveis da ação estatal.

Por isso mesmo, conforme visto acima, torna-se necessário justificar por que

determinados direitos ou liberdades podem ser considerados cláusulas pétreas, especialmente

em sede de tributação. E mais ainda, pensar em quais parâmetros de justificação utilizar.

1.3 A FUNDAMENTALIDADE MATERIAL DA CONSTITUIÇÃO: NECESSIDADE DE

PARÂMETROS DE JUSTIFICAÇÃO PAUTADOS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA.

ESCOLHA PELA RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS.

96 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, p. 234. 97 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 406.

45

A busca pela justificação dos preceitos constitucionais a serem considerados

irrestringíveis deve se dar, num Estado democrático de Direito, de acordo com o princípio

democrático. Somente atendendo ao princípio democrático se poderá pensar num Estado

efetivamente democrático de Direito, e não draconiano – ou, no dizer de alguns autores,

fundamentalista – de Direito.

Nessa esteira, existem várias teorias filosóficas apresentadas para justificar

determinadas normas ou condutas a serem adotadas pelo Estado ou mesmo pelos cidadãos

num fórum político público, que envolva assuntos importantes para a democracia.

Dentre as diversas concepções teóricas existentes, avulta o pensamento de John Rawls

para a justificação política pública.

Num trabalho que pretende explorar os problemas concernentes à adoção de cláusulas constitucionais que não podem ser alteradas por emenda à Constituição o pensamento de John Rawls é provocador. Pois, se as cláusulas superconstitucionais são uma limitação à democracia, [...] elas precisam de uma justificação muito forte se pretendem se legitimar. [...] necessário se faz buscar numa teoria procedimental da justiça, como a de Rawls, os fundamentos de uma ordem constitucional justa e, por conseqüência, os elementos constitucionais que poderiam se instituir legitimamente como obstáculos ao poder constituinte reformador98.

John Rawls adota uma teoria da justiça segundo a qual o justo deve prevalecer sobre o

bem, ao contrário de outras teorias (como a utilitarista, por exemplo) que entendem que o bem

deve prevalecer sobre o justo.

Ao traçar essa linha-mestra, John Rawls trabalha com alguns preceitos que conduzirão

uma sociedade bem ordenada ao pleno exercício da deliberação democrática, considerando-se

os cidadãos como livres e iguais. Esse tratamento igualitário deve advir dos concidadãos e do

próprio Estado em suas relações jurídicas. “O pressuposto mais básico de Rawls não é o de

que os homens tenham direito a determinadas liberdades que Locke ou Mill consideravam

importantes, mas que eles têm direito ao igual respeito e à igual consideração pelo projeto das

instituições políticas”99.

É ainda importante lembrar, especialmente nas relações entre Estado e cidadãos (como

na relações tributárias), que esse tratamento igualitário pressupõe que

98 VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 204. 99 DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 282.

46

O governo deve não somente tratar as pessoas com consideração e respeito, mas com igual consideração e igual respeito. Não deve distribuir bens ou oportunidades de maneira desigual, com base no pressuposto de que alguns cidadãos têm direito a mais, por serem merecedores de maior consideração. O governo não deve restringir a liberdade, partindo do pressuposto de que a concepção de um cidadão sobre a forma de vida mais adequada para um grupo é mais nobre ou superior do que a de outro cidadão. Considerados em conjunto, esses postulados expressam aquilo que se poderia chamar de concepção liberal da igualdade; mas o que expressam é uma concepção de igualdade e não uma concepção de igualdade como licença.100

Nessa busca pela priorização da justiça em relação ao bem, Rawls estabeleceu um

instrumental teórico que envolve especialmente princípios de justiça e um parâmetro de

justificação pública, que é a razão pública, a fim de abordar teoricamente a estrutura básica da

sociedade – sobre a qual se constrói a democracia e, conseqüentemente, viabiliza-se (ou não)

a realização da justiça. “Mediante o uso público da razão – que exclui toda e qualquer forma

de coação, exercício da força ou do poder econômico, assim como enredamentos de natureza

retórica ou emotiva – os cidadãos haveriam de obter a justificação política de seus resultados,

prova cabal do consenso porventura atingido”101. Trata-se, de fato, de

[...] a relatively Young subdiscipline that has emerged to occupy the attention of scholars in the three decades since the end of World War II. If we look only at the intellectual developments of the 20th century, public choice is “new”, and it has, I think, made a major impact on the way that living persons view government and political process. The public philosophy of 1978 is very different from the public philosophy of 1948 or 1958. there is now much more scepticism about the capacity or the intention of the government to satisfy the needs of citizens102.

A razão pública é o tipo de argumentação racional a ser adotada pelos cidadãos a fim

de justificar regras e condutas que envolvam questões de justiça básica, de modo que todos os

demais as aceitem como válidas na convivência social.

Para Rawls, a razão pública tem justamente a função de permitir que os princípios possam ser justificados perante todos e aplicados corretamente. Para isso, formula “diretrizes de indagação” cujo escopo é garantir que argumentação política, pelo menos quando estão em jogo questões constitucionais básicas, mostre-se não apenas “persuasiva” mas “racional”. A razão pública prescreve que a argumentação política apele “unicamente

100 Id. Ibid., pp. 419-420. 101 RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., p. 10. Grifos do original. 102 BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice.

In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan

47

para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos”. A contrário senso, ela proíbe que, “ao discutir sobre elementos constitucionais essenciais e sobre questões de justiça básica”, apelemos para “doutrinas religiosas e filosóficas abrangentes” ou, p. ex., para “teorias econômicas complicadas de equilíbrio geral, quando controvertidas”.103

Assim, utilizando uma argumentação racional que coloque o justo sobre o bem e sirva

para que todos os cidadãos, mesmo numa sociedade complexificada, vejam-se como livres e

iguais, com igual consideração e respeito, Rawls coloca como centro da argumentação o bem

comum (entendido como “o que se pode legitimamente esperar da estrutura básica de

sociedade”104) e não a mera agregação de interesses privados. Dessa forma ele elimina da

discussão aquilo que chama de “doutrinas abrangentes” – concepções particulares, filosóficas

ou religiosas, que não envolvam argumentos políticos por assim dizer.

Interessante realçar que, dadas as suas características, a razão pública, ainda que se

colocando num plano argumentativo (que poderia dar a entender uma posição apenas ritual na

democracia),

[...] não se limita à explicação do conceito de argumentação jurídica racional (e, com isso, de pretensão de correção) e à sua função como critério de correção hipotético. Contém simultaneamente exigências sobre as argumentações que ocorrem de fato. Nesse sentido, constituem um critério para a análise das limitações necessárias na busca da decisão jurídica, por exemplo, no processo. Por isso, deve-se partir das fórmulas expostas, isto é, de que em uma determinada situação estão justificadas aquelas limitações que, em comparação com outras ou por si mesmas, oferecem uma maior oportunidade para alcançar um resultado que também teria sido alcançado sob condições ideais.105

A razão pública, portanto, atribui contornos imprescindíveis ao discurso a ser adotado

pelas Cortes Constitucionais ao decidir questões de justiça básica – seja para julgar o mérito

ou mesmo para entender se se trata ou não de uma questão de justiça básica. E é justamente ao

definir se um caso envolve ou não assuntos de justiça básica, que a Corte Constitucional

poderá identificar se uma determinada norma constitucional é uma cláusula pétrea ou não.

103 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, p. 115. 104 Id. Ibid., p. 112. 105 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2005, pp. 280-281.

48

Frise-se que a Suprema Corte, por decidir justamente sobre casos constitucionais (ou

seja, da base do ordenamento jurídico) é considerada um ambiente de razão pública por

excelência, para John Rawls. Diz ele que

Num regime constitucional com revisão judicial, a razão pública é a razão de seu supremo tribunal. Esboço agora duas questões a esse respeito: a primeira é que a razão pública é bastante apropriada para ser a razão do tribunal no exercício de seu papel de intérprete judicial supremo, mas não o de intérprete último da lei mais alta; e a segunda é que o supremo tribunal é o ramo do estado que serve de caso exemplar de razão pública.106

A razão pública adquire, então, nos moldes propostos por John Rawls, uma ferramenta

utilíssima para se buscar o que pode ser considerado, ou não, direito fundamental “decorrente

dos princípios ou do regime adotado” pela Constituição (entendida não como um documento

formal, mas sim como uma carta com os melhores ajustes políticos possíveis realizados entre

cidadãos livres e iguais107), no contexto de uma argumentação racional que se pauta na

democracia – e ao mesmo tempo justifica determinadas regras ou condutas estatais.Por isso

mesmo, dedicamo-nos a estudá-la no capítulo que segue, a fim de entendermos suas bases,

contornos e limites. O que estiver fora do âmbito de justificação da razão pública, não poderá

ser considerado afeto à estrutura básica da sociedade e, conseqüentemente, não poderá ser

considerado elemento de justiça básica apto a ser erigido à categoria de direito fundamental,

nem pelos cidadãos e nem mesmo pela Corte Suprema.

106 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 281. 107 “Hence, there will be the need for ‘constitutions’, for ‘rules’, to constraint the behavior of persons, privately

and collectively, and public choice offers the normative understanding necessary to lay down ‘better’ rules”. – BUCHANAN, James M. Public choice and ideology. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 176.

49

2 A RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS COMO PARADIGMA PARA A

DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO.

Conforme visto anteriormente, a razão pública não só pode, como se recomenda, ser

utilizada como parâmetro de justificação no contexto da democracia deliberativa.

A razão pública, nos moldes apresentados por John Rawls, está bem sistematizada e

permite o aprofundamento de modo mais pormenorizado do que sua abordagem por outros

autores (dentre os quais, por exemplo, podemos citar Jürgen Habermas108).

Esse procedimento de justificação (o qual, nada obstante se apresentar inicialmente

como um modo de checagem de legitimidade de normas e/ou condutas) carrega alguns

elementos substantivos de justiça, os quais merecem a devida atenção. Além disso, possui

detalhes importantes que a caracterizam como tal – diferenciando-a de outros tipos de

justificativas argumentativas, defendidas por doutrinas abrangentes ou razões não-públicas – e

situam o discurso político público dentro da esfera de deliberação democrática.

Essas peculiaridades da razão pública nos moldes desenvolvidos por Rawls109, sua

dupla face de justiça procedimental/substantiva, sua delimitação e campo de ação seguem

pormenorizadas abaixo.

2.1 CONCEITO INICIAL.

108 A propósito, indica-se ROCHLITZ, Rainer (coord.). Habermas – o uso público da razão. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 2005. A obra possui diversos artigos nos quais seus autores se debruçam sobre a abordagem do tema pelo filósofo alemão.

109 “Esse atrelamento da deliberação a princípios de justiça previamente justificados é o aspecto distintivo do modelo rawlsiano de razão pública”. – SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional, neutralidade política e razão pública – elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 196.

50

A idéia de razão pública foi apresentada por John Rawls, pela primeira vez, em sua

obra Liberalismo Político110, sendo mais bem desenvolvida em seu ensaio A idéia de razão

pública revista111.

Diz Rawls que a idéia de razão pública integra “uma sociedade democrática

constitucionalmente ordenada”112, sendo que tanto a forma quanto o conteúdo dessa razão são

parte da própria idéia de democracia, pois uma característica básica da democracia é um

razoável pluralismo, concebido como resultado de uma cultura de instituições livres.

Partindo dessa premissa inicial, Rawls afirma que:

Os cidadãos percebem que não podem chegar a um acordo ou mesmo aproximar-se da compreensão mútua com base nas suas doutrinas abrangentes irreconciliáveis. Em vista disso, precisam considerar que tipos de razões podem oferecer razoavelmente um ao outro quando estão em jogo perguntas políticas fundamentais. Proponho que, na razão pública, as doutrinas abrangentes de verdade ou direito sejam substituídas por uma idéia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como cidadãos113.

Assim, a idéia de razão pública rawlsiana pressupõe seu distanciamento substancial

em relação a qualquer doutrina abrangente114, não sendo feitas críticas, pela razão pública,

quanto ao conteúdo de nenhuma dessas visões particularistas da realidade, salvo se for

percebida alguma incompatibilidade entre essas visões e os elementos essenciais da razão

pública e de uma sociedade política democrática115. Acerca disso, diz Rawls que a exigência

110 RAWLS, J. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp. 261 e

ss. 111 Rawls inicia sua Idéia de Razão Pública Revista, afirmando que sua primeira exposição da idéia de razão

pública foi na introdução de sua segunda edição, de 1996, não disponibilizada pela ed. Ática em sua tradução. Em O Liberalismo Político, ele inicia conceituando a razão pública como “a razão de cidadãos iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição” (p. 263); porém, mais à frente de sua obra, bem como ao longo de toda a Idéia de Razão Pública Revista, esse conceito se mostra mais abrangente, abarcando praticamente todo e qualquer ato estatal onde questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais estão em jogo. A respeito, veja-se seu conceito resumido em Justiça como Eqüidade – uma reformulação, transcrito mais à frente.

112 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 173.

113 Id. Ibid., p. 174. A respeito, cf. COHEN, Joshua. Democracy and Liberty. In: ELSTER, John (Ed.). Deliberative Democracy. Cambridge University Press: 1998, p. 195: “Let us say, then, that a consideration is an acceptable political reason just in case it has the support of the different comprehensive views that might be endorsed by reasonable citizens”.

114 O autor utiliza a expressão doutrinas abrangentes, referindo-se às várias visões existentes acerca da realidade, de todos os tipos (religiosa ou não). No entanto, quando houver uma referência ao modo como as pessoas encaram a política e seus componentes, ele se vale da expressão concepção.

115 Rawls chega a citar exemplos como Europa, EUA, Israel e Índia, onde, apesar de haver divergências quanto às doutrinas influentes e ativas naquelas democracias, a busca pela idéia adequada de razão pública é um interesse que confronta todas elas. Cf. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174.

51

básica para uma doutrina considerada razoável, nesse aspecto, é aceitar um regime

democrático constitucional e a idéia de lei legítima que o acompanha116.

Logo de início se percebe, portanto, que John Rawls aceita como perfeitamente

plausível (mesmo em uma sociedade onde ocorram divergências básicas quanto aos modos de

vida e das visões acerca das realidades que a compõem) encontrar-se um consenso de posturas

políticas consideradas razoáveis por todo o organismo social, em uma situação de tolerância

política mútua.

Essa tolerância teria profundas raízes morais e políticas, “explicitando”, nos dizeres do

próprio autor, “no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a

relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes

entre si”117. Por isso mesmo Nythamar de Oliveira precisamente resume:

Para Rawls, a razão pública é a razão dos cidadãos de uma sociedade democrática liberal na medida em que compartilham uma cidadania igual, qual seja, a igual liberdade de todos por todos reconhecida e almejada, através de argumentos e critérios que possam ser pública e consensualmente estabelecidos na elaboração de uma sociedade mais justa. Na medida em que a razão política é compartilhada por todos, publicamente, pode-se falar de uma democracia deliberativa, que se mostra como a melhor forma de governo do povo, pelo povo e para o povo118.

Ou, como o próprio Rawls explica sucintamente em Justiça como Eqüidade – uma

reformulação: “em suma, a razão pública é a forma de argumentação apropriada119 para

cidadãos iguais que, como um corpo coletivo, impõem normas uns aos outros apoiados em

sanções do poder estatal”120.

116 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174. Rawls afirma mais: aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente, a própria idéia de razão pública.

117 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 175. Frise-se que, não obstante o autor fazer menção à expressão “devem” (que sugere um dever-ser, uma meta, um objetivo idealístico), ele traça uma nítida diferença entre idéia e ideal de razão pública, exposta separadamente adiante.

118 OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 33-34. 119 “O valor das regras e formas do discurso jurídico não se limita à explicação do conceito de argumentação

jurídica racional (e, com isso, de pretensão de correção) e à sua função como critério de correção hipotético. Contém simultaneamente exigências sobre as argumentações que ocorrem de fato. Nesse sentido, constituem um critério para a análise das limitações necessárias na busca da decisão jurídica, por exemplo, no processo. Por isso, deve-se partir das fórmulas expostas, isto é, de que em uma determinada situação estão justificadas aquelas limitações que, em comparação com outras ou por si mesmas, oferecem uma maior oportunidade ara alcançar um resultado que também teria sido alcançado sob condições ideais.” – ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005,

120 RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 130.

52

Assim, percebe-se de plano um forte aparato discursivo na razão pública. E nem

poderia ser diferente, porquanto a razão pública surge como forma de coesão social,

justificando racionalmente atos e procedimentos estatais que envolvam questões de justiça e

elementos constitucionais essenciais121.

2.2 OS MOTIVOS E AS FORMAS PELOS QUAIS A RAZÃO É PÚBLICA. RAZÕES

NÃO-PÚBLICAS. RAZÃO SECULAR.

Necessário também, no estudo da razão pública de Rawls, explicar quais seriam as

circunstâncias pelas quais a razão pública é efetivamente pública, isto é, o que diferencia os

elementos racionais públicos de uma razão não-pública122, destituída dos caracteres

essenciais do discurso político público. São, por assim dizer, os limites de aplicação do

discurso racional público. Como diz o próprio Rawls: “a natureza da razão pública ficará mais

clara se considerarmos as diferenças entre ela e as razões não-públicas. Em primeiro lugar, há

muitas razões não-públicas, mas apenas uma razão pública”123.

Em O Liberalismo Político124, Rawls se dedica ao tema das razões não-públicas,

porém somente em A Idéia de Razão Pública Revista o autor insere e explica outro elemento

de grande importância para sua leitura, que é a razão secular, vista pouco mais adiante.

A resposta à pergunta sobre a caracterização da razão pública como tal, encontra-se

dividida em dois grandes blocos: o primeiro, referente à presença dos caracteres essenciais da

razão pública; e o segundo, porém não menos importante, relativo às formas, ou maneiras,

pelas quais a razão se torna pública.

Nesse sentido, diz Rawls125:

121 A fim de simplificar a exposição, valemo-nos da apresentação resumida feita por Cláudio Pereira de Souza

Neto: “Rawls divide os elementos constitucionais essenciais em dois grupos. Em um primeiro grupo, ele inclui “os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do Estado e do processo político: as prerrogativas do legislativo, do executivo e do judiciário; o alcance da regra da maioria”. No segundo grupo, ele arrola “os direitos e liberdades fundamentais e iguais de cidadania que as maiorias legislativas devem respeitar, tais como o direito ao voto e à participação na política, a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento e de associação, assim como as garantias do império da lei”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 113.

122 Vale frisar que o termo não-público usado por Rawls não pode ser equiparado a privado, como ele mesmo bem o disse em nota de rodapé em O liberalismo político, p. 269: “A distinção entre público/não-público não equivale à distinção entre público e privado. Ignoro a esfera do privado: uma razão privada é coisa que não existe. O que existe é a razão social – as muitas razões de associações da sociedade que constituem a cultura de fundo; [...].”

123 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 269. 124 Id. Ibid., pp. 269 e ss (referentes ao § 3). 125 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 175-176.

53

Além disso, tal razão é pública de três maneiras: como razão de cidadãos livres e iguais, é a razão do público; seu tema é o bem público no que diz respeito a questões de justiça política fundamental, cujas questões são de dois tipos, elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica; e a sua natureza e conteúdo são públicos, sendo expressos no raciocínio público por uma família de concepções razoáveis de justiça política que se pense que possa satisfazer o critério de reciprocidade.

Pela simples assertiva acima transcrita de que o tema é o bem público no que diz

respeito a questões de justiça política fundamental, ainda não se consegue obter uma chave

definitiva para a perfeita compreensão da forma pela qual a razão pública efetivamente se

comporta como tal. Isso se verifica, como dito acima, em O Liberalismo Político, recebendo

uma resposta mais completa (mediante a incorporação do elemento de razão secular) em A

Idéia de Razão Pública Revista.

A razão secular, semelhantemente à razão pública, também é efetuada pelos homens,

igualmente em relações políticas, porém não possui a peculiaridade da razão pública. Em

Justiça como eqüidade: uma reformulação, o autor aborda essa segunda espécie de razão,

lecionando:

Devemos distinguir a razão pública daquilo a que às vezes nos referimos como razão secular e valores seculares. Estes não são os mesmos que a razão pública. Defino razão secular como o raciocínio em função de doutrinas não-religiosas abrangentes. Tais doutrinas e valores são amplos demais para servir aos propósitos da razão pública. Os valores políticos não são doutrinas morais, por mais disponíveis e acessíveis que possam ser à nossa razão e à nossa reflexão de senso comum. As doutrinas morais estão no mesmo nível que a religião e a primeira filosofia126.

É interessante verificar que, não obstante a razão secular conter valores políticos e

morais, assim como a razão pública, ela é destituída de um elemento fundamental da razão

pública, que é a concepção política de justiça. Dessa forma, nem todo discurso, por mais que

envolva questões públicas, e por mais discutido que seja em um fórum político público,

poderá ser concebido como uma discussão que envolva razão pública. Isto é, o espaço pode

ser público, o tema pode ser de interesse público127; mas, se o tema não comportar discussões

126 Id. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,

2003, p. 188. 127 Aqui concebido como um interesse geral da sociedade.

54

referentes a concepções políticas de justiça básica, a razão envolvida não será pública – no

máximo, secular.

Rawls, em A idéia de razão pública revista, chega a dar um conceito de razão secular

sem aprofundar-se, afirmando apenas como adotado por “alguns” como qualquer argumento

reflexivo e crítico, publicamente inteligível e racional, aplicado em discussões

comportamentais para considerar determinadas condutas como indignas ou degradantes128. De

toda forma, o importante é que o autor afirma a razão e os argumentos seculares como fora do

domínio do político129. Ou seja, é a razão humana utilizada em discussões não afetas a

questões de justiça básica ou sem a presença de elementos constitucionais essenciais –

próprios da discussão envolvida pela razão pública.

Assim se pode compreender, com maior precisão, o que Rawls afirma:

Entre as razões não-públicas, temos as de todos os tipos de associações: [...]. como já disse, para agir de forma razoável e responsável, os órgãos coletivos, assim como os indivíduos, precisam de uma forma de argumentação sobre o que deve ser feito. Essa forma de argumentação é pública com respeito a seus membros, mas não-pública com respeito à sociedade política e aos cidadãos em geral. As razões não-públicas compreendem as muitas razões da sociedade civil e fazem parte daquilo que chamei de “cultura de fundo”, em contraste com a cultura política pública130.

Assim, pode-se verificar que as formas pelas quais a razão pública se manifesta como

tal, são todas aquelas que comportarem os caracteres essenciais de justiça básica e de

elementos constitucionais essenciais:

Rawls does not propose that public reason regulate all debate and decisions; in order to establish an overlapping consensus, the guidelines of public reason need only apply to “fundamental matters” – for example, constitutional essentials and questions of basic justice – and not to “our personal deliberations and reflections about political questions.131

O importante é frisar, desde já, que a razão pública, nada obstante se manifestar, nas

mais diferentes culturas, com conteúdos diferenciados, constitui-se dos mesmos elementos 128 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 195. 129 Como político aqui, entenda-se político público. Pois, como o próprio Rawls afirma em diversas passagens,

mesmo questões legislativas (com conteúdo nitidamente político) podem escapar da razão pública. Nesse sentido, v.g., veja-se O liberalismo político, p. 263.

130 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 269. 131 YOUNG, Shaun P. Divide and Conquer: separating the reasonable from the unreasonable, in Journal of

Social Philosophy, vol. 32, no. 1, Spring 2001, p. 60. 2001: Blackwell Publishers.

55

formais (ou seja, tratará sempre de questões fundamentais da justiça) – caso contrário, ela

jamais poderá ser caracterizada como pública, por assim dizer.

2.3 RAZÃO PÚBLICA. IDEAL DE RAZÃO PÚBLICA. A NOÇÃO DO DEVER DE

CIVILIDADE.

Importante destacar desde já, a fim de facilitar a compreensão do tema, que a razão

pública diferencia-se nitidamente do ideal de razão pública.

Apesar de a razão pública ser carregada por um constante “dever-ser”, no sentido de

indicação de quais atitudes estatais sejam consideradas razoáveis pela sociedade como um

todo, ela possui uma função objetiva, de modos de agir. Ou seja: segundo a razão pública,

combater a corrupção é uma atitude legítima e razoável a ser tomada por dirigentes estatais.

O ideal de razão pública, por sua vez, é uma meta subjetiva que envolve o efetivo

cumprimento dos modos de agir considerados razoáveis pela razão pública. Ou seja: se o

Presidente da República combate a corrupção, ele está materializando o ideal de razão

pública, à medida que atende ao determinado pela razão pública. Nas palavras do próprio

Rawls:

Esse ideal é concretizado, ou satisfeito, sempre que os juízes, legisladores, executivos principais e outros funcionários do governo, assim como candidatos a cargo público, atuam a partir da idéia de razão pública, a seguem e explicam a outros cidadãos suas razões para sustentar posições políticas fundamentais em função da concepção política de justiça que considerarem mais razoável. Dessa maneira, satisfazem o que chamarei o seu dever de civilidade mútua e para com outros cidadãos. Portanto, se os juízes, legisladores e principais executivos atuam pela razão pública e a seguem, isso se mostra continuamente no seu discurso e na sua conduta em uma base cotidiana132.

Dessa forma, idéia e ideal de razão pública se relacionam, grosse mode, igualmente à

relação entre uma norma abstrata e uma conduta concreta que se lhe subsuma.

Outro aspecto interessante do ideal de razão pública é que, ao invés de ser concebido

como um apanhado de condutas consentidas como razoáveis pelas pessoas (onde se enquadra

a razão pública), o ideal se aproxima muito da noção de internalização de valores proposta

132 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 178.

56

por outros autores, como, por exemplo, Parsons. Nesse sentido, Rawls, respondendo a uma

pergunta que ele mesmo se questiona, afirma o seguinte:

Como o ideal de razão pública é concretizado pelos cidadãos que não são funcionários do governo? (…) Para responder a essa pergunta, dizemos que, idealmente, os cidadãos devem pensar em si mesmos como se fossem legisladores, e perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais razões satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável decretar. Quando firme e difundida, a disposição dos cidadãos para se verem como legisladores ideais e repudiar os funcionários e candidatos a cargo público que violem a razão pública é uma das raízes políticas e sociais da democracia, e é vital para que permaneça forte e vigorosa. Assim, os cidadãos cumprem o seu dever de civilidade e sustentam a idéia de razão pública fazendo o que podem para que os funcionários do governo mantenham-se fiéis a ela133.

O dever de civilidade, dessa forma, mostra-se um consectário do ideal de razão

pública, adquirindo três características básicas: sua satisfação sempre que o ideal de razão

pública fosse cumprido; sua função de apoiar a razão pública; e a possibilidade que ambos

(dever de civilidade e ideal de razão pública) possuem de serem concretizados também por

particulares, e não somente pelo Estado.

A primeira característica sugere uma ligação constante entre o cumprimento do dever

de civilidade e a concretização do ideal de razão pública – e inclusive vai mais além, servindo

como uma das formas de justificativa pelas quais não se podem utilizar doutrinas abrangentes

no fórum político público:

O requisito da “reciprocidade” leva, assim, à compreensão da relação política no âmbito de uma democracia constitucional como uma relação de “amizade cívica”. A razão pública constitui um dever de civilidade que é frontalmente divergente da racionalidade instrumental que tem lugar em uma concepção agregativa de democracia. Ela implica justamente o diálogo sobre as questões políticas fundamentais tendo em vista o bem comum e não a mera agregação de interesses privados. Daí se deriva a impossibilidade de se recorrer, na deliberação pública, a doutrinas abrangentes. Argumentos particularistas não exibem o potencial de serem aceitos pelos que professam outras doutrinas. Em sociedades marcadas pelo pluralismo, como são as sociedades ocidentais contemporâneas, as decisões estatais, quando dizem respeito a questões constitucionais essenciais, só podem ser justificadas diante de todos se tal

133 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 178-179.

57

justificação se restringir ao campo do político, como prescreve a razão pública.134

Isso faz todo o sentido, pois o ideal de razão pública simboliza a concretização dos

valores contidos na razão pública. E, a partir do instante em que a razão pública abarca o

consenso político básico de uma sociedade constitucional bem ordenada (isto é, civilizada), o

dever de civilidade representa uma das características do ideal de razão pública – por ser uma

meta subjetiva, somente observável na adoção concreta de determinadas condutas.

Além disso, a função de apoio à razão pública existente no cumprimento do dever de

civilidade também se faz digna de nota, pois o dever de civilidade representa, em última

análise, o dever de cumprimento dos requisitos de uma determinada sociedade que

fundamenta sua existência em determinados valores e, portanto, reconhece-se como civilizada

a partir deles. Isso sugere um sistema de retroalimentação, segundo o qual as práticas

reiteradas de determinadas condutas tendem a ser cada vez mais assimiladas e difundidas

pelos integrantes da sociedade, reforçando, efetivamente, no campo político, um consenso

básico sobre posturas a serem seguidas (ou ao menos perseguidas) pelos demais. Isso se

mostra tão presente, que Rawls direciona a questão para a legitimação até mesmo do exercício

dos direitos políticos:

[...] o liberalismo político responde dizendo que nosso exercício do poder político é próprio e, por isso, justificável somente quando é exercido de acordo com uma constituição cujos elementos essenciais se pode razoavelmente esperar que todos os cidadãos endossem, à luz de princípios e ideais aceitáveis para eles, enquanto razoáveis e racionais. Esse é o princípio liberal da legitimidade. E, como o exercício do poder político deve ser legítimo, o ideal de cidadania impõe o dever moral (e não legal) – o dever de civilidade – de ser capaz de, no tocante a essas questões fundamentais, explicar aos outros de que maneira os princípios e políticas que se defende e nos quais se vota podem ser sustentados pelos valores políticos da razão pública. Esse dever também implica a disposição de ouvir os outros, e uma equanimidade para decidir quando é razoável que se façam ajustes para conciliar os próprios pontos de vista com os de outros135.

Conseqüentemente, vale destacar o forte aspecto moral existente no dever de

civilidade (e também, logicamente, no ideal de razão pública), por ser um dever político –

134 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, pp. 117-118. 135 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 266.

58

mas não jurídico. O próprio Rawls o afirma136, no sentido de que uma visão jurídica do dever

de civilidade (o que se estende, por óbvio, ao ideal de razão pública e mesmo à própria razão

pública) seria incompatível com a liberdade do discurso137.

2.4 CARACTERES ESTRUTURAIS DA RAZÃO PÚBLICA.

A razão pública, nos moldes apresentados por John Rawls, possui aspectos básicos e

indissociáveis, sob pena de se desnaturá-la ou considerá-la inviável. São eles:

a) as questões políticas fundamentais às quais se aplica;

b) as pessoas a quem se aplica;

c) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de

justiça;

d) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem

decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático;

e) a verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções

de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.

O estudo do tema pede – nada obstante a brevidade com que Rawls permeia esses

aspectos – um detalhamento de cada um dos componentes acima.

2.4.1 As questões políticas fundamentais às quais se aplica a idéia de razão pública.

Ao delimitar as questões políticas às quais se pode aplicar a idéia de razão pública,

Rawls traça uma distinção entre algumas questões tipicamente públicas (o que ele denomina

fórum político público) e aquelas particulares discutidas na esfera pública (o que ele chama de

cultura de fundo).

Nesse sentido, diz Rawls que:

136 Veja-se acima, a equiparação do dever de civilidade a um dever moral, além da ênfase feita em sua Idéia de

Razão Pública Revista. 137 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 179.

59

É imperativo perceber que a idéia de razão pública não se aplica a todas as discussões políticas de questões fundamentais, mas apenas às discussões das questões naquilo a que me refiro como fórum político público. Esse fórum pode ser dividido em três partes: o discurso dos juízes nas suas discussões, e especialmente dos juízes de um tribunal supremo; o discurso dos funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores principais, e finalmente o discurso de candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha, especialmente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações políticas. [...] Distinta e separada desse fórum político público tripartite está o que chamo cultura de fundo. É a cultura da sociedade civil. Em uma democracia, essa cultura não é, naturalmente, guiada por nenhuma idéia ou princípio central, político ou religioso. Os seus muitos e diversos agentes e associações, com a sua vida interna, residem em uma estrutura de Direito que assegura as conhecidas liberdades de pensamento e discurso e o direito de livre associação. A idéia de razão pública não se aplica à cultura de fundo, com as suas muitas formas de razão não-pública, nem aos meios de comunicação de qualquer tipo138.

Esse limite é crucial para o desenvolvimento da teoria rawlsiana: somente alguns

discursos feitos por agentes estatais se subsumem aos valores contidos na idéia de razão

pública. Tais discursos são essencialmente importantes, porque norteiam as atitudes tomadas

por qualquer Estado que se diga Democrático de Direito. Isso porque, nessa organização, o

Estado e seus agentes devem fundamentar, mediante discurso racionalmente fundamentado,

toda e qualquer conduta adotada – e é justamente sobre esse discurso que recairá a análise

quanto ao cumprimento, ou não, da razão pública. E mesmo entre os discursos acima, a cada

um deles a razão pública será aplicada de modos diferentes, repercutindo de formas também

diversas.

Afora esses discursos, as demais discussões não se podem submeter à idéia de razão

pública, exatamente porque não se trata de discurso público propriamente dito, mas sim de

questões culturais sociais, resultantes das experiências de todas as pessoas da sociedade. Veja-

se, a propósito, a seguinte digressão:

Os valores políticos da razão pública são distintos de outros valores no sentido de que são concretizados em instituições políticas e as caracterizam. Isso não quer dizer que valores análogos não possam caracterizar outras formas sociais. Os valores da eficácia e da eficiência podem caracterizar a organização social de equipes e clubes, assim como as instituições políticas da estrutura básica da sociedade139. Mas um valor é adequadamente político apenas quando a forma social é, ela própria, política: quando é concretizada,

138 Id. Ibid., pp. 176-177. 139 “Por definição, a estrutura básica é o sistema social global que determina a justiça do contexto social”. A

estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 21.

60

digamos, em partes da estrutura básica e das suas instituições políticas e sociais. [...] Nós, porém, estamos interessados apenas nas concepções políticas que são razoáveis para um regime democrático constitucional e, como deixam claro os parágrafos precedentes, esses são os ideais e princípios expressos pelas concepções políticas liberais razoáveis140.

Uma vez localizada fora da esfera pública, a razão pública não se lhes aplica. Chega a

ser indesejado, nos casos não relacionados ao âmbito de imparcialidade política, que a razão

pública seja utilizada.

The presence of non-publicness, along any dimension, is the element that modifies dramatically the normative implications drawn from analysis of majority decision making. To the extent that persons in a minority can be coerced by a dominant majority to take actions privately that are not also required for the members of the majority, the working of majoritarian processes may introduce consequences that are not preferred in a rational constitutional calculus, even by those who fully recognize that collectivization of a genuine publicness interaction might generate gains to all its parties. Only if some requirement for generality in treatment is constituionally enforced can it be predicted that majoritarian processes will work to increase rather than decrease social value141.

Vale destacar, nesse caso, o modo como Rawls concebe a esfera das discussões

culturais sociais (palco de contato, sobreposição e dissenso entre diversas experiências

pessoais), à parte das discussões políticas centrais (onde se pode aplicar um apanhado de

valores socialmente consentidos, reunidos na idéia de razão pública), e especialmente a

diferença entre a sua abordagem e a de Habermas sobre o mesmo tema.

No primeiro volume de sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade,

Habermas não faz uma distinção desse tipo, abordando, sob a óptica do agir comunicativo,

todas as ações adotadas pelo Estado e pelos particulares, uns com os outros. Sua teoria não

distingue substancialmente aquilo que seria politicamente central ou não, apenas se referindo

ao mundo da vida.

Dessa forma, Habermas conceberia as discussões de idéias não-públicas (culturais de

fundo, segundo Rawls) na esfera pública, o que chegaria a justificar, de certa forma, o que

Zygmunt Bauman chama de “colonização do espaço público pelo privado”, com a

transformação do fórum público no palco para discussões de problemas privados de pessoas 140 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 190. 141 BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as

public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, pp. 101-102.

61

públicas142. Tudo, para ele, seria uma questão de mundo da vida, podendo no máximo se

remeter a um subsistema jurídico ou outro qualquer, de acordo com o código especializado.

O próprio Rawls percebeu isso, chegando a fazer uma menção a Habermas, quando

sugere comparar suas divisões com a descrição feita pelo autor alemão sobre a esfera

pública143.

John Rawls chega ainda a traçar uma terceira esfera de cultura, que seria a cultura

política não-pública, responsável pela intermediação entre a cultura política pública (presente

no fórum político público) e a cultura de fundo. Pouco relevante para o presente trabalho,

apenas nos remeteremos à nota de rodapé em que o autor qualifica essa esfera intermediária

entre as culturas políticas pública e de fundo, como os “adequadamente denominados meios

de comunicação de todos os tipos: jornais e revistas, televisão e rádio, e muito mais”144.

2.4.2 As pessoas a quem a idéia de razão pública se aplica.

É muito interessante observar a preocupação de Rawls em frisar que a idéia de razão

pública se dirige somente a funcionários do governo, candidatos a cargo público e instituições

sociais públicas básicas, sendo explícito, em mais de uma passagem, nesse destaque145.

Essa preocupação merece uma análise um pouco mais aprofundada, pois, malgrado

haver essa limitação da idéia de razão pública às ações e relações entre Estado, seus agentes,

instituições públicas sociais basilares e particulares, existem dois conceitos intimamente

ligados à idéia de razão pública, que podem ser concretizados pelos particulares: são o ideal

de razão pública e o dever de civilidade, já explicados nas linhas anteriores.

É de se perguntar, já que razão pública, ideal de razão pública e dever de civilidade

são tão ligados, por que somente a razão pública, em si, não pode ser atendida pelos

particulares, enquanto que os demais, sim – especialmente ao afirmar Rawls que a família

pode ser objeto de aplicação da razão pública146. A resposta é muito simples.

O ideal de razão pública, como já visto antes, constitui uma meta subjetiva de

atendimento aos valores objetivamente contidos na razão pública, sendo o dever de civilidade

142 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. São Paulo: Jorge Zahar, 2001, p.

46. 143 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 177. 144 Id. Ibid., p. 177. 145 Id. Ibid., pp. 174, 175 e 207. 146 Id. Ibid., p. 207.

62

um de seus vieses. Dessa forma, o ideal de razão pública pode ser atingido por um particular,

desde que este o faça com a finalidade de assegurar que o Estado adote os valores contidos na

razão pública; conseqüentemente, seu dever de civilidade restará plenamente satisfeito,

porquanto este particular efetivamente cumpriu com seu dever de proteger a razão pública.

Nesse sentido, veja-se a seguinte afirmação de Rawls:

Um cidadão participa da razão pública, então, quando delibera no contexto do que considera sinceramente como a concepção de justiça mais razoável, uma concepção que expresse valores políticos dos quais também possamos pensar razoavelmente que outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam endossar147.

Note-se que Rawls se refere à participação do cidadão na razão pública, e não ao

atendimento à razão pública. Ou seja, ao cidadão cabe construir a razão pública, mediante

diversos critérios e valores, e não obedecer a ela – função que é dada ao Estado e seus

funcionários.

Poder-se-ia perguntar, todavia, se a proteção da razão pública não seria um

mandamento objetivo da própria idéia de razão pública, voltado especificamente para os

particulares – o que contrariaria a noção rawlsiana de que somente o Estado e seus agentes

são destinatários dos valores insertos na razão pública.

No entanto, veja-se que proteger é um mandamento subjetivo, que somente se

concretiza mediante condutas concretas – ou seja, a proteção da razão pública não é um valor

objetivo que se enquadra nela própria, auto-referenciada e quase autopoiética, mas sim uma

meta subjetiva, a qual, por isso mesmo, somente pode ser considerada integrante do ideal de

razão pública. Não se pode confundir os dois.

Logo, não se pode afirmar a ocorrência de um erro material na concepção teórica de

razão pública, pois a divisão entre valores objetivos e metas subjetivas, respectivamente, nos

conceitos de razão pública e seu ideal, impede isso.

Por outro lado, a incorporação da instituição familiar como objeto de aplicação da

idéia de razão pública (a princípio questionável) se explica pelo caráter de base social que ela

assume.

Inicialmente pode-se considerar ilógico, ante a visão exposta logo acima, que a família

– um mero agrupamento de cidadãos comuns – se sujeite à idéia de razão pública. Afinal de

contas, Rawls negou haver sujeição das relações intersubjetivas entre particulares à razão

147 Id. Ibid., p. 185.

63

pública, referindo-se apenas a uma participação dos cidadãos na construção desses valores e

ao reconhecimento, a partir dessa participação e do uso de determinados critérios, das normas

regulamentares de suas relações como legítimas.

Contudo, ocorre que, nos dizeres de Rawls, “a família é parte da estrutura básica, visto

que um dos seus papéis principais é ser a base da produção e reprodução ordenadas da

sociedade e da sua cultura de uma geração para outra”148.

Assim, enquanto estrutura básica da sociedade, a família é alvo da razão pública, em

sua constituição e características mais essenciais. Tal aplicação da razão pública não recairá

(por motivos já vistos) sobre os indivíduos da família, porém sobre a família como um todo,

pois “os princípios da justiça política devem aplicar-se diretamente a essa estrutura [social],

mas não devem aplicar-se diretamente à vida interna das muitas associações dentro dela, a

família dentre outras”149.

Isto significa, portanto, que as pessoas adquirem na família, tal como nas demais

instituições políticas públicas, uma dupla acepção de pessoa/cidadão e membro, cada uma das

quais se relacionando diferentemente com a razão pública, tendo seus desdobramentos

respectivos:

Colocando o caso de outra maneira, distinguimos entre o ponto de vista das pessoas como cidadãos e o seu ponto de vista como membros de famílias e muitas outras associações. Como cidadãos, temos razões para impor as restrições especificadas pelos princípios políticos de justiça às associações, ao passo que, como membros de associações, temos razões para limitar essas restrições para que deixem espaço a uma vida livre e florescente, adequada à associação em questão.150

Via de conseqüência, tem-se, de um modo geral, que os destinatários da razão pública,

ou seja, aquelas pessoas às quais se aplica a razão pública, somente podem ser o Estado e seus

agentes, no exercício de funções públicas, ou candidatos a cargos públicos, bem como todas

as instituições básicas de uma dada sociedade.

2.4.3 O conteúdo da razão pública, como dado por uma família de concepções políticas

razoáveis de justiça. 148 Id. Ibid., p. 206. 149 Id. Ibid., p. 208. 150 Id. Ibid., p. 209. Para o caso de quais questionamentos poderiam ser levados a cabo na família, veja-se

também de Rawls as pp. 206 e ss, em que o autor coloca na berlinda temas como a igualdade entre maridos e esposas, os limites da ingerência sobre os filhos, a questão da união homossexual, dentre outras – sempre refletindo a aplicação dos valores contidos na idéia de razão pública à instituição familiar.

64

Rawls pretende estabelecer uma apresentação da razão pública não somente como uma

forma de se conceituar formalmente determinados valores como públicos, em uma dada

sociedade. A razão pública possui efetivamente um conteúdo, que aponta para concepções

razoáveis de justiça.

Decerto que cada sociedade, com sua história, sua cultura, suas experiências e

peculiaridades conterá um determinado senso de justiça, considerado razoável por seus

cidadãos, motivo pelo qual o autor leciona:

Assim, o conteúdo da razão pública é dado por uma família de concepções políticas de justiça, não por uma única. Há muitos liberalismos e visões relacionadas e, portanto, muitas formas de razão pública manifestadas numa família de concepções razoáveis. [...] Cada um desses liberalismos endossa as idéias subjacentes dos cidadãos como pessoas livres e iguais, e da sociedade como um sistema justo de cooperação ao longo do tempo. Contudo, como essas idéias podem ser interpretadas de várias maneiras, há formulações diferentes dos princípios de justiça e conteúdos diferentes da razão pública. As concepções políticas também diferem no modo como ordenam ou equilibram princípios e valores políticos, mesmo quando os explicitam151.

Conseqüentemente, a razão pública se apresenta como relativamente flexível para cada

sociedade, e mesmo para cada época de uma mesma sociedade, desde que ela esteja imersa

em um regime democrático constitucional que preconize a igualdade entre seus membros,

como afirma o próprio Rawls:

A idéia de razão pública origina-se de uma concepção de cidadania democrática numa democracia constitucional. Essa relação política fundamental da cidadania tem duas características especiais: primeiro, é uma relação de cidadãos com a estrutura básica da sociedade, uma estrutura em que entramos apenas pelo nascimento e da qual saímos apenas pela morte; segundo, é uma relação de cidadãos livres e iguais, que exercem o poder político último como corpo coletivo152.

Essa necessidade que Rawls aponta de os homens se relacionarem em um patamar de

igualdade se mostra de grande relevância para que possa aflorar a razão pública. Isso porque,

acaso não ocorresse uma relação paritária entre os indivíduos, não seria possível dizer-se que

151 Id. Ibid., pp. 185-186. 152 Id. Ibid., p. 179.

65

haveria uma razão pública, por assim dizer, mas sim uma razão prevalecente, a despeito das

opiniões e valores dos demais habitantes.

Soma-se a isso o caráter de identificação dos indivíduos com a razão pública: seria

inviável conceber a assimilação, por todos e por cada um, dos valores contidos na idéia de

razão pública, se ela representasse apenas a imposição de um grupo dominante. Ao contrário,

a construção dessa razão com base nos valores obtidos por todos, em uma relação de

igualdade, é condição precípua para a idéia de razão pública153.

Segue-se, daí, um questionamento formulado e respondido pelo próprio Rawls:

Essas duas características originam imediatamente a questão de como, quando os elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica estão em jogo, os cidadãos assim relacionados podem ser obrigados a honrar a estrutura do seu regime democrático constitucional e aquiescer aos estatutos e leis decretados sob ele. O fato do pluralismo razoável suscita essa questão ainda mais agudamente, pois significa que as diferenças entre os cidadãos, decorrentes das suas doutrinas abrangentes, religiosas e não-religiosas, podem ser irreconciliáveis. Por quais ideais e princípios, então, os cidadãos que compartilham igualmente o poder político último devem exercer esse poder para que cada um possa justificar razoavelmente as suas decisões políticas para todos?154

É daí que Rawls extrai, como resposta, a assimilação das normas como legítimas, que

vem a ocorrer com a internalização dos valores – a qual se faz acompanhar, por sua vez, de

um raciocínio reflexivo, denominado por ele de critério de reciprocidade.

Diz ele que os próprios cidadãos são considerados razoáveis quando se percebem

como iguais entre si em um sistema de cooperação social contínua, “ao longo de gerações”155,

preparando-se para oferecerem-se mutuamente termos justos de cooperação segundo o que

considerem ser a concepção mais razoável de justiça política. Mais do que simplesmente uma

cooperação, todavia (que sugere uma associação apenas para benefício dos cidadãos

envolvidos em uma determinada relação), Rawls afirma ser necessário que os cidadãos

concordem incondicionalmente em agir segundo aqueles termos de justiça, ainda que em

detrimento de seus interesses particulares, desde que os demais cidadãos aceitem esses

mesmos termos.

153 Veja-se, a respeito, o comentário feito por Rawls ao abordar o critério de reciprocidade. Além disso, se

estamos diante de um pressuposto teórico de uma democracia moderna, presume-se haver igualdade (não apenas formal) entre os seus concidadãos.

154 Id. Ibid., p. 179. 155 Id. Ibid., p. 180.

66

Com isso, percebe-se como necessária uma efetiva solidariedade social, no sentido de

que a cooperação mútua prevalece sobre os interesses individuais, sendo possível mesmo que

uma pessoa aceite sair prejudicada em benefício da coletividade, desde que esse prejuízo seja

racionalmente considerado justo e se perceba que os demais cidadãos também se submeteriam

ao mesmo prejuízo, em situação semelhante.

Daí se vê claramente, portanto, que a internalização dos valores como condição para a

aceitabilidade das normas e o critério de reciprocidade, expostos a seguir, são não somente

respostas ao questionamento de viabilidade da razão pública, mas também representam

complementos e fecham a estrutura básica para a concepção da idéia proposta por John

Rawls.

2.4.4 A aplicação das concepções razoáveis de justiça em discussões de normas coercitivas a

serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático.

A internalização dos valores pelos cidadãos é, para Rawls, fundamental para que a

idéia de razão pública se desenvolva concretamente e para que o sistema jurídico atenda a

essa mesma razão.

Apesar de não fazer menção aos autores que abordam essa assimilação dos valores

contidos nas normas como condição de aceitabilidade e manutenção do ordenamento jurídico,

Rawls os acompanha fielmente, utilizando-se até mesmo do método de projeção mental da

posição original para que os cidadãos se imaginem como criadores das normas e se

identifiquem com o resultado de sua imaginativa produção normativa156.

Diz ele, então, que o reconhecimento da norma legítima, portanto, somente pode

ocorrer no preenchimento de dois requisitos. O primeiro deles é que os funcionários

governamentais adequados (onde se pode entender os legisladores) obedeçam aos valores

contidos na idéia de razão pública. E o segundo, logicamente, é o teste empírico do

atendimento a esses valores, mediante a projeção mental feita pelos cidadãos:

156 A respeito, realçamos James Buchanan, contemporâneo de Rawls (ainda que numa vertente teórica mais

economicista), para quem “Uncertainty about just where one’s own interest will lie in a sequence of plays or rounds of play will lead a rational person, from his own interest, to prefer rules or arrangements or constitutions that will seem to be ‘fair’, no matter what final positions he might occupy”. – BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 46. Buchanan realça, dentre os autores que serviriam de base à teoria de Rawls, Adam Smith, David Hume (apesar de Rawls afirmar sua ruptura com o utilitarismo) e os federalistas americanos. Id. Ibid., p. 54.

68

concentram muito mais fortemente as questões políticas centrais a que Rawls se refere161. Ele

mesmo que “para serem razoáveis, as concepções políticas devem justificar apenas

constituições que satisfaçam esse princípio”162 (o que significa que, quando a constituição não

possa mais ser justificada segundo a razoabilidade contida nos valores da razão pública, ela

deve ser repensada).

2.4.5 A verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções de

justiça satisfazem o critério de reciprocidade.

Aqui, Rawls é ainda mais explícito em sua busca por uma solidariedade social como

base para a razão pública, referindo-se mesmo a uma “amizade cívica” como necessária para

sua teoria. Altamente didático nesse ponto, ele dispensa maiores comentários:

Para tornar mais explícito o papel do critério de reciprocidade como expresso na razão pública, note que o seu papel é especificar a natureza da relação política num regime democrático constitucional como uma relação de amizade cívica. Pois esse critério, quando funcionários do governo atuam a partir dele e outros cidadãos o apóiam, dá forma às suas instituições fundamentais163.

Ratificando seu entendimento, Rawls reforça sua idéia de solidariedade na razão

pública, ao assumir que o critério de reciprocidade normalmente é violado sempre que as

liberdades básicas são violadas164.

O fato é que a reciprocidade, nos moldes como concebida por John Rawls, exige a

igualdade de condições entre os indivíduos165 e não pode ser operacionalizada se, de fato,

inexistir uma planificação política entre os cidadãos166.

161 E, na verdade, segundo correntes teóricas contemporâneas, a Constituição deve ser entendida somente como

esse núcleo que aborda elementos estruturais do Estado e da sociedade. Nesse sentido, cf., dentre outros, Oscar Vilhena de Vieira, bem como a discussão desenvolvida no capítulo 1.

162 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 181.

163 Id. Ibid., p. 181. 164 Id. Ibid., p. 182. 165 Realçando o efeito da reciprocidade sobre a participação na deliberação democrática pelos cidadãos, Buchanan aduz que “[...] the polity, the state, seems to lay claim to all values held by its citizens, and, particularly, this putative claim is held to be ‘legitimate’ if all citizens are somehow allowed access to equal voices in the ultimate determination of state decisions”. – BUCHANAN, James M. Notes on politics as process. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 74. 166 Tomou-se o cuidado de frisar o caráter político dessa igualdade, porquanto, numa sociedade capitalista onde a

lógica é de exclusão/inclusão social, nunca haverá igualdade econômica plena. Além disso, em diversas

69

Tanto assim, que o próprio autor diz:

O critério de reciprocidade exige que, quando esses termos167 são propostos como os termos de cooperação justa mais razoáveis, quem os propõe pense também que é ao menos razoável que os outros os aceitem como cidadãos livres e iguais168, não dominados, nem manipulados ou sob a pressão de uma posição política ou social inferior169.

Assim, vê-se que o critério de reciprocidade é imprescindível para a concepção das

normas – e mesmo dos valores contidos na razão pública – como politicamente legítimas, o

que reforça e completa a estrutura necessária para a razão pública. A legitimidade do direito,

portanto, localiza-se na teoria rawlsiana ao mesmo tempo como pilar e resultado de um

regime social democrático que valorize a igualdade entre os cidadãos, como apontado no

início de nossa explanação.

A questão da planificação política passa, necessariamente, por um outro requisito não

explicitado por Rawls, mas sugerido por ele, quando trata da democracia deliberativa: é a

necessária instrução, ou seja, educação dos cidadãos.

Claro é que não existe uma sociedade planificada politicamente, acaso existam

cidadãos pouco ou nada esclarecidos politicamente – o que passa necessariamente por uma

educação de qualidade. No entanto, Rawls frisa essa necessidade, chegando a afirmar quanto

à impossibilidade da adoção de medidas cruciais pelos governantes, acaso os destinatários

dessas medidas não estivessem devidamente clarificados quanto ao problema e seus efeitos:

A democracia deliberativa também reconhece que, sem instrução ampla sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e sem um público informado a respeito de problemas prementes, decisões políticas e sociais cruciais simplesmente não poderiam ser tomadas. Mesmo que líderes políticos previdentes desejassem fazer mudanças e reformas

passagens o próprio Rawls identifica a razão pública como sendo puramente política, não contemplando outras “doutrinas abrangentes” – as quais, como visto, englobam caracteres filosóficos e religiosos. Por exemplo, recomenda-se a leitura da nota de rodapé constante de A idéia de razão pública revista, p. 180.

167 Termos de justiça política. 168 “[…] the Kantian hypothesis states that when behavior is recognized to affect others, these effects will be taken into account and behavior adjusted as appropriate. The interests of others than the actor are included, however, not out of ‘love’ as in the Christian ethic, but out of a form of enlightened self-interest which is based on a generalized recognition of the reciprocity of social interaction”. – BUCHANAN, James M. Toward analysis of closed behavioral systems. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 35. 169 Id. Ibid., p. 180.

70

sensatas, não poderiam convencer um público mal informado e descrente a aceitá-las e segui-las170.

Isso é relativamente simples de se perceber e aponta para uma lógica: não seria

possível conceber uma razão pública, se o público não conhece a estrutura do processo

democrático, não conhece a magnitude dos problemas, não sabe quais os impactos das

propostas de solução para esses problemas – enfim, não sabe desenvolver um raciocínio

público, uma razão pública por assim dizer.

Daí se percebe que a razão pública só é concretamente viável de ser desenvolvida

quando a sociedade, como um todo, for politicamente consciente. Somente assim será

possível todo o percurso sugerido por John Rawls, cuja teoria, ainda que aceitando eventuais

divergências políticas entre as pessoas, exige que esses cidadãos raciocinem politicamente, a

ponto de enxergarem-se como legisladores e considerarem racionalmente a validade

normativa, bem como de enxergarem-se mutuamente como razoáveis e racionais171 – o que,

numa sociedade educacional e informacionalmente desigual, é inviável.

Sem raciocínio político, portanto, a sociedade se torna irracional publicamente, não se

podendo aplicar qualquer idéia de razão pública – sendo, conseqüentemente, inviável

qualquer modo efetivo de democracia172 –, porquanto inapta para avaliar o que seja ou não

racional, o que seja ou não justo, de fato.

Uma vez estudada a estrutura básica da idéia de razão pública, necessária se faz a

análise do conteúdo dessa mesma idéia – o que se faz logo adiante.

2.5 O CONTEÚDO DA RAZÃO PÚBLICA, OBJETIVAMENTE.

170 Id. Ibid., p. 184. A abordagem de Rawls sobre o acesso à educação é extremamente interessante e parece

mesmo ter sido direcionada para a realidade brasileira atual, pois logo em seguida ele dá como exemplo uma proposta de reforma da previdência, que jamais poderia ser considerada válida por uma população pouco esclarecida, fechando com a seguinte frase: “Na busca constante de dinheiro para financiar campanhas, o sistema político é simplesmente incapaz de funcionar. Seus poderes deliberativos estão paralisados.” (Id. Ibid., p. 185).

171 Eis aqui uma outra conotação para o critério de reciprocidade dado por Rawls, porém ao qual ele mesmo não se dedicou a desenvolver.

172 “Para um cristão moderno (diz Alberto Begum) a opção entre os regimes políticos ou os sistemas econômicos e sociais obedece – antes de tudo – à vontade de respeitar em cada homem sua plena dignidade de pessoa, cujo primeiro direito é o de Ver Claro. De aceitar ou de recusar, com todo o conhecimento, as regras do jogo. Fora desta liberdade, ou desta maioridade cívica reconhecida a todos os membros da comunidade, nós não podemos supor que possa existir outra coisa que a Tirania”. – BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2a. edição. São Paulo: Lejus, 2004, p. 21.

71

Nada obstante Rawls apontar a ampla possibilidade de haver, seja em épocas ou

lugares diferentes, razões públicas materialmente diversas (o que, a princípio, dá a impressão

de ser a razão pública uma concepção puramente formalista), o autor aponta princípios

indissociáveis da idéia de razão pública173. Essa questão do conteúdo objetivo da razão

pública perpassa alguns aspectos que devem ser frisados.

Primeiramente, como já visto acima, existe um ponto fundamental pertinente à

necessária diferença com que cada sociedade construirá sua idéia de razão pública – e mesmo

quanto à efetiva possibilidade de se fazer essa construção, dadas as condições educacionais de

cada sociedade. Isso já denota uma imensa dificuldade de se vislumbrar a construção de idéias

idênticas de razão pública por dois Países diferentes174.

Quanto a essa variedade de “razões públicas” possíveis ao longo de diversas épocas e

lugares, o próprio Rawls atribuiu-lhe um limite, o qual se daria exatamente pelo critério de

reciprocidade175. Isso porque a reciprocidade, como também visto anteriormente, é violada

sempre que as liberdades básicas forem negadas – o que torna a sociedade fundamentalmente

desigual e inviabiliza a criação e a manutenção da idéia de razão pública. Nesse sentido, a

reciprocidade atuaria como um mecanismo de prova do atendimento da razão pública.

Além disso, existe um grupo de três características principais que, na visão de Rawls,

constituiriam o conteúdo indissociável da razão pública, como o mínimo múltiplo comum da

matemática o é para as diversas expressões numéricas. Tais caracteres teriam uma ordem de

importância hierárquica176 na forma seguinte177:

173 “Rawls, no entanto, não restringe a razão pública a essas “diretrizes de indagação” [de legitimidade de

normas ou condutas acerca de questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais]. O autor entende que a função da razão pública é aplicar princípios de justiça previamente justificados. Estabelece-se, assim, um vínculo necessário entre democracia e justiça. O objetivo da razão pública rawlsiana não é apenas estruturar o processo democrático, mas também estabelecer princípios substantivos de acordo com os quais se pode aferir se o resultado de tal processo pode ser considerado justo.” – SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119.

174 Como bem explicado por Rawls em O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276: “Tenha em mente que o liberalismo político é uma categoria de concepções. Adota muitas formas, dependendo dos princípios substantivos usados e da forma pela qual as diretrizes de investigação são estabelecidas. Essas formas têm em comum princípios de justiça substantivos que são liberais e uma idéia de razão pública. Conteúdo e idéia podem variar dentro desses limites.”

175 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 185.

176 Essa ordem hierarquizada de importância, apesar disso não ser explicitado por Rawls, somente pode ser atendida quando respaldada na atual concepção de força normativa dos princípios constitucionais, defendida, dentre outros, por Konrad Hesse e Norberto Bobbio. Nesse sentido, veja-se CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Op. Cit., e BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

177 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186; e O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp. 272-273.

72

a) uma lista de certos direitos, liberdades e oportunidades básicas (tais como as

conhecidas de regimes constitucionais);

b) uma atribuição de prioridade especial a esses direitos, liberdades e oportunidades,

especialmente no que diz respeito às reivindicações do bem geral e dos valores

perfeccionistas;

c) uma série de medidas assegurando a todos os cidadãos os meios adequados a

quaisquer propósitos para que façam uso eficaz das suas liberdades.

Vale destacar a proposta de Rawls para descoberta desses princípios e diretrizes

políticos, como sendo sua posição original (o que, em termos bem simplificados, pode ser

identificado como um instante inicial a-histórico, quando as pessoas se despissem de qualquer

concepção acerca das instituições eventualmente existentes178). Todavia, como o próprio

Rawls abre a possibilidade de busca mediante critério diverso179, não nos ateremos a esse

ponto.

De qualquer modo, vale destacar que o autor propõe180 que a idéia de razão pública

necessita de segurança das liberdades religiosas e de expressão artística, assim como idéias

substantivas de eqüidade (“envolvendo oportunidade eqüitativa e garantindo meios para todos

os propósitos adequados e muito mais”), e tece, ainda, uma breve relação de valores políticos

substanciais, assim dispostos181:

O primeiro tipo – os valores da justiça política – pertence à mesma categoria que os princípios de justiça para a estrutura básica: os valores da igual liberdade política e civil; a igualdade de oportunidades; os valores da igualdade social e da reciprocidade econômica; e acrescentemos ainda os valores do bem comum, assim como as várias condições necessárias a todos esses valores. O segundo tipo de valores políticos – os valores da razão pública – pertence à categoria das diretrizes da indagação pública que tornam essa indagação livre e pública. Aqui também estão incluídas virtudes políticas como a razoabilidade e a disposição de respeitar o dever (moral) de civilidade, os

178 MARTINI, Marcus de. Notas sobre o Neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível

em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>. Acesso em: 24 jul. 2005.

179 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276. 180 Id. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública

revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186. 181 O próprio Rawls afirma, em O liberalismo político, p. 304, que “o conteúdo da razão pública é dado por uma

concepção política de justiça: esse conteúdo tem duas partes: princípios substantivos de justiça para a estrutura básica (os valores políticos da justiça); as diretrizes de indagação e as concepções de virtude que tornam a razão pública possível (os valores políticos da razão pública)”.

73

quais, enquanto virtudes dos cidadãos, ajudam a tornar possível a discussão pública refletida sobre as questões políticas182.

Assim se percebe como a idéia de razão pública não engloba apenas conceitos de

justiça processual ou procedimental, mas também substantivos183, comportando um mínimo

de conteúdo comum a todas as sociedades184.

Sem embargo, observando-se que somente pouquíssimos direitos e liberdades são

considerados essenciais à razão de razão pública – sendo os demais atribuídos por cada

sociedade, em razão de sua história, experiências e cultura –, nítido se mostra que a razão

pública não está adstrita aos ideais do liberalismo político, como uma amarra à sua concepção

favorita de justiça. Muito ao contrário, a flexibilidade espacial e temporal da razão pública é

necessária, como o próprio Rawls explica:

Essa não seria uma abordagem sensata. [...] Mesmo se relativamente poucas concepções vêm a ser dominantes ao longo do tempo e uma concepção até pareça ter um lugar central especial, as formas de razão pública permissíveis sempre são muitas. Além disso, novas variações podem ser propostas de tempos em tempos, e as antigas podem deixar de ser representadas. É importante que seja assim; do contrário, as reivindicações de grupos ou interesses resultantes de mudança social poderiam ser reprimidos e deixar de ganhar voz política adequada185.

Até porque, aquiescer-se ao oposto implicaria, de certo modo, uma formulação única

de razão pública, constituída por valores, princípios, direitos e liberdades fixos, imutáveis e

que, por isso mesmo, constituiriam uma verdade política última, ou um modelo político ideal

a ser seguido pelas sociedades, em redor do mundo e ao longo dos tempos.

Essa verdade universal, no entanto, é absolutamente rejeitada por Rawls, o qual,

denominando-a verdade inteira, considera-a incompatível com a cidadania democrática e com

182 RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:

Martins Fontes, 2003, pp. 126 e 129. 183 Recomenda-se, ainda, a leitura de COHEN, Joshua. Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law

Review, 69, n 3. Disponível em: <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-No3.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2007, o qual debate exatamente esse assunto e propõe mesmo uma união entre as concepções procedimental e substancial de justiça em Rawls.

184 A essas liberdades, adiciona-se, por nossa conta, o direito à educação e à informação, como já exposto anteriormente.

185 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 187-188. Isso levaria, de acordo com uma interpretação de todo o pensamento de Rawls, ao fim da própria razão pública, mediante sua transformação em razão de um grupo mais conservador, em detrimento dos demais.

74

a própria idéia de lei legítima186. E isso exatamente porque a acepção de razão pública com

conteúdo pronto envolve razões que nitidamente não foram compartilhadas por todos os

cidadãos como livres e iguais – o que também desnatura a razão como pública,

transformando-a em outro tipo de razão mais particularista, a qual podemos chamar de razão

doutrinária ou razão filosófica187.

Joshua Cohen, a respeito, responde:

Rawls's idea of political liberalism is not that reasonable moral views converge on a common understanding of justice. Instead, the idea is to present, in the first instance, a complete political conception of justice, without drawing on or referring to comprehensive moral views. Then, with such a complete conception on hand, we can consider whether it would be supported by the range of reasonable moral conceptions that we expect to arise in a society governed by it. This paper has operated solely at the first stage-the stage of freestanding political argument that articulates and works out the implications of a set of ideas without presenting them as dependent on or rooted in any com prehensive moral view188.

Isso tudo resulta em um conteúdo objetivo mínimo na razão pública, exatamente para

que ela seja capaz de absorver toda a complexidade social e todas as diferenças culturais

existentes ao longo do tempo e no espaço onde se localiza determinada sociedade, sem abrir

mão de liberdades essenciais ao exercício da democracia deliberativa.

2.6 A INCORPORAÇÃO DO DISSENSO À IDÉIA DE RAZÃO PÚBLICA. O CONSENSO

MEDIATO, NA FORMA DE ACEITABILIDADE RACIONAL, COMO COROLÁRIO DA

TOLERÂNCIA SOCIAL – REMESSA AO CONSENSO JUSTAPOSTO.

É de extrema relevância a incorporação do dissenso entre os cidadãos, na idéia de

razão pública desenvolvida por John Rawls.

186 Id. Ibid., pp. 175 e 182. 187 Recomenda-se ainda, sobre o assunto, RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça

e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 237 e ss., nas quais Rawls traça uma distinção entre as diversas concepções de verdade filosóficas e as distingue da teoria política liberal exatamente porque “o liberalismo enquanto doutrina política pressupõe que existem múltiplas concepções do bem, conflitantes e incomensuráveis entre si, cada uma sendo compatível, até onde possamos julgar, com a plena racionalidade dos seres humanos. Como conseqüência dessa hipótese, o liberalismo considera como um traço característico de uma cultura democrática livre o fato de concepções do bem, conflitantes e incomensuráveis entre si, serem defendidas pelos seus cidadãos”.

188 COHEN, Joshua. Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law Review, 69, n 3, pp. 617-618. Disponível em <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-No3.pdf>. Último acesso em 05/02/2007.

75

O autor, até para absorver os ideais liberais políticos, reconhece como necessária

(mesmo para construção da razão pública) a existência do dissenso189. Isso porque, como já

visto anteriormente, uma sociedade altamente complexa, que defenda a liberdade de

instituições, naturalmente abarca uma pluralidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais

abrangentes e conflitantes entre si, que não possuem, por exemplo, a mesma noção de bem. A

respeito, José Fernando de Castro Farias afirma:

[...] a unidade da sociedade não é fundada sobre o fato de que os cidadãos aderem à mesma noção de bem, mas sobre o fato de que eles aceitam publicamente uma concepção de justiça para reger a estrutura básica da sociedade. Para o autor, em uma sociedade democrática regida por esses princípios, as doutrinas mais completas, que persistem e ganham as adesões, têm chances de juntas formarem um consenso mais ou menos estável. A teoria de Rawls pretende vislumbrar como, numa sociedade marcada por profundas divisões entre os valores morais, é possível conceber a unidade da sociedade de uma maneira estável190.

A assimilação do dissenso entre os cidadãos por John Rawls é fundamental para a

compreensão, sob o prisma liberal, das sociedades ocidentais hodiernas, que vivem sob um

regime sócio-econômico-político de liberalismo, com matizes mais ou menos acentuados191,

como se pode ver abaixo:

Aceitar a idéia de razão pública e seu princípio de legitimidade não significa, pois – o que é preciso deixar muito claro –, aceitar uma determinada concepção liberal de justiça até nos mínimos detalhes dos princípios que definem seu conteúdo. Podemos discordar a respeito desses princípios e, apesar disso, concordar em aceitar as características mais gerais de uma concepção. Concordamos que os cidadãos compartilhem o poder político em sua condição de livres e iguais, e que, enquanto pessoas razoáveis e racionais, têm o dever da civilidade, o dever de apelar para a razão pública e, ainda assim, discordarmos em relação a quais princípios constituem a base mais razoável de justificação pública192.

189 “É inevitável e muitas vezes desejável que os cidadãos tenham visões diferentes no que diz respeito à

concepção política mais apropriada, pois a cultura política pública está fadada a conter diferentes idéias fundamentais, que podem ser desenvolvidas de formas diferentes. Um debate ordenado entre elas ao longo do tempo é uma forma confiável de descobrir qual é a mais razoável, se alguma o é” (2000, p. 277).

190 FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 189. 191 A respeito, veja-se a resposta de Rawls aos seus críticos em A idéia de razão pública revista, pp. 228-229,

item 6.4, donde destacamos: “A harmonia e a concórdia entre as doutrinas e a afirmação da razão pública pelas pessoas não são, infelizmente, uma condição permanente da vida social. Antes, a harmonia e a concórdia dependem da vitalidade da cultura política e de os cidadãos serem devotados e realizarem o ideal da razão pública. Os cidadãos poderiam facilmente tornar-se amargurados e ressentidos, e passar a ignorá-lo assim que já não pudessem perceber por que afirmar um ideal de razão pública”.

192 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276.

76

O mais interessante é que esse dissenso existe também em questões políticas

fundamentais, sendo ainda mais fortemente notado nesses casos, por serem situações mais

relevantes e de maior clamor social.

Contudo, ainda que havendo dissenso material entre as idéias defendidas pelos

diversos grupos sociais – e mesmo com relação às normas resultantes do processo

democrático –, Rawls propõe a existência de um “consenso” geral em segundo plano. É o que

chamamos por ora de consenso mediato, por não se mostrar no plano de elaboração das

normas, mas sim no de aceitabilidade racional do produto resultante do processo

democrático193.

Assim diz o autor:

Em particular, quando surgem questões muito controversas, [...] que podem levar a um impasse entre concepções políticas diferentes, os cidadãos devem votar a questão de acordo com o seu ordenamento completo de valores políticos. Na verdade, esse é um caso normal: a unanimidade de visões não deve ser esperada. A concepção política razoável de justiça nem sempre leva à mesma conclusão; tampouco cidadãos que sustentam a mesma concepção concordam sempre quanto a questões específicas. Não obstante, o resultado da votação, como eu disse antes, deve ser visto como legítimo, contanto que todos os funcionários governamentais, apoiados por outros cidadãos razoáveis, de um regime constitucional razoavelmente justo, votem de acordo com a idéia de razão pública. Isso não significa que o resultado seja verdadeiro ou correto, mas que é uma lei razoável e legítima, obrigatória para os cidadãos pelo princípio da maioria194.

Ou seja, o reconhecimento da lei como legítima traz um consenso mediato, pois torna

a norma aceita como razoável, enquanto pautada em critérios racionalmente justificáveis de

processo legislativo e de representatividade democrática.

Esse consenso mediato nos remete, por outro lado, à idéia de consenso justaposto

exposta por Rawls ao longo de sua vida, conforme a explicação de Farias:

Diferentemente do modus vivendi, que se adapta a situações contratuais em que unidade é apenas aparente – na medida em que a estabilidade depende das circunstâncias que mantêm uma situação de forma a não prejudicar a convergência dos interesses das partes –, o “consenso justaposto” expressa a

193 “[...] as razões publicamente formadas tendem a produzir resultados passíveis de serem reconhecidos por

todos como legítimos, no sentido de que, independentemente da existência de um consenso unânime, os cidadãos concordam o bastante para que a deliberação continue a desenvolver-se como atividade conjunta – ainda que não atribuam valor de verdade aos mesmos”. – RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., p. 20.

194 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 221-222.

77

idéia de que o papel público de uma justiça mutuamente admitida é o de precisar um ponto de vista a partir do qual os cidadãos possam examinar, uns diante dos outros, se as suas instituições são justas ou não. Neste sentido, os problemas de justiça política são discutidos pelos cidadãos a partir de um mesmo fundamento, quaisquer que sejam suas posições sociais, seus interesses particulares ou suas idéias religiosas, filosóficas ou morais. As instituições políticas não são justificadas aos olhos dos cidadãos como uma convergência feliz dos interesses individuais, de grupo ou de outra natureza, mas por uma justiça política que é destinada “àqueles que estão em desacordo conosco e, por conseguinte, emana de um certo consenso, de hipóteses que os outros e nós mesmos admitimos como verdadeiras ou suficientemente razoáveis quando se trata de alcançar um acordo realista [...]”195.

O consenso justaposto é outro conceito-chave na teoria de Rawls, mas que, exatamente

por comportar abordagem que escapa do tema central do presente estudo, não será

desenvolvido aqui.

Entretanto, é importante destacar que, mesmo havendo essa sobreposição de consensos

(no plano mediato, frise-se), justamente pelo fato de que esse consenso se mostra apenas

mediatamente, a aceitação da norma como razoável não significará, de plano, que a conduta

prescrita na norma (ainda que resultante de um processo democrático razoável) vá ser

necessariamente praticada pela totalidade dos cidadãos. Ao contrário, é possível que, dadas

determinadas circunstâncias e opiniões doutrinárias não-públicas, algumas pessoas deixem de

fazer o que é autorizado ou determinado por uma dada regra jurídica196. Rawls dá o exemplo

do aborto: se existir uma norma autorizando a prática do aborto, é bem possível que católicos

romanos não exerçam essa faculdade legal197. Todavia, tendo sido essa norma aprovada

mediante um procedimento legislativo racionalmente aceito, ela passa a ser reconhecida como

legítima – ainda que ocorra o dissenso quanto à essência da norma.

A questão do consenso mediato, sobrepondo-se a um eventual dissenso imediato

(existente entre as convicções pessoais e a razão pública), é ilustrada por Rawls em diversas

passagens, das quais destacamos a transcrita abaixo, com um grifo nosso no elemento que

serve de viés para o consenso – a razão pública:

195 FARIAS, José Fernando de Castro, Op. Cit., pp. 192-193. 196 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 223. Note-se que isso é apenas uma justificativa para o fato socialmente observado de desobediência às normas, não consistindo obviamente numa chancela para que as pessoas desobedeçam os preceitos normativos unicamente com base em opiniões pessoais de discordância quanto ao texto legal. Mas serve como base, por exemplo, para iniciar uma justificativa do desuso de uma determinada norma pelos cidadãos e mesmo pelo seus aplicadores.

197 Id. Ibid., p. 222.

78

[...] É claro que, para a razão pública chegar a uma resposta razoável num determinado caso, não se requer dela que chegue à mesma resposta que qualquer doutrina abrangente escolhida produziria, caso procedêssemos nos baseando somente nela. Em que sentido, então, a resposta da razão pública propriamente dita será razoável? Respondamos: a resposta deve ser pelo menos razoável, quando não a mais razoável, a julgar somente pela razão pública. Mas, além disso, e pensando no caso ideal de uma sociedade bem ordenada, esperamos que a resposta esteja na margem de segurança permitida por cada uma das doutrinas abrangentes e razoáveis que constituem um consenso sobreposto. Ao falar dessa margem de segurança, quero dizer o quanto uma doutrina pode aceitar, ainda que relutantemente, as conclusões da razão pública, quer em geral, quer em um caso particular. Uma concepção política razoável e efetiva pode atrair doutrinas abrangentes para si, moldando-as, caso necessário, para que de não-razoáveis se tornem razoáveis. Mas, mesmo supondo-se que essa tendência ocorra, o próprio liberalismo político não pode exigir que cada uma das doutrinas abrangentes deva encontrar as conclusões da razão pública quase sempre dentro de sua margem de segurança. Essa exigência transcende a razão pública198.

Isso tudo significa que o dissenso material imediato, pertinente ao conteúdo das

normas, chega a ser necessário para Rawls, dentro de um regime democrático de direito, dada

a complexidade e a pluralidade de culturas que permeiam as sociedades contemporâneas. O

que não se pode admitir, para ele, é o dissenso formal, que leva ao não reconhecimento da

norma como legítima e, conseqüentemente, faz aflorar a resistência pela força. Diz ele que a

resistência pela força é irrazoável: significaria tentar impor pela força a própria doutrina

abrangente que uma maioria dos outros cidadãos que seguem a razão pública não aceita, não

irrazoavelmente. Tal se dá porque, como diz o próprio autor:

[...] na razão pública idéias de verdade ou correção baseadas em doutrinas abrangentes são substituídas por uma idéia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como cidadãos. Esse passo é necessário para estabelecer uma base de raciocínio político que todos possam compartilhar como cidadãos livres e iguais199.

A esse consenso mediato, repousando sob o possível dissenso imediato, Rawls se

refere como um consenso de sobreposição razoável de doutrinas abrangentes200, porém no

198 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp.

297-298. 199 Id. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública

revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 223. 200 “Quando o liberalismo político fala de um consenso de sobreposição razoável de doutrinas abrangentes, ele

quer dizer que todas essas doutrinas, religiosas e não-religiosas, sustentam uma concepção política de justiça à base de uma sociedade democrática constitucional cujos princípios, ideais e padrões satisfazem o critério de reciprocidade. Assim, todas as doutrinas razoáveis afirmam tal sociedade com as suas correspondentes

79

mesmo contexto, sempre defendendo a idéia de tolerância política como modo de resolver os

conflitos:

Três tipos principais de conflitos colocam os cidadãos em desavença: os que derivam de doutrinas abrangentes irreconciliáveis, os que derivam de diferenças de posição, classe ou ocupação, ou de diferenças de etnia, gênero ou raça, e, finalmente, os que derivam dos ônus do julgamento. O liberalismo político interessa-se primariamente pelo primeiro tipo de conflito. Sustenta que, embora as nossas doutrinas abrangentes sejam irreconciliáveis e não possam fazer concessões, os cidadãos que afirmam doutrinas razoáveis podem, não obstante, compartilhar razões de outro tipo, a saber, razões públicas dadas em função da concepção política de justiça. Também acredito que tal sociedade pode solucionar o segundo tipo de conflito, que lida com conflitos entre os interesses fundamentais dos cidadãos – políticos, econômicos e sociais. Pois, assim que aceitamos princípios razoáveis de justiça e os reconhecemos como razoáveis (mesmo que não os mais razoáveis) e sabemos, ou acreditamos razoavelmente, que as nossas instituições políticas e sociais os satisfazem, o segundo tipo de conflito não precisa surgir, ou surgir tão forçosamente. O liberalismo político não considera explicitamente esses conflitos, mas deixa que sejam considerados pela justiça como eqüidade ou por alguma outra concepção razoável de justiça política. Finalmente, conflitos que se originam dos ônus do julgamento sempre existem e limitam a extensão da possível concordância201.

Assim, percebe-se que o dissenso é fundamental para a constituição da razão pública

rawlsiana, porém deve resultar num consenso formal posterior, consistente no reconhecimento

de validade e de legitimidade de todas as proposições políticas e jurídicas, ante o

procedimento racionalmente aceito em um regime democrático de direito:

O que importa no ideal de razão pública é que os cidadãos devem conduzir suas discussões fundamentais dentro daquilo que cada qual considera uma concepção política de justiça, baseada em valores que se pode razoavelmente esperar que os outros subscrevam, e cada qual está, de boa-fé, preparado para defender aquela concepção entendida dessa forma. Isso significa que cada um de nós deve ter e deve estar preparado para explicar um critério acerca de que princípios e diretrizes pensamos que se pode razoavelmente esperar que os outros cidadãos (que também são livres e iguais) subscrevam junto conosco. [...]

instituições políticas: direitos e liberdades básicos iguais para todos os cidadãos, incluindo a liberdade de consciência e a liberdade de religião. Por outro lado, as doutrinas abrangentes que não podem sustentar tal sociedade democrática não são razoáveis. Seus princípios e ideais não satisfazem o critério de reciprocidade e, de várias maneiras, deixam de estabelecer as liberdades básicas iguais”. Id. Ibid., p. 226.

201 Id. Ibid., pp. 231-232. Por esse terceiro motivo é que Rawls começa o parágrafo destacado afirmando que “há, porém, limites à reconciliação pela razão pública”. Mesmo assim, como o julgamento também envolve um gama de procedimentos reconhecidos como válidos, o próprio Rawls minimiza o problema, afirmando que “as pessoas razoáveis reconhecem e aceitam as conseqüências dos ônus de julgamento, o que leva à idéia de tolerância razoável em uma sociedade democrática”.

80

Evidentemente, podemos descobrir que, na verdade, há os que não subscrevem os princípios e diretrizes que nosso critério seleciona. Isso é algo que devemos esperar. A idéia é que necessitamos ter um critério desse tipo, e só isso já impõe uma disciplina muito considerável à discussão pública202.

Nessa acepção se percebe o quão importante se mostra o processo legislativo para a

idéia de razão pública, pois este servirá como base de reconhecimento racional formal para

todas as normas existentes em um sistema. Afinal, é o processo legislativo que possibilita

discussões políticas fundamentais pelos legisladores (funcionários governamentais e, ao

mesmo tempo, representantes populares, responsáveis pela elaboração das normas), que

construirão democraticamente parâmetros normativos de condutas, de modo a serem

racionalmente aceitos por todos – possibilitando, assim, o convívio entre cidadãos livres e

iguais.

2.7 A DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE ACORDO COM

OS PARÂMETROS DEFINIDOS PELA RAZÃO PÚBLICA.

Pelo que se pôde verificar da razão pública até aqui, viu-se que a razão pública possui

elementos de justificação democrática substancial, segundo princípios republicanos. Essa

justificação possui elementos próprios de cada sociedade, mutáveis tanto geograficamente

(dadas as duas condições históricas) quanto temporalmente.

O fato é que, como método de justificação não apenas procedimental, mas

substancial203, a razão pública reforça a idéia da teoria de constituição de que, ao analisar-se o

“núcleo duro” da Constituição, “convém ter em conta que a estas cláusulas não se deve dar

uma amplitude muito grande, pois isto desvirtua seu papel no sistema constitucional. Elas

devem representar somente aquilo de mais essencial, somente os princípios fundamentais

[...]”204.

Ou seja, a fim de se resguardar a democracia (discussão já traçada anteriormente), é

necessário definir-se quais dispositivos constitucionais são de fato relacionados à participação 202 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp.

276-277. 203 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional, neutralidade política e razão pública –

elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 195-196.

204 VARGAS, Alexis Galiás de Souza. A norma constitucional no tempo: direitos adquiridos e emenda à Constituição. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 112.

81

na deliberação democrática – pois é a democracia deliberativa que embasa politicamente o

Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, tem-se, em primeiro lugar, dentro da concepção rawlsiana, que a razão

pública tem como um de seus aspectos primordiais a estrutura básica da sociedade (como

visto em 2.4.3, acima). Diante disso, Rawls afirma que essa característica, dentre outras,

origina “imediatamente a questão de como, quando os elementos constitucionais essenciais

estão em jogo, os cidadãos assim relacionados podem ser obrigados a honrar a estrutura do

seu regime democrático constitucional e aquiescer aos estatutos e leis decretados sob ele”205.

Isso é claro, à medida que:

O papel das instituições que fazem parte da estrutura básica é garantir condições justas para o contexto social, pano de fundo para o desenrolar das ações dos indivíduos e das associações. Se essa estrutura não for convenientemente regulada e ajustada, o processo social deixará de ser justo, por mais justas e eqüitativas que possam parecer as transações particulares consideradas separadamente.206

Isso é, de certa forma, elementar. É essa proposição, de que a estrutura básica da

sociedade compõe a razão pública, que leva Rawls a afirmar, por exemplo, que os tribunais e

a família são um exemplo de razão pública. Ou seja, a estrutura básica da sociedade é o que

permite institucionalizar a democracia deliberativa, criando órgãos que permitam seu

exercício pelos cidadãos em condições iguais, conseqüentemente ela é um núcleo

indissociável da razão pública.

A partir daí, percebe-se que todos os dispositivos constitucionais que estruturam

instituições estatais básicas (ou seja, que afetem a participação na deliberação democrática)

não podem ser reformados de modo a restringir liberdades – salvo se essa restrição se operar

para dar lugar a outra liberdade207 –, sob pena de esvaziamento da democracia (já que tais

instituições serão responsáveis por operacionalizar, ou seja, garantir concretamente o acesso à

participação na deliberação democrática)208.

205 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 179. 206 Id. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São

Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 14-15. 207 “A prioridade da liberdade implica, na prática, que uma liberdade básica só pode ser limitada ou negada a fim

de salvaguardar uma ou várias das outras liberdades básicas”. – Id. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 150.

208 Decerto que, nos dizeres do próprio Rawls, ao longo do tempo “mesmo numa sociedade bem ordenada são sempre necessários ajustes à estrutura básica”, de modo a manter “uma estrutura básica justa”. – Id. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:

82

Como exemplo, podemos citar a própria estrutura de repartição de Poderes e seus

órgãos básicos (Tribunais, Casas Legislativas e órgãos de administração do Estado – “Poder

Executivo”). Caso qualquer um desses organismos fosse suprimido pela Constituição,

indiscutível que a democracia estaria ferida mortalmente.

Do mesmo modo, normas constitucionais que disponham sobre a composição da

família também devem ser consideradas irreformáveis. Não pretendemos, com isso, discutir

aqui se o aborto e a pesquisa com células-tronco são ou não passíveis de autorização jurídica

legítima. Existem infinitas discussões sobre esses temas, com desdobramentos dos mais

complexos e que refogem ao objeto do presente trabalho. O que queremos dizer é que não se

pode considerar, ante a razão pública, que a Constituição venha a revogar o direito de

igualdade entre maridos e esposas, ou ampliar o poder familiar sobre os filhos,

independentemente de idade ou condição econômica209.

Todavia, para o presente estudo, mais relevante do que as instituições que compõem a

estrutura básica da sociedade são as liberdades subjetivas que dizem respeito à deliberação

democrática210. Tais liberdades, uma vez presentes no texto constitucional, não podem ser

retiradas ou diminuídas, sob pena de agressão ao regime democrático como um todo.

Quais seriam, então, essas liberdades?

Martins Fontes, 2002, pp. 36-37. Entretanto, isso é tema diverso do abordado aqui, tocante à possibilidade de reforma de cláusulas pétreas. Aconselhamos, para o caso, a leitura, dentre outros textos, de SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

209 “Considere agora a família. Aqui, a idéia é a mesma: os princípios políticos não se aplicam diretamente à sua vida interna, mas realmente impõem restrições essenciais à família como instituição, e assim garantem os direitos e liberdades básicos, a liberdade e as oportunidades de todos os seus membros. Isso eles fazem, como eu disse, especificando os direitos básicos dos cidadãos iguais que são membros das famílias. A família como parte da estrutura básica não pode violar essas liberdades. Como as esposas são cidadãos em situação de liberdade com os seus maridos, todas têm os mesmos direitos, liberdades e oportunidades básicas que os seus maridos; e isso, juntamente com a aplicação correta dos outros princípios de justiça, é suficiente para assegurar sua igualdade e eficiência”. – RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 209.

210 “Algumas pessoas podem pensar que o fato de definir as liberdades básicas com uma lista é um expediente que deve ser evitado por uma concepção filosófica da justiça. Estamos habituados às doutrinas morais apresentadas sob a forma de definições gerais e de princípios primeiros abrangentes. Assinalemos, contudo, que, se podemos encontrar uma lista de liberdades que, quando essas liberdades estão integradas aos dois princípios de justiça, levam os parceiros na posição original a se entenderem mais a respeito desses princípios do que de outros, então se atinge o que podemos chamar de “a meta inicial” da teoria da justiça como eqüidade. Essa meta é mostrar que os dois princípios de justiça permitem compreender melhor as reivindicações ad liberdade e da igualdade numa sociedade democrática do que o fazem os princípios primeiros associados às doutrinas tradicionais do utilitarismo, ao perfeccionismo e ao intuicionismo”. – RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 146.

83

A resposta pode ser encontrada no próprio conteúdo da razão pública. Se ela possui

substratos materiais, claro que essa substância deverá ser considerada irrevogável em

qualquer constituição democrática.

Recapitulando, a razão pública pressupõe a preservação das seguintes liberdades

básicas: (i) liberdade religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de

eqüidade; (iv) liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii)

igualdade social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x)

razoabilidade; (xi) respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e

informação; (xiii) além das garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as

quais, conforme exposto mais acima, consideramos estar o processo legislativo).

Além dessas liberdades, a própria democracia deliberativa pressupõe outras,

enumeradas por Rawls em As Liberdades Básicas e sua Prioridade211. Nessa obra, Rawls

considera como básicas, além daquelas liberdades explicitamente abordadas pela razão

pública, a liberdade de pensamento; a liberdade de consciência; as liberdades incluídas na

noção de liberdade e integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades protegidos

pelo Estado de Direito212.

Tais liberdades básicas “têm um valor absoluto em relação aos argumentos fundados

no bem público e nos valores perfeccionistas”213. Isso porque se tratam de liberdades ínsitas

ao exercício da própria democracia deliberativa.

Demais liberdades ficariam, portanto, de fora do centro irredutível e irreformável da

Constituição (com a ressalva da restrição de liberdades para a consagração de outras

liberdades básicas). Isso porque

De fato, a história das constituições que funcionaram bem sugere que os princípios que regem as desigualdades econômicas e sociais, bem como outros princípios distributivos, não convêm, de maneira geral, como restrições constitucionais. Em compensação, a melhor maneira de obter uma legislação justa parece ser garantir a eqüidade na representação e o recurso aos outros procedimentos constitucionais.214

211 Id. Ibid. 212 Id. Ibid., p. 145. Diz ainda, na p. 188, que “a posse dessas liberdades básicas define o status comum e

garantido dos cidadãos iguais numa sociedade bem ordenada”. 213 Id. Ibid., p. 149. 214 Id. Ibid., pp. 190-191. Grifamos do original.

84

Assim, respeitadas essas liberdades, assegurada estará a democracia deliberativa, sem

que, por outro lado, se engesse absolutamente o texto constitucional – o que, como visto

anteriormente, eleva demasiado o risco de sua ruptura215.

Vista, então, a razão pública e suas nuances essenciais, bem como delimitadas as

liberdades subjetivas que ela consagra como fundamentais à estruturação da democracia

deliberativa, partimos para a análise da Constituição da República Federativa do Brasil,

promulgada em 05 de outubro de 1988, especificamente no que toca os direitos subjetivos

conferidos pelas limitações constitucionais ao poder de tributar. Após isso, será possível

verificar-se se, de fato, é possível dizer-se que todos aqueles direitos subjetivos podem ser

considerados cláusulas pétreas, ante o crivo da razão pública (enquanto critério de verificação

de legitimidade e, mais ainda, do atendimento ou abalo à participação na deliberação

democrática pelos cidadãos).

215 Respeitando-se, inclusive, o lembrado por RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., pp. 20-21, no sentido de que toda

deliberação pública deve atender ao menos três condições mínimas, sem as quais o uso público da razão tornar-se-ia inviável: não-tirania, igualdade e publicidade.

85

3 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. DISPOSITIVOS

CORRELATOS A DIREITOS SUBJETIVOS DO CONTRIBUINTE. APRECIAÇÃO

DESSAS REGRAS ANTE O CRITÉRIO LEGITIMADOR DA RAZÃO PÚBLICA.

A Constituição da República promulgada em 1988 traz, em seu Título VI (artigos 145

a 169), disposições relativas à tributação e ao orçamento, praticamente encerrando as normas

constitucionais relativas à tributação e às finanças públicas216.

Algumas dessas normas são comumente consideradas pela doutrina tecnicista do

direito tributário como garantidoras de direitos fundamentais do contribuinte, corporificando

o que juristas chamam de estatuto do contribuinte (expressão que remete à idéia de uma Carta

de Direitos básicos específica do sujeito passivo de obrigações tributárias217), chegando a ser

encaradas, em certos casos, como desdobramentos de liberdades concedidas genericamente

pelo art. 5o da Constituição. A maior parte218 dessas regras consagradoras de direitos

subjetivos do cidadão encontra-se na Seção II do Capítulo I do Título VI da Carta (arts. 150 a

152), intituladas de Limitações ao Poder de Tributar.

A expressão Limitações ao Poder de Tributar, apresentada inicialmente (ainda que

não definida conceitualmente) por Aliomar Baleeiro em sua obra homônima, decorre

216 Existem, além das normas relativas à seguridade social (arts. 194 a 204), dispositivos no ADCT/88 (arts. 33 a

42 e 71 a 94) relativos a questões pontuais do tema. 217 “A expressão ‘Estatuto do Contribuinte’ foi criada por Juan Carlos Luqui em 1953 e se refere ao grupo de

normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais do cidadão em matéria tributária”. GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tributação e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 13. Recomenda-se ainda a leitura de TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 23 e ss.

218 Dizemos a maior parte, dada a presença de normas dessa espécie fora da referida Seção constitucional, como a chamada “capacidade contributiva” do art. 145, §1o, da Constituição (chamada quase que unanimemente de princípio da capacidade contributiva). Na verdade, a Constituição trata de capacidade econômica, o que não convém ser confundido com a capacidade contributiva. Esse assunto será discutido mais à frente, no item 3.3.2.

86

logicamente do conceito de poder tributário. Esse poder, na verdade, é o poder de legislar

sobre tributos, de instituir tributos sobre determinadas situações219:

What is a power, but the ability or faculty of doing a thing? What is the ability to do a thing but the power of employing the means necessary to its execution? What is a LEGISLATIVE power but a power of making LAWS? What are the means to execute a LEGISLATIVE power but LAWS? What is the power of laying and and collecting taxes but a legislative power, or a power of making laws, to lay and collect taxes? What are the proper means of executing such a power but necessary and proper laws? […] I have applied these observations thus particularly to the power of taxation, because it is the immediate subject under consideration, and because it is the most important of the authorities proposed to be conferred upon the Union.220

Assim, os destinatários das regras estabelecidas pela Constituição nas Limitações ao

Poder de Tributar são basicamente o legislador e o aplicador das leis221. O legislador, ao

receber os ajustes constitucionais, viu-se outorgado a editar as leis tributárias dentro de um

espectro determinado de parâmetros de ação222. E o aplicador das leis, ao seu turno, viu-se

obrigado a dar cumprimento àqueles ditames, nos exatos limites constitucionais. Ricardo

Lobo Torres observou, quanto aos efetivos parâmetros constitucionais de ação do legislador

(que se desdobram nos limites para o aplicador das normas), que aí reside um dos maiores

problemas na delimitação dos direitos fundamentais223.

219 Roque Antonio Carrazza discorda até mesmo da expressão poder de tributar (manifestação do jus imperium).

Para ele, num Estado democrático de Direito há apenas a competência tributária (manifestação da autonomia da pessoa política e, por isso mesmo, sempre sujeita ao ordenamento jurídico-constitucional). Op. Cit., pp. 469-470.

220 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books, 2003, p. 186. Destaques do original.

221 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 469. 222 Daí o dizer-se que “O poder financeiro ou soberania financeira do Estado, pois, radica no próprio art. 5o da

CF, ou seja, no direito de propriedade. A soberania financeira, que é do povo, transfere-se limitadamente ao Estado pelo contrato constitucional, permitindo-lhe tributar e gastar. Não é o Estado que se autolimita na Constituição, como querem os positivistas, senão que já se constitui limitadamente, no espaço aberto pelo consentimento”. – TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 64-65. Apenas aduzimos que não só os positivistas traçam essa visão, como alguns teóricos utilitaristas também o fazem, considerando que o direito de propriedade é pós-estatal, uma vez que seus esquemas todos decorrem do modo pelo qual o Estado rege esse direito – motivo pelo qual descaberia falar-se em limitação do poder de tributar pelo direito de propriedade. Esse assunto será retomado no item III.3.5. De todo modo, por nos basearmos na doutrina de John Rawls para definição do núcleo irreformável de limitações ao poder de tributar conforme o princípio democrático, seguiremos a concepção citada por Ricardo Lobo Torres e acompanhada, dentre outros, por Sacha Calmon Navarro Coelho (Curso, p. 39) e Roque Antonio Carrazza (Curso, pp. 82-83).

223 “Finalmente, as limitações constitucionais são dirigidas ao poder tributário, o que obscurece um dos maiores problemas do direito atual, que é o de redefinir os limites da liberdade ou de impor limitações também aos direitos fundamentais e, conseguintemente, às imunidades e aos privilégios fiscais, tendo em vista o novo

87

Daí advém que a Constituição, ao outorgar as competências (ou “poderes”)

legislativos em sede de tributação, também as limitou, dado tratar-se de um Estado

democrático de Direito – o qual deve subsumir-se sempre aos preceitos constitucionais, na

medida da justiça224.

O monopólio do poder fiscal exercido pelo Estado, com a extinção da fiscalidade periférica da Igreja e da nobreza, não é absoluto ou ilimitado. O poder tributário, pela sua extrema contundência e pela aptidão para destruir a liberdade e a propriedade, surge limitadamente no espaço deixado pela autolimitação da liberdade e pelo consentimento no pacto constitucional. Em outras palavras, o tributo não limita a liberdade nem se autolimita, senão que pela liberdade é limitado, tendo em vista que apenas a representação e o consentimento lhe legitimam a imposição225.

Ocorre que, por ser uma parte da Constituição destinada a refrear essa “mais

importante das autoridades conferidas ao Estado”, é comum entender-se-lhe, no meio técnico,

como uma segunda Carta de Direitos, particular à esfera da tributação, sobre a qual cabe

aplicar formalmente (apenas porque a Seção se destina a limitar a força estatal) o §2o do art.

5o – como se toda e qualquer disposição constante das limitações ao poder de tributar,

simplesmente por estar ali, fosse entendida como fazendo parte daqueles direitos “decorrentes

do regime e dos princípios por ela [Constituição] adotados”. Obviamente que, com isso,

consideram-se todas aquelas normas como cláusulas pétreas, a teor do art. 60, §4o, IV, da

Carta Política.

A questão se coloca ainda mais interessante se for observado o caput do art. 150, o

qual, bem ao modo do §2o do art 5o da Constituição, veda o exercício do poder tributário de

todos os entes da Federação segundo os parâmetros ali estabelecidos, porém “sem prejuízo de

outras garantias asseguradas ao contribuinte”.

A Constituição instituiu expressamente um sistema tributário aberto ao invés de estabelecer regras de modo exaustivo e exclusivo. Outras

relacionamento entre Estado e Sociedade”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 23.

224 “Em razão da soberania que o Estado exerce em seu território, dentre outros poderes, tem ele o poder de tributar. Porém, no Estado democrático de Direito, onde todo o poder emana do povo, cabe aos constituintes com representantes deste juridicizar o exercício do poder, de tal sorte que, no caso da tributação, o poder de tributar se convola em direito de tributar, ou seja, no caso da Federação, cada esfera de governo somente poderá instituir o tributo para o qual recebeu da Constituição a respectiva competência, competência esta que terá que ser exercida dentro das limitações do poder de tributar”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 14a. edição. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 119-120.

225 TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 127.

88

limitações, dedutíveis da Constituição (e compatíveis com as regras constitucionais específicas), especialmente decorrentes dos princípios fundamentais (arts. 1o a 5o) e dos direitos e garantias fundamentais (arts. 5o a 17), são expressamente recepcionadas pelo Sistema Tributário (externo). Além disso, o parágrafo 2o do artigo 5o, que regula os direitos individuais e coletivos no título “direitos e garantias fundamentais”, também institui uma manifesta abertura [...].226

Decerto que, diante de um espectro tão grande e aberto de regras e liberdades

expressamente dispostas no texto constitucional, limitativas do poder tributário (e,

conseqüentemente, de contenções à potestade do Estado), cabe verificar quais são elas e qual

o fundamento de cada uma, a fim de entendê-las melhor e, assim, analisar sua importância no

contexto democrático. Dada a especificidade do tema do trabalho, serão analisadas dentre

essas limitações somente aquelas relacionadas a direitos conferidos aos cidadãos na Seção

relativa ao Sistema Tributário Nacional – porquanto também há ali regras destinadas a

proteger outras bases republicanas, como, por exemplo, o pacto federativo, diante da

repartição de competências tributárias227.

A análise da fundamentalidade material das regras inseridas na Seção constitucional

das limitações ao poder de tributar, em face do princípio democrático, segue delineada sobre

as bases da razão pública228, como visto no item 1.3 da pesquisa.

A razão pública, como modo de justificar racionalmente determinadas regras, decisões

(especialmente da Suprema Corte) e condutas, tem no seu limite de atuação exatamente a

estrutura básica da sociedade. Conseqüentemente, tudo aquilo que não puder ser sustentado

pelo argumento da razão pública, mas sim por doutrinas abrangentes, não poderá ser

226 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 108. Discordamos da

posição do prof. Ávila ao dizer, em seguida, que as limitações “podem decorrer de dispositivos previstos fora da Constituição mesma”, tendo em vista a própria natureza de outorga (e conseqüente limitação de ação) legislativa dada pela Constituição. Ao editar a lei complementar que regula as limitações, por exemplo (caso citado pelo autor), o legislador já está num momento posterior ao constitucional, exercendo sua competência nos moldes definidos pela Constituição. A própria irrenunciabilidade da competência legislativa tributária já é um sinal de que o legislador infraconstitucional não pode trazer novos limites a si mesmo. A respeito, recomenda-se CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17a. edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 229 e ss., valendo frisar: “Uma vez cristalizada a limitação do poder legiferante, pelo seu legítimo agente (o constituinte), a matéria se dá por pronta e acabada, carecendo de sentido sua reabertura em nível infraconstitucional”.

227 ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 110. 228 Isso porque “há três elementos essenciais na democracia deliberativa. Um é a idéia de razão pública, embora

89

considerado afeto à base da sociedade229. Assim, toda e qualquer norma (ainda que

constitucional) não poderá ser considerada elemento de justiça básica suficiente a ser erigida à

categoria de regra fundamental, de cláusula pétrea, nem pelos cidadãos e nem mesmo pela

Corte Suprema.

A questão se coloca de grande relevância se nos recordarmos que

a linguagem do legislador é uma linguagem técnica, o que significa dizer que se assenta no discurso natural, mas aproveita em quantidade considerável palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao domínio das comunicações científicas. Os membros das Casas Legislativas, em países que se inclinam por um sistema democrático de governo, representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros bancários, industriais, agricultores, engenheiros, advogados, dentistas, comerciantes, operários, o que confere um forte caráter de heterogeneidade, peculiar aos regimes que se queiram representativos. E podemos aduzir que tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto maior for a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunicação social. Ponderações desse jaez nos permitem compreender o porquê dos erros, impropriedades, atecnias, deficiências e ambigüidades que os textos legais cursivamente apresentam. Não é, de forma alguma, o resultado de um trabalho sistematizado cientificamente. Aliás, no campo tributário, os diplomas têm se sucedido em velocidade espantosa, sem que a cronologia corresponda a um plano preordenado e com a racionalidade que o intérprete almejaria encontrar. Ainda que as Assembléias nomeiem comissões encarregadas de cuidar dos aspectos formais e jurídico-constitucionais dos diversos estatutos, prevalece a formação extremamente heterogênea que as caracteriza230.

Maior vulto toma ainda a questão, se nos apercebermos – conforme realçado no item

1.2 – que a Constituição de 1988 possui uma grande abertura conceitual no que toca a

fundamentalidade dos direitos e, ao mesmo tempo, apresenta nitidamente um texto

conjuntural, de ruptura simbólica com o cenário político anterior231.

229 Tal se dá, à medida que “nenhuma concepção moral geral pode fornecer um fundamento publicamente

reconhecido para uma concepção da justiça no quadro de um Estado democrático moderno. [...] uma vez que a teoria da justiça como eqüidade é concebida como uma concepção política da justiça válida para uma democracia, ela deve tentar apoiar-se apenas nas idéias intuitivas que estão na base das instituições políticas de um regime democrático constitucional e nas tradições públicas que regem a sua interpretação”. – RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 204-205.

230 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 4-5. 231 “Formulada num ambiente democrático, sob a influência de uma participação social jamais vista na história

legislativa e constitucional brasileira, a Constituição de 1988 também sofreu forte impacto de interesses corporativos. Constituiu-se a partir de um compromisso maximizador entre os diversos setores da sociedade e do Estado que detinham poder naquele momento. Ao invés de um compromisso apenas em torno de regras fundamentais – sob as quais se deveria desenvolver o sistema político – e dos direitos fundamentais, houve um compromisso imediato sobre várias questões substantivas secundárias, em que diversos setores organizados da

90

A Carta de 1988, como já consignado, tem a virtude suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a consolidação do longo período de estabilidade política da história do país. Não é pouco. Mas não se trata, por suposto, da Constituição da nossa maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Por vício e por virtude, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e privilégios corporativos. A euforia constituinte – saudável e inevitável após tantos anos de exclusão da sociedade civil – levaram a uma Carta que, mais do que analítica, é prolixa e corporativa. Quanto ao ponto aqui relevante, é bem de ver que todos os principais ramos do direito infraconstitucional tiveram aspectos seus, de maior ou menor relevância, tratados na Constituição. A catalogação dessas previsões vai dos princípios gerais às regras miúdas, levando o leitor do espanto ao fastio. Assim se passa com o direito administrativo, civil, penal, do trabalho, processual civil e penal, financeiro e orçamentário, tributário, internacional e mais além232.

Essa abertura conceitual, aliada à ruptura (e conseqüentes casuísmos do texto

constitucional) abre flanco para aquilo que Jèze já havia alertado:

Não se deve esquecer também de que, freqüentes vezes – consciente ou inconscientemente –, as soluções preconizadas ou adotadas em matéria de impostos são inspiradas por interesse de classe. E, então, sob o nome pomposo de princípios de justiça em matéria de impostos, formularam-se regras as mais diversas, cujos autores todos afirmam sua preocupação com o interesse geral e com a justiça, mas tendem por vezes a acomodar mais ou menos uma classe, a proteger e a beneficiar mais ou menos uma categoria de indivíduos233.

Por isso mesmo, o critério legitimador da razão pública (exatamente por se limitar à

estrutura básica da sociedade) é cabível como parâmetro de delimitação da esfera de

fundamentalidade das limitações constitucionais ao poder de tributar, enumeradas entre os

artigos 150 e 152 da Constituição, que confiram direitos subjetivos aos cidadãos-

contribuintes. Assim, somente aquelas regras constitucionais justificáveis mediante a razão

sociedade, através de largo processo de barganha, alcançaram a constitucionalização de interesses e demandas substantivas”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 27.

232 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 224-225.

233 JÈZE, G. apud BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 521.

91

pública, poderão ser consideradas cláusulas pétreas234. Excluem-se, desse modo, os

dispositivos casuísticos, os privilégios pessoais235 e aquelas proteções que não se voltem para

o núcleo do direito subjetivo tutelado – os quais ficam reservados à esfera da legislação236,

fora do aspecto de fundamentalidade constitucional.

Rememorando o quanto dito no capítulo 2, tem-se como fundamentais, diante do que

preceitua a razão pública, as regras destinadas a proteger as seguintes liberdades básicas: (i)

liberdade religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de eqüidade;

(iv) liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii) igualdade

social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x) razoabilidade; (xi)

respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e informação; (xiii) além das

garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as quais, conforme exposto mais

acima, consideramos estar o processo legislativo).

O procedimento de justificação pela imparcialidade política – a razão pública –, uma

vez aplicado sobre os dispositivos constitucionais referentes às limitações ao poder de

tributar, permite-nos tecer os seguintes comentários, especificamente quanto a cada regra

constitucional.

3.1 TRIBUTOS E DIREITOS DO CIDADÃO. A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO

POPULAR, POR MEIO DO CONSENSO, PARA A OUTORGA E LIMITAÇÃO DE

PODERES TRIBUTÁRIOS.

A relação entre tributos e direitos individuais não é desconhecida237. Muito pelo

contrário, sendo o tributo entendido como a principal fonte de receita estatal (e,

234 RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 210-211. 235 “Se as liberdades básicas iguais para todos de certos cidadãos são cerceadas ou negadas, a cooperação social

baseada no respeito mútuo é impossível porque, como vimos, os termos eqüitativos são termos segundo os quais, enquanto pessoas iguais, desejamos cooperar com todos os membros da sociedade durante toda a nossa vida”. – RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 191.

236 “Todos os direitos legais e todas as liberdades legais outras que não as liberdades básicas, protegidas por disposições constitucionais variadas [...], devem ser definidos na etapa legislativa [...]”. – Id. Ibid., p. 192.

237 “O Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, com esta assertiva José Joaquim Gomes Canotilho resume o Estado de Direito. Com efeito, os direitos fundamentais representam o instrumento de realização concreta do processo de juridicização das relações entre Estado e contribuinte no mundo contemporâneo. O Estado de Direito é o Estado da lei e da justiça (fim último do Direito) e os direitos fundamentais consubstanciam a aspiração de justiça imanente nas sociedades modernas. Embora nela não se esgote a sua função, a defesa das liberdades individuais perante o poder estatal representa o núcleo intangível da idéia de direitos fundamentais”. – PONTES, Helenilson Cunha. O direito ao silêncio no direito tributário. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 81.

92

conseqüentemente, base econômica da própria sobrevivência do Estado), a obrigação

tributária torna-se, por natureza, uma prestação que tem como primeira característica a

compulsoriedade daqueles que concordaram em instituir o Estado – os cidadãos. Essa

compulsoriedade, por sua vez, pressupõe uma certa garantia de liberdade em favor daqueles

que são obrigados a prestar238.

Há uma constante e inerente tensão na relação entre tributos e direitos fundamentais. De um lado, os tributos, se utilizados de forma abusiva, podem “ferir de morte” os direitos fundamentais, entretanto, de outro, estes, de certa forma, têm sua proteção condicionada ao devido pagamento daqueles. Afinal, o Estado precisa de receita para realizar e proteger os direitos fundamentais e o tributo é a receita mais importante para tal fim.239

Isso porque, em sendo uma prestação obrigatória, de cunho patrimonial, decerto os

cidadãos vêem-se economicamente restringidos240 pela ação tributária do Estado241.

Conseqüentemente, é ínsito à própria noção de democracia que os indivíduos possuam um

certo grau de proteção jurídica contra a ação estatal eventualmente abusiva. Afinal de contas,

ainda que o Estado seja criado pela própria sociedade com a finalidade de protegê-la e

assegurar seu bem-estar242 (segundo concepções contratualistas como a de Hobbes, por

238 “Com efeito, o estado constitucional e de direito erigiu universalmente em matéria constitucional a declaração

dos direitos fundamentais do homem e do cidadão. Destarte, a matéria tributária – em suas linhas gerais, pelo menos – haverá de ser tratada na Constituição. É que, por dúplice razão, esta se envolve diretamente com o princípio da submissão do estado ao direito e com a liberdade e a propriedade individuais. A tributação é a transferência compulsória de parcela da riqueza individual para os cofres públicos; daí sua conexão com a propriedade. É também, forma de controle ou indução da liberdade individual, enquanto instrumento – deliberado ou não – de estímulo ou desestímulo de comportamentos, quando não de compulsão”. – ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 10.

239 FISCHER, Octavio Campos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no direito tributário. In: ______ (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 280.

240 “Cada cidadão deve ter uma certa margem de liberdade, ligada nomeadamente ao mundo material, para desenvolver livremente a sua pessoa, com e para os outros. Uma exagerada carga fiscal torna o Estado um “proprietário” dos seus bens, dos seus rendimentos e, em última análise, da sua pessoa. Limitando as suas escolhas, condicionando-o, depois de o privar dos seus bens, sobretudo da liberdade de dispor dos frutos da sua pessoa/trabalho.” – CAMPOS, Diogo Leite de. A jurisdicização dos impostos: garantias de terceira geração. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 104.

241 Ricardo Lobo Torres diz que a própria cidadania, em sua concepção moderna, “tem, entre os seus desdobramentos, a de ser cidadania fiscal. O dever/direito de pagar impostos se coloca no vértice da multiplicidade de enfoques que a idéia de cidadania exibe. Cidadão e contribuinte são conceitos coextensivos desde o início do liberalismo”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33.

242 “A humanização do direito, penetrada no campo do direito público, veio reconhecer que o indivíduo é anterior ao Estado e ele é, afinal, no dizer de Esmein, a única entidade real, ativa, eficiente e responsável. Organizou-se o Estado para assegurar o bem-estar do ser humano e não para prejudicar sua autonomia e atividade, em proveito do Estado”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 23. Por isso mesmo Ricardo Lobo Torres aduz que “o tributo é o preço da liberdade, pois serve de instrumento para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe

93

exemplo), a manutenção desse ser artificial não pode ser tamanha a sufocar a própria

coletividade243, impondo prestações às quais a sociedade, custe o que custar, só caiba guardar

obediência244.

No curso do tempo, o imposto, atributo do Estado, que dele não pode prescindir sequer nos regimes comunistas do nosso tempo, aperfeiçoa-se do ponto de vista moral, adapta-se às cambiantes formas políticas, reflete-se sobre a economia ou sofre os reflexos desta, filtra-se em princípios ou regras jurídicas e utiliza diferentes técnicas para execução prática. [...] Nos países de Constituição rígida e de controle judiciário das leis e atos administrativos, os princípios que a Ciência das Finanças apurou em sua compósita formação política, moral, econômica ou técnica são integrados em regras estáveis e eficazes. Funcionam como limitações ao poder de tributar.245

Assim, num regime democrático que entende a Constituição como “um documento

que regulamenta os elementos constitutivos do Estado, o corpo e a estrutura do Estado, a

particular maneira de ser do Estado; bem como a idéia de que é um instrumento que fixa os

limites de atuação estatal perante o indivíduo”246, esse diploma básico adquire o caráter de

estatuto social outorgante de competências tributárias a cada um dos entes que compõem a

Federação.

O exercício dessas competências, claro, não é ilimitado, dado que o Estado (e o

próprio tributo que o mantém) não é mais considerado como um fim em si próprio247. Por isso

desenvolver plenamente as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Leviatã. Por outro lado, é o preço pela proteção do Estado consubstanciada em bens e serviços públicos, de tal forma que ninguém deve ser privado de uma parcela de sua liberdade sem a contrapartida do benefício estatal”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 4.

243 “Mas essas liberdades são ambivalentes: ao se autolimitarem, abrindo-se à tributação, criam também limitações ao exercício do poder financeiro do Estado, que não as poderá sufocar ou aniquilar”. – TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 63.

244 Essa noção de potestade pura e simples embasou a teoria da obrigação tributária enquanto relação de poder, que encontrou adeptos no início do século XX. “O tributo se definia quase que exclusivamente em função da lei: era a prestação ‘que a lei impõe em vista de certas hipóteses determinadas, sem que haja necessidade de qualquer outro título para dar nascimento à obrigação’ [...]. Alguns juristas positivistas chegavam a dizer que ‘o dever geral de o sujeito pagar impostos é uma fórmula destituída de sentido e valor jurídico’”. – TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 233.

245 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 1-2.

246 LAMY, Marcelo. Sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 540.

247 “O direito tributário, sendo parte do direito financeiro, é meramente instrumental ou processual. Não tem objetivo em si próprio, eis que dispor sobre tributos não constitui finalidade autônoma. O direito tributário vai buscar fora de si o seu objetivo, eis que visa a permitir a implementação de políticas públicas e a atualização dos programas e do planejamento governamental. O direito tributário, embora instrumental, não é insensível aos valores nem cego para com os princípios jurídicos. Apesar de não serem fundantes de valores, o orçamento

94

mesmo existem as chamadas limitações constitucionais ao poder de tributar, que se destinam

a resguardar os cidadãos de eventuais abusos da máquina estatal. Assim, o sistema tributário

como um todo “movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que

limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos

individuais”248.

A respeito, vale lembrar o aforismo de que “o poder de tributar envolve o poder de

destruir”249, no sentido de que

As pessoas políticas, enquanto tributam, não podem agir de maneira arbitrária e sem obstáculo algum, diante dos contribuintes. Muito pelo contrário: em suas relações com eles, submetem-se a um rígido regime jurídico. Assim, regem suas condutas de acordo com as regras que veiculam os direitos fundamentais e que colimam, também, limitar o exercício da competência tributária, subordinando-o à ordem jurídica.250

As relações entre tributos e liberdades individuais não vêm de hoje. Na verdade,

monumentos jurídicos como a Magna Charta inglesa e a Bill of Rights norte-americana

tiveram como um dos propulsores a questão tributária251. Em ambas, percebe-se já o primado

do consentimento popular como requisito para a imposição de tributos, dado que a forma mais

básica de conter a ação estatal é a própria população aprovar os tributos que lhes serão

cobrados252.

e a tributação se movem no ambiente axiológico, eis que profundamente marcados pelos valores éticos e jurídicos que impregnam as próprias políticas públicas. A lei financeira serve de instrumento para a afirmação da liberdade, para a consecução da justiça e para a garantia e segurança dos direitos fundamentais”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 42. Cf. ainda RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. O tributo e suas finalidades. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 207.

248 BALEEIRO, Aliomar. Op. Cit., p. 2. 249 MARSHALL apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II.

Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 454. Torres ainda aduz que “o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo”. – Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 5.

250 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 411-412. 251 A respeito, recomenda-se a leitura de ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Manual de Direito Financeiro

& Direito Tributário. 18a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 76-78. 252 Inicialmente esse consenso era pessoal e posteriormente foi conferido ao parlamento, na qualidade de

representante oficial da população. A respeito, cf. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 411-423.

95

Cuida-se, no Estado Fiscal de Direito, da liberdade individual. [...] No Estado Fiscal afirma-se a liberdade individual: reserva-se pelo contrato social um mínimo de liberdade intocável pelo imposto, garantido através dos mecanismos das imunidades e dos privilégios, que se transferem do clero e da nobreza para o cidadão; permite-se que o Estado exerça o poder tributário sobre a parcela não excluída pelo pacto constitucional, adquirindo tal imposição a característica de preço da liberdade. O imposto, item mais importante da receita do Estado Fiscal, é, por conseguinte, uma invenção burguesa: incide sobre a riqueza obtida pela livre iniciativa do indivíduo, mas nos limites do consentimento do cidadão.253

Mesmo os federalistas norte-americanos discutiram longamente diversos aspectos do

poder tributário, sendo de extremo relevo o dizer de Hamilton no sentido de que

If the Federal Government should overpass the just bounds of its authority, and make a tyrannical use of its powers; the people whose creature it is must appeal to the standard they have formed, and take such measures to redress the injury done to the constitution, as the exigency may suggest and prudence justify. The property of a law in a constitutional light, must always be determined by the nature of the powers upon which it is founded.254

Logo, fica claro que um Estado democrático de Direito precisa ter sua atividade

tributária baseada na Constituição – ou seja, no ajuste básico de regras acordadas pelos

cidadãos – e por ela limitada255.

Esses limites ao poder de tributar, entendidos como um freio político à ação estatal,

logicamente não redundam apenas na consagração de princípios morais destinados a proteger

a esfera de imparcialidade política do indivíduo. Existem determinados limites que se

justificam no próprio federalismo, não guardando relação direta com o cidadão em si. Existem

outros, ainda, que encontram esteio na separação dos poderes256. E existem ainda alguns que

253 TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:

Renovar, 1991, p. 109. 254 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books,

2003. Op. cit., p. 187. 255 “Há, portanto, uma relação inextrincável entre os assim ditos direitos fundamentais e a atividade tributária.

Não se concebe, num Estado democrático de Direito, como aquele em que vivemos, que as competências tributárias possam ser exercidas em desrespeito aos direitos fundamentais”. – ALVIM, Eduardo Arruda. Apontamentos sobre o recurso hierárquico no procedimento administrativo tributário federal. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 31.

256 O prof. Ricardo Lobo Torres aduz que a separação de poderes “é uma das formas de garantia da liberdade. Os poderes do Estado nascem limitados e divididos, posto que emanam do consenso ou do contrato entre os titulares de certos direitos preexistentes. O consenso e as liberdades, por conseguinte, passam pelo crivo do que Carl Schmitt denomina ‘princípio de organização’: ‘o poder do Estado (limitado em princípio) se divide e se encerra em um sistema de competências circunscritas’”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 454. Todavia, sem embargo ao

97

3.2 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR. A REDAÇÃO CONSTITUCIONAL.

SEPARAÇÃO INICIAL ENTRE DISPOSIÇÕES RELATIVAS AOS INDIVÍDUOS DAS

DEMAIS, RELATIVAS À ESTRUTURA DO SISTEMA FEDERAL.

A Constituição trata das limitações ao poder de tributar entre seus artigos 150 e 152,

os quais contêm a seguinte dicção:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, tributos ou direitos; III – cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; IV – utilizar tributo com efeito de confisco; V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio

98

§ 4o. As vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas. § 5

99

A liberdade individual, em suas relações com o tributo, apresenta algumas características que devemos examinar: envolve a noção de igualdade, identifica-se com a legalidade, fundamenta-se na representação e às vezes aparece mesclada com a idéia de felicidade. No pensamento luso-brasileiro ingressam também essas idéias, embora a legalidade e a representação não tenham sido levadas as últimas conseqüências, e a felicidade continue a depender da intermediação do Estado260.

Entrementes, é de se verificar que, no art. 150, os incisos I, II, III, IV, V (apenas no

que tange a liberdade de circulação de pessoas) e VI, b, c e d; e seus §§ 4o, 5o, 6o e 7o tratam

nitidamente de assegurar certas liberdades aos contribuintes. Por outro lado, o inciso V, ao

tratar da liberdade de circulação de bens261; e o inciso VI, a, ao tratar da imunidade recíproca

entre os entes da Federação, destinam-se a resguardar a harmonia e a autonomia entre os entes

da Federação (não dizendo respeito diretamente ao indivíduo). Via de conseqüência, os

parágrafos relativos ao inciso VI, a (§§ 2o e 3o), igualmente não se identificam com liberdades

dos cidadãos.

No art. 151, por sua vez, mostram-se como pertinentes a liberdades individuais os

incisos I e II (quanto a este último, somente a parte final, ao abordar o tratamento tributário

dado pela União aos agentes públicos). O inciso II, em sua primeira parte, trata da tributação

pela União sobre obrigações de outros entes da Federação; e o inciso III, por sua vez, trata da

vedação de isenção heterônoma (não afetando diretamente nenhuma liberdade individual).

Por fim, o art. 152 também aborda, por um determinado aspecto, liberdade dos

cidadãos.

Diante da identificação acima, nota-se que dentre as limitações ao poder de tributar

encontram-se 4 regras básicas que não se relacionam com direitos subjetivos dos cidadãos: o

art 150, V, quanto à liberdade de circulação de bens; e VI, a (com seus §§ 2o e 3o

consectários); o art. 151, II, primeira parte; e o art. 151, III. Esses dispositivos dizem respeito

ao chamado federalismo fiscal, o qual, por se relacionar diretamente com a estrutura da

260 Id., A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 109-

110. 261 Tal dispositivo, conforme realçado por Ricardo Lobo Torres e Luiz Emygdio Fernandes da Rosa Jr., encontra

seu fundamento maior no federalismo (mediante a liberdade de comércio), inclusive por razões históricas. Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 117 e ss.; ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da, Op. Cit., p. 306, apoiado na obra retro.

100

Federação (e não com os cidadãos em si), não pode ser considerado objeto do presente

trabalho262.

3.3 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR DESTINADAS A

RESGUARDAR DIREITOS SUBJETIVOS AOS CIDADÃOS. CONSIDERAÇÕES

DIANTE DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO.

3.3.1 A legalidade.

Dentre os dispositivos destacados acima, o primeiro deles é o disposto no art. 150, I,

da Constituição, que considera que o único veículo legislativo adequado para exigência de

tributos de qualquer espécie é a lei. É o dispositivo que consagra o chamado princípio da

legalidade em matéria tributária.

O princípio da legalidade adquire status de grande relevo no Estado democrático de

Direito263, porquanto pressupõe, em termos mais genéricos, que só a lei pode obrigar os

cidadãos a adotar qualquer conduta que seja (daí o art. 5o, II, da Constituição dizer que

“ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”).

Neste dispositivo, contido no rol dos direitos individuais, encontra-se formulado o conceito da liberdade, de forma o mais ampla possível. Esta liberdade consiste, dum modo geral, no fato de a atividade dos indivíduos não poder encontrar outro óbice além do contido na lei. É a doutrina que já estava engastada na “Declaração de Direitos de 1789”: “A liberdade consiste no poder de fazer tudo o que não ofende outrem; assim o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites além daqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo destes mesmos

262 A respeito, vale destacar o primeiro compromisso constitucional em sede de pacto federativo, conforme

realçado por Garcia Pelayo (apud HORTA, Raul Machado. Constituições federais e pacto federativo. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 693): “Compromisso da repartição de competências, distribuídos os poderes enumerados à União soberana e os reservados aos Estados autônomos”. Seja para o caso de usurpação da competência (151, III), seja para preservar o livre exercício dos poderes reservados aos Estados – e também municípios, na nossa estrutura federativa – autônomos (150, VI, a e §§ 2o e 3o; e 151, II, primeira parte), cabe falar-se nesse compromisso federativo.

263 “El principio de legalidad excede, en la faz aplicativa, lo fiscal, y reconoce un alcance más amplio, en tanto se exhibe como una de las características propias del Estado de Derecho; importa la subordinación del obrar de la Administración a la ley; y resume, en el constitucionalismo contemporáneo, la concreción del ideario que despertara con las revoluciones inglesa, francesa y norteamericana”. – CASÁS, José Osvaldo. El principio de legalidad en materia tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186.

101

direitos. Estes limites não podem ser estabelecidos senão pela lei” (art. 6o)264.

Trazendo o princípio genérico para a esfera da tributação, a legalidade determina que a

tributação somente pode ocorrer sobre bases de consenso dos cidadãos, estipuladas por eles

mediante seus representantes diretos (os legisladores): “num regime representativo de

governo, é imprescindível seja conferido aos representantes do povo a faculdade de criar as

contribuições compulsórias necessárias para a existência do Estado”265.

Ao consagrar o princípio da legalidade, a Constituição impede que o Estado,

deliberadamente, manifeste-se acerca da incidência tributária266. Kiyoshi Harada, a respeito,

encontra na legalidade a raiz para a repetição do indébito – já que todo pagamento de tributos

feito fora dos limites consensuais (isto é, fora dos parâmetros legais) viabiliza a restituição267.

Assim, a legalidade tem como decorrência lógica a exigência de procedimento

legislativo na instituição ou na cobrança de tributos, garantindo assim os exercícios das

liberdades e dos valores básicos abrangidos pela esfera de imparcialidade política.

Ora, é no procedimento legislativo, nos atos da produção legislativa que, indiscutivelmente, se surpreende a realização por excelência tanto da representatividade republicana quanto da participação popular democrática. Eis que, não fomos aqui além de uma porção mínima das noções conceptuais de República e de Democracia; contudo, já é o bastante para se identificar com solar nitidez uma indefectível e robusta conexão republicano-democrática com o Princípio da Legalidade268.

264 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 240. 265 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Vol. 2. 3a. edição. Rio de Janeiro: Forense,

1997, p. 95. 266 Note-se que a preocupação do Constituinte foi maior quanto ao aumento deliberado de tributos (daí a

expressão “[...] ou aumentar [...]”; todavia, a própria expressão exigir já engloba qualquer tipo de exigência, ainda que a menor, de tributos. “O princípio vige e vale em todo o território nacional, subordinando os legisladores das três ordens de governo da Federação. Nenhum tributo (gênero), tirantes as exceções expressas, pode ser instituído (criado) ou alterado (majorado ou minorado após criado) sem lei.” – COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 221-222. Sobre as exonerações tributárias, cf. mais adiante a abordagem sobre o § 6o do art. 150 da Carta.

267 “Para nós, o verdadeiro fundamento da repetição de indébito não repousa na parêmia de Pompônio, o princípio do locupletamento indevido, mas no princípio da estrita legalidade que impõe a reposição do solvens no status quo ante sempre que constatado o pagamento sem fundamento na lei”. – HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16a. edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 383.

268 VIEIRA, José Roberto. Legalidade e medida provisória: mel e veneno. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 182.

102

É de se dizer, por isso mesmo, que o princípio da legalidade mostra-se como um

reflexo do Estado democrático de Direito269, por exigir que os cidadãos escolham como serão

tributados (espécie tributária), em que medida serão tributados (carga tributária) e, em

determinados casos, por que serão tributados (caso dos tributos vinculados, ou dos

condicionados a situações especiais como os Impostos Extraordinários de Guerra270 ou os

Empréstimos Compulsórios271).

Ricardo Lobo Torres aduz, ainda, que a legalidade pressupõe três ‘subprincípios’: a

supremacia da Constituição, a reserva da lei e o primado da lei.

A supremacia da Constituição determina que a lei (apesar de requisito formal para a

tributação) não é o ponto central da relação jurídica tributária, uma vez que a própria lei deve

guardar respeito ao que determina o texto constitucional272. Ou seja, a Constituição –

enquanto documento formalizador dos consensos sociais básicos acerca da estruturação do

Estado e da própria sociedade –, com suas regras, é que deve ser considerada a base do

ordenamento, sendo a lei, ao mesmo tempo em que impõe obrigações tributárias, uma

cumpridora dos preceitos constitucionais273.

Son las leyes y no los hombres que los que gobiernan. Mejor deberíamos decir, es la Constitución que gobierna. Esta es una conquista del hombre que fortalece el sistema democrático y protege al ciudadano contra los posibles desajustes del mecanismo de la división de poderes, pues obliga al Estado a cumplir con las normas dictadas por el poder al cual se le asignó la facultad legislativa en el programa constitucional.274

269 “Onde houver Estado democrático de Direito haverá respeito ao princípio da reserva de lei em matéria

tributária. Onde prevalecer o arbítrio tributário certamente inexistirá Estado de Direito. E, pois, liberdade e segurança tampouco existirão”. – COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 213. Por isso mesmo, Roque Antonio Carrazza considera que o dispositivo específico em sede de tributação seria dispensável, por ser implícito ao princípio genérico da legalidade. Curso, p. 243.

270 Art. 154, II, da CRFB, que exige um cenário de guerra externa para sua instituição. 271 Art. 148 da CRFB, que exige cenários de calamidade pública, guerra externa (inciso I), ou crise social ou

econômica (inciso II) para sua instituição. 272 “Alguns autores entendem que, para a conquista do Estado de Direito, basta o submetimento do Poder

Executivo à lei. Pensamos que há um pouco de exagero nisso. [...] isto, só, não nos conduz ao Estado de Direito, entendido como aquele em que as liberdades fundamentais estão reconhecidas no texto constitucional, não podendo ser desmentidas ou menoscabadas por normas de inferior hierarquia”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 240.

273 “Não basta ao Direito Tributário que o imposto seja criado por lei formal; é necessário, ainda, que tal lei seja compatível com a Constituição”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 417.

274 ALTAMIRANO, Alejandro C. Legalidad y discrecionariedad. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 155.

104

administrativos281 (ainda que atos normativos) e judiciais. É também preciso dizer de sua

relatividade principiológica, dado que

Há zonas de imprecisão nas leis tributárias e um certo espaço não preenchido pelo próprio legislador que abrem à Administração o poder de complementar a regra da imposição fiscal. Claro que sempre resta a possibilidade de se contrastar tal interpretação administrativa com a do Judiciário282, que prevalecerá afinal. Mas não se pode eliminar a competência administrativa na elaboração do regulamento, com eficácia sobre terceiros283.

A legalidade da tributação, portanto, significa o povo se tributando a si próprio284.

Traduz-se como o povo autorizando a tributação através dos seus representantes eleitos para

fazer leis285, ficando o príncipe, o chefe do Poder Executivo – que cobra os tributos –, a

depender do Parlamento286. De se lembrar que a própria noção de democracia deriva do

consenso287 entre os cidadãos288.

281 “Este principio, en su concepción inglesa, nos proyecta a la ley como ‘producto de justicia’ más que la

voluntad política soberana. Fundamentalmente importa la sumisión de la administración a la ley, no está la administración predeterminada o delimitada por la ley sino cometida a la ley.” – ALTAMIRANO, Alejandro C. Op. cit., p. 153.

282 “A interação entre a jurisprudência e a legislação enfraquece a tese do primado da lei e pode ser estudada a partir dos seguintes pontos de vista: a) da normatividade tributária, ou seja, da inserção da jurisprudência no processo de concretização do direito; b) das fontes do direito tributário, em que o STF, por intermédio da ação declaratória de inconstitucionalidade, desconstitui a lei e pratica ato da mesma natureza desta; c) da incorporação da jurisprudência, aparecendo a legislação como fruto de antecipações pretorianas; d) da correção legislativa da jurisprudência, levada a efeito pelas emendas constitucionais e pelas leis complementares; e) da judicialização da política tributária”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 441 e ss.

283 Id. Ibid., p. 435. Isso, explica o autor logo em seguida, não se confunde com “o exercício da mera atividade discricionária, sendo antes complementação do fato gerador definido em lei”.

284 “A Constituição reforçou a competência exclusiva do Poder Legislativo para criar ou aumentar tributos, consagrando, assim, a idéia de autotributação. Esta – como melhor veremos nos próximos itens – se manifesta: a) no consentimento dos representantes das pessoas que devem suportar os tributos; e b) na estrita vinculação à lei, [...]. Com tais medidas, os contribuintes tiveram melhor salvaguardado o direito de propriedade, contra o qual a tributação, de algum modo, investe”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 244.

285 Vale a pena trazer a crítica tecida por Diogo Leite de Campos a esse pensamento, no sentido de que “diz-se (“finge-se”): os impostos são criados pelo povo através das suas assembléias representativas. Salvaguarda-se, portanto, pelo menos formalmente, a vontade popular como definidora de contribuições; ocultando-se a vontade de poder dos governantes por detrás dos impostos. E afastam-se os cidadãos do cumprimento espontâneo das leis, com diminuição do seu lealismo ao substituir-se a obrigação livremente consentida pela força”. – CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 90. A crítica encontra eco na tese de que só a democracia deliberativa, em que seja efetivamente assegurado a todos os cidadãos iguais condições de acesso à prática democrática, pode permitir o gozo real de liberdade pelos indivíduos. Nesse sentido, cf. o cap. I da presente, em que se traçam distinções entre o regime meramente representativo e o democrático-deliberativo.

286 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 230.

287 “Por outro lado, é da essência de nosso regime republicano que as pessoas só devem pagar os tributos em cuja cobrança consentirem”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 244. No mesmo sentido, DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a.

106

tornar-se maior ou menor, por outra via. O tributo só existe se criado por lei e na medida por ela criada292.

Destaca-se, também, a exigência de que a lei que concede exonerações tributárias deve

ser específica – ou seja, relativa exclusivamente à exoneração em si, ou pelo menos ao(s)

tributo(s) ao(s) qual(is) ela se refere. Tal determinação tem um objetivo que “só é totalmente

compreendido quando conhecidas suas razões históricas: no passado, foram aprovados muitos

benefícios fiscais pelo Poder Legislativo, sem qualquer discussão, em virtude de constarem de

leis que tratavam assunto estranhos ao Direito Tributário”293.

Por tudo isso, verifica-se que a necessidade de lei para exigência, majoração ou

exoneração de tributos (art. 150, I e § 6o) integra a razão pública294, como espelho da

aprovação dos contribuintes quanto à tributação, ou a positivação do preceito no taxation

without representation295.

Por outro lado, a exigência de que a lei que concede exonerações tributárias seja

específica (art. 150, § 6o), mostra-se mais como um mero critério técnico-normativo que não

toca propriamente a esfera de imparcialidade política do cidadão.

Interessante ainda observar que o referido § 6o traz uma exigência extra em sede de

ICMS, além da simples lei, a ser cumprida pelo ente federativo competente. A norma

constitucional exige que, tratando-se de benefícios fiscais referentes ao ICMS, antes que o

ente competente edite a lei exonerativa, ele deve ser autorizado pelos demais Estados e pelo

Distrito Federal a promulgar a referida lei (art. 155, §2o, XII, g).

Essa regra serve para evitar o que se convencionou chamar de “guerra fiscal” entre os

entes competentes para instituir o ICMS, determinando que haja uma anuência unânime pelos

demais entes para que uma exoneração seja considerada regular.

292 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo:

Bushatsky, 1974., p. 24. 293 ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 129. 294 “Essa nova legalidade vai buscar uma regra de tributação clara e transparente, obtida numa arena marcada

pelo pluralismo político e influenciada pela razão comunicativa, a partir de uma solução compromissória entre os destinatários dos vários segmentos de contribuintes. Para tanto, essa regra deverá ser capaz de se sobrepor aos interesses dos grandes contribuintes, dotados de sofisticados estratagemas para o afastamento dos tributos, a fim de garantir o triunfo da política sobre o domínio exclusivo da economia”. – RIBEIRO, Ricardo Lodi. A segurança dos direitos fundamentais do contribuinte na sociedade de risco. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 757.

295 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 157.

107

[...] a técnica dos convênios reflete o dever-ser do processo legislativo de que se utiliza o Estado-Membro para exercer sua competência exonerativa em relação ao ICMS. Os convênios de estados expressam uma solução de compromisso entre a necessidade de preservar a autonomia tributária dos entes locais, sem risco para a unidade econômica da Federação, e a realidade de um imposto nacional. Titulado à competência do Estado-Membro, teve de ser intensamente preordenado pela União, que, depois, não contente, através de normas gerais, continuou a policiar o gravame de modo a resguardar o que se convencionou chamar de interesse nacional. A fórmula dos convênios como meio hábil para pôr e tirar isenções, assim como para partejar técnicas exonerativas outras, [...] cometeu aos Estados-Membros – que, em conjunto, formam a Federação – o mister de se autopoliciarem no tocante ao exercício da competência tributária exonerativa.296

Por isso mesmo, verifica-se que, nada obstante tratar-se de uma única regra (§ 6o do

art. 150) que exige lei para a exoneração de tributos das mais diversas espécies, a exigência de

concordância unânime pelos Estados para a concessão de benefícios fiscais relativos ao

ICMS, não toca propriamente a liberdade dos cidadãos nem envolve deliberação individual

sobre a matéria. Conseqüentemente, é de se considerar questão não afeta à razão pública, por

refletir muito mais uma preocupação de cunho econômico com relação a atitudes irrazoáveis

eventualmente adotadas pelos entes competentes para reger o ICMS – a chamada guerra

fiscal.

O princípio da legalidade encontrou ainda um outro dispositivo constitucional,

inserido na Constituição pela mesma Emenda nº 03/1993, que é o § 7o do art. 150.

O referido parágrafo também exige lei para a ocorrência da chamada substituição

tributária progressiva, que nada mais é do que a eleição, pelo legislador, de terceiro

vinculado ao fato gerador da obrigação tributária, para recolher imposto ou contribuição em

nome do contribuinte, relativamente a negócios jurídicos que ainda estão para ocorrer.

O referido dispositivo sofreu severas críticas por parte da doutrina, que considera

representar a “negação dos pressupostos do princípio da legalidade tributária e de diversos

outros postulados do capítulo das limitações ao poder de tributar” – especialmente o fato de

que “o princípio da legalidade exige a prévia definição do fato que, se e quando ocorrer, dará

nascimento ao tributo”297.

Todavia, no que toca a legalidade em si, há de se frisar que o § 7o do art. 150 da CRFB

não a fere; ao contrário, ratifica-a, porquanto exige que uma imposição tributária

296 Id., Comentários à Constituição de 1988, pp. 233-234. 297 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 12a. edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 115. Aproveitamos

para retificá-lo no sentido de que as limitações ao poder de tributar encontram-se em uma Seção de um capítulo constitucional – não propriamente num capítulo em si.

108

especialíssima (em que se atribui um novo sujeito passivo à relação jurídica) só pode surgir

em virtude de lei. A crítica doutrinária quanto à antecipação do fato gerador, por sua vez, não

encontra guarida no seio constitucional, porquanto não há nenhum preceito que exija a

realização do fato gerador, in concreto, para a posterior incidência da lei tributária que o

antecede.

A legalidade em si não contém esse pressuposto de ordem temporal. Uma coisa é dizer

que a lei deve existir antes da ocorrência do fato gerador, que é o princípio da irretroatividade

– o qual será visto adiante. Outra é dizer que, para que seja possível a incidência da norma

tributária, o negócio jurídico que concretiza o fato gerador já deve ter sido celebrado e

concretizado. Sobre essa segunda afirmativa, vale relembrar que, para a ocorrência da

tributação é necessária a realização do fato gerador, até mesmo como pressuposto lógico da

subsunção tributária; todavia, nada impede que, quando as circunstâncias fáticas fazem

presumir que terceiros promoverão novo fato gerador do tributo, antecipe-se a tributação –

claro, com a previsão expressa de que o dinheiro será restituído caso esse novo fato gerador

não aconteça (como o faz o § 7o do art. 150 da Constituição)298.

Exatamente pelo fato de que a definição de um responsável pela obrigação tributária

principal modifica a essência da relação jurídica tributária, ao inserir um terceiro na relação

original existente entre o cidadão-contribuinte e o Estado, consideramos que o referido

parágrafo atende a razão pública. Até porque, nesse caso, o tributo será formalmente exigido

do responsável por substituição, integrando a regra geral do art. 150, I, da Constituição.

3.3.2 A isonomia.

A isonomia encontra-se em alguns dispositivos constitucionais constantes das

limitações ao poder de tributar: arts. 150, II; 151, I e II; e 152, respectivamente com enfoques

diversos que a concertam no ordenamento constitucional tributário.

A isonomia já é consagrada no art. 5o, caput, da Constituição299, como princípio geral

do Estado democrático de direito300. Ainda que, segundo alguns autores, fosse desnecessário,

298 Não adentraremos aqui na polêmica quanto à constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/1993 a

respeito da substituição tributária progressiva. Recomenda-se, para tanto, dentre outros, a leitura de MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2006.

299 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito [...] à igualdade, [...], nos seguintes termos:”. Cf. FERRAZ, Sérgio. Tributo e justiça social. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 295.

109

o constituinte preocupou-se em repeti-la na Seção das Limitações ao Poder de Tributar – e,

ainda assim, por quatro vezes, prevendo distintos casos, como demonstrado adiante.

O princípio da isonomia pressupõe, em primeiro lugar, um tratamento igualitário pela

lei – trata-se da máxima liberal geral de que todos são iguais perante a lei301. É a chamada

igualdade formal, destinada ao aplicador da norma, para que todos aqueles que se encontrem

na mesma situação econômica (já que o tributo tem nitidamente caráter patrimonial) sejam

tratados (o que abrange obrigações principal e acessórias) da mesma maneira302.

Daí se verifica o art. 150, II, da Constituição, ao estabelecer que contribuintes que se

encontrem em situação equivalente merecem o mesmo tratamento tributário, proibida

qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,

independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

A isonomia, entendida como a exigência de igual tratamento pelo legislador tributário

aos contribuintes que estejam na mesma situação jurídica, também se mostra no contexto da

razão pública303, protegendo as idéias substantivas de eqüidade; a igualdade de

oportunidades; a igualdade social; a reciprocidade econômica; os valores do bem comum; e

ainda a razoabilidade.

As idéias substantivas de eqüidade nitidamente são atendidas, já que a principal delas

é a de que os cidadãos são pessoas livres e iguais304.

Desnecessário falar que a igualdade social também é protegida pelo princípio da

isonomia. Sem isonomia, a igualdade social é algo impraticável.

A isonomia, por sua vez, também toca a razão pública no que tange a reciprocidade

econômica, uma vez que

os termos eqüitativos de cooperação social incluem a idéia de reciprocidade ou de mutualidade: todo aquele que cumprir sua parte, de acordo com o que

300 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 341. No mesmo sentido o Acórdão da ADI 3105, no qual o plenário do STF entendeu que “o princípio constitucional da isonomia tributária (...) é particularização do princípio fundamental da igualdade”.

301 AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 135. 302 Interessante visão de Buchanan, para quem a igualdade é utilizada mais facilmente para identificar violações

do que para atingir uma definição específica. BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 108.

303 “Ao positivar a regra segundo a qual todo cidadão deve ser tratado pelo Estado como um igual, e não como diminuído ou aumentado em seu status de cidadão em relação a outros indivíduos, o constituinte estabeleceu um conceito fundamental da filosofia política do Estado de Direito”. – GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 165.

304 RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 7.

110

as regras reconhecidas o exigem, deve beneficiar-se da cooperação conforme um critério público e consensual especificado. Em outras palavras, os termos reguladores da cooperação social definem que aqueles que se envolvem na cooperação social devem receber seu justo quinhão305.

É ainda de destaque que os valores sociais do bem comum também se relacionam com

a isonomia306. Uma sociedade que não preze pela igualdade não pode, logicamente, visar ao

bem comum, sendo excludente e oligárquica por natureza.

Somente por intermédio da isonomia, portanto, pode-se cogitar da possibilidade de

igualdade social entre os cidadãos.

Ademais, o art. 151 da Carta, em seus incisos I e II (in fine), exige que a União tribute

uniformemente as pessoas e coisas localizadas nas diversas áreas do território nacional307

(com ressalva expressa da distinção regional com função desenvolvimentista), assim como

seus servidores públicos não podem ter sua renda nem proventos tributados de modo diverso

dos servidores dos demais entes da Federação308.

O artigo 152, por sua vez, estende a determinação de uniformidade geográfica na

tributação para as exações instituídas por Estados, Distrito Federal e Municípios.

305 DANNER, Leno Francisco. Democracia e justiça social: um argumento a partir da utopia realista de John

Rawls. Porto Alegre, 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: <http://www.pucrs.br/pgfilosofia/2007Leno-ME.pdf >. Acesso em 28 abr. 2007, pp. 29-30. Com isso, afeta-se o segundo aspecto das bases de cooperação social desenvolvida por Rawls, que são parte da estrutura básica da sociedade na democracia deliberativa: “Constata-se que uma sociedade democrática é tida como um sistema de cooperação social pelo fato de que, de um ponto de vista político e no contexto da discussão pública das questão básicas de justiça política, seus cidadãos não consideram sua ordem social uma ordem natural fixa, ou uma estrutura institucional justificada por doutrinas religiosas ou princípios hierárquicos que expressam valores aristocráticos. Eles tampouco acham que um partido político possa, de boa-fé, propor em seu programa a negação dos direitos e liberdades básicos de qualquer classe ou grupo reconhecido”. – RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 8.

306 “O Direito, porém, não visa a ordenar as relações dos indivíduos entre si para satisfação apenas dos indivíduos, mas, ao contrário, para realizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão ‘bem comum’. O bem comum não é a soma dos interesses individuais, nem a média do bem de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos. Modernamente, o bem comum tem sido visto – e este é, no fundo, o ensinamento do jusfilósofo italiano Luigi Bagolini – como uma estrutura social na qual sejam possíveis formas de participação e de comunicação de todos os indivíduos e grupos”. – REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27a. edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 59.

307 “Garantizar una mínima uniformidad en el deber de contribuir es garantizar una uniformidad en las condiciones de vida, sin que ello deba ser incompatible con el reconocimiento de capacidad normativa a los demás entes territoriales a los que se atribuye autonomía financiero-tributaria”. – NOVOA, Cesar García. El principio de no discriminación em matéria tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 354.

308 Esse dispositivo tem razões históricas no direito brasileiro, em virtude do favorecimento a algumas classes de servidores federais no ordenamento constitucional anterior. Cf., a respeito, TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; e PESTANA, Márcio. O princípio da imunidade tributária. São Paulo, RT, 2001.

111

Há quem diga que os artigos 151, I e 152 não digam respeito propriamente à isonomia,

mas ao federalismo309. Discordamos dessa posição, porquanto o beneficiário da norma não é

o ente da Federação, mas sim os particulares ali localizados, que não podem ter suas

liberdades restringidas sem uma justificativa plausível. “Sin embargo, la existencia de la

autonomía y la posibilidad de las Comunidades Autónomas de introducir diferenciaciones en

ciertos impuestos no excluye que se pueda formular un principio de ‘no discriminación’ como

consecuencia del contraprincipio de ‘desigualdad tributaria’”310.

A amplitude do princípio, como qualquer direito fundamental, é a máxima possível;

porém, como todos os demais princípios constitucionais, a isonomia não pode ser considerada

absoluta, sendo ponderável com outros que com ela coexistem. Daí que o direito à igualdade

admite distinções de tratamento entre contribuintes de mesma situação (privilégios311 ou

discriminações), porém se e somente se estas não se revestirem de um caráter odioso312 – isto

é, sem justificativa plausível.

Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância dessa correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.313

A isonomia, como vedação ao arbítrio314 e às discriminações infundadas pelo

legislador, extrapola a mera análise legal, adquirindo uma função até mesmo quanto ao estudo

309 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado

Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 378. 310 NOVOA, Cesar García. Op. Cit., p. 353. 311 “O privilégio, tanto o ódios quanto o legítimo, é autolimitação porque o próprio ente tributante limita o

exercício de sua competência”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 367.

312 TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 129 e ss.

313 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3a. edição. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 21.

314 A igualdade enquanto vedação ao arbítrio é atribuída a Leibholz. Cf. TABOADA, Carlos Palao. El principio de capacidad contributiva como criterio de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e indirectos. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 285 e ss.

112

do texto constitucional em si, no sentido de “auxiliar a ordem constitucional a mudar o

enfoque de algumas falsas imunidades”315.

De se lembrar, por óbvio, que a caracterização de um privilégio ou uma discriminação

como “odiosa” – ou seja, injustificada democraticamente – não é absoluta ao longo do tempo,

mostrando-se na verdade altamente variável conforme os lugares ou as gerações316. “A

odiosidade dos privilégios, já se disse antes, é questão ideológica e historicamente

condicionada. Cada geração tem a tendência de considerar odiosas as discriminações feitas

pela anterior”317.

Ao vedar o privilégio e a discriminação odiosos, ou seja, sem uma razão plausível para

sua efetivação, a isonomia garante ainda a igualdade de liberdades e oportunidades entre os

homens318, base do Estado democrático de Direito319 – realçando o caráter elementar da

isonomia à razão pública.

Todavia, nada obstante sua importância para a estruturação da sociedade, a igualdade

dita formal é um conceito que, por si só, é vazio320 , porquanto significa apenas e tão-somente

315 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 487. 316 “No campo da tributação, [...] essa noção de justiça não tem sido, e dificilmente teria podido ser, formulada

sempre de um mesmo modo”. – MOTA FILHO, Humberto Eustáquio Cesar. Introdução ao Princípio da Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 47.

317 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 369.

318 “Todos os homens nascem iguais, com as mesmas possibilidades de iniciativa, não podendo ninguém se colocar em situação vantajosa em relação aos demais. O essencial, conforme o princípio, é the equal protection of the law, a egalité des conditions, a equal opportunity para todos”. – MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 112.

319 “De fato, o princípio republicano exige que os contribuintes (pessoas físicas ou jurídicas) recebam tratamento isonômico. A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Melhor expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário. Será inconstitucional – por burla ao princípio republicano e ao da isonomia – a lei tributária que selecione pessoas, para submetê-las a regras peculiares, que não alcançam outras, ocupantes de idênticas posições jurídicas”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 78-79. No mesmo sentido, PILATTI, Adriano. O princípio republicano na Constituição de 1988, in Cadernos de Soluções Constitucionais, vol. 1. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 13 e ss; e MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 115.

320 “[...] o princípio da igualdade é vazio, recebendo o conteúdo emanado dos diversos valores e harmonizando-lhes as comparações intersubjetivas. A igualdade é o tema fundamental do constitucionalismo e penetra, como medida, proporção ou razoabilidade, em todos os valores e princípios, dando-lhes a unidade e a legitimação pragmática. Participa, portanto, das idéias de justiça, segurança e liberdade, sendo que no concernente a esta última, aparece tanto na liberdade negativa quanto na positiva, como condição da liberdade, a assegurar a todos a igualdade de chance (= liberdade para ou real). Na mais importante das formulações da igualdade na filosofia do direito hodierna John Rawls a coloca na mesma equação com a liberdade, a justiça e a segurança, expressa nos seguintes princípios: ‘Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual à mais ampla liberdade básica compatível com a liberdade similar dos outros; segundo: as desigualdade sociais e econômicas devem ser combinadas de forma que ambas (a) correspondam à expectativa razoável de que trarão vantagens para todos e (b) que sejam ligadas a posições e órgãos abertos a todos’”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 346-347.

113

que a lei deve ser aplicada igualmente para todos, sem distinções injustificadas

democraticamente (ou, em outras palavras, que o legislador não deve agir arbitrariamente,

com excesso ou desproporção322). Carece, portanto, de critérios para sua efetivação323, que

produzirão a chamada igualdade material (ou seja, resultante) entre os indivíduos.

e depende do próprio critério diferenciador escolhido pelo legislador.324

É preciso atentar, também, para o fato de que o conteúdo normativo do princípio da igualdade não se exaure na igualdade “perante a lei” (Rechtsanwendengsgleichheit). Entender que o conteúdo normativo da igualdade se limita à igualdade perante a lei conduz a dois problemas: primeiro, deixa o Poder Legislativo fora do alcance do princípio da igualdade; segundo, permite que leis cujo critério de discriminação é irrazoável sejam havidas como constitucionais desde que sejam aplicadas de modo uniforme a todos os cidadãos. Trata-se, como se vê, de uma concepção meramente formal do princípio da igualdade, pois a validade da lei independe do seu conteúdo, conquanto seja aplicada de modo isonômico. Aos órgãos aplicadores incumbe aplicar a lei tal como ela é, sem que seja dirigida ao Poder Legislativo qualquer exigência com relação ao seu conteúdo. A conseqüência deste entendimento é a permissão para o Poder Legislativo discriminar, desde que a norma discriminatória seja aplicada a todos os casos de maneira uniforme. Daí por que essa concepção de que o princípio da igualdade se limita à aplicação uniforme e independe do conteúdo foi complementada pela compreensão de que o referido princípio alcança a edição da lei

Tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual325, é o postulado

básico da chamada igualdade formal entre os cidadãos326. A pergunta que se faz é, em que

ualdade fiscal, vazio que é, recebe o seu conteúdo dos princípios constitucionais vinculados

322

323 ações relevantes dos xigência de universalidade”. – CALIENDO, Paulo. Da justiça fiscal:

324

325

a, entendem-se para os indivíduos que estejam dentro do mesmo quadro de circunstâncias e condições,

326

iticism of public choice theory.

321 “O conceito de igà idéia de justiça”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 349. Id. Ibid., p. 344. “A pretensão de eficácia do princípio da igualdade exige que todas as manifestcontribuintes sejam atingidas. Daí a econceito e aplicação. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 409. ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 350. “Mas a uniformidade e a generalidade, em grupos sociais profundamente heterogêneos na sua composição internpois não há maior iniqüidade do que tratar igualmente criaturas desiguais”. – BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 234. “Formalmente la igualdad supone existir el mismo tratamiento a situaciones iguales lo que, al mismo tiempo, exige implementar un tratamiento desigualdad; tratar desigualmente a los desiguales. La cncepción formal de la igualdad, por tanto, impone también tratamientos desiguales”. – NOVOA, Cesar García. Op. Cit., pp. 339-340. No mesmo sentido, BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a crIn: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 108, para quem “In my view, an argument can be made to to the effect that flat-rate proportionality meets the generality norm more adequately than the head tax”.

114

medida

sação legal de desigualdades de modo razoável,

sem extrapolar os limites do bom senso – o que tornaria injusta uma norma que se propunha

exatamente ao contrário

z de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros, Não. Mais do que

Por isso mesmo, a Constituição trouxe como critério básico para o legislador a

chamada capacidade econômica do contribuinte, inserta no § 1o do art. 145 da

tratar os desiguais de modo desigual?327 Até que ponto a desigualdade é tolerável na

equação da igualdade328?

A aferição disso é tarefa das mais melindrosas, devendo ser efetuada caso a caso, de

acordo com as características peculiares de cada situação329.

No entanto, decerto que deve haver critérios para que o legislador330 (não mais o

aplicador da norma) promova essa compen

, realizar justiça331.

Tudo isso quer dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios distintos, pela singela ra ão

isso: fins diversos – como será demonstrado – conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no Direito332.

327

para agrupar os objetos em consideração? Uma profunda discórdia sobre o

achado, em notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar. Limitações

328

329

a da mesma equação ética e jurídica. Logo, a igualdade vau depender de

330

331

er uma série infindável de diferenciações. Nesse quadro, os operadores o estar cada vez mais atentos para a necessidade de controle da aplicação da igualdade,

notadamente no que se refere à razoabilidade e à proporcionalidade das diferenciações, sem o que, a pretexto de estabelecer um estado de igualdade, o Poder Publico terminará instituindo um estado de arbitrariedade”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 439.

332Id. Ibid., p. 410.

“O que há de confuso e divergente em relação à igualdade ou à justiça coloca-se quanto ao critério de comparação e sua valoração. Se pensamos na noção de justiça ou de igualdade material, então as posições serão profundamente dissidentes. É que o problema da igualdade deriva sempre para o problema dos valores jurídicos, a saber, qual o critério a ser levado em conta, que diferenças devem ser desprezadas? Que características são relevantesconceito da igualdade pode nascer nas diferentes formulações desse conceito, tomado no sentido material. [...]” – DERZI, Misabel Abreu Mconstitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 379-380. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 342. “[...] É extremamente difícil detectar a desigualdade que justifica o privilégio não-odioso. Reside aí, sem dúvida alguma, um dos mais árduos problemas acerca dos direitos da liberdade, pois a igualdade, sendo mera relação ou medida, e, portanto, um conceito vazio, abres-e à bipolaridade, afirmando-se assim pelo tratamento igual dos iguais como pela distribuição desigual aos desiguais. Ora, a liberdade, e a justiça, com intermediação da igualdade, participamconteúdos externos e anteriores de justiça ou injustiça, que a transformem, ou não, em privilégio odioso, usurpação da liberdade ou ofensa ao direito fundamental de tratamento isonômico”. – TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 132. AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 135. “A aplicação do princípio da igualdade cresce hoje em importância. Numa sociedade hipercomplexa, o Poder Público sente-se obrigado a estabelecdo Direito deverã

115

Constituição333, que alguns autores insistem por confundir com capacidade contributiva

(instituto diferente por ser mais restrito do que o primeiro)334.

Assim, a expressão “capacidade contributiva” não se encontra no texto da Constituição brasileira tal como no texto italiano, o que nunca impediu nossa doutrina de assim chamar o princípio que opera no campo da tributação o princípio maior da igualdade, e tampouco de interpretar a expressão constitucional “capacidade econômica” incluindo na mesma tudo o que Moschetti incluiu para alcançar o significado de “capacidade contributiva”.335

A capacidade econômica é instituto concebido por Adam Smith, significa que cada

contribuinte deve ser tributado na medida das suas possibilidades de recolher o tributo336.

Assim, tributando-se a cada um na medida das suas possibilidades, todos os contribuintes

estariam sujeitos ao mesmo gravame patrimonial final – exsurgindo a igualdade não apenas

formal no sentido da aplicação da lei, contudo também material quanto ao resultado concreto

da própria norma em si.

Autores há que confundem a capacidade econômica/contributiva com o mínimo

existencial337, institutos distintos que inclusive possuem esteio constitucional diverso338. É

333 “Art. 145. §1o. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a

capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

334 Filiamo-nos à teoria de Moschetti, para quem a capacidade econômica é a “potência econômica global do contribuinte manifestada por fatos significativos ou indicativos (‘hechos-índice’) de riqueza. [...] pode existir capacidade econômica sem que exista capacidade contributiva, [...] ‘Capacidad contributiva no es, por tanto, toda manifestación de riqueza, sino sólo aquella potencia económica que debe juzgarse idónea para concurrir a los gastos públicos, [...]”. – GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e direito tributário. 1999: São Paulo, Dialética, p. 195. Ou seja, tratam-se de capacidades econômicas diferenciadas e inconfundíveis.

335 Id. Ibid., p. 197. Nesse sentido, cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 102: “Estamos percebendo que, no Brasil, capacidade contributiva é o mesmo que capacidade econômica. Conquista do Estado Moderno, ajuda a realizar a justiça fiscal, porque tem por escopo fazer com que cada pessoa colabore com as despesas públicas na medida de suas possibilidades”. Discordamos desse entendimento, fazendo nossas as palavras do prof. Aurélio Pitanga Seixas Filho que, em diversas palestras e cursos, reitera que ‘se tudo fosse a mesma coisa, não haveria duas expressões diferentes para identificar o mesmo instituto’.

336 Cf. GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit. 337 Nesse sentido, cf. BALEEIRO, Aliomar, Uma introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de

Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 276-277: “A capacidade contributiva do indivíduo significa sua idoneidade econômica para suportar, sem sacrifício do indispensável à vida compatível com a dignidade humana, uma fração qualquer do custo total de serviços públicos. [...] Quaisquer que sejam as restrições feitas ao conceito de capacidade contributiva da coletividade, é evidente que existem limites para esta tanto quanto para os indivíduos. O contribuinte não pode pagar impostos que sacrifiquem o “mínimo de existência” ou o “necessário físico”; e AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 138: “além disso, quer-se preservar o contribuinte, buscando evitar que uma tributação excessiva (inadequada à sua capacidade contributiva) comprometa os seus meios de subsistência, ou o livro exercício de sua profissão, ou a livre exploração de sua empresa, ou o exercício de outros direitos fundamentais, já que tudo isso relativiza sua capacidade econômica”.

116

possível que essa confusão conduza alguns a enxergar a capacidade contributiva como um

princípio fundamental próprio.

De todo modo, esse comando, dentre as seis espécies tributárias existentes no

ordenamento constitucional brasileiro vigente339, aplica-se apenas aos impostos, por força do

próprio § 1o do art. 145 da Constituição; e, mesmo assim, somente àqueles que assumem

função fiscal340, o que permitiria que a extrafiscalidade ultrapassasse seu limite. É de se

realçar ainda o entendimento de que ainda há uma secção a se fazer nos impostos com função

fiscal, de que o critério de capacidade contributiva/econômica só se aplica aos impostos ditos

diretos (ou seja, em que juridicamente não há repercussão do ônus econômico a terceiros,

como sucede nos impostos sobre o consumo, notadamente ICMS e IPI341) e, mesmo assim,

àqueles que sejam pessoais – que incidam sobre situações jurídicas subjetivas, como o

Imposto de Renda342.

A razão pública exige o cumprimento de ambos aspectos da igualdade, de modo que

os iguais sejam tratados da mesma forma e os desiguais sejam tratados de modo

diferenciado343, resultando em igual oportunidade344 de chances para os homens. Todavia, a

razão pública não determina de que modo essa igualdade material deve ser atingida, prezando

apenas pela razoabilidade e pela reciprocidade econômica (conceitos que, em si, são bastantes

abertos e sem um critério a eles inerentes).

338 “A tributação também não pode incidir sobre o mínimo necessário à sobrevivência do cidadão e de sua

família em condições compatíveis com a dignidade humana. Nada tem que ver com o problema da capacidade contributiva, mas com os direitos da liberdade. A imunidade do mínimo existencial está em simetria com a proibição de excesso, fundada também na liberdade: enquanto esta impede a tributação além da capacidade contributiva, a imunidade do mínimo vital protege contra a incidência fiscal aquém da aptidão para contribuir”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 305.

339 Impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios, contribuições especiais e a contribuição sui generis para o custeio do serviço de iluminação pública.

340 “A capacidade contributiva é o próprio critério da aplicação da igualdade no caso de impostos com finalidade fiscal”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 359.

341 “Exemplificando, se um milionário e um mendigo comprarem, cada um para si, um maço de cigarros, da mesma marca, suportarão a mesma carga econômica do imposto. Vemos, portanto, que não é da índole do ICMS ser graduado de acordo com a capacidade econômica dos contribuintes. Nem dos impostos que, como ele, são chamados, pela Ciência econômica, de indiretos (v.g., o IPI)”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 102.

342 A respeito, vale lembrar o Acórdão proferido pelo plenário do STF no RE 153771, em que foi relator para o Acórdão o Min. Moreira Alves, sufragando o entendimento de que a capacidade econômica é critério aplicável somente aos impostos pessoais.

343 “In some settings, asymmetry in treatment among separate persons and groups in the political community may be value-enhancing to all members, as might be evidenced by near-universal support […]”. – BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 110.

344 ABREU, Sérgio. O princípio da igualdade: a (in)sensível desigualdade ou a isonomia matizada. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. pp. 325 e ss.

117

Por isso mesmo, temos que a capacidade econômica, aventada por praticamente toda a

doutrina técnica tributária como um princípio de justiça ligado à igualdade, não se reveste das

características de fundamentalidade ante a razão pública. Isso porque, de acordo com o

esquema de liberdades proposto em dada conjuntura política, é factível que a capacidade

econômica não seja adotada. Basta ver que a Constituição de 1988 adotou o critério de

capacidade econômica, mais amplo do que o da capacidade meramente contributiva (apesar

de a maior parte da doutrina confundi-los). Dizer que os dois são direitos fundamentais, ao

mesmo tempo, confundindo-os como se sinônimos fossem, é abrir uma bifurcação no

princípio da igualdade sob o prisma material, o que não pode ser considerado válido na

definição dos valores que conformam a estrutura básica da sociedade.

Ainda assim, a quase totalidade da doutrina técnica tributária afirma tratar-se de um

princípio345 que se reveste das características de direito fundamental. Todos, sem exceção,

chamam de princípio da capacidade econômica, ou princípio da capacidade contributiva –

ainda que também o reconheçam como critério de aferição346 (ou princípio operacional347) da

igualdade348.

Ousamos discordar da doutrina tecnicista do direito tributário, no sentido de que a

capacidade econômica não é um princípio fundamental, ou mesmo que ela decorre da

igualdade349. Analisando a capacidade econômica em suas relações com os tributos, verifica-

se que ela é um critério para tributação, escolhido dentre outros possíveis para os impostos350;

345 “Esse princípio tem caráter programático, servindo como norteador da atividade legislativa”. – HARADA,

Kiyoshi. Op. Cit., p. 387. Refutamos a tese de ‘princípios de conteúdo meramente programático’. Ora, ou bem se trata de princípio, com carga axiológica, ou é um mero critério a ser utilizado na elaboração de normas. Nesse sentido, Luiz Felipe Silveira Difini frisa que “o princípio da capacidade contributiva não é meramente programático. Aliás, a doutrina moderna já não aceita a existência de regras jurídicas que não produzem quaisquer conseqüências, [...]”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 83; cf. também COELHO, Sacha Calmon Navarro. Os princípios gerais do direito tributário na Constituição. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Há decisões do STF no sentido de que se trata de um princípio. Vide, por exemplo, a decisão no RE 239964, de lavra da Primeira Turma (Rel. Min. Ellen Gracie, publicada no DJ de 09/05/2003).

346 Cf. o Acórdão proferido na ADI 453, no qual o STF entendeu que não houve, na exação em tela, vulneração ao “princípio da isonomia, haja vista o diploma legal em tela ter estabelecido valores específicos para cada faixa de contribuintes, sendo estes fixados segundo a capacidade contributiva de cada profissional”.

347 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 54.

348 Realçando o caráter instrumental da capacidade contributiva, Luiz Felipe Silveira Difini destaca que “os princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva não infirmam, antes complementam ou realizam o princípio da isonomia”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 79.

349 RIBEIRO, Ricardo Lodi. A constitucionalização do direito tributário. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 1003.

350 Com isso, afastamo-nos terminantemente da concepção exposta por Paulo Caliendo, para quem a capacidade contributiva “representa, no direito pátrio, o único fator de discriminação legítima, não somente como fator de tributação, mas também como critério de gradação de tributos”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 392.

118

esse critério agrega-se ainda a outros351 na Constituição352 (considerados válidos pela

doutrina para os tributos com função extrafiscal, por exemplo353). Ao invés de decorrer da

igualdade, a capacidade contributiva se mostra como um instrumento para o legislador, que

conduz à igualdade354.

De cinco maneiras se traduzem os critérios de comparação: 1. na proibição de distinguir (universalmente) na aplicação da lei, em que o valor básico protegido é a segurança jurídica; 2. na proibição de distinguir no teor da lei, vedação que salvaguarda valores democráticos como abolição de privilégios e de arbítrio. Os princípios da generalidade e da universalidade estão a seu serviço e têm como destinatários todos aqueles considerados iguais; 3. no dever de distinguir no conteúdo da lei entre os desiguais, e na medida dessa desigualdade. No Direito Tributário, o critério básico que mensura a igualdade ou a desigualdade é a capacidade econômica do contribuinte; 4. no dever de considerar as grandes desigualdades econômico-materiais advindas dos fatos, com o fim de atenuá-las e restabelecer o equilíbrio social. A progressividade dos tributos favorece a igualação das díspares condições concretas, em vez de conservá-las ou acentuá-las; 5. na possibilidade de derrogações parciais ou totais ao princípio da capacidade contributiva pelo acolhimento de outros valores constitucionais como critérios de comparação, os quais podem inspirar progressividade, regressividade, isenções e benefícios, na busca de um melhor padrão de vida para todos, dentro dos planos de desenvolvimento nacional integrado e harmonioso.

351 “[a capacidade contributiva] É o critério de comparação que inspira, em substância, o princípio da igualdade.

Mas não é o único”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 380.

352 Damos, como exemplo, a razoabilidade, frisada por Paulo Caliendo como parâmetro amplamente utilizado pelo STF na aplicação do princípio da igualdade a casos concretos. CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 413. A respeito, Humberto Ávila aponta que “o essencial para a aplicação do princípio da igualdade, segundo o postulado da razoabilidade-congruência, é a utilização de critérios reais, objetivos e permanentes. Além disso, uma vez escolhido o critério, ele deve ser aplicado da mesma forma – e de maneira conseqüente – para todos os sujeitos envolvidos”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 340.

353 “Na extrafiscalidade, em muitos casos, a capacidade contributiva é posta de lado, de forma total ou parcial” –Id. Ibid., p. 381.

354 Pautamo-nos, em termos concretos, na decisão da ADI 1643, na qual o STF entendeu que "Não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do simples aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado." (ADI 1.643, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-12-02, DJ de 14-3-03). Note-se que a capacidade contributiva autorizou o tratamento diferenciado entre empresas que aparentemente estariam na mesma situação jurídica – o que seria a base do princípio da isonomia tributária nos termos do art. 150, II, da Constituição. Fosse a capacidade contributiva decorrente da isonomia, a lei forçosamente seria julgada inconstitucional. No entanto, o fato concreto de os sócios das empresas terem maiores condições de acesso a melhores posições no mercado levou ao discrímen da lei tributária. Ou seja, a capacidade contributiva seria um instrumento conducente à igualdade material – o que levou ao reconhecimento da constitucionalidade da lei discriminatória.

119

Em nenhuma dessas cinco maneiras, por meio das quais agrupamos os distintos critérios de comparação (igualdade material), quebra-se o conceito de igualdade formal.355

A economia política, por sua vez, origem do critério da capacidade contributiva,

também apresenta outras maneiras de enfocar o problema da igualdade fiscal: benefícios

advindos do Estado, talento pessoal, sacrifícios máximos, sacrifícios mínimos, sacrifícios

proporcionais são algumas das idéias difundidas para a questão da tributação justa.356

Logo, como critério que é, a capacidade contributiva não pode ser erigida à máxima de

princípio inerente à democracia, ou de direito fundamental357. Caso se tratasse realmente de

um direito fundamental (com todas as características de um direito fundamental, vistas no

capítulo 1 da presente), a capacidade contributiva não poderia encontrar barreiras pelo

intérprete para sua aplicação358. Seria aplicável, não apenas aos impostos (mas a todos os

tributos), ainda que de função extrafiscal, aos tributos reais e pessoais, aos tributos diretos e

indiretos359, etc., à exceção somente das ressalvas que a própria Constituição estabelecesse –

como se tem com relação a qualquer outro direito fundamental.

Não é coincidência, portanto, que esse critério esteja positivado no texto constitucional

fora da Seção das limitações ao poder de tributar, valendo relembrar que “na justiça como

eqüidade (‘justice as fairness’) os direitos fundamentais são tomados como invioláveis e não

podem estar sujeitos à negociação política ou se tornar moeda corrente nos cálculos dos

interesses do bem-estar social”360.

355 DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de

tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 530. 356 Cf. NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam, Op. Cit., pp. 18 e ss.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito

constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 690-691; e MOTA FILHO, Humberto Eustáquio César. Op. Cit., p. 49.

357 “Os princípios fundamentais de leis gerais da República podem ser regras precisas e densas mas que assumem num determinado contexto material a dimensão de fundamentalidade”. – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 804. No mesmo sentido, já abordando o princípio da igualdade: “Ao princípio como enunciado modelar, na medida em que se trata de constriuir as instituições, de desenvolvê-las, ou de adequar os fatos às instituições, corresponde um enunciado prescritivo. Por exemplo: ‘todos os homens devem ser tratados igualmente perante a lei’. Mas, desde que incorporado ao sistema, esse princípio pode ser lido na forma declaratória: ‘todos os homens são iguais perante a lei’”. – CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 10.

358 “Quando os impostos tiverem uma justificação e uma finalidade extrafiscal, enquanto instruídos com o propósito prevalente de atingir fins econômicos ou sociais, já não será o princípio da capacidade contributiva a medida de diferenciação entre os contribuintes. [...] E – eis o decisivo – ao justificar a instituição de um imposto em algum fim estatal o legislador afastar-se-á do direito fundamental da igualdade segundo a capacidade econômica dos contribuintes”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., pp. 416-417.

359 Não podemos esquecer que, com relação a esses tributos, há quem estabeleça que a seletividade seria uma adaptação da capacidade contributiva à esfera do possível (cf. por exemplo, DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 88). Todavia, o próprio fato de o legislador do ICMS ser facultado a instituir a seletividade (art. 155, §2o, III, da CRFB) já demove qualquer possibilidade de atribuir fundamentalidade a esse critério.

360 GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 47.

120

Por outro lado, a idéia de capacidade contributiva como princípio do Sistema

Tributário Nacional pode levar a algumas distorções que (essas, sim) põem em risco direitos

fundamentais, como, por exemplo, a penhorabilidade do bem de família em caso de falta de

recolhimento de seu respectivo IPTU, ou a afirmação de que “pouco importa se o contribuinte

que praticou o fato imponível do imposto não reúne, por razões personalíssimas (v.g., está

desempregado), condições para suportar a carga tributária”361.

Não nos esquivamos da idéia de que, atualmente362, é bastante factível dizer-se que a

capacidade contributiva é um critério razoável para se chegar à igualdade tributária

material363; todavia, não se pode esquecer que as gerações mudam, e, com elas, as opiniões

sobre os critérios – e, mais importante ainda, as impressões sobre os resultados364 de sua

aplicação na sociedade como um todo. Relembre-se que “mesmo convicções firmes podem

mudar gradualmente”365.

A capacidade contributiva não é um fim a ser protegido, é um meio – dentre alguns

outros, frise-se366 – para se chegar à igualdade (esta, sim, concebida como um direito inerente

ao Estado democrático de Direito367).

Basta ver-se, por exemplo, a concepção exposta por Thomas Nagel e Liam Murphy,

para quem

361 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 90-91. 362 “Desde el momento en que los tributos pertenecen al mundo del derecho, deben ser establecidos conforme a

un postulado de justicia: en la actualidad existe acuerdo en que dicho postulado es la capacidad contributiva”. – ETCHEGOYEN, Marcos F. García. El sistema tributario y la necesidad de vigencia del principio de capacidad contributiva. In: CASÁS, José Osvaldo (coord.). Interpretación económica de las normas tributarias. Buenos Aires: Ábaco de Rodolfo Depalma, 2004, pp. 271-272.

363 “El justo reparto de la carga tributaria individual requiere una medida de la igualdad, determinada por la capacidad económica entendida como riqueza disponible. La capacidad económica debe determinar el reparto de la carga impositiva individual”. – MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Op. Cit., p. 121.

364 “Además, para que la diferenciación que pueda establecer una ley fiscal sea constitucionalmente lícita, no es suficiente con que lo sea el fin que con ella se pretende conseguir, sino que es indispensable además que las consecuencias jurídicas que resulten de tal distinción sean adecuadas y proporcionadas a dicho fin, [...]”. – NOVOA, Cesar García. Op. Cit., p. 342.

365 RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 208.

366 Uma vez que a capacidade contributiva “constituiria o critério fundamental para se estabelecerem categorias essenciais com tratamentos próprios; todavia, outros valores plasmados em normas constitucionais podem também justificar discriminações legislativas”. – GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 193.

367 “Do ponto de vista da igualdade material, os diferentes aspectos, os distintos critérios de comparação não são incompossíveis ou contraditórios. São apenas aspectos de um mesmo fenômeno, compondo um todo unitário de sentido e de valor, que se complementam: segurança jurídica, generalidade e abolição de privilégios, graduação de tributos de acordo com a capacidade contributiva, igualação de oportunidades e redução das grandes disparidades sócio-econômicas para o desenvolvimento nacional harmonioso (progressividade, incentivos, prêmios e extrafiscalidade). A unidade está na construção do Estado Democrático de Direito de que a igualdade é esteio fundamental (arts. 1o a 3o da Constituição)”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas e BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 530-531. Cf. também GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., pp. 183 e 193, donde destacamos que “o princípio que orienta a justiça tributária é o princípio da igualdade, sendo a capacidade contributiva um subprincípio importante e atuante, mas não o único”.

121

[...] essa abordagem como um todo é falha em seus fundamentos. Se a distribuição produzida pelo mercado não é justa por pressuposto, os retos critérios de justiça distributiva não farão referência alguma a essa distribuição, nem mesmo tomando-a como base. A justiça distributiva não é a aplicação de uma função aparentemente eqüitativa a uma distribuição inicial de bem-estar moralmente arbitrária. Apesar dos pressupostos implícitos de muitas pessoas, a justiça de um esquema tributário não pode ser avaliada pelo fato de as alíquotas médias aumentarem suficientemente à medida que a renda cresce. Além disso, como já vimos, uma vez rejeitado o pressuposto de que a distribuição de bem-estar produzida pelo mercado é justa, já não podemos defender princípios de justiça tributária sem fazer apelo também a princípios mais amplos de justiça governamental. Se a distribuição produzida pelo mercado não é justa por pressuposto, o governo deve empregar os meios tributários e as políticas de gastos que mais atendem aos critérios corretos de justiça; não há sentido em fazer questão de que a política tributária seja justa em si e ao mesmo tempo ignorar a justiça dos gastos governamentais. [...] o objetivo da eqüidade vertical da tributação não tem sentido fora do contexto mais geral da justiça dos gastos do governo. E, quando passamos a tentar resolver essa outra questão, de quais são as metas distributivas de um governo justo, a idéia vaga de uma “capacidade contributiva” já não tem mais nada a nos dizer.368

De todo modo, reconhecemos que a discussão é profunda e comportaria mesmo uma

pesquisa em separado, unicamente para essa averiguação. A própria diversidade com que a

capacidade contributiva é tratada, mesmo entre aqueles que a entendem como um princípio, já

denota isso. Diogo Leite de Campos afirma textualmente, nesse sentido, que a densificação

do núcleo conceitual da capacidade contributiva ainda está muito longe369. Porém, as breves

linhas acima já demonstram, de modo resumido, que a capacidade contributiva se afigura

mais como um procedimento conducente à igualdade do que um princípio distinto, inerente ao

Estado democrático de Direito, como insiste a doutrina tecnicista do direito tributário.

Assim sendo, verifica-se que, de fato, o art. 150, II, da Constituição, ao exigir o

tratamento tributário igualitário entre contribuintes que se encontrem na mesma situação

jurídica, é cláusula pétrea ante a razão pública. Da mesma forma, o art. 151, I, ao exigir a

uniformidade geográfica, e o art. 151, II, in fine, ao exigir igualdade no tratamento entre os

funcionários públicos dos diversos entes da Federação. O art. 152, por sua vez, ao consagrar a

368 NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. Op. Cit., pp. 43-44. No mesmo sentido, GODOI, Marciano Seabra de.

Op. Cit., p. 215, para quem “em resumo, a capacidade contributiva tem um lugar muito importante [...], todavia não deve ser vista como encarnando totalmente em si o próprio princípio da igualdade tributária, pois o critério da capacidade contributiva não tem condições de, no contexto de um Estado Democrático de Direito, fundamentar a totalidade do fenômeno tributário, o qual por sua vez não deve ser visto como algo isolado, mas como algo integrado nos valores que plasmam a justiça constitucional”.

369 CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 103.

122

reciprocidade econômica, exigindo tratamento igualitário entre bens e serviços em razão de

sua procedência ou destino, também é de ser considerado dispositivo jusfundamental.

3.3.3 A irretroatividade.

A irretroatividade (ou prévia definição legal do fato gerador370) está prevista no artigo

150, III, a, da Constituição. Significa, conforme o próprio texto constitucional o diz, que

todos os entes da Federação estão proibidos de exigir ou aumentar tributos relativamente a

situações jurídicas ocorridas antes da vigência da lei que os houver instituído ou

aumentado371.

Referimo-nos a situações jurídicas e não a fatos geradores por acolhermos as críticas

tecidas, dentre outros, por Luciano Amaro, para quem

o texto não é feliz ao falar em fatos geradores. O fato anterior à vigência da lei que institui tributo não é gerador. Só se pode falar em fato gerador anterior à lei quando esta aumente (e não quando institua) tributo. O que a Constituição pretende, obviamente, é vedar a aplicação da lei nova, que criou ou aumentou tributo, a fato pretérito, que, portanto, continua sendo não gerador de tributo, ou permanece como gerador de menor tributo, segundo a lei da época de sua ocorrência372.

Essa não é a única crítica feita ao dispositivo. Há quem diga, ainda, que o dispositivo

em si já era desnecessário, porquanto a Constituição, genericamente, já protege, em seu art.

5o, XXXVI373, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada dos efeitos

provocados pela retroação das leis374. Justifica-se, para esses autores, o dispositivo especial

em sede de tributação, por razões de conteúdo histórico, relativamente aos malfadados

370 SILVA, José Afonso. da. Op. Cit., p. 691. 371 De se frisar, desde já, que “a proibição constitucional, note-se, é apenas quanto a leis que criam ou aumentam

tributos. Em outros casos, lei infraconstitucional pode determinar validamente que leis tributárias tenham efeitos retroativos, [...]”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 3a. edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 78.

372 AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 118. Cf. ainda HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 384; e CARRAZZA, Roque Antonio., Op. Cit., p. 342.

373 “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. 374 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 161-162. Humberto Ávila defende que a previsão ainda “é

complementada pelos dispositivos constitucionais que garantem o Estado de Direito (art 1o), a segurança (art. 5o [caput]”. Op. Cit., p. 142.

123

empréstimos compulsórios ou, ainda, pela questão da modificação legislativa do imposto de

renda no curso do ano, aplicável para o mesmo ano-base375.

De todo modo, a despeito da técnica legislativa, a reprodução da regra da

irretroatividade para a esfera tributária não causa prejuízo algum ao sistema, mostrando-se um

comando376 específico tanto para o legislador quanto para o aplicador da lei377, a tornar claro

para seus destinatários que, a par do respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à

coisa julgada (o que traria um certo risco de adaptação desses institutos genéricos ao direito

tributário), o legislador está proibido de exigir ou aumentar tributos com relação a fatos

pretéritos378.

A irretroatividade é considerada regra das mais importantes, por materializar os

chamados princípios da segurança jurídica379 e da confiança legítima, uma vez que o cidadão

pode praticar seus atos sem se preocupar com o porvir380 – especialmente em sede de

tributação. “Se houvesse um país no mundo onde estivesse admitida a retroação das leis, não

375 Não nos deteremos a investigar esses dois casos por refugirem ao tema da pesquisa. Todavia, para uma leitura

mais aprofundada recomenda-se os Comentários à Constituição de 1988 de Sacha Calmon Navarro Coelho, as notas promovidas por Misabel Derzi à obra Limitações constitucionais ao poder de tributar do prof. Aliomar Baleeiro, o Curso de Direito Tributário do prof. Paulo de Barros Carvalho e ainda o vol. II do Tratado de direito constitucional financeiro e tributário do prof. Ricardo Lobo Torres.

376 Humberto Ávila destaca ter a irretroatividade uma dupla acepção, como regra e também como princípio. Op. Cit., p. 142.

377 AMARO, Luciano. Op. Cit., pp. 118-119. 378 Com isso, as considerações legais acerca da irretroatividade afastam-se da concepção desenvolvida por

Bernardo Ribeiro de Moraes, para quem, ainda que na órbita tributária, a retroatividade é a regra, tendo como exceções o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. cit., pp. 156-159.

379 “A segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das conseqüências diretas de seus atos e de seus fatos à luz liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”. – SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 433.

380 Tércio Sampaio Ferraz Jr., de modo quase poético, expõe a situação pelo seguinte ponto-de-vista: “Trata-se do tempo cronológico, caracterizado pela irreversibilidade de um momento indefinido no futuro, e que tem uma qualidade entrópica (tudo morre), como se vê pela segunda lei da termodinâmica [...]. Neste inelutável tempo físico introduz-se a cultura (ética, direito) como a capacidade de retomada reflexiva do passado e antecipação reflexiva do futuro. É a capacidade de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apagá-lo) – por exemplo, pela responsabilização por aquilo que aconteceu – e de orientar o futuro (sem impedir que ele ocorra) – por exemplo, usando-o como finalidade reguladora da ação. Entre o passado e o futuro o tempo cultural aparece, assim, como duração, cuja experiência se dá no presente, vivido como um contínuo. A duração, desse modo, liga o passado e o futuro: torna o passado (que não é mais) algo ainda interessante e faz do futuro (que ainda não ocorreu) um crédito, base da promessa. A questão está em como estabelecer esse liame e dar consistência à duração, isto é, evitar que um passado, de repente, se torne estranho, um futuro, algo opaco e incerto, e a duração, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de um evento passado pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser modificado ao arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos estaria sujeita a uma insegurança e incerteza insuportáveis”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade no campo tributário. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 235.

124

haveria nele nem mesmo sombra de segurança”381. A irretroatividade, portanto, ao determinar

que a lei que determina a incidência tributária seja sempre prospectiva382, garante estabilidade

125

O problema é que a edição (e subseqüente vigência) da própria lei com efeitos

prospectivos não se traduz em garantia de irretroatividade388. Daí advém a interpretação de

que o que o texto constitucional não permite é a produção de efeitos concretos retroativos da

norma, independentemente de sua vigência, provocando a chamada “irretroatividade material

(o que não pode retroagir, a rigor, não é apenas a lei geral [...] mas o próprio direito que venha

a ser revelado pela lei nova, [...]”389.

De qualquer modo, vale realçar a opinião de que “em um ou outro caso, as

conseqüências são as mesmas, porque, alterando-se os efeitos jurídicos já desencadeados, a lei

nova terá modificado fato pretérito”390.

Também é digna de nota a expressão fato trazida pelo constituinte. O fato em si pode

significar a ocorrência concreta de um negócio jurídico, o que é diferente e muitas vezes

economicamente menos importante do que a produção de efeitos do mesmo ato. A doutrina,

então, conciliou o entendimento de que tanto o ato jurídico como as conseqüências desse

ato391 estão protegidas pela irretroatividade da lei tributária392.

A irretroatividade, ao nosso ver, mostra-se afeta à razão pública, atendendo ao critério

de legitimação ao proteger os valores do bem comum; a razoabilidade; e as garantias dos

exercícios dessas liberdades e valores393.

Não se pode pensar num regime efetivamente democrático se as condutas adotadas

pelos cidadãos estão sempre sob a incerteza do porvir394. Da mesma forma, os atos praticados

388 “A vigência pode ser posposta (o prazo pode contar tantos dias da sua publicação, mas sempre para frente,

não para trás). Não há, pois, como contar esse tempo antes de sua publicação: isto decorre de uma impossibilidade lógica, pois mesmo que se quisesse ‘retroagir’ a vigência, a cronologia o impediria – o tempo é irreversível. Mas ela [a lei] pode ter eficácia retroativa. A partir do momento em que ela vale, isto é, é vigente, seus efeitos podem retroagir, e a norma, imperar sobre o passado. A eficácia tem a ver com a possibilidade de produzir efeitos. Essa possibilidade é prospectiva ou retroativa. Nada impede que, a despeito da cronologia (vigente a partir de um momento em direção ao futuro), o destinatário da norma possa considerá-la, a partir de quando ela vale, como produzindo efeitos sobre fatos e atos já sucedidos. Neste sentido, a sua força ou império pode atingir o passado. É o fenômeno da retroatividade cuja possibilidade e regulada pelo princípio da irretroatividade”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 237. Cf. ainda MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 156.

389 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 286.

390 DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 666.

391 Cf. TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 513, com esteio em Klaus Tipke.

392 “Seguindo esse entendimento e sendo a segurança jurídica um sobreprincípio constitucional fundamental, o intérprete deverá considerar vedada a modificação retroativa das conseqüências jurídicas”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 152.

393 Misabel Derzi ainda relaciona a irretroatividade à igualdade e à evolução do Direito. Cf. suas notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 650 e ss.

394 “Quando o Poder Legislativo baixa leis retroativas, altera as condições básicas do Estado de Direito, quebrando, irremediavelmente, a confiança que as pessoas devem ter no Poder Público. Com efeito, elas já não

127

A anterioridade anual (alínea b) é denominada princípio por praticamente todos os

autores398, à exceção de Humberto Ávila – o qual, mesmo reconhecendo-lhe um duplo

aspecto de regra e de princípio, chama-a de regra após analisar o teor das decisões do

Supremo Tribunal Federal em relação à revogação das isenções399; já a anterioridade

nonagesimal (alínea c) curiosamente não ganha esse mesmo status pela mesma parcela da

doutrina, sendo chamada por alguns doutrinadores simplesmente de regra da noventena400.

É possível que a distinção acima exista por razões históricas, já que a anterioridade

anual tem como origem histórica no Direito pátrio a antiga exigência de prévia autorização

orçamentária, chamada no ordenamento constitucional anterior de anualidade tributária.

Por sua vez, o princípio da anterioridade nasceu de um paradoxo bem brasileiro, como lembra Aliomar Baleeiro. Consagrado o princípio da autorização orçamentária de forma inequívoca na Constituição de 1946, começam-lhe as violações na ordem dos fatos, infringências que culminaram em sua substituição pelo princípio da anterioridade401.

Assim, é bastante factível que motivos culturais provoquem essa diferença entre as

denominações da anterioridade anual (como princípio) e da nonagesimal (como regra) por

parte dos juristas.

Trata-se de dispositivo com comando duplo, tanto para o legislador quanto para o

aplicador da lei tributária promulgada402.

398 Ricardo Lobo Torres, ao discorrer sobre o assunto, mesmo entendendo que a acepção da anterioridade como

regra ou princípio é um problema preliminar, “tendo em vista que possui contorno fechado, referido a momento determinado no tempo”, termina por caracterizá-la como princípio, dado que “a distinção entre princípios e regras não é tão categórica”. – TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 559. Ousamos discordar de sua opinião, conforme explicado no capítulo 4 da presente.

399 ÁVILA, Humberto. Op. Cit., pp. 153-155. Essa análise tomou por base um entendimento diferente, mais antigo, do STF, não considerando a decisão na ADI-MC 2325, na qual o Supremo considerou que a anterioridade era aplicável também para as revogações de isenções, por significar concretamente majoração de tributo.

400 HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., pp. 385-386. 401 DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de

tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 51. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 557 e ss. Interessante destacar, a respeito, o dado levantado por Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “Importante notar, inicialmente, que a tese adotada pela Comissão de Estudos Constitucionais, em seu Anteprojeto de Constituição (art. 72, IV), propunha: ‘Compete à União instituir impostos sobre: [...] IV – renda e proventos de qualquer natureza, cujo fato gerador coincidirá com o término do exercício financeiro da União’. O posicionamento histórico era bastante claro. Mas o texto aprovado na Constituinte foi menos explícito: veda-se cobrar tributos ‘b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou’. É verdade que, conjugando-se o dispositivo citado com a interpretação histórica, não seria difícil descobrir o seu sentido.” – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 240.

402 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 186.

128

De todo modo, a anterioridade é relacionada pelos doutrinadores como um dos esteios

da segurança jurídica dos cidadãos403, porquanto a exigência de uma vacatio legis tributária

constitucional404 garante previsibilidade aos indivíduos quanto aos tributos que o Estado

institui ou majora ao longo do tempo. Nesse tom, a anterioridade materializaria o chamado

princípio da não-surpresa405 do contribuinte, inerente ao Estado Democrático de Direito,

permitindo aos cidadãos planejar406 suas vidas407 diante de uma modificação legislativa de tão

alto talante como a instituição ou o aumento408 da incidência tributária409.

Graças ao princípio da anterioridade, os destinatários imediatos da lei criadora ou majoradora de tributos (Fisco e contribuinte), conhecendo-a, podem preparar-se para bem cumpri-la. Noutro giro, este princípio permite que o virtual contribuinte (a pessoa genericamente indicada na lei) possa, em alguns casos, livrar-se da tributação, evitando o comportamento que o tornará sujeito passivo da obrigação tributária correspondente410.

A anterioridade é plenamente aplicável para os tributos com função fiscal (salvo com

relação ao Imposto de Renda e à definição das bases de cálculo de IPVA e IPTU, para os 403 “A anterioridade [...] objetiva implementar o sobreprincípio da segurança jurídica, de modo que o

contribuinte não seja surpreendido com exigência tributária inesperada”. – CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 160. No mesmo sentido, CARVALHO, Cristiano Rosa, Op. Cit., p. 894.

404 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 100. 405 ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da, Op. Cit., pp. 292-293, colocando a anterioridade no mesmo patamar

da legalidade como “esteio fundamental para a defesa do contribuinte contra o abuso por parte do Estado”. 406 “[...] o que se enfatiza é a proteção do contribuinte contra a surpresa de alterações tributárias ao longo do

exercício, o que afetaria o planejamento de suas atividades”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 123. 407 Tércio Sampaio Ferraz Jr., assim como o fez ao tratar da irretroatividade, discorreu quase que poeticamente

acerca da anterioridade: “Já a anterioridade diz respeito à duração. A salvaguarda contra a surpresa exige a periodicidade, que confere aos eventos um mínimo de durabilidade. Por isso, em todas as culturas, o tempo é dividido e contado. Trata-se de dar ao tempo presente uma consist6encia, fazendo dele um todo extenso e compacto, entre um começo e um fim, dentro do qual os eventos são solidários. Sem essa divisão e essa contagem, o homem não conseguiria planejar a sua ação. O princípio da anterioridade periodiza o tempo e lhe dá um sentido de unidade, protegendo os eventos que dentro dela acontecem contra alterações legais que ocorram no período. Não se trata de impedir as revisões legais, mas de garantir que as mudanças que elas trazem contra o sobressalto e a surpresa. Sem essa garantia, os eventos não duram (perdem legitimidade). O estabelecimento de períodos (um dia, um mês, um ano), dentro dos quais a lei nova não produz efeitos, é, assim, vital para o implemento da segurança jurídica”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 236.

408 “Impende notar que a lei que de algum modo beneficia o contribuinte não precisa obedecer ao princípio da anterioridade. É que este princípio milita em seu favor; nunca em seu detrimento”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 196.

409 “Por outro lado, o princípio da anterioridade da lei tributária diz respeito apenas à lei tributária formal, em nada influindo no seu regulamento”. – MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 110. Ainda de se frisar o entendimento do STF com relação à expressão “cobrar tributos”: “"O preceito constitucional não especifica o modo de implementar-se o aumento. Vale dizer que toda modificação legislativa que, de maneira direta ou indireta, implicar carga tributária maior há de ter eficácia no ano subseqüente àquele no qual veio a ser feita.” (ADI 2.325-MC, excerto de voto do Min. Marco Aurélio, DJ de 6-10-06).

410 Id. Ibid., p. 196. Repelimos a última assertiva, uma vez que não nos parece razoável que uma regra ditada pelos próprios contribuintes (considerando a máxima da legalidade) sirva para que eles mesmos escapem de suas próprias determinações (mais uma vez relembrando a máxima da legalidade) em sede de tributação, que só existe para financiar a estrutura estatal que os mantém em condições de convivência e desenvolvimento pacíficos.

129

quais se aplica somente a regra anual), sendo mitigada tanto na regra anual quanto na

nonagesimal relativamente a tributos com função extrafiscal411, a teor do parágrafo 1o do art.

150 da Constituição da República.

A questão da não-surpresa mostra-se digna de nota, uma vez que ela segue um

raciocínio inverso do preconizado pelo princípio da legalidade – abordado anteriormente. Se,

pelo princípio da legalidade, o tributo é instituído pelo próprio povo mediante seus

representantes, exatamente para evitar o arbítrio do Estado nesse segmento fundamental das

restrições à liberdade dos indivíduos, falar-se que o povo deve se precaver contra as mudanças

tributárias (ou instituições de tributos) promovidas pelo Estado412 (como se os cidadãos nesse

momento ficassem distantes da deliberação sobre os tributos) é, no mínimo, interessante. É

analisar o mesmo objeto – criação ou majoração de tributos – por dois prismas absolutamente

diferentes, sem uma explicação plausível para tal.

Por essas caracteristicas, a anterioridade não possui esteio na esfera de imparcialidade

política, não havendo meio de se afirmá-la como justificável pela razão pública.

O argumento utilizado para a anterioridade é a segurança jurídica, segundo a qual os

contribuintes podem planejar suas vidas antes da chegada do tributo.

Ocorre que, se nós partirmos do pressuposto básico da própria legalidade, de que os

tributos só podem ser exigidos em caso de (e nos limites da) autorização dos cidadãos, a

concepção de que um prazo de vacância para o início da cobrança é inerente à deliberação

democrática chega a ser contraditória.

Segundo a legalidade, considerada sobre bases de democracia deliberativa, são os

próprios cidadãos que aprovam o tributo. Ou seja, ao longo do processo legislativo cria-se

uma expectativa, de relevância crescente à medida que o processo legislativo avança – e,

conseqüentemente, o(s) procedimento(s) de deliberação democrática se desenrola(m) –, de

que o tributo venha a ser instituído ou aumentado.

Assim, os próprios cidadãos, enquanto autorizadores da incidência tributária, sabem

(ou deveriam saber) que existe uma iminência de cobrança. Conseqüentemente, a preparação,

411 “Costuma-se denominar de extrafiscal aquele tributo que não almeja, prioritariamente, prover o Estado dos

meios financeiros adequados a seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com a sua função social ou a intervir em dados conjunturais (injetando a moeda em circulação) ou estruturais da economia”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar, Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 576.

412 “De fato, o Estado tem a faculdade de criar novos tributos ou majorar os existentes quando quiser, mas sua cobrança fica diferida para o exercício seguinte ao da publicação da lei que os instituiu ou aumentou”. – HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., pp. 384-385. Igualmente, Roque Antonio Carrazza, para quem a anterioridade permite que “os contribuintes saibam o que os aguarda, no campo da tributação, e, bem por isso, confiem no Estado Fiscal [...]”. Op. Cit., p. 196.

130

pelos cidadãos, para o início da cobrança dos tributos, deixa de ser um direito fundamental

para ser uma questão de precaução dos cidadãos. O mais previdente saberá que há risco de

início de cobrança do tributo e poupará o suficiente para seu pagamento. No entanto, o

cidadão que não for tão zeloso com suas finanças, correrá o risco de se ver temporariamente

em dificuldades financeiras. Mas isso não pode ser erigido à categoria de direito fundamental.

Assim é que,

[...] de acordo com os critérios democrático-deliberativos, o princípio da anterioridade tributária não seria materialmente fundamental. A cobrança de um tributo no mesmo exercício financeiro em que foi instituído não implica, efetivamente, uma violação das condições para a cooperação na deliberação democrática413.

Em termos práticos basta ver-se que a anterioridade não se mostra como um direito

fundamental inerente à democracia, uma vez que a extrafiscalidade é causa suficiente para sua

ruptura, conforme o § 1o do art. 150 da Constituição. Ou seja, fere-se a premissa básica de que

direitos fundamentais não se prestam a barganhas econômicas ou questões administrativas de

qualquer espécie.

A regra da anterioridade ganha maior status num regime de democracia representativa

e não deliberativa. No regime meramente representativo, em que os cidadãos estão distantes

dos processos de deliberação (conforme visto no item 1.1.1 da presente), a anterioridade se

mostra como uma regra importante414; todavia, no contexto de democracia deliberativa, em

que os cidadãos participam efetivamente da deliberação democrática, a anterioridade se

revela, de modo mais aparente, bem distante da categoria de direito fundamental. Passa a ser

uma regra415 que beneficia o contribuinte, não mais do que isso.

Conseqüentemente, as disposições do art. 150, III, b e c, da Constituição, não podem

ser consideradas cláusulas pétreas. 413 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, p. 238. Por isso mesmo o referido autor critica (com nosso apoio) a posição do STF na ADI 939, proferida no sentido de que o “princípio da anterioridade” seria, junto com outros “princípios e normas imutáveis”, “garantia individual do contribuinte” (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-94).

414 Note-se a forma pela qual Roque Antonio Carrazza aborda o tema: “[...] o princípio da anterioridade só é obedecido se e enquanto for aceito que o fato imponível deve necessariamente ocorrer a partir do exercício seguinte àquele em que o tributo foi criado ou majorado”. – Curso, p. 189. Não desconhecemos que o prof. Carrazza dá grande importância à anterioridade, entendendo-a como corolário da segurança jurídica. Todavia, essa simples passagem já denota que o referido ‘princípio’ é muito mais temporal do que imanente à noção de democracia deliberativa.

415 Ricardo Lobo Torres já questionou o posicionamento da anterioridade ou como regra, mas acabou se filiando à tese de que se trata de um princípio, dado que “a distinção entre princípios e regras não é tão categórica”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 559.

131

3.3.5 O não-confisco.

O chamado princípio do não-confisco consiste na determinação de que os tributos de

todos os entes da Federação não podem ter fim confiscatório, conforme disposto no art. 150,

IV, da Constituição.

A referida norma, comando tanto para o legislador quanto para o aplicador das leis

tributárias416, destina-se a resguardar o direito de propriedade dos cidadãos, o qual, sendo

entendido sempre diante de sua função social417, encontra-se mitigado até mesmo pela ação

tributária estatal. Entrementes, nem por isso a restrição tributária à propriedade pode se fazer

de modo ilimitado – daí a determinação do art 150, IV, da CRFB418.

A propriedade, na qualidade de direito fundamental consagrado no art. 5o, XXII419,

possui suas exceções expressamente arroladas nos incisos XXIII, XXIV e XXV420 que lhe

seguem. Por essa razão há quem diga que o não-confisco tributário na verdade é uma regra

redundante, porquanto o próprio direito à propriedade, na forma como apresentada

genericamente pela Constituição, já deixaria implícito (“mas claramente implícito”, nos

dizeres de José Souto Maior Borges421) que não é possível o tributo com fins confiscatórios.

Confisco significa apropriação de um bem pelo Estado (fisco), sem a respectiva

contraprestação422. O único caso constitucionalmente permitido de inexistência de

416 AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 145. 417 A função social da propriedade pode ser entendida resumidamente como “nas áreas urbanas, além de

servirem de moradia, função de preservarem os demais valores relevantes ara a sociedade como regras de vigilância sanitária, de urbanização, de ordenação da cidade, dentre outras previstas nos planos diretores. Da mesma forma, para as propriedades rurais não se limita o cumprimento da função social à produtividade. Mais do que isso, as terras devem ser retrabalhadas de modo a se evitar, ao máximo, os impactos ambientais, [...]” – PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. O princípio do não-confisco e os limites ao direito de propriedade. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 232.

418 “Através de uma carga fiscal demasiadamente elevada, o Estado passa a ser o real proprietário dos bens e dos rendimentos do trabalho dos cidadãos”. – CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 89.

419 “Art. 5o. [...] XXII – é garantido o direito de propriedade;”. 420 “Art. 5o. [...] XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; XXIV – a lei estabelecerá o procedimento

para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;”.

421 BORGES, José Souto Maior. Relações entre tributos e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 220.

422 “A característica do confisco está exatamente em ser uma absorção coativa da propriedade, exercida pelo Poder Público ou por meio dele, sem indenização e sem permissão jurídica”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, pp. 28-29. Especificamente em sede de tributação, Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonça entende haver na verdade uma ponderação de interesses entre o direito de propriedade e as liberdades econômicas, em contraponto ao

132

indenização à subtração patrimonial, é o confisco como forma de punição por ato ilícito, “não

obstante, somente aplicável mediante o devido processo legal (art. 5o, XLVI e LIV)”423. E,

considerando que conceitualmente tributo não pode ser utilizado como sanção por ato

ilícito424, o texto constitucional do art. 150, IV refere-se não a tributo confiscatório, mas sim

“com efeito de” confisco425.

Por outro lado, ao contrário da desapropriação (exceção trazida pelo próprio art. 5o da

CRFB), o Estado jamais indeniza o cidadão pela restrição patrimonial tributária426 – motivo

pelo qual o “confisco tributário” apresenta-se como ausência de contrapartida proporcional427

pelo Estado, diante de cobrança que comprometa parte significativa do patrimônio do

cidadão428.

Essa prática de ‘apropriação tributária’ marcou o chamado Estado patrimonial, sendo

arma de perseguições das mais diversas429; conseqüentemente, a maior parte da doutrina

dever fundamental de pagar tributos. – MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. Multas tributárias – efeito confiscatório e desproporcionalidade – tratamento jusfundamental. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 246. De modo bastante didático o STF se pronunciou no sentido de que “A proibição constitucional do confisco em matéria tributária — ainda que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias — nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da definição do quantum pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais." (ADI 1.075-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-6-98, DJ de 24-11-06). Note-se, no entanto, que o STF frisou que o não-confisco só se aplica ao campo da fiscalidade, abrindo exceções em caso de extrafiscalidade, como veremos adiante.

423 DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 573.

424 Vide o conceito que inspirou o legislador, no art. 3o do Código Tributário Nacional (lei nº 5.172/1966): “Tributo é toda prestação pecuniária, compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção por ato ilícito, instituído por lei e cobrando mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

425 DALLAZEM, Dalton Luiz. O princípio constitucional tributário do não-confisco e as multas tributárias. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 23. Daí porque Marcelo Magalhães Peixoto e Laís Vieira Cardoso aduzem que “deste modo, a propriedade que observa as determinações constitucionais e legais jamais poderá ser confiscada pelo Estado”. – PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. Op. cit., p. 231.

426 “Se a própria tributação, feita nas bases da lei, é uma intervenção da administração na esfera dos direitos do cidadão mais onerosa do que a desapropriação, a tributação em desconformidade com o fato gerador, excedendo à medida do fato gerador legal, constitui um confisco”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 102.

427 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 300.

428 PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. Op. Cit., p. 227. 429 Recomenda-se, a respeito, a leitura de TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional

Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 153-155; e, do mesmo autor, A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 136-138.

133

entende que não mais se coaduna com o Estado fiscal, mormente em um Estado democrático

de Direito430.

Restringindo-se demasiadamente a propriedade, acaba-se com a liberdade dos

indivíduos, porquanto se diminuem seus leques de escolha de ação. Propriedade e liberdade,

aqui, amalgamam-se inextrincavelmente. Um indivíduo sem escolhas não é um indivíduo

livre431.

Autores há na doutrina que correlacionam o não-confisco ao mínimo existencial432 (ou

mínimo vital), ou ainda à capacidade contributiva433, indicando que a tributação excessiva

prejudicará a subsistência do cidadão. Mais uma vez, ousamos discordar desse

posicionamento, uma vez que não-confisco e mínimo existencial são institutos diversos,

destinados a proteger o cidadão em graus diferentes434. A capacidade contributiva, do mesmo

430 Frisamos, nesse sentido, Ricardo Lobo Torres e Bernardo Ribeiro de Moraes, para os quais nem mesmo

razões de Estado (materializadas em tributos de função extrafiscal) justificam a tributação confiscatória (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 164; e MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 129) – posição da qual destoa Sacha Calmon Navarro Coelho, para quem a extrafiscalidade justifica o tributo com fim confiscatório (Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 276). Do mesmo modo, Hugo de Brito Machado, apoiando-se em Henry Tilbery, discorda, no sentido de que “um dos objetivos mais importantes do imposto sobre o patrimônio deve ser o de desestimular a existência de patrimônios improdutivos”, aceitando uma tributação confiscatória em casos de concentração exacerbada de renda, com finalidade de redistribuição das riquezas. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol.1. São Paulo: Atlas, 2003, p. 171.

431 A respeito, recomenda-se a leitura de SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Soma-se a ponderação de Diogo Leite de Campos: “uma carga fiscal elevada e o seu aumento são adequados à seguinte conseqüência (desejada ou não): a diminuição das possibilidades de escolha/autonomia da sociedade civil (família e empresas) perante as escolhas do Estado. [...] Abandonar o seu projecto de vida e o da sua família, para aceitar a imposição que o Estado lhe faz às custas dos seus impostos. A longo prazo, são as opções do Estado (políticos, dirigentes, burocratas etc.), s seus projectos, as suas representações sociais que se vêm a impor lentamente, no que se pode configurar como uma “tirania” (ou um ‘totalitarismo’) em ‘doses homeopáticas’. O Estado do bem-estar pode tornar-se (‘totalitariamente’) o Estado de ‘um certo’ bem-estar, assente numa ‘certa’ ideologia”. Op. Cit., pp. 103-104.

432 “Ademais, nem cada tributo isoladamente, nem o sistema tributário como carga tributária genérica, pode atingir aquela renda mínima do cidadão necessária para cobrir os gastos pessoais e familiares, [...] e um sistema confiscatório ou um tributo confiscatório é aquele que visa a ferir o mencionado direito do cidadão expresso no art. 7o da CF”. – ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 340. No mesmo passo, CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 100; e DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 579.

433 AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 144; HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 390; CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 99; DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 573-574.

434 A respeito, OLLERO apud TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 158: “[...] la capacidad susceptible de tributación debe situarse entre el minimo de existencia y el maximo no confiscatorio, exigencias ambas que constituyen presupuestos y limites de imponibilidad”. Ou seja, o não-confisco se destina a proteger o patrimônio num sentido global do indivíduo (daí Ricardo Lobo Torres conferir-lhe a característica de imunidade da “propriedade privada em sua totalidade, pois o Estado não pode utilizar o seu poder fiscal para aniquilar a liberdade individual, que não sobrevive sem aquele direito” – Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 155), enquanto o mínimo vital

134

modo, não pode ser confundida com o não-confisco, por ter como finalidade não o resguardo

do direito de propriedade, mas da igualdade entre os cidadãos435.

Basta ver-se, por exemplo, que uma tributação pelo IPVA que custe ao contribuinte a

totalidade (ou quase) do veículo objeto da incidência, não afetará o indivíduo em seu mínimo

existencial. Implicará, sim, na subtração patrimonial do indivíduo mediante a tributação; mas

isso não afetará, de modo algum, seu mínimo existencial. Igualmente, sua capacidade

contributiva não estará afetada se esse IPVA, mesmo custando a totalidade (ou quase) do

objeto tributado, significar parcela ínfima do patrimônio total do contribuinte. Ou seja, tratam-

se de institutos diversos, motivo pelo qual preferimos filiar-nos à tese de que o não-confisco,

ao proteger o patrimônio dos indivíduos, guarda relação com a razoabilidade da tributação.

Tributação irrazoável que configure apropriação dos bens pelo Estado, sem a respectiva

contrapartida, é tributação confiscatória.

Decerto que não há como se precisar numericamente, em termos gerais, o que seja

confiscatório ou não436, por ser item altamente variável de acordo com cada situação

envolvida. Grande inquietação há na doutrina com relação a esse assunto437.

Alguns autores estabeleceram critérios econômicos de verificação do confisco, como o

estabelecimento de uma proporção entre a carga tributária e o dinheiro que resta após os

gastos essenciais da pessoa natural438; o lucro das empresas; etc439. Contudo, mesmo esses

critérios caem no vazio da imprecisão, ao nosso ver justamente porque se centram apenas em

se mostra como o “núcleo sindicável da dignidade da pessoa humana”, nos termos de Ana Paula de Barcellos – BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios fundamentais – o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 247 e ss.

435 Com relação à capacidade contributiva, encontramos apoio em Ricardo Lobo Torres, para quem “pouco ou nada tem que ver com a problemática da proibição de tributos confiscatórios a idéia de justiça. Alguns juristas indicam a capacidade contributiva, ao lado da garantia de propriedade, como o princípio que fundamenta a vedação de confisco. Parece-nos, todavia, que a questão se situa fora da capacidade contributiva, [...]. A proibição de tributo confiscatório, em suma, não decorre do postulado ético da capacidade contributiva, senão que constitui princípio de proteção da liberdade, que pode ser violentada nos casos de tributação excessiva” – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 157-158. Com relação ao mínimo existencial, todavia, o referido autor adota posição diversa da nossa.

436 AMARO, Luciano. op. Cit., p. 145. 437 “A questão que se põe é: ‘até que patamar é lícito ao legislador erguer a carga tributária?’ Em outras palavras,

‘qual o limite para a restrição estatal a esta liberdade em face do Estado, o direito de propriedade?’ É bem verdade que o constituinte brasileiro proibiu que os tributos tivessem efeito de confisco (art. 150, IV, CRFB). Entretanto, tal disposição está longe de constituir um limite claro ao legislador e, a bem da verdade, nem o Judiciário, nem qualquer dos demais Poderes Constituídos, nem a doutrina, ousaram ir além de considerações lacônicas acerca da mesma. Não têm podido responder à simples pergunta: ‘qual é afinal o limite?’” – RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Op. Cit., pp. 215-216. Cf. ainda PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 74; AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 145; CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 163-165; MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 127.

438 MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Metodología del derecho financiero y tributario. Mexico: Porrúa, 2004, p. 122; DIFINI, Luiz Felipe Silveira., Op. Cit., p. 86.

439 PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira, Op. Cit., p. 228, referem-se a ‘renovabilidade do bem`. CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 99, refere-se a “consistência originária das fontes de ganho”.

135

um dos pólos do estudo do confisco: a carga tributária440, a apropriação dos bens dos

particulares.

Para se verificar o tema de modo completo, é fundamental responder também a

questão da contrapartida prestada pelo Estado. Exemplo que caracteriza isso muito bem, é o

caso dos países europeus nórdicos441, os quais, mesmo com cargas tributárias elevadíssimas,

jamais foram tachados de confiscatórios – justamente porque o confisco se caracteriza não

tanto pela carga tributária em si, mas muito mais pela ausência de indenização ou de

contrapartida pelo Estado aos seus cidadãos.

Vale ainda trazer a lume a crítica feita por Thomas Nagel e Liam Murphy à questão do

direito de propriedade enquanto limitador da ação tributária. Para esses autores,

Não existe mercado sem governo e não existe governo sem impostos; o tipo de mercado existente depende de leis e decisões políticas que o governo tem de fazer e tomar. Na ausência de um sistema jurídico sustentado pelos impostos, não haveria dinheiro, nem bancos, nem empresas, nem bolsas de valores, nem patentes, nem uma moderna economia de mercado – não haveria nenhuma das instituições que possibilitam a existência de quase todas as formas contemporâneas de renda e riqueza. Por isso é logicamente impossível que as pessoas tenham algum tipo de direito sobre a renda que acumulam antes de pagar impostos. Só podem ter direito ao que lhes sobra depois de pagar os impostos sob um sistema legítimo, sustentado por uma tributação legítima – e isso demonstra que não podemos avaliar a legitimidade dos impostos tomando como critério a renda pré-tributária. Pelo contrário, temos de avaliar a legitimidade da renda pós-tributária tomando como critério a legitimidade do sistema econômico que a gera, o qual inclui os impostos, que são aliás uma parte essencial desse sistema442. A ordem lógica de prioridade entre os impostos e os direitos de propriedade é inversa à ordem suposta pelo libertarismo.443

440 Preso a esse único aspecto, dentre outros, PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A razoabilidade das leis

tributárias: direito fundamental do contribuinte. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 303.

441 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 278.

442 Ao contrário, mesmo utlizando um viés utilitarista que o aproximaria, de certa maneira, dos referidos autores, Buchanan discorda, subordinando o mercado aos esquemas de propriedade: “what I want to emphasize here is that without the appropriate laws and institutions, which would include defined private property rights that are respected and/or enforced and procedures for guaranteeing enforcement of contracts, the market wolud not generate a spontaneous order embodying ‘efficiency’ in any value-maximization sense, if indeed we could refer to ‘a market’ all”. – BUCHANAN, James M. Notes on politics as process. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, pp. 72-73. 443 NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Tradução de Marcelo

Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 46. Daí eles chegarem à conclusão de que “os direitos de propriedade são convencionais, mas em sua concepção e justificação há espaço para a inserção não só de valores conseqüencialistas, mas também de outros direitos e valores deontológicos que, estes sim, são mais fundamentais. Embora a proteção de alguma forma de propriedade privada seja um elemento essencial da liberdade humana, a estrutura geral do sistema de direitos de propriedade deve ser determinada em grande medida pela consideração de outros fatores” (pp. 61-62), no sentido de que “quanto mais amplos forem os fins legítimos do governo, tanto mais ele terá o direito de afetar as vidas dos cidadãos e as relações entre eles pelo

136

De qualquer maneira, percebe-se (até diante da colocação dos autores acima) que a

questão do confisco não é puramente tributária, senão tanto quanto (ou mais ainda) financeira

– já que o próprio conceito de confisco pressupõe a desproporção entre apropriação (ônus) e

indenização (benefício)444.

Dados esses caracteres que lhe são próprios, o não-confisco não se afigura como

norma inserta no âmbito da imparcialidade política445. Nada obstante resguardar o direito de

propriedade e o fato ressaltado por Aliomar Baleeiro de que “uma sociedade de pequenos

proprietários será sempre hostil às nacionalizações e confiscos”446, o não-confisco não se

insere na esfera de imparcialidade política.

A respeito, Misabel Derzi, atualizando a mesma obra do prof. Baleeiro, considera que

o princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco tem assim um sentido amplo, vazado em termos absolutos, que garante o direito de propriedade e seus acréscimos inclusive por ordem sucessória, a livre escolha ou o exercício de qualquer profissão e a livre iniciativa. Mas não é um princípio de justiça material ou de isonomia447.

Isso porque a imparcialidade política se restringe ao núcleo do direito fundamental448.

Ou seja, o direito de propriedade, para ser considerado direito fundamental, une-se ao seu

núcleo, que é o mínimo essencial.

Curiosa e sintomaticamente, já em Uma teoria da Justiça, e de forma mais contundente em Liberalismo Político, o autor [John Rawls] apresenta o

projeto do sistema de direitos de propriedade. Os efeitos exercer-se-ão em grande escala e os indivíduos ainda terão liberdade para tomar pessoalmente suas decisões e determinar o rumo de suas vidas dentro da estrutura institucional e jurídica criada pelo estado; mas, dependendo da teoria política que estiver por trás do sistema, essa estrutura poderá ter conseqüências profundas para a gama de possibilidades com que cada cidadão irá se defrontar” (p. 78).

444 Daí que Ricardo Lobo Torres aduz que a economicidade, prevista no art. 70 da Constituição como parâmetro de controle e fiscalização da execução orçamentária, adquire ares de novo critério de verificação do não-confisco, “a significar que o tributo deve corresponder à necessidade mínima do Estado para atender à parcela máxima de interesse público”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 162.

445 Posição nossa que, além da doutrina tecnicista, distancia-se da esposada pelo STF. Vide, a respeito, o Acórdão proferido na ADI 2551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 20/04/2006), no qual se entendeu que o confisco é um princípio correlato aos da proporcionalidade e da razoabilidade.

446 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 565.

447 DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 574.

448 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 239 e ss.

137

mínimo social como pressuposto lógico de sua construção teórica. Vale dizer, a garantia de que cada homem disponha de um conjunto mínimo de condições materiais é pressuposto para que o procedimento decidido pelos indivíduos no estado original seja verdadeiramente eqüitativo. À falta desse pressuposto, o processo deixa de ser eqüitativo, arruinando toda a lógica procedimental apresentada449.

Situando-se acima dessa marca, não se pode mais afirmar tratar-se de baliza da

democracia.

Assim sendo, é factível, de acordo com determinadas posições, que o próprio confisco

(no sentido de apropriação de bens pelo Estado) é admissível em alguns casos – como na

extrafiscalidade450 –, ou mesmo que nem se possa cogitar de confisco, dado que os esquemas

de propriedade só são estabelecidos na etapa pós-tributária (também abordado naquele

item)451.

O fato é que, tangendo a esfera da propriedade fora de seu núcleo essencial – mínimo

existencial –, o não-confisco deixa de ser, por si, um direito fundamental inerente ao

homem452. É de se dizer, ainda, do risco que ela representa (uma vez que não se relaciona

com o mínimo essencial) de manutenção do status quo, uma vez que o muito rico continuará a

ser muito rico, já que – sendo um direito fundamental – o tributo não pode se prestar a

confiscar seus bens. Isso, sem contar a questão da herança, discutida enormemente por Rawls

em toda a sua obra453. Diante do procedimento de checagem da razão pública, o não-confisco

é encarado como uma regra conjuntural454 (e, frise-se, vazia de conteúdo). Parece-nos, em

449 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit., p. 126. 450 Nesse sentido, a Segunda Turma do STF entendeu que a pena de perdimento de bens em caso de ausência de

regularização fiscal nas operações de importação não redunda em confisco: "Importação — Regularização fiscal — Confisco. Longe fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão que, a partir de normas estritamente legais, aplicáveis a espécie, resultou na perda de bem móvel importado." (STF, 2a. Turma, AI 173.689-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 12-3-96, DJ de 26-4-96).

451 Sobre o desenvolvimento da economia capitalista vis a vis a democracia, recomenda-se a leitura de MARTINS, Rodrigo Baptista. A propriedade e a ética do capitalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

452 “Isso implica, por exemplo, que a questão da propriedade privada dos meios de produção ou de sua propriedade social, bem com outras questões análogas, não é resolvida no nível dos princípios primeiros de justiça, mas dependem das tradições e instituições sociais de um país, de seus problemas particulares e do contexto histórico. [...] Um argumento filosófico, por si só, tem muito pouca probabilidade de convencer uma parte de que a outra tem razão a respeito de uma questão como a da propriedade privada ou social dos meios de produção. Parece mais fecundo procurar quais poderiam ser as bases de um acordo implícito na cultura pública de uma sociedade democrática e, por conseguinte, nas suas concepções subjacentes da pessoa e da cooperação social”. – RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 395.

453 A respeito, cf., por exemplo, RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

454 Ricardo Lobo Torres realça a temporalidade da regra, aduzindo que “a conjuntura do país, a depender da guerra ou da paz, do desenvolvimento ou da recessão, modifica a apreciação do que seja o aniquilamento da propriedade”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 162.

138

particular, uma regra anacrônica, destinada a proteger a propriedade como se direito intocável

fosse, desconsiderando sua função social ou qualquer outro aspecto seu, nos moldes da

Constituição de 1824.

Por conseguinte, não se pode afirmar que a regra do art. 150, IV, da Constituição, seja

um direito fundamental do cidadão.

3.3.6 A vedação à utilização de tributos interestaduais ou intermunicipais como restrição do

tráfego de pessoas.

A vedação ao uso de tributos como instrumento de restrição ao tráfego de pessoas em

território nacional (os chamados tributos de barreira455) encontra-se positivada no art. 150, V,

da Constituição. Trata-se de comando destinado ao legislador e ao aplicador da norma, para

que nenhuma espécie tributária seja utilizada para impedir o deslocamento dos cidadãos entre

os diversos entes da Federação (Estados, incluindo o Distrito Federal, e municípios)456.

A rigor, poder-se-ia dizer que o direito fundamental genérico de liberdade de ir-e-

vir457, nos moldes definidos pelo art. 5o, XV, da Constituição da República458, já seria

suficiente para se depreender a impossibilidade de se impedir a locomoção dos cidadãos

brasileiros pelo território nacional459.

Direito à circulação é manifestação característica da liberdade de locomoção: direito de ir, vir, ficar, parar, estacionar. O direito de circular (ou liberdade de circulação) consiste na faculdade de deslocar-se de um ponto a outro através de uma via pública ou afetada ao uso público. Em tal caso, a utilização da via não constituirá uma mera possibilidade, mas um poder legal exercitável erga omnes. Em conseqüência, a Administração não poderá impedir, nem geral nem singularmente, o trânsito de pessoas de maneira estável, a menos que desafete a via, já que, de outro modo, se produziria uma transformação da afetação por meio de uma simples atividade de polícia.460

455 PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 76. 456 Ricardo Lobo Torres entende mesmo tratar-se de uma espécie de imunidade, por proteger a liberdade de

locomoção dos cidadãos, valor ínsito ao próprio Estado democrático de Direito. Curso, p. 67. No mesmo sentido, HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 399.

457 ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 306. No mesmo sentido TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 112.

458 “É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

459 DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 89. 460 SILVA, José Afonso da. Curso, p. 242.

139

Todavia, optou o constituinte por inserir mais uma regra específica na seara tributária.

O comando possui justificação histórica, uma vez que os ordenamentos constitucionais

anteriores davam margem a esse tipo de tributação repressiva. Todavia, atualmente o

arquétipo constitucional tributário, mormente em sede de tributos incidentes sobre operações

e serviços461 interestaduais e intermunicipais, praticamente inviabiliza a instituição ou mesmo

a modificação de tributos já existentes462 com o fim de restringir a locomoção dos cidadãos

pelo território nacional463.

Por isso mesmo Sacha Calmon Navarro Coelho tece ácida crítica ao comando do art.

150, V, da Constituição: “são letras do passado. O dispositivo é quase vazio. No sistema

brasileiro é impossível embaraçar o tráfego de pessoas ou coisas com tributos interestaduais

ou interestaduais, [...]”464.

De qualquer forma, apesar de pouco prestigiada pela doutrina em geral, que

praticamente não a aborda, a regra existe e, como limitação constitucional ao poder de

tributar que é, merece nosso destaque465.

A liberdade de tráfego, resguardada em sede tributária no art. 150, V, da Constituição,

possui sua fundamentalidade confirmada diante do princípio democrático, uma vez que

protege a liberdade civil, abrangida pela razão pública.

A liberdade de locomoção pelo território nacional é um dos direitos mais básicos que

o cidadão possui; trata-se de um pressuposto lógico da democracia, o direito de ir e vir466.

John Rawls refere-se à liberdade de locomoção como uma das liberdades básicas a

serem resguardadas no ambiente democrático:

461 Utilizamos somente a expressão serviços para abranger também a hipótese de incidência do ISS, que, nos

termos do art. 156, III, da Carta Política, não se limita à sua ‘prestação’. 462 PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 76. 463 “Poder-se-ia dizer que, com a demarcação de competências estabelecida desde a Emenda nº 18/65, ficou mais

difícil ao legislador tributário impor tributos que pudessem afetar o tráfego, além dos já autorizados pela Constituição”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 146, reconhecendo porém que as taxas poderiam eventualmente ser usadas nesse sentido.

464 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 308.

465 “Não obstante a impossibilidade de barreiras fiscais dentro da Federação, é mais uma limitação ao poder de tributar garantindo o contribuinte”. – Id., Curso, p. 285.

466 Por isso mesmo Ricardo Lobo Torres a conceitua como imunidade: “a imunidade do art. 150, V, da CF tem como fundamento a liberdade de ir-e-vir, que, no Estado de Direito, é prioritária e absoluta. Todos os cidadãos, no Brasil, têm o direito de se locomover de um para outro município ou de um para outro Estado, sem que precisem de permissão da autoridade judicial ou policial e sem que necessitem pagar qualquer tributo. A liberdade de ir-e-vir compreende assim a locomoção sobre os próprios pés como a que se faz por intermédio de veículos terrestres, marítimos ou aéreos”. – Id. Ibid., p. 112.

140

As liberdades básicas que restam (e que sustentam as primeiras) são a liberdade e a integridade da pessoa (que são violadas, por exemplo, pela escravidão e pela servidão, bem como pela negação da liberdade de movimento e de emprego) e os direitos e liberdades garantidos pelo Estado de direito. [...] Em suma, a posse dessas liberdades básicas define o status comum e garantido dos cidadãos iguais numa sociedade democrática bem ordenada467.

Conseqüentemente, a vedação aos chamados tributos de barreira, positivada pelo art.

150, V, da Constituição, é de ser considerada direito fundamental do cidadão.

3.3.7 A imunidade468 de impostos sobre os templos de qualquer culto.

A Constituição proíbe, em seu art. 150, VI, c e em seu parágrafo 4o, que quaisquer

entes da Federação instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços vinculados às

finalidades essenciais de templos de qualquer culto.

Existe uma certa divergência no tratamento dessa imunidade pela doutrina. Há quem

afirme tratar-se de mera regra constitucional469 e quem considere tratar-se de verdadeira

imunidade, no sentido de proteção de liberdade religiosa470.

A imunidade dos templos é vista pela maior parte da doutrina como uma extensão do

direito de liberdade religiosa471 (consagrado no art. 5o, VI a VIII, da Constituição), ou mesmo

467 RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene

A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188. 468 Utilizaremos o conceito de imunidade como norma destinada a proteger valores relevantes para a sociedade –

para o objeto do trabalho, peculiarmente valores relativos a direitos dos cidadãos. “[...] as normas imunizantes densificam princípios estruturantes – assim entendidos os constitutivos e indicativos das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional, iluminando seu sentido jurídico-constitucional e político-constitucional”. – COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias – teoria e análise da jurisprudência do STF. 2a. edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 71. Daí se pode entender a diferença feita, no desenrolar da pesquisa, entre os casos em que se afirma tratar de verdadeira imunidade (ou seja, instrumento de proteção de liberdades) ou mera regra constitucional (em que não há uma liberdade propriamente protegida pelo dispositivo).

469 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 311; CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 716-717.

470 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 250; ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 220.

471 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 190; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 74. Cristiano Carvalho entende ainda que a liberdade de religião é uma variação da liberdade de expressão, sendo “a manifestação da fé [...] uma das mais significativas espécies de expressão do pensamento, e também uma das principais liberdades a serem atacadas por um Estado totalitário”. CARVALHO, Cristiano Rosa. Op. Cit., p. 880.

141

uma garantia desse direito em sede de tributação472. Assim, ratificar-se-ia por um lado a

laicidade do Estado473 (referida no art. 19 da Carta e pressupõe o tratamento igualitário entre

todas as religiões, sem favorecimento), e, por outro, evitar-se-ia a perseguição a determinados

grupos religiosos474.

A vedação constitucional refere-se apenas à espécie tributária impostos, o que é

justificado por parte da doutrina diante do caráter eminentemente fiscal e não vinculado a

nenhuma contraprestação estatal – o que abriria flanco para certos arbítrios estatais na seara

da fiscalidade, caso não houvesse essa imunidade. Autorizado, portanto, é o Estado para

cobrar tributos relativos a contraprestações que ele dê às instituições religiosas475, havendo,

entre elas, apenas o princípio da igualdade para não diferenciá-las entre si e a

proporcionalidade entre o custo da prestação do serviço e o valor cobrado dos usuários. Outra

corrente doutrinária diverge, contudo, por enxergar que não existe razão para essa distinção –

e, se a liberdade religiosa é direito fundamental, ela deve ser assegurada para toda e qualquer

imposição tributária (ainda que relativa a contrapartidas realizadas pelo Estado, como se tem

nos demais tributos)476.

Ainda há de se verificar a extensão das expressões templo e culto.

Como templo entende-se não apenas o prédio onde se realizam as liturgias477, mas sim

a própria instituição religiosa em si, responsável pela profissão da fé478. Ou seja, ao vedar

impostos sobre o templo, a imunidade impede a instituição de impostos sobre o patrimônio, a

renda e os serviços prestados pelas instituições religiosas. Até porque um mero imóvel (que é

o templo, objetivamente) não possui patrimônio, não aufere renda e nem presta serviços, não 472 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 252. 473 Id. Ibid., p. 252. 474 Caso contrário, aumentar-se-ia o perigo de “intolerância para com o culto das minorias, sobretudo se estas se

formam de elementos étnicos diversos, hipótese perfeitamente possível num país de imigração, onde já se situam núcleos ortodoxos, protestantes, budistas, israelitas, maometanos, xintoístas e sempre existiram feiticistas de fundo afro-brasileiro”. – BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 136-137.

475 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 256.

476 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 179-180. No mesmo sentido, CHIESA, Clélio. Imunidades e normas gerais de direito tributário. In: SANTI, Eurico Marques Diniz de (coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 936. Discordamos dessa posição doutrinária, porquanto o oferecimento de serviços pelo Estado em caráter gratuito para as instituições religiosas pode configurar, por vias transversas, contrariedade à laicidade do Estado ou mesmo o oferecimento indireto de subvenções, o que é vedado pelo art. 19 da Carta.

477 Ao comentar o art. 5o, VI, da Constituição, Jesus Hortal aduz que o constituinte “parece ter querido designar não apenas os ritos oficiais das diversas confissões religiosas, mas também as suas insígnias, hábitos e sinais externos de identificação”. – HORTAL, Jesus. O princípio da liberdade religiosa e o ordenamento jurídico. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006, p. 312.

478 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 716.

142

possuindo vontade própria; é, na verdade, parte do patrimônio de uma determinada

instituição.

É necessário ainda, nos termos do § 4o do art. 150 da CRFB, que o patrimônio, a renda

e o serviço ligados à instituição religiosa devem atender às suas finalidades essenciais.

Diante da assertiva acima, exclui-se da imunidade o local destinado à residência dos

sacerdotes, uma vez que este se desvincula da liturgia e se presta unicamente a abrigar o

cidadão que se dedica às atividades sacerdotais479. O mesmo raciocínio vale para os demais

bens, sejam móveis ou imóveis: se utilizados para finalidades essencialmente religiosas, eles

se incluem na imunidade por serem instrumentos litúrgicos; todavia, não tendo esse uso

essencial, perdem a característica que os atrela à imunidade, ainda que pertencendo a

instituição religiosa imune480.

Quanto ao culto, entende-se que ele pode ser de qualquer denominação: sendo um

espaço dedicado à elevação espiritual do homem481, a que título for, e desde que isso não fira

o razoável senso comum482 (como uma religião que aceite sacrifícios humanos, por

exemplo483), está-se diante de um lugar destinado a prática religiosa, de um local de culto por

assim dizer.

A imunidade dos templos, referida no art. 150, VI, b, da Constituição, guarda relação

direta com a razão pública, especificamente quanto à liberdade religiosa, fundamental para o

liberalismo e para o Estado democrático de Direito484.

A liberdade de religião é essencial à democracia deliberativa485, uma vez que os

homens têm que ter assegurada a tolerância mútua no exercício de sua fé.

Embora não se espere que ninguém coloque em perigo a sua doutrina religiosa ou não-religiosa, devemos todos renunciar para sempre à esperança de mudar a Constituição para estabelecer a nossa hegemonia religiosa ou de qualificar as nossas obrigações para assegurar a sua influência e sucesso. Conservar tais esperanças e objetivos seria

479 DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 105. 480 “Daí serem tributáveis, por exemplo, os imóveis alugados e as rendas pertinentes, salvo se comprovado que as

rendas auferidas são aplicadas no desempenho das finalidades essenciais da instituição”. – ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 316.

481 “Graças a esta inteligência, tem-se aceito que também são templos a loja maçônica, o templo positivista e o centro espírita”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 718. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 253.

482 PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 84. 483 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,

2005, pp. 331-332. 484 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 251. 485 CARVALHO, Cristiano Rosa. Op. Cit., p. 880.

143

incompatível com a idéia de liberdades básicas iguais para todos os cidadãos livres e iguais486.

Assim sendo, a regra constitucional que imuniza os templos de qualquer culto, garante

a liberdade religiosa prevista genericamente no art. 5o, VI, da Constituição. Por isso mesmo,

não se pode considerar revogável a regra do art. 150, VI, b, da Carta, a fim de se evitar

qualquer tipo de restrição à atividade litúrgica, ou ainda perseguições ou favorecimentos a

grupos religiosos de qualquer espécie.

Por outro lado, o comando do § 4o do art. 150 (correlato ao inciso VI, b, do caput),

apesar de apresentado no presente item, possui um aspecto garantista não tanto da liberdade

religiosa, mas revela-se um preceito de igualdade com relação aos demais contribuintes. Serve

para evitar a concessão de privilégios destituídos de fundamentação razoável às instituições

religiosas: só se imunizam as atividades essenciais a essas instituições, já que o núcleo do

direito é a liberdade religiosa. Exatamente por traduzir a igualdade (não mais a liberdade

religiosa em si) é que tal norma se justifica como cláusula pétrea também487.

3.3.8 A imunidade de impostos sobre os partidos políticos, sindicatos e entidades

filantrópicas.

O art. 150, VI, c, da Constituição, imuniza de impostos conjuntamente partidos

políticos, entidades sindicais dos trabalhadores e instituições de educação e assistência social,

sem fins lucrativos (as chamadas entidades filantrópicas).

A regra imunizante possui a mesma extensão dada aos templos de qualquer culto,

dado que o § 4o do art. 150 da Constituição atribui-lhes o mesmo tratamento488. Ou seja,

prestando-se às suas finalidades essenciais, o patrimônio, a renda e os serviços prestados pelas

pessoas arroladas na aliena c do item VI do art. 150 da Carta Política são imunes à espécie

tributária imposto, de qualquer ente da Federação.

Tendo em vista que se tratam de pessoas diferentes, com características igualmente

diversificadas, o fundamento da imunidade de cada uma delas também será distinto. Por isso

mesmo, a norma será analisada separadamente para cada um de seus beneficiários. 486 RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de

razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 198. 487 O mesmo raciocínio vale para as imunidades dos partidos políticos e das entidades filantrópicas, vistas mais

adiante. 488 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 262.

144

3.3.8.1 Partidos políticos.

A imunidade dos partidos políticos e suas fundações, tem como fundamento a

proteção do exercício da liberdade política489, uma vez que, numa sociedade numerosa e

complexa, é praticamente inviável o exercício da democracia diretamente, sendo

imprescindível a ação dos partidos políticos como instrumento de representação popular e

congregação de partidários das mesmas ideologias. Os partidos são, assim, células de capital

relevância para a organização política da sociedade, saindo de seus quadros os representantes

dos vários setores comunitários, que dentro deles discutem e aprovam os programas e as

grandes teses de interesse coletivo490.

Quaisquer que sejam as teorias jurídicas em torno dos partidos políticos, a existência destes não é apenas uma velha realidade comprovada pela História e, afinal, reconhecida pelas leis, mas uma técnica sem a qual dificilmente se compreenderá o funcionamento do regime democrático representativo. ‘Só por cegueira ou dolo pode sustentar-se a possibilidade de democracia sem partidos políticos. A democracia, necessária e inevitavelmente, requer um Estado de partidos’, como pondera Kelsen491.

Desse modo, torna-se importante para a estrutura do regime democrático evitar a

tributação, via impostos, do patrimônio, da renda e dos serviços dessas entidades destinadas

ao exercício de direitos políticos.

Aliás, é íntimo o relacionamento entre tributo e partido político. O imposto, criação burguesa, só nasce com a representação (no taxation without representation), posto que na estrutura patrimonialista a Razão de Estado

489 Por essa razão Ricardo Lobo Torres considera que “a não-incidência de impostos sobre os partidos políticos é

Vera imunidade fiscal”, uma vez que “[...] se fundamenta nos direitos de liberdade. Embora os direitos políticos não integrem formalmente a declaração de direitos fundamentais, compõem a esfera dos direitos subjetivos do cidadão e, por conseguinte, a própria noção de cidadania”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 258-259. Aliomar Baleeiro, ainda sob o regime da Constituição de 1969, que considerava os partidos pessoas jurídicas de direito público, entendia que essa imunidade tinha o mesmo fundamento da imunidade recíproca. Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005.

490 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 191. 491 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado

Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 330-331. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260, para quem os direitos humanos e a liberdade moderna necessitam da representação política para o seu aperfeiçoamento, o que torna indispensável a imunização dos partidos políticos e suas fundações.

145

não dá nascimento à obrigação tributária como coisa pública. No início da sociedade liberal a democracia ainda era censitária, e só aqueles que pagavam impostos e possuíam propriedades tinham o direito ao sufrágio. Hoje, na democracia social, expandiu-se a a representação, o voto se tornou universal e deve ser assegurada aos partidos políticos a igualdade de chance, principalmente através da imunidade fiscal, complementada pelos instrumentos financeiros adequados (subvenções e incentivos fiscais)492. Em suma, os partidos políticos, como os próprios direitos da liberdade, não conseguem sobreviver sem a proteção estatal493.

Até porque, como lembrado por Sidney Saraiva Apocalypse, os tributos podem

adquirir a feição de instrumento de controle da vida civil pelo Estado, por diversos meios494.

Que se dirá quanto à vida política.

Por isso mesmo, a imunidade dos partidos políticos, consagrada no art. 150, VI, c, da

Constituição, mostra-se digna de fundamentalidade diante do critério de razão pública,

relacionado-se com a liberdade política, a igualdade de oportunidades e o respeito ao dever

(moral) de civilidade – porquanto os partidos políticos são instrumento essencial495 para o

livre exercício da democracia496. Nunca é demais relembrar que, mesmo num regime de

democracia deliberativa, a representação política se faz fundamental497.

Ao argumentar sobre a própria Constituição, Rawls a concebe como um justo

procedimento político que comporta as liberdades políticas iguais para todos e procura

assegurar seu justo valor, de tal modo que os processos de decisão política sejam acessíveis a

todos, numa base relativamente igual498.

Logo, os partidos políticos, enquanto entidades responsáveis por congregar pessoas

que partilham dos mesmos ideais políticos, não podem sofrer tributação, a fim de que não

corram o risco de sucumbir – e, assim, restringirem-se as oportunidades de acesso à

deliberação democrática por grupos de cidadãos.

492 Disso discorda Sacha Calmn Navarro Coelho. Cf., a respeito, seus Comentários à Constituição de 1988. 493 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260. 494 APOCALYPSE, Sidney Saraiva. Tributo – mecanismo de controle da vida civil. In: MARTINS, Ives Gandra

da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp. 217 e ss.

495 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 333.

496 “De fato, o partido político é criatura constitucional, absolutamente essencial à democracia e ao liberalismo, que podem encontrar outros meios de participação direta do povo, mas que não prescindem da representação através da atividade partidária”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 258-259.

497 RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188.

498 Id. Ibid., p. 190.

146

O mero risco de encerramento de um partido político por causa de tributos já abala o

desenvolvimento da democracia, porquanto um determinado número de indivíduos estará

privado de exercer e difundir suas concepções políticas unicamente em razão de encargos

econômicos públicos499. Admitir-se isso seria admitir a intolerância entre os cidadãos, que

numa maioria conjuntural poderiam perseguir as minorias, tributando essas entidades (e,

assim, esmagando partidos políticos menores) – o que se afasta por completo do ideal de

razão pública e do dever de civilidade que a norteia.

As liberdades políticas iguais para todos e a liberdade de pensamento devem garantir, por intermédio do exercício completo e eficaz do senso da justiça dos cidadãos, a aplicação livre e informada dos princípios de justiça à estrutura básica. (As liberdades políticas, corretamente circunscritas, uma vez garantidos tanto o seu justo valor como outros princípios gerais pertinentes, podem certamente completar os princípios de justiça). Essas liberdades básicas requerem alguma forma de regime democrático representativo, as proteções necessárias da liberdade política do discurso [...]500.

Ricardo Lobo Torres afirma mesmo que “os direitos humanos e a liberdade moderna

necessitam da representação política para o seu aperfeiçoamento, o que torna intributável o

partido político [...]”501.

Em vista disso, a imunidade dos partidos políticos disposta no art. 150, VI, c, da

Constituição, tem sua esfera de fundamentalidade resguardada pela razão pública, por ser

diretamente relacionada à imparcialidade política. Humberto Ávila atribui-lhe até o caráter de

concretizadora do princípio democrático502.

Da mesma forma que na imunidade dos templos, o § 4o do art. 150 da Constituição, ao

afirmar que somente as atividades essenciais dos partidos políticos são imunes, guarda relação

muito mais com a igualdade (vedando privilégios injustificados aos partidos políticos, por

afastar-se das suas finalidades essenciais) do que com a liberdade política; porém, por ser uma

499 “Realmente, a democracia não pode prescindir dos partidos políticos. É por intermédio deles que todas as

correntes de opinião pública têm reais condições de fazer-se representar na chefia dos Executivos e nas Casas Legislativas. É notório que os partidos políticos assumiram uma influência notável no funcionamento quotidiano da vida constitucional do País. Logo, a pluralidade partidária é não só altamente louvável, como necessária ao perfeito funcionamento das instituições. Os partidos políticos são, em suma, verdadeiros instrumentos de governo”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 726. Preferimos falar em encargos públicos do que falar em encargos vindos do Estado, uma vez que a tributação, no âmbito da democracia deliberativa, não parte do Estado, mas dos cidadãos.

500 RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 187-188.

501 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260.

502 ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 222.

147

salvaguarda da igualdade, base do Estado democrático de Direito, essa regra também é norma

constitucional fundamental.

3.3.8.2 Entidades sindicais dos trabalhadores.

Quanto à imunidade das entidades sindicais, pouco esclarece a doutrina a respeito. No

mais das vezes, repete-se o texto constitucional, frisando-se que apenas as entidades sindicais

de trabalhadores estão protegidas pela norma imunizante503, excluindo-se as associações

patronais. A partir daí, no máximo se tecem breves comentários acerca do conceito de

entidade sindical, abrangendo não apenas os sindicatos em si, mas também as federações e

confederações de trabalhadores504.

A norma se destina a proteger direitos sociais, especialmente o de representação dos

trabalhadores junto aos seus empregadores. “[...] este último atributo gera críticas daqueles

que entendem que a imunidade conferida às entidades sindicais de trabalhadores é descabida,

porque não fundada em direito fundamental”505.

A norma que confere imunidade aos sindicatos mostra-se distante da razão pública,

afastada da esfera de imparcialidade política. Ao contrário, destina-se a proteger as entidades

que representam apenas um dos pólos da relação empregatícia, que é o empregado.

Por isso mesmo, a regra acima se apresenta como uma concessão de privilégio

tributário, não guardando qualquer relação com a estrutura básica da sociedade – que, ao

contrário, prevê o tratamento igualitário pelo Estado aos seus cidadãos, sem exceções no que

toca a questões econômicas ou profissionais. Mostra-se como exemplo dos compromissos

corporativistas do constituinte de 1988506.

503 Roque Antonio Carrazza entende que o objetivo da norma imunizante foi o de favorecer a sindicalização dos

trabalhadores, especialmente aqueles mais humildes. “Se estes pequenos sindicatos tivessem, ainda por cima, que suportar impostos, em pouco tempo ficariam inviáveis”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 728.

504 Dentre outros, PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 85. Roque Antonio Carrazza também defende que as centrais sindicais estejam incluídas na norma. Op. Cit., p. 728.

505 COSTA, Regina Helena. Op. Cit., p. 171. Sobre a referida crítica, cf. o capítulo 4 da presente. 506 “O tratamento assegurado às entidades sindicais encontrou apoio nas contradições da própria Constituição de

1988, de origem nitidamente compromissária. [...] A nova figura criada pela CF 88 mostra bem a desmesurada extensão que se vem dando à intributabilidade fiscal entre nós. Ora através da escritura constitucional, ora por intermédio da magnânima jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o certo é que os casos de imunidade e de não-incidência vão crescendo até limites insuportáveis que os países mais ricos que o nosso desconhecem, denotando a permanência da ideologia da inesgotabilidade dos recursos públicos, que tanto mal tem feito ao Brasil”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 264.

148

A norma se destina a proteger direitos sociais, especialmente o de representação dos

trabalhadores junto aos seus empregadores. Por isso mesmo, Ricardo Lobo Torres tece o

seguinte comentário:

É figura estranha à temática da imunidade fiscal, por não ser forma de proteção dos direitos humanos. Pode até servir de contraponto fiscal dos direitos sociais (art. 8o), mas não dos direitos fundamentais (art. 5o). Visa a garantir os direitos relevantes da classe trabalhadora, inconfundíveis com os direitos do homem, que transcendem os interesses de classes ou grupos. Sendo a imunidade, como temos visto, qualidade da pessoa humana ou âmbito de validade dos direitos fundamentais, segue-se que a intributabilidade das entidades sindicais dos trabalhadores se classificará como mera não-incidência constitucional, pelo lugar que ocupa no texto de 1988, ou como privilégio. [...] O tratamento assegurado às entidades sindicais [...] corresponde à velha tradição do sindicalismo brasileiro protegido pelo Estado, que, entre outros, já produzira o imposto sindical.507

Partilhamos da mesma opinião do doutrinador. De fato, a imunidade em tela não se

prende a nenhum tipo de liberdade fundamental inerente ao homem, mas se destina a

resguardar o interesse de classes de trabalhadores. Basta ver-se, por exemplo, que as entidades

patronais não são beneficiadas pela mesma proteção – sendo que todos, empregadores e

empregados, são cidadãos do mesmo quilate para a sociedade. Diante disso, vale relembrar

que

Special benefit projects that secure thier justification almost solely because of the make-up of the dominant majoritarian coalition equally violate the norm. […] As James Madison understood, the interplay among factions, each promoting its own interest at the expense of the common purpose of politics itself, is not compatible with liberal democracy508.

Conseqüentemente, o referido comando, integrante da alínea c do inciso VI do art. 150

da Constituição, não pode ser considerado cláusula constitucional pétrea, por assim dizer.

507 Id. Ibid., pp. 262-263. 508 BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as

public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 109.

149

3.3.8.3 Instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos509.

A última categoria de pessoas beneficiadas pela imunidade do art. 150, VI, c, da

Constituição, refere-se às instituições510 de educação quanto às demais de assistência social,

ambas sem fins lucrativos.

O fim da referida imunidade é objeto de divergência doutrinária. Apesar de parte da

doutrina entender que ela visa a proteger a capacidade contributiva dessas pessoas, as quais,

na qualidade de pessoas jurídicas de caráter não-lucrativo511, não teriam condições de

recolher seus tributos, outro grupo entende que seu objeto é diverso512. Para essa segunda

corrente, o objetivo da imunidade das instituições de educação e de assistência social não se

refere tanto à justiça sob o prisma da capacidade contributiva, porém à dignidade da pessoa

humana e ao seu núcleo sindicável, o mínimo existencial513. O Plenário do Supremo Tribunal

Federal, por sua vez, percebeu na referida norma um modo de “preservação, proteção e

estímulo às instituições beneficiadas”514.

O entendimento doutrinário divergente se mostra mais plausível. De fato, as entidades

de assistência social têm como finalidade precípua assistir os desamparados em suas

necessidades mais básicas, arroladas no art. 203 da Constituição515. Igualmente a educação,

509 Não analisaremos aqui a questão da isenção/imunidade das contribuições sociais sobre as entidades de

assistência social prevista no art. 195, §7o, da Constituição, por não constar das limitações ao poder de tributar – foco principal do trabalho. Também não será avaliada a questão do enquadramento dos fundos de pensão como entidades assistenciais, já que essa discussão também escapa, sendo secundária ao objetivo da pesquisa, que é avaliar a (i)mutabilidade da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição, diante do princípio democrático. E ainda não será discutida se a natureza da lei a que se refere a alínea c é ordinária ou complementar, por escapar igualmente à discussão central do estudo. Sobre essa última peculiaridade e outras relacionadas ao art. 14 do Código Tributário Nacional, recomenda-se a leitura de CHIESA, Clélio. Op. Cit.

510 “Instituição é palavra destituída de conceito jurídico-fiscal. Inútil procurá-lo aqui ou alhures, no Direito de outros povos. É um functor. O que a caracteriza é exatamente a forma jurídica de sua organização, que tanto pode ser fundação, associação etc. O destaque deve ser para a função, os fins”. – COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 339.

511 Dentre eles, realçamos Kiyoshi Harada. 512 Destacamos Ricardo Lobo Torres e Luiz Emygdio Fernandes da Rosa Jr.. Roque Antonio Carrazza, apesar de

fazer menção à dignidade da pessoa humana, também se pauta na ausência da capacidade contributiva (Curso, pp. 733/739).

513 Vale trazer a crítica de Ricardo Lobo Torres a esse primeiro posicionamento: “Tal explicação, sobre deslocar a problemática do campo da liberdade para o da justiça e nem sempre corresponder à verdadeira situação econômica das entidades educacionais e assistenciais, conduz à interpretação ampla no reconhecimento do direito, afastada da consideração da pobreza do educando ou do assistido”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 269.

514 STF, RE 210.251-ED, Relator para o Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ de 28-11-03. No mesmo sentido: RE 186.175-EDv-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 23-8-06, DJ de 17-11-06.

515 “Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua

150

consagrada como “direito de todos” no art. 205 da Constituição, uma vez prestada

desinteressadamente para os que não possuam iguais condições de acesso, também se mostra

da mais alta relevância para a vida digna das pessoas. Daí o afirmar tratar-se de verdadeira

imunidade tributária, e não somente uma regra para a ausência de tributação516.

Por isso mesmo, as pessoas que de maneira abnegada auxiliarem o Estado517 na

consecução de suas atividades básicas, conferindo aos mais desabonados economicamente

acesso à educação518, cultura, saúde e assistência social, “que, em sua expressão mínima,

constituem direitos humanos inalienáveis e imprescritíveis”519, precisam ser poupadas de

impostos520 – porquanto, em última análise, são elas que, suprindo a falta do Estado,

asseguram àquelas pessoas a fruição de uma vida digna (ou o mais próximo dela).

Conseqüentemente, as atividades dessas pessoas destinam-se a assegurar o mínimo

existencial, a dignidade dos cidadãos mais necessitados, motivo pelo qual de fato justifica-se a

imunidade de modo bem mais consistente diante da proteção à dignidade da pessoa humana.

Para fruir da imunidade não é necessário que a totalidade dos serviços prestados seja

gratuita. Até porque, pressupor-se isso seria exigir que a entidade estivesse fadada ao

encerramento abreviado de suas atividades521. Basta que, diante da cobrança de determinadas

atividades, o resultado financeiro positivo522 dessas prestações seja reinvestido na própria

instituição. No entanto, é de suma importância que o atendimento aos mais necessitados seja

integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.

516 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 265-266.

517 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 739. 518 “Quer a Constituição não só incentivar pessoas privadas a que criem instituições de educação e assistência

suprindo as deficiências da ação estatal, aperfeiçoando-a ou melhorando-a, como ainda visa a assegurar que essas entidades existam desembaraçadamente, inclusive quanto a encargos tributários”. – ATALIBA, Geraldo. Imunidade de instituições de educação e assistência, in RDT nº 55, p. 139.

519 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 266.

520 “A imunidade [...] deve abranger os impostos que, por seus efeitos econômicos, segundo as circunstâncias, desfalcariam o patrimônio, diminuiriam a eficácia dos serviços ou a integral aplicação das rendas aos objetivos específicos daquelas entidades daquelas entidades presumidamente desinteressadas, por sua própria natureza”. – BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 313.

521 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 340.

522 Não utilizamos a palavra lucro, por ser afeto à noção de empresa, “coisa que a entidade, nas referidas condições, não é, justamente porque lhe falta o fim de lucro (vale dizer, a entidade foi criada não para dar lucro ao seu criador, mas para atingir uma finalidade altruísta)”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 156.

151

prestado em caráter gratuito. Afinal, esse é seu público-alvo e é exatamente isso que

caracteriza uma entidade como auxiliar do Estado no amparo à pobreza523.

Sem embargo, o caráter assistencial apresenta-se diante de algumas características

básicas, a saber: suprimento de necessidade atual e não futura; oferecimento, em geral, de

prestações em espécie e não em dinheiro; e auxílio em todos os casos524 de necessidade525.

Preenchidas essas características básicas, inerentes à filantropia, assegurado está o direito à

fruição da imunidade. Assim é que se diz ser impossível à autoridade administrativa cancelar

determinada imunidade, mas somente suspendê-la até que os requisitos voltem a ser

cumpridos526.

A imunidade das entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência social se

relaciona com a razão pública, merecendo sua identificação como cláusula jusfundamental.

Diante do critério de justificação argumentativa, esse dispositivo constitucional mostra-se

válido, por proteger a igualdade de oportunidades, a igualdade social, os valores do bem

comum, o respeito ao dever (moral) de civilidade e o direito à instrução e informação,

havendo nítida correlação entre ele e a esfera de imparcialidade política dos cidadãos.

As entidades acima descritas complementam a ação estatal na formação do cidadão,

dando-lhe instrução, formação profissional e assistência médica, o que lhes assegura, ao

mesmo tempo, a igualdade de oportunidades com seus pares sociais527, o que

conseqüentemente viabiliza a igualdade social.

[...] quando falamos de igualdade de oportunidade, queremos dizer algo mais que a igualdade jurídica formal. Queremos dizer, mais ou menos, que as condições sociais de fundo são tais que cada cidadão, independentemente de classe ou origem, deve ter a mesma chance de alcançar uma posição social favorecida, dados os mesmos talentos e disposição para tentar. As políticas para alcançar essa igualdade de oportunidade incluem, por exemplo, assegurar educação imparcial para todos e eliminar e discriminação528.

523 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 277. 524 Roque Antonio Carrazza diverge dessa posição. Para o referido autor, basta que se observe impessoalidade no

acesso, ou seja, que uma determinada instituição atenda apenas a pessoas que cumpram determinados requisitos, porém sem identificação prévia. Op. Cit., p. 741.

525 DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 322.

526 ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 224. 527 “De feito, a imunidade visa a proteger os direitos da liberdade compreendidos no mínimo existencial, nas

condições iniciais para a garantia da igualdade de chance”. – Id. Ibid., p. 267. 528 RAWLS, John. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública

revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 150-151.

152

Além disso, imunizar-se tais sociedades significa preservar os valores do bem comum,

por incentivar a solidariedade social e, assim, fazer da sociedade um sistema eqüitativo de

cooperação529.

Demais disso, formando cidadãos, essas entidades lhes permitem desenvolver o

respeito ao dever (moral) de civilidade, bem como lhes garante o exercício efetivo do direito à

instrução e informação.

Por isso mesmo, Ricardo Lobo Torres aduz que “as imunidades das instituições de

educação e assistência social constituem instrumento democrático e aberto para a escolha das

ações filantrópicas por decisões não governamentais e para o aumento das possibilidades de

atendimento, no espaço público, das demandas dos necessitados”530.

Dessa forma, nítido se mostra que o comando do art. 150, VI, c, da Constituição,

referente às entidades de educação e de assistência social sem fins lucrativos, revela-se como

norma jusfundamental diante da razão pública, sendo importantíssimo para a esfera de

imparcialidade política.

O § 4o do art. 150, que também guarda relação com as entidades retro, recebe nossa

mesma consideração tecida nos casos das imunidades dos templos e dos partidos políticos.

3.3.9 A imunidade de impostos sobre livro, jornal e periódico, bem como sobre o papel

destinado à sua impressão.

A última imunidade relacionada na Seção das limitações ao poder de tributar,

encontra-se no art. 150, VI, d, da Carta, e veda a instituição de impostos sobre livro, jornal,

periódico e o papel destinado à sua impressão.

Trata-se obviamente de imunidade objetiva, tocante a tributos que atinjam apenas as

coisas ali relacionadas (II, IE, IPI, ICMS)531, sem proteger as pessoas que com elas lidem (o

que redundaria na proteção da renda e do patrimônio de editores, jornaleiros, livrarias etc.)532.

529 Id. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,

2003, pp. 6 e ss. 530 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 293-294. 531 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,

2005, p. 386. 532 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 764-765. Além disso, “[...] é objetiva, porque também repousa no

pressuposto constitucional da repercussão econômica do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e Serviços”. DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado

153

A maior parte da doutrina vislumbra o referido dispositivo como imunidade destinada

a proteger, a um só tempo, algumas liberdades diferentes: direito à informação, liberdade de

comunicação, expressão e manifestação do pensamento, liberdade de imprensa, direito à

educação, ao acesso à cultura, direito de crítica e propaganda partidária533 – o que torna a

regra acima uma garantia desses direitos fundamentais, “sem encontrar obstáculos artificiais,

especialmente de natureza tributária”534. No mesmo sentido se posiciona o STF, em iteradas

decisões535.

Doutrina minoritária, contudo, entende que a referida regra é simplesmente uma

norma de não incidência constitucional desprovida de conteúdo garantista536, porquanto os

tributos porventura incidentes sobre os veículos de comunicação escrita não teriam o condão,

num regime democrático (que se reveste de inúmeros outros preceitos controladores da ação

fiscal), de restringir o acesso cultural ou informacional dos cidadãos, ou ainda de perseguir os

transmissores de comunicação537. Ricardo Lobo Torres, a respeito, lembra que essa

imunidade perdurou por todo o regime militar, período no qual houve inigualável restrição às

liberdades acima referidas, e rejeita a afirmação de que a norma protege a liberdade de

expressão.

nos períodos de vigência democrática, nenhum risco poderia haver com a

A intributabilidade do art. 150, VI, d não encontra nos direitos fundamentais relacionados com a liberdade de expressão o seu fundamento maior. Em 1946, quando surgiu, poderia ter alguma conotação com a liberdade de imprensa, diante das medidas arbitrárias do Estado Novo contra os jornais e os livros e a natural reação que se seguiu. Mas depois,

Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 342. Cf. ainda o Acórdão proferido no RE 213094, de lavra da Primeira Turma do STF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 15/10/1999.

533 HARADA, Kiyoshi, Op. Cit., p. 397; ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 241; BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 339; ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., pp. 320-321; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 386; CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 745-746.

534 PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 88. 535 Cf. RREE 221239 (2a. Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 06/08/2004), 183403 (2ª. Turma, Rl. Min. Marco

Aurélio, DJ de 04/05/2001), 213094 (1ª. Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 15/10/1999). 536 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 297. 537 Valeria, assim, o mesmo raciocínio desenvolvido por Sacha Calmon Navarro Coelho quanto ao dispositivo do

não-confisco (apesar de o referido autor não o fazê-lo), no que toca o fato de o próprio sistema constitucional já inviabilizar tal tipo de perseguição tributária aos comunicadores. Aliomar Baleeiro discorda da referida assertiva, entendendo o imposto como “meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade da manifestação do pensamento, a crítica dos governos e a homens públicos, enfim, de direitos que não são apenas individuais, mas indispensáveis à pureza do regime democrático”. – BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 340.

154

cobrança de impostos sobre aqueles instrumentos de expressão política ou cultural, desde que não discriminatória538.

Vale tecer um comentário ainda sobre os diversos bens jurídicos traçados pela

doutrina como tutelados pela referida imunidade. Forte nos dizeres de Luís Roberto Barroso,

tem-se como diferentes entre si as liberdades de informação (que contém as liberdades de

acesso à educação e à cultura), de expressão (na qual se inserem os direitos de comunicação,

de manifestação do pensamento, de crítica e de propaganda política) e de imprensa, já que

[...] a primeira diz respeito ao direito individual de comunicar livremente os fatos e ao direito difuso de ser deles informado; a liberdade de expressão, por seu turno, destina-se a tutelar o direito de externar idéias, opiniões, juízos de valor, em suma, qualquer manifestação do pensamento humano. [...] a liberdade de imprensa [...] designa a liberdade reconhecida (na verdade, conquistada ao longo do tempo) aos meios de comunicação em geral (não apenas impressos, como o termo poderia sugerir) de comunicarem fatos e idéias, envolvendo, desse modo, tanto a liberdade de informação como a de expressão539.

De toda sorte, o dispositivo imuniza de impostos o livro, o jornal, o periódico e o

papel destinado à sua impressão.

Entende-se como livro o meio de comunicação que transmita informações, que

divulgue cultura, conhecimento de qualquer espécie – já que o constituinte não delimitou o

conteúdo imunizado (e nem o poderia, por adentrar a seara da subjetividade). Concordamos

com a doutrina majoritária que defende que o conceito de livro é finalístico, não se prendendo

ao material impresso – abrangendo ainda outras mídias como a eletrônica, por exemplo540.

Como periódico, entende-se toda publicação que circule com um intervalo de tempo

certo. Nesse conceito já se abrange o jornal, segundo Paulo de Barros Carvalho, à medida que

“o jornal é um periódico, aliás, de periodicidade diária, na maioria das vezes, segundo sua

própria etimologia”541.

O papel destinado à impressão dos meios de comunicação escrita é o insumo básico

para sua confecção – “tão-somente, o que se destina à impressão de livros, jornais e 538 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 298-299. 539 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de

ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. pp. 343-345.

540 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 387.

541 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 193.

155

periódicos”542. Por não ser o único material necessário, doutrina majoritária estende a

imunidade a outros insumos, havendo divergência quanto à extensão deles – se somente

filmes e tinta, ou se também as máquinas impressoras estariam beneficiadas pela imunidade.

Para quem entenda tratar-se apenas de regra, o princípio geral de que a analogia não pode

levar à dispensa de tributo não intencionada pelas regras jurídicas, leva à conclusão de que

somente o que determinou o constituinte (o papel) é abrangido pela imunidade543.

Pelo que se verifica das linhas acima, a norma do art. 150, VI, d, da Constituição, ao

assegurar a não incidência de impostos sobre as coisas acima, é um comando com intuito

objetivo, que não guarda relação com qualquer categoria de pessoas.

Apenas por isso, a referida norma já poderia ser desconsiderada como verdadeira

imunidade, já que coisas não são dotadas de liberdades a serem tuteladas. No máximo, essas

coisas poderiam ser consideradas instrumentos de viabilização de algumas liberdades

subjetivas; todavia, nunca é despiciendo relembrar que a esfera de fundamentalidade guarda

relação com o núcleo irredutível da liberdade. O instrumento lhe é periférico, marginal.

Conseqüentemente, não guarda relação com a razão pública.

Assim é que, nos dizeres de Ricardo Lobo Torres, “se a intributabilidade dos jornais e

livros tem a natureza de não-incidência constitucional ou de mero privilégio, não se lhe

estendem as conseqüências das verdadeiras imunidades, dentre as quais a

irrevogabilidade”544.

Pode-se falar na necessária proteção à liberdade artística, de expressão545, de

pensamento, de educação, instrução, informação, imprensa etc. Contudo, é importante ver que

essas liberdades pertencem a indivíduos e não aos veículos de comunicação que eles utilizam.

Ou seja, tais liberdades asseguram que os indivíduos não podem ser tributados por se

expressarem de que maneira for; o pensamento não pode ser tributado546. No entanto, a

542 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 765. 543 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, p. 310. 544 Id. Ibid., p. 297. 545 “É interessante observar que certa parte da doutrina brasileira, que geralmente reduz as imunidades ao

discurso constitucional e não lhe procura o fundamento valorativo, aponta a liberdade de expressão como justificativa da intributabilidade dos jornais, revistas e livros”. – Id. Ibid., p. 299.

546 Somente nesse sentido é que concordamos com a afirmação de Roque Antonio Carrazza (Op. Cit., p. 747), para quem “[...] a própria democracia de um País é diretamente proporcional ao grau de livre manifestação do pensamento que nele existe. É ponto bem averiguado, que um regime em que não seja possível às pessoas manifestar livremente o próprio pensamento não pode ser havido por democrático”, ou de Hugo Lafayette Black, para quem “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura ou interferência governamental é o mais precioso privilégio de cidadãos investidos do poder de escolher idéias políticas e servidores públicos”. – BLACK, Hugo Lafayette. Crença na constituição. Tradução de Luiz Carlos de Paula F. Xavier. Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 63.

156

tributação ou não das coisas nas quais esse pensamento seja materializado não é nuclear, não

é corolário de qualquer das liberdades supramencionadas.

Até porque, nesse caso, como a imunidade é meramente objetiva, os indivíduos não se

mostram protegidos em suas liberdades intelectuais. Ricardo Lobo Torres, a respeito, lembra

que essa imunidade perdurou por todo o regime militar, período no qual houve inigualável

restrição às liberdades acima referidas, e rejeita a afirmação de que a norma protege a

liberdade de expressão.

A intributabilidade do art. 150, VI, d não encontra nos direitos fundamentais relacionados com a liberdade de expressão o seu fundamento maior. Em 1946, quando surgiu, poderia ter alguma conotação com a liberdade de imprensa, diante das medidas arbitrárias do Estado Novo contra os jornais e os livros e a natural reação que se seguiu. Mas depois, nos períodos de vigência democrática, nenhum risco poderia haver com a cobrança de impostos sobre aqueles instrumentos de expressão política ou cultural, desde que não discriminatória547.

Desse modo, imunizar de impostos os meios de comunicação escrita não significa

assegurar as liberdades todas acima; quando muito, é apenas um meio de se facilitar seu

desenvolvimento. Mais interessante seria, na esteira da proteção das liberdades, estabelecer

um dispositivo que vedasse a instituição de tributos com efeito de censura (como existe a

vedação de tributos com efeito de confisco, para tentar resguardar o direito de propriedade).

De resto, trata-se apenas de proteção muito mais assemelhada a privilégio da comunicação

escrita em detrimento das demais (de cunho audiovisual).

Claro que não se pode rejeitar o argumento de que o livro é um dos principais meios

de provisão educacional, e que os jornais e periódicos possuem ampla utilidade na formação

de uma opinião pública mais consciente548. De todo modo, se o objetivo da norma é proteger

o conhecimento, este é que deve ser imunizado (e a rigor já o é, dado o conteúdo das

liberdades genéricas de expressão e pensamento); não os instrumentos (ou parte deles) que lhe

547 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 298-299. 548 “A liberdade de informação é pressuposto de publicidade democrática; somente o cidadão informado está em

condições de formar um juízo próprio e de cooperar, na forma intentada pela Lei Fundamental, no processo democrático”. – CLÈVE, Clèmerson Martins. Liberdade de expressão, de informação e propaganda comercial. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 220.

157

conduzem549. Especialmente quando se cogita de imunizar apenas um desses instrumentos,

que é a comunicação escrita.

Fosse assim, tendo em vista a proteção instrumental-objetiva, deveriam, por exemplo,

ser imunizados os alimentos, os artigos de vestuário, os imóveis, os serviços médicos e de

educação de qualquer espécie (já que direito fundamental não pode ser restringido, sendo

“tradição do nosso Direito assegurar interpretação ‘amplíssima’ às normas constitucionais que

tratam da imunidade”550), pois assim estaria garantida a dignidade da pessoa humana.

Em suma: não se pode pretender garantir liberdades subjetivas com imunidades

puramente objetivas.

Desse modo, analisando-se a referida imunidade vis a vis a esfera de imparcialidade

política, percebe-se que a norma do art. 150, VI, d da Constituição não pode ser considerada

cláusula pétrea, ou direito fundamental por assim dizer.

3.3.10 O direito de conhecer a carga de impostos incidentes sobre o consumo.

O comando inserto no § 5o do art. 150 da Constituição dispõe que lei determinará

medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre

mercadorias e serviços.

A regra acima é pouco prestigiada pela doutrina. Os autores que dela falam, encaram-

na como instituidora do princípio de transparência fiscal551, por significar um instrumento que

permitirá aos consumidores saber qual a carga tributária dos impostos incidentes sobre o 549 Com isso rejeitamos o argumento econômico que Misabel Derzi traz com relação à redução no custo de

aquisição dos livros e periódicos pelos cidadãos, que favoreceria a veiculação de informações, ensino, educação e cultura (em nota a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 341). Existem outros mecanismos pelos quais a carga tributária dessas mercadorias pode ser controlada, a um patamar condizente com a essencialidade ou a exteriorização de riqueza pela aquisição de tipos de livros e periódicos. Abstraindo da regra imunizante em si e pensando no tributo como um instrumento de restrição das liberdades arroladas acima, vale trazer o raciocínio de Clèmerson Martins Clève, para quem “importa, aqui, considerar que o legislador está autorizado (i) implícita ou (ii) explicitamente a operar, dentro de limites controláveis, restrição nos direitos fundamentais, tudo para, através de um juízo de concordância prática, de ponderação, concretizador de um balancing, harmonizar os direitos em função da possível emergência de colisão ou de concorrência”. – CLÈVE, Clèmerson Martins. Op. Cit., p. 234.

550 BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 639.

551 Id. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 127, realçando o aspecto moral do princípio ao aduzir que ele servirá para “coarctar abusos do legislador, que muita vez prefere aumentar os impostos indiretos, que são invisíveis e causam pequena reação popular, do que majorar os tributos diretos e progressivos, que incidem sobre pessoas de maior capacidade contributiva mas ficam sujeitos a lobby e a resistência de interessados”. Luciano Amaro correlaciona a transparência fiscal ao princípio da informação do consumidor. Op. Cit., p. 147.

158

consumo (notadamente IPI, ICMS e ISS). Parte da doutrina ainda vislumbra a regra como um

instrumento de combate à sonegação fiscal pelos consumidores552.

Trata-se de um enfoque prático, no qual a norma é vista como modalidade de controle

direto do ‘preço tributário’ das mercadorias e serviços pelo cidadão-contribuinte553 – que, ao

mesmo tempo, é o cidadão-eleitor554.

Vale frisar, contudo, que os grandes consumidores, mormente pessoas jurídicas,

sabem perfeitamente qual a carga tributária de tudo o que consomem. Por outro lado, os

pequenos consumidores, em sua quase totalidade, mal sabem o que é imposto – motivo pelo

qual somente dizer-lhes qual a carga tributária de cada um seria, quando muito, dar uma

informação (o que, por si só, não esclarece555, atendendo apenas parcialmente ao preceito

constitucional).

Por isso mesmo, talvez o comando do legislador possa ser encarado por um segundo

prisma, que é o da educação tributária. É possível que as medidas às quais o constituinte se

refere para o legislador esclarecer os consumidores, destinem-se a transmitir para o

consumidor não somente o encargo econômico dos impostos incidentes sobre as coisas e

serviços que adquire, mas também quais são e o que significam esses impostos em si.

Em termos práticos, a educação tributária vem sendo efetuada por algumas Unidades

da Federação, como resultado do Programa Nacional de Educação Fiscal (PNEF). O

Programa, firmado inicialmente por todos os Estados, o Distrito Federal e a União no âmbito

do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ)556, foi objeto de posterior Portaria

Interministerial entre os Ministérios da Fazenda e da Educação557, de modo a tornar o

552 CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 912, para quem “os consumidores finalmente perceberão que o

maior beneficiário – quando não o único – desta prática irregular é o próprio sonegador”. 553 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,

2005, p. 395. 554 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar,

2006, p. 127. 555 Conforme definição do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, esclarecer adquire o significado de

“tornar claro, compreensível; elucidar, aclarar; dar ou prestar explicação, esclarecimento; obter esclarecimentos, informar-se”. – FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 687.

556 Para maiores informações sobre o histórico do PNEF, recomenda-se a leitura da dissertação de Mestrado de Arlindo Amorim Pereira, Programa de Educação Tributária da Bahia: a visão dos atores envolvidos no seu grupo e a implementação do programa. Salvador, 2004. 134 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004. Disponível em: <http://www.adm.ufba.br/disserta/mestacad/publicacoes/dissertacao/pereira_arlindo_amorim.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2007.

557 Portaria Interministerial nº 413/2002.

159

Programa o mais abrangente possível à população brasileira. Como exemplo do resultado,

pode-se ver a página da Secretaria da Receita Federal destinada ao Projeto Leãozinho558.

Decerto que a norma editada no plano no CONFAZ não substitui a lei à qual o art.

150, § 5o, da Constituição, se refere (já que, apesar de o PNEF ser o mais abrangente possível,

o art. 34, § 8o, do ADCT/88 só dá o status de lei complementar aos convênios firmados pelo

CONFAZ com relação ao ICMS, o que não se estende para os demais tributos). Todavia, ao

instituir e divulgar o Programa Nacional de Educação Fiscal, já se dá ao cidadão médio mais

possibilidades de entender o sistema tributário nacional, para, a partir daí, permitir-lhe que

entenda quais são os impostos incidentes sobre o consumo. Com isso, o cidadão fica mais

próximo de ser esclarecido (o que é bem mais profundo do que ser unicamente comunicado)

quanto ao efetivo ônus econômico sofrido por ele em cada mercadoria ou serviço consumido,

e qual a magnitude desse encargo na sua vida.

Dada a exigência de esclarecimento ao cidadão sobre os tributos, o § 5o do art. 150 da

Constituição atende ao critério da razão pública, por preencher o direito à instrução e

informação peculiar aos integrantes de uma sociedade democrática bem ordenada, merecendo

ser considerado cláusula jusfundamental.

3.4 OBSERVAÇÃO FINAL QUANTO ÀS IMUNIDADES: ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS

ABRANGIDAS, À VISTA DA RAZÃO PÚBLICA559.

É pertinente fazer uma última observação quanto às imunidades. Tendo em vista que

elas se referem a liberdades intocáveis, conseqüentemente não se pode considerar válido que

as pessoas protegidas pelas imunidades constitucionais (templos de qualquer culto, partidos

políticos e entidades filantrópicas) sejam tributadas de forma alguma. Assim, o texto

constitucional, ao se referir somente a impostos, revela-se incompleto e distorcido. “A

redução é descabida, transparecendo como o produto de um exame meramente literal (e

558 Cf. o portal próprio do projeto Leãozinho, na página <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/>. Acesso em:

17 abr. 2007. Recomenda-se ainda a leitura do documento disponibilizado pela Escola Superior de Administração Fazendária (ESAF) a respeito de todo o PNEF, com seus objetivos principais, na página <http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/EducacaoFiscal/PrimeiroSeminario/02PNEFExerciciodeCidadania.pdf>. Último acesso em 17 de abril de 2007.

559 Exatamente por tocar apenas a questão da razão pública, não abordaremos a discussão técnica sobre o assunto. Recomenda-se, para tanto, a leitura de CHIESA, Clélio. Op. Cit.

160

apressado) ou como o resultado de considerações metajurídicas, que não se prendem ao

contexto do direito positivo que vige”560.

A fundamentalidade dos direitos exclui a extrafiscalidade, desconsidera as razões de

Estado. Desse modo, ainda que se trate de tributos com função parafiscal ou extrafiscal, as

pessoas imunes não poderiam sofrer esse ônus.

A única ressalva feita quanto a isso, toca os templos de qualquer culto. Isso porque,

dada a forma pela qual a laicidade estatal se estruturou (pelo que se verifica do art. 19, I, da

Constituição), não é possível que o Estado conceda subsídios de qualquer espécie às entidades

religiosas561. Por conseguinte, os tributos parafiscais (que representam sempre contrapartida

estatal) devem ser cobrados das instituições religiosas, mesmo imunes, a fim de preservar a

laicidade do Estado, evitando-se a concessão de incentivos indiretos mediante a prestação de

serviços gratuitos pelo Estado a essas entidades.

3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA FUNDAMENTALIDADE DAS

LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR.

À primeira vista, diante da esmagadora maioria da doutrina tecnicista do direito

tributário, percebe-se uma preocupação imensa quanto à maximização das normas

fundamentais, de modo formal, pouco importando a razão de ser dessas mesmas regras562.

Esse tipo de raciocínio se mostra uma transposição da idéia de prioridade do bem

sobre o justo, como se, garantindo-se o máximo de fundamentalidade no texto constitucional

– e, assim, considerando-se o contribuinte em uma cápsula protetora antiestatal –, a cidadania

brasileira estivesse assegurada a caminhar sobre bases sólidas e bem estruturadas. No entanto,

até por termos adotado a teoria jusfilosófica de John Rawls, discordamos dessa premissa. Ao

contrário, acompanhamo-lo em sua idéia de que

560 CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 179. Cf. ainda a p. 182, em que o autor reafirma essa passagem.

No mesmo sentido, CHIESA, Clélio. Op. Cit., pp. 935 e ss. 561 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 437-438. 562 Partilhamos integralmente do pensamento de Paulo de Barros Carvalho, para quem “análise dos modernos

estudos jurídicos tributários estão a revelar marcante tendência doutrinária, para a qual não lobrigamos explicação plausível. Doutores de tomo, legítimos representantes de escolas doutrinárias, seguem a mesma trilha, aprofundando cada vez mais as investigações e criando padrões que, com o passar do tempo, vão se solidificando, a ponto de tornar sumamente problemática qualquer espécie de revisão de premissas. É precisamente o que sucede com os estudos acerca das normas jurídicas tributárias”. – CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 2a. edição. São Paulo, RT, 1981, p. 66.

161

a história das constituições que funcionaram bem sugere que os princípios que regem as desigualdades econômicas e sociais, bem como outros princípios distributivos, não convêm, de maneira geral, como restrições constitucionais. Em compensação, a melhor maneira de obter uma legislação justa parece ser garantir a eqüidade na representação e o recurso aos outros procedimentos constitucionais563.

Esse raciocínio maximizador, na verdade, mostra-se o reflexo da idéia de que menos

direitos fundamentais significam mais força para a ação estatal abusiva, e, conseqüentemente,

uma democracia enfraquecida. Ledo engano564. A maximização dos direitos fundamentais, ao

invés de garantir a liberdade dos indivíduos (e, assim, a democracia), ameaça-a565, porquanto

emperra o Estado e o impede de agir mesmo quando necessário566.

Assim, priorizar o bem sobre o justo, pensando apenas na maximização de direitos

intocáveis, especialmente acerca de questões que envolvem a manutenção do Estado (já que o

tributo é a principal fonte de receita pública), é praticamente certificar a temporalidade

constitucional, tão reduzida quanto maior for o leque de fundamentalidade567.

Trata-se de preceito lógico, porquanto a cristalização do documento básico da

sociedade redunda em tolhimento das gerações futuras quanto à deliberação democrática568.

563 RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene

A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 190-191. 564 “Ao assim agirem, todavia, esquecem que a história da raça humana muda em velocidade crescente e as

conjunturas tendem a se modificar com celeridade cada vez maior, exigindo novos regramentos, impondo novos desafios que não podem ficar amarrados por legisladores sem visão antecipatória”. – MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. Cit., p. 182.

565 Após afirmar que as constituições analíticas abrem “portas de entrada” ao positivos, Paulo Napoleão Nogueira da Silva considera que “A circunstância de no positivismo contar como regra o que está escrito, quase que exclusivamente sob o aspecto literal, abre caminho a uma semiditadura das maiorias legislativas, quase sempre eventuais e instáveis: o que decidir em um determinado momento uma tal maioria, tornar-se-á inconteste, exigível e obrigatório, [...]”. – SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Constituição e sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 23.

566 “A democracia está ameaçada mais diretamente pelos regimes autoritários e totalitários; no entanto, devemos reconhecer a existência de uma outra ameaça. Esta não vem de um poder onipotente que submeteria a sociedade à sua mercê, mas da própria sociedade que, na ordem política, vê apenas uma burocracia autoritária ou corrupção e deseja reduzi-la à função de guarda noturno ou de um Estado mínimo, para não entravar a atividade dos mercados e a difusão dos bens de consumo e de todas as formas de comunicação de massa. Esse liberalismo tacanho pode ser considerado democrático porque respeita as liberdades e responde às demandas da maioria. Nos países ricos, o marketing tende a substituir o voto; nos países pobres, a erradicação da pobreza é reconhecida como prioritária e os discursos sobre as liberdades públicas são criticados como elitistas e inspirados pelo estrangeiro dominador. Por toda parte, cresce a idéia de que a defesa da liberdade consiste em reduzir a intervenção do Estado”. – TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Vozes, 1996, pp. 182-183.

567 Cf. SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Op. Cit.. No mesmo sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit.; SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

568 “Era preciso não esquecer ‘que é uma constituição que estamos expondo’, um diploma que iria servir a gerações futuras e, conseqüentemente, capaz de adaptar-se ‘às várias crises dos negócios humanos’”. –

162

Isso acelera o processo de ruptura e leva a uma constante re-elaboração constitucional, e se dá

de modo peculiarmente mais rápido em casos de concepções formalistas cegas que abstraiam

até mesmo que o constituinte, como ser humano que é, pode ter se equivocado ao redigir a

Constituição, inserindo na esfera de fundamentalidade dispositivos que de fato não deveriam

estar ali569.

Em vista disso, percebe-se a importância de se encontrar parâmetros de justificação

que rompam com o formalismo e fechem a fundamentalidade constitucional em seu núcleo

irredutível. Não é à toa, como vimos, que “we should care, and we should think about, what

the fiscal constitution for political democracy should look like, what sort of institutions should

be most efficient in the workings of democratic politics”570

A razão pública é uma proposta de investigação, que nos levou às conclusões

seguintes.

RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano. 2a. edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 43.

569 Abstraímos aqui de considerar os dispositivos inseridos entre a promulgação e a publicação da Constituição pelo então deputado Nelson Jobim, conforme assumido por ele próprio em diversas entrevistas. Até porque, mesmo confessando tal ato de máxima repugnância, ele preferiu manter em segredo quais foram os ditames apócrifos. A respeito, recomenda-se a leitura de BENAYON, Adriano; RESENDE, Pedro Antonio Dourado de. Anatomia de uma fraude à constituição. Disponível em: <http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/fraudeac.html>. Acesso em: 29 abr. 2007. Para uma abordagem mais teórica dos eventuais desvios de conduta dos legisladores, cf. a recomendação de aproximação dos indivíduos da política e de limitação das decisões políticas pelos legisladores como base de uma reforma constitucional, trazida por Buchanan em sua Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000.

570 BUCHANAN, James M. Notes on the history and direction of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 61.

163

CONCLUSÃO

As linhas acima nos permitiram ver que:

1- Existe um problema crucial na delimitação da esfera de fundamentalidade das normas

constitucionais consagradoras de direitos aos cidadãos;

2- Esse problema existe porque, quanto maior o número de regras cristalizadas, maior

será o poder das gerações anteriores sobre as futuras (que, num contexto intertemporal

reveste-se de uma prevalência das minorias sobre as maiorias);

3- Essa vinculação irresistível das gerações futuras a algo decidido de modo terminativo

em um outro contexto histórico-social, induz a uma ruptura constitucional periódica –

que pode ser em espaços mais curtos ou mais longos de tempo, porém já é previsível

por assim dizer;

4- A ruptura constitucional é indesejada em qualquer ambiente democrático, dada a

incerteza e a instabilidade que ela naturalmente gera aos seus cidadãos e mesmo ao

mundo como um todo, especialmente no cenário de globalização atual;

5- Por isso mesmo, é essencial discutir a questão dos direitos fundamentais em face do

princípio democrático;

6- A questão adquire maior vulto quando se trata de uma democracia deliberativa, e não

apenas representativa, que pressupõe que os cidadãos sejam livres e iguais, com poder

para deliberar sobre assuntos importantes;

7- A democracia deliberativa mostra-se mais interessante do que a meramente

representativa, uma vez que esta é basicamente formal e estabelece um distanciamento

entre os cidadãos e os legisladores por eles eleitos;

8- Assim, sem que se atribua uma base de legitimidade política, calcada nas deliberações

democráticas do próprio povo, haverá uma ampla participação política formal, porém

164

pouca representatividade das instituições sociais – o que esvazia o Estado e suas ações

de qualquer suporte na sociedade;

9- A democracia deliberativa ao mesmo tempo pressupõe e ocasiona, com o passar do

tempo (e sua conseqüente maturidade), o domínio do político pelos cidadãos, e não

apenas que estes elejam formalmente seus representantes para que decidam em seu

lugar, presumindo-se a legitimidade de qualquer decisão advinda do processo

legislativo;

10- A democracia deliberativa exige que os cidadãos participem ativamente das

deliberações dos assuntos mais importantes, tomando conhecimento do que é decidido

e chancelando argumentativamente essas mesmas decisões, segundo critérios políticos

que atendam ao bem público (e não apenas os seus particulares);

11- Para que esse modelo democrático se desenvolva de fato, é necessário consagrar-se

determinados direitos, certas liberdades, para garantir a efetiva participação na

deliberação democrática pelos cidadãos. O problema que se põe é a delimitação desses

direitos, os quais, por sua vez, podem estar presentes na Constituição de modo

expresso ou implícito – o que não lhes retira, de modo algum, sua amplitude máxima e

irrevogabilidade absoluta segundo o constitucionalismo;

12- Trata-se, então, de analisar a legitimidade dos próprios direitos tachados pelo

constituinte originário de fundamentais;

13- A concepção democrática da constituição tenta encontrar-lhe um núcleo irrestringível,

a fim de evitar a tirania constitucional, que obriga seus cidadãos a um regime de

injustiças – dado o absoluto distanciamento, com o passar do tempo, entre o regime

preconizado pela lei fundamental (estático) e a realidade social (dinâmica), aliado à

impossibilidade de novos ajustes nos acordos previamente firmados pelo constituinte

originário;

14- Daí o dizer-se que o constitucionalismo, em uma república democrática e pluralista,

deve se restringir à esfera da imparcialidade política;

15- A essa questão teórica se contrapõe, em concreto, a Constituição da República de

1988, que é a constituição brasileira com a maior carta de direitos ditos

“fundamentais” em toda a história da nação, considerados irrevogáveis pelo

constituinte derivado;

16- A Constituição terminou por se apresentar, dado o contexto político em que foi

elaborada e promulgada, como um diploma conjuntural e circunstancial – em outras

165

palavras, casuístico –, além de altamente comprometido com determinadas classes e

não com a sociedade como um todo;

17- A essa hipertrofia soma-se a abertura conceitual da Constituição, no que toca os

direitos fundamentais. A Constituição, ao não dizer quais são efetivamente seus

direitos fundamentais, fez com que ninguém soubesse quais são esses direitos. Numa

sociedade pluralista e altamente complexa, tratar os direitos fundamentais dessa forma

é no mínimo temerário.

18- Torna-se assim necessário buscar um parâmetro de materialidade para a definição do

que efetivamente seja direito fundamental;

19- A razão pública, como parâmetro de materialidade, atribui contornos imprescindíveis

ao discurso a ser adotado acerca de questões de justiça básica – inclusive para se

verificar se se trata ou não de uma questão de justiça básica;

20- A razão pública pressupõe que as doutrinas abrangentes de verdade ou direito sejam

substituídas por uma idéia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como

cidadãos livres e iguais;

21- A razão pública razão apresenta seus contornos públicos de três maneiras: como razão

de cidadãos livres e iguais, é a razão do público; seu tema é o bem público no que diz

respeito a questões de justiça política fundamental, cujas questões são de dois tipos,

elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica; e a sua natureza e

conteúdo são públicos, sendo expressos no raciocínio público por uma família de

concepções razoáveis de justiça política que se pense que possa satisfazer o critério de

reciprocidade;

22- Assim, as formas pelas quais a razão pública se manifesta como tal, são todas aquelas

que comportarem os caracteres essenciais de justiça básica e de elementos

constitucionais essenciais;

23- A razão pública não se aplica a todas as discussões políticas de questões fundamentais,

mas apenas às discussões das questões naquilo a que Rawls se refere como fórum

político público. Esse fórum pode ser dividido em três partes: o discurso dos juízes nas

suas discussões, e especialmente dos juízes de um tribunal supremo; o discurso dos

funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores principais, e

finalmente o discurso de candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha,

especialmente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações

políticas;

166

24- Um cidadão participa da razão pública, então, quando delibera no contexto do que

considera sinceramente como a concepção de justiça mais razoável, uma concepção

que expresse valores políticos dos quais também possamos pensar razoavelmente que

outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam endossar. Assim, ao cidadão cabe

construir a razão pública, mediante diversos critérios e valores, e não obedecer a ela –

função que é dada ao Estado e seus funcionários;

25- A razão pública, como critério de justificação construído pelos cidadãos, possui

efetivamente um conteúdo, que aponta para concepções razoáveis de justiça;

26- Nada obstante Rawls apontar a ampla possibilidade de haver, seja em épocas ou

lugares diferentes, razões públicas materialmente diversas (o que, a princípio, dá a

impressão de ser a razão pública uma concepção puramente formalista), o autor aponta

princípios indissociáveis da idéia de razão pública;

27- Quanto a essa variedade de “razões públicas” possíveis ao longo de diversas épocas e

lugares, o próprio Rawls atribuiu-lhe um limite, o qual se daria exatamente pelo

critério de reciprocidade. Isso porque a reciprocidade é violada sempre que as

liberdades básicas forem negadas – o que torna a sociedade fundamentalmente

desigual e inviabiliza a criação e a manutenção da idéia de razão pública. Nesse

sentido, a reciprocidade atuaria como um mecanismo de prova do atendimento da

razão pública;

28- A razão pública, por sua vez, incorpora elementos de dissenso, não aceitando apenas o

dissenso quanto à legitimidade dos argumentos políticos públicos acerca das regras em

si, os quais, apesar de não serem considerados os mais adequados, são entendidos

como razoáveis por todos os cidadãos;

29- O dissenso é fundamental para a constituição da razão pública rawlsiana, porém deve

resultar num consenso formal posterior, consistente no reconhecimento de validade e

de legitimidade de todas as proposições políticas e jurídicas, ante o procedimento

racionalmente aceito em um regime democrático de direito;

30- Nessa acepção se percebe o quão importante se mostra o processo legislativo para a

idéia de razão pública, pois este servirá como base de reconhecimento racional formal

para todas as normas existentes em um sistema;

31- A razão pública reforça então a idéia da teoria de constituição de que, ao analisar-se o

“núcleo duro” da Constituição, convém ter em conta que a estas cláusulas não se deve

dar uma amplitude muito grande, pois isto desvirtua seu papel no sistema

167

constitucional. Elas devem representar somente aquilo de mais essencial, somente os

princípios fundamentais;

32- Ou seja, a fim de se resguardar a democracia, é necessário definir-se quais dispositivos

constitucionais são de fato relacionados à participação na deliberação democrática –

pois é a democracia deliberativa que embasa politicamente o Estado Democrático de

Direito;

33- A razão pública pressupõe a preservação das seguintes liberdades básicas: (i) liberdade

religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de eqüidade; (iv)

liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii) igualdade

social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x) razoabilidade;

(xi) respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e informação;

(xiii) além das garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as quais,

conforme exposto mais acima, consideramos estar o processo legislativo). Além

dessas liberdades, a própria democracia deliberativa pressupõe outras: a liberdade de

pensamento; a liberdade de consciência; as liberdades incluídas na noção de liberdade

e integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades protegidos pelo Estado

de Direito.

34- A razão pública adquire, então, uma ferramenta utilíssima para se buscar o que pode

ser considerado, ou não, direito fundamental “decorrente dos princípios ou do regime

adotado” pela Constituição (entendida não como um documento formal, mas sim

como uma carta de ajustes políticos entre cidadãos livres e iguais), no contexto de uma

argumentação racional que se pauta na democracia – e ao mesmo tempo justifica

determinadas regras ou condutas estatais;

35- Logo, o que estiver fora do âmbito de justificação da razão pública, não poderá ser

considerado afeto à estrutura básica da sociedade e, conseqüentemente, não poderá ser

considerado elemento de justiça básica apto a ser erigido à categoria de direito

fundamental;

36- Por outro lado, a Constituição da República de 1988 apresenta algumas normas nas

suas limitações ao poder de tributar, já que o exercício dessa competência pelo Estado

não é ilimitado, uma vez que o próprio Estado não é mais considerado como um fim

em si próprio. As limitações constitucionais ao poder de tributar destinam-se,

portanto, a resguardar os cidadãos de eventuais abusos da máquina estatal;

37- Os destinatários das regras estabelecidas pela Constituição nas Limitações ao Poder de

Tributar são basicamente o legislador e o aplicador das leis;

168

38- Por ser uma parte da Constituição destinada a refrear o poder tributário, é comum

entender-se-lhe, no meio técnico, como uma segunda Carta de Direitos, particular à

esfera da tributação, sobre a qual cabe aplicar formalmente os dispositivos

constitucionais pertinentes, entendendo-se todas aquelas regras como cláusulas

pétreas. Assim, um Estado democrático de Direito precisa ter sua atividade tributária

baseada na Constituição – ou seja, no ajuste básico de regras acordadas pelos cidadãos

– e por ela limitada;

39- Esses limites ao poder de tributar, entendidos como um freio político à ação estatal,

logicamente não redundam apenas na consagração de princípios morais destinados a

proteger a esfera de imparcialidade política do indivíduo. Existem determinados

limites que se justificam no próprio federalismo, não guardando relação direta com o

cidadão em si. Existem outros, ainda, que encontram esteio na separação dos poderes.

E existem ainda alguns que se destinam a proteger o cidadão, mas que nem por isso

significam uma proteção inextrincável do regime democrático, por não afetarem o

exercício da deliberação pelos cidadãos;

40- Analisando-se cada norma constitucional pertinente, encontram-se 4 regras que não se

relacionam com direitos subjetivos dos cidadãos: o art 150, V, quanto à liberdade de

circulação de bens; e VI, a (com seus §§ 2o e 3o consectários); o art. 151, II, primeira

parte; e o art. 151, III. Esses dispositivos dizem respeito ao chamado federalismo

fiscal, o qual, por se relacionar diretamente com a estrutura da Federação (e não com

os cidadãos em si), não pode ser considerado objeto do presente trabalho;

41- Quanto às demais normas, em contraposição à razão pública, percebe-se que:

a. A legalidade integra a razão pública (arts. 150, I, e §§ 1o, 6o e 7o). As únicas

ressalvas a serem feitas, tocam a exigência de lei específica para a concessão

de benefícios fiscais e a questão da anuência dos Estados-membros para

concessão de benefícios em sede de ICMS;

b. A isonomia (arts. 150, II, 151, I e II, in fine, e 152) também integra a razão

pública. Aqui inserimos também o § 4o do art. 150, como contida pelo

argumento político público. Frisamos que essa consideração não se estende

para o critério de capacidade econômica do art. 145, § 1o, da Carta;

c. A irretroatividade, de igual modo (art. 150, III, a), compõe a razão pública;

d. A anterioridade (art. 150, III, b e c, e § 1o), por outro lado, não possui esteio na

esfera de imparcialidade política, não havendo meio de se afirmá-la como

justificável pela razão pública;

169

e. O não-confisco (art. 150, IV), por sua vez, também não se afigura como norma

inserta no âmbito da imparcialidade política;

f. A liberdade de tráfego (art. 150, V) também possui sua fundamentalidade

confirmada diante do princípio democrático, sendo abrangida pela razão

pública;

g. A imunidade dos templos (art. 150, VI, b) guarda relação direta com a razão

pública;

h. A imunidade dos partidos políticos (art. 150, VI, c) também se mostra digna de

fundamentalidade diante do critério de razão pública;

i. A norma que confere imunidade aos sindicatos (art. 150, VI, c) mostra-se

distante da razão pública, afastada da esfera de imparcialidade política;

j. A imunidade das entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência

social (art. 150, VI, c), por sua vez, também se relaciona com a razão pública,

merecendo sua identificação como cláusula jusfundamental;

k. A imunidade do livro, jornal, periódico e do papel destinado à sua impressão

(art. 150, VI, d), vis a vis a esfera de imparcialidade política, não pode ser

considerada cláusula pétrea, ou direito fundamental por assim dizer.

42- Quanto às pessoas beneficiadas pela imunidade, o texto constitucional, ao se referir

somente a impostos, revela-se incompleto e distorcido, merecendo ser estendida a

garantia de intributabilidade também aos tributos com função parafiscal e extrafiscal –

salvo os tributos parafiscais sobre as instituições religiosas, dada a laicidade do

Estado, que proíbe qualquer relacionamento estatal com essas entidades, a fim de

evitar atrelamentos indiretos;

43- No fim, percebemos que a idéia de maximização das normas fundamentais, de modo

formal, pouco importando a razão de ser dessas mesmas regras, mostra uma

transposição da idéia de prioridade do bem sobre o justo, como se, garantindo-se o

máximo de fundamentalidade no texto constitucional – e, assim, considerando-se o

contribuinte dentro de uma redoma antiestatal –, a cidadania brasileira estivesse

assegurada a caminhar sobre bases sólidas e bem estruturadas.

44- No entanto, priorizar o bem sobre o justo, pensando apenas na maximização de

direitos intocáveis, especialmente acerca de questões que envolvem a manutenção do

Estado (já que o tributo é a principal fonte de receita pública), é praticamente certificar

a temporalidade constitucional, tão reduzida quanto maior for o leque de

fundamentalidade;

170

45- É ainda de se realçar que a forma como a sociedade se mobilizou para a ruptura do

regime militar, que terminou motivando a Constituição de 1988, foi um momento de

deliberação democrática pelos cidadãos que tornou insustentável o regime ditatorial.

Até por isso a Constituição deve se interpretada priorizando o justo sobre o bem,

libertando-se das amarras welfaristas e utilitaristas que boa parte da doutrina tributária

insiste em defender.

46- Enquanto esses ideais formalistas prosseguirem, permaneceremos à deriva nesse

oceano de incertezas, cientes de que, a qualquer momento, virá a tormenta que fará

soçobrar a Constituição atual – como todas as demais que lhe sucederem.

171

REFERÊNCIAS.

ABREU, Sérgio. O princípio da igualdade: a (in)sensível desigualdade ou a isonomia matizada. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. ALEXY, Robert. Ponderação, jurisdição constitucional e representação popular. Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. _______. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005. ALTAMIRANO, Alejandro C. Legalidad y discrecionariedad. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. ALVIM, Eduardo Arruda. Apontamentos sobre o recurso hierárquico no procedimento administrativo tributário federal. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 12a. edição. São Paulo: Saraiva, 2006. APOCALYPSE, Sidney Saraiva. Tributo – mecanismo de controle da vida civil. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo. Democracia, Preferencias y Negociación. Disponível em: <http://www.uv.es/CEFD/2/paramo.html#41>. Acesso em: 09 fev. 2007. ATALIBA, Geraldo. Imunidade de instituições de educação e assistência. RDT, São Paulo: Malheiros, nº 55, 1991. ______. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.

172

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006. ______. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). 2005: Rio de Janeiro, Forense. ______. Uma introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003. BARCELLOS, A. P. de. A eficácia jurídica dos princípios fundamentais – o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. ______. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003. ______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. BARZOTTO, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo: Unisinos, 2003. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. São Paulo: Jorge Zahar editores, 2001. BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2a. edição. São Paulo: Lejus, 2004. BENAYON, Adriano; RESENDE, Pedro Antonio Dourado de. Anatomia de uma fraude à constituição. Disponível em: <http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/fraudeac.html>. Acesso em: 29 abr. 2007. BLACK, Hugo Lafayette. Crença na constituição. Tradução de Luiz Carlos de Paula F. Xavier. Rio de Janeiro: Forense, 1970. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BORGES, José Souto Maior. Relações entre tributos e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004.

173

BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000. ______. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000. ______. Notes on the history and direction of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000. ______. Notes on politics as process. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000. ______. Public choice and ideology. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000. ______. The reason of rules. In: ______. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 10, 2000, p. 19. ______. Toward analysis of closed behavioral systems. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000. BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172/66. ______. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. ______. Constituição Federal; anteprojeto da Comissão Afonso Arinos; índice analítico comparativo. Rio de Janeiro: Forense, 1987. CALAZANS, Paulo Murillo. Entre liberais e republicanos – a co-originalidade. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CALIENDO, Paulo. Da justiça fiscal: conceito e aplicação. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. CAMPOS, Diogo Leite de. A jurisdicização dos impostos: garantias de terceira geração. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2001.

174

CARDOSO, Fernando Henrique. Dr. Ulysses – o homem que mudou o Brasil. MELHEM, Célia Soibelmann; RUSSO, Sonia Morgenstern (orgs.). São Paulo: Prêmio, 2004. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 22a. edição. São Paulo: Malheiros, 2006. CARVALHO, Cristiano Rosa. Sistema, competência e princípios. In: SANTI, Eurico Marques Diniz de (coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17a. edição. São Paulo: Saraiva, 2005. ______. Teoria da norma tributária. 2a. edição. São Paulo, RT, 1981. CASÁS, José Osvaldo. El principio de legalidad en materia tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. CHIESA, Clélio. Imunidades e normas gerais de direito tributário. In: SANTI, Eurico Marques Diniz de (coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005. CLÈVE, Clèmerson Martins. Liberdade de expressão, de informação e propaganda comercial. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005. ______. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006. ______. Os princípios gerais do direito tributário na Constituição. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. COHEN, Joshua. Democracy and Liberty. In: ELSTER, John (Ed.). Deliberative Democracy. Cambridge University Press: 1998. ______. Pluralism and Proceduralism. Chicago-Kent Law Review, Chicago: Illinois Institute of Technology, v. 69, n 3, 1994. Disponível em: <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-No3.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2007. COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias – teoria e análise da jurisprudência do STF. 2a. edição. São Paulo: Malheiros, 2006. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006.

175

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Constituição Federal interpretada pelo STF. 8a. edição. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. DALLAZEM, Dalton Luiz. O princípio constitucional tributário do não-confisco e as multas tributárias. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. DANNER, Leno Francisco. Democracia e justiça social: um argumento a partir da utopia realista de John Rawls. Porto Alegre, 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: <http://www.pucrs.br/pgfilosofia/2007Leno-ME.pdf >. Acesso em 28 abr. 2007. DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 3a. edição. São Paulo: Saraiva, 2006. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ETCHEGOYEN, Marcos F. García. El sistema tributario y la necesidad de vigencia del principio de capacidad contributiva. In: CASÁS, José Osvaldo (coord.). Interpretación económica de las normas tributarias

176

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books, 2003. HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16a. edição. São Paulo: Atlas, 2007. HORTA, Raul Machado. Constituições federais e pacto federativo. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. HORTAL, Jesus. O princípio da liberdade religiosa e o ordenamento jurídico. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. LAMY, Marcelo. Sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante. Política, constituição e justiça: a legitimidade da jurisdição constitucional e a consolidação das instituições democráticas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal, 15 anos: mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol.1. São Paulo: Atlas, 2003. ______. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2006. MARTINI, Marcus de. Notas sobre o Neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>. Acesso em: 24 jul. 2005. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Das cláusulas pétreas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal, 15 anos: mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003. MARTINS, Rodrigo Baptista. A propriedade e a ética do capitalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1999. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3a. edição. São Paulo: Malheiros, 2004. MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional, Revista Diálogo Jurídico, Salvador: Centro de Atualização Jurídica, no. 10,

177

2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br/pdf_10/DIALOGO-JURIDICO-10-JANEIRO-2002-GILMAR-MENDES.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2007. MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. Multas tributárias – efeito confiscatório e desproporcionalidade – tratamento jusfundamental. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. ______. O princípio constitucional da irretroatividade da lei – a irretroatividade da lei tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Metodología del derecho financiero y tributario. Mexico: Porrúa, 2004. MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Vol. 2. 3a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997. MOTA FILHO, Humberto Eustáquio Cesar. Introdução ao Princípio da Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro, Forense, 2006. NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005. NOGUEIRA, Alberto. Os limites da legalidade tributária no Estado Democrático de Direito. 2a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. NOGUEIRA, Cláudia de Góes. A impossibilidade de as cláusulas pétreas vincularem as gerações futuras, Revista de Informações Legislativas, Brasília: Senado Federal, a. 42, n. 166, 2005. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_166/R166-05.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2007. NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 14a. edição. São Paulo: Saraiva, 1995. ______. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974. NOVOA, Cesar García. El principio de no discriminación em matéria tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. PEIXINHO, Manoel Messias. Teoria democrática dos direitos fundamentais. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. O princípio do não-confisco e os limites ao direito de propriedade. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004.

178

PEREIRA, Arlindo Amorim. Programa de Educação Tributária da Bahia: a visão dos atores envolvidos no seu grupo e a implementação do programa. Salvador, 2004. 134 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004. Disponível em: <http://www.adm.ufba.br/disserta/mestacad/publicacoes/dissertacao/pereira_arlindo_amorim.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2007. PESTANA, Márcio. O princípio da imunidade tributária. São Paulo, RT, 2001. PILATTI, Adriano. O princípio republicano na Constituição de 1988. Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003. PILON, Almir José. Liberdade e Justiça – uma introdução à filosofia do Direito em Kant e Rawls. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002a. PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A razoabilidade das leis tributárias: direito fundamental do contribuinte. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. ______. Validade, vigência, aplicação e interpretação da norma jurídico-tributária. In: SANTI, Eurico Marques Diniz de (coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005. PIZZORUSSO, Alessandro. O processo de constitucionalização na Europa. In: PIMENTEL JR., Paulo Gomes (coord.). Direito Constitucional em Evolução: perspectivas. Curitiba: Juruá, 2005. PONTES, Helenilson Cunha. O direito ao silêncio no direito tributário. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. PRADO, Ney. Atitudes diante da Constituição de 1988. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. RAWLS, John. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. O domínio do político e o consenso justaposto. In: ______. Justiça e Democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

179

______. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000. ______. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27a. edição. São Paulo: Saraiva, 2004. RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Princípio constitucional da liberdade. A liberdade dos antigos, a liberdade dos modernos e a liberdade dos ainda mais modernos. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. RIBEIRO, Ricardo Lodi. A constitucionalização do direito tributário. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. ______. A segurança dos direitos fundamentais do contribuinte na sociedade de risco. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. RICHE, Flávio Elias. Revisitando a deliberação pública. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ROCHLITZ, Rainer (coord.). Habermas – o uso público da razão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005. RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano. 2a. edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. O tributo e suas finalidades. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário. 18a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

180

SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. ______. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. ______. Livres e iguais – estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. Projeto Leãozinho. Disponível em: <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/>. Acesso em: 17 abr. 2007. ______. Escola Superior de Administração Fazendária. Material utilizado para apresentação do Programa Nacional de Educação Fiscal. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/EducacaoFiscal/PrimeiroSeminario/02PNEFExerciciodeCidadania.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2007. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SILVA, Francis Waleska Esteves da. Princípios constitucionais tributários. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Constituição e sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2001. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional, neutralidade política e razão pública – elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ______. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ______; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. TABOADA, Carlos Palao. El principio de capacidad contributiva como criterio de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e indirectos. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

181

______. As imunidades tributárias e os direitos humanos: problemas de legitimação. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. ______. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ______. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ______. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ______. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais Tributários. NOVELLI, Flávio Bauer (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986. TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Vozes, 1996. VALADÉS, Diego. Consideraciones sobre el Estado Constitucional, la Ciencia y la Concentración de la Riqueza. Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003. VARGAS, Alexis Galiás de Souza. A norma constitucional no tempo: direitos adquiridos e emenda à Constituição. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. VIEIRA, José Roberto. Legalidade e medida provisória: mel e veneno. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004. VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Morozimato. A implementação dos direitos fundamentais e o paradigma constitucional: as novas concepções e os desafios aos operadores do direito. In: POZZOLI, Lafayette; SOUZA, Carlos Aurélio Mota de (orgs.). Ensaios em homenagem a Franco Montoro. São Paulo: Loyola, 2001. YOUNG, Shaun. P. Divide and Conquer: separating the reasonable from the unreasonable. Journal of Social Philosophy, Oxford: Blackwell Publishers, vol. 32, nº 1, 2001.