Tiago Rebelo - Encontro em Jerusalém

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Ttulo: Encontro Em JerusalmAutor: Tiago RebeloDados da Edio: Copyright de Tiago Rebelo e Editorial Presena, 2 Edio, Lisboa, 2005.Gnero: Romance.Digitalizao e Correco: Dores Cunha.Estado da obra: Corrigida.Numerao de Pgina: Rodap.Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.Encontro Em JerusalmEditorial PresenaE-mail do autor: tiagorebelo@hotmail. comFicha TcnicaTtulo original: Encontro emJerusalmAutor: Tiago RebeloCopyright by Tiago Rebelo e Editorial Presena, Lisboa, 2005 Capa: Ana EspadinhaFotocomposio, impresso e acabamento: Multitipo - Artes Grficas, Lda.1 edio, Lisboa, Abril, 20052 edio, Lisboa, Abril, 2005Depsito legal n 225 609/05Reservados todos os direitos para a lngua portuguesa EDITORIAL PRESENA Estrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo27 30-13 2 BARCARENA Email: info@presenca. ptInternet: http: //www. presenca. pt

No sou verdadeiramente livre se tiro a liberdade a algum, da mesma forma que no sou livre quando me tiram a minha liberdade. O opressor e o oprimido so igualmente privados da sua humanidade. "NELSON MANDELANOTA DO AUTORA quinze de Janeiro de 1991 viajei para Am, capital da Jordnia, a bordo do ltimo avio comercial que aterrou no pas antes de o governo decretar o encerramento do seu espao areo. O voo proveniente do Cairo, no Egipto, vinha praticamente vazio. Os ventos de guerra aproximavam-se, o ultimato da ONU para que o Iraque retirasse do Kuwait expirava meia-noite e o ataque da coligao liderada pelos Estados Unidos era inevitvel. A operao Tempestade no Deserto teve incio nessa mesma noite com um bombardeamento areo a Bagdad, e duraria quarenta dias, at a Guarda Republicana de Saddam Hussein ser expulsa do Kuwait e desbaratada sem piedade enquanto fugia por uma auto-estrada atravs do deserto, que ficou conhecida pela Estrada da Morte.Ainda durante o conflito, atravessei a fronteira terrestre com Israel e fui acabar a guerra em Jerusalm, onde centenas de jornalistas internacionais faziam a cobertura dos ataques iraquianos ao pas com msseis. Nessa poca, eu era um jovem reprter da Rdio Renascena e aquele foi o acontecimento mais importante que eu tive oportunidade de cobrir nos cinco anos que levava de carreira.

Poucos anos depois, j ao servio da TVI, cheguei a Sarajevo a bordo de um avio britnico das Naes Unidas. A capital da Bsnia- Herzegovina estava cercada pelas tropas srvias da Bsnia e o pas vivia uma das piores guerras civis na Europa de que havia memria no sculo vinte. Para mim e para o meu companheiro de reportagem, era a segunda tentativa para entrarmos na cidade. A primeira havia-se gorado dois dias antes, quando o piloto do 1309decidira regressar a Itlia, porque os srvios bsnios estavam a disparar sobre os aparelhos da oNU que estabeleciam uma ponte area benemrita com o pas devastado pela guerra. De modo que a aterragem foi a primeira prova de nervos de uma reportagem que j se adivinhava a mais difcil e mais perigosa que alguma vez me havia sido oferecida.Durante a dcada de noventa, tive a oportunidade de regressar a Israel para fazer a cobertura de uma visita oficial do ento primeiro-ministro, Cavaco Silva. A viagem foi encerrada com um encontro entre os chefes de governo dos dois pases e os jornalistas portugueses, no hotel King David, em Jerusalm. Enquanto decorria o encontro, uma manifestao de colonos enfurecidos era contida pela polcia junto porta principal do hotel. Protestavam contra as negociaes de paz conduzidas pelo primeiro-ministro Yitzhak Rabin que implicariam a retirada dos colonos judeus dos territrios rabes ocupados. A poltica da troca de terra por paz, no mbito do acordo de paz negociado em Oslo com os palestinianos, acabaria por no se concretizar porque, tempos depois, um judeu radical assassinou Rabin a tiro de pistola no final de uma manifestao a favor da paz, em Telavive.Nessa poca, visitei tambm a Faixa de Gaza, onde permaneci alguns dias, graas a uma combinao prvia com a OLP e hospitalidade de um guia designado pela organizao, que me deu guarida em sua casa.Para reconstituir estes grandes conflitos, que me serviram de cenrio para a histria de Encontro em Jerusalm, recorri memria desses dias de plvora. E para reviver todos os locais por onde passei, e por onde passam as personagens da histria, fui desenterrar do p das gavetas as centenas de fotografias que ento tirei. Outras fotografias, mapas, anlises polticas, cronologias dos factos e, principalmente, os relatos dolorosos daqueles que viveram e sofreram com a guerra, encontrei-os atravs de longas e pacientes pesquisas na Internet. Sites governamentais, sites palestinianos e de organizaes independentes, pginas de cidados annimos bsnios e notcias de jornais, o visionamento de reportagens televisivas da poca, de filmes, e a preciosa consulta de livros escritos por reprteres que acompanharam os acontecimentos no terreno e por10jornalistas que seguiram a poltica na retaguarda, todas estas fontes me ajudaram a reunir a informao necessria para escrever a histria.Embora sendo uma histria de fico, as cenas aqui relatadas baseiam-se nos verdadeiros acontecimentos das guerras que descrevem. Alm disso, os factos histricos e a descrio dos lugares procuram ser to rigorosos quanto a minha memria e a minha pesquisa permitiram.

Cabe ainda nesta nota um agradecimento aos meus amigos Jos Luis Semprun, jornalista espanhol e companheiro de reportagem, que me ajudou a recordar alguns momentos daqueles dias em Jerusalm; Antnio de Sousa Duarte, pelo seu apoio de sempre, e porque, para alm de bom amigo, um homem de muitos recursos, incluindo um livro da sua lavra sobre a guerra na Bsnia-Herzegovina, ao qual recorri nos momentos de dvida histrica; ao Francisco Espadinha, um dos responsveis da Editorial Presena, sempre inexcedvel no apoio, profissionalismo e simpatia; e a todos os outros profissionais da minha editora responsveis pela realizao deste livro, que s no nomeio aqui, um a um, por serem muitos, mas a quem estou eternamente agradecido pelo entusiasmo com que tm colocado sempre minha disposio o seu empenhamento incansvel e uma qualidade profissional acima da mdia.A todos eles, que, de uma forma ou de outra, se envolvem na produo e divulgao dos meus livros, sempre com um profissionalismo notvel, muito obrigado.TIAGO REBELO111Afonso pressentiu que havia algo de errado no momento em que comeou a ouvir o rumor da multido e o uivo iminente de sirenes na noite. Olhou em redor, inquieto, e no conseguiu localizar Francisca. Os jornalistas aguardavam a chegada dos primeiros-ministros de Portugal e de Israel numa das espaosas salas de conferncias do hotel King David, em Jerusalm. H trs dias que andavam a correr atrs do chefe de governo, fazendo a cobertura de uma visita a Israel cuja agenda quase o levara a atravessar o pas de uma ponta outra. Este ltimo dia havia sido particularmente cansativo, com um passeio a p pela Cidade Velha e uma passagem pelo Muro das Lamentaes logo pela manh. Fora uma caminhada muito pouco descontrada, numa luta permanente com os agentes de segurana israelitas, que cercavam os dois primeiros-ministros e impediam os jornalistas de se aproximarem. Atravessaram as ruas estreitas da Cidade Velha em passo acelerado e colados comitiva oficial. Tinham sido avisados para no se deixarem Ficar para trs. Havia uma grande tenso em Jerusalm e no era o momento adequado para se porem a fazer turismo, pois no seria a primeira vez que um ocidental era apunhalado pelas costas ao aventurar-se sozinho por aquelas ruelas labirnticas.Durante a tarde, o primeiro-ministro visitara o Knesret, o parla mento israelita, aps o que os jornalistas tinham ido a correr para a sala de imprensa do hotel Sheraton, onde mergulharam na tarefa de escrever as suas notcias, num contra-relgio para conseguirem enviar o relato do dia antes dos fechos das edies.13

Afonso e Francisca tinham acabado de se sentar com um prato quente na sala de jantar do hotel, quando foram avisados por um dos assessores de imprensa do primeiro-ministro de que haveria uma conferncia de imprensa surpresa dos dois chefes de governo dentro de uma hora. no King David", informou-os, e a carrinha sai do hotel daqui a quinze minutos. " Os jornalistas no se admiraram com o aviso em cima da hora. Era assim que funcionava a segurana israelita. Sempre que o primeiro-ministro Yitzhak Rabin ia a algum local, a informao era mantida em segredo at ao ltimo momento. De modo que deixaram para trs os pratos intactos e dirigiram-se para a porta do hotel.Agora, Afonso passava os olhos distrados pelo Jerusalem Post quando comeou a aperceber-se do burburinho l fora, na rua King David. Levantou a cabea instintivamente e reparou que Francisca j no estava na sala. Os outros jornalistas conversavam em voz baixa, sentados ao longo das filas de cadeiras que haviam sido alinhadas frente a uma mesa coberta com uma toalha verde, e, em cima, podiam ver-se duas garrafas de gua, dois copos e um ramo de flores desenxabido que atrapalhava a colocao dos microfones. Atrs da mesa, uma grande placa com o logotipo do hotel. Afonso levantou-se e foi at janela. Afastou a cortina, espreitou l para baixo e assustou-se com o que viu.Saiu da sala sem dizer palavra e atravessou o corredor alcatifado, quase a correr, at aos elevadores, mas a ansiedade crescente impediu-o de esperar que as portas se abrissem. Procurou as escadas de servio e comeou a descer, saltando os degraus dois a dois.Atravessou a porta que dava acesso a mais um corredor alcatifado e dirigiu-se para o trio do hotel. No caminho, cruzou-se com um assessor de imprensa do primeiro-ministro.- Onde que vais, Afonso? - perguntou o assessor. - A conferncia de imprensa vai comear.- Viste a Francisca? - interrogou-o, inquieto.- No. Afonso, tens de vir j ou perdes a conferncia de imprensa.- Eu vou j - respondeu, seguindo no sentido contrrio.14- Despacha-te! - gritou-lhe ainda o outro.Afonso virou-se para trs e arriscou um bluffde improviso com o assessor.- Ouvi dizer l em cima - mentiu - que iam tirar o Rabin do hotel por causa da confuso l fora. Os tipos podem invadir o hotel. Parece que isto est demasiado perigoso.O assessor voltou-se, intrigado com o facto de Afonso estar to bem informado.- No - respondeu -, os assessores dele garantiram-me que no o tiram daqui enquanto a conferncia de imprensa no se realizar. Mas olha que esto a ficar nervosos. Querem despachar isto rapidamente.- Okay - gritou Afonso, continuando a andar s arrecuas. Tenho s de encontrar a Francisca!Chegado ao trio, Afonso avanou para a porta do hotel, mas foi barrado por um homem paisana, da segurana pessoal do primeiro- ministro, que lhe ps uma mo no peito e fez um sinal significativo com a cabea. No entra nem sai ningum, queria dizer.

Trs dias antes, o primeiro-ministro portugus fora obsequiado com um almoo a bordo de um barco de recreio no mar da Galileia - na realidade, um grande lago, que se dividia entre a actividade piscatria e o turismo. Afonso e Francisca tinham ficado numa mesa com outros jornalistas e, entre eles, sentaram-se dois tipos da segurana. Eram agentes da seco de proteco dos vIP, do Sbaba, o servio de segurana interna israelita. Pareciam sados de uma unidade de produo, um era a fotocpia do outro, jovens, altos e magros, cabelo muito curto, olhos atentos e semblante fechado, camisas brancas de manga curta por fora de calas desportivas que, indubitavelmente, escondiam a arma de servio entalada no cinto. Na altura, os jornalistas ensaiaram uma conversa amigvel com os agentes mas estes no lhes retriburam a amabilidade, preferindo no lhes responder. Ocasionalmente, no decorrer da refeio, trocaram algumas frases curtas entre si, mas ignoraram em absoluto as outras pessoas sentadas mesa.A conversa prosseguiu em portugus e Afonso comentou que o mais provvel era os agentes no estarem autorizados a falar com os15estrangeiros. Mas o caso afigurou-se-lhes de tal forma bizarro que, dali a pouco, estavam todos na galhofa com aqueles tipos serficos, pedindo- Lhes que passassem o cesto do po ou perguntando-lhes se queriam vinho - como se eles bebessem lcool. Os agentes, obviamente habituados a estas situaes, permaneceram imperturbveis at os jornalistas se cansarem da brincadeira e retomarem a conversa normal. Durante o resto do almoo, Afonso ainda os surpreendeu uma vez a sorrirem de algo que murmuraram em hebreu.Na altura, Afonso chegara a divertir-se com a atitude reservada dos agentes, mas agora, impedido de sair do hotel por um desses intransigentes seguranas mudos, j no achou graa nenhuma.Um polcia fardado aproximou-se de Afonso, dirigindo-se-lhe em hebreu e ele, embora sem entender as palavras, compreendeu que o homem queria que recuasse e se afastasse da porta do hotel. Contrariado, Afonso voltou-se para a janela estreita, fronteira porta, esperanado em localizar Francisca, l fora.Havia uma barreira de polcias e soldados com bastes de madeira e metralhadoras Galil a tiracolo, que tentava conter os manifestantes e impedi-los de invadir o hotel. Os olhos de Afonso foram atrados pelos flashes dos reprteres fotogrficos no exterior e, entre eles, l estava Francisca, bem no centro do furaco, como sempre indiferente ao perigo.Ela no se encontrava muito longe. Afonso viu-a a tirar fotografias a no mais de trs metros de uma cena de pancadaria entre civis furiosos e polcias que os agarravam pelos braos e pernas, e os arrastavam pelo cho de qualquer maneira; eles a espernear, excitados, como que possudos pelo demnio, indomveis, selvagens; e os polcias indiferentes ao histerismo, quase delicados na sua firmeza. Eram cerca de cem manifestantes, oriundos dos colonatos judeus nos territrios rabes ocupados, homens duros, resolutos nas suas crenas religiosas levadas ao fanatismo dos actos extremos. Usavam o solidu, que Lhes cobria a parte superior da cabea, e invocavam os textos sagrados como argumento dogmtico da sua razo, dos seus direitos, por muito que isso atropelasse algum, ou todos, os direitos dos palestinianos, que aspiravam a uma vida decente. Tinham o aspecto humilde dos trabalhadores annimos e os mais16

religiosos ostentavam barbas cheias e longas suas. Tambm havia mulheres e crianas que, tal como os homens, desafiavam as autori dades com modos descontrolados. A multido berrava improprios e agitava cartazes pregados a paus com frases intolerantes contra o primeiro-ministro, algumas delas, to excessivas que lhe desejavam a morte, como se desejava aos traidores. Na poca, Yitzhak Rabin travava um combate poltico interno para anular a resistncia dos sectores israelitas mais radicais, que se opunham implementao de um acordo negociado em Oslo entre o governo e os palestinianos e que ficou conhecido pelo princpio da troca de terra por paz.Dali a pouco, os paus dos cartazes dos manifestantes j serviam para atacar os polcias, que responderam a eito com bastonadas impiedosas. O barulho no exterior era ensurdecedor. Turistas incrdulos ouviam o rumor do tumulto petrificados no trio do hotel. Espreitando pela janela, Afonso testemunhou, angustiado, com um n na garganta, a coragem de Francisca, que se arriscava a ser engolida pelo caos enquanto tirava fotografias, protegida apenaspela distncia ilusria do visor da mquina. Em momentos como aquele, dizia Francisca, ao ver os acontecimentos atravs da cmara, conseguia abstrair-se do perigo e correr atrs da fotografia perfeita.A violncia raivosa dos manifestantes explodiu numa batalha campal, mas apanhou pela frente a disciplina frrea de homens feitos. nos terrenos perigosos da intifada palestiniana, que no se deixavam intimidar por um punhado de colonos histricos e que no hesitaram em rachar algumas cabeas para fazer recuar a turba, numa profuso de sangue esguichado e narizes partidos. Os bastes de madeira slida abateram-se sem remorsos e, sem olhar a quem, atingiram com a mesma determinao homens, mulheres e crianas, levando-os a fugir aos tropees.Uma linha de polcias formava uma barreira inflexvel, assegurando a defesa do hotel, garantindo a sua inexpugnabilidade, en quanto outros agentes, em grande nmero, pescavam os mais exaltados, um a um, por pernas e braos e os arrastavam para oscarros celulares que os levariam para a esquadra, onde os aguardava uma noite de deteno.17Chegaram ambulncias e paramdicos para prestarem assistncia aos feridos. Um homem alto e possante, de barba espessa e cabelo curto, que minutos antes, na primeira fila da manifestao, se atrevera a desafiar os polcias incitando os outros colonos a romper a barreira da autoridade, sentava-se agora no lancil do passeio, agarrado cabea sem conseguir estancar o sangue vivo que lhe tingia de vermelho a camisa branca e o casaco de malha azul. Um jovem casal que viera participar no protesto com o filho menor, escondia-se atrs de uma rvore, protegendo a criana aterrada com aquilo tudo. Uma rapariga com um longo cabelo ruivo, agarrada bandeira branca e azul com a cruz de David - os dois tringulos sobrepostos entre duas faixas azuis -, tapava a boca com o smbolo da nao, deixando ver por cima do pano uns olhos castanhos assustados com a exploso de violncia que tresmalhou os manifestantes num pice. O espao h pouco densamente povoado j s era uma imensa clareira pontuada por alguns colonos obstinados, que acabariam por ser arrastados pela polcia, e um ou outro ferido a receber cuidados mdicos antes de ser levado para o hospital.

Francisca passeou por entre os despojos da batalha com a mquina aperrada e disparou algumas sucesses rpidas de flasher para captar o estado dos feridos, a interveno das equipas de socorro, o choque das crianas atrs dos braos envolventes dos pais, as expresses de revolta dos jovens colonos e de indignao dos mais velhos.Do seu posto de vigia, na janela do hotel, Afonso apercebeu-se de que a tenso se esvaziara com a interveno policial. Francisca j no corria perigo, concluiu, aliviado, ao ver os cartazes espalhados pelo cho. Tinham sido abandonados pelos manifestantes no atropelo da retirada. A maioria dos colonos mantinha uma distncia prudente da polcia e parecia demasiado desmotivada para arriscar um segundo assalto. Afonso lembrou-se da conferncia de imprensa e bufou, irritado, a pensar que iria chegar atrasado. Deixou o trio do hotel e voltou para a sala no piso superior onde os chefes de governo j falavam aos jornalistas.18Quando entrou na sala, a palavra estava com o primeiro-ministro israelita. Afonso viu-se obrigado a baixar-se para no atrapalhar as imagens das televises ao passar entre a primeira fila da plateia e a mesa dos governantes. Arranjou um lugar livre na segunda fiada de cadeiras. Obviamente, perdera as declaraes iniciais. Na tranquilidade da sala, contrastante com o estado de emergncia da rua, os dois homens respondiam agora s perguntas dos jornalistas. Afonso respirou fundo para recuperar o flego e concentrou-se nas palavras do chefe do governo israelita.A manifestao de intolerncia a que assistimos esta noite", dizia Yitzhak Rabin, um bom exemplo das enormes dificuldades que temos de enfrentar no caminho para a paz. No entanto", prosseguiu, o meu governo vai provar que a maioria do povo de Israel apoia o processo de paz com os palestinianos e com o mundo rabe.Estamos absolutamente empenhados numa poltica que abra portas para um futuro seguro, tanto para os judeus como para os palestinianos. Mas tambm temos conscincia de que um caminho minado pelas aces desestabilizadoras levadas a cabo por extremistas de ambos os lados, que desejam boicotar os esforos pacificadores dos legtimos representantes das maiorias dos dois povos. "Rabin fez uma pausa significativa e passou os olhos pela sala. Entre os palestinianos", disse, h grupos terroristas muito poderosos, como o Hamas, que tm de ser travados para salvar o processo de paz. E em Israel, uma eventual vitria nas prximas eleies do Likud, que representa a direita nacionalista, teria como resultado uma nova guerra contra os palestinianos. Por isto se v que estamos perante uma oportunidade nica e, talvez irrepetvel durante os prximos anos, que no devemos perder. "Afonso observou aquele homem de voz rouca e expresso bondosa, olhos azuis comoventes e cabelo branco, que fazia lembrar um av preocupado com o bem-estar dos seus, e pensou como era difcil imaginar a histria da sua vida, cheia de guerras e perigos, uma vida que se confundia com a prpria histria da nao que agora governava. Rabin estivera na primeira linha do combate pela criao de Israel, nos seus tempos de jovem oficial do Palmah19

unidade de choque do Haganah, a fora militar judaica que se opunha administrao britnica na Palestina -, aps a segunda guerra mundial e combatera os rabes, esmagando toda a resistncia com um corao de pedra. O Rabin de hoje no era o Rabin de antes. Havia um tempo de plvora e um tempo de diplomacia.Aps a conferncia de imprensa, Rabin despediu-se do primeiro-ministro portugus e demorou-se ainda alguns minutos conversa com os jornalistas que o acompanharam ao elevador. Solcito, no se apressou a deixar o hotel e disps-se a falar informalmente com todos. Mesmo ali, no corredor do hotel, num ambiente controlado e rodeado de gente pacfica, Rabin continuava protegido por quatro guarda-costas do Sbaba. O dispositivo de segurana volta do chefe do governo era extremamente apertado. Inacreditavelmente, quatro meses mais tarde, Rabin seria assassinado com uma facilidade chocante por um fantico religioso, sada de um comcio na praa dos Reis, em Telavive.Na noite de quatro de Novembro de 1995, no final de uma das maiores manifestaes alguma vez realizadas naquela cidade, Rabin abandonou o palco onde acabara de discursar, genuinamente satisfeito, de alma cheia, aliviado, dono de uma enorme alegria. A con vocao da manifestao a favor do processo de paz havia sido um risco poltico. Se o povo no tivesse aderido, o processo de paz teria morrido ali. Afinal, acabou mesmo por morrer, juntamente com o seu maior defensor.Eram 21h50 em Telavive. Rabin aproximou- se da sua viatura blindada no parque de estacionamento fronteiro ao palco do comcio. Depois de horas vividas sob enorme tenso, a segurana do primeiro-ministro comeava finalmente a descomprimir. A presena de Rabin num evento ao ar livre, numa poca de extraordinria crispao social e poltica, representava uma enorme dor de cabea para os responsveis pela sua proteco. A recente eliminao do dirigente mximo da Jihad Islmica, ocorrida em Malta e atribuda aos servios secretos israelitas, fazia recear uma retaliao. Afinal, o perigo veio donde menos se esperava.Mais tarde, o inqurito ao assassnio de Rabin revelaria uma incrvel srie de falhas na segurana que permitiram o dramtico20desfecho mortal. Igal Amir, um judeu nacionalista de vinte e cinco anos, conseguiu passar despercebido durante quarenta minutos na rea reservada, armado com uma Beretta de nove milmetros entalada na cintura e escondida pela T-shirt azul que trazia por cima das calas.

Quando o primeiro-ministro chegou ao carro oficial que o esperava com a porta aberta, foi interpelado por um estudante de jornalismo. Mais atrs, o assassino percebeu que s havia dois guarda-costas junto de Rabin e aproveitou a oportunidade para avanar. Igal Amir disparou o primeiro tiro queima-roupa. Atingido nas costas, o primeiro-ministro foi projectado para a frente, caindo no cho, junto porta traseira do seu carro. Reagindo aos disparos, os agentes saltaram sobre Igal, mas no conseguiram evitar que ele apertasse mais duas vezes o gatilho. A segunda bala acertou novamente no alvo, a terceira atingiu a mo de um dos guarda-costas. Este, apesar de ferido, empurrou o primeiro-ministro para o banco traseiro da viatura, enquanto o motorista corria para o seu lugar ao volante, conforme estava treinado para reagir, e arrancou imediatamente. Demoraram menos de dois minutos a chegar ao hospital Ichilov, a cerca de quinhentos metros da praa dos Reis, mas foi tarde de mais para salvar Rabin, ferido de morte por duas balas de fragmentao.212Afonso e Francisca formavam um casal peculiar, fruto de um entendimento perfeito e de algumas coincidncias notveis. Tinham-se conhecido naquela mesma cidade na sala de imprensa do hotel Sheraton quatro anos antes, a dezasseis de Janeiro de 1991. A operao Tempestade no Deserto havia comeado na ltima madrugada, envolvendo uma coligao de pases com cerca de 470 mil soldados. Bagdad, tal como o resto do pas, estava a ser intensamente bombardeada pela aviao americana, britnica, francesa e italiana. Saddam Hussein respondia como podia, lanando uns obsoletos msseis Scud contra a Arbia Saudita. Israel ficara deliberadamente de fora da Guerra do Golfo para no molestar os pases rabes que apoiavam os esforos militares contra o Iraque. Contudo, a populao judaica estava assustada com a possibilidade de ser atingida por msseis iraquianos armados com ogivas qumicas. Pouco antes de expirar o ultimato das Naes Unidas ao Iraque para que se retirasse do Kuwait at quinze de Janeiro, centenas de jornalistas de todo o mundo tinham comeado a chegar a Israel, enviados para cobrir o conflito. Entre eles, Afonso.Aterrou em Telavive acompanhado por um reprter fotogrfico. Mas, um dia antes, o companheiro de Afonso recebeu a notcia de que a sua mulher havia ficado ferida num acidente de viao e regressou a Lisboa. Assim, Afonso viajou sozinho para Jerusalm com uma soFisticada mquina fotogrfica deixada pelo reprter, mas sem fazer a menor ideia de como a22utilizar. Era uma soluo provisria, na medida em que o jornal tencionava enviar outro reprter, mas a demora na obteno de visto junto da embaixada de Israel em Lisboa atrasou a sua partida. Horas depois, com o incio da guerra no Golfo, o espao areo israelita foi encerrado, impedindo a sua entrada no pas.Nesse mesmo dia, Afonso encontrou Francisca.Era uma sala de banquetes tpica dos grandes hotis, s que preparada para receber a imprensa e facultar condies para que dezenas de jornalistas, hospedados no Sheraton, pudessem trabalhar. Havia uma srie de mesas encostadas parede, equipadas com monitores de televiso ligados CNN - a estao americana era a mais popular na poca, pois estava a bater a concorrncia na cobertura da guerra -, telefones, computadores e faxes. No centro da sala fora colocada uma plateia de cadeiras voltadas para uma tribuna, ao fundo, onde, episodicamente, aparecia algum membro do governo, que podia at ser o primeiro-ministro, para uma conferncia de imprensa.

Sentado de lado para uma das compridas mesas de apoio, Afonso desligou o telefone, desmoralizado. Acabara de receber a notcia de Lisboa de que no haveria nenhum fotgrafo para fazer equipa consigo naquela que poderia vir a ser a reportagem mais importante da sua carreira. Olhou de esguelha para a mquina fotogrfica em cima da mesa e suspirou.Trs cadeiras ao lado de Afonso, uma reprter fotogrfica depositou duas mquinas em cima da mesa, largou um saco bege de equipamento no cho alcatifado e deixou-se cair numa cadeira. Afonso observou-a. Achou-a interessante. Era baixa mas elegante, usava o cabelo, castanho- claro, apanhado num rabo-de-cavalo prtico e vestia calas de cqui com bolsos nas pernas e um colete profissional por cima de uma T-shirt branca. Reparou no emblema da bandeira portuguesa bordado no colete dela.A mulher virou-se instintivamente para a direita e Afonso aproveitou o momento para a cumprimentar com um aceno de cabea silencioso. Ela retribuiu-lhe com um sorriso, revelando uma expresso que o surpreendeu pela sua beleza. Hum. pensou, mais bonita do que parece primeira vista. Afonso fez um ar23desencantado, apontou para a mquina fotogrfica em cima da mesa e perguntou-Lhe:- Por acaso, no sabe como que isto funciona?Ela alegrou-se ao ouvi-lo falar em portugus.- Por acaso sei - respondeu. - At tenho aqui uma igual.Para chegar a Jerusalm naqueles dias de plvora nem todos os caminhos serviam. Francisca fizera um percurso que a levara do Cairo a Am, na Jordnia, e a pedira um visto para entrar em Israel, objectivo que conseguira concretizar atravs da fronteira terrestre. Esta, embora fosse vedada a judeus num sentido e a jordanos no outro, mantinha-se acessvel a estrangeiros. Francisca fez a viagem de autocarro, trs horas por uma estrada que percorria a paisagem rida tpica da Jordnia, um pas desconcertante pelo seu aspecto desrtico, pontuado aqui e ali por povoaes marcadas pelo estertor da pobreza levada aos limites pela indiferena do poder central.Chegada fronteira, Francisca descobriu finalmente que estava numa zona do mundo onde as coisas nunca se passavam como seria de esperar. Quando entre os rabes, um ocidental desprevenido poderia ficar espantado com as situaes bizarras que se sucediam quotidianamente. Mas com o tempo aprendia que todas elas se resolviam com muita pacincia e uma quantidade razovel de dlares. Verdade seja dita, para um ocidental recm-chegado regio, a diferena entre rabes e israelitas no era assim to evidente que explicasse dcadas de confrontao e de uma violncia to inaudita que, por diversas vezes, tendera a alastrar a outras regies do planeta nas formas mais chocantes que se podiam conceber. O terrorismo palestiniano na Europa e os jogos clandestinos da Mossad, os assassinatos engendrados pela imaginao diablica dos servios secretos israelitas, de que no havia notcia nos jornais, davam boa conta desta realidade de difcil entendimento.Assim, Francisca viu-se sentada no exterior do posto fronteirio - depois de ter sido surpreendida com a informao de que este se encontrava encerrado para o almoo - conversa com dois reprteres japoneses, enquanto um deles escrevia num computador porttil e o outro se entretinha a tirar fotografias.24

- Qual o seu destino? - meteu conversa o do computador, levantando os olhos do teclado e reparando que ela o observava, curiosa.- Jerusalm.- , ns tambm vamos para l, mas no temos vistos, de modo que, provavelmente, teremos que voltar a Am.- Penso que o visto obrigatrio - disse ela.- Acho que sim - encolheu os ombros -, mas, j que aqui estamos, vamos tentar obt-lo aqui mesmo. Caso contrrio, voltamos para trs e tentamos passar a fronteira amanh. E voc - quis saber - trabalha para quem?- Eu soufreelancer - respondeu Francisca, sem conseguir deixar de pensar que, de facto, no se sentia nada segura do seu estatuto profissional.- Ah, ns trabalhamos para um jornal em Tquio. O reprter japons explicou-lhe, com uma naturalidade assombrosa, que o seu jornal tinha uma tiragem diria de trs milhes de exemplares. Meio perdida naquele lugar estranho, Francisca ponderou, fascinada, no contraste improvvel que havia entre aqueles dois reprteres sofisticados de um jornal de metrpole do outro lado do mundo, equipados com uma parafernlia de mquinas modernas, e aquela espcie de apeadeiro poeirento que fechava hora de almoo. Os japoneses estavam, definitivamente, fora do seu ambiente natural. Quanto a ela, era a sua primeira visita ao Mdio Oriente e tambm no se podia dizer que se sentisse muito vontade. A falta de condies de segurana na estrada que tinha pela frente eram por demais conhecidas e Francisca quase no dormira na noite anterior, preocupada com os perigos que a esperavam na viagem do dia seguinte. Agora, a demora provocada pelo extravagante encerramento da fronteira contribuiu para a enervar ainda mais.Tudo aquilo no passava de uma jogada de principiante, de uma aventura arriscada, uma ousadia para desencalhar a sua carreira do atoleiro profissional em que se encontrava. Embora Francisca ganhasse bastante dinheiro a fotografar casamentos e outros eventos sociais, chegara a um ponto em que, se tivesse de fotografar mais25um bolo de casamento, sentir-se-ia capaz de o atirar cabea dos noivos.O seu sonho sempre fora o jornalismo, mas a vida levara-a por outros caminhos. A necessidade de pagar as contas e a falta de oportunidades na imprensa haviam sido factores preponderantes nas suas opes. Com vinte e cinco anos feitos e uma relao de trs recentemente terminada em circunstncias algo traumticas, Francisca conclura que no poderia esperar mais. Era o momento ideal para mudar o rumo da sua vida e as coisas no comeariam a acontecer se no fizesse nada por isso.No tivera muito tempo para planear a viagem. Nas ltimas semanas a televiso no falara de outra coisa seno do brao-de-ferro entre a comunidade internacional - com os Estados Unidos cabea - e Saddam Hussein. O ataque ao Iraque parecia iminente. Fechada em casa, deprimida, com o corao desfeito e a alma em estado de coma, Francisca passava horas em frente da televiso, abandonando-se no sof da sala procura de explicaes para a surpresa desencantadora que a trespassara sem qualquer sinal de aviso. De um dia para o outro, o namorado encerrara trs anos de amor com um discurso comiserado volta das malas que, entretanto, ia fazendo.

- J no te amo, Francisca, e no posso fazer nada para mudar este facto - desculpou-se, com os braos abertos a sublinharem a sua impotncia. A frase, to clara quanto indecorosa, ficar-lhe-ia a ressoar na cabea nos tempos que se seguiram, como um instrumento de tortura persistente.Francisca procurou, em vo, dialogar com ele, quis discutir o assunto, esperanada em que aquele aparato de armrios abertos e gavetas despejadas sem critrio de arrumao nas malas em cima da cama, afinal, no passasse de um mal-entendido superado ao fim da noite. Mas o namorado refugiou-se no argumento definitivo de que o amor no dependia da vontade prpria e foi peremptrio na impossibilidade de se discutir um sentimento perdido. Francisca sentou- se na cama, de braos cruzados e com as lgrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Viu-o atrapalhado na pressa de partir, pattico, a fechar as malas com mangas de camisa tristemente dependuradas26da bagagem, revelando falta de coragem para a olhar nos olhos, e pensou, assustada, que aquele no era o mesmo homem que vivera com ela durante trs anos.- Paulo - intimou-o, perplexa com o seu comportamento -, diz-me a verdade. O que que se passa, tens outra?- No, no - balbuciou -, no nada disso. s que... como te disse, j no gosto de ti da mesma maneira. V se percebes, Francisca. Vais ver que, daqui a uns dias... vais ver que ficas melhor sem mim.Mas claro que ele a trocara por outra e nem sequer tivera a coragem de o admitir.Prostrada na sua apatia psicolgica, meio sentada, meio deitada no sof da sala, j depois de completar cinco dias de clausura voluntria, Francisca estava, numa dessas noites de modorra interminveis, a fazer zaping com o comando da televiso quando a sua ateno se deteve numa reportagem da CNN, passada em Bagdad. O reprter relatava os esforos dos civis iraquianos para se abastecerem com mantimentos para mais de duas semanas, de modo a poderem sobreviver primeira vaga da guerra que a vinha sem terem de sair de casa. Na realidade, a guerra haveria de durar quarenta dias, o que obrigou a populao a sair rua nos momentos em que o dilvio das bombas acalmava. No fossem os famigerados danos colaterais e as pessoas estariam a salvo das bombas inteligentes e dos seus ataques cirrgicos, mas, de qualquer modo, em casa ou na rua, ningum esteve a salvo em Bagdad naqueles dias.Francisca endireitou-se no sof, mais interessada em ver os reprteres fotogrficos que apareciam na reportagem do que propriamente no relato da CNN. Aqueles tipos pensou, esto a participar em acontecimentos que vo fazer a histria mundial deste sculo. E eu aqui sentada no meu sof, feita estpida, a chorar por causa de um cabro que no me merece. Essa reportagem mudou-lhe a vida.Excitada com o seu novo projecto, Francisca foi deitar-se com a cabea em ebulio, dormiu a pensar no assunto e de manh, quando acordou, j sabia exactamente o que teria de fazer para o concretizar. Saiu de casa muito cedo e chegou embaixada 27

iraquiana ainda antes da abertura ao pblico. Evidentemente, no Lhe deram o visto pretendido. Se nem os jornalistas encartados o conseguiam, no seria uma qualquer fotgrafa de casamentos que levaria o carimbo de acesso a Bagdad. Aqueles dias de incerteza traziam os diplomatas iraquianos num estado de nervos permanente e, no cmulo da sua insegurana, nem sequer abriam a porta da embaixada a ningum. Limitavam-se a gritar aos jornalistas, do lado de dentro, que voltassem no dia seguinte. E no dia seguinte recomendavam o mesmo.Mas Francisca no ia deixar que os seus desgnios dependessem dos humores de dois ou trs diplomatas assustados. No regresso da embaixada iraquiana, ouviu no rdio do carro a notcia de que Bagdad se preparava para expulsar os jornalistas estrangeiros, permitindo apenas a permanncia de alguns, escolhidos a dedo, que ficariam sob a vigilncia apertada do ministrio da Informao iraquiano. No final, s a CNN que conseguiria contar a abertura pirotcnica da guerra a partir de Bagdad, no momento exacto - 2h32 - em que as bombas e os msseis Tomabaw de um lado, e as antiareas do outro, iluminaram o cu da capital iraquiana num espalhafato de fogo.Ciente de que a imprensa internacional se concentraria nos pases vizinhos do Iraque espera de uma oportunidade para entrar, Francisca decidiu fazer o mesmo. Primeiro, foi bater porta da embaixada da Arbia Saudita, ali perto, no Restelo, o mesmo bairro onde ficava a representao iraquiana. Mas mais uma vez foi-lhe negado o ambicionado visto. Depois, mudou de estratgia, dirigiu-se a uma agncia de viagens, comprou um bilhete de avio para o Cairo e, em seguida, pediu um visto de turista embaixada egpcia, que Lhe foi concedido, naturalmente.Esteve cinco dias no Cairo, tempo suficiente para tratar do visto na embaixada da Jordnia e arranjar lugar num voo para Am, antes de o pas encerrar o seu espao areo devido ao incio da guerra. Inicialmente, a ideia de Francisca era estabelecer-se na capital jordana e esperar que os ventos de guerra trouxessem a aco at quelas bandas. Alugou um txi por um dia e rumou ao fim da Jordnia, ansiosa por fotografar o verde da tropa em algum lugar28do pas, mas no encontrou muito mais do que uma ou duas barreiras de estrada guardadas por soldados ociosos, que lhe pediram os documentos e a deixaram passar depois de Francisca desembolsar alguns dlares na portagem improvisada.Junto fronteira, visitou um acampamento do Crescente Vermelho, montado na perspectiva de uma eventual afluncia de refugiados em fuga da guerra iminente. Havia centenas de tendas militares alinhadas numa imensa plancie rida, aoitadas pelo vento e pela poeira que se infiltrava por todos os buracos. Mas afinal os refugiados no tinham vindo em massa e, com a excepo de duas ou trs famlias iraquianas recentemente chegadas, o acampamento encontrava-se to vazio como o deserto onde o haviam montado. E assim permaneceria durante toda a guerra.Ali, naquela regio remota, s habituada a assistir montona passagem dos camies cisterna que nos tempos de paz traziam o petrleo iraquiano, pululavam agora jornalistas atentos a todos os movimentos para l da terra de ningum.

Tal como os outros, Francisca acabou o dia a contemplar o posto fronteirio de Ruwyshid, a duzentos metros de distncia, porta de um caf triste, tomando um ch no deserto, bebido em pequenos sorvos nostlgicos de fim de tarde. O Iraque estava ali to perto, mas inacessvel.Regressada a Am, Francisca meteu conversa com um jornalista ingls no bar do hotel Mattiott, um tipo de cabelo branco e pele rosada, bem avanado nos cinquenta, um veterano da BBC que j andava h muitas guerras a arrastar a barriga pelos bares dos hotis do Mdio Oriente.- Aqui, no vai acontecer nada - sentenciou o ingls. Vamos passar a guerra no hotel, sem nada para fazer.- Como que pode ter a certeza disso?- Bem v - disse -, a Jordnia um pas pequeno, com um exrcito insignificante e que depende economicamente do Iraque. de l que vem o petrleo, sabe? Embora no sendo agressivo com os Estados Unidos, o rei no est na disposio de afrontar o gigante vizinho. que os americanos vm e vo, e os Iraquianos ficam. preciso viver com eles, est a ver?29- Hum-hum Francisca abanou a cabea, pensativa. Ento, o que me aconselha a fazer?- Se eu fosse a si, ia para Israel. Assim que comear a guerra, Saddam vai atirar-lhes com uns Scuds para ver se os acorda.- Mas ele no tem j inimigos suficientes?Um leve sorriso desencantado desenhou- se no rosto benvolo do velho jornalista. No percebe mesmo nada disto, minha menina, pensou, intrigado com a ingenuidade dela. O que teria levado aquela jovem desprevenida a procurar o centro do vulco? Desgosto de amor, talvez, ambio ou simplesmente o gosto pela aventura? Interrogou-se, mas no fez perguntas, supondo que tivesse sido um bocadinho de cada. Era suficientemente batido para analisar um desconhecido atravs de uma simples conversa e tirar algumas concluses certeiras. Mas, em geral, no ia alm disso. Achava que estava velho e j no tinha pacincia para ouvir os problemas dos outros. Deu um trago no seu scotch e acendeu um cigarro.- Inimigos j eles so - explicou, soltando uma nuvem de fumo com os olhos cerrados - mas, se Saddam conseguir que os israelitas entrem na guerra, a coligao vai desmoronar-se como um castelo de cartas. No est a ver os sauditas e os srios a alinharem contra outro pas rabe ao lado de Israel, ou est?- No - concordou Francisca. - Tem razo.303O autocarro atravessou o territrio rabe ocupado da Cisjordnia. Percorreu uma estrada sofrvel, sem incidentes, passou a cidade de Jeric e chegou a Jerusalm Oriental ao fim da tarde. Apesar de ser uma distncia curta, na medida em que a fronteira no distava mais de trinta quilmetros, a natureza humana colocava tantos obstculos pelo caminho, que uma simples viagem se transformava numa epopeia.

Francisca saiu da proteco ilusria do autocarro e, mal colocou os ps em terra firme, pressentiu a falta de segurana. Ao percorrer as ruas em busca da direco de um hotel que algum lhe indicara por caridade, apercebeu-se do ambiente pesado que se abatia sobre elas como um manto de chumbo, inspito e ameaador. No que houvesse violncia solta na rua, ou que corresse o risco de sofrer uma emboscada de cada vez que voltasse uma esquina; mas porque olhou em redor e no viu ningum. A rua estava deserta, silenciosa e serena como as guas calmas do mar antes da tempestade.O Sol punha-se atrs do casario de pedra branca, dos minaretes das mesquitas e dos campanrios das igrejas. Era uma terra de contrastes, uma cidade sagrada, onde conviviam vrias religies. Muulmanos, judeus e cristos pregavam os valores do amor ao prximo num campo de batalha onde reinava o egosmo, o dio e a intolerncia. A Cidade Velha, a Via Dolorosa, caminho percorrido por Cristo desde o tribunal de Pilatos at a um local chamado Calvrio, onde foi crucificado, e a igreja do Santo Sepulcro; aEsplanada das Mesquitas, a Al Aqsa e a Domo da Rocha, com a 31sua cpula de alumnio revestido de ouro e ornamentada com versos do Coro, e o Muro das Lamentaes; o Monte das Oliveiras, a igreja de Ghetseman e a de Maria Madalena, encimada por cpulas douradas de estilo bizantino; era tudo ali, naquela cidade museu que representava a cultura rabe havia cinco mil anos.Mas a noite estava a descer e a ausncia de pessoas nas ruas dizia muito do que se poderia esperar naquelas paragens depois que a escurido cobrisse a parte rabe de Jerusalm.Por fim, j escurecera quando Francisca deu com o hotel e se refugiou no trio, na realidade apenas um corredor estreito entre a recepo e a escada que conduzia aos quartos dos trs andares superiores. Atrs do balco, num espao apertado e lgubre, um velho inofensivo sorriu-lhe. Francisca falou-lhe em ingls.- Boa noite, queria um quarto para esta noite.O velho disse qualquer coisa em rabe e ficou espera com as suas mos enrugadas delicadamente pousadas em cima do balco.- A room for tonight, please - insistiu.- Dlar - respondeu ele.De modo que se entenderam por gestos. Francisca pagou-lhe. O recepcionista abriu uma gaveta debaixo do balco e guardou o dinheiro dentro de uma caixa metlica. Voltou a fechar a gaveta, virou-se para trs, escolheu uma chave ao acaso e entregou-lhe. A avaliar pelo nmero de chaves disponveis no chaveiro, um armrio de madeira escura com pequenas divisrias em forma de quadrados, o hotel estaria praticamente vazio. Francisca calculou que o turismo no fosse uma actividade muito florescente naquele lado da cidade. Encolheu os ombros para si prpria. Por ela, at podia ser a nica hspede do hotel, no se importava, sentia-se cansada e s queria um quarto onde pudesse dormir em segurana. Agarrou no saco das mquinas fotogrficas e na mala - teve a sensao de que andara a arrastar aquela mala durante quilmetros - e subiu as escadas at ao primeiro andar.No viu ningum, no ouviu um nico som. O corredor, comprido, coberto por uma alcatifa castanha bastante gasta, tinha um aspecto sinistro devido iluminao de presena, marcada pelos candeeiros de parede, alguns deles com as lmpadas fundidas. Francisca32

encontrou o seu quarto, entrou rapidamente, fechou a porta e trancou-a. Passou a corrente de segurana e acendeu a luz do tecto. A mesma iluminao dbil, a mesma alcatifa castanha, uma cama castanha com um cobertor castanho, um armrio castanho e uma mesinha-de-cabeceira castanha. S as paredes destoavam, com um papel florido que j perdera a cor h muito e que, aqui e ali, comeava a descolar-se.Francisca aproximou-se da janela e espreitou para a rua atravs das frinchas entre as ripas da portada. L fora no havia vivalma. Suspirou, onde que eu vim meter-me? pensou, e deixou-se cair de costas em cima da cama.O dia amanheceu mais desanuviado e a presso nocturna como que se dissipou no movimento matinal. Francisca acordou cedo, tomou um duche rpido, pediu um txi e partiu em direco ao lado ocidental de Jerusalm sem perder mais tempo. Pela janela do automvel reparou que, ao contrrio da noite anterior, havia pessoas nas ruas, embora - e isso ela no sabia, pois era a sua primeira visita cidade - no tantas como num dia normal. Pelo caminho ficou a saber que a guerra tinha comeado durante a madrugada.- Os americanos esto a bombardear Bagdad - informou-a o taxista num ingls arrevesado, quando ela pediu que lhe traduzisse as palavras hebraicas de um jornalista que ele ouvia no rdio do carro.Francisca nem queria acreditar que passara as primeiras horas da guerra a dormir, sem fazer ideia de que j estava tudo a acontecer. Que grande jornalista que eu sou, pensou, desanimada com o que considerou ser o fracasso da sua primeira madrugada numa zona quente. Tenho muito que aprender.De facto, os desafios que Francisca tinha pela frente eram imensos e dois deles - certamente os mais complicados - consistiam em encontrar acontecimentos relevantes para fotografar e, depois, descobrir a quem vender as fotografias. Mas, no momento imediato o problema mais premente resumia-se a uma questo de logstica. Francisca precisava de arranjar um hotel.- Onde que esto os jornalistas estrangeiros? - perguntou ao taxista.33- Em vrios hotis - respondeu o homem - mas eu aconselho o Sheraton.- Ento - decidiu Francisca - para l que vamos.Passar do lado oriental para o lado ocidental de Jerusalm era como entrar noutra cidade. Mais moderna, mais desenvolvida e mais liberal, a parte judaica conciliava a tradio milenar com o cosmopolitismo importado do Ocidente. Ali havia lojas de marca, restaurantes que serviam comida internacional, bares e discotecas abertos pela noite fora e unidades hoteleiras pertencentes s maiores cadeias internacionais. Um estrangeiro que atravessava pela primeira vez a fronteira invisvel que separava as duas culturas dominantes, ficava imediatamente esclarecido sobre a monumental desigualdade entre rabes e israelitas. Estes eram incomensuravelmente mais ricos. Viviam noutro mundo. Se no bastasse o conflito inconcilivel sobre qual dos dois lados tinha, historicamente, mais direitos de soberania sobre Jerusalm, a gritante diferena da qualidade de vida entre israelitas e palestinianos representaria sempre um motivo adicional de ressentimen to para os rabes.

Francisca ainda vinha abismada com a singular experincia de conhecer de uma assentada os dois lados da moeda, quando saiu do txi e o esplendor do hotel Sheraton se ergueu frente dela, com um nmero incontvel de andares bem acima da sua cabea. Desta vez no precisou de arrastar a mala at recepo. As injustias para uns eram quase sempre vantagens para outros, e, ao ver o paquete transportar a sua bagagem num carrinho dourado, Francisca pensou que teria de ter sempre presente a sua neutralidade de jornalista, para se preservar de qualquer sentimento de culpa por gozar o mximo conforto enquanto estivesse a arriscar a vida voluntariamente. Era uma guerra para a qual no fora convidada, mas que Lhe serviria de estgio para aquela profisso que ela desejava mais a cada hora que passava. O problema da soberania sobre Jerusalm persiste ainda hoje e tem constitudo sempre o maior obstculo nas diversas negociaes de paz entre israelitas e palestinianos. 34Um novo imprevisto saiu-lhe logo ao caminho assim que se anunciou no balco no trio, frente a um recepcionista inflexvel na sua farda imaculada e nos seus modos prova de qualquer reparo.Para alm do bom-senso bvio que deveria caracterizar qualquer reprter enviado para uma zona de guerra, a cobertura de acontecimentos perigosos exigia deste uma previdncia que s se apurava com a tarimba dos anos. Caso contrrio, o jornalista atirado aos lees - como se dizia dos inexperientes temerrios que se ofereciam primeira chamada - iria passar por muitas provaes evitveis, algumas delas que lhe colocariam a vida em risco, outras nem tanto, mas que no deixariam de Lhe complicar a misso.Francisca deduzira apressadamente que, naqueles dias perigosos, todas as portas hoteleiras do Mdio Oriente estariam escancaradas para qualquer forasteiro que demandasse um quarto de abrigo. Ela prpria viajara do Cairo para Am a bordo de um avio s moscas que, por certo, s cumprira a viagem por teimosia dos responsveis da companhia, determinados em garantir a normalidade institucional. Perante o panorama desolador do aparelho, Francisca calculou que o dos hotis locais no seria muito diferente. Afinal de contas, que turista no seu juzo perfeito escolheria um potencial teatro de guerra para gozar frias? Puro engano. De facto, no havia turistas, mas a guerra atraa centenas de pessoas, de uma classe profissional muito especial, que invadiam as cidades e tomavam conta dos hotis.J em Am, Francisca descobriu que os melhores hotis da cidade haviam sido assaltados por legies de jornalistas estrangeiros, capazes de tudo para ganhar um quarto concorrncia. E emJerusalm aconteceu a mesma coisa.Na realidade, a guerra podia ser uma catstrofe de vidas humanas e provocar o colapso de muitas actividades econmicas, mas representava um grande negcio para os melhores hotis, pelo menos enquanto durasse e conquanto estes estivessem localizados na retaguarda, ao abrigo dos efeitos arrasadores dos bombardeamentos. Empresas de televiso como a CNN, a Sky News e a BBC, ou agncias de imagem como a Visionnews e a APTN, requisitavam andares inteiros aonde acomodavam reprteres, produtores e tcnicos, e35

traziam equipamento suficiente para transformar quartos de hotel em salas de montagem de vdeo ou em estdios de televiso. Os profissionais da informao consumiam quantidades inconcebveis de papel, gastavam fortunas em telecomunicaes, ocupavam todos os quartos, invadiam os sales transformados em salas de imprensa, os restaurantes e, nessas pocas de emoes flor da pele, nem os bares mais prevenidos estavam a salvo de esgotar o stock de bebidas. Os correspondentes de guerra voltavam da sua misso de retratar o horror no campo de batalha e, ao final do dia, s lhes sobrava o nimo para abancar nos sofs confortveis do bar do hotel, com uma garrafa frente, e continuarem a falar at exausto do mesmo assunto de sempre que os levara ali: a guerra.Enquanto a Tempestade no Deserto durasse e Francisca estivesse em Jerusalm, queria ficar no centro dos acontecimentos. O hotel Sheraton era, sem dvida, o centro dos acontecimentos. Era ali que se baseava a maioria dos jornalistas, dos rgos de informao mais influentes do mundo, e era ali que aflua mais depressa a informao decisiva sobre a crise que se vivia no Mdio Oriente. Contudo, Francisca tinha sua frente, do outro lado do balco, um recepcionista incontornvel que no se deixou impressionar com a sua premncia e declarou num ingls perfeito que o hotel estava cheio e ponto final.- Mas - insistiu Francisca - no consegue arranjar-me um quarto qualquer? No preciso de nada muito grande.- Sory - abanou a cabea, pesaroso. - Estamos cheios. Francisca ficou encostada ao balco, desanimada, a resmungar entredentes, amaldioando a sua falta de sorte, quando esta Lhe bateu porta.- s portuguesa, no? - perguntou uma voz masculina, em espanhol.- Sou - respondeu, virando-se para ver quem falava consigo. Um tipo alto, magro, bem vestido e bem-parecido, com o cabelo molhado de quem acabara de tomar banho, sorriu-lhe.- Olha - disse o homem -, eu sou do EI Pas. Estou de partida para a Arbia Saudita, mas tenho um quarto reservado at ao fim do ms. Ia agora desistir dele. Se quiseres aproveitar...36Mais tarde Francisca aprendeu que os reprteres de guerra tinham tendncia a juntar-se - e ajudar-se - conforme as idiossincrasias nacionais. Os portugueses alinhavam com os espanhis e com os latino- americanos, os franceses davam-se com os italianos, os americanos no se davam com ningum, e por a fora.Entre os mais batidos at havia uma certa cumplicidade, na medida em que j se conheciam de outras guerras. que os verdadeiros reprteres de guerra no eram assim tantos como isso, e no falhavam uma. A diferena que uns percebiam que a sorte no poderia durar sempre e desistiam a tempo; e outros continuavam at serem apanhados por uma bala imprevista e acabarem estendidos no meio de uma rua qualquer, entre os destroos de um tiroteio sem importncia. Era inglrio, porque a sua morte faria as primeiras pginas do dia, pejadas de choque e indignao, mas logo seria esquecida, ultrapassada pela urgncia voraz da actualidade. No compensava arriscar a vida por uma notcia, mas a guerra podia viciar.

De modo que Francisca ganhou um quarto no hotel mais cobiado de Jerusalm, sendo certo que no estava segura de poder pagar a estada at ao fim do ms, caso no arranjasse maneira de ganhar dinheiro para sustentar a ousadia. O Sheraton no era barato e a aventura no Mdio Oriente comeava a revelar-se uma exorbitncia. Contudo, Francisca no se sentia na disposio de se deixar abater por problemas que ainda no o eram. Pelo contrrio, tirando o percalo de ter comeado a guerra a dormir, achava que as coisas at lhe tinham corrido bastante bem, at agora. Sentia-se optimista, um pouco perdida, mas optimista.Subiu ao quarto, onde descobriu maravilhada que a bagagem se lhe antecipara e depois sentou-se na cama para dar um minuto alma, enlevada com a diferena reconfortante em relao ao cubculo sinistro onde passara a ltima noite. Pelo menos, ali tinha uma televiso, poderia ver a CNN a qualquer momento e no voltaria a ser apanhada desprevenida por uma notcia com barbas. Ergueu os punhos com fora e deixou extravasar o seu entusiasmo com um yes! murmurado mas vigoroso. 37Preparou o saco com o material fotogrfico, passou o rosto por gua no lavatrio da casa de banho, prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo prtico e vestiu o seu colete de fotgrafa. Desceu para tomar um pequeno-almoo atrasado na sala grande que havia no andar trreo, onde se podia encomendar uma refeio simples a qualquer hora do dia. Escolheu uma mesa entre as muitas livres, pediu uma club sanduich e um copo de leite e distraiu-se a observar o ambiente enquanto esperava. Sentia-se a fervilhar de excitao. Era comer depressa, sacar um mapa na recepo e partir descoberta da cidade!384A viatura de aluguer foi coberta por todos os lados com a palavra press, escrita com o recurso a fita-cola branca, colada nas portas. Afonso gastou quase uma hora com a tarefa, e s se deu por satisfeito depois de ter a certeza de que, se algum escolhesse aquele carro como alvo para atirar uma pedra ou disparar um tiro, no teria a desculpa de no saber que estaria a atacar um jornalista. Em seguida ps-se a caminho da Faixa de Gaza. Tratava-se de uma regio palestiniana com menos de cinquenta quilmetros de comprimento e cerca de cinco quilmetros de largura na sua maior parte. Ali viviam um milho e duzentas mil pessoas em condies econmicas e de segurana extremamente precrias. Para entrar ou sair da maior priso do mundo, como era considerado este territrio, os palestinianos precisavam da autorizao expressa das autoridades israelitas e, mesmo com os documentos em ordem, a passagem pelos postos de controlo do exrcito estava sujeita aos humores dos ocupantes.O territrio conhecia uma revolta popular - intifada, em rabe- desde 1987. As imagens de crianas palestinianas a apedrejar soldados, jipes e tanques israelitas, numa demonstrao que tinha tanto de coragem como de desespero, haviam-se tornado rotineiras nos noticirios das televises de todo o mundo. No obstante, os governos ocidentais continuavam indiferentes situao. As constantes violaes dos direitos humanos por parte do exrcito, as execues sumrias de civis, incluindo muitas crianas, o bombardeamento deliberado e a demolio de casas e de infra-estruturas como escolas, hospitais e culturas, no impediam o governo norte39

- americano de fechar os olhos tragdia e de continuar a apoiar, poltica e militarmente, Israel. Um apoio que granjeava aos Estados Unidos um dio crescente do mundo rabe.A Faixa de Gaza, tal como a Cisjordnia e Jerusalm Oriental, havia sido ocupada durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Desde ento, nunca mais conhecera a paz. Sendo uma zona de conflito, os jornalistas podiam ser autorizados a entrar, mas sabiam que, para o exrcito, no eram bem-vindos. De modo que, enquanto por l andassem, corriam perigo de vida.De momento, as operaes militares no Mdio Oriente restringiam-se ao territrio iraquiano, sem qualquer envolvimento dos israelitas. Contudo, a populao judaica sentia-se aterrorizada com a possibilidade de sofrer um ataque com armas qumicas, e o governo estava preparado para ordenar uma retaliao esmagadora contra Bagdad, no caso de isso acontecer. A tenso subira a nveis explosivos e a guerra poderia generalizar-se por todo o Mdio Oriente a qualquer momento. A cumplicidade palestiniana com o regime de Saddam Hussein era assumida abertamente nas ruas de Gaza, o que contribua ainda mais para agravar o ambiente. falta de aco no territrio israelita, Afonso decidiu tentar a sua sorte em Gaza. As estradas eram boas e a distncia relativamente curta. Ainda assim, levou duas horas e meia para chegar, porque se perdeu pelo caminho e no encontrou ningum que lhe indicasse a direco correcta. Viajar por Israel podia ser uma jornada muito solitria, especialmente numa poca de incerteza.Encontrou o posto de controlo militar de Nahal Oz por volta do meio-dia. Soldados israelitas, armados com espingardas automticas Galil a tiracolo, montavam guarda ao local, assegurando que ningum passasse. O seu pas estava beira do abismo e o governo queria os territrios palestinianos sob vigilncia absoluta.Afonso parou o carro e mostrou aos soldados as suas credenciais de jornalista.- No pode entrar - foi a resposta seca do soldado que viu os papis. - Faa o favor de dar meia-volta e seguir.- Mas eu estou autorizado pelo vosso governo a fazer reportagem em Gaza - tentou argumentar.40- Hoje no est - declarou o soldado. - Por favor, d a volta e v- se embora.Em Jerusalm, Francisca gastou vrias horas a calcorrear as ruas da cidade. Queria familiarizar-se com os lugares mais conhecidos. Arriscou- se pelas ruelas estreitas da Cidade Velha. Entrou pela porta de Damasco, visitou o Quarteiro Cristo e a igreja do Santo Sepulcro, o Quarteiro Muulmano e a Esplanada das Mesquitas. Depois foi descobrir as zonas mais concorridas da Jerusalm moderna, no corao da cidade, vagueando pela rua King George, a rua Ben Ychuda e a Jaffa Road, onde havia lojas, restaurantes e esplanadas.

A tarde ia avanada. Francisca decidiu regressar ao hotel. J se ausentara h muitas horas e comeava a sentir-se inquieta com a falta de notcias frescas. O hotel era o melhor lugar para acompanhar a evoluo dos acontecimentos. Ali tinha acesso aos telexes das agncias noticiosas, aos canais de televiso locais e internacionais, s rdios e, no menos importante, podia falar com outros jornalistas e obter informaes sobre o desenrolar da crise em Israel. Sempre a p, foi pela Jaffa Road e virou esquerda, na King George, onde ficava o Sheraton.Afonso estacionou junto ao hotel, ansioso por telefonar para Lisboa. Queria saber do reprter fotogrFico que era suposto vir a caminho. O dia no se havia revelado muito produtivo. O fiasco da viagem Faixa de Gaza no fora nada animador. Contudo, tencionava escrever algumas linhas sobre as impresses recolhidas ao longo da jornada. Poderia descrever o ambiente geral do pas atravs do testemunho que lhe ficara na memria das ltimas horas de estrada e do comportamento nervoso dos militares em Gaza. Diria que Israel se mantinha suspenso numa calma tensa, espera do rastilho que fizesse rebentar o resto do Mdio Oriente que ainda no se envolvera na guerra. Os territrios rabes achavam-se sob vigilncia severa e o governo emitia avisos preocupantes, atravs dos funcionrios designados para controlar a imprensa estrangeira, fazendo saber que as Foras Armadas no ficariam paradas caso acontecesse o pior. Havia um clima de ameaa clara dirigida tanto aos iraquianos como aos palestinianos.41Foi at sala de imprensa e procurou um telefone. Dali a pouco conseguiu a chamada para Lisboa e ficou a saber que o reprter fotogrfico no chegara a partir, por impossibilidade de chegar. Era tarde de mais para colocar um homem na regio.Francisca ponderou a possibilidade de subir ao quarto para se desembaraar das mquinas fotogrficas e do saco do equipamento. Poderia aproveitar para se refrescar na casa de banho e descer em seguida para ver o ambiente na sala de imprensa. Mas pensou no, ainda no consegui nada de jeito, vou mas j sala de imprensa. Passara a tarde a dar ao gatilho, uma foto disto outra daquilo, motivos no faltavam, mas nada de original que pudesse vender s agncias. Sentia um nervoso miudinho latente, medida que as horas corriam e nada acontecia. A presso de ter de ganhar dinheiro e, sobretudo, de no querer falhar, comeava a apoderar-se dela, apesar de continuar a dizer de si para si que deveria manter-se calma e no entrar em parafuso porque estas coisas so mesmo assim. Na verdade, no fazia ideia de como aquelas coisas eram, visto ser a primeira vez que se metia numa aventura to complicada, mas nunca tivera iluses de que seria difcil, perigoso e, porventura, um passo demasiado grande para as suas pernas. Masagora encontrava-se em jerusalm e tencionava aproveitar ao mximo a estada.Entrou na sala de imprensa e reparou que no havia muitos jornalistas. Quinze, no mximo. Dirigiu-se para as mesas encostadas parede, no lado direito da sala. Apesar de ter calado sapatos de tnis, os ps doam-lhe devido s horas que passara a caminhar pela cidade. Depositou as mquinas em cima de uma mesa, entre dois computadores, largou o saco do equipamento no cho alcatifado e deixou-se cair numa cadeira.Virou a cabea instintivamente para a direita e um jornalista que estava sentado trs cadeiras ao lado brindou-a com um aceno de cabea silencioso. Retribuiu-lhe com um sorriso, a matutar donde que este vir?- Por acaso, no sabe como que isto funciona? - perguntou ele, apontando para uma mquina fotogrfica sua frente, com uma expresso de desnimo.

42O rosto dela iluminou-se, encantada por ouvi-lo falar em portugus.- Por acaso sei - respondeu. - At tenho aqui uma igual.- Ah, sim? Talvez possa dar-me umas lies, que eu no percebo nada disto.Francisca riu-se, divertida.- E eu a pensar que era a nica fotgrafa s aranhas aqui. Afonso abanou a cabea, com um sorriso desolado.- Eu no sou fotgrafo - disse.- No?- No, sou jornalista, s escrevo notcias. Ento e voc, qual a sua desculpa?- Ah, eu sei fotografar, mas no sou reprter. - Afonso adorou a expresso cmica, de culpada, que ela fez ao dizer aquilo.- Ento, o que que a traz aqui?- Estou a trabalhar comofreelancer - explicou Francisca. - O problema que no est a acontecer nada.- Calma - disse Afonso, levantando os braos -, a guerra ainda agora comeou.Francisca encostou-se mais confortavelmente na cadeira, de modo a ficar mais virada para ele. Cruzou as pernas, tirou um mao de cigarros de um dos muitos bolsos do colete - no sem antes apalpar vrios procura - e o isqueiro bic do bolso das calas.- Estes coletes do imenso jeito para trabalhar mas - fez uma pausa para acender o cigarro - tm tantos bolsos que nunca sabemos onde esto as coisas. Quer um? - estendeu-lhe o mao de tabaco.- No, obrigado. Acabei de fumar.- Ento, voc acha que a guerra vai chegar c?- Pode ter a certeza - afirmou, fazendo um trejeito srio com a boca, que lhe concedeu uma convico inabalvel.Francisca levou a mo ao peito e simulou um suspiro, enquanto deitava fora um sopro de fumo.- J estou mais descansada.- No acredita? - perguntou Afonso, por causa da ironia dela.- Acredito.- Quer apostar?43- No, eu acredito, a srio - disse, mudando para um tom mais sincero.- Como que voc se chama?- Francisca, e voc?- Afonso Henriques, e - apontou para ela com um dedo brincalho - nada de gozar com o meu nome.Francisca abanou a cabea com um riso contido e passou pelos lbios, comprimidos numa linha, o indicador e o polegar, como se corresse um fecho.445Muitos anos depois continuariam a recordar aquele encontro como fruto de um acaso providencial. Ali estavam Afonso e Francisca, um a precisar de um reprter fotogrfico, a outra s apalpadelas numa guerra que a preocupava no s pelos combates, mas por tudo o mais que nunca aprendera e que a mantinha s escuras, num cenrio onde a ignorncia podia matar.

- O que que aconteceu ao dono da mquina fotogrfica? perguntou Francisca. Estavam sentados no mesmo restaurante trreo do hotel, onde ela tomara o pequeno-almoo. Na sala de imprensa, Afonso sugerira que, j que estavam ambos sozinhos, poderiam jantar mais tarde, mas antes preciso de escrever um artigo e envi-lo para Lisboa".A Francisca a proposta surgiu-lhe como uma tbua de salvao. Como uma menina pequena perdida no meio dos adultos, sentiu um alvio sbito que a fez realizar quo assustada estava desde a hora em que atravessara a fronteira com Israel e descobrira que, a partir dali, haveria soldados a srio, armas a srio, violncia a srio e, Francisca, esto-se todos nas tintas para que no sejas uma jornalista a srio. Se quiserem matar- te, apertam o gatilho e mandam-te desta para melror sem pensar duas vezes. Uma coisa Francisca no precisava que lhe ensinassem, que num teatro de guerra no havia leis que protegessem as pessoas e era como se abrisse a poca da caa e todos pudessem disparar contra todos sem o receio de sofrer consequncias. J lera algures que este tipo de situao provocava frequentemente um estado psicolgico de euforia nos soldados, afectados45pelo stress e pelo medo, ao ponto de os levar a cometer atrocidades que, no seu juzo normal, no lhes passaria pela cabea. E ela pensava nestas coisas e preocupava-se com a possibilidade de dar de caras com uns tipos irresponsveis com uma arma nas mos e no saber como lidar com eles. E preocupava-se com o dia em que as bombas comeassem a cair sobre a sua cabea e talvez no tivesse hiptese de se proteger. Francisca bem tentava afastar os maus pensamentos, mas o facto de se encontrar sozinha deixava-lhe muito tempo livre para cismar com as coisas terrveis que lhe poderiam acontecer.Agora, pelo menos, haveria uma possibilidade de no continuar sozinha. Afonso era portugus, jornalista e tinha experincia, j para no falar na feliz coincidncia de precisar de um reprter fotogrfico. Quando ele sugeriu o jantar, Francisca aceitou com naturalidade, mas sem mostrar um grande entusiasmo, sim, claro, pode ser, a que horas? supondo que uma pattica demonstrao de alvio no a favoreceria muito aos olhos dele. E depois, enquanto ele escrevia o seu artigo e ela se deliciava com um banho quente de imerso, pesou bem a sua sorte e decidiu no lhe propor nada. Ele que lhe fizesse uma proposta de trabalho, se quisesse. Para Francisca, se Afonso a deixasse acompanh-lo quando sasse em reportagem, j seria muito bom. De modo que, decidiu, vou ser simptica, agradvel e, sobretudo, vou ser moderada, para que ele no comece a achar que me estou a tornar um fardo e no me enxote com um piparote.

Emergiu das guas tpidas da banheira como nova, de corpo e alma. Envolveu o cabelo molhado com uma toalha e cobriu o corpo nu a pingar com um roupo turco macio, branco, que exibia o emblema do hotel no peito. Deu um n no cinto e perdeu imenso tempo a secar o cabelo e a pentear-se. No se pintou. Acabou de se vestir, o telefone tocou, sou eu, j enviei o artigo para Lisboa e vim ao quarto trocar de camisa e lavar a cara. Est pronta, podemos descer? podiam. Deu uma ltima piscadela de olho ao espelho, avanou para a porta e estacou, a pensar: que estpida que eu sou! Voltou atrs, conferiu a sua imagem no espelho e abanou a cabea, estpida. Estava linda, numa saia preta com meias escuras que lhe torneavam as pernas e uma blusa de algodo branca. Demasiado46bonita. Abriu o roupeiro, trocou a saia por uns jeans prticos, mas que lhe assentavam bem, e deixou ficar a blusa. Viu-se ao espelho, muito melhor, pensou. Se quisesse que Afonso a levasse a srio profissionalmente, seria bom no lhe aparecer muito sexy, ou o homem pe-se a imaginar coisas e l se vai a minha credibilidade.Enquanto descia no elevador, Francisca decidiu que seria um jantar simptico mas sem muitas intimidades. Afonso parecera-lhe um tipo correcto, mas ela no o conhecia e achava que precisava demasiado dele para estragar tudo por causa de qualquer mal-entendido.Afonso acendeu um cigarro para passar o tempo enquanto esperava Francisca, sentado num sof no trio, perto dos elevadores. Tinha ficado a pensar em Francisca. Era bonita, parecera-lhe simptica e ele precisava de um reprter fotogrfico. Uma combinao de factores agradvel, sem dvida, mas Afonso ainda hesitava. Dissera para o jornal em Lisboa que talvez conseguisse chegar a acordo com uma freelancer e perguntara se havia verba para isso. Tinham-lhe respondido que se ele achava que era uma boa oportunidade, que a agarrasse. O problema, reflectiu Afonso, que isto no se vai resolver num dia ou dois e, se ela no servir para o trabalho, ou se for uma chata do pior, vou ter de levar com ela sei l quanto tempo. Por outro lado, posso sempre despedi- la.Havia uma parede entre a zona dos elevadores e o trio. Sentado num sof de costas para essa parede, Afonso viu Francisca surgir sua direita e teve um momento para a observar, quando ela parou ali, tentando localiz-lo. Agora, com o cabelo solto e bem penteado e com uns jeans e uma blusa mais cingidos ao corpo, Francisca pareceu-lhe ainda mais bonita do que no primeiro encontro. E, quanto s dvidas que o assaltavam h um segundo atrs, Afonso soltou um suspiro sonoro, enquanto se levantava a pensar que um homem no de ferro, e chamou-a.- O dono da mquina fotogrfica? - repetiu a pergunta dela.- Teve um problema pessoal, a mulher teve um acidente e ele voltou para Lisboa.- Hum... e voc ficou agarrado.47- Exactamente.A empregada interrompeu-lhes a conversa. Encomendaram os dois o mesmo, uma receita local base de frango, recomendada pela empregada. Para beber, decidiram-se por duas cervejas macabi. Pediram um cinzeiro e acenderam um cigarro antes de retomar a conversa.- Ento, e voc, h quanto tempo que trabalha como freelancer?- a primeira vez.- ? Caramba, logo uma guerra!

Francisca contou-lhe o que a motivara. Disse-lhe que estava farta de fotografar casamentos, falou-lhe das notcias na televiso, da vontade de ser reprter fotogrfica e da sua deciso ponderada de tentar a sorte antes que fosse tarde de mais.- Era agora ou nunca - disse, deixando de fora a histria da desiluso amorosa.Como que adivinhando, Afonso perguntou-Lhe:- No casada?- No, vivi com uma pessoa durante algum tempo, mas j acabou. E voc?- Eu ando sempre de um lado para o outro, em reportagem, e no h mulher nenhuma que esteja para isso. Tambm vivi com uma pessoa durante uns tempos, mas ela fartou-se e foi- se embora.- Francisca abanou a cabea, compreensiva, enquanto ele falava.- Ela disse-me que no fazia muita diferena. De qualquer forma, eu nunca estava em casa.- J esteve em muitas guerras?- Israel, El Salvador, Nicargua, Angola. - enumerou algumas - bastantes.Passaram o jantar a conhecer-se e, sobretudo, a estudar-se. Francisca observou-o discretamente enquanto ele falava. Talvez fosse por se sentir um pouco perdida no meio daquilo tudo, mas a companhia de Afonso transmitiu-Lhe uma segurana muito reconfortante. Era um homem surpreendentemente cativante. Manteve-a deslumbrada com as suas histrias de tantas reportagens acumuladas em sete anos de trabalho, quase todos em campo e quase nunca na redaco.48- Tenho vinte e sete anos - disse - e vivi in loco quase todos os acontecimentos mundiais decisivos dos ltimos seis, pelo menos.- Comeou cedo - reparou ela.- Aos vinte. No - corrigiu - aos dezasseis, se contarmos os meus tempos de ardina, quando ia para a rua aos sbados vender jornais com os amigos do liceu, para juntarmos dinheiro para as frias.Francisca adorou o seu humor. Afonso tinha quase sempre uma expresso sria que, por vezes, no condizia com as tiradas divertidas que a faziam rir, enquanto ele se punha com aquele ar desconcertante que, desde logo, se tornou uma das razes para se sentir definitivamente atrada por ele. Apreciou-lhe a sinceridade e gostou das linhas bem definidas do seu rosto bem barbeado - quando ele se debruava sobre a mesa e se aproximava dela, sentia-lhe o cheiro de uma loo muito mscula, a remeter para aqueles anncios de televiso com homens que personificavam o sucesso frente ao espelho logo pela manh. Ao caf, Francisca acendeu um cigarro e deu consigo com um sorriso colado aos lbios, de cotovelo na mesa e rosto apoiado na mo, sonhadora, pendente das palavras dele.Em contrapartida, Afonso tinha planeado faz-la falar o mais possvel, para descobrir se seria boa ideia contrat-la, e s no fim reparou que tinha acabado por acontecer tudo ao contrrio. Deixou- se fascinar pelos olhos de Francisca, castanhos, lmpidos, que por vezes brilhavam de emoo pura ao falar de alguma coisa que lhe tocava mais fundo. De modo que decidiu que ela merecia uma oportunidade, no tanto por lhe conhecer o jeito para a fotografia, mas porque acabou por lhe reconhecer duas qualidades suficientemente cativantes: a coragem e a simpatia.

- Francisca - anunciou-lhe -, tenho uma proposta para lhe fazer.49As sirenes comearam a soar por toda a cidade. O toque de alarme para avisar do perigo iminente lanou o pnico entre a populao e continuou durante alguns minutos at ao silncio fatal, cortado algures no pas pelas exploses catastrficas que se seguiram queda aleatria dos msseis sobre a cabea de alguns pobresazarados, que estavam no lugar errado na hora errada. A dezanove de Janeiro de 1991, trs dias depois do incio daoperao Tempestade no Deserto, o exrcito de Saddam Hussein lanou os trs primeiros msseis Sced sobre Israel. Os Scuds no eram mais do que uns grandes foguetes com ogiva explosiva, atestados com combustvel suficiente para atingirem o territrio judeu. Eram cegos, pois careciam de tecnologia capaz de escolher um alvo certeiro. Em contrapartida, tinham a virtude militar de deixar o inimigo com os nervos em franja, na medida em que, quando se lhes acabava o combustvel, caam a pique num stio qualquer, que tanto podia ser um quartel apinhado de tropas como a casa de uma famlia hora do jantar. Esta roleta russa com os msseis criou um ambiente de terror na populao israelita, tanto mais que havia o medo de, num desses dias, serem lanados com uma ogiva qumica e, nesse caso, multiplicarem espectacularmente o nmero de vtimas.Preso ao compromisso solene de no responder s provocaes de Saddam Hussein e s suas perversas tentativas de arrastar Israel para o campo de batalha, o governo limitou-se a distribuir milhares de mscaras de gs e kits de medicamentos especiais populao, a50emitir instrues sobre os procedimentos correctos em caso de ataque e a pressionar os Estados Unidos para que impedisse os bombardeamentos. A gota de gua teria sido a utilizao das armas qumicas mas, no final, Saddam no se atreveu a tanto, receoso do dilvio de fogo que se abateria sobre Bagdad como retaliao e que, em ltima instncia, poderia ter sido uma bomba nuclear devastadora.Os msseis Scud tornavam-se difceis de eliminar por serem montados em plataformas de lanamento mveis e, portanto, capazes de se evadir e de fintar os satlites americanos. Os estrategos iraquianos faziam-nos deslocar-se permanentemente e recorriam a vrios esquemas dilatrios para enganar o inimigo. Usavam tcnicas de camuflagem e outras, de iluso, colocando rplicas dos msseis em cima de camies sem importncia que a aviao aliada destrua com espalhafato, enquanto os verdadeiros Scuds eram disparados doutro local, contra Israel e a Arbia Saudita.A noite cara sobre a cidade assustada, com as ruas praticamente desertas, quando as sirenes sacudiram Jerusalm, alertando-a para o perigo que vinha do cu. No seu quarto, Afonso entretinha-se a vadiar pelos canais da televiso, meio deitado, meio sentado, confortavelmente encostado a duas grandes almofadas, com o comando na mo. Ao ouvir o alarme, saltou da cama e foi dar uma espreitadela janela. Mas a vista privilegiada do stimo andar no lhe revelou nada de anormal, para alm de dois ou trs carros isolados que aumentavam de velocidade para fugir do desconforto do campo aberto. Afonso voltou para dentro e correu para o telefone.

Francisca acabara de tomar um banho quente e preparava-se para se vestir para o jantar. Sentou-se na borda da cama, com a toalha enrolada, observando-se no espelho por cima da cmoda, com o olhar fixo e o pensamento ausente. Piscou os olhos para voltar vida e respirou fundo. Depois de um dia a correr de um lado para o outro, s lhe apetecia uma refeio quente e cama. De sbito, as sirenes l fora comearam a tocar e Francisca despertou da letargia com uma descarga de adrenalina que lhe apurou os sentidos e a catapultou da cama para a janela num abrir e fechar51de olhos. Atrs dela, na mesinha-de- cabeceira, o telefone comeou a tocar.- Ests pronta? - Ouviu a voz de Afonso no outro lado da linha. Reparou que ele a tratou por tu. Era a primeira vez que o fazia, mas no se sentiu incomodada com a informalidade do tratamento.- Estou - respondeu sem hesitar, estou pronta para qe? interrogou-se.- Encontramo-nos l em baixo, na sala de imprensa, dentro de cinco minutos.- Est bem - assentiu, ao mesmo tempo que lanava um olhar de emergncia em redor, procurando a roupa vista em cima da cama e no armrio aberto, a pensar no que haveria de vestir.Desligou o telefone, deixou cair a toalha no cho e ficou ali nua por um instante a ponderar a questo da roupa. Encolheu os ombros e optou pelos mesmos jeans do dia inteiro. No ltimo momento, abriu a gaveta da cmoda e tirou uma T-shirt lavada. Enfiou o colete por cima, agarrou nas mquinas fotogrficas e no saco do material. Saiu do quarto e deparou-se com uma confuso de hspedes assustados no corredor, que se dirigiam para as escadas e desciam procura do abrigo do hotel, na cave. Entre isso e o elevador, Francisca optou pelo segundo, por ser mais rpido.Apressou o passo em direco sala de imprensa, mas encontrou Afonso a meio caminho. Ele j vinha de l.- Foi em Telavive - disse-lhe. - Vamos embora. Afonso informara-se sobre os pontos de impacto dos Scuds.- Um deles atingiu um prdio de habitao - disse, j no carro. - Vamos at l ver os estragos.- Bem podia ter cado mais perto - comentou Francisca. Quando l chegarmos j perdemos a aco toda.- Os iraquianos no apontam os msseis para estes lados.- No?...- No, os Scud poderiam cair em cima das zonas palestinianas. E, como os palestinianos apoiam o Iraque, eles no querematingi-los.52A estrada para Telavive era boa e sem trnsito. Afonso conduziu to depressa quanto possvel, dentro dos limites de segurana, pensando que seria inglrio serem vtimas de um acidente de viao num pas com perigos muito maiores para os jornalistas.- Tens a um mapa no porta-luvas - informou. - Tira-o, porque acho que vamos precisar dele.Francisca tirou o mapa do porta-luvas e abriu-o no colo.

- a - disse Afonso e, ao inclinar-se para apontar a posio de Telavive no mapa, sentiu o cheiro agradvel a sabonete na pele de Francisca.- Sim, j vi... - confirmou ela, concentrada, a estudar o caminho. - No tem nada que enganar, sempre por esta estrada.Afonso desviou os olhos da estrada por um instante, para a observar. Ainda bem que te encontrei, reflectiu, animado com a presena dela.Para todos os efeitos, Francisca estava experincia. Trabalhamos uns dias juntos, voc vai tirando umas fotos e depois logo se v", propusera-Lhe. Francisca aceitara, mas com a advertncia solene de que, se no recebesse algum dinheiro em breve, no teria que chegasse nem para pagar o quarto. Nesse momento, Afonso olhou para Francisca incrdulo e a sua expresso reveladora transmitiu exactamente o que lhe veio cabea: esta mulher maluca! Vem para um dos lugares mais perigosos do mundo sem dinheiro. uma amadora, inconsciente e no est preparada para isto. S me vai dar problemas. Francisca viu a hesitao na cara de Afonso e, percebendo que se arriscava a perder a oportunidade antes de conseguir provar que estava altura do trabalho, interrompeu-lhe os pensamentos.- Eu sei que devia ter-me preparado melhor - reconheceumas, como lhe contei, no tive tempo nem capacidade para mais. Tive de tomar uma deciso rpida, caso contrrio perdia o timing. Oua, Afonso, eu no sou doida, ponderei os riscos e sei que tenho qualidade profissional e estrutura psicolgica para aguentar a presso e fazer o que for preciso.- Tem? - duvidou. - Tem a certeza de que sabe no que se est a meter? - confrontou-a, enftico, colocando um grande ponto de interrogao na pergunta.53- No tenha medo - sossegou-o - que eu no vou ficar histrica com a primeira bomba, nem entrar em pnico. - E acrescentou com muita determinao: - Eu vou onde voc for.De modo que, no final da conversa, ele aceitou pagar-lhe a estada, a alimentao e as fotografias enquanto trabalhassem juntos. Embora tivesse recebido autorizao de Lisboa para estabelecer um acordo permanente com Francisca, Afonso queria ver como as coisas corriam entre eles, antes de se sentir seguro para lhe oferecer algo mais do que um acordo pontual.Apesar de ainda no terem estado sob presso, e portanto Afonso no saber como que Francisca reagiria perante uma situao de perigo, haviam passado muitas horas seguidas juntos. E foi uma oportunidade para se conhecerem melhor e avaliarem at que ponto apreciavam a companhia um do outro. Afonso reparou que Francisca dava uma ateno inesperada aos pormenores mundanos que a ele Lhe escapavam por entre a normalidade de uma rua qualquer, mas que a ela lhe surgiam como pequenas prolas do quotidiano, dignas de registar com uma das suas mquinas sempre prontas a disparar. Tudo despertava o interesse do olho clnico de Francisca que, com uma rajada de cliques precisos, extraa significativos instantes paisagem popular de Jerusalm: Um velho comerciante rabe, com o Kaffyeb quadriculado na cabea, sentado num banquinho a fumar um cigarro enrolado,

entrada do seu estabelecimento, cujos artigos tpicos - panos, cestos, sacos e mochilas - surgiam desde o interior, pendurados em redor da porta, encimada com a tabuleta onde se lia o nome Orient Bazaar; dois midos palestinianos a jogar bola debaixo de um arco numa rua estreita e carregada de histria, entre o casario milenar; soldados israelitas em patrulha; judeus envergando fatos de um negro carregado, com longas suas a soobrarem debaixo de um chapu preto, a cabecearem uma reza frente ao Muro dasLamentaes.Enquanto esperavam que a guerra alastrasse a Israel, voltaram Cidade Velha e s zonas palestinianas e voltaram a ser impedidosde entrar nos territrios mais quentes. Tomaram um ch em Jaffa Road, para retemperar as foras, sentados num caf ao lado de trs54jovens raparigas fardadas de verde-azeitona, com as suas armas Galil mo, que tagarelavam volta da mesa.E nesse tempo todo, lado a lado, no carro ou a p, Francisca revelou-se uma alma prestimosa, encantadora e aberta s orientaes que ele lhe ia dando, conforme os momentos mais ou menos delicados que se lhes deparavam. Afonso percebeu que Francisca aceitava naturalmente a sua posio de reprter novata e no se melindrava por ele assumir o papel de mentor, apesar da sua larga experincia de fotgrafa. Pelo contrrio, Francisca escutava todas as dicas e assimilava-as com interesse, certa de que lhe poderiam ser decisivas para se safar de apuros um dia mais tarde. Ela era inteligente e aprendia depressa. Afonso viu-a a lidar com as pessoas annimas que fotografava, dirigindo- lhes um sorriso simptico, como que a pedir autorizao para lhes roubar um pouco da intimidade antes de lhes apontar a cmara. Francisca parecia ter um jeito natural para se misturar com a paisagem e extrair dela todas as imagens que quisesse sem dar nas vistas ou criar atritos. Ao longo da jornada, ele comeou a acreditar que encontrara uma reprter nata, capaz de agir depressa, testemunhar os momentos e captur-los sem perturbar o ambiente. Era silenciosa e movia-se com uma discrio admirvel.Em contrapartida, quando descontrada numa esplanada, Francisca falava abertamente de todos os assuntos que iam surgindo ao sabor da conversa, dos cigarros acesos e dos baldes de caf fraco - o american coffee - servido em chvenas grandes e que parecia uma gua suja e sem grande sabor. Falaram da vida em Lisboa, das suas experincias proFissionais - ele das reportagens que fizera; ela das festas e casamentos que j deitava pelos olhos -, das aspiraes futuras, trocaram opinies polticas, analisaram exaustivamente a situao no Mdio Oriente e nunca lhes faltou assunto de manh noite.Ao fim da tarde regressaram ao hotel. Francisca subiu directamente para o seu quarto, enquanto Afonso se dirigia para a sala de imprensa e se sentava a escrever uma pea para a edio do dia seguinte. No quarto, Francisca foi buscar o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, levou-o para a casa de banho, fechou a porta, ligou-o tomada do secador e desligou o resto das luzes. Cobriu a lmpada55

com papel de celofane vermelho e assim criou a sua prpria cmara escura. Depois dedicou-se a revelar as fotografias tiradas ao longo do dia. No tinha a inteno de impressionar Afonso, mas queria muito mostrar-lhe que era uma fotgrafa competente. E, por sorte, ele tambm no entendeu que ela se estivesse a pr em bicos dos ps, antes pelo contrrio, ficou encantado com os retratos e, assim que pde, enviou alguns para Lisboa. Mais tarde, aps regressar a Portugal, Francisca descobriu que o seu velhinho, sentado porta da loja Orient Bazaar, fora a sua primeira foto publicada num jornal.O terceiro dia foi muito igual ao segundo, e o quarto t-lo-ia sido tambm se Israel no tivesse sofrido o ataque, resolvendo-se assim de uma vez por todas o suspense de um povo inteiro, sufocado na dvida da ameaa por concretizar.Chegaram ao local do impacto com relativa facilidade, bastando-lhes perseguir o incndio ao longe, at darem com um prdio dehabitao em escombros nos arredores de Telavive. Estacionaram ocarro o mais prximo que lhes foi permitido e foram a p at aocenrio da tragdia. Um Scud solitrio cara do cu, irrompera adireito pelo telhado do edifcio e s parara no rs-do-cho, demolindo-o com uma exploso arrasadora. Os Scuds tinham feito as suasprimeiras vtimas em Israel.O aparato policial era impressionante. Afonso deixou de ver Francisca assim que se embrenharam no caos das foras de segurana e dos meios de socorro. Perdeu-a de vista entre os carros debombeiros e as ambulncias. Havia gente a correr de um lado paraO outro, gritos de urgncia, mangueiras de gua estendidas no choe destroos espalhados em redor. Respirava-se mal na atmosfera defumo e p de cimento que se colava roupa, pele, ao cabelo e memria de todos os que por ali andavam, tentando orientar-se naconfuso daquela noite sangrenta. As luzes de emergncia dos carros de socorro e da polcia iluminavam a cena com uma tonalidadede azul intermitente. Civis desesperados, vizinhos, familiares eamigos expressavam a sua impotncia com um histerismo descontrolado, criando um ambiente de tumulto, e eram acudidos pelosparamdicos, que transportaram muitos deles para o hospital.56Nessa noite Francisca entregou-se a fundo, na nsia de captar todos os aspectos da notcia. Foi em frente, indiferente aos agentes que lhe gritaram para se afastar, que a empurraram e que chegaram a pr a mo em frente da cmara. Esquivou-se de todos e chegou to perto dos escombros que correu o risco de ser atingida por alguma derrocada sbita. Fotografou os bombeiros atarefados nos trabalhos de rescaldo e, quando se deu por satisfeita, foi procura de Afonso.

Ele estava sentado na borda do passeio, afastado de tudo, a fumar um cigarro e a ordenar as ideias para a notcia que iria escrever dali a poucas horas. Viu Francisca surgir por entre uma derradeira coluna de fumo e essa foi uma imagem que nunca mais lhe sairia da cabea. Ela parou um instante para acender um cigarro. Aspirou o fumo e expulsou-o para o ar carregado. Os olhos deles encontraram-se ao longe. Parecia satisfeita com o trabalho. Afonso viu-a sorrir para ele, uma fraco de segundo antes de uma enorme parede do edifcio se abater atrs de Francisca e de ela ser engolida por uma gigantesca nuvem de p e detritos. Em pnico, Afonso ps-se de p num pulo e correu para o lugar onde acabara de ver Francisca desaparecer debaixo da avalancha de pedras. Correu como nunca tinha corrido, sem te