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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LEITURA E COGNIÇÃO Cassionei Niches Petry O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA NA ELABORAÇÃO DE UM ROMANCE, OS ÓCULOS DE PAULA Santa Cruz do Sul 2013

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LEITURA E COGNIÇÃO

Cassionei Niches Petry

O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA NA

ELABORAÇÃO DE UM ROMANCE, OS ÓCULOS DE PAULA

Santa Cruz do Sul

2013

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Cassionei Niches Petry

O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA NA

ELABORAÇÃO DE UM ROMANCE, OS ÓCULOS DE PAULA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado. Área de Concentração em Leitura e Cognição. Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras .

Orientador: Prof. Dr. Norberto Perkoski

Santa Cruz do Sul

2013

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Cassionei Niches Petry

O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA NA

ELABORAÇÃO DE UM ROMANCE, OS ÓCULOS DE PAULA

Esta Dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado. Área de Concentração em Leitura e Cognição. Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras .

Dr. Norberto Perkoski

Professor Orientador -UNISC

Dr. Sérgio Schaefer

Professor examinador - UNISC

Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva

Professora examinadora – UFRGS

Santa Cruz do Sul

2013

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À Deise e à Milena, que sustentam as lentes dos meus óculos.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, pelo incentivo e pela base sólida que me constitui como ser

humano.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Norberto Perkoski, sábio, exigente e, acima de tudo,

um leitor ideal.

Aos professores e colegas do Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado,

por compartilharem seus conhecimentos e pelos enriquecedores debates em sala de aula e

nos corredores.

À Prof.ª Dra. Eunice Piazza Gai, pois ela deu a palavra final para eu decidir

ingressar no Mestrado.

À secretária Luiza Wioppiold Vitalis, que não mede esforços para auxiliar nos

trâmites burocráticos.

À equipe diretiva do Colégio Estadual Professor Luiz Dourado, que me incentivou

e me possibilitou a flexibilização de horário para que eu pudesse cumprir meus

compromissos com o Mestrado.

À Editora Multifoco, que publicou meu primeiro livro.

Ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –

pela concessão da bolsa de estudos.

À literatura e aos escritores, que povoam minha vida com suas personagens.

Aos meus leitores, ideais ou não.

Às minhas personagens, agradeço e peço desculpas.

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–No aprendas datos idiotas – le aconsejaba –. Por qué te vas

a poner anteojos si no los necesitás.

(Rayuela, Julio Cortázar)

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RESUMO

O trabalho busca revelar o processo de criação literária, desde o surgimento da ideia

inicial, passando pelas angústias e dificuldades do escritor ao desenvolver a trama até

chegar à conclusão de um romance. Para tanto, foi escrita uma narrativa longa, intitulada

Os óculos de Paula, paralela a uma análise sobre as influências do autor e às reflexões

teóricas sobre o tema, principalmente as elaboradas por escritores em ensaios, entrevistas,

depoimentos e conferências. O estudo parte de uma inquietação de quem escreve ficção e

se vê, devido ao mestrado, analisando teorias sobre a escrita ficcional. Estudar outros

textos à luz de teóricos aumenta as angústias de quem se propõe a produzir literatura. Ao

mesmo tempo, no entanto, a teoria pode ajudar a solucionar os problemas que acontecem

no decurso da criação, quando aborda questões relacionadas a técnicas vinculadas aos

elementos da narrativa, no que se refere à escolha do narrador, das personagens, do tempo,

do espaço e do enredo.

Palavras-chave: criação literária, romance, escrita criativa.

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RESUMEN

El trabajo pretende revelar el proceso de creación literaria, desde el surgimiento de

la idea inicial, pasando por las angustias y dificultades del escritor para desarrollar la trama

hasta la conclusión de una novela. Por lo tanto, se escribió un largo relato, titulado Os

óculos de Paula, un análisis paralelo de las influencias del autor y de las reflexiones

teóricas sobre el tema, especialmente aquellas desarrolladas por los escritores en ensayos,

entrevistas y conferencias. El estudio comienza con una inquietud de quien escribe ficción

y se ve, por la maestría, frente a análisis de las teorías sobre la escritura de ficción. El

estudio de otros textos a partir de los teóricos hace crecer la angustia de aquellos que

tengan la intención de producir literatura. Al mismo tiempo, sin embargo, la teoría puede

ayudar a resolver los problemas que ocurren en el curso de la creación, cuando se abordan

cuestiones relacionadas con los elementos técnicos de la narración, en cuanto a la elección

del narrador, los personajes, el tiempo, el espacio y la trama.

Palabras clave: creación literaria, novela, escritura creativa.

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SUMÁRIO

REFLEXÃO INICIAL ........................................................................................... 9

PRIMEIRA PARTE: NOTAS CONFESSIONAIS DE UM ANGUSTIADO: O

PROCESSO DE CRIAÇÃO DO ROMANCE OS ÓCULOS DE PAULA ............. 11

NOTA FINAL ........................................................................................................ 43

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 44

SEGUNDA PARTE: OS ÓCULOS DE PAULA..................................................... 47

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REFLEXÃO INICIAL

Este trabalho aborda questões relativas ao processo criativo na produção de um

romance. Composto por notas sobre a produção da narrativa, encontram-se aqui expostas

minhas angústias de autor com relação à escrita, assim como a análise de elementos

teóricos da criação que me ajudaram a produzir e concluir meu projeto literário, tanto no

aspecto técnico quanto no temático. Por fim, segue-se a obra ficcional Os óculos de Paula,

resultado do processo e objeto das discussões abordadas nos apontamentos.

Quando o escritor inicia o processo de criação de uma obra de ficção, há uma

porção de fatores que o angustiam: o que escrever, o que não escrever, como escrever,

como criar personagens consistentes, a escolha do narrador, as influências que ajudam e as

que prejudicam, além de outros problemas surgidos ao longo do percurso.

O escritor lê os teóricos ou outros escritores que se debruçaram sobre o tema,

tentando elucidar suas próprias dúvidas e solucionar essas dificuldades. Como resolver os

problemas para que a obra não pare no meio do caminho?

Tudo começou com uma inquietação de quem escreve ficção e se viu, devido ao

curso de mestrado, analisando teorias sobre a escrita. Dimensionar outros textos à luz de

teóricos aumenta as angústias de quem se propõe a produzir literatura. Ao mesmo tempo,

no entanto, a teoria pode ajudar a solucionar os problemas que acontecem no processo de

criação, quando aborda questões relacionadas a técnicas.

A proposta do trabalho, por isso, soma a abordagem teórica à produção de um

romance. A ideia não é totalmente original, mas há poucos projetos nesse sentido, e

nenhum no âmbito desta universidade.

Tentando responder às questões que norteiam o trabalho, busquei nos teóricos, ou

nos escritores que teorizaram sobre o tema, respostas sobre o processo de criação e,

durante esse processo, escrevi o romance.

Num primeiro momento, analisei, através do fichamento de leitura, as obras que

tratam da criação literária, refletindo sobre o que dizem os teóricos, professores de escrita

criativa e, principalmente, escritores que teorizaram sobre o tema. Dei relevância maior aos

escritores que refletiram sobre sua escrita, tendo em vista que eles expressam suas

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angústias durante o processo criativo. Foram lidos ensaios, entrevistas, depoimentos,

conferências, manuais e reflexões teóricas.

Paralelamente, ocorreu a produção de um romance cujos problemas foram

discutidos no decorrer da pesquisa, através de apontamentos que formaram o corpus

teórico da dissertação. Dessa forma, o trabalho é constituído de duas partes: a primeira é

denominada “Notas confessionais de um angustiado: o processo de criação do romance Os

óculos de Paula”; a segunda corresponde ao romance.

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PRIMEIRA PARTE

NOTAS CONFESSIONAIS DE UM ANGUSTIADO:

O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO ROMANCE OS ÓCULOS DE PAULA

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I.

Estas notas correspondem às reflexões sobre o processo de produção do romance

Os óculos de Paula e a pesquisa para meu projeto de dissertação de mestrado, que será

sobre a criação literária. Estou na fase de troca de ideias com meu orientador, que está

empolgado com o tema proposto, mas preocupado com o andamento do romance, objeto

de estudo na pesquisa.

II.

A primeira reunião com o orientador reforça meu pessimismo e a perspectiva de

que o meu romance será um fracasso. Tenho a leve impressão de que o mestrado sepultará

minha já improvável carreira literária.

III.

O início do romance está sendo lido e comentado pelo meu orientador. Leitor

experiente, o professor Norberto deu sugestões e fez alguns reparos. Justifiquei algumas

objeções e tive que acatar outras.

A primeira e má impressão que ele teve com um trecho se desfez com a leitura das

outras páginas, inclusive está gostando muito da personagem feminina. A história ganha

vida, pois está merecendo uma leitura atenta. Lógico que o medo de um fracasso ainda

permanece, justamente por ser o professor um leitor muito exigente.

IV.

Entre as angústias do processo de criação, encontra-se a angústia da influência. É o

título, aliás, de um livro de Harold Bloom. As influências perseguem o escritor. Às vezes, é

o escritor que as persegue. Para Raimundo Carrero (2005, p.15), “é sempre necessário falar

em influências, de que os artistas se esquivam, embora elas existam sempre: conscientes e

inconscientes.”

A sombra sobre mim agora é a de Enrique Vila-Matas, sombra que lembra a capa

do seu livro de contos Exploradores del abismo, ilustrada com uma foto de André Kertész,

tirada em 1972.

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Na contracapa do volume editado pela Anagrama, de Barcelona, lê-se que, quando

perguntado sobre o que estava escrevendo depois da publicação de Doctor Pasavento,

Vila-Matas respondeu: “Escribo el título de un libro”. A partir do título, relacionado com a

sensação de estar com um abismo a sua frente depois de terminar seu romance, o escritor

catalão começou a escrever os relatos, sempre relacionados ao tema.

Meu romance também começou com um título, Os óculos de Paula, citado entre as

obras de uma personagem minha que é escritor em um dos contos de um livro ainda

inédito. O escritor da minha narrativa escreveu inclusive um livro de contos cujo título é o

mesmo do livro que eu escrevi e também o mesmo de um livro infantil cujo título é o

mesmo do que eu escrevi. As semelhanças com as obras de Vila-Matas não são um mero

acidente de percurso.

Falando em semelhanças e sincronias, a foto de Kertész também foi usada na capa

de um livro de outra das minhas influências. Trata-se de Deixe o quarto como está, de

Amílcar Bettega, editado pela Companhia das Letras.

Como se pode perceber, a literatura é “um jardim de caminhos que se bifurcam”, só

para citar outra influência, esta não tão forte assim.

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V.

Há uma pilha de livros sobre criação literária ao meu lado, alguns com o forte

cheiro de cigarro do orientador, que me emprestou algumas obras. Depois de escrever os

dois últimos ensaios para disciplinas do mestrado, agora é mergulhar na dissertação e no

romance. Meu estudo sobre o processo de criação da narrativa longa que estou escrevendo

envolve a leitura de textos sobre o assunto. Mas como essas notas são, também, sobre o

possível fracasso que será meu livro – no que se refere à publicação e número de leitores –,

reflito sobre outros dois fracassos anunciados.

Tenho prontos dois livros para serem publicados. Prontos é força de expressão,

porque estou sempre tentando melhorar alguma coisa neles. Um é de contos, um projeto

antigo, que está nas mãos de uma editora local. Iria ser publicado no início do ano passado,

depois passou para o final do ano e agora, talvez, saia em 2012. [P.S.: Não sairá mais por

esta editora local.] Esse já é um fracasso antes de ser publicado. Confesso que, como

sempre, as esperanças são poucas, mas é o livro que está mais próximo de sair da gaveta.

[P.S. 2: Não está mais tão próximo assim.]

O outro é uma narrativa infantil, já negado por uma grande editora. Fracasso na

primeira tentativa de mandar para uma editora de renome. O projeto surgiu a partir de um

conto, que foi ampliado, e que fazia parte do livro anterior. Talvez ainda mande para um

concurso recente, que teve as inscrições prorrogadas. O prêmio é a publicação e um

adiantamento de 30 mil reais pelos direitos autorais. Aliás, devido à produção dos ensaios,

perdi o primeiro prazo. Seria um bom sinal a prorrogação? [P.S. 3: O livro não foi

encaminhado para o concurso.]

Isso tudo me angustia, mas é a angústia que me move. Como escreveu Raimundo

Carrero (2005, p.23), “o erro e o fracasso devem funcionar como incentivo. O ato de

escrever precisa se tornar algo essencial nas nossas vidas.”

VI.

Na minha adolescência, quando já pensava em seguir o caminho da literatura, tinha

uma imagem bem romântica sobre o ato de escrever: uma sala repleta de livros, tendo

como luminosidade apenas um abajur e em cima da mesa uma máquina Olivetti, a qual era

martelada pelos dedos ágeis do escritor. Pensava que bastaria ganhar uma máquina de

escrever de presente e pronto, surgiria uma nova revelação nas letras. Já me via escrevendo

crônicas diárias para os jornais (como Rubem Braga e Luís Fernando Veríssimo) e

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publicando um romance a cada ano. O tempo, como diz o ditado, é o senhor da razão.

Cronos foi implacável comigo, devorando meus sonhos assim como fazia com seus filhos.

Mais tarde aprendi que não bastava a ferramenta. Eram necessárias, também, boas

ideias para pôr no papel. De nada adiantava tê-las, porém, sem ter a técnica para

desenvolvê-las. Aí é que entram as oficinas ou livros sobre arte da escrita. São sobre estes

livros que estou me debruçando agora para me ajudarem a desenvolver o romance e a

dissertação.

VII.

Passei um bom tempo dedicado à revisão bibliográfica para o projeto da

dissertação. O romance não evoluiu muitas linhas. Como o orientador sempre frisa, não

posso me dar ao luxo de ter algum bloqueio criativo, uma vez que há um prazo para o

trabalho ficar pronto.

VIII.

Não sabemos se o que escrevemos é bom. Isso é fato. Por mais que o escritor tenha

acumulado um número de leituras de outras obras suficiente para poder julgar o trabalho

alheio, ele jamais poderá julgar sua própria escrita. Não pode dizer que seu trabalho é bom.

Não pode dizer que seu trabalho é ruim. Tanto aquele que se julga o escritor do momento,

quanto o que queima seus manuscritos (penso num Ernesto Sabato, por exemplo), estão

sendo injustos consigo mesmos. É necessária a leitura de outra pessoa. Outra não, outras,

pois apenas um leitor também não nos dá um parecer mais próximo da verdade. Para um

leitor a obra pode ser muito boa, enquanto para outro a obra pode ser colocada num

patamar tão inferior que nem mesmo servirá para calçar estantes bambas de uma

biblioteca.

Também não enxergamos erros gramaticais. Por maior que seja o número de

revisões, faz-se necessário o olhar de uma pessoa mais atenta, que leia com distância o

texto. Digo isso porque sou professor de língua portuguesa e, mesmo assim, os erros pulam

das páginas quando são lidas, por exemplo, pelo orientador da dissertação ou pelo revisor

do jornal para o qual escrevo regularmente.

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IX.

Estas notas começam a ter um papel importante dentro da dissertação. Para os

objetivos pretendidos, elas podem substituir os capítulos teóricos ou complementá-los.

Quanto à escrita propriamente dita, ainda sinto falta de um local adequado para

escrever, o meu lugar, a minha toca, o meu refúgio. Na casa antiga, havia esse espaço. Na

casa nova, no entanto, ainda não. Espero meu pai, que é marceneiro, aprontar a porta da

garagem que será fechada para servir de biblioteca. Meio ano esperando.

O orientador me pediu um plano do romance, pensando que eu tenho ideia do

início, meio e fim. Não, não tenho ideia de como ele vai se desenvolver. Parti da imagem

da Paula retirando os óculos e estou desenvolvendo a história, sem saber como vai

terminar. Um texto do Amílcar Bettega (2012), publicado na internet, expressa bem isso:

Escrevo um livro escrevendo, ou seja, pego na caneta e saio escrevendo, sem esboços prévios de personagens, sem esquema da estrutura, das vozes narrativas, sem planejamento nenhum e sem ter, é óbvio, a mínima ideia de onde vou chegar (e se vou chegar). Parto de muito pouco, às vezes de uma frase, uma ideia, não raro uma imagem, mas nada mais do que isto. E saio escrevendo. Certo, no meu ritmo bovino, paquidérmico, me atolando na lentidão, mas vou botando uma palavra atrás da outra, porque não conheço outra maneira para se chegar ao fim de uma frase, de um parágrafo, de uma página, etc.

X.

A proposta do trabalho dissertativo que está se delineando pode encontrar

resistência pela estrutura que irá seguir, fugindo das amarras acadêmicas. Há precedentes,

porém, no mestrado e doutorado em Teoria da Literatura da PUC-RS, no eixo Escrita

Criativa, e no mestrado da UFRGS, o que me dá coragem para propor uma maneira pouco

usual de se escrever uma dissertação.

A ideia inicial era que essas páginas, correspondendo à parte teórica da dissertação,

fossem escritas em forma de diário sobre o processo criativo. Em uma conversa com o

orientador, optamos por transformar o que seria o diário em um conjunto de notas sobre a

criação do romance.

XI.

O orientador me perguntou se há uma metáfora por trás do título. A ideia que

pretendo desenvolver é a de que em vários momentos o ato de tirar e pôr os óculos

represente as reflexões da personagem, principalmente com relação à visão de mundo:

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mais conservadora ou mais contestadora. Os óculos também podem simbolizar o próprio

Fred, pois Paula vê as coisas a partir do olhar do ex-namorado. Acredito que essa

característica a torne uma personagem menos forte. A história, nesse sentido, seria mais do

Fred do que de Paula.

XII.

Escrever é a arte de ficar olhando para a xícara de café.

XIII.

Escrever qualquer coisa. Esse é um dos primeiros ensinamentos do livro do

Raimundo Carrero, Os segredos da ficção. Escrever sempre, todo o dia. Um diário, por

exemplo: “Diário de escritor. Diário de gente séria, com anotações, histórias, fragmentos,

diálogos, descrições, reflexões, observações as mais diversas, notícias de jornais.” (2005,

p. 28). Estas notas, na verdade, faziam parte de um diário sério, que está se

metamorfoseando para ser a dissertação de mestrado.

“O importante é enfrentar os problemas da criação. O que não é pouco. Com

instrumentos, normas ou regras de trabalho.” (CARRERO, 2005, p.19).

XIV.

“Quem escreve, principalmente o ficcionista, acaba pautando sua vida pela

literatura. Geralmente o escritor, mesmo não escrevendo, vive a literatura vinte e quatro

horas por dia, o que vai influenciá-lo não só como autor, mas também como homem.”

Murilo Rubião (1976, p.3).

Escrever o romance e refletir sobre o processo de sua criação para o trabalho do

mestrado me tomam as 24 horas do dia, mesmo se estou fazendo outras coisas. Meu

pensamento está sempre nos dois arquivos do Word.

XV.

Raimundo Carrero (2005, p.13) escreve que “o trabalho literário exige disciplina e

método. Com rigor”. Não tenho ambos, mas tento alcançá-los através dessas anotações

diárias e pela obrigação de cumprir prazos de entrega impostos pela academia. Sobre as

imposições acadêmicas, posso não ter o trabalho aceito da forma como está sendo levado.

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Sigo, porém, os conselhos do Carrero (2005, p.16): “não acredito em escritor que não corra

riscos.”

XVI.

“Tu precisas dar o salto”, disse meu orientador no último encontro. O salto a que

ele se refere é a fuga das influências. Bolaño, Vila-Matas, Auster, Autran Dourado,

Cortázar... Difícil fugir do que escreveram.

XVII.

Em um trecho do conto “O lago dos peixes dourados e outras histórias”, da

coletânea Fumaças e espelhos, Neil Gaiman escreve:

A pergunta irritante que nos fazem – a nós, escritores – é: – De onde você tira suas ideias? E a resposta é: confluência. As coisas se juntam. Os ingredientes certos e, de repente: Abracadabra! (2004, p.75).

É uma das melhores respostas e a que mais se relaciona com o meu romance. A

partir do título, as coisas vão se juntando até formar o eixo da história. Como escreveu

Rollo May (1982), é como se a ideia saltasse do inconsciente. Depois, com o desenrolar do

nó inicial, novas ideias vão sendo agregadas, mas sem se perder o foco nas personagens

principais.

Escrever sobre o ato de escrever é um dos temas do romance. O ateísmo, que em

princípio parece ser o assunto principal, é um disfarce para distrair o leitor. O romance não

é sobre o ateísmo, em que pese ele estar presente em boa parte da história, muito menos é

uma defesa dos ateus, pois seria um romance panfletário.

Busco um romance fora das convenções, pois ele mistura ficção, ensaios, crônicas,

postagem de blogue, etc. Por conseguinte, o trabalho teórico também será distinto das

demais dissertações, visto que será composto por estas anotações sobre o processo de

escrita. Tenho que pensar, no entanto, nos leitores do romance e da dissertação: vão

entender minha proposta?

XVIII.

A reflexão inicial destas notas deveria se relacionar à criação artística. Entender a

origem das coisas, entretanto, pode resultar numa destruição do objeto. Um trabalho

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teórico mais rígido prejudicaria o processo literário. Por isso a escolha de anotações

paralelas à produção romanesca, que servem como reflexão teórica e pesquisa.

XIX.

“O único paciente atendido pelo escritor é ele próprio”. Em Lição de anatomia, de

Philip Roth (2011, p. 382). Pode ser. Se há uma doença que tenho, esta doença é causada

pela literatura. El mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, discute esta enfermidade, que

consiste em ver em tudo a literatura.

E se nesse mal tudo passa a ser literatura, a própria literatura acaba tratando da

literatura. A metaficção está presente em vários momentos do romance através dos

comentários e postagens do blogue feitas por Fred e através dos capítulos referentes às

reflexões de um escritor que aparecem no meio da história. Ainda não tenho certeza se ele

será o narrador ou apenas a personagem de um conto escrito por Fred.

XX.

Escrevendo um diálogo entre as duas personagens principais, Paula e Fred, no

chamado discurso direto, mais convencional. É preciso uma seleção do que se deve colocar

para não tornar maçante essa passagem. Um recurso é intercalar a voz do narrador. Isso,

porém, precisa ser bem dosado. Outra dificuldade é o uso do “tu”. Conjugá-lo

corretamente? Como os dois não se viam há tempo e gostavam muito de ler, e também

para impressionar um ao outro, optei pela correção gramatical. À medida que eles se

reaproximarem, a linguagem vai se tornar mais próxima. Assim como a linguagem usada

nos diálogos entre ela e o marido ou o filho.

XXI.

Às vezes penso que emprego mais tempo nas notas do que no romance, que travou

numa página. Não sei se a partir de amanhã isso vai continuar, pois irei aproveitar o resto

das férias para ir à praia, onde vamos ficar por uma semana. Lógico que o notebook estará

comigo. Não posso me afastar do projeto, muito menos do romance. Talvez à beira do mar

eu tenha alguma inspiração e o romance flua mais. Volto a dizer: o local é muito

importante, e ainda estou na mesa entre a cozinha e a sala trabalhando. Além disso, a

esposa entrou de férias e a TV passa a ficar ligada todo o tempo na sala.

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Na foto, os livros de Paul Auster, Roberto Bolaño e Raimundo Carrero. Junto com

o café, são uma companhia prazerosa e útil para a dissertação.

Logo mais à noite estarei partindo. Levo comigo minhas dúvidas. Levo junto as

angústias. Levo comigo minha escrita. Levo junto a literatura.

XXII.

Marcelo Gleiser (1997, p.11), em seu livro A dança do universo, discute a questão

de “por que existe algo ao invés de nada”. Essa questão pode ser abordada no sentido

literário da criação. Afinal, por que existe um livro? Por que escrever algo? Por que criar

histórias? Por que escrever mais livros se já existem muitos? Por que estou escrevendo esse

livro?

Mais adiante o autor escreve que “quando nos deparamos com a questão da origem

de todas as coisas, podemos discernir uma clara universalidade do pensamento humano. A

linguagem é diferente, os símbolos são diferentes, mas, na sua essência, as ideias são as

mesmas” (p.18). Pensando mais uma vez no sentido literário, um dos mitos existentes para

a criação são as Musas. Filhas de Zeus (Júpiter) com Mnemósine (Memória), “são as

fontes inspiradoras que comunicam aos homens a faculdade poética e lhes ensinam as

cadências” (MENARD, 1991, p.54).

Carrero, no entanto, escreve: “Os inspirados esperam pelas musas. Ou por Baco, na

segunda cerveja do bar da esquina. Equivocados.” (2005, p.59).

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XXIII.

De férias no litoral, o dia foi dedicado à praia. Não escrevi nenhuma linha do

romance, mas minha mente continuou trabalhando à beira-mar. Também se escreve sem

estar escrevendo.

XXIV.

Mais um dia em que só a mente trabalhou. Ou seja, não parei de escrever.

XXV.

Aqui na casa de praia onde estou hospedado, fui abordado por duas Testemunhas de

Jeová. O debate que tivemos (as duas eram muitos despreparadas para quem dizia conhecer

a Bíblia) pode ser incorporado ao romance. Quem sabe uma conversa entre Fred e dois

membros da igreja.

XXVI.

“Admitir, desde o início, que a essência desse projeto é o fracasso”. Paul Auster,

em A invenção da solidão (1999, p.28).

Consegui escrever mais alguns fragmentos do romance aqui na praia. Lugar

inspirador, mas que me deixa sem tempo para desenvolver o trabalho. Logo as férias

estarão terminando e as aulas começarão. Tenho que reorganizar o tempo.

XXVII.

Escrevendo estas notas à beira-mar. O movimento intenso de pessoas da praia

impede qualquer concentração. À noite, na casa onde estou hospedado, também é

praticamente impossível escrever.

XXVIII.

Momento surreal pelo qual venho passando tira toda minha concentração. Ainda

não é nenhum bloqueio criativo, mas são condições psicológicas que influenciam minha

mente.

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XXIX.

Assisto a um vídeo de Rubem Fonseca, gravado durante a entrega de um prêmio

que ele recebeu em Portugal. O autor, antes recluso, surpreende falando sobre as

características de um escritor. Para ele, quem escreve literatura deve ser louco, ter

inteligência (apesar de conhecer muitos escritores não muito inteligentes), estar motivado,

ter paciência e, principalmente, imaginação.

Só um louco para propor, como dissertação de mestrado, um romance e um caderno

de anotações sobre o seu processo de criação. Quanto à motivação para escrever o

romance, encontro-a na própria dissertação e no prazo de entrega. A paciência, por sua vez,

deve dar lugar à pressa, devido ao prazo para entregar o resultado da pesquisa, o que talvez

prejudique o resultado final do processo romanesco. Depois, porém, haverá tempo para

reescrever, se necessário.

Tenho imaginação? É o que veremos no decorrer da produção do romance.

XXX.

Romances metaliterários são uma constante nas minhas escolhas de leitura, tendo

em vista meu próprio romance e as reflexões que faço em torno dele. Acima de tudo,

porém, sou aficionado por esse tipo de leitura. Termino de ler Zuckerman acorrentado,

volume com quatro narrativas longas do escritor norte-americano Philip Roth (2011), do

qual faz parte o romance Lição de anatomia, anteriormente citado. Retirei dois trechos

sobre a criação literária:

“Inventar pessoas. Uma atividade benigna quando você está datilografando no

aconchego do seu escritório.” (p.279). “Isso é igual a escrever. É você sozinho com uma

montanha e uma picareta. É você consigo mesmo, no maior isolamento, com uma

empreitada quase irrealizável pela frente. Isso é escrever.” (p. 425, grifo do autor).

XXXI.

O reinício das aulas traz o escritor, que também é professor, de volta à realidade e

ao problema do tempo para escrever. Somam-se a isso as incertezas quanto à fixação dos

horários, que se modificam todo o dia, até que se possa estabelecer um cronograma para o

desenvolvimento do projeto de mestrado e a escrita do romance. Há ainda reuniões,

elaboração de planos de aula, etc., que desviam o caminho já anteriormente traçado.

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Stephen Koch (2008, p.69), no entanto, lembra que é “um erro fatal permitir que o

ofício de escrever e o trabalho diurno se tornem inimigos”.

XXXII.

Escrevendo mais alguns parágrafos do romance, penso se ele tem algo de

autobiográfico. Se tem, qual personagem tem mais a ver comigo? Ou quais as

personagens? É necessário também questionar se uma boa obra literária deva se valer de

elementos da vida do autor.

Silvia Adela Kohan (2011, p.8), em Como narrar uma história, afirma: “Ao narrar

uma história, partimos de experiências pessoais ou recontamos histórias que outros

viveram. Estas experiências são retomadas pelo escritor de modo parcial ou total, de modo

consciente ou inconsciente.”. É inevitável a inspiração em fatos pessoais, o que reforça o

lugar-comum de que quanto mais velho o escritor, melhor ele é, devido às suas

experiências de vida. Se comparo os meus textos adolescentes com os de agora, são

notórias as diferenças.

XXXIII.

Os meus personagens fugiram ou eu estou fugindo deles? Uma coisa é certa: eu

estou fugindo de um tema que foi meu objeto de estudo em disciplinas do mestrado. Será

que vou incorporá-lo ao romance?

XXXIV.

Conversando com os alunos sobre as ferramentas do escritor em sala de aula.

Apenas com as palavras, o artista cria imagens, sons, significados, enquanto os demais

necessitam de tintas, pincéis, câmeras, luz, microfones, etc. A literatura, portanto, é a arte

da palavra e sua complexidade se dá através de uma escolha que sugira todos esses

elementos presentes em outras esferas artísticas.

XXXV.

A escolha do narrador em 3ª pessoa, com o foco em Paula, e não em 1ª, foi feita no

sentido de acompanhar as reflexões da personagem, mas ainda assim quis deixar certo

distanciamento. Como as ideias de Fred são essenciais, optei não por criar outro narrador,

mas reproduzir o que seriam falas e textos da personagem num blogue.

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Para David Lodge (2009, p. 36), em A arte da ficção,

a escolha do ponto de vista a partir do qual se conta a história pode ser considerada a decisão mais importante que o romancista pode tomar, pois tem um impacto profundo no modo como os leitores vão reagir, na esfera emotiva e moral, aos personagens e às suas ações.

Afirma que qualquer história de adultério, dependendo de que ponto de vista é

contada, pode causar impressões diferentes no leitor. Cita Madame Bovary, porém, nos

lembramos de Capitu, que Lodge provavelmente não leu.

Conhecedor do assunto, Lodge analisa um trecho de Pelos olhos de Maise, de

Henry James. Aliás, o título do romance já nos revela o ponto de vista em que vai ser

contada a história. (O título do meu romance também poderia revelar isso, mas lembro que

os óculos podem não se referir às extensões dos nossos olhos.) São vários adultérios

revelados “através do olhar de uma garotinha que sofre todas as consequências dos

acontecimentos, ainda que mal os compreenda” (p.36). O ponto de vista é da pequena

personagem, porém o narrador é em terceira pessoa, como se percebe nesse trecho do

romance: “Nem mesmo nos velhos tempos das senhoras risonhas ela vira mamãe rir com

tanto desprendimento.” (in LODGE, 2009, p.35). A escolha desse ponto de vista foi

importante para retratar a ingenuidade infantil e após passar para o olhar desconfiado do

adolescente, depois que Maise cresce.

De acordo com Raimundo Carrero (2005, p.23), o papel do narrador

contemporâneo é trabalhar com muitas vozes, diversos narradores, tornando o texto uma

experiência mais complexa e, dessa forma, as personagens ganham força. Para ilustrar essa

ideia, cita um estudo de Laura Goulart Fonseca sobre Os sinos da agonia, de Autran

Dourado, outro criador que teorizou o narrador:

Na vertente dramática do romance contemporâneo, que teve sua origem em Gustave Flaubert, o narrador simplesmente desaparece da cena narrada e passa a mostrar os eventos. O que ocorre é uma teatralização, o leitor vê a cena, como se ela fosse representada em um palco. Os eventos deixam de ser narrados e passam a ser refletidos na consciência da personagem, de modo que o leitor visualiza a realidade ficcional do ponto de vista de um personagem de um romance, e não do narrador, como se observa no romance autoral. (in CARRERO, 2005, p. 24).

Essa ideia norteia a eleição do foco narrativo no romance Os óculos de Paula.

Devo, no entanto, tomar certo cuidado, seguindo a orientação de David Lodge:

não há regras nem leis determinando que um romance não possa mudar de ponto de vista quando o autor bem entender; mas se essa decisão não for tomada de acordo com algum plano ou sentido estético, o envolvimento do leitor, o processo em que o sentido do texto se produz, será perturbado. (2009, p.39).

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XXXVI.

Chega às minhas mãos a revista Metáfora, publicação dedicada à literatura e que

está no seu sexto número. Nela, o escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto estreia a

coluna “Laboratório”, que enfoca a criação literária. No primeiro artigo, intitulado, “Como

começar um romance”, Sanches afirma que não existem inícios, uma vez que nas

narrativas contemporâneas não “se começa propriamente um texto, pois os autores evitam

as explicações sobre quem são as personagens, quais as relações entre eles, em que tempo

e em que espaços transcorrerão aquelas ações” (2012, p.31). Ao começar o romance,

pensei em que momentos apresentaria as personagens ao leitor. Escolhi não apresentá-las,

mas sim mostrá-las no decorrer da história, a partir de flashbacks, atitudes, gestos, ideias,

reflexões. Fred, por exemplo, se revela através do que escreve e de como Paula o vê. Ela,

muitas vezes se revela a partir do convívio e da influência de Fred (seria ele os óculos do

título mesmo?).

Sanches escreve que, para iniciar seus romances, “alguns escritores optam [...] por

um episódio simbólico, que ficará soando na mente do leitor desde a primeira linha” (2012,

p.32). Quando descrevi o gesto feito por Paula de tirar seus óculos para refletir sobre sua

leitura, procurei repetir o mesmo movimento em vários momentos da narrativa, buscando

produzir no leitor essa ressonância.

XXXVII.

Às vezes questiono a minha capacidade de criar algo. Será que o que escrevo pode

ser chamado de criação? Percebo influências de outros escritores, cito suas obras e frases,

reproduzo histórias oriundas de fontes diversas. Nada vem do nada. Só aparentemente a

ideia do título do romance surgiu do nada. De algum lugar do meu inconsciente veio, mas

não sei sua origem.

O que é criar? Para Fayga Ostrower (1991, p.9), em Criatividade e processos de

criação, “é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo”. Mas o que é o

novo? São “novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos

relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos” (1991, p.9).

Podemos dizer, então, que criar é fazer algo diferente em relação ao que já existe.

Em termos literários, é abordar temas já trabalhados por outros escritores de uma forma

diferente, dando-lhes novos significados. A busca pela originalidade, portanto, passa pelo

que já foi escrito. Ao escrever, a mente do escritor aciona o que leu, o que assistiu, o que

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ouviu e mistura tudo em forma de uma nova ficção. Os óculos de Paula segue esse

caminho.

Ostrower reforça que é a intuição que conduz o processo de criação:

As diversas opções e decisões que surgem no trabalho e que determinam a configuração em vias de ser criada, não se reduzem a operações dirigidas pelo conhecimento consciente. Intuitivos, esses processos se tornam conscientes na medida em que são expressos, isto é, na medida em que lhes damos uma forma. (1991, p.10).

Por isso tenho algumas ideias para o desenvolvimento do romance e as resoluções

dos conflitos, mas só as consigo visualizar quando tomam forma no papel. Se o orientador

me pergunta qual meu plano, não sei responder.

XXXVIII.

O romance está repleto de associações. Ostrower escreve que as associações são

“correspondências, conjeturas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas em cada um de

nós com experiências anteriores e com todo um sentimento de vida” (1991, p.20). Fred é

uma personagem que cria seus textos ou suas falas nos debates sempre associando ideias,

como o mito da caixa de Pandora relacionado com o fruto proibido comido por Adão e Eva

ou, o que escrevi há poucos instantes no romance, o sonho da personagem com um

determinado número relacionado ao suicídio.

Essas associações, para Ostrower, “nos levam para o mundo da fantasia”, que “será

povoado por expectativas, aspirações, desejos, medos, por toda sorte de sentimento e de

‘prioridades’ interiores” (1991, p.20), que acabam influenciando o processo criativo. Não

por acaso os temas do ateísmo, do suicídio e da metaficção estão presentes com ênfase em

Os óculos de Paula.

O suicídio é um assunto que está entrando no enredo. Poderia fugir dele, mas é um

tema que me persegue. O tema, devo frisar, não a ideia de praticá-lo. Estudei o suicídio na

literatura durante o mestrado e por isso não vou deixar de continuar refletindo sobre ele,

até porque enquanto se pensa sobre o suicídio, não há como praticá-lo.

XXXIX.

A maneira como estão sendo abordados os temas no meu romance o tornam

próximo a um romance de ideias. Segundo David Lodge (2009, p.204), o termo se refere

ao “livro com pouco interesse narrativo, em que personagens muito bem articulados

discutem entre si questões filosóficas para lá e para cá com breves intervalos para comer,

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beber, flertar”. Ainda segundo o escritor, esse tipo de história remonta aos diálogos

platônicos e está desaparecendo, sendo também nomeado como romance de tese.

Na verdade, não são apenas questões filosóficas que aparecem no meu romance,

tampouco há uma tese a ser defendida. Da mesma forma, me interessa, sim, a narrativa. A

ênfase em discutir ideias vem da tentativa de enriquecer a história contada, sugerindo

referências que ajudem a interpretação do leitor. Busco um leitor qualificado, não o que

deseja apenas entretenimento.

Em ensaio publicado no caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, Leyla

Perrone-Moisés (2012, p.4) escreve sobre o que ela denominou de “literatura exigente”:

“São obras de gênero inclassificável, misto de ficção, diário, ensaio, crônica e poesia.”

Segundo a ensaísta, os livros dessa corrente literária da atual prosa brasileira “exigem uma

leitura atenta, releitura, reflexão e uma bagagem razoável de cultura, alta e pop, para

partilhar as referências explícitas e implícitas”. É nesse tipo de literatura que filio meu

romance. Busco o leitor ativo não o passivo, de acordo com proposto por Julio Cortázar em

Rayuela (2011, p.23).

XL.

Escrevendo um diálogo na internet entre as duas personagens principais. Se o

diálogo na cafeteria foi marcado por travessões, a escolha recaiu agora nas aspas, para

diferenciar as duas formas de conversa. Ambas são formas convencionais de marcar o

diálogo direto (CARRERO, 2005, p.133). Penso ainda em mudar para algo mais próximo a

uma conversa pelo Messenger, programa no computador utilizado para conversação. Vou

reavaliar isso.

Para Silvia Adela Kohan (2011, p.63), o diálogo “permite realçar as características

dos personagens, revelar seu modo de ser, indicar seu estado emocional e o grau de relação

entre eles” e, no romance, contribui “para o dinamismo geral da narrativa”. Devido a isso,

optei por usar o internetês “vc”, indicando a proximidade entre Fred e Paula. Porém, as

demais palavras seguem uma correção linguística, tendo em vista a imagem que os dois

querem ter um em relação ao outro. Quanto ao dinamismo, ele é necessário em algumas

partes da história, pois de resto o romance se propõe a ser mais reflexivo.

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XLI.

Estas notas chegaram a se chamar de “Diário de um fracasso anunciado”, em clara

referência ao romance Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, e ao

livro de memórias Da mão para a boca: crônica de um fracasso inicial, de Paul Auster. O

fracasso poderia se relacionar ao insucesso dos meus projetos literários, incluindo Os

óculos de Paula, conforme a nota V, ou ao fracasso da personagem Fred, relacionado ao

não reconhecimento de sua literatura.

O tema do fracasso está presente no mais recente romance de uma das minhas

sombras literárias. Enrique Vila-Matas, Aire de Dylan.

XLII.

O problema referente ao lugar para escrever (conforme notas IX e XXI) foi

resolvido. Estou devidamente instalado num espaço exclusivo, rodeado pelos meus livros,

ambiente perfeito onde me sinto um escritor. É o lugar onde deveria estar, mas não estou.

No texto de apresentação para um ensaio fotográfico sobre o local de trabalho dos

escritores, o fotógrafo Éder Chiodetto (2002, p.17) afirma que o lugar onde o escritor cria

as suas histórias é “exatamente onde quase nunca está. A narrativa é seu espaço de ação.”

Quando escrevo, não estou aqui, mas sim na casa de Paula, nos lugares por onde ela

anda, ou no estúdio do escritor ainda sem nome que aparece no romance. Para estar nesses

lugares, no entanto, preciso sentir-me bem acomodado, com o mínimo de interferências

externas, incluindo a internet, que precisa estar desconectada, em que pese a necessidade

dessa ferramenta para o desenvolvimento da narrativa. Não pode faltar a xícara de café,

única bebida que entra no meu ritual de escrita.

William Faulkner (2011, p.11), porém, disse que não precisava de nenhum

ambiente específico para escrever: “A arte tampouco tem a ver com o ambiente; não faz

diferença para ela onde estiver.”

XLIII.

Elaborando um capítulo em que Fred revela que está escrevendo um romance e fala

sobre a questão da ideia. Não são os capítulos em itálico que dão voz ao escritor ainda

desconhecido, que poderá ser Fred ou não. Trata-se de uma postagem de seu blogue, em

que ele explica aos seus leitores porque está aparecendo menos. Sobre o que tratará esse

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romance, ainda não vai ser dito nada, mas aumenta a participação da metanarrativa em Os

óculos de Paula.

XLIV.

O tema do suicídio começa a ganhar bastante espaço na história, pois se torna uma

obsessão de Fred, à medida que começam a aparecer referências sobre o tema em tudo que

lê ou a que assiste. Analisei o tema em um dos ensaios na disciplina do mestrado e foi

assunto recorrente em outras oportunidades dentro do curso.

Por que inserir temas como esse na narrativa? O cineasta Ingmar Bergman contou

em uma entrevista uma história que retrata meu pensamento em relação ao trabalho

artístico e à abordagem dos temas:

Na ilha de Farö, vi certa vez um velho barco. Era muito bonito e havia sido construído um século antes, segundo uma prescrição especial que lhe permitiu atravessar o tempo sem afundar. Sou diretor há 27 anos e o que posso dizer é que também construí um barco como qual navego através de meus problemas como diretor. É um método prático que me permite abordar os temas difíceis que gosto de abordar. (In MERTEN, 2012).

Essa metáfora pode se aplicar àquilo que desejo conhecer. A busca pelo

conhecimento me move a escrever sobre determinados assuntos. E a arte, e no meu caso

específico a literatura, é uma das formas de conhecimento.

Bergman, em outra entrevista, fala também diretamente sobre o suicídio, pois o

tema aparece em muito de seus filmes:

Como todas as outras crianças, quando era pequeno, decidi um dia passear na floresta sem dizer nada a ninguém, desaparecer, me estender no chão, morto, e pensar então na família que estaria naturalmente extremamente triste! E é bem conhecido que os artistas, em princípio – principalmente se eles são como eu –, conservem durante toda a sua vida certos traços da infância muito marcados. Ou melhor, a criação, o impulso criador, está profundamente associada a um aspecto da infância ou a um vestígio da atitude da criança com relação ao mundo exterior, e creio conservei uma parte desse comportamento. (In BJÖRKMAN, 1977, p. 70).

O tema suicídio, que me persegue há muito tempo, surgiu depois de ter ouvido uma

palestra na escola com um numerólogo e psicólogo. Analisando meus dados, como a data

de nascimento, por exemplo, concluiu que eu havia sido um suicida em uma de minhas

supostas vidas passadas. Como era um jovem inocente, me impressionei com a afirmação.

Hoje, sendo cético sobre esses assuntos, o suicídio me desperta curiosidade, principalmente

quando aparece em algumas formas de arte, entre elas, a literatura.

Dois trechos da entrevista de Bergman são citados por Fred em Os óculos de Paula:

“Quando a presença da religião na minha existência desapareceu completamente, a vida

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tornou-se imediatamente bem mais fácil de ser vivida.” (In BJÖRKMAN, 1977, p. 177).

“Quando a superestrutura religiosa que pesava sobre mim desabou, os bloqueios que

entravavam meu texto desapareceram igualmente.” (Idem, p.178). [P. S.: Os trechos

acabaram sendo suprimidos em umas das revisões do romance.] Há um momento em que o

ateísmo deixa de ser tratado por ele e entra o suicídio como uma de suas preocupações.

XLV.

Como podemos conhecer o mundo? Há apenas um jeito de entender as coisas que

nos cercam? Assim como o universo é complexo, as explicações para seu funcionamento

também o são. Podemos dizer que o romance é uma forma de conhecimento?

Agruparemos as formas de conhecimento em cinco, correndo o risco, claro, de

reducionismo. Todas essas formas aparecem, de certo modo, em Os óculos de Paula.

A primeira é o senso comum ou o conhecimento ordinário. É aquele saber simples,

do dia a dia, e que percebemos apenas pelos nossos sentidos. “É uma interpretação da

realidade construída de modo espontâneo, instintivo” (BUZZI, 1973, p. 74). Não preciso

consultar nenhum livro ou fazer uma reflexão profunda para saber que está chovendo:

basta ouvir o barulho dos pingos caindo no telhado, olhar pela janela ou, o que é mais

prazeroso, sair para a rua e tomar um banho. Se quero caminhar, não preciso também ficar

pensando “bem, preciso ir ali, então primeiro movo a perna direita pra frente. Agora, deixa

eu ver... ah, sim, preciso mover a esquerda e...”. Se pensarmos no homem primitivo, ele

vivia no senso comum, pois não precisava pensar sobre as coisas ao seu redor para viver.

Simplesmente nascia, se alimentava, crescia, se reproduzia, envelhecia e morria. Não fazia

mais nada, até porque tinha que ocupar boa parte do tempo buscando alimento, seja

caçando e coletando, tendo que andar muito para isso, como os outros animais. Esse

conhecimento comum, propagado pela experiência de vida, é representado no romance

pela mãe de Paula.

XLVI

O homem, porém, na medida em que foi evoluindo, começou a cultivar a terra e

domesticar os animais para alimento. Consequentemente, passou a ter mais tempo para

outras atividades. Há ainda um fato importantíssimo que é a diminuição das mandíbulas e

o crescimento da caixa craniana, possibilitando o aumento do tamanho do cérebro. A

análise do crânio dos fósseis humanos comprova essa evolução. Outra prova é o dente de

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siso, um dente inútil e que incomoda por não ter mais espaço para nascer. Ele foi

importante quando o homem comia muita carne dura e necessitava de mais dentes. Como o

ser humano modificou sua dieta e também descobriu maneiras de amaciar a carne, ele

deixou de ter importância. O homem passou, então, a usar mais o cérebro do que a boca. E

se continuarmos nessa evolução, teremos no futuro o aspecto dos ET’s dos filmes de ficção

científica, quase sem queixo e com um crânio enorme?

A partir desse momento, surge a segunda forma de conhecimento, pois o indivíduo

começa a questionar a vida. Não basta mais viver por viver. Com tempo para pensar e

intelecto desenvolvido, o homem passa a se espantar com o mundo a seu redor. Questiona

“quem sou eu?”, “de onde venho?”, “para onde vou?”, “o que é essa coisa luminosa que

cai do céu?”, etc. A primeiras respostas a essas perguntas são dadas a partir de histórias

contadas pelas pessoas mais velhas da tribo e envolvem relatos fantasiosos, que não têm

lógica de acordo com os parâmetros da realidade, mas que procuram explicá-la. Entramos

no conhecimento mítico. “Mito é uma profunda intuição compreensiva da realidade,

vazada numa linguagem fantasiosa.” (BUZZI, 1973, p. 82.) Os mitos fornecem explicações

para as coisas ao nosso redor, como a de que o mundo foi criado em seis dias por um ser

superior, que quando morremos vamos para o reino de Hades ou ainda a de que o raio é um

castigo dos céus. Essas explicações são aceitas como crenças e, como tal, não são

questionadas por quem as segue. Por isso, o mito provoca o desenvolvimento das religiões

em diferentes culturas. Se ele é considerado apenas como ficção, temos histórias que

enriquecem o imaginário. No entanto, se levado ao pé da letra e como verdade absoluta,

estaremos diante de algo que limita nossa capacidade de conhecimento.

Paula recebe as explicações para as coisas do mundo a partir da religião. Fred, por

sua vez, discute os mitos em seu blogue.

XLVII

Imaginemos agora uma cidade onde há um porto e se faz uma intensa troca

comercial. Ali se encontram pessoas de diferentes lugares do mundo, com culturas

diferentes e, por conseguinte, mitos diferentes. Quando se reúnem para conversarem,

acabam contando as histórias de seu povo e percebem que são alegorias distintas para

representar, por exemplo, a criação do universo. Começam a questionar: “Afinal, qual a

história verdadeira?” Tem-se, então, a relativização dos mitos. A cidade é Mileto, na

Grécia, berço da terceira forma de conhecimento: a filosofia.

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Para o homem que está nesse processo de evolução, as respostas dadas pelas

mitologias não são mais satisfatórias. A relativização dos mitos e a afirmação de que essas

histórias são absurdas sob o ponto de vista lógico abalam todas as crenças. Passa-se, então,

a tentar encontrar as respostas a partir de elementos da natureza e não mais no

sobrenatural. O centro do conhecimento passa a ser a razão e não a crença. O

conhecimento filosófico é aquele que questiona e não aceita qualquer resposta. Faço

sempre a analogia com a pesca, afinal de contas, o ponto de interrogação não lembra um

anzol? Pois quando lançamos uma pergunta, esperamos pescar uma boa resposta e, como

toda pescaria, é preciso paciência para pegar um bom peixe. O pescador, no entanto, fica

satisfeito caso fisgue um peixe enorme? Não, pois ele vai voltar à atividade sempre que

possível. Assim é o filósofo, que obtém muitos conhecimentos, mas não se contenta e

sempre sai em busca de novas respostas.

Na filosofia, portanto, não encontramos a verdade absoluta, mesmo se esse for o

objetivo de quem quer buscar o conhecimento. Ela apenas levanta dúvidas, evita o

conformismo das ideias prontas e encontra várias respostas que explicam o mundo ao

nosso redor. Quando Paula retoma sua leitura de livros, muitos de filosofia, passa a

questionar as verdades oriundas da religião em que acreditava e sai em busca de novos

saberes.

Faltam provas, porém, para esses saberes. Para provar algo, precisamos agir não só

pensando, mas praticando, comprovando, experimentando, enfim, usando de instrumentos

práticos para se chegar o mais próximo possível da verdade. Essa é função da quarta forma

de conhecimento: a ciência.

XLVIII

O conhecimento científico se utiliza da experiência para responder às perguntas

levantadas pelos mitos e pelos filósofos. Usa todos os instrumentos disponíveis pelas novas

tecnologias para se aproximar o máximo possível da verdade. Pesquisas, experimentos,

observações, busca de provas materiais, tudo é utilizado para tentar buscar respostas para

entender o universo. Usei o verbo “tentar”, pois nem mesmo a ciência encontra a verdade.

Há sempre cientistas que contestam outros e é nesse ritmo que o mundo gira e não

deixamos de conhecer cada vez mais. Portanto, ao contrário do que muitos pensam, a

ciência não é dona da verdade. Se fosse, não precisaríamos mais de cientistas.

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Esse tipo de conhecimento ainda não aparece na história, talvez não apareça, já que

o romance se centra no campo das ideias apenas.

XLIX

O problema é quando algumas pessoas se utilizam de seus conhecimentos para

impor sua verdade pessoal. Religiosos, filósofos e cientistas radicais, que não aceitam o

pensamento diferente do seu, acabam freando o desenvolvimento. Nesse momento,

podemos estabelecer uma quinta forma de conhecimento: a arte. Conhecer o mundo pelas

mãos dos escritores, cineastas, músicos, pintores é muitas vezes mais instigante e,

paradoxalmente, mais se aproxima da realidade. Os artistas nos explicam sem explicar e

nos fazem entender sem entender o que é essa criatura tão complicada chamada de ser

humano.

Fred busca o conhecimento a partir da arte, tanto apreciando, como produzindo. Da

mesma forma, Paula busca nas indicações literárias dele subsídios para o conhecimento. E

o romance Os óculos de Paula quer se inscrever no rol de obras que discutem ideias e que

provoquem mais dúvidas no leitor.

L

Mistério ou enigma? “Decifra-me ou te devoro”. Passei por mais uma etapa da

minha dissertação com a qualificação do mestrado, que consiste na análise, por parte de

outros professores doutores, do projeto e das primeiras páginas da dissertação, que nesse

caso são formadas por estas notas e o romance em processo. Um dos professores, que é

também escritor, Sérgio Schaefer, fez uma leitura atenta e iniciou questionando o tema,

mais precisamente sobre a menção ao mistério da criação. “Se é mistério, não pode ser

solucionado”, disse ele. “Que tal enigma?”, propôs.

Conhecer. Esfinge. Quero conhecer o que estou fazendo. Para conhecer, preciso

escrever. Para escrever, preciso conhecer. Nesse ponto entram as contribuições da

professora e doutora em Letras Eunice Piazza Gai, que frisou a necessidade de adensar

mais a parte teórica dessas notas, pois se trata de um trabalho acadêmico, e de dar

relevância aos aspectos do conhecimento e da cognição, objetos de pesquisa do mestrado.

O professor Sérgio Schaefer observou também sobre a possibilidade de se trabalhar

o suicídio não só numa perspectiva filosófica e literária, mas também na psicológica.

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"Tornar-me um outro dentro de mim mesmo, eliminar o que antes me dominava”, são

perspectivas de tratar do suicídio no romance, o que já está sendo feito.

LI

A notícia de que terei meu primeiro livro publicado me enche de orgulho e me

proporciona mais disposição para escrever o romance. A sensação inicial de fracasso,

exposta na nota V, afasta-se da minha visão, em que pese um pessimismo crônico que é

parte indissociável da minha personalidade. Publicada a obra, posso me considerar um

escritor?

LII

Autran Dourado tem o seu “Mestre Imaginário”. Osman Lins tem o “Willy

Mapou”, ou simplesmente “WM”. Com esses interlocutores, ambos dialogam sobre o

trabalho literário. A reflexão teórica mistura-se com a ficção. Para Lins (1974, p.24), é um

“recurso banal, mas com a função de tornar menos árido o escrito, tanto para o leitor assim

como para o autor, que, afeito a exercícios de imaginação e aqui sofrendo a ascendência

das ideias, quer, com o artifício, amenizar sua tarefa”. Estas notas confessionais têm um

interlocutor real, chamado aqui de “o orientador”, professor do mestrado.

LIII

Cheguei a uma parte do romance crucial para o desenvolvimento da narrativa. Até

agora, as personagens estão na defensiva. O conflito não começou propriamente. Isso é

criticado pelo orientador, pois ele quer ver os personagens não mais interagindo apenas no

mundo virtual, mas se encontrando no mundo real e, da mesma forma, sugere que as outras

personagens envolvidas interfiram.

O orientador também critica o ar professoral da personagem Fred, pois estaria

havendo uma contradição em relação a algumas dessas notas de criação, que propõe uma

narrativa que almeja um leitor ideal, inteligente, que complete os espaços da história, o que

está oculto, ou então que costure os fragmentos aparentemente desconexos. Respondo que

os textos do Fred, tanto seus discursos quando foi estudante de Letras quanto às postagens

do blogue, têm como função caracterizar a personagem e produzir indícios do que pode vir

a acontecer no enredo. Além disso, o texto de internet, se deseja atingir um número maior

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de leitores, precisa ser o mais explicativo possível sem, no entanto, deixar de tratar de

temas relevantes.

Recebi do meu orientador o Breve manual de estilo e romance, de Autran Dourado,

em cujas primeiras páginas há um conselho que poderia depor contra ele mesmo: "Só

aceite opinião de quem sabe fazer bem e já fez um bom texto literário." (DOURADO,

2009, p.8). Teria escrito o professor algum bom romance? Se não, como poderia ele opinar

sobre minha obra? Ou estaria errado o mestre autor de Ópera dos mortos? O orientador já

publicou trabalhos literários em revistas. Não é isso, porém, que me faria aceitar seus

conselhos e sim sua condição de leitor com uma enorme bagagem de leitura, o que lhe

permite discernir a boa da má literatura. As intervenções do orientador, lógico, são bem-

vindas, pois está cumprindo o papel do leitor ideal.

LIV

O autor de Ópera dos mortos disse em entrevista certa vez “que as coisas mais

importantes, para os criadores [grifo do autor], sobre romance, foram ditas por

romancistas, e as coisas mais importantes sobre poesia foram ditas por poetas”

(DOURADO, 1976, p.13). Não por acaso, nas presentes notas, são os romancistas que

aparecem mais vezes citados. Além de saberem como se faz, eles mesmos o fazem. Os

críticos e teóricos apenas sabem, mas não fazem.

Autran Dourado proporciona uma visão dos mecanismos internos da mesma

maneira como eu gostaria de tratar com relação à criação romanesca, não só pela leitura

criteriosa que faço de sua obra, mas também pelas suas reflexões publicadas em livro. A

ideia de dividir Os óculos de Paula em blocos tem como subsídio teórico o volume Poética

do romance: matéria de carpintaria. Escrevendo sobre o processo de criação do seu

romance O risco do bordado, Dourado afirma que o “livro é formado de blocos, como

pedras de um dominó. Um dominó de pedras de tamanhos diferentes” (1976, p.51). A

partir de uma imagem da planta baixa do seu livro, como se estivesse planejando a

construção de uma casa, visualizei como seria a do meu romance.

Em Os óculos de Paula, há o bloco do presente, outro do passado e um do escritor.

Os dois primeiros são compostos por pequenos tijolos, capítulos curtos, que têm ora um

narrador em 3ª pessoa focado em Paula, ora textos inteiros ou fragmentos de escritos de

Fred no seu blogue, além de suas falas ou discursos em grupos de amigos e em sala de

aula. São, por conseguinte, em 1ª pessoa. O bloco do escritor aparece em pautas separadas

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e destacadas com fonte em itálico. Para o leitor pode ser um momento para refletir sobre o

que está lendo.

Sobre os capítulos referentes a Fred, muitos textos aparentemente podem não

corresponder ao enredo, porém são essenciais não só para caracterizar a personagem, como

também fornecer indícios para compreender o desdobramento do enredo. Como os

capítulos prescindíveis de Rayuela, de Julio Cortázar, eles na verdade são indispensáveis.

LV

Nesse tipo de construção, a obra deixa de ser apenas uma sequência de fragmentos.

Estes formam uma totalidade que foi apenas fragmentada e disposta de uma maneira

diferente. O leitor vai conhecendo as personagens aos poucos, como as pessoas na vida

real: só as conhecemos depois de anos de convívio:

O romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza. (CÂNDIDO, 1981, p.58).

Paula e Fred se conheceram e se relacionaram durante uma fragmento de suas

vidas. Ao se reecontrarem, anos depois, o envolvimento deles também terá que ser

fragmentado, pois ambos possuem família e seus econtros são furtivos, em espaços

pequenos de uma manhã, em fatias de tempo na internet, em curtas ligações via telefone

celular. Os capítulos curtos denotam essa convivência fragmentária, que aparece também

nas inserções de Fred no mundo virtual, cuja escrita é limitada, por exemplo, nos 140

caracteres do twitter. Para o leitor, a fragmentação pode ter relevância: “Quebrar um texto

longo em unidades menores pode gerar vários efeitos. É como se a narrativa e o leitor

ganhassem um tempo para respirar entre uma parte e outra.” (LODGE, 2009, p.172).

LVI

Os capítulos aparentemente soltos, por não estarem numerados, aparecerem em

páginas separadas e com fonte em itálico, correspondem a intervenções do escritor. Não

está ainda decidido quem ele realmente é. Pode ser, em princípio, o autor da história e

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também uma das personagens. Faz parte, portanto, da narrativa, e suas entradas reforçam o

caráter metaficcional que desejo imprimir ao romance, visto que a personagem Fred

também começa a refletir sobre um livro que começa a escrever, assim como existem as

reflexões das leituras de Paula e do próprio Fred.

“Metaficção é a ficção que versa sobre si mesma: romances e contos que chamam a

atenção para o status ficcional e o método usado em sua escritura.” (LODGE, 2009, p.213.)

Essas discussões sobre literatura aparecem de forma mais teórica nestas notas, porém, no

romance, acabam fazendo com o que leitor questione sobre a obra que está lendo, quem a

escreveu ou poderia tê-la escrito, para ser surpreendido após a revelação. Da mesma forma,

o leitor se vê mais presente dentro do livro, pois se sente cúmplice da escrita da obra. Para

Osman Lins (1974, p.152), o leitor, de certa forma, também é elaborado pelo escritor.

Esse leitor (não simples reflexo ou desdobramento do escritor), fruto da inteligência, da sensibilidade, do caráter, da concepção que tem o escritor do ofício e do mundo, é contemporâneo da gestação da obra; não nomeado, nela está presente, participa de sua natureza.

LVII

Quando afirmo que ainda não sei de nada sobre o andamanto da narrativa, é porque

o processo da minha criação se filia ao que Osman Lins chama de escritos de bordejar, que

se contrapõe aos cursivos:

Os chamados de bordejar são aqueles dos quais bem pouco sabe o escritor ao empreendê-los e ao longo dos quais, arduamente, avança e descobre, revela-se, devassa territórios que desconhecia, podendo suceder-lhe, durante a realização da obra, chegar a evidências e surpresas que lhe ameaçam os alicerces da vida. (LINS, 1974, p.19).

Não sei exatamente como tudo vai terminar. Não tenho um projeto fechado.

Procuro ir palmo a palmo, como se tivesse vivendo as ações junto com as personagens.

LVIII

Foi lançado meu primeiro livro, Arranhões e outras feridas. Com ele, posso dizer

que não sou mais um escritor inédito, apesar de ser ainda um aprendiz na arte de narrar.

Num dos contos, “Ônibus”, exercito um processo em que os meus textos dialogam

entre si. Uma das persongens é um escritor que imagina histórias para os passageiros de

um ônibus urbano. Em uma delas, ele imagina um passageiro, leitor que deseja conhecer

toda a obra desse mesmo escritor, apesar de não ter gostado do primeiro livro que leu: “Ao

meu lado, um senhor lê um livro. Tento espiar o título. Não, não é nenhum meu. Mas ele já

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leu Os óculos de Paula e não gostou.” (PETRY, 2012, p.13.) Como se pode perceber, o

escritor é autor de um livro com o mesmo título do romance que é objeto de estudo destas

notas. Ou, melhor dizendo, ele cria uma história em que ele é autor de um romance: “Atrás

deles, há um homem de trinta e três anos, que não só leu Os óculos de Paula, como foi ele

próprio quem o escreveu.”

Foi nesse conto que surgiu o título do romance que estou escrevendo, conforme a

nota IV. Somente o título. As ideias para o desenvolvimento do romance foram surgindo

bem depois da conclusão do conto. E para completar esta relação intratextual na minha

obra, o escritor dos capítulos em itálico do romance ora em produção é autor de um livro

intitulado Arranhões e outras feridas.

LIX

O que move a narrativa é o conflito. Para Koch (2008, p. 98), “o conflito – isto é,

algum embate a ser resolvido entre as pessoas – é a única coisa que nos faz perguntar: O

que vai acontecer? O leitor que não se interessar por isso não vai se interessar pela leitura,

e ponto final” (grifos da autora). Em Os óculos de Paula, a expectativa do leitor deve

relacionar-se ao envolvimento dos protagonistas, se vão levar adiante o caso amoroso, se o

marido dela ou a esposa dele irão descobrir. As ideias discutidas durante o enredo também

são conflitos em que se busca uma solução: Paula irá adiante com suas indagações

metafísicas? Fred continuará pensando no suicídio somente no seu aspecto teórico? São

esses os suspenses que buscam prender o leitor na história. Ao mesmo tempo, porém,

pretendo provocar reflexão, incomodar quem está lendo, pois minha ideia de obra de arte

segue nesse sentido.

LX.

Uma das preocupações na elaboração do romance Os óculos de Paula é o tempo da

narrativa. A história se passa na maioria das vezes no espaço temporal relativo ao

reencontro da Paula e do Fred. Também é narrado um passado comum aos dois, quando

namoravam na faculdade, e o passado da infância, com fragmentos da vida de cada um.

Busquei não marcar os planos no tempo verbal. Todos estão no pretérito. O contexto vai

revelar ao leitor sobre que época se refere o que se está lendo. Há ainda o plano do escritor,

que, por sua vez, está no presente.

O pretérito perfeito, o imperfeito e o mais-que-perfeito indicam, pelo distanciamento e pelo curso livre que imprimem à linguagem, que estamos

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contando ou narrando. Configuram, por conseguinte, uma situação de locução narrativa, ao contrário do presente, do passado composto e do futuro, que configuram uma situação de locução discursiva, de comentário. (NUNES, 1988, p. 39-40, grifos do autor).

São as analepses ou flashbacks que nos indicam algumas características das

personagens ou o que pode ocorrer no enredo:

As potencialidades operatórias do conceito de analepse têm que ver não só com as funções que ela desempenha no corpo da narrativa, mas também com a possibilidade de se descortinarem conexões estreitas entre essas funções e as linhas de força temáticas e ideológicas que informam o relato. (REIS & LOPES, 1988, p.231).

David Lodge chama o recurso de manipulação temporal. Para ele, “a mudança do

foco narrativo para um acontecimento passado é capaz de mudar nossa interpretação de um

evento que acontece muito mais tarde na cronologia da história mas que, como leitores do

texto, já conhecemos” (2009, p.84). O que aconteceu com as personagens no passado pode

explicar suas ações no presente. Por que Fred se tornou ateu? Por que ele se preocupa tanto

com o tema do suicídio? Por que Paula é insegura nas suas escolhas e se baseia muito na

opinião das outras pessoas?

LXI.

Já escolhi, dentre as possibilidades que tinha, o final da história. Escrevi um esboço

das dez últimas páginas. Já sei aonde tenho que chegar, mas ainda falta muito para atingir

um número considerável de laudas para que possa chamar Os óculos de Paula de romance.

Não digo que passo por um bloqueio criativo, mas estou numa fase da história em

que não consigo pôr no papel o que tenho em mente ou anotado nas folhas de um caderno

de capa azul, fragmentos soltos cujos motivos pelos quais anotei eu não lembro mais. O

prazo é o maior motivador e desmotivador ao mesmo tempo. Sempre que sinto a

aproximação da data da entrega, acabo sempre conseguindo concluir meus projetos de

escrita. Por outro lado, o prazo retira do texto uma qualidade maior que ele poderia ter.

LXII.

Uma mudança no romance. A primeira, o uso do pronome de tratamento “você” no

lugar da segunda pessoa “tu”, mesmo nos diálogos entre Fred e Paula. Um motivo é deixar

a narrativa menos regionalizada; o outro é não usar a inevitável mistura de tratamento, que

deixa o texto muito pobre gramaticalmente.

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Vargas Llosa (2006, p.59) escreveu que o narrador, um ser fictício como a

personagem, é o elemento narrativo mais importante,

porque a maneira como age – mostrando-se ou se escondendo, atrasando-se ou saindo em disparada, sendo explícito ou evasivo, falastrão ou taciturno, brincalhão ou sério – determina se os outros personagens irão nos convencer da sua verdade ou nos impedir de crer nela, levando-nos a vê-los como marionetes ou caricaturas.

Pensei num narrador que, ao mesmo tempo em que focasse em Paula – um narrador

em 3ª pessoa parcial, portanto –, soubesse de aspectos da história além dos relacionados a

essa personagem apenas. Ele sabe, mas omite, ou melhor, sugere, deixando um suspense ao

final dos curtos capítulos e, quando dá a voz ao Fred, ele se esconde ou sai em disparada

como escreveu Llosa, pois deixa a personagem expor seus pontos de vista sem o filtro do

narrador.

LXIII.

Relendo a obra do Rubem Fonseca, percebo que há uma influência do autor na

minha escrita, mas não a que comumente influencia os demais escritores, que é o tema da

violência urbana, mas sim com relação às citações às vezes enciclopédicas outras vezes

literárias, principalmente as que aparecem na fala de personagens. O orientador já havia se

referido a esse ar professoral do Fred como um possível problema na narrativa, mas

permaneci firme no propósito, pois tinha a ideia de revelar traços da personalidade da

personagem através de seus discursos em rodas de amigo ou nas postagens do blogue.

As divagações enciclopédicas e literárias servem para, além de dar indícios do que

pode acontecer, retardar a narrativa. Escrevi há pouco um capítulo em que Fred discorre

sobre esse assunto depois de ler um livro do autor de Bufo & Spallanzani. Tenho em mente

dar indícios ao leitor, que podem ser falsos, de que Fred é “o escritor” que aparece na

história, apesar de este escritor, na sua última aparição, ter insinuado que seria, na verdade,

o marido de Paula. Desejo manter esse suspense até o desfecho da narrativa, que já está

delineado.

Quem narra a história? É a pergunta que ainda quero deixar sem resposta para o

leitor. É uma espécie de “narrador não-confiável”, na acepção de David Lodge (2009,

p.163), com o objetivo de “revelar a lacuna entre as aparências e a realidade e mostrar

como os seres humanos distorcem e ocultam essa última”. O narrador é uma das

personagens, mas conta a história sobre o seu ponto de vista, no caso, a favor da ficção:

“Assim como no mundo real, precisamos ter alguma forma de distinguir a verdade da

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mentira do mundo imaginário do romance para que a história desperte nosso interesse.”

(LODGE, 2009, p.163).

LXIV.

A narrativa se encaminha para o clímax. Ela seguiu um determinado ritmo, criou

alguns conflitos. Agora, porém, precisa crescer e provocar um momento de maior tensão

que deve se manter até o desfecho que, pretendo, surpreenda o leitor. David Lodge (2009,

p.80) escreve que a “maioria das narrativas traz um elemento de surpresa. Se conseguimos

prever todas as reviravoltas de uma determinada trama, é muito improvável que ela nos

cative. Mas, além de convincentes, as reviravoltas precisam ser inesperadas.”

As reflexões de Fred com relação ao suicídio são indícios do que vai acontecer,

porém, quem vai cometer o suicídio deve ser uma incógnita para o leitor, assim como

quem está narrando a história. Para Forster (1970, p.70), o “mistério é essencial para um

enredo e não pode ser apreciado sem inteligência [...]. Para apreciar um mistério, parte da

mente deve ser deixada para trás, matutando, enquanto que a outra parte deve prosseguir

seu caminho”.

Para representar o clímax, decidi narrar com mais detalhes uma cena de sexo entre

Paula e Fred. A relação sexual é uma espécie de narrativa, com seu início lento, que vai

crescendo até atingir o orgasmo, que é o clímax. Antes de chegar a esse momento máximo

com Fred, Paula é interrompida por uma ligação que incidirá no desfecho da história, na

verdade o falso final.

LXV.

É preciso terminar a narrativa. Um final foi escrito, porém a história não terminou:

Talvez devêssemos distinguir entre o fim da história de um romance – a resolução ou a não-resolução deliberada das questões narrativas levantadas na mente do leitor – e a última ou as últimas páginas do texto, que muitas vezes funcionam como uma espécie de epílogo ou post-scriptum, uma desaceleração suave do discurso antes da parada final. (LODGE, 2009, p. 231).

As páginas derradeiras correspondem mais do que um retardamento. Na verdade,

há um novo elemento que fecha o enredo, mas que proporciona uma nova leitura. Há uma

ficção dentro de outra ficção e tudo que aparecera até agora resulta em novo significado e o

final, por sua vez, fica aberto para interpretações. Surge um conflito que vai ficar sem

solução, salvo na mente do leitor.

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O conto ou o romance não chegam ao seu término quando você acaba de contar a história real ou a que você ouviu ou viveu. A história se conclui quando o leitor recebe todas as informações fundamentais e poderá surpreender-se, refletir e tirar suas próprias conclusões. (Koch, 2008, p. 33).

Claro que, na minha concepção, essas informações fundamentais não devem ser

explícitas e, sim, devem possibilitar ao leitor a sua interpretação.

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NOTA FINAL

Li muito nos últimos meses sobre técnicas literárias para produzir esse trabalho. O

que não está nessas notas é porque não foi útil para a elaboração do romance, pelo menos

conscientemente: “É o feeling, em suma, [...] que dá ao escritor o ritmo das frases, a

extensão dos episódios, as proporções dos elementos que se alternam, de modo que os

diálogos deem lugar a uma descrição, um resumo da narrativa, ou uma ação concreta.”

(GARDNER, 1997, p.20). Algumas escolhas no processo se deram em virtude não do que

os teóricos me diziam, mas do que eu como leitor pensava que era melhor, tendo em vista

as centenas de romances que já li.

Busquei refletir sobre o processo de criação de uma forma que pode ser resumida

nessas palavras de Milan Kundera (2005, p.17): "Uma teoria ágil e prazerosa; assim é

como teoriza um romancista: conservando a sua própria linguagem com ciúme, fugindo do

jargão dos eruditos." Ao mesmo tempo em que precisava escrever um trabalho acadêmico,

a escrita não poderia destoar da própria narrativa. Logo, as reflexões são de um escritor,

não de um teórico, mas um escritor que precisava teorizar e se utilizar de teóricos para

refletir. Foi esse círculo urobórico que procurei seguir, sabendo que correria o risco de

engolir a própria cauda.

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