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Caminhadas de universitários de origem popular UFG Universidade Federal de Goiás UFG

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Caminhadas de universitários de origem popular : UFG / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.120 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-46-7

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal de Goiás. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatóriode Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix anniniThiago Maioli Azevedo

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Organ i z ado resJailson de Souza e Silva

Jorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

UFG

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Alan Rodrigues de Azevedo

Átila Carvalho Dias

Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos

Edilto Rodrigues da Silva

Fabiana Leonel de Castro

Fran Rodrigues

Giselle Vieira dos Anjos

Gisely Carvalho Ferraz

Jenhiffer C. de J. Medeiros

José Gomes de Vasconcelos Neto

Kamyla Faria Maia

Letícia Alves Domingos

Lilian Gomes dos Santos

Luciene Araújo de Almeida

Maiana Gomes Magalhães da Silva

Marcelo da Silva Rodrigues

Márcia Daniele de Souza Carvalho

Maria Madalena de Oliveira e Sousa

Adalberto Luiz Matias Júnior

Micaelle Juliano Vieira

Salathiel Gomes Carvalho

Sidiclei Ferreira Leite

Taísse Dias Guimarães Souza

Tertuliano Rodrigues Pereira

Vandimar Marques Damas

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização eDiversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDIArmênio Bello Schmidt

Coordenação Geral de Diversidade – CGDLeonor Franco de Araújo

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Angelita Pereira de LimaCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFG

Adriane DamascenaCoordenação Pedagógica

Anselmo PessoaCoordenação de Estrutura e Logística

Geovana ReisCoordenação da parceria com o Programa Escola Aberta

Edward Madureira BrasilReitor

Benedito Ferreira MarquesVice-Reitor

Anselmo Pessoa NetoPró–Reitor de Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimen-to em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distri-buídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

ApresentaçãoOs donos da históriaAngelita Pereira de Lima 09

Parte 1 - Andar, tropeçar, cair. levantar, saltar obstáculos e ser feliz! Histórias de nossas vidas

Caminhada de um universitário liso, leso e louco. Compra fiado e pede o trocoSalathyel Gomes Carvalho 13

Sou negra, sou mais uma para somarFabiana Leonel de Castro 15

Não é apenas sonho, é muita lutaTertuliano Rodrigues Pereira 19

Com várias pedras se forma uma caneta!!!Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos 22

Inegável lutaGisely Carvalho Ferraz 28

“Minha história”Maria Madalena de Oliveira e Sousa 30

Em busca do direito de sonharAdalberto Luiz Matias Júnior 33

Panificadora Santo CristoJosé Gomes de Vasconcelos Neto 35

Parte 2 - Em algum lugar no caminho, um sonho me fez andar

Uma história de sonhos, tombos e vitóriasLetícia Alves Domingos 43

A orquestra dos sonhosKamyla Faria Maia 47

“Pedaços de mim”Luciene Araújo de Almeida 51

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O que está em mimFran Rodrigues 54○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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Parte 3 - A cada dia de luta, não se pode parar, nem desistir. É preciso continuar.

Menina do pé de mangaMárcia Daniele de Souza Carvalho 61

Objetivos e força de vontade fazem a diferençaÁtila Carvalho Dias 67

Dona da minha históriaTaísse Dias Guimarães Souza 70

“A espera de um milagre”Alan Rodrigues de Azevedo 74

O testemunho da sobreviventeJenhiffer C. de J. Medeiros 77

Sou pequenina e também giganteLilian Gomes dos Santos 85

Parte 4 - A cada passo, aprendizado e vontade de transformar o mundo

O sertão mora em mimVandimar Marques Damas 91

Educação para romperEdilto Rodrigues da Silva 95

O bater das asas de uma borboleta pode causar um tufãodo outro lado do planetaMaiana Gomes Magalhães da Silva 99

Longo caminho até a universidadeMarcelo da Silva Rodrigues 104

Elogio à mediocridadeMicaelle Juliano Vieira 107

Não vim até aqui para desistir agoraGiselle Vieira dos Anjos 113

“Caminho suave”Sidiclei Ferreira Leite 115

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Apresentação

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Os donos da históriaUma vez, o escritor Umberto Eco nos convidou para fazer “passeios” pelo bosque da

ficção1, numa tentativa de mostrar que a entrada nesse bosque é possível mediante umacordo ficcional entre leitor e autor. Esse “acordo” é a aceitação de que os fatos/persona-gens extraordinários e “irreais” sejam assimilados com base na experiência do mundo real.E assim torna-se possível a vida ficcional.

Por caminho e objetivos inversos, convidamos os leitores a fazer um acordo real comos/as autores/as desse Livro Caminhadas. Convidamos a aceitar as realidades aqui narradascomo a simbolização possível de uma experiência de vida, e buscar compreender que setrata de uma realidade muitas vezes impensada e invisível, uma quase ficção para universi-dade pública brasileira.

O Livro Caminhadas é uma lente com poder de ampliar as histórias, contadas depróprio punho pelos estudantes de origem popular. As imagens, cenas e fotos aqui descritosrevelam o quanto o ensino público superior está despreparado para receber uma parcelaimportante de jovens que ingressam, por uma estratégia ainda incompreendida, no interiorde seus cursos.

Essa lente está focada nas trajetórias de 25 bolsistas do Programa Conexões de Sabe-res da Universidade Federal de Goiás, narradas aqui, com sofrimento e superaração. O mo-vimento proposto foi o de recontar a vida familiar e social, mediada e simbolizada pelatrajetória estudantil. A escrita foi um processo de encontros e desencontros: com familiares;lembranças amargas, estrutura social deficiente. Com a infância, amigos, amores e oportu-nidades agarradas como se tivessem sido “a última chance”.

As narrativas contidas nesse livro não podem ser confundidas com dramas indivi-duais. As mães, tão presentes nessas histórias, são mulheres que pertencem a uma socie-dade de valores simbólicos que desqualificam ou subjugam o sujeito feminino, o ne-gro, o pobre. Os pais, quase sempre ausentes, são homens impregnados de uma “verda-de” masculina perversa e condenados a um jogo de poder em que aos homens não épermitido falhar.

Cada texto revela, ainda, uma questão educacional sobre a qual os sistemas públicosde ensino brasileiros silenciam-se: a meritocracia. A vida desses estudantes é pautada,desde o primeiro dia aula, no ensino fundamental, até a colação de grau, por este sistemameritocrático, que muitas vezes abriga preconceitos sociais e raciais.

1 ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Companhia de Letras, São Paulo, 1994.

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Contraditoriamente, todos os textos mostram o sistema educacional como uma portaentreaberta. A educação formal é considerada um modo de superar a condição social ehumana, um vetor dos desejos e vontades. E, ao mesmo tempo, torna-se o próprio obstáculoa ser superado. As estratégias familiares ou individuais para a transposição dessa porta ou,até mesmo, para escancará-la é a transversal desse livro.

Angelita Pereira de LimaCoordenadora do Programa Conexões de Saberes da UFG

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ANDAR, TROPEÇAR, CAIR.LEVANTAR, SALTAR OBSTÁCULOSE SER FELIZ!HISTÓRIAS DE NOSSAS VIDAS

Parte 1

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Salathyel Gomes Carvalho*

Caminhada de um universitário liso, leso elouco. Compra fiado e pede o troco

O estudante de origem popular é, acima de tudo, um forte. Desde o nascimento éimpossibilitado de ter acesso à educação. Custa a concluir o Ensino Médio e, só se forguerreiro, consegue entrar na universidade pública, que é elitizada, e quando não consegueimpedir seu acesso, faz de tudo para que você não conclua seus estudos. Este processo éhumilhante. Muitas vezes não temos a grana nem do coletivo, enquanto os colegas vão decarro importado para a aula. E há humilhação de colegas da sala de aula que só olham opróprio nariz e fazem de tudo para nos diminuir.

A história que vou contar é de um menino como nós. O nome dele é Salathyel, maisconhecido como Salada. Ele achou que ia conseguir estudar na Universidade Federal deGoiás, coitado! Estuda cedo, trabalha à tarde com o seu pai e ainda é negro. Que rotina! Quehora será que ele estuda? Não sei. Sei que ele tem um objetivo louco, mas tem um objetivoe é o que vale. Seu pai Sr. Edmundo é mecânico de caminhão, “graxeiro”, trabalha o dia“inteirim” para garantir para os filhos o pão que não teve na infância. Sua mãe, Dona Neusa,é manicure, pega sua bicicleta, põe os meninos na garupa, Salada e sua irmã Karol, leva àescola e vai, de casa em casa, arrumar unha a domicílio até dar a hora de buscar as crianças.

Certo dia, Salada conseguiu meia bolsa em uma escola particular de Goiânia. Seu tio,João, pagava a mensalidade e seu pai, aos trancos e barrancos, o material didático. Masparar de trabalhar de jeito nenhum, cabeça vazia é a oficina do Diabo. Salada continuoutrabalhando na oficina com seu pai. As notas? Lá embaixo, quase levou bomba. Seu pai odeixou estudar até passar de ano, mas ele tinha que voltar a trabalhar pra não virar vagabun-do. Só que até hoje ele não voltou para a oficina mecânica.

Resolveu prestar vestibular para Engenharia de Alimentos. Ninguém, nem eu, acredi-tava que ele iria prestar vestibular, menino ousado! Mas ele é um menino bom e resolveuentrar para a igreja, participar de grupo de jovens e da PJMP, Pastoral da Juventude do MeioPopular. Isso lhe deu um impulso e cada vez mais o menino estudava. Os pais estavamgostando, pelo menos não estava na rua. Mas havia quem dissesse: aquele filho do Edmundoé preguiçoso.

Chegou o grande dia do Vestibular 2003 da Universidade Federal de Goiás. Comexpectativa total, nosso herói fez a prova e não tirou da cabeça que tinha passado. Sua mãe,com medo da decepção do seu filho, o preparava para o pior. Depois de alguns meses saiu oresultado. E não é de ver que ele passou? Uma galera do grupo de jovens também conse-

* Graduando em Engenharia de Alimentos pela UFG.

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guiu. Foi alegria para uns, inveja para outros. O negrinho de Aparecida de Goiânia foi oprimeiro universitário de Universidade Federal da família, mesmo sem ter tudo nas mãos.Não teve festa, mas o coração de Salada estava em festa. Até eu dei parabéns para ele, poiseu não acreditava em seu potencial.

E agora, era tudo maravilhoso? Mentira. Começaram as aulas e logo o RU, RestauranteUniversitário - que saudade do bandejão! - ficou de greve. Mas não custava levar umamarmita pra “facul”, isso pra ele era moleza. Agora, o batalhador enfrenta novos monstros,os alunos do seu curso, integral por sinal. Eles sempre o colocavam no seu lugar, “a ralé”, edeixavam bem claro que ele era da periferia. A universidade não dá espaço na pesquisa paraestudantes pobres. Eles não têm tempo, muitas vezes são negros e “negro não pensa”.Salada estudava o dia inteiro e como não tinha papai rico, trabalhava a noite, até “uma damadruga” e entrava na aula sete e meia da manhã do outro dia. Rotina pesada, mas isso era“moleza”, nosso herói já estava acostumado.

Em 2006, Salada passou a fazer parte de um grupo de estudantes que enfrentam pro-blemas semelhantes aos seus e tinham a mesma origem. Parecia que ele voltava para a PJMP,mas dessa vez era diferente. Salada já era adulto, já se chamava Salathyel, Arroz. O grupochama-se Conexões de Saberes, discute ações afirmativas e estuda o acesso e a permanênciade estudantes de origem popular na UFG. Lá ele fez vários amigos com objetivos em co-mum, e luta para que estudantes de sua origem consigam ter acesso a universidade pública,que é deles, e não desistam com qualquer avalanche de pedras do caminho.

Agora não tem jeito Salathyel vai se formar. Diploma na mão, família feliz. Mas sualuta não termina. Não sei se vai conseguir um emprego digno, com salário ideal para a suacapacitação. Ele carrega no coração e na pele uma raça linda que desde sempre “levou oBrasil nas costas”. Hoje isso não é reconhecido, mas “eu sou guerreiro, sou trabalhador,todo dia vou encarar com fé em Deus e na minha batalha.”1

1 Trecho de música - “O Rappa”

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Fabiana Leonel de Castro*

“de esgoto a céu aberto e paredemadeirite de vergonha eu não morritô firmão eis me aqui” Racionais MCs

Sou negra, sou mais uma para somar

Fabiana: fava, semente que cresce. Desde que descobri o significado do meu nome meapropriei positivamente dele. Crescer, para mim, é me superar. Crescer não só para o alto,mas para todos os lados, inclusive para baixo. E crescer para baixo é se aprofundar. Essesperíodos nem sempre são tranqüilos. Hoje, no 5º ano de Ciências Sociais (complementaçãoem Licenciatura), acredito que esse período na universidade foi o mais transformador edesafiador para mim.

Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tãoconfusos que nem percebemos que se trata de crescimento.Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, oudeprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos poracaso um livro ou uma pessoa capaz de explica, que estamos emprocesso de mudança, de crescimento espiritual. Sempre quecrescemos sentimos como a semente nova deve sentir o peso e ainércia da terra, quando procura sair da casca para setransformar numa planta. Geralmente não é uma sensaçãoagradável. Alice Walker, Vivendo pela palavra

Da infância na escola, me lembro de poucas coisas -acho que a memória tratou deapagar parte delas. Até a quarta série estudei em cinco escolas diferentes, por causa demudanças de casas, que eram de aluguel, e uma mudança de estado, de Goiás para MinasGerais. Para minha mãe, esta foi uma tentativa mais drástica de transformação, motivada

“Meu pai veio de Aruanda e minhamãe é Iansã” Bloco Afro Akomabu

* Graduanda em ciências Sociais pele UFG.

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principalmente pelo alcoolismo do meu pai e pela doença do meu avô, que estava emMinas. Ela acreditava que a situação mudaria se saísse do ambiente.

Das escolas que passei, me lembro que na primeira, de freiras, meninas e meninosnão podiam brincar juntos. Na segunda, evangélica, tínhamos que cantar o hino nacionaltodos os dias, em fila, meninas e meninos também separados. A terceira, já em MinasGerais, a princípio eu adorei, porque era grande e tinha muitos alunos. No entanto, eu nãotinha amigas/os. Aliás, nunca fui comunicativa. Na hora do recreio, se brincava de Xuxae suas paquitas. Eu não podia brincar porque tinha a pele mais escura que a das outrasmeninas e tinha o cabelo “de bosta de rolinha” - diziam elas. “A Xuxa e as paquitas têmcabelo liso”. A quarta escola (uma sala de aula para quatro séries distintas) era na fazenda,a seis quilômetros de onde morávamos, percurso que eu (9 anos) e meu irmão (8 anos)fazíamos a pé.

Na quinta e última escola da primeira fase, fazendo a quarta série, estudei no bairroque eu morava e morei até me mudar para Goiânia. Essa escola, diferente das outras, era naperiferia. Diferente de escolas públicas centrais. A estrutura era precária, não havia labora-tórios nem bolas para a educação física e por “coincidência” quase todos os alunos/as eramnegros/as. Deles, vários já morreram ou estão presos (homens). Com ajuda dos meus irmãostentei me lembrar de quem, naquele ciclo de pessoas, continuou a estudar, não conseguimoslembrar de ninguém.

Fiz 2ª fase do ensino fundamental e médio em outro colégio. Eu gostava muito dessaescola. Era longe de casa, mas era o preço para se estudar em uma escola com um pouco maisde estrutura. Quando entrei, na quinta série, me lembro das primeiras aulas perdidas porquenão podia entrar sem uniforme. Dos 10 aos 17 anos, a escola Estadual Lauriston de Souzafoi palco de alegrias e decepções. As últimas semanas do 3° ano do ensino médio foramangustiantes, pois eu estava desesperada sem saber o que faria para continuar estudando. Aúltima noite, em especial, passei acordada sentada no sofá de casa até que meus pais selevantassem. No início do outro ano, minha madrinha (fada-madrinha) me chamou para virmorar com ela em Goiânia. Então, me mudei de Frutal, Minas Gerais, para Goiânia.

Em 2003, entrei na UFG depois de um ano de cursinho pago pela minha madrinha. Emtroca eu trabalhava no escritório dela. Na primeira semana, apesar da empolgação, me sentisem chão e sem acreditar que tínhamos conseguido. Digo “nós” porque para que eu chegas-se até aqui várias pessoas me ofereceram seus ombros, fosse para chorar as dores do caminhoou para subir. Senti-me perdida quanto aos conhecimentos gerais que devia ter e não tinha,quanto às pessoas diferentes de mim que haviam ganhado carro de presente por ter passadono vestibular e eu não sabia nem como iria pagar o ônibus e a xerox. Fico pensando hojeque a tentativa desse modelo de “universidade pública” é nos dizer “esse não é seu lugar”.

Felizmente já no primeiro ano conheci o Projeto Passagem do Meio - Qualificaçãoacadêmica para alunas e alunos negras e negros, por meio do professor Alex Ratts, quedepois se tornou meu orientador (no sentido mais amplo que essa palavra possa ter) e umamigo muito amado. Fiz a seleção para concorrer a bolsa do Passagem, mas não fui seleci-onada e fiz parte assiduamente como bolsista voluntária. Posso dizer que esse projeto foium divisor de águas para mim não só academicamente. No início do segundo ano fuibolsista de iniciação cientifica por seis meses do professor Alex, o que me ajudou muitofinanceiramente como também para que eu pudesse me aproximar da pesquisa científica,que é o quero continuar fazendo.

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Gostaria, ainda, de exemplificar, com uma “historinha”, como alunas/os negras/os esem recursos financeiros vão ser vitimados na universidade hegemonicamente branca quecuida para que os seus continuem se perpetuando como detentores do conhecimento. Noinicio de 2004, antes que as aulas se iniciassem, fomos encaminhados pelos coordenadoresdo Passagem do Meio a falar com professores em nossos departamentos apresentar-lheshistórico e conversar sobre uma possível orientação de PIBIC ou PIVIC (evidente que abolsa remunerada era a que precisávamos).

Iniciamos uma conversa com um professor do departamento, eu e um outro amigo, esaímos dessa reunião com a indicação de que começássemos a escrever, e assim fizemos.Meu amigo apresentou mais vezes rascunhos, do que seria o projeto. Tinha uma grandeinsegurança para escrever, que permanece ainda hoje. Depois que se iniciaram as aulassurgiu um boato na sala que uma outra aluna (branca) disse que a mãe dela (também profes-sora universitária) era amiga desse professor e havia falado com ele e este garantiu que abolsa remunerada seria dela. Na véspera da entrega as regras do CNPq mudaram. A partir deentão o currículo da/o aluna/o não pontuava mais, só o do professor, e ele indicaria quemseria bolsista remunerada/o e voluntária/o.

Com isso ele me avisou que indicaria o meu amigo para PIBIC (ele havia discutido oprojeto mais vezes) e nós duas para PIVIC. Quando saiu o resultado a filha da amiga dele eraPIBIC e eu e meu amigo PIVIC. Esse foi o primeiro momento estarrecedor para mim nauniversidade. Pensei em desistir desse PIVIC, mas fui orientada pelos coordenadores doPassagem a não abandonar. Foi uma experiência traumática e o período mais difícil tanto dedescontentamento acadêmico, como de muita dificuldade financeira. Tive problemas comnotas, pois não tinha dinheiro para xerox. No outro ano consegui, um PIBIC.

Ainda no segundo ano, alguns bolsistas voluntários e remunerados deste proje-to começaram a se reunir para discutir a formação de um Coletivo de EstudantesNegras/os. A formação do coletivo foi de extrema importância para mim e acreditoque também para as outras pessoas do grupo. É o lugar onde nos reconhecemos, onde,com discussões e formações, não nos sentimos sós e fora de lugar. Essa formação, comtextos e vivências, é parte fundamental para que façamos nossas escolhas profissionais,afetivas, acadêmicas, temas de pesquisa etc. Posso dizer que sou parte do coletivo e eleé parte de mim.

Agora, já no final da graduação, com todas as dúvidas e inseguranças adquiridas ealgumas convicções, conheci o Conexões de Saberes, um Programa com uma concep-ção incrível. Quando conseguirmos colocá-lo em prática em sua amplitude aqui, tenhocerteza que muitos alunas/os de origem popular encontrarão força e razão para perma-necer na universidade. A UFG foi uma das últimas universidades a integrar o Conexõese, junto a isso, acho que a pouca experiência é a barreira que diariamente temos quetranspor.

Gostaria de terminar com um rap que não foi feito pensando na universidade, masem uma prisão. No entanto me apropriando dos estudos de Foucault sobre essas institui-ções ele faz muito sentido para mim.

Acharam que eu estava derrotada1/quem achou estava errado euvoltei tô aqui/ se liga só escuta aí/ao contrário do que vocêqueria tô firmona tô na correria/sou guerreira e não pago pra

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18 Caminhadas de universitários de origem popular

vacilar sou vaso ruim de quebrar/oitavo anjo do apocalipsetenebroso como um eclipse/é seu pesadelo tá de volta no puro ódiocheio de revolta/vou te apresentar o que você não conhece anotetudo vê se não esquece/você verá que não deixei me envolver prasobreviver por aqui tem que ser/mesmo no inferno é bom sabercom quem se anda senão embaça vira desanda/vejo várias/osirmãs e irmãos tomando back(....)aqui é foda não tem comédia/o clima é de tensão maldade inveja(...)descobri que além de ser um anjoeu tenho cinco inimigos...irmãs e irmãos de atitude moram comigo/manos de estilo (...) Oitavo anjo, 509-E

1 Mudei a letra onde estava no masculino passei para o feminino

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Tertuliano Rodrigues Pereira*

Inicia-se aqui o relato de uma históriavivida,sentida na pele e que alimenta sonhos emove barreiras.

Nasci mergulhado e afogando em um rio de enfermidades. Aos poucos fui afundando,rodando de hospital em hospital em busca de cura para a pneumonia dupla que me consu-mia, até chegar ao ponto de ser desenganado pela medicina e meus pais terem que seconformar em levar-me para morrer em casa. Meus pais prepararam o funeral completo(vela, caixão). Mas de forma inexplicável aquele bebê resistiu bravamente até chegar suacura pelas mãos de um velho conhecedor dos saberes populares que conseguiu fazer umacombinação de ervas que me possibilitou estar vivo.

“A vida só pode ser entendida olhando-se para trás.Mas só pode ser vivida olhando para frente.” S. Kierkegaard

Morava na roça, por isso só comecei a estudar aos nove anos. Morávamos a 18quilômetros da cidade. Aos sete anos, comecei a vender leite na cidade pra ajudar afamília e por isso não sobrava tempo para a escola: chegava em casa cansado e não tinhaforças para voltar. Quando eu estava com nove anos, meu irmão mais velho foi morar emSanta Rosa-MG, que é a cidade que fica mais próxima à fazenda onde morávamos. Apro-veitei essa oportunidade e pedi para meus pais me deixarem estudar e morar em SantaRosa com meu irmão, mas eles não deixaram, meio que preocupados com minha saúde,que ainda não era totalmente normal.

“Todo homem, por natureza, quer saber” Aristóteles

Não é apenas sonho, é muita luta

* Graduando em Filosofia pela UFG.

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20 Caminhadas de universitários de origem popular

Eu queria estudar de qualquer forma, então meu pai propôs que depois de vender oleite eu deixaria as coisas na casa do meu irmão e iria estudar. Foi aí que tive meu primeirocontato com os estudos na Escola Municipal Professor Zacharias Nunes da Silveira, ondeestudei o primeiro e segundo ano do primário. Depois fui para o Colégio Estadual TenenteSalvador Ribeiro, e fiz até o quarto ano do primário.

Nessa época eu tinha 13 anos e ouvi falar pela primeira vez em faculdade e que parachegar lá tinha que estudar muito e em colégio bom. Fiquei um pouco abalado, pois colégioparticular era totalmente impossível para mim. Foi aí que surgiu a oportunidade de ir morare estudar em um colégio agrícola de uma ONG italiana chamada OMG (Operação MatoGrosso) que trabalha com educação de jovens. Disseram que o colégio era muito bom, faleicom meus pais e eles deixaram. Então eu fui e lá estudei até a oitava série, na cidade de SãoSalvador ,Tocantins, no Colégio Agrícola Dom Bosco.

Saindo de São Salvador eu fui morar em Goiânia com minha irmã por um ano, traba-lhando de entregador em um supermercado e estudando à noite. No final do ano de 2002, eupercebi que se continuasse assim eu não conseguiria realizar meu maior sonho, que eracursar filosofia em uma universidade pública. Então eu voltei novamente para Tocantins efui para Palmas. Lá morei com o Frei Felisberto, um padre amigo da minha família, estudeiem um colégio um pouco melhor e pude me dedicar um pouco mais aos meus estudos. Aífiquei durante todo o ano de 2003.

No início de 2004 surgiu uma oportunidade boa, o Frei Felisberto sabendo da minhaintenção de estudar, me indicou o Seminário São José em Porto Nacional Tocantins ondeofereciam um estudo muito bom em um colégio chamado Sagrado Coração de Jesus. Euimediatamente aceitei a idéia, pois era minha oportunidade de fazer o terceiro ano doensino médio de forma que me daria uma base melhor para o vestibular e fui morar nesteseminário durante todo o ano de 2004. Em meados de 2005, voltei a Goiânia para mepreparar para o vestibular, fiz um semestre de cursinho nestes mais baratos, que era o que euconseguia pagar com meu salário de call center em uma empresa de telefonia móvel.

“A esperança é o sonho do homem acordado.” Aristóteles

No final de 2005, fiz o vestibular da UFG, consegui passar e assim abri a primeira portapara realizar um dos meus maiores sonhos. Dessa forma, cheguei na universidade.

Cheguei muito empolgado, mas quando me deparei com os obstáculos de permanên-cia eu notei que não seria nada fácil. Na UFG a assistência estudantil é muito precária. Ascasas de estudantes não são assistidas como deveria ser pela universidade. Deparei-me coma falta de dinheiro para comprar livros, tomar café da manhã, pagar ônibus, tirar cópias. Issome levou a continuar trabalhando e não conseguir um bom desempenho no primeiro semes-tre. No segundo semestre procurei bolsas para me ajudar a me manter e não tinha nenhumadisponível e assim eu fiquei um semestre inteiro em péssimas condições, matei muita aulapor falta de dinheiro para ir ao campus e novamente não fui tão bem como esperava.

Como negro de baixa renda, é evidente que sofri muitos preconceitos por parte deprofessores e colegas de sala, mas isso não conseguiu me interromper como infelizmenteacontece com tantos outros negros que pelo preconceito e pela depreciação desistem deseus sonhos. Agora que já estou nesse mundo universitário que lamentavelmente não havia

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me incluído em seus planos, pois foi planejado para uma minoria na qual eu não estouenglobado, vou lutar para conseguir vencer e assim ajudar a criar soluções para que esseindispensável meio de difusão de conhecimento (a universidade) chegue a todas as cama-das da sociedade.

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22 Caminhadas de universitários de origem popular

Meu nome é Bruna Priscila e minha história começa no dia 26 de outubro de 1986,quando nasci no Hospital Samaritano de Goiânia-GO. Minha mãe já tinha perdido trêsfilhos devido a complicações no parto e somente meu irmão (10 anos mais velho que eu)havia escapado. Meu nascimento foi complicado e também tive uma infecção hospitalarque quase me levou a óbito. Eu era muito magra, muito pequena e fraca, mas mesmo assimconsegui sobreviver.

Morávamos num bairro chamado Vila Alvorada e a nossa casa era muito pequena, comtelhas caindo e chão de terra batida. Meus pais me matricularam para fazer a pré-alfabetiza-ção no colégio SESI, próximo de casa. Esse colégio era conveniado com a rede estadual deensino e pagávamos uma taxa irrisória. Estudei lá do pré-alfabetização até a quarta série.

Comecei a me destacar nos estudos, amava estudar lia vários livros literários e sempreestava entre as melhores alunas da sala. Terminei a quarta série como aluna destaque pelasnotas, esforço e obediência.

Na 5ª série, fui matriculada na Escola Estadual Polivalente Tributária Henrique Silva.Minha mãe já sabia da fama das escolas públicas que ficavam perto de casa, e então esco-lheu uma escola mais longe, em um bairro de classe média alta. Ela julgava que iria melivrar das “más amizades”, das drogas, roubos e brigas. Com a mudança comecei a utilizaro ônibus como meio de transporte.

Doce engano da minha mãe!!! A escola era até organizada, distribuía lanches e livros.Em contrapartida, a sala era lotada, com muita bagunça, professores estressados, drogas dolado de fora do portão, brigas violentíssimas. Sem contar que minha primeira nota vermelha

Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos*

Com várias pedras se forma uma caneta!!!

“Quando nasci, um anjo tortoDesses que vivem na sombraDisse: Vai Bruna! Ser brasileiraNessa terra forasteiraViver uma vida de cãoSonhar, lutar, trabalharPra fazer da vida uma lição!”Baseado no “Poema de Sete Faces”de Carlos Drummond de Andrade

* Graduanda em Enfermagem pela UFG.

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em Matemática foi no primeiro bimestre desse colégio. Não consegui agüentar, chorei tantoque a professora, Gerciara, me deu um trabalho para que eu pudesse recuperar a nota. Masesse auxílio não me livrou da nota vermelha. Meu mundo desabou e, mesmo com 11 anos,jurei nunca mais tirar nota vermelha e consegui essa proeza até concluir o ensino médio.

Enquanto isso, lá em casa, havia muitas brigas, agressões físicas, verbais e moraisporque meu pai bebia, traía e batia muito na minha mãe. Eu e meu irmão presenciávamostudo. Hoje penso que os estudos funcionaram para mim como uma espécie de válvula deescape, para sair do lar conturbado que vivia.

Não posso me esquecer de que eu brincava muito na rua perto de casa. Sincera-mente, o ato de brincar todos os dias com os pés descalços na terra me proporcionavamuita alegria. Brincávamos de queimada, vôlei, futebol, barra manteiga, pique-escon-de... Ahhhh, que saudades.

Ah! Que saudades eu tenhoDa aurora da minha vida,Da minha infância queridaQue os anos não trazem mais!Que amor, que sonhos, que flores,Naquelas tardes fagueirasÀ sombra das bananeiras,Debaixo dos laranjais!”Casimiro de Abreu (1839-1860), Meus Oito Anos

Antes de concluir a 8ª série, começou o impasse. Meus pais não tinham condições deme matricular em um colégio particular. Eu já me desatinava por medo do vestibular eporque não teria chance de concorrer com os alunos das escolas privadas. Vale ressaltar queeu estava na 8ª série.

Então meu amigo Vinicius me falou que estava fazendo cursinho para cursar o EnsinoMédio no Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás, CEFET-GO. Todos diziamque o ensino de lá era bom, que havia vários laboratórios (informática, biologia, química)e o melhor: ERA DE GRAÇA.

Conversei com minha mãe. Ela pegou dinheiro emprestado no banco e pagou o cursi-nho. De agosto a novembro eu estudava de segunda a sábado. Minha rotina era ir à escolade manhã, voltar para casa de ônibus, almoçar, ir para o cursinho de ônibus e voltar somenteàs cinco horas da tarde. Neste cursinho percebi que meu colégio era fraquíssimo. Haviavárias matérias que eu nunca tinha visto.

Ufaaaa... essa correria me rendeu aprovação no CEFET-GO e também um refluxoesofágico e, conseqüentemente, emagrecimento. Tornei-me uma pessoa muito ansiosa, fe-chada com meus sentimentos e triste.

Vale a pena citar uma pessoa que teve fundamental importância nessa minha primei-ra aprovação e na minha vida inteira: minha mãe. Mesmo com as dificuldades de casa,com constantes agressões, com pressão no serviço e o mundo desmoronando em suacabeça ela sempre falava que acreditava em mim, que me via vencendo na vida, que osestudos eram a única coisa que ela podia me dar e que ninguém iria tomar. Lembro-me de

No caminho, o Ensino Médio

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24 Caminhadas de universitários de origem popular

um dia que eu estava muito ansiosa querendo desistir do cursinho, me achando pequenademais. Ela me colocou em seu colo e falou “Filha, ou você carrega pedra, ou vocêcarrega uma caneta. Qual você pretende carregar para o resto da sua vida???” Ela mefortaleceu e me fortalece até hoje, sou profundamente grata a essa mulher que muitasvezes deixou de comer para nos alimentar, que passou frio para nos cobrir. Nossa, comoamo minha mãe!

Ao entrar no CEFET-GO, passei a conviver com pessoas dos mais variados estilos.Tive acesso a coisas que antes não tinha, como entrar para o time oficial de vôlei onde eu eralevantadora (meus 1,59 não permitia mais que isso), fazer aulas de informática, dança,filosofia e sociologia.

Minha paixão pelos estudos continuava e logo encontrei a biblioteca do CEFET.Meu hábito de ler foi aperfeiçoado, tive contato com vários autores de renome interna-cional e nacional como Machado de Assis, Sidney Sheldon, Carlos Drummond deAndrade, Álvares de Azevedo... Lia de tudo um pouco e descobri que amava contos epoemas.

Mas, mesmo no CEFET, a carência do ensino publico era evidente. Greves de 9 meses,laboratórios de biologia e química em reformas (nunca conheci esses laboratórios), cons-tante rotação de professores, drogas, bebidas.

No 2° ano do Ensino Médio, conheci Eduardo. Nos apaixonamos e começamos anamorar. Ele era meu amigo, confidente, pai e meu amor. Ele me ajudou a amenizar osefeitos que a proximidade do vestibular me causava.

Então chegou o 3° ano. Nesse ano meus pais se separaram. Isso mudou totalmente aestrutura de casa, minha mãe virou a provedora do lar. O dinheiro que ela recebia comotelefonista dava só pra pagar as contas de água, luz, telefone e colocar comida em casa. Meupai não nos ajudava em nada e meu irmão havia casado e morava nos fundos de casa comsua esposa e sua filha.

Pensei em começar a trabalhar, mas minha mãe queria que eu concluísse o EnsinoMédio primeiro.

Nessa época, eu não sabia o que fazer. Sonhava em ter um curso superior... um diplo-ma... a tão sonhada caneta que minha mãe falava... mas só conseguia ver pedras desmoro-nando em cima de mim.

“Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedraTinha uma pedra no meio do caminhono meio do caminho tinha uma pedra.”Carlos Drummond de Andrade, No Meio do Caminho

Driblando as pedrasSeis meses antes do vestibular, pensamentos de fracasso, desanimo e desespero faziam

morada em meu coração. Foi em uma dessas crises que fui apresentada a uma pessoa espe-cial: JESUS CRISTO. Sempre ouvia falar dEle, mas foi a partir do momento que questioneia existência do AMOR DE DEUS que pude ter a convicção de que esse amor é verdade!

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Comecei a estudar a Bíblia e falar com JESUS diariamente. Conhecer JESUS mudou minhavida totalmente, consegui forças para superar a separação dos meus pais, descobri um amorque é demasiadamente grande e conheci o caminho da fé !!!

“ O amor tudo sofre, tudo crê , tudo espera, tudo suporta” I Corintios 13:7

Descobri, então, que haveria uma prova no Colégio COC (um colégio de classe médiaalta) que distribuiria bolsas para os primeiros colocados. Como não tinha nada a perder fuifazer a prova e adivinha... ganhei uma bolsa integral no semi-extensivo preparatório para ovestibular! Pensei que, finalmente, iria disputar de igual para igual com todos, uma vaga nauniversidade. Eu sentia na pele a desigualdade socioeconômica do país e passei a refletirmuito sobre a expressão “INJUSTIÇA SOCIAL”. Isso me causava um sentimento de indig-nação fortíssimo.

Minha rotina era acordar 5:30, ir para o cursinho, que terminava 12:30, pegar caronacom um amigo que estava na mesma situação que eu. Chegava no CEFET 12:50, almoçavaem 10 minutos e entrava na aula do CEFET as 13:00. Às 18:00, saía da aula e chegava emcasa às 19:00. Tomava banho, comia e estudava até meia noite ou três horas da manhã,dependendo do dia e do cansaço.

“Como dois e dois são quatrosei que a vida vale a penaembora o pão seja caroe a liberdade pequena ”Ferreira Gullar, Dois e dois: quatro

Essa rotina diária, e a péssima alimentação que tinha, agravou meu problema derefluxo e as pessoas começaram a suspeitar de gravidez (já que eu só vomitava). Estavamuito ansiosa, debilitada e pesava 40 quilos. Fiquei em um estágio tão deplorável queminhas amigas e primos achavam que eu poderia estar também com anorexia. Minha mãenão me deixava estudar tanto e isso me deixava nervosa, fraca e extremamente hiper-ativa.

Depois de passar muito mal, eu diminui minha rotina de estudos e não mais estudavaa noite. Consegui insenção da taxa para fazer o vestibular da UFG. Nessa época a taxa era de90 reais e eu não tinha nem a metade do dinheiro.

Na hora de decidir meu curso (ate então queria algum curso da área de biológicas masnão sabia qual), pedi para DEUS me orientar e mais uma vez pude ver a mão dele agindo naminha vida. Prestei vestibular para Enfermagem e a concorrência naquele ano era de 19,22por vaga.

No dia da prova estava quase morrendo, nada parava no meu estomago. Fazia ânsiade vômito a todo instante. Quando cheguei na sala, meus pés e minhas mãos suavam etremiam. Tentava disfarçar para minha família não perceber, mas creio que foi impossível.Fiz a prova e consegui passar para a segunda etapa.

Todos já me parabenizavam, afirmando que já era uma vitória conseguir passar na naprimeira fase da UFG. Fiz a segunda etapa mais tranqüila e, no ano de 2005, consegui seraprovada no vestibular para enfermagem em 3° lugar.

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

Foi uma alegria imensa, minha família vibrava... todos me parabenizavam... tinta,sujeira, comemoração no Vaca Brava ( um parque onde os vestibulandos se reúnem após oresultado do vestibular), sair pulando e gritando igual a uma doida. Nossa que alegria! Todomeu esforço havia sido compensado.

Tenho que destacar uma frase da minha cunhada no dia do resultado: “Bruna, você é aprimeira pessoa que eu conheço que é pobre e que estudou em colégio público a vida toda,que passa na UFG de primeira e ainda em terceiro lugar! Você tem é que apanhar mesmo, suasortuda!” Analisando agora percebo que em todos momentos JESUS estava comigo.

“A felicidade é como a gotade orvalho numa pétala de florBrilha tranqüilaDepois de leve oscilaE cai como uma lágrima de amor”Vinicius de Moraes, Felicidade.

Na faculdade, novas dificuldades e novos caminhosPensam que foi só alegria a partir daí?!? Não mesmo... mal começou o ano e os proble-

mas voltaram. O dinheiro era escasso, meu pai não nos ajudava e minha mãe teve que sesubmeter a uma cirurgia. Lembram-se do meu namorado? Pois é, ele terminou comigo no diada minha festa de comemoração da UFG. Estranho, né?!? Até hoje não sei porque ele fez isso.

Entrei na faculdade tentando pegar o mundo com as mãos e descobri uma realidadetotalmente diferente da que já havia vivido. Pessoas de um nível mais elevado que o meu,outro estilo de vida.

Comecei a me sentir um peixe fora d’água e tive que lidar frente a frente com opreconceito que, até então, não havia percebido. Tinha a sensação de que algumas colegastinham nojo de mim pq eu não tinha condições de voltar para casa e tomar banho. Entãoficava o dia inteiro suja e suada na faculdade.

Meu irmão passou a me ajudar financeiramente. Ele se transformou em um pai pramim. E só de pensar que ele nem concluiu o Ensino Médio me dói o coração.

Minha auto-estima estava muito baixa, estava sobrecarregada e não conseguiaestudar mais com tanto afinco, pois gastava horas dentro dos ônibus. Minhas notasdespencaram.

Foi aí que soube do programa Conexões de Saberes. No início não tinha muita idéiado que seria, mas me inscrevi e fui selecionada.

Nesse programa encontrei pessoas maravilhosas, que marcaram minha vida com suasexperiências. Pude começar a formar a minha própria identidade, me aceitar como umaestudante de origem popular, conhecer valores importantes e ajudar em casa nas despesas.Consigo pagar o xerox e ainda comprar coisas que julgo importantes pra mim. Sou grata aoPCS por tudo...

E pra concluir posso afirmar com toda convicção que: DEUS É O CARAAAAAA!!!!!

“DE TUDO, FICARAM TRÊS COISAS:a certeza de que estamos sempre começando...a certeza de que é preciso continuar...

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a certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...PORTANTO DEVEMOSfazer da interrupção um caminho novo...da queda um passo de dança...do medo, uma escada...do sonho, uma ponte...da procura... um encontro”Fernando Sabino, Poema da Reconciliação.

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28 Caminhadas de universitários de origem popular

Gisely Carvalho Ferraz*

Gisely Carvalho Ferraz, estudante de origem popular, ingressou em uma universidadepública. Seus pais nasceram pobres, mas conseguiram oferecer a seus três filhos, a oportuni-dade de estudar.

Em uma casa de palha, com mais 14 irmãos, numa cidadezinha do Maranhão, moravasua mãe. Chegou a cursar até a quarta série e apenas dois de seus irmãos conseguiram, coma ajuda de parentes, concluir o 2° grau. Quando criança vendia cocada de casa em casa, paraajudar no orçamento doméstico. Mais tarde na função de manicure conseguia dinheiro paraa despesa de seus três filhos.

O pai de Gisely começou a trabalhar na roça ainda menino. Alguns amigos da família,percebendo seu esforço e honestidade, ofereceram um emprego na cidade e a partir desse,vieram outros melhores, até que conseguiu uma vaga no Banco do Estado de Goiás (BEG).

A esperança de oferecer melhores condições de estudo aos filhos,motivou seus pais a migrarem do interior do Tocantins paraGoiânia. As críticas ao sotaque nortista eram praticamenteinevitáveis na pré-escola, mas isso era apenas uma das dificuldadesvividas pelas crianças nessa nova cidade. O frio que passaramnaquela época, na ida para a escolinha às seis horas da manhã, foiuma coisa inesquecível. Ainda necessitavam tomar dois ônibus,sempre cheios, num trajeto longo e desgastante até chegar à escola.

O sistema de meritocracia já se fazia presente em seu novo colégio. Constava noboletim de cada aluno da quarta série sua colocação perante os outros colegas, baseada nasnotas que obtinham. A frase ’’Este é um aluno nota dez” era comum naquela escola, e traziaa idéia que sua nota significava seu próprio valor. Foram as boas notas que isentaram Giselydas “advertências” por jogar água do vaso sanitário nos colegas, entre outras traquinagensque cometia.

Com a mudança de colégio, uma outra realidade se mostrou aos seus olhos. Os colegasdo colégio anterior, disputavam quem possuía a mochila mais bonita e a roupa mais cara. Oscolegas desse novo colégio, brigavam para levar a merenda escolar que sobrava, para a casa.Alguns se sentiam constrangidos em dizer onde moravam. A violência era algo bastantepresente. Confronto entre gangues, ameaças e brigas, até mesmo entre as meninas, eram

Inegável luta

* Graduanda em Enfermagem pela UFG.

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comuns em frente ao colégio. A polícia muitas vezes necessitava intervir.Conviveu com a falta de professores, com as constantes greves e com a desmotivação

de alguns alunos, o que, por conseguinte, gerava descontentamento dos professores. Tudoisso, causava uma grande dificuldade de transformar aquele ambiente em um lugar favorá-vel à educação.

A aprovação no Centro Federal de Educação Tecnológico de Goiás (CEFET) no ano2000 significou liberdade, oportunidade de crescimento pessoal e melhor qualidade deensino. No entanto, o maior legado desse período, foi sem dúvida, seus amigos (tão amados)dos quais ela jamais esquecerá, e lutará para nunca perder o contato. Eles foram alguns dosresponsáveis por fazer dessa época a melhor de sua vida.

Uma gastrite nervosa foi o resultado da ansiedade causada pelo vestibular e, pelosinúmeros compromissos: curso pré-vestibular, curso de inglês e curso técnico de meio am-biente à noite. As infecções de garganta e as viroses eram freqüentes em conseqüência doestresse. A rotina de acordar às 5 horas e enfrentar dois ônibus lotados até chegar ao cursi-nho, também contribuíram para isso. Os médicos se transformaram em conselheiros: “Secontinuar assim, não conseguirá passar no vestibular”.

Contrariando algumas expectativas, não por falta de estudo mas pelo estresse, Giselyconseguiu ser aprovada para o curso de enfermagem. A princípio se assustou com a exces-siva cobrança dos professores em “ser o melhor” e com intensa rivalidade entre as colegasde classe. E esse continua sendo um dos motivos do desconforto que sente ali. Observouque a maioria de suas colegas são de classe média, o que reflete a realidade do acesso auniversidade em nosso país, onde os mais pobres dificilmente conseguem chegar a univer-sidade.

O Conexões de Saberes representou para ela uma fonte valiosa de aprendizagem, queprovavelmente não teria em outro espaço da universidade. Além de a bolsa possibilitar acompra de livros indispensáveis a seu curso e o acesso à Internet.

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30 Caminhadas de universitários de origem popular

Maria Madalena de Oliveira e Sousa*

Meu nome é Maria Madalena de Oliveira e Sousa, estou no 7º período do curso deEducação Musical – Ensino Musical Escolar da Escola de Música e Artes Cênicas da Uni-versidade Federal de Goiás, onde cheguei no ano de 2004.

Sempre gostei muito de estudar. Desde pequena adorava brincar de escolinha e minhaparceira de brincadeiras e melhor amiga foi minha mãe, Dona Izaura Evangelista Tolêdo.Sempre me lembro de meus pais, e sinto uma enorme saudade; sou agradecida a eles porterem me dado a chance de viver e ser feliz a partir de meus três meses de idade quando meescolheram para ser sua filha. Meu pai, Sr. Sebastião Lázaro de Oliveira, era jardineiro efuncionário público; trabalhava como zelador em colégios da rede estadual de ensino. Eleme ensinou coisas sobre as plantas e a terra, e também a ler e a escrever. Com os dois aprendivalores como amor, respeito e honestidade.

Minha relação com a música é muito forte. Me lembro de aos 3 anos ter ouvido umamúsica dos Beatles e me sentir triste com aquela melodia. Nunca me esqueci daquelaemoção que até hoje, depois de adulta, ainda sinto ao ouvir “Hey Jude”. E para cadasituação tenho uma música a ser associada, por exemplo: o nome de meu filho Daniel,escolhido quando ouvi a música de mesmo nome, do cantor Elton John. Eu tinha mais oumenos 8 anos.

Quando iniciei meus estudos pela primeira vez, foi um fracasso. Não conseguia ficarlonge de minha mãe, me sentia muito insegura. A escola era enorme e todas aquelas criançasassustadas, ou chorando, ou correndo pelo pátio, me deixavam com medo. A professora,uma ilustre desconhecida e insensível. Não fiquei nenhum dia pois pulei o muro e volteicorrendo e chorando para casa. Estava com 7 anos. Meus pais só me colocaram na escolanovamente quando completei 10 anos e a partir daí não parei.

Sempre fui o orgulho de meus pais, só tirava boas notas e nunca reprovei. Acho que aúnica coisa que nunca tive nesta época foi a oportunidade de participar da banda de música,porque era preciso pagar pelo uniforme e meus pais não tinham dinheiro, e eu nem sequercheguei a comentar nada lá em casa para não deixá-los constrangidos ou obrigados a maisuma dívida.

Bom, quando estava no ensino médio, conheci minha alma gêmea. Namoramos enoivamos em dois anos, e assim terminamos o terceiro ano Técnico em Contabilidade.Casamos. Ainda não entendo porque fiz este curso que nunca me serviu pra nada. Acho queé porque gostava de matemática. Mas não tinha nada a ver comigo.

“Minha história”

* Graduanda em Educação Musical pela UFG.

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Eu sonhava com música, respirava música. Não tinha idéia de como conseguiria che-gar a faculdade porque não podíamos pagar um curso específico de música e não haviaescolas do gênero na rede pública. Então, deixei de lado meu sonho e me contentei em fazerum curso básico de violão oferecido pelo SESI por 3 meses, pagando uma pequena taxamensal. Estava com meus 20 anos. Segui minha vida normalmente. Chegaram os filhos:Ana Luiza, Daniel, Lucas e Estêvão. Com a ajuda de meu marido e de meus pais conseguiaconciliar o tempo entre eles e o trabalho na Secretaria de Ação Social do Estado de Goiás.Em 1994, minha mãe faleceu devido a um enfisema pulmonar. Aí então tudo se tornou meiosem graça. Éramos muito ligadas e tive muita dificuldade em aceitar esta situação.

Em 1996, Euvaldo, meu marido, me falou sobre um coral no SESC da rua 19, e queestavam aceitando novos coristas. Entrei. Reiniciava assim meu sonho de me tornar umamusicista. Algum tempo depois consegui passar em um teste do Centro Livre de Artes,órgão da Prefeitura Municipal de Goiânia, para fazer musicalização e violão. Neste períodotive mais uma grande perda em minha vida, meu pai. E pelo mesmo problema que minhamãe: enfisema pulmonar. Desta vez fiquei mal. Senti que realmente não conseguiria superarisso. Meus pais eram muito importantes para mim e eu não sabia como seria dali pra frente.Mas lá estava Euvaldo pra me ajudar a superar mais esta fase ruim.

Passados 3 anos, tempo de conclusão do curso de musicalização, resolvi apostar atéonde iria chegar e entrei para o curso preparatório do Centro Livre de Artes para o teste denível, específico para o vestibular de música da UFG. Apesar de ter ficado afastada da escolahá mais ou menos 18 anos (terminei meu 2º grau no ano de 1984), resolvi fazer minhainscrição para o teste e para o vestibular. Estava muito incrédula quanto a minha capacida-de e nem me dei ao trabalho de conferir o resultado. Meu professor de violão, RandalCordeiro, foi quem me ligou parabenizando pelo meu êxito. Fui uma das 6 alunas do CentroLivre de Artes que conseguiu passar no teste da Escola de Música da UFG. O restante dovestibular nem me interessava mais pois nem havia me preparado. Mas, para minha grandesurpresa, passei na primeira e na segunda fase das provas que me habilitariam para o cursode Educação Musical – Ensino Musical Escolar, da Escola de Música e Artes Cênicas daUniversidade Federal de Goiás.

Entretanto, me manter no curso estava se tornando mais difícil do que todo o processode ingresso na EMAC. Primeiro, conciliar trabalho e estudo. Trabalhava nesta época naFundação de Apoio à Pesquisa – FUNAPE, como digitadora, e minha superior imediata nãoteve a menor sensibilidade quanto a minha situação. Por dois dias na semana tinha aulas emum pedaço do período vespertino e chegava atrasada consequentemente. Não teve conver-sa, ela foi taxativa: ou o emprego ou a faculdade. Com as despesas com xerox, transporte ealimentação, eu desempregada por ousar querer adquirir um conhecimento tão sonhado eainda sendo menos um a contribuir com o orçamento da família, pensei: o sonho acabou,tenho que desistir do curso.

Mas alguém lá em cima estava olhando por mim. Uma de minhas professoras, SilvanaRodrigues, me avisou sobre as inscrições para um novo programa de extensão denominadoConexões de Saberes, destinado a estudantes de baixa renda e oriundos de escolas públicas,de origem popular. Foi uma correria porque já era o último dia de inscrição e eu morodistante da faculdade, não estava com nenhum documento a não ser a identidade. Mas deutudo certo, fui contemplada e estou aqui, no último ano do meu curso e simultaneamente,com mais 27 amigos com quem posso compartilhar minhas experiências, minhas frustra-

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ções, minhas expectativas. Sem medo de me sentir diferente devido a minha cor ou a minhacondição financeira.

“...e nossa história não estará pelo avesso assim, sem final feliz.Teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver, temosmuito ainda por fazer. Não olhe pra trás – apenas começamos, omundo começa agora – apenas começamos.” Legião Urbana

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Meus avós maternos criaram todos os seis filhos na roça, no cabo da enxada. Uma vidapequena. Preciosa mas pequena. Minha mãe, graças à minha avó, terminou o magistério e seformou professora, profissão que exerceu até recentemente se aposentar. Meu pai, filho depaulistas, veio pra Goiás para trabalhar com meu tio, seu irmão mais velho, que era torneiromecânico. Estudou só até a 4ª (quarta) série primária, aprendeu a profissão do irmão evenceu na vida pelo trabalho.

Com o tempo meu pai conseguiu ter sua própria oficina, e foi nessa época que nósnos mudamos de Itapuranga-GO, onde nasci, a aproximadamente 180 km da capital, paraItapaci-GO, cidade ao norte do estado, onde meus pais, na época recém casados, foramtentar a vida. Moramos lá mais de vinte anos, onde eu fiz todo meu primeiro grau, e ondeestão os melhores momentos da minha infância e adolescência.

Assim que terminei a oitava série, eu era um garoto provinciano, filho de uma profes-sora e um pai visionário, que saía do interior para a cidade grande, em busca do direito desonhar os seus sonhos e o de toda sua família que não cabia dentro de si.

Fui pra Anápolis-GO morar com meus padrinhos e estudar em um colégio que meoferecesse condições de ingressar em uma Universidade, sonho dos meus pais, que nãotiveram essa oportunidade, e que desde cedo eu compreendi que a única forma de conseguirrealizá-lo era ser aprovado em uma Universidade Pública, uma vez que não teriam condi-ções jamais de arcar com as despesas de uma Universidade particular pra me formar.

Sempre esteve muito claro tudo isso pra mim, e foi o que me fez estudar como umlouco os três anos do colegial que passei no Colégio Estadual Frei João Batista, em Anápolis,que embora fosse público, oferecia um ensino de qualidade, e tive a oportunidade de estarperto de pessoas de origem semelhante à minha, que comungavam comigo dos mesmosideais, e viam a vida da mesma janela que eu.

Conhecer pessoas que movem o mundo, promovem o amor, e nos ajudam a superarnossos dramas e demônios, faz toda diferença, e não posso deixar de registrar que depois deconviver intensamente com cada uma delas, algumas in memoriam, elas têm uma influênciaimensurável na pessoa em que me tornei. Pessoas fortes e sensíveis que nunca deixaram quea pobreza e a miséria espiritual fossem maiores que a material.

Com o término do segundo grau, e a frustração do primeiro vestibular, veio a maratonaangustiante de cursinho, e posso dizer que foi o período da minha vida em que mais melembrei de Deus e de como Ele move todas as coisas dentro e fora de nós. Hoje me lembrocom carinho e gratidão daquele tempo, mas com saudades hipócritas, porque me sentia

Em busca do direito de sonharAdalberto Luiz Matias Júnior*

* Graduando em Direito pela UFG.

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solitário, de coração, muitas vezes, partido, procurando um caminho pra seguir, uma dire-ção, diante daquele cadáver que me sorria debochado, o vestibular.

Minha família sempre acreditou na educação como meio de transformação do univer-so ao nosso redor. E filho de professora, eu acabava estudando um pouco mais. Hoje vejocomo essa pedagogia foi imprescindível para que eu conseguisse romper esse ciclo deexclusão e ser o primeiro da minha família a vir a ser um “doutorzinho”, como meu paisempre brincava, num orgulho que saltava aos olhos do “velho”.

Não tive escolha, meus pais e eu sempre tivemos certeza para qual curso eu estava mepreparando, e agradeço a eles por não terem me dado outra opção, embora só mais tarde eutenha me dado conta de que a escolha de um curso como o de Direito, para um garoto pobrecomo eu, faria tudo ser muito mais difícil.

Ao todo foram quatro anos de privações e muito estudo, contando o colegial e o períodode cursinho, muitos conselhos, e muito apoio dos meus pais e padrinhos, sem os quais eu nãoteria conseguido, e para os quais faço da minha trajetória uma dedicação diária.

No início do segundo ano de faculdade uma série de acontecimentos abalou minhafamília. Nas vésperas de comemorar bodas de prata meus “velhos” se separaram e logo depoismeu pai veio, inesperadamente, a falecer, de uma forma que arrasou a todos nós.

Dias difíceis, que fizeram com que minha mãe e meu irmão viessem para Anápolis,para ficarem mais perto da minha madrinha, uma fada nas nossas vidas, e de mim, na vãtentativa de preencher aquele vazio que meu pai tinha nos deixado de repente. Minha mãepassou por um longo processo até se recuperar da perda, e foi na Faculdade de Direito queeu encontrei mais do que colegas de profissão, encontrei amigos.

O Direito me pariu de novo. É o meu segundo pai. Ensinou-me que a dignidade dapessoa humana, é o princípio basilar. Que Direitos Humanos somos nós que promovemos,cada um dentro do seu microcosmos. Disciplinou-me. Ensinou-me a colocar o respeitoacima dos meus preconceitos, e a entender que aquele que eu vejo diferente, diferentetambém ele me vê.

Uma das belas lembranças que trago na memória é a da minha mãe lendo a bíblia pramim. E foi aí que aprendi o que era o Socialismo e despertei para a vontade de fazerDireito e para a questão da Justiça Social. Compreendi que para mudar o sistema é neces-sário fazer parte dele, estar no centro do processo, e não à sua margem. Só assim é possívelacreditar que “amanhã, mesmo que uns não queiram a luminosidade, alheia a qualquervontade, há de imperar...”.

Tenho consciência de que estou em um curso historicamente elitizado, e do meupapel nele. Sei da minha origem e das dificuldades que pessoas como eu passam paraconseguirem um lugar ao sol. Pra mim não foi nada fácil chegar até aqui.

Na faculdade me sinto apoiado, e poucos são aqueles que tentam me fazer sentir comose ali não fosse o meu lugar, porque na visão deles o Direito é um instrumento de dominaçãodas elites. A justificativa para essas pessoas é a de que o mal, assim como o bem, também sepropaga. É o que dá equilíbrio à vida. Embora elas sejam exceções.

A educação que eu recebi dos meus pais e a oportunidade que eles me deram depoder estudar e ingressar em uma Universidade Pública me dignifica muito, e fortalece aidéia de que só a educação pode nos levar à lugares inimagináveis.

“Encare seus medos e viva seus sonhos...”

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José Gomes Vasconcelos Neto*

Batedeira ligada. Vinte quilos de farinha, um tanto de açúcar, um pouco menos de sal,adicionar água e deixar misturando por cerca de trinta minutos. Enquanto isso pese ofermento e espere a massa dar liga para acrescentá-lo.

Não pare, separe as estufas e fôrmas melhores, passe óleo vegetal na mesa e prepare abalança. Com a massa pronta, retire o grande bolo da batedeira, separe em unidades de 5 kg,distribua cada unidade separadamente até preencher por igual a superfície de um maquináriode fatiar. O resultado são trinta pedaços menores.

Vejo minha mãe com uma faca de corte na mão, junto à balança no preparo das bolasde massa com cinco quilos. Marcella, minha irmã, está sentada em um tamborete a esperadesta etapa do serviço, preocupada com alguma coisa que possa aparecer, olha para o alto,sempre no rumo da janela daquela cozinha de padaria. A televisão está ligada, na ânsia peloúltimo jornal do dia e sem poder visualizá-la.

Com a massa reduzida em centenas de pedacinhos do mesmo tamanho, estique amassa e deixe uma das pontas mais finas. Um cilindro duplo era o que produzia os pães crusenrolados em si próprios. Depois de distribuídos nas formas, fechar a estufa e esperar ofermento fazer a massa crescer. O pão francês leva de 3 a 4 horas para inchar e ficar no pontocerto de assar.

Minha irmã, com onze anos, é quem encaixa os pães na fôrma. Faz o serviço em cimado tamborete em que há pouco estava sentada. Não porque seja pequena e tente ficar dotamanho da máquina. O motivo são os ratos. Ratos grandes e esfomeados que sempre davamo ar da graça nas sessões de trabalho na noite de Goiânia. Minha mainha, Léa, termina depreparar a massa doce e vem ajudar a preencher as fôrmas. Ouvia-se o noticiário juntamentecom o ruído das máquinas.

O expediente da noite na padaria começava mais ou menos 23:00 e para mim acabavalá pelas 4:00 da madrugada. A Marcella se deitava umas 2:00. Já minha mãe virava a noite,para deixar tudo pronto até a abertura das portas às 5:30m da manhã.

Com o pão de sal pronto para crescer em paz e a massa das quitandas quase prontaspara o manuseio, partimos para a etapa mais divertida do trabalho. Fazer roscas trançadas,compridas, redondas, pequenas, médias, grandes, pães de fôrma, bolinhas de pães de milho,roscas com frutas cristalizadas e outros.

Desta vez o peso da massa era irregular. Se vendíamos uma rosca por quinze centavosde real era um peso. Massas maiores, menores, de 200 gramas, 2 kg todas com diferentes

Panificadora Santo Cristo

* Graduando em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG.

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finalidades. Era divertido manusear e desenhar aqueles alimentos. Mas sinceramente, esteera um curto espaço de tempo.

Tudo devidamente preparado, misturo a massa de pão de queijo e deito na camaimprovisada ao lado de minha irmã. Quando minha mãe nos chama, algumas fornalhas jáestão assadas. Tudo ajeitado e com a padaria aberta, deixo minha família e vou para casatomar banho. Tinha 13 anos e não estudava em escola pública. A minha mãe, Dona Léa,pagava caro para eu estudar em colégio particular. Quando a situação apertava e eu cogitavasair do Colégio Adventista, não aceitava ouvir duas vezes.

O nome, Panificadora Santo Cristo, veio de quando morávamos em Leopoldo deBulhões-GO, com o mesmo ramo de comércio. Meus pais vieram de Pernambuco com meustios mais ou menos na década de 1980. No interior de Goiás, tive uma vida sossegada e feliz.Nosso carro era uma Kombi para transporte de mercadorias, mas nossos passeios eram con-fraternizados sempre com muitas pessoas que eram boas demais.

Quando Fernando Henrique Cardoso se tornou presidente do Brasil o comércio semodificou e vendas especializadas perderam espaço. O que antes era mercadinho ou super-mercado foi adotado pelos hipermercados. Passaram a produzir pães de sal e aumentar aconcorrência. Atravessamos momentos difíceis que culminaram na separação de meus pais.Com isso, no final de 1996 e sem meu pai, mudamos para o Jardim Guanabara, em Goiânia.

Alugamos uma casa que de bicicleta demorava uns 20 minutos da padaria. Cada umtinha a sua e nossas idas em casa eram mínimas, só para dormir mesmo. Minha casa era pertode um batalhão do Exército e todos os dias de manhã eu passava na frente dele. Trocas deturno na guarita, exercícios e corrida em volta do campo de futebol, recepções com bandamarcial e muitos jovens chegando de ônibus coletivo. Depois pegava uma rua de terra epassava do lado de uma das cabeceiras da pista do Aeroporto Santa Genoveva.

Ao final das aulas matutinas, voltava para a panificadora, almoçava, e só então libera-va minha mãe para o descanso. Minha irmã podia ir para a aula e eu ficava no estabeleci-mento com as portas abertas até as 21 horas. Preparado para fechar a panificadora, permane-cia à espera do padeiro, para ele trabalhar. Segunda-feira, quase meia-noite, nem acredito opadeiro não vem de novo. Minha família volta, guardo as bicicletas, fecho a última porta, epenso em mais uma noite em claro. Não quero nem saber, aula amanhã nem pensar.

Trabalho, estudo, trabalhoNeste colégio, o Colégio Adventista, convivi com um grupo social e religioso que nunca

tinha tido muita proximidade: os evangélicos adventistas. Os adventistas têm toda uma particu-laridade que os diferenciam dentro do segmento protestante. Não comem carne animal, a basedo nome adventista (advento) é a volta de Jesus e acreditam que o sábado é o dia da semanacriado por Deus para descanso e adoração, e assim não fazem nada neste dia a não ser orar.

Foi uma época boa, mas de religião não aprendi nada. O que aprendi tem a ver com oconvívio social. Enquanto que as idéias bíblicas não me seduziam, a união, participação ecompanheirismo que ali havia me deixavam protegido e adaptado. Sempre sentei no fundoda classe e me relacionava com todos do colégio. Era uma turma em que a maioria estavajunta desde o ano anterior e que menos da metade era adventista.

Enquanto não dava atenção para matemática e física, adorava ler os livros de geo-grafia e história. Houve uma época em que três alunos (contando comigo) começaram a sejuntar no recreio para cantar. Pegávamos o balde de lixo, que era improvisado como

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batuque, e cantávamos de tudo. Logo vários outros alunos apareciam, muitos de outras salas.Sei que aquilo nunca tinha acontecido naquele colégio, foi algo inesperado e que quebrou arotina dos intervalos de aula. Ficamos mais de um ano fazendo isso e a direção nunca conse-guiu reclamar, pois era uma reunião saudável e divertida que nunca deu problema.

Lembro-me que dentre os funcionários do colégio havia dois deficientes físicos, que-ridos por todos e quem eram importantes para o funcionamento da escola. Tínhamos aulasde religião e toda quinta os alunos eram reunidos, num auditório, para ouvir sobre fé e oevangelho. O colégio era grande e simples, tinha suas regras educacionais religiosas, duasquadras e vista bonita, que dava pra ver lá longe.

Mesmo estudando neste colégio particular, meus amigos eram de uma realidade muitomais dura. Minha convivência pessoal era maior e mais forte no bairro em que morava.Então transitava em vivências diferentes. Daquela de estudantes que viviam para estudar,com almoço pronto e cama arrumada. E aqueles que estudavam com o estímulo oferecidopelo ensino público de nosso país.

Saía pela noite do bairro indo aos colégios públicos para encontrar os amigos e,muitas vezes, chegava na hora errada, porque a aula tinha acabado mais cedo, geralmentepor falta de professor. Outras vezes ficava mais fácil de encontrar a galera, pois as aulasestavam paralisadas por causa de greve. Onde eu estudava isso não acontecia. Outro episó-dio bastante comum era o abandono dos estudos. Era muito difícil algum amigo meu queterminasse um ano letivo. Fora que a maior parte já estava uns dois três anos atrasados.

Enquanto no Colégio Adventista a tarde dos meus colegas era ocupada com algumaatividade, no meu setor a maioria não tinha ofício. Poucos trabalhavam regularmente. Pas-savam as tardes em frente do ginásio de esporte a conversar, tirar saltos, pegar rabeira naavenida, e procurar o que fazer. E eu sempre estava na panificadora, era só ir lá. Todos ostrabalhos de colégio eram interrompidos por algum freguês.

O dia-a-dia neste período de minha vida era de pouca diversão. Mas conheci umgrande número de pessoas e fiz amizades inesquecíveis. O que vivi neste período faz partedo que sou hoje. Valores humanos, olhar a pessoa por dentro, no fundo dos olhos, semobservar vestuário e modos.

Na padaria da minha mãe, onde trabalhava de dia e a noite, mantinha contato com osoutros comerciantes e neste convívio os laços se tornam fraternos. O dono do pregão, ochaveiro e seus filhos, a mecânica, do conserto de bicicletas, da lanchonete concorrente, osfuncionários da loteria, enfim, todos trocavam experiências e vivências.

Nas minhas horas de lazer adorava procurar rádios alternativas que na época aindaeram chamadas de piratas. Conheci o termo rádios comunitárias a partir de um locutordessas rádios. Mas meu maior desejo era não ter que abrir aquela panificadora todos os dias.Eu sempre estava ligado a saldos, gastos, dívidas e tudo era muita responsabilidade eseriedade e não queria arcar com essas atitudes.

Família, vida nova e o EncontroQuando passei para o Segundo ano do Ensino Médio, minha mãe perdeu o comércio

e ficamos a ver navios. Mas uma tia nos ajudou, ofereceu uma bolsa de estudos e pagou osdois anos finais do Ensino Médio. Saímos do Jardim Guanabara e fomos morar no ParqueAmazônia onde vivemos até hoje. Este foi um momento muito delicado de minha vidafamiliar, pois minha mãe entrou numa crise depressiva muito forte.

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Uma mulher, chefe de família, trabalhadora que agora ficava o dia inteiro dentro decasa por ser considerada velha (na época 42 anos) para o mercado de trabalho. Era umamudança brusca no rumo de sua vida. Foi duro, mas não menos enriquecedor. Não tinhavergonha de andar a pé, ganhar cesta de alimentos, receber livros de donativo, cortar cabeloem casa e ser presenteado com roupas usadas. Fazia disso minha força e o bom é queganhava muita roupa.

Mais uma vez parei em um colégio particular. Desta vez o nível de vida dos meuscolegas de sala era muito mais alto. Estudava próximo ao Parque Vaca Brava no ColégioCampus. Na época, celular era para poucos e na minha turma grande parte o tinha. Computa-dor, nem imaginava o que era, e uma parte já se deliciava com os bate-papos on-line. Nuncative problemas de convivência, era o que era e não me preocupava com essas diferenças.

Foi quando conheci minha esposa. Estudávamos juntos e começamos a namorar deimediato. Fernanda, meu bem, que sempre cuidou de mim com aquele olhar apaixonado.Quando passei a viver com a Fernanda tinha aonde ir, com quem ficar, abraçar, sorrir. Elatrouxe alegria para minha casa, minha mãe gostou e gosta muito dela. Acho que até mais doque de mim. Não tenho ciúmes não, na verdade eu gosto de vê-la na minha família.

No terceiro ano, tinha dúvidas do curso que escolheria, só decidi no dia de preenchera inscrição, mas tinha certeza da instituição que tentaria estudar: a Universidade Pública.

Para chegar à Universidade Federal de Goiás tentei três vestibulares e nunca presteiem universidade particular. Sabia que não tinha condições de pagar um curso superior. Eraquestão de honra passar na UFG.

Após a primeira tentativa não coroada, arrumei um emprego de carteira assinada queme levou a fazer cursinho noturno. Foi muito bom, pois trabalhei e estudei no Centro deGoiânia e convivi com uma rotatividade muito maior e variada de pessoas. Trabalhava naRoma Embalagens, próximo ao antigo Mercado Central de Goiânia.

Por mais que as pessoas me desanimassem, eu sabia que estaria na UFG. Tinha que serassim. Nesta fase me apeguei mais na leitura e afinei meu gosto por geopolítica. No serviço,ouvia uma rádio que discutia política a manhã inteira. Passei a ler os livros literários comgosto, não por obrigação.

No meu segundo vestibular, após a primeira fase, estava pronto, era desta vez, iria serum universitário. A prova escrita parecia feita a dedo para mim. Tudo relacionado a confli-tos étnicos. Oriente Médio, Farc, ETA, IRA, ex - Iugoslávia, etc.

Fiquei tão empolgado com a prova, que nem lia o final das perguntas, já ia escreven-do. De repente o desastre, troquei várias questões de lugar. Fiz uma bagunça total e dancei.Isso me abalou muito e pensei em desistir. Fiquei sem estudar e não cogitava mais fazer umcurso superior. Foi no mesmo ano em que me alistei no Exército.

No dia de me apresentar aos militares, deixei que Deus“resolvesse”. Esperei até o final para ver os nomes escolhidos, atépensei em conversar para ser voluntário, mas um cara fez isso antesde mim, levou um carão e então fui embora sem nenhuma certezafutura.

Mas depois de seis meses de indecisões e pressão de mãe e namorada, saí do emprego,entrei num cursinho novamente e estudei muito. Passava horas em biblioteca pública,

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deixava de almoçar, aprendi a ler dentro de ônibus e com o seguro desemprego fiz assinatu-ra de uma revista mensal, a Caros Amigos. No fim deu certo e me tornei acadêmico deComunicação Social em 2003. Era uma felicidade total.

A transformação que a universidade provoca é sem precedentes. A liberdade de ativi-dades é muito maior. Com muito custo te faz adulto, pensar no futuro com força e determi-nação. Em conseqüência, muda muito de sua inocência e humildade. Tira certo prazer deviver. Te deixa mais frio, ruim, chato e individual. É preciso ter consciência e percepçãodesses pontos negativos, e notei estas mudanças em mim.

No início você se empolga, as dificuldades financeiras ficam esquecidas e o aprendi-zado recompensa o esforço. Mas com o tempo as exigências e independência pesam o quenão era mundo real se junta e faz seus anseios e necessidades serem presentes.

Depois de dois anos de total descrença profissional, fui selecionado para o Conexõesde Saberes de Goiás, que me trouxe mais consciência de minha responsabilidade comocidadão. Pude colocar meu conhecimento em xeque e ver que tenho importância para avida.

No meu grupo de bolsistas antes de tudo procuro, como sempre foi em toda minhavida, me relacionar com todos. Nas reuniões procuro sempre estar participando das discus-sões e incentivando os outros a estarem também emitindo idéias. O jornalismo passa hojepor um momento obscuro e transformador.

O Conexões faz parte desta mudança, pois posso exercitar o que acredito e desenvolvocomo idéia de comunicação social. Trabalho com a interação na internet por meio de e-mails e um blog, além de incentivar a atividade em grupo ao fazer as cabeças pensantescolocarem em prática o que pensam. Outro ponto em que ação é o registro por imagem epalavras de nossos encontros. Tudo o que vivo e faço no PCS-Goiás já está nos meus planosde exercício em sociedade.

Procuro escutar, com novo prazer, as pessoas que encontro no cotidiano. Saber o quepensam, como vêem o mundo, a vida e suas problemáticas. Dizem que a revolução nos diasde hoje é individual. O Conexões de Saberes mostra para mim que não. A união ainda faz aforça. E nós unidos, confiantes, acreditando nas mudanças, podemos trazer para as geraçõesfuturas uma Universidade e coletividade mais democrática, afirmativa e popular.

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EM ALGUM LUGARNO CAMINHO,UM SONHOME FEZ ANDAR

Parte 2

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Letícia Alves Domingos*

Minha mãe sempre me dizia que eu não deveria sonhar alto, pois se o meu sonho nãose realizasse, meu tombo seria muito grande. O problema é que eu sempre gostei de sonhare nunca tive medo de cair...

Desde julho do ano de 2006, por meio do Programa Conexões de Saberes, começo arepensar alguns fatos que marcaram a minha história escolar, a precariedade da escola públi-ca, a quase inacessibilidade da Universidade pública e, sobretudo, a dificuldade de perma-nência após o ingresso nessas instituições. Tais fatos infelizmente não fizeram parte somen-te da minha história vida, mas de diversos alunos de origem popular como eu.

Sou Letícia Alves Domingos, hoje estudante universitária negra e de origem popular,componho juntamente com outras 24 pessoas o quadro de bolsistas no referido programa naUniversidade Federal de Goiás. Filha de um casal que formou suas famílias ainda muitojovens, ele 16 e ela 15 anos, mas que construíram juntos uma história de luta e determina-ção. Minha mãe, Lusia Alves Ferreira, cursou até a sexta série do primeiro grau e é emprega-da doméstica, enquanto meu pai, Eliomar Antônio Domingos, fez até a sétima série e étrabalhador rural.

Meus pais apesar de não terem um alto nível de escolaridade sempre proporcionarama mim e às minhas duas irmãs Eliene e Luciene o acesso a escola. Ensinaram-nos a importân-cia de coisas que realmente são importantes na vida, o respeito aos seres humanos, aosoutros seres vivos e ao meio ambiente, a solidariedade, a união e a divisão. Sempre nosmostraram o melhor caminho a seguir e dentre esses, o que nos conduziria a uma vida maisdigna e que nos ofereceria maiores opções, a educação. Além disso, fizeram de tudo paraque não nos faltassem os principais elementos de auxílio nessa caminhada: lápis, borracha,caderno, livros e, quando podiam, uma mochila.

Tive também uma enorme influência religiosa na minha história, fui católica até ostreze anos, pois era a religião da minha família. Fiz até catequese e primeira comunhão. Aostreze anos conheci, por intermédio de uma vizinha, uma igreja protestante, que passei afreqüentar a partir daí. Meus pais sempre respeitaram as nossas escolhas e não fizeramobjeção à minha mudança de religião.

Considero a presença da Igreja importante no que concerne a perda de timidez, socia-bilidade, solidariedade. Desempenhava atividades com comunidades populares e traba-lhos com crianças. Em relação a questões que perpassam a religião e entram no campo

Uma história de sonhos, tombos e vitórias

* Graduanda em Ciências Biológicas pela UFG.

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individual de fé, acredito que Deus teve um lugar importantíssimo na minha motivação. Foipreciso muita esperança, diante de alguns empecilhos, para que eu pudesse continuar estu-dando e ingressar numa Universidade pública.

A minha infância foi marcada pela vida na zona rural, o que me traz ótimas recorda-ções. O acordar bem cedinho e buscar o leite no curral, brincar com minhas irmãs e primasno quintal e nos brejos perto de casa, subir nas árvores, tomar banho no córrego e outrasaventuras. Algumas pessoas são indissociáveis desse período: minha avó materna, que atéa sua passagem sempre morou conosco, meus avós paternos, onde passávamos os finais desemana. Lembro-me com muita saudade daquele rancho de madeira coberto com palhaonde moravam, dormíamos sempre ao som das vocalizações dos anfíbios e acordávamoscom o canto dos pássaros.

Aprendi a ler e escrever com aquela que também me ensinou a comer, andar, falar, minhaquerida mãe. Apesar de estar sempre ocupada cuidando dos afazeres domésticos, tratando dasgalinhas no quintal, dando atenção à minha avó que era doente, e a cinco crianças, aindaarrumava um tempo para me ensinar a ler e escrever. Fazia isso, pois eu já estava com sete anos,mas ainda não tinha condição de ser matriculada numa escola. Não havia transporte que melevasse para a cidade localizada a 11 quilômetros de onde morávamos.

Fui para a escola quando completei oito anos, mas nunca tive dificuldades em relaçãoà aprendizagem. Enquanto meus colegas começavam a desenhar as primeiras letras, eu já asconhecia e com elas formava palavras. Por esse motivo, iniciei meus estudos na primeirasérie. Nesse período, eu e minha prima Patrícia acordávamos às 4h 30min da manhã, íamosacompanhadas pelo meu pai esperar a Kombi e que nos levaria até a escola. Estudava emSão João da Paraúna-GO no Colégio Estadual Cônego Trindade, e aí permaneci até a quartasérie. No entanto, a partir da segunda série estudávamos no período vespertino. Não havianesse período um transporte único que nos conduzisse à escola. Eram os mais variados:carros dos pais de alunos que moravam em fazendas vizinhas, ônibus, Kombi, caminhãobasculante e até ambulância.

Na quinta série, fui morar com uma tia em Paraúna-GO para continuar os estudos, poisnão havia tal série no período em que o transporte nos buscava para a escola em São João.Estudava no Colégio Estadual Otaviano de Moraes e lá permaneci até a oitava série inin-terruptamente. Entretanto nesse intervalo de quatro anos muita coisa importante aconteceuna minha vida, perdi meu avô paterno, minha avó materna, meus pais se mudaram algumasvezes de fazenda e eu tive o meu primeiro emprego, o qual merece detalhes.

Morei e trabalhei na casa de uma senhora em Paraúna, tinha quatorze anos, faziasétima série. Dona Jozefa era uma pessoa muito querida, de quem me lembro com carinho esaudade, pois hoje já não mais está entre nós. Eu desempenhava nessa casa todas as tarefasdomésticas e fazia companhia a ela que já era idosa e viúva havia muito tempo. Só visitavameus pais nos fins de semana, pois estes continuavam morando na fazenda. Em relação àescola nesse período, tive bom desempenho, estudava no período matutino e a escolalocalizava em frente a casa onde morava.

Meu segundo emprego ocorreu aos 16 anos já estava no primeiro ano do EnsinoMédio, trabalhei como caixa de um pequeno supermercado em Paraúna, nesse período tivecerta dificuldade na escola. O tempo que tinha para me dedicar às tarefas e estudar para asprovas era pouco. Sacrificava, portanto, as madrugadas e fins de semana. Mas não desisti,tinha um sonho que não seria interrompido pelo cansaço do trabalho.

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Quando estava no segundo ano do Ensino Médio tive a oportunidade de estudar naescola particular da cidade, o Colégio Juarez de Melo. Ele oferecia melhores oportunidadesuma vez que a realidade daquela escola onde estudava infelizmente era marcada pela faltade professores e insuficiência do conteúdo programado. Consegui uma bolsa de 50%, orestante pagava com o que tinha economizado como caixa, emprego que não poderia con-tinuar mantendo uma vez que nessa escola era predominantemente matutino comcomplementação à tarde.

Obviamente precisei da ajuda dos meus pais para pagar a mensalidade na nova escola.A mudança de escola foi extremamente importante para a concretização do meu sonho queaté ali era simplesmente estudar para ser “alguém na vida”. Nesse colégio eram concluídospraticamente todos os conteúdos programados para cada série. Além disso, foi lá que ouvisobre vestibulares e a possibilidade de estudar numa universidade pública. Aí sim meusonho deixou de ser simplesmente um sonho, havia possibilidade que agarrei com todas asforças fazendo o que é necessário para sua realização: estudando.

Estudei todo o segundo ano com a bolsa de 50%, entretanto, no terceiro ano nãotínhamos mais condições de manter com os gastos dessa escola. Estava decidida a voltarpara a dura realidade da escola pública. Descontentes com a minha saída da escola a direçãome contemplou com uma bolsa integral. O ano de 2002 foi de muito esforço e dedicaçãopara que, ao seu fim, eu pudesse fazer o tão falado vestibular. Na época das inscrições nãotinha dinheiro, então os professores da escola se juntaram cada doando o que podiam epude pagar a inscrição do vestibular na UFG.

Não posso retirar desse processo pessoas maravilhosas que entraram na minha vidaum casal maravilhoso Marcos e Sílvia. Eles foram as pessoas que deram muito mais que umempurrão para o meu ingresso na universidade, mostraram-me que eu realmente era capaz eme ajudaram no que foi preciso principalmente na motivação.

Fiz a prova e obtive sucesso apenas na primeira fase, na segunda foi uma decepçãototal, me senti extremamente incapaz. Praticamente não resolvi nenhum exercício de Quí-mica que era uma das específicas para o curso que escolhi Ciências Biológicas.

Em 2003, com a ajuda de amigos e dos meus familiares, me mudei para Aparecida deGoiânia-GO, onde poderia fazer um curso preparatório e assim realizar outro vestibular.Morei nesse ano com uma tia materna, a quem sou muito grata. Esse período não foi fácil,tinha algumas dificuldades para me deslocar naquela cidade grande, uma vez que sempremorara no interior, sem contar a violência e a saudade dos meus pais. Nunca me esqueci,uma semana antes do vestibular da UFG, tive minha carteira roubada no ônibus que melevava do colégio onde fazia cursinho para a casa onde morava. Fiquei desesperada, masGraças a Deus, jogaram-na com todos os documentos no ônibus então pude recuperá-la.

O vestibular de novo, o medo de mais uma reprovação me atormenta. Era inconcebí-vel a idéia de meus pais continuarem me mantendo em outra cidade para fazer um cursinho.Mas isso não aconteceu, dessa vez obtive sucesso tanto na primeira fase quanto na segunda.Passei com 19 anos para o curso de Ciências Biológicas na Universidade Federal de Goiás,motivo de muita alegria para mim e meus familiares. Nesse momento pensei que meu sonhorealmente se realizara.

Na universidade encontrei outras dificuldades. Como poderia permanecer num cursointegral sem trabalhar? Vi também que a universidade é pública, mas não é gratuita, existemtaxas, e os livros da área que escolhi são muito caros, comprar algum seria praticamente

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impossível, me formaria com xérox. E ainda tem o inglês que descobri que é fundamentalpara a conclusão desse curso e que infelizmente não tenho a base necessária.

Agora tenho uma bolsa no programa Conexões de saberes, e com ela, a ajuda dos meusqueridos pais e outras queridas pessoas vou me mantendo na Universidade. Até já compreidois livros, um usado, mas outro não, novinho: meu querido “Ridley”. Agora sonho com um“Raven” e outras coisinhas mais, me formar, fazer mestrado, doutorado...

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Kamyla Faria Maia*

Aos meus onze anos, depois de ter desistido de ser apresentadora de TV ou atriz,decidi que queria ser jornalista, ou melhor, correspondente internacional. Mas não bastavasó isso, eu queria me formar pela Universidade Federal de Brasília (UNB), que na época eraa melhor instituição nessa área.

Para uma criança os sonhos são sempre possíveis, basta crescer. Entretanto quandoeu cresci pude perceber que não era fácil chegar ao meu objetivo. Hoje estou lutando paraalcançar o meu sonho e já dei muitos passos em direção a ele, mas pelo meu caminhoexistiram e ainda existem barreiras que atrapalharam a caminhada. Mas sei que não estousozinha, pois vários são os componentes da orquestra da minha vida.

Mesmo antes da minha decisão eu já estava construindo minha história. Desdepequena gostava de estudar, me satisfazia com boas notas e com o primeiro lugar da classe,mesmo que o início da vida escolar tenha sido um pouco traumática. Primeiramente porqueeu não queria estudar, e depois porque minha primeira professora era um verdadeiro carras-co. Por sorte as outras professoras, em sua maioria, eram boas e me ensinaram muitas coisasimportantes ainda hoje.

Além delas também tive minha mãe como um auxílio, pois ela sempre olhava minhastarefas, conversava sobre as aulas e muitas vezes até corrigia as professoras. Sem esquecermeu irmão mais velho, que sempre foi muito inteligente, e me ensinava várias coisas, coisasque muitas vezes eram adiantadas para minha idade e eu nem conseguia entender.

A orquestra dos sonhos

“Não vou buscar a esperança na linha dohorizontenem saciar a sede do futuroda fonte do passado nada espero e tudo querosou quem toca, sou quem dança,quem na orquestra desafinaquem delira sem ter febresou o par e o parceirodas verdades à desconfiança” Gerson Conrad e Paulinho Mendonça

* Graduanda em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG.

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48 Caminhadas de universitários de origem popular

Primeiros instrumentos: família, escola, amigosNos primeiros anos escolares, entre 1991 e 1992, meus pais tiveram condições de

pagar escolas particulares e eu não tinha dificuldades para chegar até elas. Entretanto a vidafoi ficando mais difícil e a condição financeira do meu pai foi piorando. Mudamos para umbairro mais afastado do centro de Goiânia, mas ainda pude estudar em uma escola particularno meu bairro. Em um certo momento ficou difícil pagar a mensalidade de dois filhos eentão meu irmão e eu fomos para o ensino público.

Em 1996, fui para a Escola Municipal Leão de Ramos Caiado. Minha mãe ficoumuito preocupada, porque sempre via na televisão que o ensino público era ruim e que ascrianças eram mais violentas. Eu acabei levando esse medo comigo para o primeiro dia deaula na terceira série. Estranhei algumas coisas, mas acabei gostando de tudo, das profes-soras, dos amigos...

Por incrível que pareça essa escola era muito melhor que a escola em que haviaestudado antes, pois tinha professoras bem mais preparadas que as da escola particular. Tiveaté uma professora que escrevia para o jornal O Popular (talvez por isso tenha escolhidominha profissão exatamente nessa época). A razão dessa superioridade pode estar relaciona-da a localidade da escola, que ficava num setor central em Goiânia.

No mesmo ano tivemos que nos mudar novamente. Meu pai estava endividado porcausa de vários problemas, dentre eles os gastos com a operação de apendicite que eu haviafeito no ano anterior, e por isso teve que vender nossa casa. Viemos morar em uma pequenachácara que meu pai havia ganho de herança do meu avô, onde moramos até hoje.

Com a mudança perdi meus amigos e a rua onde eu adorava brincar. Quase não saía decasa porque a chácara é muito afastada e o bairro mais próximo é um pouco perigoso. Acabeificando meio solitária e intensificando um hábito que acabara de ganhar, a leitura. Com dezanos acho que era a pessoa que mais lia no mundo, de poesia infantil a Memórias Póstumas deBrás Cubas. Os livros eram meus melhores companheiros no silêncio da minha casa.

Nessa época, meu pai começou seu esforço para nos dar a melhor condição de estudoque a sua situação possibilitava. Sempre nos levava de carro a escola e, às vezes, tinha queesperar horas por causa dos nossos horários diferentes. Eu também tinha que esperar muito,sempre era a primeira a chegar e a última a sair.

Quando entrei para a quinta série mudei para outra escola que também era bem loca-lizada, entretanto era maior, com alunos bem mais velhos do que eu. Demorei um poucopara me acostumar com os alunos e com o ambiente da instituição. Nessa escola, chamadaEscola Municipal Maria Tomé Neto, o ensino era bem pior, os professores faltavam a muitasaulas e não terminavam a matéria a ser dada.

A vida se tornou ainda mais difícil, pois meu pai perdeu o emprego de técnico emeletrônica de um banco. A partir de então ele passou a trabalhar mais na chácara e a fazerserviços em várias áreas, de pedreiro a eletricista. Além disso passamos a receber a ajuda daminha avó, que é aposentada e mora na chácara ao lado da nossa.

Em 1999, mudei para o Colégio Estadual Polivalente Pio XII e as coisas continuaramdifíceis. Professores que faltavam, greves, bagunça dos alunos.... não posso dizer que eu erauma santa, mas ficava chateada quando não tinha aula, gostava de ir para a escola, princi-palmente porque lá eu tinha meus únicos amigos. E foi exatamente por causa desses amigosque tive que mudar novamente de escola.

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Envolvida em várias confusões na oitava série, quase fui suspensa. Minha mãe teveque segurar a minha barra sem que meu pai soubesse (até hoje ele não sabe). Então ela achoumelhor que eu fizesse o processo seletivo para o Ensino Médio do Centro Federal de Edu-cação Tecnológica de Goiás (CEFET), porque lá os alunos seriam diferentes. Eu não gosteida idéia, pois não queria me separar dos meus amigos e porque achava que não conseguiriafazer novos.

Apesar de não estar muito contente, não quis contrariar minha mãe. Então estudeifeito louca para a prova. Passava doze horas por dia tentando aprender sozinha o que nãotinha sido ensinado entre a quinta e a oitava. O esforço foi recompensado com a segundacolocação na lista de aprovados e com a melhor ensino a que tive acesso.

Aprendendo a reger a vidaO ano de 2002 veio com muitas mudanças e expectativas. No primeiro dia de aula,

depois de longas férias provocadas pela greve de três meses no ano anterior, levei trote dosveteranos e peguei meu primeiro ônibus sozinha. Comecei a me achar adulta, já que oensino era bem diferente, não havia nenhuma coordenadora para ficar vigiando os atos dosalunos, cada aula tinha uma sala diferente e podíamos entrar e sair quando quiséssemos.

A partir de então comecei a ir para o colégio de ônibus, mas meu pai ainda tinha queme auxiliar. Como moramos muito longe ele me levava até o ponto final de uma linha maisrápida para o centro da cidade, que mesmo assim demorava em média uma hora. Entãoconheci melhor algumas dificuldades de um estudante de origem popular: ônibus lotado edemorado, acordar às cinco da manhã, ter que sair sempre com duas horas de antecedência...

A idéia que os alunos fossem diferentes foi um grande engano, meu e de minha mãe.No CEFET havia até mais confusões que na escola anterior, e meu lado meio conturbado melevava a estar sempre nelas. Apesar de ter passado por muitos apuros, me diverti muito, fizótimas amizades, que mantenho até hoje, e fui muito feliz.

Sempre fui chamada de ‘cdf’, já que eu estudava muito e sempre ajudava meus amigosa passar de ano. Explicava matérias, dava cola, fazia e corrigia as redações, etc. Mastambém recebia ajuda em algumas matérias, como Física e Química. Por ser boa aluna todomundo sempre achava que eu fosse passar no vestibular de primeira e riam de mim quandoeu dizia ter medo da prova.

Embora seja difícil comparar o ensino público com o particular, posso dizer que tive boauma educação no CEFET e pude praticar vários esportes; tive acesso a aulas de música, teatro,informática, filosofia e sociologia. Acima de tudo eu aprendi a ter responsabilidade própria,sem precisar da cobrança de ninguém, e a buscar sempre mais do que estava sendo ensinado.

Regendo os sonhosAos quinze anos tive que iniciar minha decisão quanto a carreira profissional e, como

o sonho de ser jornalista ainda existia, decidi que iria prestar vestibular para esse cursoquando fosse a hora. Embora eu estivesse no primeiro ano do Ensino Médio, tive minhaprimeira e assustadora experiência com o vestibular no Processo de Avaliação Seriada daUNB (PAS). A prova era bem difícil, mas eu consegui boa pontuação e mantive as esperan-ças de alcançar meus objetivos.

Na etapa seguinte também tive uma pontuação alta, mas na última fase me saí malapesar de ter estudado muitas horas, até mesmo de madrugada, e não consegui passar. Essa

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foi minha primeira decepção. Fiquei muito triste e achei que tudo estava perdido. No finaldo Terceiro Ano, fiz o vestibular da Universidade Federal de Goiás (UFG), meio desanimadae sem muitas expectativas, uma vez que não havia me preparado especificamente para ele.

Por não ter feito cursinho e ter estudado em escola pública, achava que haveria muitosconcorrentes mais preparados do que eu. Mesmo que eu não esperasse muito, no dia doresultado fiquei ansiosa e, para minha surpresa, consegui passar. Foi um alívio e uma decep-ção ao mesmo tempo, pois eu sonhava com a UNB... mas é claro que não ia deixar de meorgulhar pela conquista.

Sei que muitos como eu não tiveram a mesma alegria e por isso agradeço muito a ajudados meus pais, que foram os principais responsáveis pela vitória, por terem permitido queeu me dedicasse exclusivamente ao estudo. Sou grata a minha mãe por dedicar sua vida aosfilhos e por ter me ensinado que eu deveria estudar e ao meu pai por me oferecer as melhorescondições de estudo, mesmo com muitas dificuldades.

Novos palcos, novos desafios

Entrei para a UFG e no segundo dia de aula comecei um relacionamento com meugrande companheiro, Fernando. Acabei me acomodando e percebendo que me sustentar emBrasília não seria fácil, por isso não tentei novamente o vestibular lá e decidi me esforçar nomeu curso aqui. Nesses dois anos cursados tive algumas decepções quanto ao curso, tivevontade de abandonar tudo e fazer outra faculdade, mas ainda me mantenho no caminho.

Muitas vezes me senti sem esperança de conseguir me formar uma boa profissional,pois enfrentei várias dificuldades, como a solidão de me sentir um estranho no ninho e denão me achar competente o bastante, ter de acordar as cinco da manhã, pegar muitos ônibus,percorrer um longo trajeto até a faculdade, chegar em casa exausta e não conseguir estudar,não ter um computador para fazer trabalhos e pesquisas, etc. Mas isso não me fez desistir enem me faz uma aluna pior.

As dificuldades estão sendo em grande parte superadas, por causa da minha força devontade, do empenho dos meus pais, pelo ombro amigo do Fernando e também pelo Progra-ma Conexões de Saberes. Sei que talvez não consiga ser uma correspondente internacional,mas sei que vou fazer de tudo para que eu possa alcançar o mais alto que puder, sem abaixara cabeça por causa dos empecilhos.

A cada dia dou mais um passo importante e vou aprendendo que aquela meninasolitária e intimidada pode tocar como deseja a própria vida. Que mesmo com barreirasemocionais e sociais, não posso desistir, pois tenho habilidades. A universidade foi ocomeço de uma nova vida, mais independente e confiante, de alguém que está começan-do a conhecer o mundo.

“Moça, diz pra mim como vai vocêé preciso força pra sonhare perceber que a estrada vai” Marcelo Camelo

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Luciene Araújo de Almeida*

Como diz a musica:

“Quando eu nasci veio um anjo safado.O chato dum querubim.E decretou que eu estava predestinado,a ser errado assim,já de saída a minha estrada entortou até o fim”. Chico Buarque

Se eu vou até o fim, não sei dizer, mais posso dizer do que já se foi, ao menos umpouco.

Para muitas pessoas passar no vestibular é um sonho que não será realizado. Paraoutras o vestibular é um simples processo seletivo, para o qual foram preparados por toda avida. Mas há aqueles e aquelas que sonham com essa “Torre de Babel”, sonham com tantaforça, se esforçam tanto, que acabam tornando-o realidade. Comigo foi assim, muita lutapara transpor essa barreira chamada vestibular. Agora o mais triste vocês não sabem, estandoaqui dentro da universidade, eu me sentia mais infeliz. Calma, amiga ou amigo leitor, euposso explicar!

Sou uma dessas pessoas que o sistema tenta eliminar logo de cara. Sabe como diz amusica:

“Quando, seu moço, nasceu meu rebentonão era o momento dele rebentar.Já foi nascendo com cara de fome,eu não tinha nem nome pra lhe dar”. Chico Buarque

Mas graças a duas pessoas maravilhosas eu tive a oportunidade de “vingar”. Minhainfância foi relativamente tranqüila, sempre fui muito moleca, e qualquer lata ou pau logose transformava em brinquedo. Minha alfabetização foi igual à de milhares de crianças, quetêm esta oportunidade, as boas e velhas cartilhas behavoristas onde repetir e copiar o que jáestava pronto era a formula para aprender.

“Pedaços de mim”

* Graduanda em Letras pela UFG.

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52 Caminhadas de universitários de origem popular

Mas os momentos tranqüilos ficaram na mais tenra infância, e até hoje não sei se foramrealmente tranqüilos ou eu que enxerguei dessa forma. Sou mulher, negra e durante boaparte da minha vida, gorda. Criada em uma família de brancos e brancas, todos magros deolhos claros. Posso dizer que desde muito cedo conheci o preconceito de uma forma muitodura. Durante um período de minha vida deixei que me desvalorizassem, mas não melembro nem quando nem porque eu resolvi mudar essa historia. Mas posso dizer que o quepassei me ajudou a desenvolver uma forma de driblar a dor, e eu segui sorrindo .

Morávamos em Goiânia quando terminei o segundo grau, por motivos financeirose desejando muito entrar em uma universidade, fui para Sampa, tentar um emprego, etambém, deixar pra trás algumas feridas que aqui eu não conseguia cicatrizar. Foram anosbons mais também difíceis. Após dois anos em São Paulo, estava me sentindo como umapessoa que o sistema escraviza em um trabalho alienado e alienante. Às vezes me sentiacomo “Macabeia”, com a permissão de Clarice, que, sem força pra lutar contra essa máquinaesmagadora, apenas via os dias passar. Mas dentro de mim à vontade de lecionar sempre foimuito grande, desde criança minha brincadeira favorita era imitar as professoras, adoravadar aulas para minhas amigas. Sendo assim resolvi prestar o primeiro vestibular para Letrasna USP, sabia que seria muito difícil, mas eu queria muito e iria me esforçar. Foi um ano deestudo, mas não passei nem na primeira fase. No ano seguinte resolvi que faria cursinho,com uma bolsa que consegui com muita insistência, eu trabalhava durante o dia e estudavade noite. Foi mais um ano de estudo e passei na primeira fase, mas a segunda não mepermitiu entrar.

Passei a acreditar que não conseguiria nunca entrar em uma universidade pública.Fiquei um ano sem estudar, mas a USP sempre martelava na minha cabeça, eu sempre ia àpalestra ministrada por professores da USP, que eram abertas para a comunidade em geral,sonhava com aquele campus. Por fim, decide voltar a Goiânia onde poderia estudar emtempo integral. Eu voltei para a casa de meus pais, e essa volta não foi nada tranqüila, poisminha família convive há muitos anos com o alcoolismo de meu pai e as crises depressivasde mamãe. Mas com a determinação que eu tinha, nada poderia me tirar do caminho da USP.Foi mais um ano de estudo, um estudo solitário, uma vez que não conhecia ninguém queiria prestar o vestibular da USP. Eu lia as análises pela internet, fiz minhas próprias apostilase estudei. Um ano dentro do quarto, um ano dentro de mim... eu já não sabia mais seestudava tanto para passar na USP ou para não pensar nos problemas que enfrentávamos...um ano de muita solidão -meus livros foram meus maiores companheiros... há, é claro, oSimba, um cachorro que eu arrumei para me apoiar, vale dizer que quando vim embora paraGoiânia deixei o Homem que acreditava ser o companheiro de uma longa e apaixonadacaminhada.

Chegou a época das inscrições e meus pais me disseram pra prestar na UFG também. Jáque estava estudando tanto, que mal teria? Fiz a prova da Federal de Goiás primeiro e fuimuito bem. Viajei para São Paulo muito confiante, algo dentro de mim (o conhecimento éclaro) me dizia que iria passar. E assim aconteceu. Fui aprovada na USP para Letras etambém passei para a UFG, senão não estaria escrevendo essa caminhada.

O drama começou aí, com meus pais doentes, eu sem emprego em São Paulo e outrascoisas que me resguardo de dizer. Não fui para a USP e fiquei na Federal e Goiás. Agora,amiga/amigo leitor, você pode entender porque meu primeiro ano na UFG foi tão doloroso,não que o curso de Letras de Goiás não seja bom, espero que me entendam, é que eu

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realmente sonhei e batalhei muito pela outra. Mas já que estava aqui e o meu sonho maiorsempre foi ser professora, resolvi fazer o curso. No primeiro ano, a grande surpresa. Pensavaque tudo seria mais fácil, que por estar fazendo uma universidade pública não teria mais queme preocupar com dinheiro para estudar. Grata ilusão. Esse espaço de produção de conhe-cimento é tão excludente quanto seu processo de seleção. Os livros são caros e a bibliotecanão supre a demanda dos alunos, os professores acreditam que todos e todas tiveram amesma formação, sendo assim cobram unidade dos alunos e alunas. Unidade essa quesabemos não ser nada real. O recurso é o ilegal, xerox, mas um curso de Letras não é nadabarato, o volume de fotocópias é muito grande e falta dinheiro pra tanto. E você acha que osprofessores e professoras acreditam quando você diz que não leu um texto porque não tinhadinheiro? Claro que não, eles acham que você é relaxada, que não está interessada emaprender, coisa e tal. Fora que a estudante de origem popular tem que trabalhar, outroagravante que prejudica a qualidade do curso. Posso dizer que trabalhei mais que estudeinesses três anos de faculdade. Fiz muita prova sem ler os livros indicados. Passei noites emclaro tentando recuperar o tempo perdido, antes das provas, mas não adianta muito. Sei quenão sou o que a faculdade entende de boa aluna, apenas sou mais uma.

Com a oportunidade que o programa Conexões de Saberes oferece hoje posso me dedi-car um pouco mais aos estudos, sei que não dá pra recuperar o tempo perdido, mas dá pra nãoperder mais tempo. Estou no último ano, todas as inseguranças passam pela minha cabeça,sempre me pergunto se irei conseguir um bom emprego, se irei ser uma boa profissional eoutras coisas. Mas como disse no início, posso dizer do que vivi, o que virá basta esperar...

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54 Caminhadas de universitários de origem popular

Fran Rodrigues*

Eu já quis ser bailarina, professora e odontóloga. Esse último nome me parecia tãobonito que, por volta dos sete anos, passei a repeti-lo cada vez que alguém me perguntavao que queria ser quando crescesse. Com o decorrer da infância, nos livros e dicionários,porém, conheci outras palavras. E outras. E outras... até que um dia, ainda no início daadolescência, descobri o que queria. “Jornalista! É isso que eu vou ser”.

Escolhi o jornalismo porque as palavras me fascinam. Admiro o modo como sãocapazes de compartilhar sonhos, de socializar idéias, de descrever pessoas e tambémrealidades que podem ser recriadas, diferentes e melhores. Escrever é o que mais gosto defazer na vida. Cada texto me parece um desafio, uma tentativa de extrair ainda mais dacapacidade que as palavras têm de dizer o mundo. Por isso me alegro, não sem as tensõespróprias dos desafios, pela oportunidade de usar as palavras para compartilhar minhaprópria história.

Começo por 2006, que pode, sem dúvida, ser considerado o ano mais significativo atéaqui. Muitas coisas aconteceram. Cursei o terceiro ano da faculdade com maior dedicação,muito aprendizado, questionamentos e mudanças. Foi o ano em que me reconheci comoEUOP, fato responsável por uma série de transformações. Nas palavras Estudante Universi-tário de Origem Popular, encontrei uma identidade e isso me possibilitou compreender maissobre meu passado e, a melhor parte, redefinir o futuro.

Escudo de amorMinha mãe é técnica em Laboratório e trabalha, desde os 18 anos, como funcioná-

ria concursada pelo estado na área da saúde. Meu pai, nascido e criado na zona rural, fezaté a oitava série do ensino fundamental. Já foi garimpeiro em Mato Grosso, feirante,vendedor de sapatos, vigilante e motorista. Isso tudo, sem nunca deixar de sonhar. Nãoposso falar de mim, sem mencionar (e repetir) essas duas pessoas que sempre forammeus maiores incentivadores e os grandes responsáveis pela conquista de entrar emuma universidade pública.

Casal jovem e com duas filhas pequenas, cada um trazia consigo uma história dedificuldades. Perceberam logo no início que a falta de estudo os marginalizava e dificulta-va seu crescimento. Então, decidiram em conjunto que a educação das filhas seria a maiorprioridade de suas vidas. E assim fizeram. Como a idade mínima de ingresso na escolapública era de sete anos, o que meus pais consideravam tardio, adicionado ao fato de que

O que está em mim

* Graduanda em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG.

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ambos precisavam trabalhar para garantir o sustento da casa, minha irmã e eu começamos aestudar em uma escolinha privada quando eu tinha três anos.

Ao relembrar minha história, percebo que apesar de não ter sentido muito na pele, vistoque meus pais me serviram de escudo, desde aquela época a vida foi muito difícil, cheia derenúncias e privações para nos oferecer o máximo, o limite de suas possibilidades. Em ne-nhum momento me lembro de vê-los se queixando por isso. Pelo contrário, sua alegria era oritual diário de nos ouvir contar quantas coisas tínhamos aprendido na escola.

Ficavam tristes pelo fato de não poderem oferecer tudo que pedíamos, já que a inocên-cia infantil não nos permitia entender porque os coleguinhas tinham sempre brinquedoslegais e nós não. Também me recordo, com grande arrependimento, que minha irmã e eupedíamos a meu pai que nos deixasse um pouco distante da escola para que os colegas nãonos vissem sair do carro, uma Variante Vermelha ano 77 sem o banco da frente e com oassoalho visivelmente danificado. Eu costumava dizer que tínhamos um carro famoso:“Igual o do Fred Flintstone”.

Muito presente, minha mãe corrigia e assinava todas as tarefas escolares, ia às reu-niões com professores para acompanhar nosso rendimento e, sempre que possível, nospresenteava com livrinhos infantis para incentivar o gosto pela leitura. Lembro-me tambémdas inúmeras conversas em que meu pai me estimulava a querer aprender sempre mais. Eleconseguia fazer com que até mesmo uma ida ao supermercado ou meu espanto perante umpedinte na rua se transformassem em campanha em prol da valorização da escola.

A duras penas, conseguiram nos manter até o fim da quarta série. Depois disso, mesmocom todos os esforços, fez-se necessário que fôssemos para o sistema público de ensino.Nessa época, estudar já era minha grande paixão. Não sei se apenas pela insistência dacriação, mas posso dizer, sem modéstia, que sempre fui boa aluna e procurava dar o melhorde mim. Cada boletim era como um troféu que eu entregava a mim mesma e a minha famíliaem retribuição a todo o sacrifício que faziam.

Além de estudar, também tínhamos responsabilidades na limpeza da casa e nos traba-lhos em que meu pai se envolvia. Quando ele conseguiu comprar uma pequena chácara naperiferia de Goiânia, por exemplo, a família toda foi convocada para fazer a limpeza dolugar e construção das estruturas que ele pretendia manter ali. No fim de cada dia, haviamarcas de carrapato e muriçoca por todas as partes do corpo exausto, mas eles tinham apreocupação de fazer tudo parecer uma grande festa.

Ainda crianças, minha irmã e eu também chegamos a trabalhar na feira com meuspais. Primeiro vendemos alface, depois carne de porco e galinhas, produtos cultivadospor nós mesmos na terra que meu pai comprara. Engarrafar leite e vendê-lo na regiãotambém já fez parte de nossas atividades conjuntas e confesso que à medida que crescia,essas coisas deixavam de parecer divertidas. Minha infância foi assim, não tão difícil,brincando de trabalhar e estudando por prazer, como meus pais haviam ensinado.

No meio do caminho tinha um vestibular...A cada ano que passava, aumentavam as expectativas de cursar uma universidade, e

eu sabia que precisava ser gratuita, visto que não havia recursos para custear uma faculdadeprivada. Estudei até a oitava série no Instituto de Educação de Goiás, mas pensando novestibular, procurei entrar em uma escola melhor. Soube da fama do CEFET e estudei parao processo seletivo do ensino médio que na época teve concorrência de 19 alunos por vaga.

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56 Caminhadas de universitários de origem popular

Passei! Devo dizer que sou muito grata por isso. Grata a Deus, grata à vida, ao meu próprioesforço e mais uma vez, grata aos meus pais, que me deram todo o apoio que precisavanaquele momento.

Estudar no CEFET me aproximou muito do sonho da formação superior mas, aomesmo tempo, foi um choque. Ali foi o lugar em que, já sem os olhos de criança, me depareicom a diferença social e a desigualdade de oportunidades. Queria muito aprender outrosidiomas, mas não era possível. Queria, como os outros, ir ao cinema e viajar para a praia nasférias. Impossível também. Os livros, não podia comprar todos. Morar em uma chácara, terque atravessar uma erosão antes de pegar o ônibus para ir à escola e, por vezes, chegar suadae com o sapato sujo de barro não era nada fácil, principalmente na minha cabeça recém-chegada à adolescência.

Foi realmente um choque, mas nada que tenha me impedido de continuar. Eu tinhauma meta e sabia, talvez por causa daqueles discursos paternos tão cheios de amor, que asdificuldades seriam muitas, mas não me impediriam de vencer. Sem muitas perguntas, meadaptei àquelas diferenças e procurei usufruir ao máximo daquele aprendizado que dificil-mente teria em outras instituições de ensino público. Seis meses antes do término do ensinomédio, decidi fazer um curso pré-vestibular junto com o terceiro ano para tentar garantiruma vaga no curso de jornalismo da UFG.

Escolhi o cursinho mais barato que pude encontrar. Com algum esforço, e muitadisposição, foi possível pagar. Dividir-me entre a escola, o cursinho e as outras atividadesque realizava foi “psicologicamente complexo”. Eu acabara de completar 16 anos e sentiasobre mim o peso do futuro. Entrar na universidade, além de um sonho meu, era também osonho de uma família inteira e, por isso, sentia a pressão involuntária que a expectativa daspessoas gerava sobre mim. Dedicada, porém insegura, não acreditava que conseguiria pas-sar, afinal o bicho do vestibular que estava pintado na minha mente era muito maior do queeu poderia suportar.

Passei na 1ª fase e parecia ser a única a não acreditar que também seria aprovada na 2ª.Apesar de todos os incentivos da família e amigos, eu ainda tinha muito medo. Até entãoninguém da minha família havia cursado uma universidade pública e parecia que issoestava demasiadamente distante da minha realidade. Que bom que eu estava errada! Depoisde dois meses, que pareceram séculos, saiu o resultado. Lembro-me de ligar chorando notrabalho da minha mãe para dar-lhe a notícia e de ouvir uma resposta igualmente banhadaem lágrimas.

O choro era de alegria, de gratidão. Era algo como um rito de passagem, um choro decrescimento. Valeu a pena todo aquele preparo desde a infância até as madrugadas em claroe os passeios trocados por horas de estudo. Era minha história com um final feliz. Eu agoraera uma universitária e todos os meus sonhos pareciam mais próximos. Hoje percebo queminha atitude naquela ocasião foi no mínimo ingênua. Certamente o momento mereciacomemoração, mas estava longe de ser um final, muito menos um final feliz.

Permanecer, o grande desafioNa universidade, um sentimento de completa estranheza me atingiu, quase fatalmen-

te. A desigualdade social foi o elemento mais preponderante, mas não o único. O fato de sermais nova que os demais, a incompatibilidade que senti em relação ao ambiente, a timidezque parecia me impossibilitar de exercer a profissão que escolhi, a situação de desemprego

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que meu pai passou a enfrentar, o longo percurso diário até o campus e aquele ônibus lotadoe caótico, foram elementos que se somaram e me fizeram imaginar que eu não estava nolugar certo.

Pensei em tentar outro curso e até mesmo em desistir de tudo. Sentia-me inferior aosdemais e incapacitada de dar continuidade àquele projeto. Não consigo mensurar comprecisão esses sentimentos, mas acredito que a sensação de incapacidade tenha sido muitomaior que a felicidade pela aprovação no vestibular. De algum modo, que eu não entendiaao certo, o sonho de uma vida estava se dissipando em poucos meses. Já não sabia sequer seconseguiria concluir a graduação, portanto, pensar em mestrado ou doutorado chegava aser absurdo.

Na vida financeira, enfrentávamos a maior dificuldade de todos os tempos. Eu nãotinha dinheiro sequer para tirar o xerox que os professores pediam em todas as disciplinas.Às vezes, deixava de comparecer à aula por causa disso. Sabia que se pedisse dinheiro aosmeus pais, ou tirariam de coisas importantes ou se sentiriam mal por não ter a quantianecessária. E eu já não era aquela criança sem entendimento que pedia iogurte no supermer-cado. Para melhorar a situação, digitava trabalhos escolares e dava aulas de reforço. Aprendia filmar e fazer edição de vídeo. Também cheguei a ser responsável pelo jornal de umaassociação. O dinheiro era pouco, mas ajudava.

Na maioria das vezes, tinha boas notas e resultados, mas não me sentia bem. Faltavaalgo. Faltava me sentir parte daquilo. E aí entra o Conexões de Saberes. Conhecer oprograma, me inserir no grupo na condição de voluntária e assim perceber quantas pesso-as se encontravam na mesma situação que eu, me fez acreditar novamente no meu poten-cial e reacender todos os sonhos que haviam se perdido. Inclusão, oportunidade e confi-ança são algumas das palavras que, embora já conhecidas, só passaram a fazer sentidodepois do PCS.

Antes, eu estava na universidade, mas agora ela está em mim. Apesar de reconhecerminhas limitações e saber que para um EUOP o caminho é mais longo, hoje tenho a força deque preciso para não desistir de sonhar e ver em cada dia a realização gradativa do projetode vida que tracei. Em crescimento contínuo, vou seguindo sem lamentar, agora com orgu-lho de ser quem sou e da minha origem, com um conceito muito mais amplo do que é“vencer na vida”, com uma crença renovada nas pessoas e em mim mesma, e com vontadede prosseguir e alcançar. Muita vontade.

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A CADA DIA DE LUTANÃO SE PODE PARAR,NEM DESISTIR.É PRECISO CONTINUAR.

Parte 3

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Márcia Daniele de Souza Carvalho*

Nasci em 30 de abril de 1984, às 11h50 da manhã. Mas minha história começa paramim um pouco depois, na infância, a partir das primeiras lembranças que tenho davida. Morávamos em uma casa pequena de quatro cômodos: dois quartos, cozinha e umbanheiro. O quintal era um tanto grande, com muitas árvores, muito verde. A paisagemdo bairro era toda assim, com ruas ainda não pavimentadas e vários lotes baldios. O setoré o São Judas Tadeu, localizado na região norte de Goiânia, nas proximidades do CampusII da UFG. Desde cedo o espaço da universidade se tornava familiar. Nossa casa foi umadas primeiras a existir na rua do bairro quase deserto. Para lá nos mudamos em 1985 eassim meu pai, vendedor autônomo, conseguiu comprar o imóvel próprio, onde residi-mos ate hoje.

As personagens dessa fase da minha história eram: meu pai, Edvaldo Cícero deCarvalho, minha mãe, Neuma Sônia de Souza Carvalho e meu irmão, Marcos Tadeu deSouza Carvalho. Minha família até então se estruturava de uma forma tanto quanto tradi-cional: O pai que trabalha e leva o sustento da família e a mãe que cuida do lar e dascrianças. Minha mãe possuía o segundo grau completo, com habilitação técnica em con-tabilidade e, antes do casamento, trabalhava fora, era independente. Mas depois se man-teve no lar, e um dos motivos era o fato de sermos pequenos e, claro, precisar de alguémque cuidasse de nós.

Meu pai fez até o segundo ano do curso técnico em administração de empresas. Eracomerciante, tinha um ponto de vendas no camelódromo do centro e um outro na feirahippie de Goiânia.

A estrutura do bairro, apesar de muitos problemas, possibilitava certa liberdadeinfantil que hoje vejo que poucas crianças possuem. Tive uma infância quase rural, correndo pelas ruas, brincando com terra, e subindo em árvores, aliás, essa era uma dascoisas que mais gostava de fazer. Sempre brincava no pé de manga, e era de lá que costu-mava avistar o Campus da Universidade. Juro! Passei a infância toda olhando aquelesprédios e imaginando o dia em que estaria lá.

Primeiros marcos, conquistas e vitóriasComo o tempo é curto pra contar muitas coisas, vou tentar dividir minha história em

“marcos”. O primeiro é 1990. Esse talvez tenha sido o maior marco da minha vida. Comple-tei seis anos, mas isso não foi o mais marcante. Foi nesse ano que fui à escola pela primeiravez. Lembro que foi uma das coisas mais emocionantes dessa parte da minha vida. Sempre

Menina do pé de manga

* Graduanda em História pela UFG.

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62 Caminhadas de universitários de origem popular

quis ir à escola, aprender ler, escrever. Antes de nos matricular, minha mãe já haviainiciado nosso processo de alfabetização em casa, comprava sempre um caderno de caligra-fia nos colocava pra copiar nossos nomes e a ler A-E-I-O-U. Talvez tenha sido isso quefavoreceu pra que meus primeiros contados com as lições não fossem tão difíceis mas, aocontrário, eram muito estimulantes.

Estudei pela primeira vez no Núcleo Educacional da ASUFEGO. Era uma escolinhaprimária conveniada com a UFG. Meu pai pagava uma mensalidade não muito alta. Oensino de modo geral era bom, apesar da professora muito estressada que eu tinha no jardimII, “Tia Clara”. Ela dava beliscão, sacudia e empurrava a cabeça dos alunos quando erravama lição. Hilário, né? Eu tinha que contar isso, pois é um tipo de coisa não deveria acontecerem um colégio vinculado a uma Universidade, que geralmente dispõe de todo um projetode “formulação didático-pedagógico” adequado. Mas tirando a parte da tia Clara, nósgostávamos muito do colégio, que tinha campo de areia, parquinho, tínhamos aulas denatação. A localização era boa, ficava dentro do Campus, no clube do SINT-UFG. O lugarera muito arborizado, estávamos sempre em contato com a natureza. Íamos pra escola noônibus escolar, o “ônibus do Baiano” que pegava e levava a gente na porta de casa. Desfru-távamos de certo conforto nessa época.

Entretanto, além da ida pra escola, o que marcou bastante nesse ano foi um grandeacontecimento. A morte do meu pai. Edivaldo Cícero de Carvalho, 29 anos, comerciante,casado, pai de dois filhos pequenos, morre assassinado com três tiros, dois no peito e um deraspão no queixo. O crime aconteceu na Praça Tamandaré, setor Oeste, região sul da cidade.O motivo do crime foi banal, uma pequena discussão, um pequeno desentendimento entrea vítima e um sujeito que não se sabe nem o nome ou mesmo a placa da moto, utilizadadurante o crime. Foi assim que meu irmão e eu nos tornamos órfãos. Falar disso é meiocomplicado, é difícil entender ou definir o que aconteceu da forma que aconteceu. Eu, comseis anos, ainda não tinha refletido o suficiente sobre a morte. Cresci tendo que pensar sobreisso o tempo todo, tentar entender, fazer um esforço pra compreender o mundo e as pessoasde modo geral. Um dos meus primeiros e freqüentes questionamentos foi sobre a “morte”.

Nossa família se desestruturou desde então. Uma das personagens de minha históriadeixa de fazer parte do enredo, abandona o plano físico e passa ocupar continuamente opsicológico. Quase tudo mudou. Minha mãe ainda desestabilizada psicologicamente é queassume a direção da família. Deixa o lar e começa a trabalhar no Camelódromo e na feira, nolugar do meu pai. Não poderia deixar de falar dela aqui. A dona Neuma, uma personagem degrande relevância nessa minha história. Mesmo cercada tantos problemas e tanta dor, ela con-seguia ser para nós, ou pelo menos para mim, o maior ponto de apoio. Sempre que precisei elaesteve lá, do meu lado, independentemente de qualquer coisa que pudesse haver.

Pra gente, meu irmão e eu, as coisas também mudaram. Tivemos que mudar de escola,pois, além de ficar mais difícil pra continuar pagando a mensalidade da ASUFEGO, eracomplicada também a ida e volta da escola. Passamos a estudar então em uma instituiçãopública localizada no centro da cidade, a Escola Estadual Gracinda de Lourdes, queficava perto do Camelódromo, assim ficava fácil pra minha mãe levar e buscar a gente.Foi uma época de algumas dificuldades, inclusive financeiras. Passamos várias etapas atérecuperar do choque. Não tivemos apenas o sofrimento com a morte, mas também comoutras coisas que se desencadearam em função disso, prefiro ser sutil, não pretendo entrarem detalhes.

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Sobre o Gracinda de Lourdes, tenho boas recordações. Já no pré aprendi ler e escrever, tinha um rendimento um pouco melhor que as outras crianças, não sei se ter estudado antesna ASUFEGO contribuiu pra isso. Mas eu também me esforçava muito, tinha muita vontadede aprender, e nunca a perdi, mesmo em meio a frustrações. A tia Ediene sempre me elogia-va, meus desenhos, a pintura, a letra... e eu, claro, ficava toda orgulhosa.

Na terceira série, quando já estava alfabetizada, comecei a ter apreço pela escrita,tinha muito prazer em escrever, gostava de inventar “historinhas”, muitas delas “fantásti-cas”, sobre vacas que voavam animais que iam à escola, bem próprias de uma criança demente fértil como eu. A professora Marta ria muito das coisas que eu escrevia, lia sempre emvoz alta pra turma toda. Tirava excelentes notas em redação, falava que quando crescesseiria ser escritora e acreditava de verdade nisso. Apesar das boas lembranças, nessa escola tiveo primeiro contato com a decadência do ensino público. Havia carência de coisas básicasde manutenção da escola, faltavam materiais de limpeza, merenda, entre outras coisas.Lembro de várias vezes em que a diretora fez campanha entre os alunos com o objetivo dearrecadar coisas básicas de sobrevivência da escola. Sempre levávamos de casa, detergente,sabão, verduras para a sopa etc. E também tínhamos que pagar o caixa escolar que nessaépoca que custava 4 reais mensais.

Em 1995, concluí a quarta série no Gracinda, o colégio não oferecia o ginásio. Esseano também foi o começo de uma certa estabilidade em casa. Minha mãe havia alugado oponto do Camelódromo e vendido o da feira , começou a trabalhar como fotógrafa em umaempresa que ficava no centro, onde recebia relativamente bem. Foi uma fase de umcerto equilíbrio financeiro em casa. No entanto, continuei a estudar em instituição pública.Colégio particular poderia oferecer despesas que iriam além do orçamento.

Em 1996, depois de uma tentativa frustrada de entrar no Lyceu de Goiânia, que tinhacomo regime de seleção o sorteio de vagas, fui para o Colégio Estadual Rui Barbosa, queficava na avenida Goiás, no centro, onde cursei ate a oitava série. Ao contrário do Gracinda,não tenho tantas boas recordações do Rui Barbosa. Recordo-me de muita desorganização eaté casos de violência entre alunos. Houve até uma briga que culminou na morte de umaluno. Havia também confrontos de torcidas organizadas na porta do colégio. Além disso,salas lotadas, muito barulho durante as aulas, professores visivelmente desqualificados – eesse era um dos principais problemas. Um único professor chegou a ministrar cinco discipli-nas, sem ter formação em nenhuma. Ou seja, qualidade zero! Eram freqüentes também astrocas de professores de algumas disciplinas, não dando continuidade no processo de apren-dizagem. E não vou nem falar sobre a qualidade decadente da infra-estrutura física.

Esse período da minha história foi bem complicado, não saberia analisá-lo bem aindamais em poucas linhas. Só poderia dizer que foi uma fase de desmotivação, não tinhaestímulo para ir às aulas mesmo permanecendo assídua. Nas salas de aula não havia sequer“um” ventilador e fazia um calor de matar, imagina! Eu estudava no período vespertino.Eram momentos de descontrolável preguiça. A única coisa que me mantinha estimulada eraa minha curiosidade em relação ao mundo. Eu sabia que havia várias perguntas a seremfeitas e várias respostas a serem encontradas. Lia algumas coisas independentemente daescola, me mantinha informada, apesar de tudo, minha vontade de aprender não ficouesquecida por completo. Porém, nesse recorte de tempo, a prática e o gosto pela leituraficaram esquecidos. Não me lembro de fazer muitas redações durante o ensinofundamental, salvo as vezes que escrevia no diário. É! O diário foi uma fuga, nessa épocative sérias crises de auto-estima e fui me tornando um pouco introspectiva.

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Já na sétima série, ainda estudando no mesmo colégio, decidi que assim que terminas-se o fundamental tentaria ingressar no CEFET. Sabia que era preciso procurar instituiçõespúblicas que ainda oferecessem qualidade de ensino. Cursando a oitava série cheguei afazer um cursinho de um semestre pra fazer a prova que, pelo nível de ensino oferecido pelocolégio, seria difícil. Nesta época, o CEFET era bem disputado. Porém não obtive sucessona prova e fui para o Lyceu de Goiânia. Dessa vez consegui, mas ainda com muita dificulda-de. O colégio não tinha mais o esquema de sorteio e, segundo o diretor, as salas de primeiroano estavam com o número extrapolado de alunos. Mesmo assim, com muita persistência,em 2000 me matriculei no colégio.

Era evidente a diferença entre um colégio e outro. Esse era um tempo em que o Lyceuainda era referência se comparado aos demais colégios públicos. Em 2001, por exemplo,foi um dos colégios públicos que mais “aprovou” alunos no vestibular em Goiânia. Nocomeço tive algumas dificuldades até me habituar ao sistema do colégio. Uma das minhasdificuldades foram os livros do Ensino Médio, que eram caros e era difícil acompanhar aturma sem eles. Consequi comprá-los já quase no meio do ano ainda sim não comprei todos.

Entretanto, mesmo tendo o nível melhor em educação, em comparação ao Rui Barbo-sa, por exemplo, o colégio também não se desvinculava da famosa, muito falada e poucoresolvida ”Crise da Rede Pública de Ensino”, e já passava por diversos problemas caracte-rísticos. Passei por duas greves durante o ensino médio, uma em 2000, assim que entrei, eoutra logo em seguida em 2001. O colégio sofria também com falta de professores. Noprimeiro ano ficamos ate o mês de abril sem professor de História. E professor de Químicanem se fala! Esse nunca tinha, sempre era algum da biologia brincando de improvisarQuímica, e todo ano durante o andamento do curso mudava o professor. Conclusão: Nuncaaprendi Química em toda a minha vida! O colégio aos poucos diminuía seu número dealunos, greves, alto níveis de reprovação, entre outros e muitos problemas. As salas eramfechadas e sua qualidade aos poucos foi diminuindo.

Mas apesar de tudo o colégio manteve certo nível de qualidade, graças à eficácia e adedicação de muitos professores que sempre, de alguma forma, tentavam burlar a crise. Tiveótimos e inesquecíveis professores no Lyceu, Maria vitória (biologia), Flavio (sociologia),Leopoldo (matemática), Vital (filosofia), Maria Lucy (português) Robson (geografia, maslecionou história devido à falta de professores), Wanda (Biologia) dentre outros, que mes-mo mal remunerados lecionavam com prazer, tendo em vista um propósito maior. Possodizer que aprendi muito, não somente coisas referentes ao conteúdo didático mais princi-palmente sobre o mundo, a vida e aos valores humanos. Agradeço-os pela paciência e aforça de vontade, pelas vezes que deram aulas durante os sábados em conseqüência daalteração da grade que nos desprivilegiaria no vestibular. E sem receber por elas! E osperdôo por quase sempre fazerem parte do comando de greve que deixava a gente sem aula.

Tenho ótimas lembranças do Lyceu. Foi lá que recuperei minha auto-estima, me ani-mei mais em estudar, fiz amigos que mantenho ate hoje, Daniela Rezende, Deborah Cintra,Graziela Apolinário, Danilo (o Cabelo). Até recuperei meu gosto pela escrita! Tenho“altos textos” e poemas escritos dessa época em um caderno antigo. Em 2002 terminei oEnsino Médio, fiz vestibular no mesmo ano, como experiência, mas sem muita perspecti-va de passar já de primeira. Sabia que seria preciso estudar mais, correr atrás do que nãome foi oferecido. Escolhi como primeira opção “Design de Moda” - não falei da minhahabilidade em desenhar! Sempre tive muito gosto por artes. Porém não passei na prova de

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aptidão, e a segunda opção foi “Publicidade e Propaganda”, que escolhi aleatoriamente.Como já era esperado não fui aprovada. Tinha planos de no próximo ano fazer cursinho eme dedicar de verdade.

Desenrolando históriasEm 2003, aconteceu um fato que também posso considerar um “marco” em minha

vida. Marcos, meu irmão mais velho, foi baleado com um tiro na barriga por seu, até então,melhor amigo. O acidente foi durante uma brincadeira “sem graça” enquanto estavam em-briagados. Ele ficou na UTI do HUGO (Hospital de Urgências de Goiânia) em estado gravemas sobreviveu, quase que por um milagre. E sabe como é, né? Essas coisas acabam mexen-do nas estruturas tanto físicas quanto psicológicas de uma família. Parte do meu ano deestudos foi perdida, tive que ficar em casa tomando conta dele enquanto minha mãe traba-lhava, não pude fazer cursinho devido à falta de grana que isso e outras coisas desencadearam.Estudei o pouco que deu, consegui também fazer um curso de desenho e pintura pra mepreparar melhor pro bendito teste de aptidão.

Fiz vestibular novamente pra Design de Moda. Desta vez passei no teste de aptidão.Mas que falta de sorte! Zerei a disciplina de Química já na primeira fase. Pois é, ”a Quími-ca”, que maldição! 2004, foi mais tranqüilo, apesar das novas dificuldades financeiras quecomeçavam surgir. Nesse ano não dava mesmo pra fazer cursinho, mais uma vez estudei porconta própria, em casa, na biblioteca, em livros, em outros materiais que ganhei de amigasque já tinham feito vestibular. Neste ano comecei a freqüentar mais o espaço da universida-de que fica perto de casa. Foi aí que comecei fazer parte do grupo de estudos do professorAlex Ratts, do Instituto de Estudos Ambientais-IESA. O grupo tratava de questões étnicas,mais especificamente a questão da situação do afro-descendente no Brasil. Interessou-memuito, uma vez que, filha de mãe negra, aliás, “da negra mais bonita do Brasil”, o precon-ceito racial sempre fez sentido em minha vida.

Através das discussões passei a refletir melhor sobre a questão de modo geral e prin-cipalmente sobre mim enquanto afro-descendente. Participar do grupo fez crescer meu inte-resse pelas Ciências Humanas. No final do ano, já próxima a data de inscrições, desisti docurso de Design e decidi que faria História. E foi o que fiz.Nesse ano fiz dois vestibulares, naUFG e na UEG. Ufa! Dessa vez não zerei Química, e nenhuma outra matéria. Fui aprovadaem ambos. Então em 2006, a garotinha do pé-de-manga, que sempre olhava o Campus delonge, imaginando o dia em que estaria ali, se matricula na Universidade Federal, no cursode História. O curso não é exatamente como que eu esperava, mas de forma geral, eu gosto.

No andamento do curso algumas dificuldades começaram a surgir. A empresa queminha mãe trabalhava faliu, as coisas começaram a ficar difíceis. Cheguei até pensar emtrancar a faculdade. Mas como sempre em minha vida, não desisti. É aí que o Conexões deSaberes entra em minha vida. Fiquei sabendo da seleção de bolsas e considerei que pudesseser uma oportunidade. O mais importante, no entanto, é como o programa significou algomais pra mim. Possibilitou-me trabalhar e discutir sobre temas que me interessam muito eque tinham ficado de lado, porque quase não se discute “Ações Afirmativas” na academia.Outro ponto interessante do programa, é colocar a serviço da sociedade, a produção deconhecimento. Tenho muitas expectativas em relação ao Conexões e a todo o processo quesurge no país de democratização da universidade e de melhoria do ensino público de base,que se encontra em estado de calamidade. Espero de alguma forma, contribuir com esse

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processo. Pois quem esteve lá sabe muito bem o que significa estar lá.E olha só! A garotinha que queria ser escritora escreve sua vida que não deixa de ser

“fantástica” mesmo que cada conto não tenha tido sempre um final feliz ou uma narrativainstigante. Mesmo que em muitos momentos nos fartamos dela, tendo vontade de pularalguns capítulos ou simplesmente fechar o livro sem chegar até o final . Mas a vida é assim!Um desenrolar, não só de uma, mas de várias histórias, uma reunião de contos cheios deemoções, carências, desilusões, mas também de felicidades, perspectivas e realizações, etemos que vive-las uma a uma, sem pressa, e sem desânimo, mesmo quando o capítulo setorna fadigoso, mesmo quando as palavras se tornam incompreensíveis fazendo com quetenhamos que voltar ao começo para só depois seguir para as etapas seguintes, concluir ahistória e iniciar uma outra.

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Átila Carvalho Dias*

Me chamo Átila Carvalho Dias. Bem, você que esta iniciando a leitura deste relatodeve está pensando que se trata de um garoto, por causa do nome. Mas se trata de umagarota. Apesar deste nome ser empregado, na maioria das vezes, como nome próprio dogênero masculino, ele também é usado no gênero feminino. A razão coerente que levou meupai a colocar este nome em mim eu não sei bem. Só sei que ele resolveu colocar por causa deum filme que assistiu, no qual havia um guerreiro chamado Átila. Quando menina, confessoque odiava meu nome. Queria ter um nome normal, comum, como qualquer outra menina;até cheguei a dizer para meu pai que quando eu crescesse iria ao cartório trocar de nome.

Essa questão do nome passou: aprendi a relevar o estranhamento que as pessoasmanifestavam quando ouviam meu nome, já que eu sou uma garota e o nome é do gênerooposto. Hoje conheço outras mulheres que têm o mesmo nome que eu. E em um trabalhoetimológico (estudo da origem e significado de palavras) que uma amiga fez, descobriu-seque Átila significa pessoa que gosta de se adornar, e minha personalidade tem essa caracte-rística, pois amo estar “bem” vestida, de modo que o que eu use esteja harmonizado. Vejoque um nome não faz muita diferença, pois o que fará a diferença serão os objetivos e a forçade vontade para alcançar os sonhos. Posso dizer que sou uma guerreira e vencedora, poissendo de origem popular, estou fazendo faculdade em uma instituição federal e tenhovencido, de forma não dramática, todos os obstáculos que a vida coloca na frente de quemtem essa origem.

Meu pai se chama Lourival e minha mãe, Maria Aparecida. Ambos não concluíram oantigo primário. Meu pai é padeiro e minha mãe costureira e eles, principalmente minhamãe, sempre lutaram para que eu me dedicasse aos estudos.

Sou primogênita e negra. Nasci na capital de Goiás, Goiânia, no ano de 1987 e meuspais só tiveram outro filho, Leonardo, em 1992, 5 anos após meu nascimento. Do períodoem que fui filha única não tenho muitas recordações. Lembro-me que morávamos em umbarracão de 2 cômodos no lote onde meu avô paterno mora (tenho grande carinho por meuavô, uma pessoa muito querida e que sempre me apoiou).

Ao iniciar a vida escolar, minha mãe já me ensinara a escrever meu nome e as vogais.Aos 4 anos comecei a estudar na Escola Irmão Áureo, próxima à minha casa, e que ficava nomeu bairro, Jardim Nova Esperança. Ao findar do ano letivo, por motivos pessoais, minhamãe me transferiu para outra escola, que se chamava CECOM. Esta escola, onde estudavamcrianças da periferia, era um projeto de extensão da Universidade Católica de Goiás. Nela

Objetivos e força de vontadefazem a diferença

* Graduando em Letras pela UFG.

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estudei do pré-alfabetização até concluir o primário, pois a escola não oferecia as sériesposteriores. Lá fui muito feliz. As turmas eram pequenas, os professores eram legais e todoseram amigos; a escola parecia uma grande família. Sempre fui a 1ª da turma (graças a minhamãe que me incentivava nos estudos), terminava as atividades e então ajudava os colegui-nhas que tinham dificuldades.

Ao terminar a 4ª série, fiquei com medo de encarar a segunda fase do Ensino Funda-mental, pois a professora dizia que teríamos muitos professores e que não seria mais como noprimário. Mudei de escola, fui estudar na única escola estadual do meu bairro, o Colégio Estadual Robinho Martins de Azevedo. A 5ª série realmente era um pouco diferente doprimário. Mas as crianças eram da minha idade, poucos eram mais velhos e logo conquisteinovas amizades.

O ensino fundamental foi feito com muita tranqüilidade. Na metade da 8ª série, ummoço foi ao colégio no qual eu estudava fazer propaganda de seu cursinho preparatório parao exame de seleção do CEFET. Até então, nunca ouvira falar da escola técnica. Me interessei,fiz o cursinho e o exame, mas não passei. A média de corte foi de 40 pontos e fiz só 37.Continuei na escola estadual e fiz o Ensino Médio. No 2º ano estava muito bem nos estudos,porém, no 3º ano meu rendimento caiu drasticamente, a maior causa foi uma ilusão amorosa.

Desde o 2º ano já havia decidido que queria cursar fisioterapia, mas antes cursarialetras, pois me apaixonei por espanhol, esse idioma tão envolvente e com características belíssimas. Além do fato de que minha professora dessa matéria era muito competente etambém me incentivou no meu sonho. Em outubro de 2004, me inscrevi em uma maratonapreparatória para o vestibular (o curso era particular). Me inscrevi também em 3 vestibula-res: na Universidade Católica de Goiás (UCG) para letras, na Universidade Federal de Goiás(UFG), para letras; e, por último, na Universidade Estadual de Goiás (UEG) para fisioterapia.Fui aprovada na UCG e reprovada na UEG.

Vestibular da UFG No dia do exame do vestibular me lembrei de levar tudo, com exceção da carteira de

identidade e dinheiro (não levei dinheiro, pois meu pai me levou ao local da prova e,depois, me buscaria). Pensei que não me seria permitida a realização da prova, devido aesse contratempo. Queria desistir, mas pensei: E se essa for minha chance? E se essa for afaculdade que é para eu estudar? Se eu desistir vou perder a grande oportunidade. Entãoconsegui forças. Conversei com uma monitora e ela me tranqüilizou um pouco, mas euainda teria que providenciar a chegada de minha carteira de identidade. Sai pedindo atodos um cartão telefônico emprestado, ninguém tinha. Até que uma mulher me deu di-nheiro para comprar um cartão. Fui comprá-lo, mas não tinha lugar que vendesse cartão. Asolução foi ligar a cobrar para a casa de uma amiga, liguei e pedi que ela avisasse minhamãe. Enquanto o documento não chegava, fui para as proximidades da sala, onde seriaministrado o exame. O nervosismo era tanto que bebi uma garrafinha inteira de água queeu havia levado. Chegou o momento do início do processo, dois monitores verificarammeu comprovante de inscrição, o qual possuía foto, e me permitiram entrar na sala. Apósuma hora meu documento chegou e tudo se tranqüilizou.

No dia do resultado meu nome estava na lista dos aprovados, fiquei muito feliz. Masainda tinha a 2 ª fase, que era no “canetão”. Fiz a 2ª etapa. Não fiquei com muitas esperançasna minha aprovação. Porém, no dia do resultado, fui a uma lan-house conferí-lo. Eu havia

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passado (era o meu primeiro ano de tentativa no vestibular, e eu só tinha 17 anos). Soltei umgrito bem alto de alegria e o moço que estava ao meu lado estranhou. Mas a emoção foimuito grande, afinal eu passara em uma universidade pública e poderia estudar, pois se nãofosse assim não poderia continuar meus estudos, já que meus pais não possuem rendasuficiente para pagar faculdade particular.

No dia da matrícula, fui pintada pelo pessoal da calourada. Quando as aulas iniciaram,comecei vender bombons e cremosinho na hora do intervalo. Também aos domingos traba-lhava em uma feira livre vendendo os cremosinhos, e o dinheiro que eu conseguia era parapagar as xérox (que não eram poucas), o ônibus e os lanches. Mas eu até me divertia, poislogo conheci várias pessoas do curso de letras. Uma outra dificuldade foi que os professorese alguns alunos falavam de temas que eu não estava inteirada. Por exemplo: marxismo,mitologia grega, lingüística, etc. Nesse momento vi que o conhecimento que eu trazia erapequeno se comparado ao exigido. E para poder participar das discussões teria que meesforçar muito mais que outros, já que meu tempo era menor pois gastava 3 horas (de ida evinda) no percurso casa-faculdade-casa. Aos poucos fui me inteirando e fazendo parte da-quele novo mundo. Ainda tenho dificuldades em alguns assuntos, entretanto, aos poucos,continuo abrangendo meus conhecimentos e o Conexões foi mais uma porta que se abriupara que eu tivesse acesso a mais conhecimentos, como, por exemplo: ações afirmativas,convívio com pessoas de outras áreas, outras visões, etc.

Essas novas vivências têm me ajudado como indivíduo que faz parte desse mundomoderno, que tem tratado de temas tão variados, sem falar na fragmentação que está presen-te em todas as áreas do conhecimento. Hoje, quando meus professores falam de gênero,orientação sexual, raça, etnia e ações afirmativas, eu já posso participar das discussões esem falar que ultimamente tem-se trabalhado, na educação, com temas transversais, ou seja,o educador precisa ter conhecimento de gênero, orientação sexual, raça, etnia, ações afirma-tivas etc. E agora eu tenho, e isso me será muito favorável na minha formação acadêmica eprofissional. Mesmo com todas as dificuldades que um estudante de origem popular temque enfrentar para permanecer na Universidade é possível fazer com que esse caminho setorne menos espinhoso com ações como a que o Conexões de Saberes realiza. Mas é neces-sário atingir um público maior para que todos tenham oportunidade de crescer e frutificar.

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70 Caminhadas de universitários de origem popular

Taísse Dias Guimarães Souza*

Meu nome é Taísse, nasci em Goiânia no dia 11/03/1984. Nesta época minha mãeestava em um momento muito difícil, pois descobriu que estava grávida de mim quandominha irmã tinha apenas 5 meses, o que foi um choque. Com tamanha dificuldade financei-ra e duas filhas pequenas, uma terceira gravidez chegava a ser desesperadora.

Minha mãe, Marilú Dias, nasceu em Goianira, cidade a 22 Km de Goiânia. Até os 20anos, ela morou com seus pais em uma fazenda, mas quando completou 21, encantada comas promessas da cidade grande, resolveu trabalhar em Goiânia. Morou sozinha, conseguiuserviço de doméstica, conheceu um rapaz com quem começou a namorar e pouco tempodepois engravidou de minha irmã mais velha, Fernanda. O rapaz não assumiu a criança,meus avós não aceitaram a idéia de ter uma filha mãe solteira e isso foi um terrível descon-forto para toda a família. Depois de dar à luz e sem apoio dos pais, Marilú decidiu morar comsua irmã Antônia, que estava na mesma situação. Nessa época as duas mães e seus bebêspassaram a dividir um cômodo em Goiânia. Após nove anos minha mãe conheceu meu pai.

José Estolano nasceu na Paraíba, atualmente tem 79 anos e é aposentado como serven-te de obras civis do estado de Goiás. Ele teve 11 filhos no primeiro casamento e, depois dealgum tempo separado, conheceu minha mãe dentro de um ônibus em Goiânia. Os doisdecidiram morar juntos e tiveram duas filhas, Polyanne e eu, e casaram-se 14 anos depois.Sofremos muito com meu pai. Ele bebia, ficava com a mulherada e sempre foi um pai muitoausente. Não por não estar presente fisicamente e sim porque ele chegava em casa, mas nãofalava nada, não se importava com as nossas vidas, não nos dava atenção, era como se nãotivéssemos pai. Nunca podíamos contar com ele, e se alguma coisa ele fazia por nós, eradebaixo de muita insistência da minha mãe. A crise financeira era grande, pois morávamosem quatro cômodos, éramos oito pessoas: minha mãe e meu pai num quarto e eu, minha tia,suas duas filhas e minhas duas irmãs noutro quarto, a dificuldade era imensa.

Com apenas três meses de idade comecei a passar o dia em uma creche enquantominha mãe trabalhava. Sofri vários problemas de saúde no período em que freqüentei estacreche. Foi lá que comecei a ser alfabetizada, com cinco anos. Eu tinha uma professoramuito má, que chegava a me dar medo. Neste momento minha mãe conseguiu comprar umlote em Aparecida de Goiânia e a patroa dela nos ajudou a construir um barraco lá. Amudança da cidade de Goiânia para Aparecida de Goiânia dificultou ainda mais a nossa idapara a creche. Acordávamos cinco horas da manhã e enfrentávamos ônibus lotados, era umatristeza, como sofríamos! Aos seis anos saí da creche, pois estava na hora de ir para escola.

Dona da minha história

* Graduanda em Biblioteconomia pela UFG.

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Eu e minha irmã fomos para uma escolinha particular para fazer a primeira série juntas, sóque nos primeiros três meses a professora notou que nem eu nem a minha irmã Polyannesabíamos ler, então voltamos para a pré-alfabetização. Cursamos o pré e a primeira série naescolinha particular.

Na segunda série tivemos que ir para escola pública, já que minha mãe não tinhacondições para pagar escola para nós. Foi muito ruim, estava acostumada com escola pe-quena, e a nova era enorme, muitos meninos bagunceiros e grandes, que por qualquer coisanos agrediam. Então minha mãe me transferiu para uma escolinha pública que estava sendoinaugurada no meu bairro, tinha poucos alunos, na minha sala somente 10. Comecei a mesentir a vontade, fiquei nesta escola pública até a oitava série.

Durante este período, com treze anos, eu comecei a me envolver com a igreja evangé-lica, e, dentro da igreja, senti a necessidade de conhecer mais a Deus. Apesar dessa institui-ção ter me ajudado muito, percebi que aquela concepção de igreja não resolveria os meusproblemas existenciais. Eu precisava de algo mais. Com a ausência paterna, projetei emDeus os problemas que sofria com a figura do meu pai: eu sabia que Ele existia, mas estavasempre distante de mim. Mas não me conformei com aquela situação de sentir Deus demodo tão distante. Comecei a buscar a realidade com Deus, pois queria conhecê-lo de fatoe não só de ouvir falar. Queria a realidade do viver de Cristo em mim. Nessa busca euencontrei vida, consciência, equilíbrio e sentido para minha existência.

Graças a Deus, consegui perceber o limite entre o que era de Deus e o que o homemfazia no lugar de Deus. Foi quando decidi romper com a instituição e me apegar tão somenteem Jesus. Isso foi uma revolução para minha vida, de modo que passei a enfrentar novosdesafios e viver algo novo em Deus, um caminho desconhecido. Sofri muito preconceitopor causa desta decisão, mas com o passar do tempo e tendo por base o princípio “conhecereisa verdade e ela vos libertará”, vejo que essa foi a melhor decisão da minha vida. Disso tireiforças para enfrentar desafios, dificuldades que surgiram me fizeram ver o meu caos de umaforma diferente e de criar meios para contornar todas minhas limitações, inclusive sociais.

Nos moldes da escola pública era considerada boa aluna e não reprovei em nenhumano. Porém, quando cursei a oitava, estava totalmente desmotivada. Minhas irmãs maisvelhas já tinham parado de estudar e eu não sentia nenhuma motivação nenhuma paracontinuar. Exatamente nessa época, surgiu a oportunidade de estudar na Fundação Bradescode Aparecida de Goiânia. Nossa! Quando entrei pela primeira vez naquela escola tão lindafoi como um sonho. Eu desejei tanto estudar lá e consegui. Minha alegria foi tão grande queultrapassa a capacidade das palavras. Ser selecionada nesse processo renovou o meu desejode estudar. Para uma aluna de origem popular e negra estudar numa escola de alta qualidadede ensino e tecnologia avançada, recebendo gratuitamente todos os materiais escolares, ouniforme completo, informática, alimentação, artes, música e esportes significou mais queuma oportunidade, algo inexplicável.

Terminei a oitava série e concluí todo ensino médio na Fundação. Durante esse perío-do, me profissionalizei no curso de cabeleireira que a Fundação oferecia de graça paraalunos e comunidade. A atividade informal de cabeleireira me supriu financeiramente até oinício do terceiro ano. Eu arrumava cabelos na casa das pessoas e sobrava um tempinho paraestudar. Como ganhava muito pouco, tive que trabalhar de secretária o dia inteiro e estudara noite. Isto foi o inicio do meu pesadelo, pois passei a não ter tempo para me dedicar osestudos e minhas notas foram lá em baixo, justamente no fim do terceiro ano, quando era

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72 Caminhadas de universitários de origem popular

ainda mais importante estudar. Tal realidade fez com que me sentisse incapaz de prestarvestibular na Universidade Federal de Goiás. Via muitos dos meus amigos pelo menostentando, e eu nada.

Fui um fracasso no serviço de secretária onde eu estava trabalhando. No final do anoperdi o emprego, mas graças a Deus passei de ano. Não prestei vestibular, fiquei tãofrustrada que no ano seguinte eu não consegui exercer nenhum trabalho formal e nãoestudei. Me mantive apenas com meu serviço de cabeleireira. Um ano depois, a FundaçãoBradesco me chamou novamente para fazer um curso Técnico em Gestão Organizacional.Foi neste momento que conseguir ver o mundo em minha volta de modo diferente. Apro-veitei cada detalhe desse curso, que era uma oportunidade única de mudar o rumo daminha história profissional.

Este curso técnico me ajudou no aumento da auto-estima. Os professores nos esti-mulavam a ser empreendedores e a buscar os nossos objetivos. Neste momento, senti quepoderia fazer um cursinho e prestar o vestibular na UFG, apesar disso ainda ser um desa-fio. Minha família achava impossível passar na UFG, mas não me importei e continueirumo a meu objetivo. Vejo que Deus sempre colocou pessoas certas no meu caminho parame ajudar. Uma dessas pessoas é hoje o meu esposo. Na época em que era só meu amigo,me ajudou muito e foi um exemplo para mim, pois também é de origem popular, oriundode escola pública, e, com muito esforço e dificuldade financeira, conseguiu passar naUFG. Ele cedeu todos os seus livros e me ensinou matemática, física e química. Foi umperíodo angustiante e de sofrimento. Tinha que trabalhar, fazer cursinho, estudar e fazer ocurso técnico.

Alguns dias antes de fazer a prova do vestibular, Teddy e eu, começamos a namorar.Foi muito bom, pois me deu mais inspiração para fazer a prova. Foi a primeira vez que tenteiprestar o vestibular. Nunca tinha tentado antes, porque eu sabia que não passaria. Foimaravilhoso quando saiu o resultado da minha aprovação, pois tinha me esforçado muito.Antes de sair o resultado, as pessoas pensavam que todo aquele esforço era em vão, mas,graças a Deus, nada foi em desperdiçado. Consegui passar no vestibular, sair bem no cursotécnico, pagar o cursinho e ainda namorar a pessoa que eu amo.

Quando cheguei na Universidade foi uma decepção, pois, além de tudo, os cursosmenos concorridos são preteridos em relação aos demais. Me sentia perdida. Ninguémdava nada para meu curso, pois ele era para gente pobre, que não tinha como entrar numcurso melhor, então fazia esse. Ainda tinha o problema da distância. Da minha casa àUniversidade tinha que atravessar Goiânia inteira. Os ônibus são tão lotados que penseiem desistir de estudar. Mas logo pensei: “Foi tão difícil chegar...Desistir agora?” Entãocontinuei, mesmo que com dificuldades cada vez maiores, já que percebi que muito maisdifícil que entrar, é permanecer.

No primeiro ano de faculdade tive que trabalhar em um salão de beleza, pois sem umarenda fixa não tinha condição alguma de manter os estudos. Minha família estava commuitas dívidas e eu precisava trabalhar. Trabalhava todos os dias e aos sábados trabalhava14 horas seguidas, com um único intervalo de 5 minutos. O dia inteiro em pé, semtempo sequer para almoçar, cheguei num nível de estresse tão grande que fui parar nohospital, pois fiquei muito doente. Foi terrível. Nessa época meus pais se separaram e ascontas se acumularam. Tive que pegar empréstimos para pagar a luz que estava atrasadahavia três meses.

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Minhas notas estavam péssimas, mas venci com a graça a Deus. Saí do salão no qualera praticamente escrava. Recebia muito pouco e a dona do estabelecimento não me pagavadireito. Fui para outro salão, onde passei a trabalhar menos. A dificuldade então passou a sera distância. Saí também desse salão e ganhei a bolsa do Conexões de Saberes.

O programa foi uma benção na minha vida, pois além me ajudar financeiramente aoponto de possibilitar o sonho de me casar, ainda mudou minha visão de mundo ao ampliarmeus horizontes e gerar a compreensão da minha realidade. Passei a me sentir inclusa noprojeto de uma nova sociedade. Hoje valorizo minhas origens, não sinto vergonha nem doque sou nem do meu curso, pois tudo isso se tornou de grande valor para mim.

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74 Caminhadas de universitários de origem popular

Alan Rodrigues de Azevedo*

– Alô! Gostaria de falar com Alan!– Sou eu, quem está falando?–É a Cleide, estou te ligando pra dizer que saiu o resultado da UFG.Nesse momento meu coração disparou: era um misto de ansiedade, medo, angústia.

Seria diferente desta vez? Ou iria começar todo meu sofrimento de novo? Era o fim de anosde espera, ou tinha chegado meu grande dia? Todos esses pensamentos assaltaram minhamente naqueles poucos segundos.

–Alan, Alan! Você está na linha?–Estou, pode falar. Passei ou não passei? Estou preparado!–Na verdade, eu não sei direito...Nessa hora meu coração pulou do peito. Ela sabia sim do resultado e estava com medo

de me dizer que eu não havia passado. Era só o que passava na minha cabeça. Ela estava semcoragem pra me dar a triste noticia. E ligou pra quê? Pra rir da minha cara? Pra me consolar?Pra chorar comigo?

–Fale logo, não estou suportando essa angústia!Não entendi minha insistência. Eu não acreditaria em nada do que ela dissesse! Se

falasse: “Alan, você não passou”, eu ia odiá-la por ter sido a portadora daquela notíciatrágica, mas preferiria ficar com a ingenuidade de pensar que ela estava enganada. Mas, e seela dissesse que eu passei? Também não acreditaria. Nessas horas fico possuído pelo espíri-to de São Thomé e só acredito naquilo que eu mesmo posso ver. Então, pra quê tantainsistência? O melhor era desligar aquele telefone e correr atrás do resultado.

–Alan, eu realmente não sei. Acabou de sair o resultado e a internet está congestionada.– Muito obrigado Cleide. Vou desligar para conferir com meus próprios olhos.– Boa sorte!– Valeu.Desliguei o telefone e um monte de teorias de perseguição se insinuava. Se saiu o

resultado e ninguém me ligou é porque não passei! E agora? Vou ficar aqui nesse martírioe angústia, esperando que algum ser humano iluminado se encoraje e me ligue? Decidi queninguém podia fazer por mim aquilo que era minha obrigação.

– Estou saindo pra olhar o resultado do vestibular da UFG! - Comuniquei minha chefedo trabalho.

“À espera de um milagre”

* Graduando em Medicina pela UFG.

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– Saiu o resultado?– Saiu! – Gritei de longe pra não dar tempo de ela tentar me impedir de sair no meio do

expediente.Fui para o ponto de ônibus. Meu destino era o Centro de Seleção da UFG. Queria ir até

lá pra ver com meus próprios olhos o resultado. Aquele caminho nunca tinha sido tão longo.Foram os 20 minutos mais longos da minha vida até chegar ao resultado. Quando desci noponto, na Praça Universitária, parece que minhas energias foram todas sugadas pelo medo.Pessoas correndo, outros gritando, alguns chorando. Precisava correr pra acabar de uma vezpor todas aquela angústia mortífera que eu sentia.

Ao chegar no mural do Centro de Seleção, meus olhos corriam desesperadamente embusca do meu nome. Avistei de longe: Medicina. Está lá o meu curso! Nesse momento devofazer uma pausa pra registrar que nessas horas odiava meu nome começar pela letra A. Eunão podia me iludir muito. Logo no início saberia se o meu nome estava ou não na lista dosaprovados. Continuei correndo os meus olhos, e: Adriana Machado Mendonça, Aída FrennerCosta, Alan Rodrigues de Azevedo. O quê? Sou eu mesmo? Não é possível! A primeiralágrima rolou dos meus olhos. Não acreditei, precisava confirmar pelo número da identida-de. Não podia ser verdade! Confirmado: SSP-BA. Era eu mesmo! Comecei a chorar e a gritar.Minha felicidade era grande demais pra caber dentro de mim. Era 31 de janeiro de 2003.Tinha chegado o meu grande dia.

Precisava repartir aquela alegria com alguém. O delicioso gosto da vitória me enchiade coração. Corri para um telefone público pra ligar para os meus pais, na Bahia. Minhairmã mais velha atendeu o telefone e quando lhe dei a notícia, ela também não conteve aemoção. Choramos muito juntos, pelo telefone, naquele dia. Mainha estava trabalhando epaínho estava na roça. Ela foi a primeira a saber.

A nossa emoção era maior porque nos lembrávamos da música que dizia:

“Vai valer a pena,ter amanhecido,ter me machucado,ter me socorrido...”. Ivan Lins

Toda minha luta contra um sistema desleal de disputa havia terminado. Eu acabava detranspor a barreira da desigualdade. Aquele menino pobre, nascido em Caetité, no sertão daBahia, era agora, acadêmico de Medicina na UFG.

Toda minha vida de luta contra a maré pra chegar até ali tinha me levado aomelhor destino que podia imaginar. Rompemos o muro que me separava da universida-de e me tornei o primeiro daquela família a entrar numa Universidade Federal. Não foifácil. Foram 3 anos de espera. Já estava em outro curso superior, já que não podia pagarcursinho e muito menos passar mais tempo “à espera de um milagre”. Milagre? Sim,milagre. Analisando toda minha vida e as oportunidades que tive, muitos dirão que foium milagre.

Entretanto, foi um milagre conquistado a cada dia por mim e por minha família. Nãofoi como aqueles milagres que a gente levanta as mãos para o céu e espera a bênção. Ah, nãofoi mesmo. Foram muitas batalhas, muitas renúncias, muitas feridas, algumas cicatrizes.

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Foram anos de muito sofrimento compartilhados com as pessoas que lutaram, choraram eagora, venceram comigo: mainha, painho e minhas irmãs.

E a luta? Essa não pára. E nem poderia! Eu continuo nadando contra a corrente. Umaluno de origem popular em um curso totalmente elitizado.

–Hoje nós vamos dar início ao estudo prático da semiologia médica. Já dividi os leitosdo hospital entre vocês. Alan, você ficou com o leito 1A da Medicina Tropical.

– E o que eu devo fazer?– Vá até lá, entreviste o paciente internado e faça o exame clínico completo. Você tem

20 minutos pra fazer isso. Essa é nossa primeira avaliação.– O senhor não avisou que seríamos avaliados!– Seu tempo está correndo doutor!Fui ao leito destinado. Era meu primeiro contato com o paciente. Agora, do outro

lado. Naquele instante, como um flashback, lembrei da minha tia. Eu tinha 10 anos. Elasofria de câncer e já estava em fase terminal, mal se alimentava. Não conseguia realizar suahigiene pessoal sozinha. Me chamava no canto da cama e pedia pra que eu abanasse asmoscas que já estavam tomando conta do seu corpo. Naquele dia, como em outros, passei atarde “cuidando” dela. Ela se foi, mas me deixou o desejo e a missão de cuidar das pessoas,aliviar seu sofrimento e, quando possível, curar sua doença.

– Alan, terminou o exame?– Mais ou menos professor!– Como mais ou menos?– Não tenho estetoscópio, nem esfigmomanômetro e nem martelo neurológico.– Não tem por quê?– O senhor quer mesmo saber? Não tive condições financeiras de adquirir o material!– Você tem que aprender a determinar suas prioridades!Não iria adiantar dizer a ele que não era uma questão de prioridade. A Faculdade

ignora a existência de alunos de baixa renda em seu corpo discente. Mais uma vez, mesmocom a emoção de estar de frente ao meu primeiro paciente, a Universidade tentava me dizerque eu não devia estar ali. Mas essa era apenas mais uma etapa e eu sabia que, mais uma vez,chegaria ao final.

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Jenhiffer C. de J. Medeiros*

Eu tenho memórias, lembranças de outrasruas, outros lugares, muitas experiênciasque contribuíram ora de forma saudável,ora de forma amarga para o que eu sou hoje.Eu seria injusta se esquecesse dessashistórias antes de mim, esse passado que foitão importante para minha formaçãopessoal e emocional. Tentarei ser breve...

Maria José é filha do Tocantins, nasceu na minúscula Palmeirópolis-TO. Foi criadapelos avós, pois sua mãe (Maria Célia) prometeu que se tivesse gêmeos, daria um dos filhospara a avó paterna (dona Belarmina) criar. Dona Belarmina quis a menina e, logo, o menino,José Maria, foi criado pela Maria Célia.

Maria José adorava sua avó Belarmina e seu avô José Augusto, mas a avozinha queri-da morreu quando ainda era jovem, e senhor Zé Augusto a terminou de criar. Até hoje ela ochama de pai: “o pai Zé Augusto”. Eu acredito que ele foi a pessoa mais importante de suavida, quem mais a amou.

Ele provou que a amava demais quando cuidou dela na adversidade, talvez uma dasmaiores de sua vida. A pequena Maria José, aos 5 anos, teve uma doença grave nos ossos:osteomielite. Por causa dessa doença grave, os ossos lhe saíam carne a fora. Isso lhe rendeualguns buracos pelo corpo e uma má formação no lado esquerdo, principalmente na bacia ena perna esquerda que é mais curta que a perna direita. Zé Augusto, sem ter muitos recursos,não pôde evitar o problema físico. Construiu com suas próprias mãos as “muletas” demadeira para a menina conseguir andar. Até hoje ela gosta do que seu avô inventou econtinua fiel ao formato das muletas de madeira.

Tão jovem, ela superou essa adversidade, mas de certa forma, ela morreu e renasceu.Se tornou uma moça muito perspicaz e inteligente, tinha lá os seus grilos, mas nada quelhe tirasse a vontade de ver um próximo dia, a vontade de andar e realizar alguns sonhos.Ela subia nas árvores, ouvia músicas e jornais no seu rádio, mas adorava uma estação quefalava do Rio de Janeiro enquanto ela imaginava a cidade. Nasceu o desejo de ir para oRio algum dia.

O testemunho da sobrevivente

* Graduanda em Letras pela UFG.

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78 Caminhadas de universitários de origem popular

Veio para Goiânia, ficou amiga de sua mãe, trabalhou algum tempo e garantiu obenefício do INSS por invalidez. Em 1982, ela foi para o Rio de Janeiro com a cara e acoragem. Queria ser atriz e até estudou em uma escola especifica, mas desistiu. Ela andavapor toda a cidade sem conhecer nada, só perguntando.

Cícero é filho do Ceará e foi tentar a vida no Rio de Janeiro, estudar. Mas ele não tevepara onde fugir, teve que largar os estudos e trabalhar. Passou fome na cidade maravilhosa,enfrentou muitas dificuldades. Um dia do ano de 1977, embriagado, ele foi atravessar umaavenida do centro da cidade - ele me disse certa vez que pensou que daria tempo de correr,que não aconteceria nada. De fato, uma das pernas conseguiu se apoiar na calçada, a outraque estava na rua, um carro que ele pensou estar longe, a arrancou. Ele perdeu muito sangue,não tinha pulso, foram achar artéria para a transfusão na axila. Aos 19 anos, ele ficou sem aperna esquerda, e tem, como ele mesmo diz, um “cotoco” acima do joelho. Ele “morreu”,mas como a Maria José, renasceu e continuou a sua caminhada.

Um dia, eles se conheceram num ponto de ônibus no Rio de Janeiro em 1982. Ele aajudou a carregar a mala e rapidamente conversaram. Ela disse que era de Goiás, e ele, então,lhe passou seu endereço, caso aquela linda moça precisasse de ajuda.

O dinheiro acabou e Maria teve que voltar para Goiás, mas voltou carregando oendereço daqueles olhos azuis que ela havia achado tão educado! Escreveu para ele pedin-do ajuda, pois queria morar no Rio de vez. Ele respondeu e a ajudou a voltar. Quando elachegou, ele já tinha alugado um casebre barato para ela morar e a partir desse momento oCícero e a Maria José começaram a namorar.

Mas um dia apareceu uma mulher grávida na porta da Maria José, a Antônia (vulgoLúcia). Ela queria falar com Cícero, mas ele não morava lá. Então Lúcia decidiu contar tudopara Maria mesmo. Disse que era uma ex-namorada, que morava no Ceará e que o filho queela estava esperando era do Cícero.

A Maria José ficou atônita, esperou o rapaz ir lhe visitar e terminaram tudo. Assustada,ela voltou para Goiás. Algum tempo depois, ele veio para Goiás procurá-la, jurou paraMaria que mal conhecia a mulher e que não sabia do filho. Ele a pediu em casamento, elaacreditou em suas palavras e como gostava muito dele, aceitou. Se casaram no civil emjulho de 1982. Foram morar de aluguel no Rio de Janeiro novamente.

No início do casamento foi que Maria José conheceu realmente o Cícero: ele era umhomem estúpido, arrogante, tinha muitos problemas psicológicos em decorrência de terperdido a perna e bebia. Começou para Maria José uma nova onda de provação, um casa-mento horrível, com um homem muito ignorante.

Em outubro de 1982, nasceu o Clayton filho da Lúcia e do Cícero, meu meio-irmão.Cícero ganhou algum dinheiro na loteria e foi demitido. Decidiu comprar um terreno emNova Iguaçu, na Baixada Fluminense onde passou a morar com Maria.

A vida passava e o casamento continuava um suplício. Cícero não queria mudar suasatitudes de “boêmio” (como ele mesmo diz) e a Maria era alucinada por ele. Ele faziaconstantes viagens ao Ceará, ia sempre. Em 1986, uma surpresa, nasce Shirley, segundafilha de Cícero com Lúcia, outra meia-irmã.

E eu, onde estou nessa história?No meio de 1986, minha mãe teve coragem e engravidou. No entanto, ela tinha receio

de ter uma filha completamente sozinha. Eu nasci perto da família, aqui em Goiânia, noMaterno Infantil, em abril de 1987. Segundo minha mãe, Maria José, o meu pai, Cícero, ficou

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muito bravo quando soube de mim, mas eu era um sonho antigo da minha mãe. Ela persistiue não deu ouvidos aos médicos tolos que disseram que ela não poderia ter filhos: me pôs nomundo, com duas pernas, dois braços, tudo no lugar e muitas gordurinhas distribuídas pelocorpo pequeno. Ela me registrou num cartório de Goiânia. Deu o nome de Jenniffer, mas amoça que me registrou não entendeu o segundo “n” de minha mãe e colocou um “h”, resulta-do: Jenhiffer. Por este fato sou única no mundo, ninguém tem um nome feito o meu.

Minha mãe voltou comigo para Nova Iguaçu, para sua casa, para o marido agressivo egritador. Ele nunca bateu em minha mãe, mas gritava e xingava como ninguém!

Em 1992, eu comecei a freqüentar escolinhas particulares, acho que fazia o jardim.Lembro que rabiscava muito e fazia muitos desenhos. Minha mãe já me ensinava algumascoisas, a desenhar as letras, rabiscar números.

Como minha mãe não tinha condições de continuar pagando, entrei para a escolapública em 1993. Comecei fazendo o pré, e era tão difícil! Minha mãe brigava comigo poiseu não conseguia desenhar os traços. Até hoje eu sou hiperativa e na infância era muitomais. Os meus pais não compreendiam minha teimosia e eu apanhei bastante. Me tornei aválvula de escape dos dois; da minha mãe por viver humilhada, do meu pai por qualquermotivo banal.

Apesar das dificuldades, eu consegui fazer a primeira serie em 1994. Nesse ano fomospela primeira vez em Goiás e no Tocantins, nas férias. Nessa viagem conheci meus avós,meus tios e primos, foi muito bom! Ainda em 1994, nasceu a terceira e última filha do meupai com a dona Lúcia, a Jane.

Meu pai fazia constantes viagens ao Ceará. Eu e minha mãe passávamos muitas difi-culdades, chegamos a passar fome, os vizinhos nos ajudavam dando um prato de comida.Eu lembro que assistia aos desenhos, ao programa da Xuxa e chorava de vontade de ter oque eles tinham.

Minha mãe era uma mulher agressiva, não agüentava minha teimosia e me batia semdó. Um dia a professora me perguntou por que eu estava toda roxa, eu fiquei com vergonhae não respondi.

No fim de 1995, viemos passar o Natal com a família em Goiás. Meu pai decidiuseparar e vender a casa em Nova Iguaçu. Desde então, nunca mais eu vi os rostos queridosdos meus vizinhos, que eram minha família. Meu pai trouxe a mudança algum tempodepois.

Em 1996, eu fui matriculada no Colégio Rui Barbosa, no Setor dos Funcionários, iafazer a terceira série. Minha mãe foi no Rio de Janeiro buscar a metade do dinheiro da vendada casa. Ficou uns dias fora e foi horrível para ficar sem minha mãe, eu ficava muito triste.Quando ela retornou, uns três dias depois ela quebrou a perna esquerda, a mais frágil e todosdisseram que a culpa foi minha. Ela ficou muitos dias internada e eu sofria muito com adistância, tinha medo que minha mãe morresse.

Passado um mês ela voltou para casa, mais amarga do que nunca, eu não sabia por que,mas ela destilava todo veneno em cima de mim, falava coisas que hoje são muito difíceis delembrar, mas que foram muito importantes e contribuíram para minha formação.

Renascer, recomeçar e, no meu caso, crescerNo fim de 1996, minha mãe financiou dois lotes no Setor Veiga Jardim IV, em Aparecida

de Goiânia, onde vivemos até hoje. Nos mudamos em dezembro e na nossa casa não tinhaágua, nem luz, mas era muito bom viver no barracão novo.

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80 Caminhadas de universitários de origem popular

Em 1997, comecei a quarta série à tarde no Colégio Petrônio Portella, em Aparecida.Minha mãe me levava de coletivo pra escola, tinha medo que eu me perdesse. O meu paicontinuava no Rio, mandava notícias às vezes, ligava no colégio para falar comigo, memandava presentes.

No ano seguinte ele veio à nossa casa, pediu o divórcio à minha mãe, começou aconstruir no outro lote - disse que a casa era para mim, me apresentou à cultura protestantedizendo que era um homem remido pelo “Sangue do Cordeiro”, que agora ele era omelhor dos seres humanos. Segui a mesma religião e mais tarde me decepcionei, abando-nando a igreja.

No colégio, eu não tinha dificuldades com as matérias, eu passava de ano sempre,nunca reprovei. Meu problema era com os colegas, sofri até o terceiro ano do ensino médiotodo tipo brincadeira, todo tipo de humilhação possível de se imaginar. Mesmo assim, eucontinuava forte, pois eu tinha que chegar em algum lugar!

Antes de começar a quinta série, eu roubava livros de inglês das bibliotecas, das escolas,ninguém nunca me pegou, melhor pois eu tinha uma vontade enorme de aprender inglês!

O primeiro poema que escrevi foi para um professor de português por quem eu eraapaixonada. Se chamava a flor, inspirado no primeiro poema que li, do Castro Alves: DuasRosas. Desde este episódio, nunca mais parei de escrever. Foi nessa época que comecei ausar óculos por causa da miopia.

Meu pai se mudou para Goiás e morou um tempo com a gente em 1999. Em 2000, eletrouxe a família do Ceará para morar no estado, em outro bairro é claro, mas meu pai semprevinha me visitar.

Em 2000 fiz a sétima série, fui para o matutino, arranjei o primeiro namorado escondi-do e dava uma de rebelde sem causa. Comecei a querer me revoltar, a fumar. Minha mãedescobriu tudo e me deu uma boa surra, me fez contar a história do cigarro e do namorado,me fez terminar com ele, obedeci. Nesse tempo minha mãe começou a mudar e eu também,ela para melhor, eu para pior.

Comecei a oitava série e os amigos estavam mais mordazes do que nunca. Eu descon-tava tudo em casa, berrava como uma louca e adquiri o hábito de xingar que cultivo atéhoje. Nesse ano, fiz amizade com a diretora da escola depois que ganhei uma gincana parao colégio. Todos passaram a me “respeitar”, a tirar dúvidas, pedir cola, coisas assim. Nessetempo odiava química: o professor era um estudante universitário e eu não entendia nadado que ele falava! Deus! Odeio o Linus Paulin até hoje! Eu dizia que queria fazer faculdadede Inglês, nem sabia que essa faculdade era a de Letras! Às vezes eu dava aulas no lugar daprofessora, eu acho que ela deve ter ódio de mim...

No primeiro ano tive o primeiro contato com Espanhol e odiei de cara, nunca gostei defazer trabalho, de escrever longas páginas, responder tarefa em casa - nunca fui disso e aprofessora de espanhol era cheia dessas coisas! Passei a odiá-la e era recíproco. Nesse ano de2002, conheci um cara que me motivou muito a aprender inglês. Ele morava em Londres eeu ficava louca de vontade de conhecer a cidade, louca pra ir pra outro lugar! Do mesmojeito que o conheci, ele foi embora. Nunca mais nos falamos.

Dos conflitos para a universidadeOs anos no ensino médio, eu creio, foram os piores. Os professores eram estudantes,

havia muitas greves e eles não sabiam as matérias, só se salvavam uns dois que sabiam

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realmente dar aulas. No segundo ano fiquei sabendo o que era vestibular, o que era UFG eque faculdade particular era a pior coisa que existia no mundo.

As dificuldades continuavam. Minha mãe e eu continuávamos a viver em pobrezaextrema, dependendo da caridade dos parentes, minhas roupas, meus calçados eram usados.Até os professores zoavam com a minha cara. E os colegas? Deus! Era um inferno que euqueria acabar logo!

Meu primeiro vestibular foi passar na prova do cursinho comunitário que a igreja iapromover naquele ano. Consegui passar, ia fazer o cursinho à noite e o terceiro ano demanhã. Foi o pior ano de todos! Eu queria me livrar da escola, eu queria que o cursinho fossepara o inferno. Eu estava mais triste e sozinha do que nunca, não por acabar o ensino médio,mas pela incerteza de um futuro, a angústia de pensar o que eu faria depois.

Quando começamos no ensino médio, eu sentia que as matérias eram mais difíceis eenfrentar um vestibular era como pular em uma piscina sem água. No terceiro ano não foidiferente. Eu chegava do cursinho meia-noite e acordava às seis para ir para a escola. Porfim, não acompanhava o ritmo de nenhum dos dois. Não fazia os simulados a noite, e, dedia, só conseguia dormir nas aulas.

Uma professora de Biologia na época, não compreendeu minha situação e me deu umasuspensão de três dias por um motivo ridículo, acho que ela estava de TPM naquele dia, elaerrou meu nome na ficha de suspensão umas três vezes... eu me senti traída, aquela era umadas poucas professoras que eu admirava e ela estava me colocando num buraco, pois euteria prova nos dias de suspensão e aquela situação poderia valer minha vaga na faculda-de... mas tudo se resolveu, nunca mais olhei na cara dela, nem ela na minha.

Matei muitas aulas no cursinho, preferia ficar na biblioteca lendo livros e jornais. Eufico imaginando minha situação se não tivesse passado no vestibular, minha mãe gastandotudo o que podia para que eu fizesse o cursinho e eu não valorizava isso. Matava muitas aulasno colégio também e, resultado: quase reprovei por falta, em física, matemática e espanhol.

Nesse ano fiz o Enem, tentei isenção da taxa do vestibular na UEG e na UFG, conseguiisenção total na UEG e na UFG não. Fiz todos esses vestibulares todos para Letras, a bolsado Prouni eu tentaria para jornalismo. Eu passei em todos, mas fiquei pela primeira vez, derecuperação na escola, faltavam três pontos na média para eu passar em espanhol. Deus, euodeio espanhol até hoje!

Consegui passar na escola, não fiz minha matrícula na UEG, o resultado do vestibularda UFG só ia sair em fevereiro de 2005. Então fui fazer minha matrícula na Camburi, ondeganhei a bolsa para estudar jornalismo. No primeiro dia de aula, contei para uma meninaminha situação, que estava esperando o resultado da federal. Mal terminei de falar isso, elame disse que não trocaria a federal por nenhuma faculdade do estado e faria até o “pior” doscursos na federal. Eu confesso que quando ouvi aquilo fiquei tocada, senti um estalo namente e pensei, se eu passar, tenho que pensar bastante no que é melhor para mim!

Quando fui conhecer o Campus II para fazer a segunda fase do vestibular, me impres-sionei com a distância e com a estrutura das faculdades. O prédio da Letras era um dosmelhores, mesmo assim a impressão que eu tive da UFG ficou maculada, por isso queriaestudar onde tinha ganhado a bolsa.

No outro dia saiu o resultado, acordei cedo fui comprar o jornal, quando olhei na lista,meu nome não estava. Mas quando olhei direito, descobri que eu estava olhando na lista deengenharia de alimentos e é claro que meu nome não estaria lá, pois eu prestei pra Letras!

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Finalmente olhei na lista de Letras matutino e lá estava um dos maiores nomes da lista:Jenhiffer Carvalho de Jesus Medeiros. Soltei um berro, sai correndo querendo chorar, aspessoas me olhavam como louca e eu balbuciava: passei na federal, eu passei... eu fui aúnica que tinha passado no vestibular da UFG, naquela turma de terceiro ano.

Por causa disso, minha madrinha me deu o computador de sua filha, pois ela tinha umnotebook e não precisaria mais do antigo computador. Num primeiro momento fiquei mui-to feliz com o gesto, afinal seria de grande valia na faculdade e eu pensava que jamaispossuiria um computador, mesmo que fosse velho. Depois, senti meu orgulho e dignidadeferidos, porque eu percebi que minha madrinha me deu esse “presente” não por eu terpassado no vestibular, mas por que o computador não teria mais serventia em sua casa e elanão poderia mais lucrar com ele. Para não jogar fora me deu. No entanto esse presente meiolouco serviu e me serve até hoje, sou grata pela “intenção” que ela teve.

Nunca mais apareci na faculdade onde me matriculei, só avisei que tinha passado nafederal e que não iria mais estudar lá.

Quem disse que as dificuldades acabaram?Uma tia avó deu o dinheiro da matrícula, minha mãe não tinha, pois o dinheiro de seu

beneficio mal dava pra pagar as contas. Juntei todos os documentos e fui fazer a matrículasem o certificado. O secretário da escola, disse que dava para fazer só com o histórico, só quequando cheguei na faculdade a Margareth da secretaria da faculdade de Letras avisou quenão poderia fazer a matrícula sem o certificado, lá vou eu ficar desesperada...

Fui na escola buscar o certificado e o secretário falou “umas” na minha cara. Me deuvontade de gritar, até de mata-lo. Então eu lhe disse, com toda calma do mundo, que euperderia a vaga e tentaria no próximo ano. Ele, então, ficou sem graça e disse que daria umjeito. Acho que estava querendo fazer chacota com a minha cara.

No último dia para fazer a matrícula, busquei o certificado e fui na faculdade. Graçasa Deus deu tudo certo. Os veteranos lambrecaram minha cara, sujaram minhas costas, volteipara casa toda feliz e imunda. Eu era estudante de Letras, eu ia fazer o que eu sempre sonhei:Inglês! Mas eu não sabia que devido minha colocação no vestibular eu iria para o Espanhol.Quando descobri, meu mundo acabou, me deu uma vontade de morrer, uma descrença... euteria que suportar estudar espanhol por mais dois anos, mas eu tinha pelo menos que tentar!

Nos primeiros meses de faculdade, eu me senti confusa com o ritmo: ninguém chamavaa atenção, não tinha uniforme, não tinha chamada, não tinha sinal para sair e o professorestudava com você um ano e mal sabia seu nome. O ritmo da faculdade, para mim, era alucinado.Fiquei muito confusa no primeiro ano, meio perdida, quase reprovei várias matérias.

As dificuldades vieram: dinheiro para xerox, dinheiro para livro, dinheiro para ôni-bus. Para chegar no Campus II eu pegava seis ônibus por dia, aquilo cansava de mais, cansaaté hoje, pois ainda não disponho de um meio de transporte mais eficaz...

Eu odiava ir para a faculdade estudar espanhol, eu sonhava com inglês! Meu maiorsonho, minha maior vontade era estudar inglês, pois eu sempre fui dedicada nessa matériana escola e já estava em um nível bom. Tentei passar em um exame para trocar de línguaestrangeira na faculdade, mas minha nota foi ridícula e continuei no espanhol.

No fim do ano, arranjei um emprego por experiência, seriam só três meses, mas comdois eu fui demitida. O trabalho exigia eficiência e rapidez, foi na época do Natal que medemitiram, fiquei triste, mas foi melhor, pois por causa desse emprego eu estava abandonan-do a faculdade, que estava sempre em cima da linha e eu quase reprovando.

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No ano seguinte, 2006 eu pus na cabeça que eu iria fazer inglês com os novatos, maseu teria que estudar a tarde, teria que pegar matéria de português, matérias gerais, inglês eespanhol, dava pra ficar louca, mas assim eu fiz. Eu amava meu curso, mas era como se elefosse um bolo sem o recheio. Eu precisava estudar inglês, senão não teria valido a penatudo o que eu fiz para ter chegado aonde cheguei.

Então, vieram mais dificuldades: eu não podia trabalhar, meu tempo estava todo ocupadocom a faculdade e não tinha bolsa alimentação, mais uma despesa: o Restaurante Universitário.

No fim do semestre tentei monitoria de Latim e não consegui, tentei outras coisas enão consegui. Minha mãe tinha que pedir dinheiro emprestado para me sustentar, o meu paivinha sempre me visitar, me dava uns trocados, mas ele também não tinha quase nada, poisgastava com putaria na rua (ele expulsou a família de casa e morava sozinho).

Foi então que eu vi um edital no mural da Letras. Na minha cabeça ler aquele editalteve o seguinte significado: se você é pobre, saiu de escola pública e está pensando emlargar a faculdade, seus problemas se acabaram, o Programa Conexões de Saberes quer tedar uma oportunidade!!!

Enfim minha miséria social serviria para alguma coisa: ganhar aquela bolsa que eumerecia! Eu pensava que ninguém merecia mais do que eu, pois minha mãe mal tinha 270reais para nos sustentar, pois estava pagando um empréstimo e nós duas vivemos em situa-ção muito difícil mesmo. Ela até hoje não quitou as prestações de nosso barraco e temosmuito medo de ser despejadas.

Preenchi a ficha de inscrição, coloquei todas as cópias de documentos e larguei dentrodo caderno para levar depois. Um dia vi uma colega com a ficha e lembrei que tinha quedeixar a ficha na PROEC. Fomos juntas.

Passou uns dias, estava fazendo prova, terminei em menos de dez minutos, pois euqueria olhar na internet se tinha sido selecionada para o programa! O meu nome estava nalista, enorme como sempre e pela segunda vez na vida sai gritando e pulando, chorando ecorrendo! Eu não sabia o que fazer, agradecia a Deus e dava murros nas paredes!

Fui inserida do programa, participei de todas as reuniões. Alguns problemas foramresolvidos, mas uns professores não gostaram muito, pois tive que matar umas aulas.

Lembro de que a primeira coisa que eu comprei para minha casa foi um chuveiro,pois tomávamos banho na água fria.

O grupo da UFG ficou a par do que seriam as atividades a serem efetuadas, mas foi nofim do ano de 2006, quando nós fomos para o seminário nacional, que eu percebi agrandiosidade do Conexões, e senti orgulho de fazer parte daquilo.

Teve o lado financeiro que foi muito bom para me ajudar, mas o Conexões me fez sentirimportante. Esse programa me trouxe uma dignidade que eu nunca tive, uma autonomia queeu pensava que nunca teria. Até meus professores de graduação têm certa estima pelas minhasidéias. Por isso, e por muito mais, eu sou grata e nem consigo mensurar o quanto.

Desde que eu entrei para o Conexões, senti orgulho de minhas origens e da minhaorigem popular, mas sempre com uma vontade enorme de mudar minha condição social, deser uma cidadã digna, uma vontade maior do que todas que já senti de ver minha mãe bem,pois ela foi a pessoa que mais me apoiou sempre, uma vontade de lutar contra essas injusti-ças que existem, pensar e pensar em “n” maneiras de fazer do nosso mundo um lugar melhor.Não sei se terei êxito, meu maior medo é do futuro, mas estou aí para receber os murros eafagos da vida, morrendo com dor, mas sobrevivendo sempre.

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Eu vejo um horizonte trêmuloEu tenho os olhos úmidosEu posso estar completamente enganadoEu posso estar correndo pro lado erradoMas a dúvida é o preço da purezaE é inútil ter certeza... Engenheiros do Hawai

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Lilian Gomes dos Santos*

Quem sou eu? Uma verdadeira salada mista ou um misto de belos encontros.Goianiense; filha de goianos; neta de baianos e mineiros; bisneta de italianos, índios eespanhóis. O resultado de todas essas permutas gênicas é essa criaturinha de vinte e trêsanos, estudante de biologia e bolsista do Conexões de Saberes, meio através do qual vosfalo neste momento.

Nasci no milênio passado – falando assim me sinto como Matusalém – o ano era 1983,no primeiro dia do mês de novembro. Meu pai, Guerson Gomes, um homem de meia-idade,divorciado, pai de seis filhos já adultos. Minha mãe, Euripea Ferreira dos Santos, umajovem de dezoito anos, cheia de planos, recém chegada do interior do Estado. Seus planosderam lugar a dois filhos e a uma união informal de doze anos.

Como já tinha sido militar, trabalhador rural e motorista do transporte coletivo deGoiânia para “cuidar” da nova família, meu pai, vivia de “rendas”. Alugava barracões e nossupria com o básico do básico, já que ele não permitia que mamãe arrumasse um emprego.“Mulher minha cuida é de casa!” - palavras dele.

Comíamos mal, vestíamos mal, calçávamos mal e sempre estudamos – eu e meu irmãoLindomar – em escolas públicas. Cansada das constantes brigas, humilhações, traições e dadependência financeira, minha mãe, que já costurava em casa, conseguiu vaga em umaconfecção e passou a trabalhar fora, mas não sem brigas, desconfianças, perseguição eciúmes do Sr. Guerson. Era 1994; nesse ano minha mãe começou a ter um salário, fomosexpulsos de casa por ele, passamos a morar em três cômodos alugados por ela e em dezem-bro ele teve um infarto agudo do miocárdio. Morreu aos sessenta e quatro anos e nos deixoua ver o navio afundar.

PeripéciasEnquanto corria o processo de inventário para partilha da casa com os outros seis

filhos do Guerson, continuávamos a morar no barracão do Setor dos Funcionários e a estu-dar no Colégio Estadual Rui Barbosa, que depois passou a se chamar Colemar Natal e Silva,situado no Setor Aeroporto.

De 1993 a 1998, ou melhor da terceira a oitava série no CNS – como dizia minhaamiga Valéria por ter vergonha do novo nome do colégio – fiz grandes amigas (os), brinqueidemais, aprendi muito e comi muita merenda que, aliás, fazia uma tremenda falta quando

“Sou pequenina e também gigante”

* Graduanda em Ciências Biológicas-Licenciatura pela UFG.

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acabava porque era nosso café da manhã e o almoço de vários colegas. Durante esse períodotínhamos o grande privilégio de poder ir a pé até a escola. Meia hora de caminhada epronto; já estávamos lá. Não dependíamos do precário, caótico, oneroso e monopolizadotransporte público de Goiânia. Quantas saudades!!!!!!!!!!!!!

Mas depois de praticamente três anos de processo, de 1995 a 1998, saiu o resultado doinventário. A casa foi vendida, o dinheiro dividido em nove partes (entre os oito filhos emamãe) e para nós sobraram dezesseis mil reais. Após meses de procura minha mãe encon-trou uma casa por esse valor na Vila João Vaz; região noroeste para alguns, região Campinaspara outros. Regionalizações à parte, o certo é que não precisaríamos mais pagar aluguel,por outro lado, para ir a qualquer parte dependemos dos GOLF’S (grandes ônibus lotados efedidos) de Goiânia.

Mudamos para o novo endereço, nova realidade, novos vizinhos, nenhuma amiza-de. Sentia, e na verdade ainda sinto, falta do Setor dos Funcionários, da rua P-7, da casade número 84, em frente ao ex-barracão. Falta não da construção física, mas de todos osbons momentos e pessoas que lá ficaram. Entre estas a moradora do 84, minha amigaCarina Marques.

Após a tempestade percebemos que pessoas especiais são colocadas em nosso cami-nho. Companheiras de todas as horas. A Carminha, mãe da Carina, não deixava de repartirconosco as compras do supermercado ou da feira, que sempre chegavam em ótima ocasião,principalmente, quando as dívidas apertavam e mal sobrava para a comida. Carina estavaterminando o segundo ano do Ensino Médio e iria mudar de colégio. Eu, egressa do EnsinoFundamental, não sabia onde estudar. Só ouvia descrições desoladoras das escolas públicasque tinham nível médio. Com chance nenhuma de ir para a rede particular me matriculei noLiceu de Goiânia, mas sem grandes esperanças de um dia entrar na Universidade.

No dia de matrícula da Carina, eu e mamãe fomos acompanhá-la. Era o primeiroano de funcionamento do colégio e o dono, Marcos Araújo, já havia sido professor dela.Creio que para aumentar o número de alunos matriculados, ele nos ofereceu duas bolsasparciais e eu quase morri de felicidade sem levar em consideração os sacrifícios que mamãeteria de fazer para pagar cento e tantos reais só de mensalidade, fora o transporte e a comida!

E agora, José?Já no primeiro dia de aula no Colégio Protágoras senti na pele, e no estômago, as

distâncias entre ensino público e privado. As salas de aula eram amplas, possuíam ar-condi-cionado, quadro negro sem rachaduras, banheiros com papel higiênico, sabonete líquido epapel toalha. Não existia a possibilidade de sairmos mais cedo por falta de professor, pelocontrário, na maioria dos dias tínhamos aula ou prova à tarde além, é claro, das aulas damanhã. E a merenda? Bem, para lanchar ou almoçar era “só” pagar.

Era óbvia e notória a diferença de conteúdo entre poucos de nós, bolsistas, oriundosdo sistema público e a maioria proveniente da rede particular. Fora os estranhamentosiniciais, consegui conquistar ótimas amizades. Rafael, Ulisses, Paulo, Cíntia, Ariane, Jürgen,Rafaela Sayuri são apenas alguns dos vários amigos (as) que muito me ajudaram, inclusive,quando faltava grana para comer.

E foi ali, mais especificamente, no primeiro ano que meus olhos se encantaram pelabeleza e grandiosidade da vida. Um amor à primeira vista pela biologia. Minha professo-ra, Beth, era fantástica...não tinha mais jeito. Fui cativada pelas mitocôndrias, membra-

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nas, citoesqueletos, cromossomos, proteínas, briófitas, angiospermas, vertebrados einvertebrados.

Não sei ao certo se por influência da Carina, que foi estudar Engenharia da Computa-ção na Unicamp, vontade de sair de Goiânia por uns tempos, desconhecimento da nossaUFG, inocência (burrice) em achar que conseguiria me manter financeiramente longe decasa ou a conjugação de todos esses fatores levou-me a prestar, no final do terceiro ano em2001, o vestibular para Ciências Biológicas na Universidade de Campinas e não na Federaldaqui. Beleza, passei na primeira fase! Tomei pau na segunda!

Essa foi apenas a primeira das quatro tentativas frustradas no vestibular da Unicamp,que é anual. Vez após outra eu via o sonho da minha vida; a possibilidade de “ser” alguémfazendo aquilo que realmente gostasse, de ajudar mamãe a ter uma vida mais decente semprecisar trabalhar de doze a quinze horas por dia em cima de máquinas de costura; esbarrarna crueldade de um sistema de avaliação excludente, arcaico, que nega a enormes parcelasda população o direito ao saber crítico/científico ou as condena a insaciável fome de di-nheiro das Instituições PRIVADAS.

Quando o terceiro ano acabou, não pude fazer cursinho, afinal tinha feito mamãecontrair uma dívida impagável (até hoje) de seis mil reais com o Protágoras. Conseguiemprego no restaurante da mãe da Ariane, amiga lá do colégio. O cargo, atendente; asfunções, pesar a comida, fazer sobremesas, limpar, cortar, picar, descascar, lavar... decidi-mos, Cíntia e eu, fazer o vestibular do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-Go)para o curso de Química Agro-Industrial no primeiro semestre de 2002. Passamos. Logo vique trabalhar o dia todo e estudar à noite não seria tarefa fácil. Saía de casa às 7:00 echegava às 23:30. O curso oferecia excelentes perspectivas no mercado de trabalho, masnão me fazia feliz. Antes do término do primeiro período, abandonei o Cefet.

A reviravolta e o ConexõesDepois de quase dois anos no restaurante Ver o Peso, pedi as contas. Com o dinheiro

do meu seguro desemprego, paguei um semestre de cursinho no centro da cidade. Estava eulá, no final de 2003, fazendo a prova da UFG para – adivinhem – Biologia modalidadeBacharelado. Em fevereiro veio nova decepção. Queria sumir, desaparecer do mapa, desistirde vez e tudo abandonar. Afinal de contas era minha quinta reprovação em vestibulares,praticamente todos meus colegas estavam na Universidade e eu?! Naquele momento era acriatura mais desolada e deprimida da face da Terra.

Por uma miríade de improváveis coincidências, conheci em abril de 2004 um atrevidoestudante do segundo ano de Biologia-Licenciatura da UFG. Daí uma semana, eu e meucarecão, Leonardo Guimarães Sandim, estávamos namorando. Serei a ele eternamente gratapor ter resgatado em mim a esperança e o desejo de ser um dia bióloga.

Só para variar um pouco em 2004 nós estávamos no aperto financeiro. Costurando emcasa, eu ajudava mamãe e acabei conseguindo juntar os pesados R$ 90,00 da taxa de ins-crição do vestibular UFG; porque apesar de tentar, não ganhei isenção. Não foi moleza não.Em cada calça overlocada, ou seja, fechada na máquina de overlock, eu ganhava R$ 0,30.Quer dizer, só para a inscrição precisei fechar trezentas calças. É serviço, meninas (os)!

Vencido o primeiro grande obstáculo, que nós EUOP’S (estudantes universitários deorigem popular) enfrentamos em relação ao vestibular, a inscrição, parti para a primeira fasecom a cara e a coragem. Fui para a segunda fase e no segundo dia, depois da prova dematemática, pensei cá comigo: bombei de novo.

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Como foi bom estar errada e ver Lilian Gomes dos Santos na lista dos aprovados, nacoluna de Ciências Biológicas – Licenciatura/Noturno. Os outros R$ 90,00 da matrícula oLeo pôde pagar para mim e, a partir de então, começava em março o novo ano de 2005. Umdos mais felizes da minha vida, o ano em que entrei na Universidade Federal de Goiás.

Em pouquíssimo tempo eu descobriria que chegar à universidade pública era apenasuma entre as múltiplas faces do problema chamado estudante universitário(a) pobre. Todosos percalços do acesso à educação superior de qualidade cedem lugar aos da permanênciaem uma instituição que apesar de ser pública não é gratuita em seus detalhes.

Freqüentar um curso noturno no Campus II da UFG é, sem dúvida, um grande desafio.Ele está situado no extremo norte da Capital, a aproximadamente quinze quilômetros dedistância do centro da cidade e a oito quilômetros da minha casa. Ou seja, uma hora deônibus; só um detalhe, são dois na ida e mais dois na volta. A iluminação é precária; ir àbiblioteca, que é distante do nosso instituto, só se for em grupo. Só agora, no quintoperíodo de curso, é que temos a secretaria a nossa disposição para resolver os problemasacadêmicos. Antes, somente no diurno. Materiais didáticos como retroprojetores e data-shows quase nunca estão disponíveis. Faltam técnicos para os laboratórios de aula-práticaporque quase ninguém se habilita a trabalhar a noite.

Em junho de 2006, fiquei sabendo pela professora Lisbeth Oliveira da Faculdade deComunicação e Biblioteconomia do edital de um programa de extensão que visava melho-res condições de acesso e permanência na universidade para alunos de origem popular.Arrumei toda a papelada e fiz a inscrição. Dentre os oitenta inscritos fui uma das vinte ecinco selecionadas...que alegria!!! Sou conexista desde então.

Receber a bolsa foi e é um presente. Posso me dedicar a meu curso sem precisarcumprir uma jornada dupla de trabalhadora e estudante, como muitas (os) outras (os)colegas necessitam fazer. Posso ampliar meus conhecimentos a partir de estudos e discus-sões sobre temas como as ações afirmativas, exclusão/inclusão, raça e racismo, identida-de, etnia, gênero entre tantos outros que, sobremaneira, contribuem para a formação hu-mana que não temos em cursos como o meu. Posso custear o aprendizado de uma línguaestrangeira no Centro de Línguas da UFG, comprar livros e periódicos até então tãodistantes de minhas possibilidades, pagar minhas passagens no transporte coletivo, al-moçar ou lanchar no Campus.

Mas, principalmente, tenho em minhas mãos a imensa oportunidade de contribuirpara belas transformações por meio de um projeto de extensão inovador, que dá vez e voz anós EUOP’S e cuja importância vai muito além de nos jogar no mercado de trabalho ou napós-graduação, como outras bolsas por aí. É inovador porque batalha junto à Academia e aoEstado para que, cada vez mais, pessoas como eu e você possam adentrar no fantásticouniverso do conhecimento e passá-lo adiante.

E ao final de tudo, queridas (os), parafraseando Marisa Monte, só espero que vocêsnão tenham se perdido ao entrar no meu infinito particular porque em alguns instantes soupequenina e também gigante.

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A CADA PASSO,APRENDIZADO EVONTADE DETRANSFORMARO MUNDO

Parte 4

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Vandimar Marques Damas*

Sempre que tenho que narrar sobre minha tristonha história, de tantas caminhadas,combates e sofrimento, há momentos em que tenho vontade de parar, de colocar um ponto.Mas continuo, pois minha história nunca terá um final. Narrar não é fácil, como já dizia ojagunço Riobaldo, de Grande sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Às vezes faltampalavras, e quando elas surgem, fico me perguntado: será que esta é a melhor palavra paracolocar aqui? Elas têm um imenso significado para mim. “É que toda ação principia mesmoé por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo”(JGR). O tempo para o qual minha mente se volta, é um tempo que é marcado por aconteci-mentos simples e banais, mas que têm um significado imenso para mim. Mas vou contarpara vocês, mas o que vou narrar é um algo vazio e sem graça. Às vezes eu tento reinventaro meu passado para que ele fique mais ‘contável’.

Sair do encantoDurante o período em que eu estava estudando para o vestibular, imaginava que as

portas se abririam para mim caso eu conseguisse entrar para a universidade. Mas descobrique esta é apenas uma pequena etapa que devemos percorrer para conquistar aquilo quetanto almejamos.

Assim que entrei na Universidade o meu principal objetivo era seguir a carreira acadê-mica. Meus meus sonhos eram fazer um bom mestrado e um bom doutorado. Mas, como dizRiobaldo, há momentos em que a gente “carece de acordar de repente de alguma espécie deencanto. É que as pessoas e as coisas não são de verdade.”

Assim, com o passar do tempo, eu percebi que não seria tão fácil realizar meus sonhos,uma vez que conseguir uma bolsa de pesquisa não é para todos e sim para aqueles que estãobem preparados e que possuem “boas” relações com os professores dentro da universidade.

É importante saber que só a vaga na universidade não basta. São necessárias políticaspara assistir este estudante, como bolsas de permanêcia, moradia, alimentação, assistênciamédica e odontológica. Infelizmente, a UFG não contempla isso. A moradia estudantildeixa muito a desejar e a alimentação, às vezes, não é comestível. A vida não é fácil paraaqueles que vêm do interior e por isso a assistência estudantil é de suma importância para anossa permanência na universidade. Mas por outro lado a Casa do Estudante Universitário,além de ter me hospedado, foi uma extensão da universidade, pois foi lá que eu aprendi a

O sertão mora em mim

* Graduando em Ciências Sociais pela UFG.

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conviver com o diferente e aprendi a respeitar a diversidade. Mas não foi fácil, como refleteRiobaldo: “Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos”.

Atualmente o Estado tem que lidar com diversos grupos sociais que lutam por reco-nhecimento. Conseqüentemente, esses grupos exigem políticas de combate a exclusãosocial. Assim, o programa Conexões de Saberes é uma importante política que vem paratentar resolver os problemas do acesso e da permanência na universidade pública, queatingem a população jovem de baixa renda. Este programa surge com uma proposta nova,pois além da bolsa ele dá a oportunidade para que nós, estudantes de baixa renda, possamosrealizar uma pesquisa e publicar. Nem mesmo um programa de PIBIC possibilita isso. As-sim, eu vejo a minha participação no Conexões como um momento de mudanças tanto naminha vida pessoal, quanto acadêmica. Isso me ajudou a continuar acreditando que pensarnuma pós-graduação não é um sonho irreal.

Foi na universidade que eu fiz as verdadeiras amizades e tenho certeza que irão prevale-cer por toda eternidade. Também foi na universidade que comecei a fazer as seguintes pergun-tas: ‘Deus existe? Se ele existe onde está ele?’ Eu pensava que na universidade seria o lugaronde poderíamos romper com as nossas crenças e tradições, e esquecer o lugar de ondeviemos. E com o passar do tempo eu percebi que a cidade não consegue acabar com o Sertão.Acho que carregaremos o sertão sempre dentro da gente e mesmo que um dia tentemos arrancá-lo de dentro de nós e fugir para bem longe, ele vai estar lá, nos esperando, pois a nossaexistência depende da existência do sertão. Riobaldo afirmava que “... entre Quem-Quem eSolidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas derepente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo.

Nascer para serO percurso que fiz durante toda a minha vida foi um percurso difícil e não foram

poucas as decepções. Mas me orgulho de chegar aonde cheguei e de dizer “não me mere-cem” para aqueles que me dispensaram. Após cada decepção eu tentava encontrar algo parame consolar e acabei aprendendo a gostar da leitura, da música, do cinema, do teatro e dapintura. Senti que a arte é um artifício esplêndido que nos ajuda, mesmo que de maneirafugaz, a superar a realidade nua e crua, o jagunço Riobaldo nos passa a seguinte mensagem“Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém nos ensina: obeco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida nãoé cousa terrível?” (JGR). Eu me orgulho de ter feito esta caminhada sozinho, apesar de quequando me lembro do meu passado eu me sinto profundamente melancólico. Mas o impor-tante é que tudo passou e agora se inicia uma nova etapa na minha vida e com outrasconexões, “nasci para ser” (JGR).

A minha infância e adolescência foram períodos conturbados da minha vida – creioque é por isso que não sinto saudades da minha infância e nem da adolescência. Achava avida sempre triste. O meu nascimento foi marcado pela morte trágica do meu irmão. A minhafamília era muito pobre e morávamos na zona rural de Niquelândia-GO. Os meus paisviviam constantemente brigando. Com seis anos, eu e minha família já estávamos morandona cidade, mas as brigas continuavam. Até que um dia meu pai resolveu agredir minha mãee minha irmã. Eu, ao ver isso, passei a sentir medo do meu pai. Se ele chegava perto de mim,eu saía correndo com medo que ele me batesse também. A imagem da agressão que meu paifez a minha mãe nunca saiu da minha cabeça. Mas o que mais admiro em relação a isso tudo,

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é que ela tomou a atitude de sair de casa não aceitando assim, continuar sendo agredida pormeu pai. “Tem trechos da vida que amolece a gente” (JGR).

AndançasMinha mãe. Ela saiu de casa, me levou consigo e nunca mais voltou para casa. Ela

deixou para trás dois irmãos e duas irmãs, todos mais velhos do que eu. Eu fiquei algumtempo sem ver meus irmãos e minhas irmãs. Fomos morar no local em que ela trabalhava.Passados alguns meses, recebemos a notícia de que um dos meus irmãos tinha morridoenquanto tomava banho em um rio. O local onde ela trabalhava era muito longe da escola,portanto eu ficava impossibilitado de morar como ela. Assim, logo após a morte do meuirmão minha mãe me levou para casa da minha tia, pois lá era mais fácil para eu estudar.Tudo isso, a solidão e a certeza de que tudo estava em ruínas, provocou imensa tristeza naminha mãe. Acho que é como Diadorim afirmou: “mulher é um ser muito sofrido”.

Minha tia exerceu grandes influências na minha vida. Morei apenas um ano com elae depois fui morar como meu pai, com quem fiquei mais um ano. Mas a mulher dele não ‘iamuito com minha cara’ e logo tive que sair de lá. Voltei a morar com minha mãe, fiquei umano com ela. Depois, fui morar seis meses com um irmão, mas acabei voltando a morar comminha tia. A minha adolescência foi marcada por constantes mudanças de um lugar paraoutro e assim “fui aprendendo a achar graça no dessossego” (JGR).

No período em que morei com minha tia, eu vivia muito preso e só podia sair paratrabalhar para a escola e para igreja. Eu levava uma vida muito monótona, não vivia nada dediferente. A minha única diversão era ler. Comecei a ler as enciclopédias que tinha lá emcasa e os livros de história e, é claro, a Bíblia. A igreja protestante teve grande influência naminha formação.

Morei com minha tia cinco anos, mas infelizmente ela veio a falecer e novamente eufiquei sem lugar certo para ficar. Passei alguns meses na casa de um e depois na casa deoutro, até que um dia, uma irmã me chamou para ir morar com ela em Rondônia, na fronteiracom a Bolívia. Fiquei com ela alguns meses e depois fui para a Bolívia. Mudar para lá foimuito importante para mim. Eu estava saindo de um lugar em que morei durante quinzeanos da minha vida, sem nunca ter saído, e, de repente, eu vou para um lugar totalmentediferente. Isso para mim era o máximo!

Depois eu decidi vir para Goiânia, mas meu irmão me chamou para ir conhecer umacampamento de sem-terra no entorno do DF. Ao chegar, decidi ficar um dia mas acabeimorando por um ano morando no acampamento. Nesse lugar eu tive o primeiro contato comas lutas defendidas pelos movimentos sociais. Mas lá eu via situações de extrema pobrezae muitas pessoas não tinham nada para comer e dependiam apenas de uma cesta básica queo governo mandava. Mas apesar da fome e da miséria em que viviam elas não desistiam eseguiam firme lutando em busca da terra.

Resolvi sair do acampamento e fui morar com minha mãe em Niquelândia por doisanos. Depois fui para Brasília estudar, mas fiquei apenas um ano na capital do país. Volteipara a casa de minha mãe. Enquanto eu morava com ela, trabalhava mais de doze horas pordia em um supermercado como repositor de mercadorias. O tempo que sobrava, eu usavapara estudar para o vestibular e também fazia um curso de línguas.

1999 foi o ano da morte do meu pai, ele já estava muito fraco devido duas cirurgiasque ele tinha feito no coração. Tentei vestibular três vezes, a primeira para Relações Inter-

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nacionais e a segunda para Ciências Políticas, ambas na UNB. Na terceira vez, fiz a provapara Ciências Sociais na UFG, onde estudo atualmente.

O real da vidaPara mim, passar no vestibular não foi fácil, uma vez que eu vim de uma escola

pública do interior de Goiás e, como já relatei, tinha que trabalhar muitas horas por dia -quase não sobrava tempo para estudar e nem dinheiro para fazer um cursinho. Acho que nãoé necessário explicar como o é ensino em uma escola pública do interior. No momento emque vamos prestar vestibular é que vemos o quanto estamos despreparados para competir,pois fazemos parte de um processo de exclusão que nos priva de determinadas oportunida-des básicas, como educação. Por isso o sistema de cota é de suma importância para facilitar oacesso de estudantes negros e alunos oriundos de escolas pública na universidade pública.

Diante da dificuldade que enfrentamos nesses momentos chegamos a pensar quesomos inadaptados para as condições normais de vida que são exigidas para um ser humanoque se julga preparado para vida e para o mercado. E quando descobrimos essas dificulda-des, nos sentimos isolados e impotentes. Nos enchemos de amargura e uma forte sensaçãode que vamos fracassar, sentimos medo de errar. Riobaldo perguntou certa vez: “A vidadisfarça?” Não, ela não disfarça. “No real da vida, as coisas acabam com menos formato,nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver émuito perigoso... mas me escute. A gente vamos chegar lá” (JGR).

Assim eu encerro a minha narração e espero que tenha narrado o essencial de minhahistória, embora eu tenha omitido por menores e detalhes interessantes. “Porque não narreinada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macacomeu veste roupa. O senhor ponha enredo”.

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Edilto Rodrigues da Silva

Caro leitor(a), quero convidá – lo(a) a conhecer a minha historia, nas não apenas comomais uma de um Estudante Universitário de Origem Popular(EUOP). Gostaria que, com elaeu passasse uma mensagem de confiança, persistência e busca. A busca pelo ser-mais, comosujeito de transformação do mundo e não de adaptação a ele.

Em 1983 meus pais saíram da zona rural para nos colocar na escola, na cidade. Somosum total de 5 filhos, dentre os quais 3 homens e 2 duas mulheres: Luilson, Edilson, Edilto(eu), Josilene e Maria da Conceição. Quero ressaltar que, muito antes da escola, já tínhamosuma educação informal, especialmente por parte da minha mãe Maria da Natividade, queusando papelão e carvão nos ajudou a fazer os primeiros traços da escrita. Como diz CarlosRodrigues Brandão: “A educação acontece em vários lugares e há vários tipos de educação,é uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam”.

Na cidade, enfrentamos muitas dificuldades pois minha mãe tinha apenas a primeira fasedo ensino fundamental, ou seja a 4ª série. Já meu pai, Jazias Viana da Silva, trabalhava naagricultura, e a vida na cidade não é fácil, principalmente para quem não está “preparado” , oque nos forçou a ter certas responsabilidades “antes do tempo”. Não podíamos ter tudo quedesejávamos e isso, aliado às dificuldades, nos tornou mais autônomos e unidos para ajudar.

Na escola, ia tudo correndo bem. A persistência, a vontade e a competência, principal-mente do meu irmão Edílson, que manteve uma trajetória de sucesso na escola, eram notá-veis. Não passo deixar de citar que ele foi sempre minha referência como aluno e tambémprofessor. Nossa infância foi maravilhosa, não podemos reclamar: liberdade. Mas não querodizer que meus pais eram negligentes, ao contrário, eles nos acompanhavam intensamentena escola ou em qualquer outro lugar, estavam sempre presentes, principalmente minhamãe. Para ela, a mudança seria pelo viés da educação, nossa possibilidade. Por isso suasações, orientações e perspectivas nos fizeram perceber isto, tanto que a escola sempre foi onosso compromisso pessoal e a levávamos muito sério.

Lembro de um fato que para mim foi marcante: certa vez perdi minhas sandálias eminha mãe, indignada, me tirou da escola. Mas uma lição ficou: a responsabilidade com osmateriais escolares e tudo mais que era importante para continuar nas aulas, pois era muitodifícil adquiri-los. Os pais têm um papel fundamental na educação: oferecer segurança e,conseqüentemente, a liberdade que faz crescer. Com os meus pais isso não foi diferente.

Educação para romper

* Graduando em Pedagogia pela UFG.

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Tivemos muito incentivo e apoio, o que nos proporcionou a garra, a ajuda mútua e determi-nação. Essa relação, o diálogo, foi o que fez a diferença na nossa educação.

Uma nova visão do mundoMinha memória guarda poucos professores, acho que são aqueles deixaram marcas

em mim, em especial a professora de literatura na oitava serie Elizabeth Carneiro da Silva.Naquela série, em 1993, minha identidade sofreu uma alteração. Pela literatura, assumi umaatitude mais crítica, reflexiva e sobre tudo política. Hoje entendo porque agia daquelaforma em algumas circunstâncias! Passei a enxergar as coisas com inconformismo, poiscompreendia a estrutura sob a qual a sociedade está fundada, e desde então percebi o papelque deveria desempenhar na sociedade, como um atitude crítica, isto é, dizer não aos “pré-conceitos”, aos fatos e às idéias das experiências de cotidiano, dizer não às crenças, coisasque temos como verdadeiras, óbvias, sem antes questionar.

O seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religio-sos, políticos, artísticos, vivem em na companhia de seus semelhantes e procuram distanci-ar-se dos diferentes dos quais descordam e com os quais entram em conflito.

Quando concluí o ensino médio, o que eu mais queria era sair daquela cidade, Montedo Carmo-TO, pois ali eu sabia que não poderia realizar meus sonhos e conquistar meusobjetivos. No ano que terminei o curso secundário (1996), fiz concurso pela prefeituralocal, ficando com a segunda colocação das 4 vagas, mais infelizmente a politicagem cos-tumeira do interior não permitiu que eu tomasse posse do cargo de auxiliar administrativo.Revoltei-me com isto e a minha vontade de sair da cidade foi ao extremo, mas antes mearrisquei como professor de uma escola na zona rural do município. Não demorou muito eentrei em conflito com os gestores, particularmente com o prefeito e a secretária de educa-ção. As más condições de trabalho, o salário miserável e a falta de equipamento me impul-sionaram a criticá-los e exigir mais atenção com a escola em geral. Como não me submeti àssuas condições, expondo suas atitudes em relação à escola, o descaso, fui considerado umaameaça e por esse motivo não “servia” para sua companhia.

Em 1997, meu desejo se realizara, fui primeiramente para o Maranhão e depois paraSão Paulo. Uma coisa fazia muita falta, a minha família, aquilo que mais valorizo e que defato tem maior importância, especialmente a minha mãe. Com este vazio, queria me reen-contrar, pois uma coisa era eu sem minha família, e outra sem Ela. Mas a faculdade era umaprioridade na minha vida, e cada dia mais eu compreendia o sistema como um obstáculopara atingir meu objetivo.

Em 1998, me mudei para Goiânia. Agora mais próximo da minha família e tambémdaquela que seria minha companheira. Ela é da mesma cidade que eu. Quando fui para SãoPaulo, ela veio para Goiânia. Já nos conhecíamos desde 1995, quando estagiei na sua sala,na Escola Mestra Bela. Diante de tudo isso, fiquei mais aliviado e pude concentrar meusesforços no meu foco principal.

Da luta à conquista: oportunidades, dificuldades e acertosAqui tive que enfrentar outras dificuldades: aluguel, falta de trabalho e, no início,

falta de ajuda financeira. Pensava que a única maneira de entrar na universidade públicaseria me preparando com um cursinho particular o pré-vestibular. Assim, achava muitodifícil conseguir, pois o dinheiro que ganhava não era suficiente para pagar. Mas busquei

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informações sobre políticas de acesso na universidade. Por duas vezes tentei a isenção dataxa de inscrição para o vestibular, pois sempre no período de inscrição não tinha comopagar. Em 2002 não consegui, mas em 2003 tentei outra vez e fui contemplado. Minhapreocupação então era como preencher as lacunas deixadas pelo ensino insuficiente noensino médio. Precisava estudar conteúdos que não vi antes.

Resolvi estudar em casa, mas antes que eu começasse, saiu um cursinho preparatório nojornal, promovido pelo estado, juntamente com duas universidades, a Federal e a Estadual deGoiás. Era o “cursinho do povo”, com fascículos semanais e o melhor de tudo, era gratuito!Assim estudava em casa e uma vez por mês tínhamos um “aulão” num ginásio da cidade, oGrande Arena. Professores davam palestras e orientavam como fazer as provas revisando osconteúdos de maneira prazerosa. A primeira fase do vestibular foi tranqüila, me lembrava doque um professor disse “procure errar menos e não acertar tudo”. Assim passei na primeiraetapa. Na segunda, foi melhor ainda, pois as questões não eram de múltipla escolha, eram no“canetão” e escrever, pra mim, era chance dobrada e me senti mais seguro nas provas.

Enquanto aguardava o resultado foi para a casa dos meus pais no Tocantins. Minhairmã, que tinha voltado antes para Goiânia, me avisou do resultado. Tinha passado no cursode PEDAGOGIA, concorrendo com sete por vaga. No primeiro momento não houve grandeeuforia da minha família, por que já era esperado, era só uma questão de oportunidade, equando a tive confirmei a força que a educação familiar tem, em manter sempre o foconaquilo que é melhor para nós e este era um dos meus principais objetivos de vida. Recebiparabéns de muitas pessoas, inclusive dos meus ex-professores do Colégio Estadual PadreGama, onde fiz o ensino fundamental e o ensino médio.

O primeiro ano da faculdade foi de adaptação. Pelo meu perfil socioeconômico mesentia estranho naquele ambiente. Podia ver as atitudes de alguns professores, discretos maspreconceituosos. Isso não abalou minha vontade, minha auto-estima. Por outro lado, eutinha colegas que me amparavam moralmente, o que me ajudou a superar essas situações,me fazendo mais forte e tolerante com este tipo de comportamento. Mas o repudiava emminhas falas, visto que conhecia textos de Marx, Dhurkeim e outros.

Mais dificuldades se revelavam: textos didáticos, alimentação, condução e as taxascobradas pela universidade. Enfim, me sentia forçado a sair. As políticas de acesso e perma-nência “eram” muito tímidas e insuficientes, e além dos mais, estão sempre permeadas porinteresses daqueles que dirigem as instituições dentro da universidade. Quem mais se dábem são aqueles que têm representantes nas instituições acadêmicas. Já ouvi muitos fala-rem, e sei de alguns casos também, onde a influência social e política favorecem. Sabem aquem? Onde acontece?(...) Vergonhoso e imoral e que me revolta muito. Isso tem que parar,mas para isso temos que assumir compromisso com a cidadania e a democracia, sendo cadavez mais questionadores dessa realidade.

Antes de conhecer o Programa Conexões de Saberes, trabalhava de dia com serventede construção e a noite ia para aula de bicicleta, pedalando cerca de 20 km. Era muitodesgastante, mas o que eu ganhava só dava para as necessidades básicas. Reprovei em duasdisciplinas por falta, quando chovia muito era impossível ir para a aula.

Hoje, tenho dois filhos com a minha ex-aluna, citada anteriormente, Elizabeth Cunhade Oliveira. Meu primeiro filho tem 7 anos e está na segunda série. Seu nome é LaurícioRodrigues de Oliveira. O segundo se chama Samuel Rodrigues de Oliveira e tem 3 anos. Oterceiro filho é uma menina, e nasceu no dia 2 de fevereiro de 2007, Laryssa Vitória. Eles são

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muito importantes pra mim, tenho aprendido muito com eles e ela, uma vez que meu cursoé para lidar com crianças, principalmente.

Estou a quase oito meses no Conexões de Saberes e tem sido muito bom ter uma bolsade ajuda, pois agora tenho mais tempo para estudar. Por outro lado, o programa veio somarforças na luta por uma melhor educação, mais políticas de acesso e permanência para osestudantes de origem popular e mais oportunidades, bem como na luta contra a ideologiadominante, que condiciona as pessoas a considerar o atual modelo de sociedade como ideal.Não é! O melhor é aquele em que todos têm oportunidades e condições de se desenvolveremsem ser estereotipados como “coisas”. Participo de um movimento popular que luta pormoradia, onde cobramos das autoridades a efetivação das políticas habitacionais e todas asinfra-estruturas necessárias para que uma família possa ter um mínimo de dignidade.

Estou no quarto ano do curso de Pedagogia, ou seja, primeira etapa do ensino superior,mas quero fazer uma especialização e um mestrado em políticas educacionais. Não querodeixar meus irmãos vagando por ai! Luilson mora com minha irmã mais nova, que também éprofessora e trabalha como vice-diretora em um núcleo de ensino rural em Monte do Carmo –TO. O Edílson é um grande professor na mesma cidade e fez Geografia, na UFT. A Josilene nãofez faculdade ainda, mas tem o magistério - 2º Grau. Ela foi para a Espanha no dia 9 defevereiro de 2006, minha irmã preferida e grande amiga, que sempre me apoiou direta ouindiretamente, e mesmo longe continua a me ajudar nos momentos de grande sufoco. Minhamãe, aposentada, mora com meu pai numa “fazendinha” herdada dos meus avós.

Antes de terminar gostaria de agradecer todas as pessoas que, de alguma forma, meincentivaram e acreditaram em mim: meus pais, meus irmãos, meus colegas da Faculdade deEducação, do “Conexões de Sabedores” e professores, a todos os docentes que no discursoe na prática se comportaram eticamente. Finalizando quero mencionar que a educação é umdireito de todos, mas é preciso que exerçam seus direitos que eles sejam efetivados. Se adeixarmos nas mãos daqueles a direcionam para apenas a pequena parcela da sociedade (osprivilegiados), sempre teremos desigualdades e falta de oportunidades. A educação é umdos meios de superação do “homem-coisa” para um “ser-mais.”

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Itapuranga fica em Goiás, mas quando era pequena minha mãe me respondeu queficava no fim do mundo. Imaginei um enorme abismo no fim da cidade, quero dizer, no fimdo mundo de Itapuranga. Esta concepção de cidade é a de uma mulher, agora minha mãe, aZezé, como a chamam algumas pessoas.

Esta mulher, quando era menina teve sua essência aprisionada e dilacerada por pre-conceitos de um conservadorismo exacerbado, filho do tradicional e cruel coronelismogoiano. Confesso que este é um traço marcante do lugar, apesar de ter vivido pouco tempopor lá, foi o suficiente para perceber que o respeito à dignidade humana está intimamenteligado à cor de sua pele, à classe social e a uma moral puritana baseada na pior qualidade decristianismo que se tem notícia. Fomos exiladas. Nos mudamos para Goiânia, a capital doestado, não me lembro bem quando. Éramos Eu e Ela. De origem popular, mulheres e negras,ela com ressalva de ser mãe solteira, um rótulo massacrante que até me fez, algumas vezes,sentir-me culpada por ter nascido tão tranqüilamente em um momento tanto inoportuno.

Eu nasci em Itapuranga, no dia 19 de fevereiro de 1984. Neste ano, excepcionalmente,não houve horário de verão, provavelmente para eu nascer uma autêntica aquariana. Acomunicação, os livros, a liberdade! E com tudo isso, um sentimento de inadequação queinsistia em me perseguir.

“Não me convidaram pra essa festa pobre,que os homens armaram pra me convencer...” Brasil, de Cazuza.

Primeiro dia de aula, escola nova e algumas instruções de sobrevivência, entre elas:“Maiana, se alguém perguntar qual a profissão de sua mãe, diga que sou secretária”. Minhamãe não era secretária desse tipo que atende telefone, ela era uma secretária doméstica,mulher, mãe solteira e desventurada pelas peripécias que a vida impôs a ela. Maria JoséGomes de Souza.

Maiana Gomes Magalhães da Silva*

O bater das asas de uma borboleta podecausar um tufão do outro lado do planeta1

1 “Efeito Borboleta, um termo que se refere às condições iniciais dentro da Teoria do Caos, Faz parteda Teoria do caos”. (Wikipedia).

* Graduanda em Geografia pela UFG.

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100 Caminhadas de universitários de origem popular

Dentro do possível se guiou pelo chavão “Estudo ninguém tira” e me garantiu até a 4ªsérie em escolas particulares a custo de muitas privações. Em 1994 nasceu minha irmã,Juliana Brisa Gomes Magalhães e assim se formou nossa família.

Meu pai, Antônio César da Silva teve uma presença, digamos, esporádica em minhaexistência. Não sei exatamente com o quê ele teve responsabilidade na vida, mas creio quefoi com poucas coisas e eu não estava inclusa em nenhuma delas.

Em 1994 ingressei no ensino público estadual em um colégio tradicional de Goiâniachamado Colégio Estadual Rui Barbosa, que inclusive teve seu terreno vendido recente-mente a uma empresa privada, ação que fomenta a lógica de tirar os pobres do centro eamontoá-los nas periferias, fora do campo de visão da burguesia goiana, capital nacionaldas camionetes de luxo. Cursei do Ensino Fundamental ao Médio neste lugar que foi nomínimo especial para mim. Foi lá que construí belas amizades que duram até hoje e foitambém o ponto de partida da minha trajetória de militância, quando era secundarista.Minha adolescência foi marcada por questionamentos, sobretudo sociais. Transformei mi-nha indignação por este mundo de carcarás em amor para transformar a Mãe Terra em umlugar mais feliz e justo.

Esta militância meio atravessada pela imaturidade gerou algumas situações até engraça-das. Certa vez, no embalo das emoções geradas pela ânsia de mudar o mundo, minha mãeficou preocupada com esse “tal” movimento estudantil que eu “havia me envolvido...”. Elaimaginava que isso era uma espécie de seita ou coisa semelhante, pois segundo ela eu estavaficando maluca, fanática, entre outras qualidades nada admiráveis de se escrever aqui.

Ela tentava me “explicar” que aquilo tudo que eu estava vivendo aconteceu na verda-de na década de 60, e que a ditadura tinha acabado, portanto aquele esforço era desnecessá-rio, não havia revolução para acontecer. Pediu-me para fazer uma difícil escolha aos 15anos: eu deveria escolher entre continuar no movimento estudantil ou sair de casa. Se euescolhesse o movimento estudantil, que arrumasse minhas malas naquele exato momento.Saiu aborrecida, batendo a porta, convencida que aquela condição me afastaria compulso-riamente da militância. Quando ela retornou, eu tinha uma mala pronta e estava decidida amudar o mundo! Minha mãe relevou naquele momento meu acesso “Che Guevara”, mascontinuou rasgando minhas correspondências às escondidas.

Do jornalzinho da escola ao Programa Conexões de Saberes foi uma árdua caminhada.A Universidade para mim era um local impenetrável, a menos que eu tivesse dinheiro ouuma boa formação escolar, ou seja, não era definitivamente um lugar pra mim. Ela, junta-mente com a escola pública, são crias perfeitas deste sistema sócio-político-econômicoperverso e demagogo.

A escola pública é na verdade uma comédia, que seria cômica se não fosse trágica. Elacamufla o significado do conhecimento, o torna enfadonho e no fim não nos dá condiçõesde continuar, pois o vestibular separa, na verdade, aqueles que tiveram condições parapagar pelo conhecimento daqueles que não tiveram. O vestibular quer saber das aulas quenunca tive na escola, dos temas que os professores desqualificados (vítimas deste própriosistema perverso) nunca abordaram ou julgaram que éramos pouco competentes para enten-der. Desta forma, eles nos ensinaram como não ter auto-estima para continuar. Esse preceitofoi e está sendo desenvolvido com maestria e requinte pelas escolas públicas. O vestibularquer saber o que eu não tive tempo de aprender, pois tive meu primeiro emprego aos onzeanos de idade.

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Universidade Federal de Goiás 101

Dos onze anos até o primeiro ano da universidade trabalhei quase ininterruptamente.Quando entrei na universidade resolvi “chutar o balde” e viver com o mínimo possível parame dedicar totalmente aos estudos. Decidi fazer uma universidade e não uma faculdade.Isso me custou vários apertos, e em um deles tive que me mudar para a Casa do EstudanteUniversitário I, onde moro atualmente.

Lá pude ver que a minha vida não é muito diferente dos meus 105 colegas de casa,estudantes de origem popular. Nesta labuta coletiva da casa, parece-me que sua trilha sono-ra é assinada por Chico Buarque.

Até o fim“Quando eu nasci veio um anjo safadoO chato do Querubim.Que decretou que eu tava predestinadoA ser todo ruim...Já de saída minha estrada entortou...Mas vou até o fim!”

Minha primeira informação sobre a UFG foi dada por uma colega, quando eu fazia oprimeiro ano do Ensino Médio. Eu perguntei como era a universidade, aquela do governo.Ela me respondeu que era cheia de carros e que era só pra gente rica. Já fui me programando:seria uma cientista social quando trabalhasse o suficiente para pagar uma faculdade. Naverdade, concluí meu ensino médio sem saber muito bem como fazer para conseguir isto.Enquanto @s prim@s e algumas amigas estavam fazendo cursinho ou vestibular, eu meencontrava perdida, sem expectativa alguma, na asfixia do vácuo existente entre o ensinomédio e a Universidade.

Aos dezessete anos me mudei para São José dos Campos, interior de São Paulo em umsurto de paixão fumegante e quase patológica por um ex-companheiro e lá tomei certasdecisões, pois a partir de então precisava me manter sozinha. Entre elas foi escrever umacarta a uma tia, irmã de meu pai, a tia Lúzia, para que ela pedisse a ele que pagasse umafaculdade para mim, visto que nós não tínhamos contato, assim como hoje.

Pedi assim mesmo, de qualquer jeito, pois eu não imaginava as implicações de estudarem uma instituição privada. Não tinha noção de custos materiais e psicológicos de estar emum ambiente como aquele, além de não comungar da mesma realidade que a maioria daque-les clientes, pois são tratados como tal.

O conhecimento é um produto muito caro e está sendo comercializado de uma formamercadológica de baixíssimo nível. Vem com código de barras e difunde a reprodução dospadrões elitistas e repressores do paradigma passado, e também vem engessado, pronto eacabado como um jornal da Rede Globo.

Iniciei um curso de Direito na Universidade Paulista, somente por constar as seguintespalavras na grade curricular: “Sociologia”, “Ciências Políticas”, “Filosofia” e para aproveitaraquela “miraculosa” chance de continuar estudando. Mesmo que não gostasse do curso, euachava que precisava adquirir aquele pacote com código de barras para poder me sustentar.

Depois de algum tempo as coisas desandaram e ficou insustentável continuar. Comtodas as despesas, inclusive de moradia, alimentação, transporte, livros, etc. tive que esco-lher entre permanecer na universidade ou no planeta Terra como um ser humano vivo.

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102 Caminhadas de universitários de origem popular

Acredito que não seja difícil compreender que optei por não estudar e morar, me alimentare outras coisas que as pessoas geralmente fazem para sobreviver. Abandonei a pseudo-universidade tecnicista e burguesa, UNIP. Fui expurgada daquela empresa assim comominha mãe foi exilada de Itapuranga.

Depois de um ano, retornei à Goiânia e resolvi estudar para o próximo processo sele-tivo da UFG sem saber exatamente o que queria estudar. Fiz quatro meses de cursinho eneste tempo percebi o quão a escola pública havia me enganado. Tinha que aprender o queas outras pessoas estavam simplesmente recordando. Eu trabalhava pela manhã e ia para ocursinho às 14h para o plantão de dúvidas (e quantas dúvidas!) só saia às 22h30min de lá.

Ingressei na Universidade Federal de Goiás em 2005, no curso de Geografia, aos 20anos de idade. Descobri que a soma das coisas que me interessavam tem este nome: Geogra-fia. Curso atualmente o quinto período do Bacharelado em Análise Ambiental e vivo umacorreria considerável, pois mudar o mundo demanda muito tempo.

Dentro da Universidade as coisas não ficaram mais fáceis. O xérox e a condução eramfortes empecilhos para a minha permanência no curso. Estes impecilhos foram superados namedida do possível com a ajuda de pessoas muito especiais, que por gratidão gostaria decitá-las: Leca e Simião, meus tios; Saulo, Bruna, Diogo, Thaís e Micaelle, meus amigos quenunca falharam na hora da carona, do “rango”, do xérox, dos devaneios a cerca da realidade,entre outras coisas.

O Conexões de Saberes contribuiu significantemente com a consolidação da minhaidentidade de Estudante de Origem Popular (EOP). Associando isso a outras vivências propi-ciadas pelo ingresso na Universidade, pude ter consciência de várias outras situações opresso-ras, seja humana, animal, ou simplesmente opressão planetária. Ela está espalhada na atmos-fera por todos os lados. Foi na academia que pude conhecer uma forma diferente de pensar, porum novo paradigma, o da Complexidade, que me fez inclusive compreender como a academiaé excessivamente obsoleta. Chamo-a “carinhosamente” de “velha coroca”, porém sou gratapela oportunidade de reconhecer isso, ela mesma proporcionou essa descoberta.

Dentro deste arcabouço secular chamado Universidade, me sinto muito oprimida en-quanto estudante de origem popular, mas esta tirania não é suficiente para me fazer calar,pois tenho consciência que eu não sou clandestina, sou legítima e me recuso a me resignara esta estrutura opressora e cartesiana que se impõe à nossa sociedade. Eu não fui privilegi-ada pela maior bolsa da universidade através do Programa Conexões de Saberes, como disseo Pró-Reitor dos Assuntos Comunitários da UFG, mostrando com esta afirmativa qual alógica instalada e reproduzida dentro da academia. Não é privilégio fazer parte de umamaioria que maquiavelicamente é chamada de minoria, que teve suas oportunidadesrestringidas em favorecimento da elite branca e burguesa que descaradamente governatodo o mundo.

Percebi, e hoje consigo pontuar, que minha angústia é uma realidade a de muitasestudantes e que isto é um círculo vicioso que deve ser quebrado pelas próprias vítimasdesta engrenagem, guiadas pelo princípio mais belo que a humanidade pode possuir: o daAMOROSIDADE.

“Amor, palavra que liberta” Marisa Monte

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Esta caminhada é longa, bonita e intensa. Somos todos e todasarquitet@s da realidade, nas palavras de Paulo Freire: O mundonão é. Ele está sendo. Juliana Brisa Gomes Guimarães

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104 Caminhadas de universitários de origem popular

Sou o caçula, sétimo filho do casal Geni Caetano Rodrigues e Sebastiana Rosa SilvaRodrigues. Meus irmãos são Túlio, Leila, Gicele, Adriana, Alexandre e Mara, minha irmãgêmea.

Meu pai, homem sábio, amoroso e trabalhador, pequeno produtor rural graças à refor-ma agrária do governo federal, foi, ao longo de minha criação, carvoeiro, açougueiro edesempregado. Meu pai foi alfabetizado por sua mãe, pois meu avô achava que estudo nãoera necessário. Para ele, “filho era para trabalhar”, tanto que teve onze filhos com minhaavó.

Minha mãe, amor transformado em matéria, para complementar a renda familiar, foibiscoiteira, costureira e dona de casa. Concluiu a quarta série do ensino primário.

Meus irmãos são exemplos de luta e amor à família, especialmente o Túlio e a Leila,irmãos mais velhos que sacrificaram a infância e a adolescência, substituindo quando ne-cessário o papel de meus pais, trabalhando para complementar a renda familiar e ensinandoo valor e a necessidade da educação para os mais novos.

Minha família é exemplo cooperação mútua, seja nos afazeres domésticos ou auxili-ando meus pais nos empreendimentos comerciais como açougue, carvoaria e entrega dosbiscoitos nos bares das cidades onde moramos.

Já passamos unidos por diversos problemas financeiros e de saúde, como o alcoolismodo meu pai, a dependência química do meu irmão Alexandre, a gravidez sem planejamentoda minha irmã Adriana e um tumor na cabeça de meu irmão Túlio. Todas as alegrias, con-quistas e dificuldades serviram para saber o quanto a família é importante.

VidaFui educado em estabelecimentos de ensino público, do ensino fundamental ao ensi-

no médio. Já passei por diversas escolas em diversas cidades, umas boas, outras péssimas.Minha família em busca de melhores condições e oportunidades, e às vezes corren-

do mesmo de cobradores, deu-nos a oportunidade de morar em diversas cidades comoCarmo do Paranaíba-MG, Iporá-GO, Goiânia e Unaí-MG. Também morei em várias casasde bairros diferentes na mesma cidade.

A maior parte de minha vida tive que conciliar escola e trabalho. Assim, comecei atrabalhar muito cedo, por volta dos dez anos, entregando e vendendo pão de queijo na rua

Marcelo da Silva Rodrigues*

Longo caminho até a universidade

* Graduando em Agronomia pela UFG.

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para minha mãe. Depois trabalhei como balconista, digitador, telefonista, açougueiro –igual a meu pai, em fotocopiadora, como prestador de serviços em um banco, vendedor deatacadista - no lugar do meu irmão, quando ele estava doente, segurança e garçom nos finaisde semana, para cobrir as despesas da faculdade.

Mesmo mudando tanto de casa, cidade, escola e emprego, fui muito feliz, brinquei,estudei e namorei. Essas conquistas são fruto de uma base familiar onde todos, mesmo nasmais diversas dificuldades, acreditam num futuro melhor.

Por que agronomia?Devido às deficiências e falta de qualidade das escolas onde estudei foi difícil entrar

numa universidade pública. Foram necessários muita perseverança, muito estudo e, princi-palmente, acreditar na minha capacidade para que eu pudesse superar as minhas deficiênci-as emocionais e financeiras.

Escolhi agronomia porque eu e minha família temos uma ligação muito forte com ocampo. Meu pai, assentado da reforma agrária, ensinou o valor da terra não como um bemmaterial, mas como um bem social que gera vida para a nossa geração e as futuras.

Acredito que o curso de agronomia seja responsável, juntamente com outros cursosvoltados para a área de ciências agrárias, por discutir e problematizar as temáticas relacio-nadas à produção agrícola de alimentos. Acredito também que é necessário compreender omeio rural tanto quanto as questões socioeconômicas e ambientais para que possamos teruma melhor qualidade de vida.

Entrei na universidadeQuando se entra na universidade, somos, como dizia Raul Seixas, “inocente, puro e

besta”. Achamos que tudo vai dar certo, que vamos ficar ricos, que o mundo gira ao nossoredor, tendo o ego muito inflamado. O choque de realidade chega cedo, quando vocêpercebe que não tem dinheiro para tirar xerox, tomar café da manhã, que seus pais não têma mínima condição de mandar dinheiro, que seus colegas são pequenos burgueses e nãoligam para sua vida e muito menos para a do colega ao lado; quando percebe que seu cursonão gera conhecimento para o bem de toda a sociedade, pois a maioria das pesquisas éfinanciada por empresas multinacionais que voltam a atenção para os grandes produtoresrurais, não produzindo conhecimento para o pequeno produtor. Este realmente precisa deconhecimentos para maximizar sua produção e não ser engolido pelo grande produtor.

Diante disso, chega a se questionar: “Como vou estudar se não consigo me alimentar?”.

Encontrei a minha pazNo meio do desespero total, conversando com alguns colegas veteranos, descobri a

CEU (Casa do Estudante Universitário), e passei pelo processo seletivo, depois de arrumarvários documentos, um verdadeiro atestado de pobreza. A maioria dos candidatos quenecessitam da moradia é excluída pela burocracia desse processo, por não conseguiremcomprovar que são de baixa renda.

Através dos meus amigos ceusianos, descobri que a universidade tem assistênciaestudantil como alimentação e moradia, mas não para todos que precisam. Tenho a impres-são que a universidade não encara a assistência estudantil como um direito do estudante,mas como uma obrigação ou mordomia.

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106 Caminhadas de universitários de origem popular

Foi na CEU que descobri a diversidade regional, étnica e sexual. Também foi lá quetive o primeiro contato com o movimento estudantil e fui motivado a participar do DCE-UFG e da coordenação da CEU 3.

Luto para que todos tenham acesso a uma universidade pública, gratuita e de qualida-de e para que não seja privilégio de alguns fazer parte dela. Estou engajado nesta luta a trêsanos, desde que entrei na universidade.

Participei de projetos sociais na minha área como melhoramento de milho, cana-de-açúcar, mandioca e reforma de pastagem na Associação do Projeto de Assentamento Curral doFogo, onde meu pai reside, utilizando as técnicas que aprendi na faculdade de agronomia.

Há oito meses participo do Conexões de Saberes, onde reforço este time de estudantesde origem popular que, como eu, lutam pelos mesmos objetivos, que são a democratizaçãodo conhecimento, o acesso e a permanência de estudantes de origem popular na universida-de pública.

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Nasci em Goiânia. Estudo Geografia no Instituto de Estudos Sócio-Ambientais daUFG, onde sou membro do Conselho Diretor, e estou no 7º período. Prestei vestibular trêsvezes e em 2004 fui “aprovado” aos 25 anos. Sou morador desde setembro de 2005 na Casado Estudante Universitário I, e membro do Conselho Deliberativo da mesma. E também,presidente da Secretaria Estadual das Casas de Estudantes do Estado de Goiás. E sou bolsis-ta do PCS (Programa Conexões de Saberes) desde o lançamento em junho de 2006. E meconsidero afro descendente.

Mamãe, mamãe não chore... a vida é assim mesmo...Veja as contas do mercado, pague as prestaçõesSer mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhosSeja feliz, seja feliz... mamãe, mamãe não chore...Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, mamãe seja feliz. Caetano e Torquato Neto

Impossível falar de mim sem me remeter e explicar um pouco da história de minhamãe. Senti essa necessidade pelo lado emocional e também, enquanto fonte importantepara o resgate e compreensão da minha história. O nome escolhido para batizá-la foi Juliana.Nome singelo e simples que não corresponde à vida trágica e difícil que se apresentousempre ante ela, e por isso, hoje, esse nome, significa pra mim: Coragem, pois minha mãe medeu a vida dela!

Em uma fazenda do interior de Goiás entre as cidades de Diolândia e Cruzelândia,nasce à menina Juliana. Da família naquela época o único que sabia ler era seu avô paternoque conseguiu esta proeza sem freqüentar escola e em idade avançada. Ele era o curandeiroda região e o primeiro e único espiritualista da família, antes de mim.

Juliana é a quarta filha de um casal que teve mais sete filhos, dos quais as duas últimassão gêmeas e que após cinco meses de nascimento perderam sua mãe, dona Ambrosina.Juliana estava com treze anos nesse momento. A causa da morte na época jamais poderia seridentificada, mas Juliana lembra perfeitamente dos inchaços corpóreos constantes, sinaisde pressão arterial alta e muito provavelmente, de eclâmpsia, como as causas complicadoras,que levaram a óbito no nascimento de seu terceiro filho, que também faleceu.

Micaelle Juliano Ribeiro*

Elogio à mediocridade

* Graduanda em Geografia pela UFG.

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108 Caminhadas de universitários de origem popular

Com mais ou menos quinze anos Juliana veio para Goiânia com uma família na qualtrabalhava sem remuneração como doméstica desde a cidade de Diolândia. Retornando nasférias a esta cidade para rever os familiares, conheceu um rapaz mineiro, e nos primeirosmomentos de encontro, houve um interesse mútuo entre eles, ao ponto de Juliana relatar talinteresse ao seu grande amigo e pai, que a advertiu severamente com o argumento de queele já tinha namorada. Mas isso, não foi suficiente para evitar o beijo ao se encontrarem emuma festividade do colégio da cidade.

Pronto! Nasceu uma história bonita, breve, e ou mesmo tempo triste! E apesar doencontro, Juliana retornou a Goiânia pra continuar sua vida e Geraldo também continuou asua, chegando a noivar com a namoradinha. Mas dois anos depois, faltando vinte dias paraseu casamento em Diolândia, ele desmarcou tudo e seguiu para Goiânia com o principalobjetivo de reencontrar Juliana e dela fazer sua companheira mulher.

Assim, reencontraram-se e com sete anos de namoro em 1975 acontece o casamento enascimento em 1977 do primeiro filho, em um parto complicadíssimo, tão grave que o médicoque acompanhou o pré-natal de Juliana, ao ver as condições da paciente na última consulta,e nos últimos exames, constatou que o parto era de altíssimo risco, com indícios claros deeclâmpsia devido à pressão arterial. E o pior, o médico disse a Geraldo que se achava incom-petente para realizar aquele parto, o máximo que poderia fazer era salvar a Juliana ou orebento! E nessa situação Geraldo fez sua escolha totalmente passional, escolheu um outromédico! Ele não tinha dúvidas, queria os dois, queria o impossível para muitos, menos paraele e para o Dr. Diogo, um outro médico que ao analisar os primeiros exames de Juliana, pediuque ela e a sala de cirurgia fossem preparadas em no máximo vinte minutos.

Quando, seu moço, nasceu meu rebentoNão era o momento dele rebentar... Chico Buarque

E nessas condições eu nasci! Condições desfavoráveis que me perseguiram e quepersistem podendo ser explicadas em grande parte pelo sócio-econômico precário de meunúcleo familiar. Condições tão comuns a certa parcela da população que sobrevive mais doque vive! E que apesar de tudo, e de todos, estão aí, mostrando a sua cara em cenários ondesua presença não é bem quista, como nas universidades federais do Brasil. Então, o contextode minha vida já está iniciado e a minha história propriamente dita, pode começar.

Nasci leonino, com todas as características admiráveis e as insuportáveis de um legí-timo leonino. Tenho e vivo uma história que se eu lhe enfrentar, de uma outra maneira, sereiengolido por ela! É guerra! É muito como o Guimarães Rosa refletiu sobre a vida, que ela fazde tudo, agradável ou não, para lhe retirar como resposta a coragem.

Depois que meus pais se casaram, foram morar em uma vila periférica de Goiânia quepossuía uma péssima reputação por ser região de tráfico e usuários de drogas. Então, todo opreconceito em cima dos usuários se estendia sobre a região. Não havia expectativas ouhorizontes para nós, crianças e adolescentes da Vila Santa Helena. Ás vezes, somente a cruelesperança. A “realidade” nada permitia além da necessidade da busca de trabalho paraajudar na renda familiar. Se terminássemos o ensino médio já era um grande feito.

Meu pai trabalhava como vendedor de produtos alimentícios e ao chegar a casa auxi-liava minha mãe na administração de um bar-mercearia que era nossa principal fonte de

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renda. Esse bar e a nossa casa eram a mesma coisa! Minha mãe cuidava da casa, de mim, domeu irmão e de todos nossos muitos cachorros. Dentre eles, alguns inesquecíveis, mas todoseles muito necessários para a proteção da casa. A região exigia tal medida. Nela havialugares de muita pobreza e muitas pessoas dali possuíam poucas alternativas de sobrevi-vência e dentre elas, o roubo.

Minha mãe só sabia que eu tinha que estudar para “ser alguém na vida”. Meu irmãonunca quis estudar, e eu sempre quis e adorava o mundo da escola, dos amigos, das letras,das artes, da TV, da música, de todo o começo de ano comprar os cadernos com seu adorávelcheiro de novo, e os lápis-de-cor, que eram pra mim a compra fundamental! Adorava bancasde revista, mesmo sem saber ler nem meu próprio nome. Adorava ficar ali, dentro de uma.Juliana, coitada, tinha que esperar ou me bater pra irmos embora.

Na briga entre minhas escolhas e as dificuldades, o resultado até agora é que sou oprimeiro e único membro da família que cursa e tem possibilidades de concluir um curso emuma universidade federal. Esse dado me orgulha até certo ponto, mas o que ele mais mesuscita é a revolta diante do infame sistema público de ensino brasileiro, que tem como“produto final” a supressão da grande maioria daqueles que por ele passa.

Meus pais, familiares, primos e amigos de infância tiveram em sua grande maioria,menos opções que eu! E nisso, Juliana foi o diferencial! Minha mãe extrapola qualquerconceito leonino, sacrificando-se em vida, dedicando-se ao trabalho. Sem esse sacrifícionunca poderia estar na UFG. Nunca! Se eu tivesse outra mãe de força menor, que nãoconseguisse amortecer a realidade à minha volta, eu não conseguiria ser na federal umacadêmico que contraria todas as formas de exclusão que ela mantém! Sem a força delanunca teria a oportunidade de vivenciar uma outra realidade, intangível até então, em meumeio e família.

Em fevereiro de 1984 as coisas mudaram radicalmente. Tinha quase sete anos quandomeu pai faleceu. Foi um golpe brutal da vida! Lembro perfeitamente da minha mãe e seudesespero silencioso ao chorar pela perda. Meu irmão na época tinha quatro anos e sentiumuito o fato, aparentemente, mais do que eu. Outra vez, a guerreira pioneira que saiu dointerior de Goiás, e a partir disso, tornou-se o esteio no transladar de toda a família paraGoiânia, estava no chão! Levou um tiro no coração e só não morreu porque tinha duascrianças para “criar”. Mas levantou-se, a pesar-lhe na costa um triste destino. Daí em diante,meu núcleo familiar foi dor, brigas e lutos durante muito tempo.

A mochila colorida na costa e a cabeça cheia de brincadeiras...O pátio das escolas, as tias do lanche, os lanches esquisitos!A vida deveria ser mais tranqüila! Afinal, era infância?

Depois de concluir a quarta série, estudei em vários colégios, todos estaduais, grandese de baixa qualidade, onde sempre faltavam professores de química e física. As idéias dosprofessores de história e geografia que me chamaram a atenção ao longo do tempo. Termi-nei meu Ensino Médio em um dos tradicionais colégios estaduais de Goiânia, mas queapesar disso tinha nível de exigência baixo. E o pior, havia pouco incentivo aos estudantespara prosseguirem nos estudos, causando em muitos uma descrença nos estudos. Com tudoisso, a universidade não existia pra mim. Mas é fato! Em toda minha história na rede esta-dual de ensino, pouco recebi de informação sobre universidade. Pelo contrário, as escolasme colocaram longe das federais.

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110 Caminhadas de universitários de origem popular

Em 1997, terminei o ensino médio com 20 anos e sem nenhum “sonho” de entrar emuniversidade, este só surgiu anos mais tarde, quando alguns novos amigos estavam pleite-ando seus ingressos e começaram a me incentivar. Nessa época, já estava morando em umsetor ainda mais periférico, problemático e violento, chamado Solange Parque. Então, noano de 1999, no primeiro semestre, comecei um pré-vestibular, muito animado, obstinado,disposto a superar qualquer obstáculo! O primeiro foi: como pagar? Minha mãe não de-monstrou empolgação em assumir esse compromisso, tendo que sustentar toda a casa, meuirmão e eu. Não deu outra! Terminei o cursinho, mais não terminei de pagá-lo. Lembro-meque fazia o percurso de mais de sete quilômetros de minha casa ao cursinho de bicicleta, desegunda a sábado.

Nem a constatação das minhas grandes deficiências que dificilmente iriam ser supri-das pelo cursinho, nem esse esforço físico diário desgastante, nem a incompreensão demuitos familiares. Nada impedia meu intuito! A única coisa que conseguiu me parar foi afalta de dinheiro! Nessa época vivíamos da aposentadoria de minha mãe, e esse cursinhoera um luxo insustentável e uma faculdade particular era incogitável! Por que sabia quenão teria a menor condição para pagar os estudos, apesar do fácil acesso. Acreditava queminha maior dificuldade seria em passar no vestibular da UFG. Hoje sei que isso é umledo engano. Então, em virtude desses fatos, tive que conter o meu desejo. A “realidade”me obrigava.

Comecei o ano de 2000 trabalhando e não estudei em nenhum cursinho, e nãopassei no teste de aptidão para Design gráfico, nem para a minha segunda opção, Filoso-fia. Em 2001, estudei desenho e história da arte e obtive aprovação no teste de aptidão ena primeira fase, mas na segunda fui reprovado. Consegui trabalho no final de 2002, masdepois de três meses fui despedido. Então me voltei inteiramente aos estudos para obterminha aprovação definitiva. Com o acerto deste último trabalho pude procurar um cursi-nho no inicio de 2003.

No primeiro dia de busca a um cursinho, visitei em seu trabalho uma grande amiga doensino médio, que se chama Abelâine. Ela tentou algumas vezes medicina veterinária naUFG, infelizmente “sem sucesso”! É mais uma pessoa nobre de origem popular que o siste-ma alienante brasileiro de ensino barrou. A essa amiga contei sobre meus propósitos e ela,além de me apoiar, me apresentou uma pessoa que me ajudou muito!

Assim conheci Dona Maria, que é costureira. Dentre suas clientes está uma empresariada rede de ensino de pré-vestibulares de Goiânia. Por esse intermédio, consegui bolsa com50% de desconto no pré-vestibular e comecei a estudar no horário matutino. Posteriormen-te, passei a assistir ilegalmente as aulas do curso de específica de português e as aulas docursinho noturno. Então, eu chegava às 7:00 e só saía às 21:00 da escola! Até que começouuma maior vigilância, mas nesse momento eu já conhecia a profª. Lúcia e expliquei minhasituação e vontade, e ela sem, pestanejar, me liberou para que eu estudasse gratuitamenteem qualquer curso que existisse em seu estabelecimento. Com isso, aproveitei 2003 paraexclusivamente estudar.

No segundo semestre desse mesmo ano, fiquei estudando em casa. Nesse período játinha maior compreensão e respeito ao meu objetivo, mas havia a pressão “subliminar”familiar sobre mim e minha mãe. Ela sofreu mais, principalmente por eu não estar trabalhan-do. Apesar de tudo eu permanecia tranqüilo, pois tinha me preparado bem. Estava conscien-te de todo o processo e das dificuldades que superei e as que ainda não estavam superadas,

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no caso, as exatas! Mas colocando tudo na balança o peso para minha aprovação era maior.E isso se confirmou! Fui “aprovado”. Minha escolha foi geografia pela reflexão entre asmatérias que me limitavam, as que sempre gostei e as que menos gostei, e por não haver naépoca o curso de Psicologia na UFG.

Universidade, cidades, horizontes, poucas pluralidades, algumasobscenidades tantas dificuldades, vagos espaços, desvairadas menteslutas, belas alegrias, belos encontros e muros muitos,altos, intransponíveis, resistentes, arcaicos, fixos, os ditos“acadêmicos”.que me separam do meu próprio eu! Que “explicam” o você de você!e ao mesmo tempo é o não! E ao mesmo tempo me nega o conhecer!

O ano de 2004 foi meu primeiro ano na UFG. As dificuldades para o meu acesso forammuitas e comprovadas pelas “desaprovações” nos vestibulares. Agora, estando nela, asdificuldades reais apareceram! Muitas vezes ideológicas, com finalidades de manutençãodo elitismo dessa instituição através, por exemplo, do pouco apoio aos EUOP’S (estudantesuniversitários de origem popular), que romperam a primeira barreira, que é o vestibular,com sua falsa indistinção no processo “seletivo”!

Nesse primeiro ano a minha busca por uma bolsa para permanecer exclusivamenteestudando foi exaustiva. Nesse momento, Jô, minha amiga de curso e moradora de Casade Estudante como eu, me disse uma coisa surpreendente até então: “O Estado tem odever de nos proporcionar a melhor formação possível! E nós, estudantes de baixa renda,temos que exigir isso!”. Seja pela meritocracia e/ou nas outras formas que a IFES insisteem manter, a conseqüência é a inevitável não permanência dos EUOP’S que conseguiram“pular os muros institucionais”. Não existe, por exemplo, uma circulação e divulgaçãodas poucas e insuficientes ações da Procom (Pró-Reitoria de Assuntos da ComunidadeUniversitária) que visam à assistência aos EUOP’S, mediante alguns programas com bol-sas remuneradas. Não vejo e não sinto respeito e preocupação da UFG para com estesestudantes. Minha luta e história acadêmica dentro desta instituição comprovam isso. Enão estou esperando final feliz!

A tão buscada bolsa que me proporcionaria uma permanência mais tranqüila pois meauxiliaria na questão financeira, só veio no segundo semestre de 2005, por indicação diretada reitora da época. Caso contrário, eu não teria conseguido esta bolsa “trabalho”, que éuma das poucas na UFG que não funciona na lógica meritocrática. Ela tem como critério oestudante ser de baixa renda, mas é péssima tanto pelo valor baixíssimo R$120,00 nomáximo), quanto pela proposta geral da mesma, onde o bolsista tem que pagar horas traba-lhando em departamentos da UFG semanalmente, suprindo o déficit de funcionário.

É horrível ter que enfrentar essas condições quase sempre sozinho. Às vezes compar-tilhei com pessoas de maior compreensão como o prof. Alex Ratts, ou com pessoas emmesma situação, como a amiga Maiana Gomes. Mesmo agora, desde junho de 2006 comobolsista do Conexões, continuo a enfrentar as mesmas dificuldades que antes eu enfrentava.A única diferença é que na questão financeira, elas estão atenuadas, porque no dia a dia,ainda continuo me equilibrando em uma tênue linha que me liga à conclusão do curso.

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112 Caminhadas de universitários de origem popular

Tenho uma óbvia identificação com o programa porque ele trata de temas que dizemrespeito e respondem às dificuldades que vivo. Prevejo na busca por um mestrado a maiordas batalhas contra essa meritocracia. Através da lógica do “mérito” responsabiliza-se uni-camente o individuo sobre seu sucesso ou fracasso, desconsiderando o meio e legitimandoa desigualdade que se mascara na pretensa neutralidade da “seleção” via vestibular. Vejammeu caso! Pelo o ensino que tive do Estado, cursos como Direito ou Medicina não existempara mim em termos de possibilidades de ingresso. Ou seja, meu horizonte de vida, realiza-ção, crescimento foi nefastamente achatado.

O Conexões UFG completa um ano sem apresentar real intervenção nesses mecanis-mos que sedimentam a desigualdade e isso me perturba muito. Dentro do que o programase propõe a fazer, as responsabilidades são muitas. Para enfrentá-las creio que no grupo,tanto na coordenação, quanto nos bolsistas, falta um melhor preparo teórico-intelectual,uma suficiente dedicação, e uma identificação com a temática do programa, e isto, quepara mim é o que está sendo o entrave maior para nossas realizações. Falta engajamento,doação, coração!

Assim, meu questionamento em uma conjuntura institucional e federal é com relaçãoà utilização da meritocracia, onde a universidade não usa o mérito para a nomeação decargos e programas, e provavelmente, se utiliza de mecanismos de negociação políticapartidária dos mesmos. Assim, podemos estar elogiando a mediocridade.

Não estou PCS para receber o “salário” mensal! Estou para construir uma universidadediferente desta inaceitável que hoje é! Rejeito esta longínqua e inalcançável “ilha federal”àqueles de mesma situação social que a minha. E me motivo a estar ainda no Conexões poracreditar que este programa possa ser o meio para transformar este quadro para os próximoseuop’s “náufragos” que chegam a duras penas a UFG e que são discriminados e impedidospelo elitismo de permanecer e concretizar esse direito humano e civil à educação comqualidade! Direito esse que por enquanto nos é dificultado, negado!

É para isso que pra mim o Conexões UFG deve existir, e é por isso que eu critico eirrito! Luto por ações afirmativas e desejo ver o Conexões UFG lutando também.

“Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não estápreocupado.Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado.Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo temmelhorado! Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que estádesempregado. Você merece, você merece. Tudo vai bem, tudo legal.Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé se acabarem com teu Carnaval?Você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre: “Muitoobrigado”.São palavras que ainda te deixam dizer por ser homem bemdisciplinado. Deve, pois só fazer pelo bem da Nação tudo aquiloque for ordenado. Pra ganhar um Fuscao no juízo final e diplomade bem comportado. Você merece, você.. “Comportamento Geral” Gonzaga Jr.

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Giselle Vieira dos Anjos*

Como todas as crianças, brinquei e curti muito minha infância. Fiz algumas traquini-ces, que muitas vezes deixavam meus pais irritados. Cresci em um lar simples e sem regalia,mas meu pai nunca deixou faltar algo para nós, sempre tínhamos o necessário para viver.

Meu pai é um homem simples e trabalhador, cursou apenas o primário e por essemotivo nunca conseguiu um bom emprego. Então, ele tenta sobreviver como o próprionegócio que administra (vendedor de churrasquinho) na mesma cidade que moramos,Aparecida de Goiânia-GO.

Minha mãe sempre foi a “senhora do lar”. Certa vez até tentou trabalhar de doméstica,mas foi por pouco tempo, pois eu e meu irmão éramos ainda pequenos e não tinha quemcuidasse de nós. Nesta mesma época, meu irmão quebrou o braço, e então ela decidiu nãotrabalhar fora enquanto a gente não crescesse.

O tempo passou e chegou a época de estudar. Fui matriculada em uma escola pública,onde iniciei a alfabetização. Fiquei apenas uma semana nessa série, logo me passaram parao pré – forte, pois eu já conhecia as vogais, o alfabeto e sabia juntar algumas letras. Issoporque minha mãe me ensinava em casa.

Nesta época ainda morávamos de aluguel e vivíamos mudando de casa. Conseqüente-mente, eu tinha que mudar de colégio. Entretanto isso nunca atrapalhou meu desempenhona escola. Sempre fui uma boa aluna e gostava muito de ir as aulas, apesar de que as escolasem que estudei não eram tão boas. Sabe como é o perfil das escolas publicas... não têmmuito a oferecer aos alunos, a não ser professor, quadro, giz e carteira para se sentar.

Muitos professores bons e compromissados cruzaram meu caminho. Uma professoracom quem aprendi muito, principalmente gramática, foi Maria Silvéria, que me deu aula deportuguês na sexta série. Outros professores também foram muito importantes e contribuí-ram bastante para a minha formação. Em contraste, tive professores péssimos que não ti-nham nenhum interesse em ensinar.

Outro aspecto negativo na minha vida escolar foram as greves na rede pública. Passáva-mos até meses sem ter aula. Como é de se esperar, nós, estudantes, sempre saíamos prejudica-dos, pois os professores atropelavam o conteúdo e ficávamos sem aprender muitas coisas.

O sonho de cursar uma faculdade estava muito distante, não acreditava na possibilidadede estudar na UFG (Universidade Federal de Goiás) e nas particulares nem cogitava prestar ovestibular, pois sabia que meu pai não daria conta de pagar as mensalidades, que são tão caras.

Não vim até aqui para desistir agora

* Graduanda em Enfermagem pela UFG.

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114 Caminhadas de universitários de origem popular

Embora meus pais reconhecessem que cursar uma faculdade é um privilegio da minoria, elesnunca desistiram de me apoiar e incentivar a estudar. Almejavam um futuro melhor para mim.No entanto nunca exigiram que eu trabalhasse para ajudar nas despesas de casa.

Enquanto estava cursando o ensino fundamental, ainda não tinha me dado conta deque teria que enfrentar um vestibular. Apenas quando cheguei ao 3º ano do Ensino Médio éque decidi me dedicar à prova. Então fiz um cursinho preparatório paralelo ao 3º ano.

Neste período de tanta pressão e vestibular se aproximando, me senti muito apreensi-va. Não estava preparada para enfrentar toda aquela rotina: escola, cursinho e ficar estudan-do até de madrugada. Além disso tinha que enfrentar a distância da minha casa ao cursinho,um percurso que durava quase duas horas. Entretanto o meu alvo era ingressar em umaUniversidade Pública, então se dependesse de mim, iria até o fim.

Por fim, chegou o dia tão esperado, a primeira etapa do vestibular 2004 da UFG. Porincrível que pareça eu estava muito tranqüila neste dia. Uma semana depois saiu o resultadoe meu nome estava na lista dos aprovados na 1ª etapa. Fiquei muito feliz mas sabia queestava por vir uma barreira muito maior, a 2ª etapa, com redação, literatura, física, química,matemática e biologia, tudo isso no “canetão”!

Por fim, em fevereiro de 2004, saiu a relação dos aprovados. Para minha surpresa meunome estava entre os aprovados para o curso de enfermagem na UFG. Que grande alegria!Nem parecia ser realidade.

As dificuldades começaram mesmo com o ingresso na Universidade. A distância docampus universitário até minha casa e ter que ficar o dia inteiro na faculdade foram gran-des desafios! Além disso, tinha gastos com a alimentação, ônibus e xérox e meu pai nãoestava financeiramente preparado para me sustentar em um curso integral. Até passou pelaminha cabeça desistir de tudo, mas não poderia fazer descaso desse grande mérito quehavia conseguido.

Notando meu esforço duas tias minhas decidiram me ajudar financeiramente. Entãomudei para perto da faculdade. Sem dúvida foi a melhor coisa, apesar da solidão que sentilonge da minha família.

Mais de 14 anos se passaram desde aqueles primeiros momentos em que comecei aaprender a juntar as letras e nunca imaginava que um dia poderia escrever este memorial.Sem dúvida isso é muito gratificante para mim. É um privilégio concedido pelo ProgramaConexões do Saberes, projeto que abriu um leque de oportunidades de aprendizagem ediscussões acerca de temas sociais.

Enfim, vivemos em uma sociedade meritocrática e se quisermos conseguir algumacoisa, temos que nos esforçar muito e aproveitar toda a oportunidade que aparecer, senão oconhecimento científico ficará monopolizado pela camada elitista e sempre seremos subal-ternos a eles.

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Sidiclei Ferreira Leite*

Dezembro era o mês. O ano? Não me lembro! Mas creio que era 1979. Morávamos nafazenda de meu avô materno, Alberto Leite Sobrinho, e numa tarde vi meu pai chegar comalguns pacotes e entre os presentes de natal estava uma cartilha. Havia também cadernos,lápis e borracha.

Estava tudo organizado para que eu e minha irmã mais nova fossemos para escola emfevereiro do ano seguinte. Se tratava de uma escola na zona rural, próxima a sede da fazendaLavrada, onde moravam os meus avós maternos, Aberto e Sidonila, cuja segunda filha,Limercy era professora. Tia Cy, como é chamada, cuidava de todo o trabalho na escola,desde as matrículas até a organização da sala, que cuidadosamente era disposta em filas deacordo com a série, sendo que os alunos menores ficavam nas primeiras cadeiras.

Concluí a primeira etapa da minha vida acadêmica nesta escola. Neste período o quemais me atraía era a volta da escola para casa. Eram dois quilômetros de caminhada por umaestrada no meio do cerrado onde não era difícil encontrar murici, mamacadela, goiabinha,jatobá, marmelada, cajuzinho, araçá, curriola e outros frutos do cerrado. Essas delícias, àsvezes eram disputadas a tapas, mas se me recordo bem, ninguém chegou a se ferir seriamente.

Longos e felizes anos, até que um dia fui acordado antes da sete da manhã. Deveriaacompanhar meu pai, Jaci Gomes Ferreira, na capina da roça de arroz que agonizava nomeio do mato. Juro que nunca apreciei esse tipo de trabalho, mas continuei até por volta dosdoze anos, quando fui morar num garimpo de ouro com meu tio Jorge. O garimpo do Biéficava no mesmo município a uns 95 km da fazenda onde ainda moravam meus avós, tios,pais e meus quatro irmãos mais novos, cujos nomes são Beatriz, Oberdã, Geam e Patrícia, aúltima com sérios problemas de saúde (hoje curada e mãe de dois lindos garotos).

“Caminho suave”

“Não sou nada, Nunca serei nada Não posso querer ser nada À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo” Fenando Pessoa em “Tabacaria” por Álvaro de Campos

* Graduando em Filosofia pela UFG.

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Foi a primeira vez que me afastei da casa paterna, fiquei no garimpo por mais oumenos dois anos e neste período as visitas à família eram pouco freqüentes, pois o trabalhoera muito e nem sempre o jipe podia descer a serra. As chuvas em abundância dificultavamainda mais qualquer viagem, então eu permanecia na região das minas por meses até que umdia, depois que Fábio, filho mais novo do tio Jorge, incendiou o barraco, a mina foi vendidae migramos para a capital.

Morando na cidade, pude voltar a estudar, fui matriculado no Colégio Estadual RuiBarbosa, na quinta série. Não cheguei a concluir, pois a convivência com meus tios tinha setornado não muito boa e acabei voltando para a fazenda Lavrada.

De volta à convivência com meus pais e irmãos, meu espírito já se tornara inquieto,pois, passei por experiências adversas e até mesmo extremas. Como é sabido, em regiões degarimpos a violência é corriqueira, tive que me habituar a ver cadáveres e muitas brigas. Nacapital o contato com essa vertente do comportamento humano cessou, mas, acabei poraprender outras coisas, inclusive a cozinhar e fazer o trabalho de garçom no restaurante dotio Jorge, aprendizado esse que mais tarde, com um pouco de aperfeiçoamento, me fez umprofissional na arte culinária.

A fazenda Lavrada de propriedade do meu avô Alberto (vulgo Betinho), pai da RosaIzabel, que por sinal é minha mãe e que ainda não tinha sido apresentada, ficava no muni-cípio de Pilar de Goiás e, como é de se presumir, era um espaço pouco atrativo para umadolescente cheio de vontade de mudar o mundo. Com muita insistência, meus pais permi-tiram que eu voltasse para Goiânia e comigo trouxesse minha irmã Bia.

A capitalDesta vez fui morar na casa da tia Maria, irmã de minha mãe. Era final da década de

1980. Chegamos no meio do ano e só voltei à escola no ano seguinte. Minha irmã haviaregressado à fazenda, ela tinha outros planos. Preferiu fugir de casa com um rapaz dez anosmais velho, com quem teve duas filhas e vive até hoje.

Matriculei-me no Colégio Estadual Damiana da Cunha para cursar a quinta série noturno noturno. Concluí o ano com êxito, mas como o colégio ficava longe só chegava emcasa próximo da meia noite e o trabalho durante o dia na fábrica de pipocas era exaustivo.Resolvi me matricular num colégio próximo de casa e então comecei o ano seguinte noColégio Estadual Joaquim de Carvalho Ferreira, uma instituição absolutamente desorgani-zada, com alunos violentos e pouca coisa à fazer.

Não foi difícil fazer amigos e com eles pude experimentar uma quantidade incrí-vel de situações novas. Comecei a usar drogas e a beber. Já chegava em casa de ma-drugada, fui advertido seriamente, mas já era tarde, minhas notas estavam péssimas e arecuperação só foi possível graças a insistência da tia Maria. Terminei o ano passando paraa sétima série e com o sentimento de que o mundo estava errado e eu tinha a obrigaçãode mudá-lo.

A sociedade capitalista mantém uma estrutura que em nada me agrada: minha granaera pouca, morava na periferia e via as pessoas em conflitos com a polícia para terem odireito a uma moradia. Enfim, minha rebeldia aumentava na mesma medida que conseguiavisualizar essas mazelas e me sentia o próprio nada, incapaz, debilitado e covarde.

Fazia de tudo para ser o nada que o sistema me havia reservado o dever de ser e porisso, passei dois anos sem ir à escola, trabalhava de madrugada e durante o dia fumava

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maconha e me embebedava com os amigos. Mudei mais uma vez de emprego e resolvimorar sozinho.

Na ocasião trabalhava num grande restaurante e tinha um salário razoável. Alugueium barracão numa região mais afastada, passei na loja comprei um colchão e fui para oendereço aguardar a entrega. Minha vida começava a mudar e neste momento era precisoaumentar a atenção nas minhas ações, pagar as minhas próprias contas e decidir o quefazer para melhorar o futuro. Foi quando fui convidado por um amigo à participar de umcurso de teatro na antiga Escola Técnica Federal de Goiás, hoje CEFET (Centro Federalde Educação Tecnológica).

No ano seguinte (1996) voltei para o Colégio Damiana da Cunha e as dificuldadeseram muitas. Conciliar trabalho, escola e as aulas de teatro que terminavam as 18h. Precisa-va pegar um ônibus para chegar ao colégio, o tempo não era o suficiente e então tirava amaquiagem no ônibus e trocava de roupa na calçada da escola, chegava a ficar só de cuecasporque o porteiro não permitia a entrada com calça de lycra, era preciso usar jeans.

Foram dois anos nesse ritmo intenso. Cheguei a ter problemas de saúde, estava muitomagro, com olheiras e dificuldades para concentração e, seguindo o conselho de um profes-sor, resolvi mudar para um local mais próximo e assim chegaria em casa mais cedo, possibi-litando algumas horas a mais de sono. Excelente idéia! Podia agora começar o curso dedança contemporânea, o que me renderia mais cansaço.

Terminei esta etapa da minha vida acadêmica, assim como exposto, ou seja, o cami-nho traçado até este ponto nada tinha de suave, era preciso então redirecionar minha vida.Troquei o cargo de auxiliar de cozinha um com maior rentabilidade, desta vez eu eraresponsável pela confecção dos pratos frios em um grande restaurante de Goiânia. Deixei asaulas de dança e mudei de colégio, isto é, me matriculei no Colégio Estadual José Honorato,na rua 59, no Centro, bem perto do CEFET.

No Zézão, como chamávamos o colégio, cursei todo o segundo grau, fui reprovadono primeiro ano e consegui fazer dois bons amigos, um louco e o outro mentiroso, que medesculpem, Fernando Melo e Christiano Max Beline, mas, não minto e muito menosestou louco.

Ainda fui membro do grêmio estudantil, me filiei a um partido e passei a me inteirar dofuncionamento da escola. Desisti de me tornar ator profissional, neste caso, por me depararcom aqueles que envergonham os profissionais das Artes Cênicas em Goiás.

Quando passei para o segundo ano, meus objetivos mudaram e surgia a necessidadede fazer um curso superior, mas por ignorância, não tinha a menor idéia do que fazer e comoeu tinha uma admiração imensa pela sabedoria da professora de português e literatura,Maria Vera, pensava em cursar Letras e me tornar poeta. Como a crítica não perdoa, mudeide idéia e Psicologia na Universidade Católica de Goiás passou a ser meu intento.

Maratona do vestibularAs drogas e a bebida já não faziam parte da minha vida, me afastei da maioria das

pessoas, me tornando assim um bitolado em trabalhar e economizar, para em fim ter umpouco de tranqüilidade financeira na faculdade. Sabia que as mensalidades eram caras epassar entre os primeiros e conseguir uma bolsa era uma possibilidade remota. Quase mematei de trabalhar e no ano que terminei o segundo grau, fiz as provas para o curso deFilosofia na UnB (Universidade de Brasília) e UFG (Universidade Federal de Goiás), en-

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quanto aguardava os resultados deixei o trabalho, pois tinha economizado o suficiente paraum ano ou mais.

Nada consegui na UnB e fiquei em 4º lugar na fila de espera da UFG, foi um desesperototal! Não tenho nenhuma habilidade com cálculos. Física e Matemática sempre me derammuito trabalho e era preciso melhorar meu conhecimento nestes campos. Comecei a estudarfeito um louco sozinho, passava de dez a doze horas diárias estudando.

Faltava alguns meses para as provas da UFG, consegui uma bolsa num curso pré-vesti-bular que a UEG (Universidade Estadual de Goiás) proporcionou a alunos de origem popular.Lá o que me interessava era somente aprender trigonometria, o professor era péssimo, perdiamuito tempo assediando as menininhas e pouco me ajudou. Continuei a estudar sozinho.

Vovô Betinho acabava de vender a fazenda Lavrada e vir morar em Goiânia, meus paisvieram primeiro e se instalaram numa casa emprestada do meu avô no mesmo bairro que eumorava, na ocasião eu morava com a tia Cy. Um mês depois chegavam meus avós e para quenão ficassem sós, fui morar com eles e o ritmo dos estudos não cessou, passei na primeirafase do vestibular da UFG e mais ou menos um mês depois fiz as provas da segunda etapa epara minha surpresa, não continha nenhuma questão de exatas, creio que foi o único ano emque isso aconteceu.

O resultado final só viria a ser conhecido algum tempo depois e por isso a jornada deestudos continuava, pois as provas do vestibular da UEG ainda estavam por fazer e euestava inscrito para uma vaga do curso de História.

A ansiedade e a obrigação de estudar tornava os dias uma loucura. Eu tinha poucaspessoas com quem conversar e o desespero aumentava. Foi então que o Fernando sugeriuque eu fosse trabalhar uns dias no restaurante do pai dele, o Sr. Antônio de Pádua, sendo queessa atividade me ajudaria a passar os dias e eles não precisariam contratar alguém paracobrir o período de férias de um dos colaboradores.

Era um sábado, quando começou o almoço uma das clientes, cuja sobrinha tinha feitoas provas da segunda etapa. Ela me perguntou se eu já tinha conferido a lista de aprovadose eu não pensei duas vezes antes de deixar todo mundo sem atendimento. Corri para a lojaonde uma das clientes trabalha e tinha um ponto de acesso a Internet, a página da UFGestava congestionada e eu confuso: volto para dar seqüência ao trabalho no restaurante ouvou a procura desta lista? Fui a procura da lista e uma hora depois consegui abrir a páginae conferir meu nome.

Não pude conter o choro e a euforia, liguei pra casa e contei a novidade o que tambémlevou boa parte da família a chorar, em especial as mulheres. Voltei ao restaurante pegueiminhas coisas e ao chegar em casa, a faca, com a qual cortaram meus cabelos estava afiada.

Novos desafiosA documentação já estava pronta. E não tive dificuldade para efetivar a matrícula, no

entanto, o primeiro ano de faculdade foi um ano de provações, tive sérios problemas com adidática de alguns professores, não entendia a linguagem usada nas aulas e os professoresnão permitiam uma aproximação informal, ou seja, não podia contar com orientações.

O ritmo das leituras era apertado e os trabalhos se acumulavam. Por mais que eutentasse não conseguia, tinha medo de ser ridicularizado em público, pois, não raras vezespude ver e ouvir um dos professores humilhar meus(minhas) colegas por pequenos erros deportuguês e se me dissessem para desistir de estudar Filosofia e fazer um curso de corte e

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costura o pavor poderia ficar pior. Pedi ajuda ao Pablo, um colega de origem semelhante,mas de inteligência brilhante e o coração do tamanho do mundo. Tudo deu certo, passeicom provas de segunda época.

Iniciou o segundo ano e as minhas dificuldades eram outras. Faltava grana para oônibus e a bicicleta passou a ser o meio de transporte. Quarenta minutos para ir de casa aoCampus II da UFG e uma hora e meia para voltar, visto que não tinha dinheiro para o almoçoe com a volta o relevo não colaborava. Não agüentava mais, vendi meu skate e tive comopagar as passagens de ônibus por mais ou menos um mês. No mesmo período, fiquei deven-do na copiadora e escolhia caminhos alternativos para que a moça não me cobrasse.

Como o curso de Filosofia é predominantemente de manhã, resolvi buscar trabalho,deixei currículos em vários estabelecimentos de ensino e algum tempo depois conseguiuma vaga num colégio particular como professor de História. O salário não compensava,mas era o suficiente para aliviar os gastos que minha avó resolveu fazer com minhas passa-gens e alimentação.

Terminei o segundo ano com reprovações e comecei o terceiro com um pouco mais decomodidade, sendo que, assumi também as aulas de geografia e com o salário dava até paracomprar um livro ou outro. Consegui isenção no RU (Restaurante Universitário) e fui con-vidado para ser bolsista PIVIC, aceitei o trabalho voluntário.

Neste mesmo ano viajei duas vezes por conta da universidade, e tais viagens me custa-ram o emprego, mas não me arrependo! Nunca concordei com o trabalho escravo, pois, exis-tem outras formas mais dignas de garantir a sobrevivência. Procurei trabalho sem sucesso,mas, com a ajuda de alguns amigos e a habilidade com as panelas, passei a preparar jantares ealmoços em confraternizações e no mês de dezembro de 2005 não me faltou o que cozinhar.

O ano de 2006 começou e eu estava convicto de que seria mais uma batalha a servencida. E de fato foi um dos períodos mais difíceis. Meus avós se mudaram para umachácara e não tive escolha, fui morar com meus pais e os dois irmãos. As cobranças nãotardaram, era preciso conseguir um trabalho e ajudar com as despesas de casa. Meu tempoera pouco, tinha o estágio a ser concluído e aulas no período noturno, em resumo, não haviacomo trabalhar e aceitei ajuda de tios e logo em seguida o Christiano me ofereceu trabalhoaos domingos na Feira Hippie (Uma das maiores feiras da América Latina. Acontece aosdomingos na praça dos Trabalhadores em Goiânia com comidas tipicamente goianas,vestuário e artesanato).

O esgotamento físico e o estresse eram visíveis. Eu já não estava suportando as aulase os professores. Tinha consciência de que não conseguiria formar no final do ano, deixei oestágio e mais umas duas disciplinas, concluí os relatórios finais de PIVIC e só voltei àfaculdade no momento em que as faltas passaram a acenar para reprovações.

Conversa de corredor: aprendizagemOs corredores da faculdade são sempre o melhor lugar para jogar conversa fora, falar

da vida alheia e contar piadas e confesso sem nenhuma timidez que muito me apraz essasatividades. E foi num momento desses que minha orientadora de PIVIC passou e percebeuminha empolgação com a atividade acima citada. Repreendeu-me seriamente. – Você deveprocurar algo sério pra fazer! Venha até a minha sala para conversarmos!

Ela não tinha muito pra dizer. Foi direta me entregando umas três ou quatro folhas, asquais continha um edital e ficha de inscrição para seleção de bolsistas de um programa

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chamado Conexões de Saberes. - Mexa-se! O prazo para inscrições só vai até amanhã e vocêtem muitos documentos para reunir. Saí da sala desanimado, mas fiz a inscrição e só li oedital depois que fique sabendo que estava entre os 25 selecionados.

Era abril de 2006 e a vida começava a me proporcionar emoções fortíssimas, estavapor descobrir que a universidade abriga um número significativo de indivíduos com histó-rias muito semelhantes a minha. Como membro do Conexões de Saberes tive a oportunida-de de conhecer pessoas que, mesmo sem as condições favoráveis ao bem viver, lutam comtodas suas forças em prol do bem comum, isto é, do respeito à dignidade humana, por ummundo mais justo e feliz.

A rotina de trabalho no Programa Conexões de Saberes foi intensa, mas sem queixas,segui cumprindo minhas tarefas e admito que fiz leituras e participei de atividades quemuito me agradaram. Desde a realização do Seminário Local estou meio atônito com asdimensões do projeto e a cada dia me sinto mais comprometido.

Como a vida não é composta só de fatos e atividades prazerosas, do mesmo modo quetodos os seres viventes, estamos a navegar rumo ao desconhecido, de onde ninguém jamaisregressou. O fato de nascermos nos garante uma viagem, para o nada, céu ou o inferno, deacordo com nossas ações ou crenças, esta última para quem acredita.

E pelo que sei, meu pai acreditava. Não se tratava de um religioso fervoroso, mas tinhasua fé, que não foi o bastante para curar lhe um câncer, linfoma de Hodgkim, que segundoos médicos, na maioria dos casos é fatal. Não foi diferente com meu velho, pouco menos detrês meses se passaram entre os primeiros sintomas e a primeira internação, que durou umasemana. A quimioterapia não mais poderia ajudá-lo e ele inevitavelmente teve que partir.

É chegada a hora do embarque e implorar para que fiquem um pouco mais é puroegoísmo. Então nos restam as flores como último presente, o choro como consolo, as ima-gens como recordação da breve existência e os ensinamentos, que tendem a preencher ovazio que a ausência do pai deixa.