Maalouf - Identidades

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Filipa I. Albuquerque Maalouf : Das identidades assassinas a um novo diálogo entre as culturas ou como alguns títulos prometem muito Ensaio apresentado à Escola Superior de Teatro e Cinema no âmbito do Seminário de Identidades do Curso de Mestrado em Teatro e Comunidade 2009

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Uma reflexão sobre um texto de Maalouf, realizada para o seminário "Identidades" do Mestrado em Teatro e Comunidade da Escola Superior de Teatro e Cinema - Lisboa

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Filipa I. Albuquerque

Maalouf :

Das identidades assassinas a um novo diálogo entre as culturas

ou como alguns títulos prometem muito

Ensaio apresentado à Escola Superior de Teatro e Cinema no âmbito do Seminário de Identidades do Curso de Mestrado em Teatro e Comunidade

2009

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“O Oriente e o Ocidente pertencem a Deus. Para onde quer que se voltem os vossos olhos, eles encontrarão sempre a face de Deus, pois Deus é imenso e sapiente.” (Alcorão, II, 109)

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1. No início tínhamos que analisar e comentar duas páginas de As Identidades Assassinas de Amin Maalouf. Que se compreendem melhor se analisarmos todo o livro. Nem podia ser de outra maneira. Porém, o problema da identidade tem uma génese. E por aí também fomos, mesmo correndo o risco de estarmos a ceder a essa tentação de ver nos Gregos o início de tudo. Que não é mais tendenciosa que a inclinação para descobrir no Oriente, de cores hippies, a solução para o deprimido homem ocidental a viver na selva das cidades. Fomos, sem ligar a estes avisos, perceber melhor Heraclito e Platão. O obscuro Heraclito e o luminoso e etéreo Platão. E depois a solução hegeliana. A superação hegeliana (Aufhebung). Aos poucos, clarifica-se o problema e abre-se o horizonte a novas questões. Adensa-se o céu das ideias. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as leituras: Steiner, Giddens, Said, Savater, Finkielkraut. Depenicam-se os textos que o menu é extenso e escasso o tempo. Alguns servir-se-ão mais tarde: Castells, Slavoj ŽiŽek, Chomsky, Negri. Este deambular ía sendo vertido num diário de viagem, um relato fragmentário dessa errância. Este escrito é um pouco isso, um pouco mais que isso por respeito às exigências académicas. Mas reconhecemos que o estilo ficou sacrificado. Se é verdade que o estilo é o homem, então a mulher não se deveria sacrificar ao estilo. No entanto, optámos por um texto que reflecte a viagem errática da reflexão, as suas hesitações, os seus momentos mais inspirados e luminosos, os seus becos sem saída que terminam abruptamente, as considerações intempestivas. No fim, a sensação de algo que não ficou completo, mas a fundamental vontade de prosseguir um caminho que aparece agora tão-só vislumbrado.

2. Existe uma reacção contra a mundialização, vista como um flagelo, sem no entanto se reagir do mesmo modo contra os aspectos concretos de que se reveste esse processo, como sejam a evolução da própria aldeia planetária (aldeia global), a Internet ou a evolução das comunicações.

3. A reacção contra a mundialização dá-se pressupondo uma identidade entre mundialização e americanização e, neste contexto, levantam-se questões sobre a identidade cultural da França perante esse processo de uniformização.

4. Maalouf constata, deste modo, que num país ocidental culturalmente evoluído, há quem desconfie da modernização / mundialização, vista como um instrumento camuflado para a dominação duma cultura estrangeira.

5. Daqui Maalouf parte para sublinhar outro aspecto essencial: o sentimento milenar dos povos não-ocidentais de negação de si próprios e de capitulação da sua cultura em muitas dimensões: medicina, arte militar, literatura, religião, língua, perante a cultura ocidental que, ao longo dos tempos, se apresentou como superior.

6. Este sentimento facilmente conduziu a uma personalidade ressentida, resultado duma identidade ameaçada, dum sentimento de orfandade, sentindo-se estranhos e intrusos no mundo.

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7. Este sentimento pode ser ilustrado com a reacção de alguns franceses perante a mundialização, vista como uma forma de americanização, um cenário subtil onde entraria o mortífero “Cavalo de Tróia”.

8. É assim que a modernização ou qualquer esforço de modernização se torna suspeito quando se desconfia tratar-se do “Cavalo de Tróia” duma cultura dominadora (ou aspirando a isso).

9. Podíamos distinguir mundialização e globalização. Segundo DOLFUSS (1998: 12), “a mundialização é o intercâmbio generalizado entre as diferentes partes do planeta, sendo então o espaço mundial espaço de transacção da humanidade”. A globalização, corresponderia a um último estado deste processo de mundialização, alcançado graças à instantaneidade da informação e que vê surgir um forte e tentacular sistema financeiro que se autonomizou e controla a economia (DOLFUSS, 1998:13). Segundo GIDDENS, (2007: 52), a globalização corresponde ao “facto de viermos cada vez mais num «único mundo», pois os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdependentes.” Este processo de globalização conduz ao esboroar dos quadros tradicionais de referência para a construção da identidade dos indivíduos. A nível cultural, muitos são os que manifestam a sua preocupação pelo facto da globalização levar à criação duma cultura global, comandada a partir de Hollywood, pelo que “a globalização é uma forma de «imperialismo cultural», em que os valores, os estilos e as perspectivas ocidentais são divulgados de modo tão agressivo que suprimem as outras culturas nacionais” (GIDDENS, 2007: 64). No entanto, outros autores apontam para uma consequência diferente, mesmo oposta: a de uma crescente diferenciação das identidades culturais que daria lugar à coexistência da diversidade de culturas. Esta situação daria lugar a novas formas de identidade híbrida, um estilo eclético, apontando para composições oriundas de diversas culturas tradicionais (GIDDENS, 2007: 65).

10. O que está em jogo é a questão da identidade; o confronto entre as culturas deve analisar-se começando-se por se esclarecer o que caracteriza a identidade própria de cada um dos elementos em presença e em (eventual) confronto.

11. O sentimento dos povos não-ocidentais não é, assim, tão bizarro quando algo de parecido se passa com os franceses que mesmo protagonizando uma cultura evoluída, amadurecida, universalmente reconhecida, temem a mundialização, por verem nos elementos em que ela se concretiza, elementos dum “Cavalo de Tróia” que alberga num processo de americanização.

12. Se em termos do nosso ADN somos, sem dúvida, uma única espécie cuja origem remonta a África; se as diferenças que associamos às identidades raciais são superficiais (debaixo da pele somos todos muito idênticos); se as diferentes “raças” têm vindo a cruzar-se entre si desde tempos imemoriais; donde haja quem afirme que não existem raças ou estão em vias de extinção. Donde também resulta este “enigma central”: como se pode explicar a tendência dos grupos de homens a identificarem-se mutuamente como estranhos, quando são

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todos biologicamente tão semelhantes? É que esta tendência esteve na origem de muitos dos piores acontecimentos de violência no século XX.

13. Existem identidades assassinas. O exacerbar das identidades e o absolutizar das diferenças conduz ao comportamento ressentido, à mentalidade do agredido. À formação de dois campos opostos que se acusam mutuamente. A mundialização exacerba os comportamentos identitários (MAALOUF, 2002:133), pode desencadear reacções suicidárias (MAALOUF, 2002: 133-134), mas contém em si os instrumentos para uma saída. Como veremos.

14. “Nada há de bárbaro e de selvagem nesta nação, segundo me relataram, a não ser que cada um chame barbárie ao que não é seu hábito; como por certo parece que não temos outra mira da verdade e da razão além do exemplo e da ideia das opiniões e usanças do país donde somos. Aí está sempre a perfeita religião, a perfeita polícia, o perfeito e consumado uso de todas as coisas.” (Montaigne, Éssais, Paris, Gallimard, p. 203) O bárbaro apenas existe para aquele que se toma a si mesmo como norma perfeita e de referência a partir da qual se acha no direito de julgar os outros. O olhar que, exageradamente, se auto-contempla é também o olhar que exclui o outro do seu campo (de visão). Porém, não podemos excluir ninguém da missão de acolher o outro, de nos desenvolvermos como rede, enquanto nós.”Porque é o nosso olhar que aprisiona muitas vezes os outros nas suas pertenças mais estreitas e é também o nosso olhar que tem o poder de os libertar.” (MAALOUF, 2002: 31).

15. O problema da identidade vem até nós desde os Gregos. O problema sobre o que é ou o que faz ser, o problema do ser enquanto ser fundou em Aristóteles um conjunto de preocupações fundantes que a tradição arrumou numa disciplina designada precisamente como ontologia. Mas já antes, nos pensadores pré-socráticos, se colocava o problema da identidade. O célebre aforismo do obscuro Heraclito, nunca te banharás duas vezes no mesmo rio, enunciava as dificuldades que se encerram por detrás da impermanência do real: o rio nunca é o mesmo, nunca é idêntico a si próprio; quando se entra no rio pela segunda vez, o rio já não é o mesmo. Porém, seguindo este pressuposto de Heraclito de que tudo flui, ninguém se banhará duas vezes no mesmo rio, porque também o sujeito que nele entra nunca é o mesmo. Num real onde tudo está sujeito à mudança, nada permanece idêntico. O problema que assim é formulado, encontra uma primeira solução em Platão: não se podendo fazer conhecimento certo e seguro duma realidade que flui, que é e não é, uma mistura de ser e não-ser, então há que postular uma realidade imóvel, perfeita por isso, cuja contemplação proporcionará um conhecimento verdadeiro. É assim que o reino das Ideias surge como instância reitora do real, mundo das identidades perfeitas, porque imóveis, puras, sem mistura. Do mesmo modo que a cultura filosófica ocidental nada mais é, segundo alguns, que o comentário dos textos de Platão, também podemos afirmar que a colocação do problema da identidade em Platão, acabará por marcar o destino do conceito. Com efeito, teremos que esperar por Hegel para que uma outra maneira de entender a identidade seja decisiva para a

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reflexão sobre o problema. De qualquer modo, a relação íntima entre a identidade, a imobilidade e a verdade nunca se perderá.

16. Para Hegel, a identidade será vista dialecticamente, isto é, enquanto processo que contém em si momentos contraditórios entre e de cuja luta antagónica resulta o próprio movimento que constrói essa identidade. Assim, a identidade é definida como unidade da identidade e da diferença. Para Hegel, o rio é e não é o mesmo. Visto sob o ponto de vista do instante, de um momento no processo, o rio não é o mesmo; visto sob um ponto de vista totalizador, visto o rio como uma totalidade que engloba todos os seus momentos, o rio é o mesmo. A identidade não é um momento fixo ou fixado, o resultado de um instante à maneira de um retrato. A identidade é um processo em que a identidade se constitui pela mediação de todos os momentos, mesmo antagónicos. Na sua concreção é a unidade de todas as determinações, presentes, passadas e futuras. A identidade do rio é feita de todos os momentos em que outras e outras águas nele correm. Os vários aspectos que o rio assume no seu processo identitário concorrem para a construção da sua identidade. Hegel contribui, pois, para a superação duma visão imobilista e imobilizadora da identidade. Se referimos aqui a perspectiva do grande filósofo alemão é sobretudo porque a sua conceptualização confere-nos instrumentos interessantes para tematizar, compreender e apresentar saídas (soluções seria exagerado) para a questão da identidade no contexto da mundialização / globalização.

17. E também convocamos para este curto trabalho a conceptualização hegeliana após o impasse inicial em Heraclito e Platão, porque poderão não só constituir o enquadramento mais interessante para pensar o problema, como pensamos que esta conceptualização não está afastada daqueles que pensam as actuais perplexidades com que o pensar da identidade enfrenta. As referências iniciais de Maalouf em As Identidades Assassinas também parecem comungar desta conceptualização dialéctica. Desde logo, porque Maalouf entende que a identidade se compõe dos diversos elementos que a moldaram (ou vão moldando) (MAALOUF, 2002: 10), pelo que se trata de uma palavra (conceito, categoria) “falsamente límpida”. Esta falsa clareza forjar-se-ia à custa da eliminação/afastamento da multiplicidade de elementos que devem compor a identidade e a sua compreensão. Por isso, essa concepção de uma identidade que se reduz a uma única pertença representa uma visão empobrecedora da identidade: uma identidade parcial e sectária. Desse modo, duma concepção exclusivista da identidade somos conduzidos a uma posição intolerante e que está por detrás das identidades assassinas. É essa a concepção que Maalouf denuncia ao longo do livro (MAALOUF, 2002: 41). Pelo contrário, se partirmos duma identidade feita de pertenças múltiplas deixará de haver um «nós» e um «eles», dois exércitos. A identidade que era uma aspiração legítima, transforma-se num instrumento de guerra (MAALOUF, 2002: 43). Ora, nesta era da mundialização, impõe-se, por isso, uma nova concepção da identidade,

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precisamente, julgamos nós, uma concepção dialéctica da identidade, a que afirma e engloba a multiplicidade das suas pertenças.

18. Perante este cenário, o que há a fazer será encorajar cada um “a assumir as suas pertenças múltiplas”; pois se não puder conciliar a sua necessidade de identidade com uma abertura clara e descomplexada a culturas diferentes, se se sentir constrangido a escolher entre a negação de si mesmos e a negação do outro, “estaremos a formar legiões de loucos sanguinários, legiões de alucinados” (MAALOUF, 2002: 46).

19. Não dramatizemos os conflitos entre os homens ao ponto de descrermos da Humanidade. A ideia de Humanidade é relativamente tardia, pois durante muitos séculos os homens não se reconheceram entre si como pertencendo a uma única espécie, a uma única Humanidade. “A ideia de que todos os povos do mundo formam uma única Humanidade não é, em boa verdade, consubstancial ao género humano.” (A. FINKIELKRAUT, 1996: 11). Durante muitos séculos, a Humanidade cessava nas fronteiras do espaço que habitávamos: espaço geográfico (a aldeia), social (a tribo) ou cultural (o grupo linguístico). Fora do nosso espaço é o mundo dos outros, uma no man’s land, e os outros são os bárbaros, a quem falta definição antropológica e mesmo densidade ontológica: “É frequente irem ao ponto de privar o estrangeiro deste último grau de realidade fazendo dele um ‘fantasma’ ou uma ‘aparição’” (A. FINKIELKRAUT, 1996: 12). Ora, como conclui com perspicácia FINKIELKRAUT, ao recusar-se aos outros, apesar da evidente semelhança física, o estatuto de homem, esse facto significa que a fundamentação da condição humana só pode assentar noutro plano que não o biológico: “É preciso ainda viver de acordo com uma tradição decidida e ditada pelos deuses.” (A. FINKIELKRAUT, 1996: 12).

20. Deste modo, as tensões identitárias sempre estiveram presentes na história das sociedades humanas. Se o homem actual está remetido, em grande medida para a condição de migrantes e minoritários (Hannah ARENDT afirmará que a figura do deslocado resumirá em grande medida a condição do homem contemporâneo), então acaba por constantemente se ver envolvido e atormentado por questões identitárias, vivendo sentimentos ambíguos e contraditórios em relação à pátria de acolhimento.

21. O que é a mundialização / globalização? O que é, dialecticamente, a mundialização / globalização? Dialecticamente, como já vimos, significa que estamos diante de um processo, uma identidade que se constrói através dum processo que é em si mesmo dialéctico, que contém em si diversos momentos, alguns contraditórios entre si e em si, e que se sucedem uns aos outros. A totalidade (dialéctica) desses aspectos ou determinações constitui a identidade da mundialização /globalização, o que esta é, ou melhor, vai sendo. Porque é um conjunto de determinações rumo à sua concreção (o concreto é a unidade de todas as determinações, por oposição ao abstracto). Nesse sentido, nesse processo, uniformização e dissonância, universalidade e particularidade, global e

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local, constituem aspectos e momentos diferenciados duma realidade que se vai constituindo dialecticamente.

22. Mas as coisas não são assim tão claras e fáceis. Os textos e os trabalhos e a investigação são sempre polifónicos. Juntemos mais uma voz, mais um instrumento. “O multiculturalismo promovido internamente ameaça os Estados Unidos e o Ocidente; o universalismo promovido no estrangeiro ameaça o Ocidente e o mundo. Estas duas tendências negam o carácter único da cultura ocidental. Os monoculturalistas globais querem fazer o mundo à semelhança da América. Os multiculturalistas domésticos querem fazer a América à semelhança do mundo. A América multicultural é impossível porque a América não ocidental não é americana. Um mundo multicultural é inevitável porque um império mundial é impossível. A preservação dos Estados Unidos e do Ocidente requer a renovação da identidade ocidental. A segurança do mundo exige a aceitação de um mundo multicultural.” (Samuel HUNTINGTON, cit. in SOROMENHO-MARQUES, 2008: 64)

23. O multiculturalismo e o universalismo podem ser erigidos em pólos inflexíveis de uma relação que pode ser perspectivada enquanto choque/guerra de civilizações e, assim, acrescentar-se às justificações (desculpas de mau-pagador) daqueles que tomaram a iniciativa de partir para o Oriente, numa nova cruzada contra o eixo do mal. A absolutização daquelas posições irá sempre contrariar e dificultar o necessário diálogo, vital para nos compreendermos.

24. É que o multiculturalismo pode ser o falso grau zero, a dupla negação do racismo. “O multiculturalismo é, naturalmente, a forma ideal da ideologia deste capitalismo planetário, a atitude que, de uma espécie de posição global vazia, trata cada cultura local à maneira do colono que lida com uma população colonizada – como «indígenas» cujos costumes devem ser cautelosamente estudados e «respeitados».” (ZIZEK, 2006: 72). Mais adiante, o psicanalista e filósofo esloveno chama nomes aos bois: o multiculturalismo privilegia silenciosamente um substrato eurocentrista. É o que se chama, rabo escondido com o gato de fora.

25. O multiculturalismo será, afinal, o prolongamento da desideologização, da afirmação de um espaço neutro, cinzento, a noite onde todas as vacas são pardas. O hare-krishna dos pobrezinhos, a filosofia lacto-vegetariana para a paz universal, a luta e a defesa giras duma malta engraçada que não faz mal a ninguém. Que não fazem mal a ninguém… Malta porreira, é o que é! Brecht representado na Broadway. (Uppss!...) O multiculturalismo seria uma forma de relativização de tudo, das culturas e das identidades, dos valores. Onde tudo vale tudo; todos diferentes, todos iguais. Iguais? Todos iguais? É tudo igual ao mesmo, como diz o povo? (Houve uma altura que, por dá cá aquela palha, se clamava: todos diferentes, todos iguais. Isto dito em Portugal, por portugueses, ainda com elevadas taxas de violência doméstica e com atitudes racistas, também por dá cá aquela palha, vale tanto como dizer, novidades, novidades só no continente!) Eis o reino da mesmidade, a anulação das diferenças em nome

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do Mesmo redentor, democrático, não-discriminador. O multiculturalismo pode estar a meio caminho do melting pot, das misturadas. Eis o caldo das culturas transformado numa caldeirada, a irrelevância ética chamada tolerância. Tolerância ou indiferença? Daí o perigo do multiculturalismo ambíguo. A oposição paralisante multiculturalismo / universalismo deve pois ser substituída por uma outra forma de compreender e tematizar a identidade, que assuma a sua complexidade constitutiva, assumindo todas as suas pertenças e onde a pertença à comunidade humana acabe por “se tornar um dia a pertença principal, sem por isso apagar as nossas múltiplas pertenças particulares.” (MAALOUF, 2002: 112). Um novo humanismo? Depois da morte de Deus, da morte do sujeito (e do homem), assistimos desde há algum tempo, de novo, ao seu chamamento. Vejamos melhor a posição de MAALOUF.

26. MAALOUF identifica como efeitos da mundialização, o enriquecimento e a uniformização, a universalidade e a uniformidade. Trata-se de duas realidades opostas a que a mundialização pode conduzir, que podem surgir misturadas, indiferenciadas. No entanto, a uniformidade é indesejável e a universalidade é bem-vinda (MAALOUF, 2002: 116). Em que deve, então, assentar a universalidade?

27. MAALOUF defende que “o postulado de base da universalidade é considerar que há direitos inerentes à dignidade do ser humano que ninguém deveria negar aos seus semelhantes por causa da sua religião, da sua cor, da sua nacionalidade, do seu sexo, ou por qualquer outra razão” (MAALOUF, 2002: 119). É na salvaguarda dos direitos fundamentais que deve assentar um novo universalismo que, por sua vez, afirme e defenda as várias identidades e as várias culturas. Os direitos fundamentais sobrepõem-se às crenças e às tradições (MAALOUF, 2002: 120). Este universalismo, no entanto, não poderá amordaçar as especificidades civilizacionais.

28. É à luz deste universalismo que podemos entender melhor a mundialização. A mundialização pode ser empobrecedora. Mas este movimento também tem forjado, como nunca, os instrumentos que podem defender a diversidade cultural (p. 139). Esta perspectiva dialéctica de MAALOUF estende-se à visão que apresenta da Internet (p. 140) ou à defesa do ambiente (p. 143).

29. Às identidades assassinas forjadas em concepções tribais da identidade e que ainda prevalecem, há que contrapor o diálogo entre os homens, na defesa da sua universalidade, apoiados no respeito pelos seus direitos fundamentais. Só o diálogo afasta a desconfiança, o fanatismo, os ressentimentos, as ambiguidades, a resignação. O diálogo significa abertura ao outro, colocar-se no lugar do outro, relativizar o nosso ponto de vista ao assumir o ponto de vista do outro. Olhar por onde o outro olha. Só o diálogo é democrático, só o diálogo valoriza os valores democráticos. Não há outro caminho para assumirmos de cabeça erguida a nossa identidade e a nossa diferença.

30. “Pela nossa parte, sustentamos, modestamente, uma alternativa que substitui as ambiguidades do multiculturalismo pela construção de uma esfera pública de

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convivência cosmopolita, apoiada na crescente criação de estruturas, instituições, normas jurídicas e práticas políticas que assegurem uma governação multilateral de dimensão planetária” (SOROMENHO-MARQUES, 2008: 64-65).

31. Maalouf afirma a dado passo que o mundo é de todos (MAALOUF, 2002: 138). E, acrescentamos nós, todos somos do mundo. A afirmação das nossas identidades deve evoluir para um novo cosmopolitismo. Que não dispensará o enriquecimento da democracia. Maalouf critica alguns mecanismos da democracia, nomeadamente, a sobrevalorização do número. Nem sempre as maiorias agem democraticamente. Ao mesmo tempo, Maalouf, já a terminar o seu livro, exprime as suas reservas em relação à democracia americana, que, tal como as democracias mais antigas, manteriam no seu interior “algumas inflexibilidades” (MAALOUF, 2002: 171). Nesse sentido, considera muito distante a hipótese de um negro ser eleito presidente dos Estados Unidos. É claro que podemos discutir o grau de negritude do actual inquilino da Casa Branca. Mas podemos, a partir daqui, acrescentar uma outra vantagem da democracia sobre outros regimes políticos: a sua imprevisibilidade. No entanto, desejamos que seja acertada a previsão de que o futuro da Humanidade, apesar das suas diferenças e, sobretudo, com as suas diferenças, seja mais solidário. Lisboa-Benfica, 30 de Junho de 2009 Filipa Albuquerque Nota muito marginal ou talvez não. O cardeal patriarca de Lisboa comparava a guerra do Iraque e as suas consequências a um pontapé que foi desferido numa pedra e assim despertava um ninho de vespas. A imagem pode ser sugestiva, se tivermos em conta todos os problemas que se desenvolveram a partir da guerra lançada por Bush. É inegável que a belicidade despertou e o mundo tornou-se num lugar mais perigoso e que, apesar do objectivo propagandeado de combater o terrorismo, acabou por incentivar ainda mais os jovens a procurar as soluções radicais dos fundamentalistas religiosos e a aderirem assim ao terrorismo. Sob o pretexto de combater os terroristas, fez-se surgir mais terroristas. Mais vespas. Mas a imagem também fazia pressupor a existência de um perigo adormecido (não um gigante adormecido, porque esse estaria mais ao lado), aninhado no ninho, que povoaria os nossos pesadelos, o papão do Oriente. Só que em nome do rigor deveríamos admitir que sob o Sandman existe um outro, mais real e dominador, o Oilman, o energético protagonista que se esconde sob as areias do deserto e que não tem pátria. Não é sem razão que MAALOUF afirma a propósito do que se passava na Argélia: “Bem poderíeis ler dez grossos volumes sobre a história do Islão desde as suas origens que nada compreenderíeis sobre o que se passa na Argélia. Lede 30 páginas sobre a colonização e a descolonização e compreenderíeis bem melhor o que se passa.” (MAALOUF, 2002: 78).

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Bibliografia (lidos, consultados e a ler melhor…) 1. MAALOUF, Amin, 1998, As Identidades Assassinas, Lisboa, Difel, 2002 2. CHOMSKY, Noam, Iraque – Assalto ao Médio Oriente, Lisboa, Antígona, 2003 DOLFUSS, Olivier, 1998, A Mundialização, Mem Martins, Publicações Europa-América FINKIELKRAUT, Alain, 1996, A Humanidade Perdida – Ensaio sobre o século XX, Porto, Edições ASA, 1997 GIDDENS, Anthony, 2001, Sociologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007 SAID, Edward W., Orientalismo, 1978, Orientalismo, Lisboa, Livros Cotovia, 2004 SAVATER, Fernando, 1984, Contra as Pátrias, Lisboa, Fim de Século, 2003 SOROMENHO-MARQUES, Viriato, 2008, O Regresso da América – que futuro depois do Império?, Lisboa, Esfera do Caos ZIZEK, Slavoj, 2004, Elogio da Intolerância, Lisboa, Relógio D’Água, 2006