Estratégias e identidades midiáticas

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Estratégias eIdentidades MIDIÁTICAS Matizes da Comunicação Contemporânea

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ChancelerDom Dadeus GringsReitorJoaquim ClotetVice-ReitorEvilázio Teixeira

Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de AndradeHelenita Rosa FrancoJane Rita Caetano da SilveiraJerônimo Carlos Santos BragaJorge Campos da CostaJorge Luis Nicolas Audy – PresidenteJosé Antônio Poli de FigueiredoJurandir MalerbaLauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerMaria Lúcia Tiellet NunesMarília Costa MorosiniMarlise Araújo dos SantosRenato Tetelbom SteinRené Ernaini GertzRuth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga – DiretorJorge Campos da Costa – Editor-Chefe

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Organização

Daiana STASIAKVilso Junior SANTI

Estratégias eIdentidades MIDIÁTICAS Matizes da Comunicação Contemporânea

Porto Alegre, 2011

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© EDIPUCRS, 2011

Vivian C. de Miranda

Julia Roca dos Santos

Rodrigo Valls

E82 Estratégias e identidades midiáticas : matizez da comunicação contemporânea [recurso eletrônico] / org. Daiana Stasiak, Vilso Junior Santi. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011. 156 p.

Modo de acesso: World Wide Web <HTTP://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs>

ISBN 978-85-397-0082-0

1. Comunicação Social. 2. Meios de Comunicação. 3. Mídia. 4. Identidade Cultural. I. Stasiak, Daiana. II. Santi, Vilso Junior.

CDD 301.161

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Colaboradores

Ada C. M. da SILVEIRAOrientadora. Pós-Doutora pela La Nouvelle (Sorbonne III), Doutora em Jornalis-mo pela Universidad Autónoma de Barcelona (UAB) e Docente dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Midiática e Extensão Rural da Universida-de Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

Adair PERUZZOLOOrientador. Pós-Doutor pela Universidad Autónoma de Barcelona (UAB), Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Docen-te do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

Daiana STASIAKRelações Públicas. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Fede-ral de Santa Maria (UFSM), Doutoranda em Comunicação Social pela Universi-dade de Brasília (UNB) e Professora Assistente da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia (FACOMB) da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected]

Eugenia M. M. da R. BARICHELLOOrientadora. Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comuni-cação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

Laura E. de O. FABRICIO Jornalista. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Professora do Curso de Jornalismo e Publicidade & Pro-paganda do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail: [email protected]

Luciana MIELNICZUCKOrientadora. Pós-Doutora pela Universidade de Santiago de Compostela (USC), Doutora em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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Márcia F. AMARALOrientadora. Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) E-mail: [email protected]

Mônica PIENIZRelações Públicas. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Fe-deral de Santa Maria (UFSM), Doutoranda em Comunicação e Informação e Professora substituta na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected].

Pauline N. FRAGAPublicitária. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Professora do Curso de Publicidade & Propaganda do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail: [email protected]

Vivian BELOCHIOJornalista. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Doutoranda em Comunicação e Informação pela Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

Vivian C. de MIRANDABacharel em Desenho Industrial - Programação Visual. Especialista em Arte e Visualidade e Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

Vilso Junior SANTIJornalista. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de San-ta Maria (UFSM) e Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: [email protected]

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Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universi-dade Federal de Santa Maria (POSCOM-UFSM).

Aos professores do POSCOM-UFSM: Ada Cristina M. Silveira; Adair Peruzzolo; Antonio Fausto Neto; Elizabeth Bastos Duarte; Eugenia M. M. R. Barichello; Luciana Mielniczuck; Márcia Franz Amaral; Maria Ivete Trevisan Fossá; Maria Lilia Dias de Castro; Rogério Ferrer Koff; e Veneza Mayora Ronsini.

À EDIPUCRS.

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SUMÁRIO

Prefácio .................................................................................................9

Apresentação ......................................................................................13

Parte IMídia e Estratégias Comunicacionais

1. Estratégias comunicacionais em portais institucionais: apontamentos sobre as práticas de Relações Públicas na internet brasileira ...........15Daiana STASIAK & Eugenia M. da R. BARICHELLO

2. Representações do feminino em fotografias jornalísticas: YedaCrusius em Zero Hora ........................................................................37Laura E. de O. FABRICIO & Adair PERUZZOLO

3. O jornalismo digital e as estratégias de colaboração: sinais da des- re-territorialização .................................................................................56Vivian BELOCHIO & Luciana MIELNICZUCK

4. O grotesco midiático: estratégias de imagem nas charges de imprensa ...................................................................................76Vivian C. de MIRANDA & Adair PERUZZOLO

Parte IIMídia e Identidades Contemporâneas

5. Mídia e reconhecimento identitário: o território em site de relacionamento .........................................................................102Mônica PIENIZ & Ada C. M. da SILVEIRA

6. O gaúcho na mídia: as representações da identidade regional no discurso publicitário contemporâneo ...................................................116Pauline N. FRAGA & Ada C. M. da SILVEIRA

7. As representações no “Circuito das Notícias”: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra no Jornal ZH ...................................136Vilso Junior SANTI & Márcia F. AMARAL

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UM PREFÁCIO SOBRE SETE OLHARES QUE PRIVILEGIAM A COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA

O campo de estudos da Comunicação, especialmente as regras que regem as pesquisas e a organização disciplinar da Pós-Graduação, tem, por parte de alguns grupos, focado o olhar nas interações sóciotec-nicas presentes e inerentes aos processos de comunicação, sem perder de vista a constituição histórica do campo como encruzilhada de saberes.

Em 2005, foi criado o Programa de Pós-Graduação em Comuni-cação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que optou por compreender o estudo da ação midiática implicada na estruturação do espaço público, na visibilidade e legitimação das instituições e na con-figuração das identidades contemporâneas. A área de concentração do Programa ocupa-se prioritariamente em estudar as formas que permitem à Comunicação Midiática incidir na associação, configuração e solidifi-cação das relações sociais no tempo e no espaço. A explicitação des-sa área de concentração congrega dois conjuntos de estudos definidos como linhas de pesquisa: Mídia e Estratégias Comunicacionais; e Mídia e Identidades Contemporâneas.

A linha de pesquisa “Mídia e Estratégias Comunicacionais” in-vestiga as estratégias que agem como promotoras de articulação e de organização entre a esfera midiática e os demais campos sociais. Agre-ga pesquisas que investigam as relações do campo das mídias com os demais campos, especialmente as estratégias que este campo aciona, ou dele são tomadas por empréstimo para construir o espaço público contemporâneo, para assegurar a presença das instituições no espaço público, ou instituir algumas formas de vínculo social entre as instituições e os usuários de suas ofertas.

A linha de pesquisa “Mídia e Identidades Contemporâneas” reú-ne projetos que possuem em comum o estudo da incidência da esfera midiática na conformação das identidades com ênfase na construção de representações e significados. Agrega as pesquisas que envolvem es-tudos interpretativos sobre o papel da Comunicação Midiática na cons-trução de dinâmicas sociais, matrizes identitárias, experiências de inte-ração e processos de consumo/apropriação que passam pela mediação do discurso das linguagens midiáticas.

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É com satisfação que apresentamos aqui sete trabalhos resultan-tes de dissertações defendidas pelos alunos da segunda turma de egres-sos do Mestrado em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). São quatro pesquisas da Linha Mídia e Estratégias Comunicacionais e três da Linha Mídia e Identidades Contemporâneas.

O primeiro, “Estratégias comunicacionais em portais institucio-nais: apontamentos sobre as práticas de Relações Públicas na internet brasileira”, de autoria de Daiana STASIAK orientada pela professora Eu-genia Mariano da Rocha BARICHELLO, apresenta os resultados da pes-quisa que teve como objetivo classificar as diferentes fases da práxis de Relações Públicas na web (WebRP) ao longo dos últimos catorze anos. A metodologia utilizada foi o estudo de casos múltiplos (YIN, 2005), o corpus foi formado por doze portais analisados em três momentos: anos 1990, início dos anos 2000 e atualidade (2008/2009). Ao final das aná-lises encontramos as estratégias pertinentes a cada época que permiti-ram a tipificação de três fases da WebRP.

O segundo, “Representações do feminino em fotografias jor-nalísticas: Yeda Crusius em Zero Hora”, de autoria de Laura Elise de Oliveira FABRICIO orientada pelo professor Adair PERUZZOLO, parte do pressuposto que o campo jornalístico, através de seus regramentos, constrói representações dos atores que compõem os demais campos por meio de seus dispositivos, como a fotografia. Histórica e cultural-mente, o campo da política gaúcha sempre foi predominado por atores masculinos. Porém, na contemporaneidade este cenário vem mudan-do: as mulheres se projetam como candidatas e, na última eleição ao Governo do Rio Grande do Sul, no ano de 2006, elegeu-se a primeira governadora mulher. Neste contexto, o trabalho propõe analisar como foram construídas as representações do feminino nas fotografias jor-nalísticas de Zero Hora, no período desta campanha eleitoral, utilizan-do-se a candidata Yeda Crusius como objeto de análise. A partir de análises de orientação semiótica, constatou-se que há apropriações de diversificadas representações do feminino, como estratégias de cons-trução simbólica da figura da mulher candidata.

O terceiro, “O jornalismo digital e as estratégias de colaboração: sinais da des-re-territorialização”, de Vivian BELOCHIO orientada pela professora Luciana MIELNICZUCK, define o território jornalístico insti-tucionalizado e discute a sua transformação nas redes digitais. O texto

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define a cauda longa da informação, o Pro-Am e destaca as estratégias comunicacionais do jornalismo nesse contexto. Em seguida, expõe as-pectos apurados num estudo de caso de Zero Hora.com, interpretados como sinais da des-re-territorialização no jornal digital.

O quarto, “O grotesco midiático: estratégias de imagem nas char-ges de imprensa”, de Vivian Castro de MIRANDA orientada pelo profes-sor Adair PERUZZOLO, apresenta os resultados de pesquisa que bus-cou compreender o grotesco, através do desenho de humor de mídia jornalística impressa. Diante da possibilidade de compreender melhor o fenômeno pela engrenagem dos textos humorísticos, a partir de uma abordagem semiológica, procurou-se demonstrar que o grotesco é uma significação que opera como princípio para a comicidade nos jornais. O enfoque na imagem, no que se refere ao processo analítico, apontou para estratégias discursivas utilizadas na construção dos sentidos que operam, enquanto estratégias textualizadoras, manifestas, sobretudo, através do componente visual da expressão.

O quinto, “Mídia e reconhecimento identitário: o território em site de relacionamento”, de Mônica PIENIZ orientada pela professora Ada Cristina Machado da SILVEIRA, aborda a relação das tecnologias fa-vorecedoras da globalização e sua incidência sobre a cultura local. A dualidade da categoria espaço, aplicável à dimensão virtual e à cultu-ra local, se faz fundamental. A indagação referente a sua importância remete especialmente à noção de território geográfico no que tange a sua articulação entre a condição de espaço físico e espaço virtualizado. Exemplifica-se com um estudo empírico das representações identitárias propostas por donos de comunidades no site de relacionamento Orkut, analisando-se o pertencimento territorial como fonte histórica de condi-cionamento de uma identidade cultural em particular.

O sexto, “O gaúcho na mídia – As representações da identi-dade regional no discurso publicitário contemporâneo”, de Pauline Neutzling FRAGA orientada pela professora Ada Cristina Machado da SILVEIRA, ocupa-se da reflexão acerca do reconhecimento identitário regional proposto no apelo publicitário. O estudo qualitativo empreendeu alguns conceitos e procedimentos da Análise do Discurso enunciativa a fim de localizar as produções de sentido que respondessem a seguinte problemática: que gaúcho é esse, afinal, representado pela publicidade contemporânea? Quais as principais características de sua identidade

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midiatizada, tendo por parâmetro o cânone identitário criado, sustenta-do e popularizado (em termos de ampla divulgação) pelo MTG (Movi-mento Tradicionalista Gaúcho)? O corpus foi formado por dez anúncios, veiculados de 2005 a 2007. Pôde-se compreender que, convertida em mercadoria, tal identidade encontrar-se-ia ao alcance dos mais diferen-tes públicos-alvo, para o nível de apropriação individual, sendo ofertada conforme as necessidades de cada anunciante.

O sétimo texto, “As Representações no “Circuito das Notícias”: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra no Jornal Zero Hora”, de Vilso Junior SANTI orientado pela professora Márcia Franz AMARAL, estuda a representação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e de suas ações no jornal Zero Hora (ZH), tendo como pa-norama o “Circuito das Notícias” e suas distintas fases. Para tanto, ma-peia o movimento das representações e suas transformações ao longo da cadeia produção, texto e leitura sem esquecer de suas intersecções e inter-relações nos diferentes momentos. O estudo propõe uma apro-ximação analítica entre o “Circuito da Cultura” de Johnson (1999) e o “Circuito das Notícias” – uma tentativa de abordagem integral e integra-dora, que reivindica uma visão global sobre os processos jornalísticos. Tal aproximação parte das contribuições teórico-metodológicas dos Es-tudos Culturais Britânicos e busca entender e/ou explicar a dinâmica da cultura, dos produtos culturais, e suas intersecções com o jornalismo, principalmente no que se refere às representações.

São sete olhares que privilegiam a Comunicação Midiática por meio de dois eixos: as estratégias comunicacionais e a configuração das identidades contemporâneas. Apostamos nesses olhares e recomenda-mos a sua leitura.

Eugenia Mariano da Rocha BarichelloCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da UFSM.

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APRESENTAÇÃO

Obter o grau de Mestre em Comunicação Midiática representou para nós uma enorme realização, da qual somos imensamente gratos ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (POSCOM-UFSM). Criado em outubro de 2005, o Pro-grama já diplomou 28 Mestres, dentre os quais nós, os colaboradores desta publicação – integrantes da segunda turma de acadêmicos, titula-da em março de 2009.

Caminhamos com o POSCOM-UFSM os seus primeiros passos e cremos que nesse caminhar contribuímos para sua consolidação junto a CAPES, COMPÓS, INTERCOM, SBPJOR, ABRACORP, etc. – também en-tre os demais Programas de Pós-Graduação em Comunicação do Brasil. A descentralização dos pólos de ensino foi, desde sua criação, um dos objeti-vos primordiais da UFSM, transposto também para a Pós-Graduação, e foi este “espírito transpositor” que nos permitiu ultrapassar os diversos obstácu-los rumo à inserção nacional nas Pesquisas em Comunicação lá realizadas. Os dois anos de convivência no POSCOM-UFSM nos trazem uma série de lembranças relacionadas aos momentos de aprendizagem e interação entre nós acadêmicos e os nossos mestres. A necessidade de produções e publicações sempre fez parte do nosso dia-a-dia, pois, era preciso colaborar efetivamente na sedimentação das pesquisas da área e do próprio Programa. Por isso, nossas discussões giravam in-variavelmente em torno de temas convergentes. Seguiam a órbita das duas grandes linhas de pesquisa do Programa (Estratégias Comunica-cionais e Identidades Contemporâneas), mas sempre compartilhavam um centro comum: a Comunicação Midiática.

Nesses termos, a proposição dessa publicação, mais do que re-conhecer a importância de todos aqueles que compartilharam conosco suas experiências no período do curso, pretende expressar um senti-mento de dever cumprido. Através desta obra, que apresenta textos pro-duzidos a partir das dissertações que defendemos no POSCOM-UFSM, acreditamos poder demonstrar parte do aprendizado adquirido. Sincera-mente sabemos que ganhamos muito mais do que está aqui registrado e por isso reiteramos nossa gratidão e nosso orgulho por fazer da cami-nhada do POSCOM-UFSM rumo à consolidação.

Daiana Stasiak e Vilso Junior Santi (Orgs.)

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Parte IMídia e estratégias Comunicacionais

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

ESTRATÉGIAS COMUNICACIONAIS EM PORTAIS INSTITUCIONAIS: APONTAMENTOS SOBRE AS PRÁTICAS

DE RELAÇÕES PÚBLICAS NA INTERNET BRASILEIRA1

Daiana STASIAK2

Eugenia M. M. da R. BARICHELLO3

ResumoO trabalho apresenta os resultados da pesquisa de dissertação de mestrado que teve como objetivo classificar as diferentes fases da práxis de Relações Públicas na web (WebRP) ao longo dos últimos catorze anos. A metodologia utilizada foi o estudo de casos múltiplos (YIN, 2005), o corpus foi formado por doze portais analisados em três momentos: anos 90, início dos anos 2000 e atualidade (2008/2009). Ao final das análises encontramos as estratégias pertinentes a cada época que permitiram a tipificação de três fases da WebRP.

Palavras-chaveRelações Públicas; estratégias de comunicação; portais; legitimação institucional; midiatização.

Communication strategies in institutional sites: notes about the practices of Public Relations in the Brazilian Internet

Abstract This work presents research results that had as objective to classify dif-ferent phases of Public Relations’ praxis on the web (WebRP) throughout the last fourteen years. The methodology used was the study of multiple cases (YIN, 2005), the corpus was formed by twelve sites studied at three moments: the 90’s, beginning of 2000 and present time (2008/2009). At 1 Trabalho resultante da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comu-nicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Área de Concentração: Comunicação Midiática. Linha de Pesquisa: Estratégias de Comunicação.2 Relações Públicas. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UNB) e Professora Assistente da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia (FACOMB) da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected] Orientadora. Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Fede-ral de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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Daiana Stasiak e Eugenia M. da R. Barichello

the end of the analysis we find appropriate strategies for each season that allowed the characterization of three phases of WebRP.

KeywordsPublic Relations; communication strategies; sites; institutional legitima-tion; mediatization.

Na contemporaneidade, a práxis comunicacional nas organiza-ções tem sido pautada pelo processo de midiatização advindo, sobre-tudo, por meio do desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação, que tendem a reconfigurar os modos de produção de sen-tido e trazer novas lógicas aos regimes de visibilidade pública (SODRÉ, 2002). Esses fatos colocam-nos diante de transformações no modo de pensar e executar as práticas de Relações Públicas, principalmente no que diz respeito à utilização de estratégias de comunicação adequadas a gama de possibilidades disponibilizadas pelos suportes digitais e suas ambiências. Instala-se uma demanda que exige das organizações e ins-tituições um diagnóstico de comunicação que contemple as possibilida-des midiáticas disponíveis na elaboração de um planejamento de comu-nicação com estratégias comunicacionais inovadoras, que possibilitem a promoção da visibilidade e a legitimação frente à opinião dos públicos.

Nessas circunstâncias de maturação tecnológica, a internet con-figura-se como a mídia de convergência, que oferece recursos funda-mentais para a aplicação de estratégias de comunicação institucional. No atual contexto os meios de comunicação assumiram um papel que ultrapassa a condição de meros veículos das mensagens e dos con-teúdos, pois além de veicularem informações aos diferentes públicos, eles possuem papel relevante na produção dos sentidos que circulam na sociedade. Assim, ocorre um deslocamento da concepção dos meios de comunicação como canais para o entendimento dos meios como am-biência, pois, acontece uma metamorfose no universo de transmissão e vive-se um tempo em que emissor e receptor deixam de ser compreen-didos como pólos estáticos e hibridizam-se em suas funções.

A questão do rompimento das barreiras espaço-temporais e o acesso a múltiplas fontes de informação fizeram com que os jornais fos-sem os primeiros meios de comunicação a adaptarem suas estruturas às transformações advindas com a web. Atualmente existem vários estudos

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

sobre as práticas de jornalismo na web (MIENICZUCK, 2003; BARBOSA, 2007), dos quais uma importante representação é o Grupo de Jornalismo On-line (GJOL)4 que desenvolve pesquisa neste campo desde 1995. No contexto organizacional, as Relações Públicas também exerceram papel fundamental no ajuste e criação de estratégias para esta conjuntura, que emergiu em meados dos anos 90. Os expoentes dessas adaptações são os portais, onde a estrutura e as informações institucionais passaram a ocupar um espaço representacional independente das mídias tradicionais.

O termo WebRP significa, neste trabalho, as práticas de Relações Públicas efetuadas na interface da web e é entendido a partir das teorias do webjornalismo, as quais serviram também como subsídio teórico para elaborarmos as três fases da WebRP. A presença das organizações na internet torna-se, a cada dia, mais necessária. Através da análise dos por-tais buscou-se evidenciar e discutir a materialidade de um novo tipo de es-tratégia de comunicação institucional, que se manifesta nas teias da rede e está presente nas práticas cotidianas da atividade de Relações Públicas.

O presente texto aborda conceitos sobre Relações Públicas e o sistema web como subsídios para demonstrar o percurso metodológico e os resultados da pesquisa que objetivou classificar as diferentes fa-ses das práticas de Relações Públicas na web (WebRP) ao longo dos últimos catorze anos. Para tanto, o trabalho é dividido nas seguintes partes: a primeira oferece um panorama da internet, considerada sob a perspectiva de ambiência, suas gerações e a característica da interati-vidade, a segunda apresenta conceitos de Relações Públicas relacio-nados ao contexto da web com vistas a demonstrar que a interdepen-dência entre estas áreas é fundamental no cenário da midiatização em que atuamos hoje, a terceira parte aborda a metodologia do estudo de casos múltiplos (YIN, 2005) e a análise das estratégias mais pertinen-tes nos portais institucionais de cada período; as considerações finais apontam os resultados da pesquisa com as transformações das práti-cas de Relações Públicas evidenciadas nos portais da web ao longo dos anos e a caracterização das três fases da WebRP.

O sistema Web: características e gerações

A internet é uma grande rede composta por diversos sistemas, um deles, a World Wide Web (www), caracterizada por ser um sistema 4 http://www.facom.ufba.br/jol

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Daiana Stasiak e Eugenia M. da R. Barichello

de servidores que suportam documentos formatados na linguagem co-nhecida como HTML (HyperText Markup Language) a qual suporta links para outros documentos, bem como gráficos, áudio e arquivos de vídeo, o que traz a possibilidade do usuário passar de um documento para ou-tro simplesmente clicando nesses links. Porém, nem todos os servidores de internet fazem parte da World Wide Web. Há várias aplicações cha-madas web browsers que tornam mais fácil seu acesso; dois dos mais populares são o Netscape Navigator e o Microsoft Internet Explorer5.

Por ser essencialmente um sistema aberto, a web possibilita a busca de informações em toda a rede, num fluxo constante, fato que aumenta a força de uma comunicação interativa, individualizada e, ao mesmo tempo, coletiva. Saad (2003) acredita que os diferenciais da World Wide Web são características como: interatividade, conectivida-de, flexibilidade, formação de comunidades e arquitetura informacional. A autora propõe que a web é uma mídia de duas mãos responsável por transmitir mensagens de muitos para muitos e estabelecer relações de comunicação não lineares.

A web torna-se, cada vez mais, uma realidade em nossas vidas, esta ideia confirma-se principalmente pelo aumento constante do nú-mero de usuários, de registros de portais e da quantidade de dados dis-poníveis para acesso. De acordo com a última pesquisa6 realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e a NetRa-tings, líder mundial em medição de audiência de internet, divulgada em 15 de dezembro de 2008, nos últimos dois anos o número de brasileiros que possuem acesso à internet em casa cresceu em 73%. No mês de novembro os brasileiros passaram, em média, 23 horas e 47 minutos conectados à internet, o que os mantém em primeiro lugar em relação aos dez países pesquisados.

As gerações da web

É importante abordarmos as gerações da web com vistas a com-preendermos as possibilidades de cada época para as futuras inferên-cias sobre as práticas e estratégias de comunicação nesse contexto.

Para Primo (2007) as características principais da primeira geração, a web 1.0, são: as páginas estáticas de HTML, a linguagem digital limitada 5 Com base no glossário de termos da internet. Disponível em www.fis.ufba.br/labcomp6 Notícia publicada em http://ultimosegundo.ig.com.br/economia. Acesso 15 dez 2008.

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

e os portais com interação reativa. Já a segunda geração, ou “web 2.0 é caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamen-to e organização de informações, além de ampliar os espaços para a in-teração entre os participantes do processo” (PRIMO, 2007, p.2). O autor considera as redes sociais online, o webjornalismo participativo e as pos-sibilidades de interação mútua como componentes relevantes desta fase. A web 3.0 é um sistema que inclui desde redes sociais, serviços empresariais online até sistemas GPS e televisão móvel, assim como o aumento das etiquetas inteligentes, que permitem lidar com a informação de uma forma mais simples. Ao pesquisarmos informações sobre a evolu-ção da web, nos deparamos com o autor Gary Hayes, responsável pelos desenvolvimentos de produtos para a internet da BBC Londres, em pa-lestra na Universidade do Minho (Uminho) em Portugal, o autor trata dos ambientes virtuais de multiusuários (Muve) e da mudança de paradigmas a partir da comunicação em tempo real. Hayes (2006) define a evolução da web de forma simples, para ele a web 1.0 é caracterizada por ser uni-direcional com informações “empurradas” aos usuários. Já a web 2.0 tem caráter mais bidirecional, com informações partilhadas entre os usuários. Enquanto que a web 3.0, que está em processo de construção é definida por possibilitar a comunicação colaborativa em tempo real. As caracterís-ticas da web 3.0 estariam mais ligadas à questão da convivência online como acontece com os avatares em jogos virtuais, por exemplo.

Interatividade na web

A rede disponibiliza inúmeras possibilidades interativas e suas características convergentes proporcionam o acesso a informações que utilizam simultaneamente sons, imagens e textos que trazem a facilidade de fixação dos conteúdos propostos. Ao mesmo tempo, a web demanda cuidados como: atualização das informações, facilidade ao acesso e uso real das possibilidades interativas. Se estes não forem levados em con-ta, podem contribuir negativamente para o processo de construção da legitimidade institucional.

A questão da interação mediada por computador é tratada por Primo (2007), ele propõe que o estudo da interação deve privilegiar o pro-cesso da interação em si e não enfatizar apenas a máquina ou somente os seres humanos. O ideal é a valorização dos acontecimentos entre os

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Daiana Stasiak e Eugenia M. da R. Barichello

interagentes e da qualidade da relação que emerge da ação entre eles. Nesse contexto o autor classifica a interação como mútua e reativa. Na interação mútua, a atuação dos interagentes é dialógica e emergente, ou seja, ela vai sendo definida durante o processo de comunicação. É pela característica da reciprocidade que a interação mútua se diferencia da interação reativa. Nela os participantes rea-gem a partir de suas percepções e podem confirmar, rejeitar ou mo-dificar a opinião dos demais. Dentro dessa perspectiva proporcionam que o processo de comunicação modifique-se e não siga um caminho linear e pré-determinado.

As interações mútuas apresentam uma processuali-dade que se caracteriza pela interconexão dos sub-sistemas envolvidos. [...] Uma interação mútua não pode ser vista como uma soma de ações individuais. Entende-se pelo princípio sistêmico de não-somativi-dade que esse tipo de interação é diferente de mera soma das ações ou das características individuais de cada interagente (PRIMO, 2007, p.101).

O desequilíbrio constante do processo comunicativo se com-plexifica e as interações mútuas funcionam como força propulsora de novas atualizações, pois a relação vai se construindo sem uma previ-sibilidade. Assim,

as interações mútuas distanciam-se da lógica de causa e efeito – onde a condição antecedente A é suficiente para causar a condição conseqüente B, isto é, ‘se A, então B’ – presente em sistemas reati-vos e que sublinha as perspectivas transmissionis-tas e a behaviorista (estímulo – resposta) (PRIMO, 2007, p.106).

Já na interação reativa, ocorre uma ação e reação entre indiví-duo e máquina, na qual a máquina já possui uma proposta elaborada e as condições de troca são predeterminadas. As interações se esta-belecem segundo determinam as condições iniciais, ou seja, são re-lações potenciais de estímulo-resposta impostas por pelo menos um dos usuários. As interações reativas “dependem de uma delimitação

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

prévia das trocas possíveis e da disposição antecipada das alternati-vas viáveis”, Primo (2007, p.121).

A previsibilidade, ao contrário da interatividade, é a caracterís-tica principal da interação reativa, nela “a pessoa terá de adaptar-se à formatação exigida, manifestando-se dentro das condições e dos limites previstos” (PRIMO, 2007, p.135).

Relações Públicas e Internet: estratégias contemporâneas

É importante ressaltar que consideramos a busca da legitimida-de como o princípio norteador da atividade de Relações Públicas, pois através desse processo as organizações e instituições conquistam a integralidade que colabora para sua permanência ao longo do tempo (BARICHELLO, 2004).

Porém o processo de midiatização da sociedade evidencia que na atualidade, ocorre um deslocamento da busca da legitimação institu-cional, e, se antes era necessário que as instituições recorressem às mí-dias lineares para serem representadas e estarem visíveis na sociedade midiatizada as instituições, os atores sociais e a mídia afetam-se conti-nuamente. Desse modo, parece-nos pertinente o estudo da apropriação das tecnologias digitais de comunicação pelas instituições com vistas a melhorar a comunicação com os públicos em busca da legitimação.

Assim, planejar, executar e avaliar ações de comunicação insti-tucional, práticas atribuídas às Relações Públicas, tornam-se mais com-plexas devido à midiatização das relações sociais e às novas formas de relacionamento proporcionadas pelas tecnologias digitais, que permitem a interação direta com os públicos. Conforme Silva e Barichello,

o estabelecimento e a manutenção de relações, acon-tecimento possibilitado pela comunicação dirigida, é atualmente facilitado pelas redes digitais e Internet. Essas materialidades vão além das tradicionais ma-térias jornalísticas impressas, releases, malas-direta, folders, anúncios e campanhas publicitárias, chegam a interações, reciprocidades e apropriações, possibili-tadas pelos suportes tecnológicos e digitais, nos quais os sujeitos destinatários são atuantes e determinantes da qualidade da comunicação, contribuindo para os processos de representação e reconhecimento da or-

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ganização nos diferentes campos da sociedade con-temporânea. (SILVA; BARICHELLO, 2006, p.10).

A internet traz alternativas de construção da visibilidade diante dos públicos como o portal institucional, por exemplo, um dispositivo no qual a instituição expõe-se com suas próprias palavras e que proporcio-na o acesso direto às estruturas, valores e propósitos construídos ao longo de sua trajetória.

Até pouco tempo atrás era necessário que as informações institucio-nais fossem submetidas ao filtro das mídias lineares (televisão, rádio e mí-dia impressa) para alcançarem a visibilidade pública. É importante ressaltar que essas mídias continuam a ter sua importância, mas têm as estruturas reorganizadas pelas tecnologias, fato que repercute, por exemplo, na apre-sentação de seus layouts, na disponibilização e atualização de informações em portais e na reestruturação dos modos de produção das notícias. A mul-tiplicidade de acesso às informações amplia espaços de interação e traz novas configurações às práticas comunicacionais das organizações;

Nesse cenário, a gestão da comunicação nas organiza-ções pautada no paradigma clássico/informacional, cen-trado na emissão e recepção de informações, torna-se insuficiente para administrar a abundância dos fluxos e demandas informacionais e a crescente rede de relacio-namentos que se estabelece entre organização e atores sociais (OLIVEIRA; DE PAULA, 2007, p. 6).

A internet, conforme Pinho (2003a), é um canal ideal para esta disposição ilimitada de informações. O autor postula que os veículos de mídia impressa e eletrônica têm severas restrições de espaço e tempo, além de uma linha editorial que determina o que será ou não publicado. Assim, a mídia digital, em especial o portal, firma-se como uma alter-nativa de comunicação midiática gerenciada pela própria organização.

Para Castells (1999) as modificações trazidas pelo advento da rede não ocorrem isoladamente, elas desenvolvem uma reação em ca-deia que influencia todos os setores, tanto de uma organização quanto de toda a sociedade.

O paradigma da tecnologia da informação é baseado na flexibilidade. Não apenas os processos são rever-

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síveis, mas organizações e instituições podem ser modificadas, e até mesmo fundamentalmente altera-das, pela reorganização de seus componentes. (CAS-TELLS, 1999, p.108 -109)

A reorganização pode gerar consequências como a prevalência de relacionamentos virtuais com os públicos, seja através do portal, blogs, comunidades virtuais, chats, fotologs. Essa constatação torna imprescindível que as organizações estejam preparadas para atuar neste novo cenário e utilizar os recursos disponíveis de uma forma estratégica. Para Bueno,

o relacionamento com os públicos de interesse deve pautar-se, agora, por agilidade e interatividade, e os co-municadores organizacionais devem ter a capacidade de estabelecer estratégias que levem em conta a poten-cialidade da Internet. As organizações ainda encontram dificuldades para se adaptar às novas mídias, com for-matos e linguagens ainda insuficientemente explorados, mas, paulatinamente, vão descobrindo formas de convi-ver com elas (BUENO, 2003, p. 60).

Conforme Scroferneker (2001), na contemporaneidade, onde a tecnologia se faz sempre presente, o acesso às informações via inter-net é fator que possibilita contato, aproximação e até mesmo a iden-tificação das organizações com seus públicos, sendo seu uso um im-portante meio de comunicação que deve considerar conteúdo e forma para atender o usuário.

Em investigação sobre técnicas de pesquisa na internet, Moura (2007) concluiu que este é um processo incipiente na área das Relações Públicas. Para a autora, a pesquisa é um elemento estratégico e poderia ter um uso muito mais efetivo considerando-se as possibilidades da rede que estão à disposição das organizações:

Há ocorrência de enquetes e questionários sobre assun-tos atuais, cujos instrumentos estão normalmente dispo-nibilizados no próprio site da organização, de forma on-line para seus usuários. Esta é uma iniciativa para con-solidar o relacionamento com seus públicos, mediante

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um contato efetivo e o conhecimento de suas opiniões. Os resultados das pesquisas realizadas nos espaços di-gitais contribuem para a solução de problemas na orga-nização. (MOURA, 2007, p.137)

Esse panorama trazido pelos desenvolvimentos sociotécnicos afeta as práticas profissionais, pois torna disponível novos espaços para o uso de ações estratégicas. Os portais organizacionais da internet são um dos principais expoentes de relacionamento com os públicos na con-temporaneidade, mas estamos ainda diante de uma realidade que está disponível e que não é utilizada e nem estudada em todo o seu poten-cial. A partir destes pressupostos, o trabalho segue com uma proposta metodológica aplicada aos portais institucionais e os resultados obtidos.

A metodologia: Estudo de Casos Múltiplos

A metodologia utilizou o Estudo de Casos Múltiplos com base em Yin (2005), caracterizado por ser uma pesquisa que envolve duas ou mais pessoas ou organizações, numa lógica da replicação e não de amostragem, com isto os critérios típicos adotados em relação ao tama-nho da amostra se tornam irrelevantes.

De acordo com o autor, o estudo de caso investiga um fenôme-no contemporâneo dentro de um contexto da vida real, em situações nas quais as fronteiras entre o fenômeno e o contexto não são clara-mente estabelecidas e utiliza múltiplas fontes de evidências. O caráter do estudo de caso pode ser: exploratório; descritivo ou explanatório (causal). Este estudo caracteriza-se como descritivo e exploratório, pois descreve os elementos estratégicos de comunicação presentes nos portais das organizações, explora e analisa suas modificações ao longo dos anos.

O corpus da pesquisa foi construído em duas etapas. Na pri-meira foram selecionados dois (2) portais de cada um dos vinte e cinco (25) domínios registrados para pessoas jurídicas no órgão Registro.br, responsável por manter e distribuir todos os endereços de portais disponíveis no Brasil. Os domínios foram digitados em ferramentas de busca da internet e a seleção de dois portais por domínio levou a um total de cinquenta portais.

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

A segunda etapa considerou os catorze anos de uso da internet no Brasil e foi estabelecido que os portais selecionados para o estudo de casos múltiplos deveriam estar presentes na rede, em média, há pelo menos nove anos, ou seja, antes do ano 2000. Para que este cri-tério fosse atendido foi utilizada uma ferramenta denominada “Internet Archive Wayback Machine (IAWM)”, um serviço que se dedica a reco-lher e arquivar versões de páginas web e permite que os usuários con-siderem versões arquivadas das web pages do passado. Os cinquenta (50) portais selecionados inicialmente foram digitados na ferramenta Wayback Machine e destes apenas oito (8) portais apresentaram regis-tros anteriores ao ano 2000.

Devido ao pequeno número de casos encontrados optou-se por adicionar ao corpus de pesquisa o domínio COM.BR que é ca-racterizado como um domínio genérico utilizado tanto para registrar portais para pessoas físicas quanto para pessoas jurídicas. Através do mesmo processo foram selecionados mais quatro (4) portais que se enquadraram no protocolo de estudos pré-estabelecido.

Concluídas as duas etapas chegou-se a um total de doze (12) portais, que formaram o corpus final de estudo, são eles: Banco do Estado de Santa Catarina (http://www.besc.com.br), Banco do Esta-do do Rio Grande do Sul (http://www.banrisul.com.br), Universida-de Federal de Santa Maria (http://www.ufsm.br), Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul (http://www.pucrs.br), Colégio Anchieta (http://www.colegioanchieta.g12.br), Senado Federal do Brasil (http://www.senado.gov.br), Força Aérea Brasileira (http://www.fab.mil.br), Partido dos Trabalhadores (http://www.pt.org.br), Gerdau (http://www.gerdau.com.br), Avon (http://www.avon.com.br), Sadia (http://www.sadia.com.br) e Todeschini (http://www.to-deschinisa.com.br)

Os objetivos da pesquisa exigiram a análise dos portais em três mo-mentos: anos 90, composto por portais de 1995 a 1999, anos 2000, com portais de 2001 a 2005, e anos atuais, com portais de 2008 e 2009. A divisão cronológica foi realizada a partir das constatações da análise que evidencia-ram características capazes de serem agrupadas nesses três momentos.

O quadro a seguir visa esclarecer aos leitores os aspectos me-todológicos do estudo em questão.

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MétodoEstudo de casos múltiplos Yin (2005)

A pesquisa envolve portais de di-versas organizações, com objetivo de elaborar uma explanação geral que sirva a todos os casos.

Caráter Exploratório-des-critivo

Descreve os elementos estratégicos de comunicação presentes nos por-tais, explora e avalia suas modifica-ções ao longo dos anos (1995-2009).

Coleta de dados

Técnica de docu-mentação

Utiliza recortes virtuais de portais considerados neste estudo, docu-mentos organizacionais.

Análise de evidências

1) Estratégia: baseando-se em proposições teóricas

2) Técnica: análise de séries temporais

1) As teorias que levaram ao estu-do geraram um conjunto de ques-tões que deram forma ao plano de coleta de dados e estabeleceram prioridades entre as estratégias analíticas relevantes.

2) Os portais são analisadosem três momentos ao longo de catorze anos.

Teste lógico

1) Validade de constructo

2) Validade interna

3) Validade externa

4) Confiabilidade

1) A pesquisa foi operacionalizada através do uso de múltiplas evidên-cias encadeadas.

2) As condições de desenvolvimen-to sociotécnico levam a adaptações nas práticas de Relações Públicas.

3) A lógica da replicação foi utiliza-da para formar um conjunto con-vincente de proposições.

4) O estudo foi guiado por um pro-tocolo de orientação na coleta e análise dos dados.

Quadro 1-: Quadro metodológico explicativo. ESTRATÉGIAS COMUNICACIONAIS E PRÁTICAS DE WEBRP: o processo de legitimação na sociedade midiatizada.

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

A análise: as estratégias de comunicação de cada tempo7

A partir da reflexão sobre as funções atribuídas às Relações Públicas: pesquisar, diagnosticar, prognosticar, assessorar, imple-mentar programas, avaliar e controlar. Foi elaborada uma lista de estratégias de comunicação consideradas norteadoras das práticas de Relações Públicas. Muitas destas estratégias se aplicam fora do contexto da web, mas aqui representaram links presentes nos portais institucionais. São elas:

1. Apresentação da organização: fundação e história: informações básicas que situam os públicos sobre a origem organizacional.2. Pontos de identidade visual: presença de cores, marcas, logotipos que colaboram para a identificação institucional.3. Missão e visão: elementos característicos que explicam os princípios e o que a organização pretende alcançar. 4. Sinalização virtual: indica a setorização organizacional, característi-ca também presente fora da web.5. Hierarquia organizacional: geralmente expressa através de organo-gramas apresenta a estrutura de cargos dentro da organização.6. Normas e regimento organizacional: documentos que explicam as regras e códigos que devem ser seguidos na organização.7. Agenda de eventos: divulgação de promoções institucionais com ob-jetivo de informar, entreter, integrar os públicos.8. Publicações institucionais: materiais que contém caráter institucio-nal da organização: newsletters, boletins informativos, house-organs, jornais e revistas, relatórios, sugestões de pauta, balanços sociais.9. Acesso em língua estrangeira: estratégia para facilitar o acesso às informações organizacionais, característica da web pela questão da que-bra de barreiras geográficas.10. Sistema de busca interna de informações: característica da web 2.0 que colabora para o acesso a informações específicas em meio às demais disponíveis.11. Mapa do portal: estratégia de acessibilidade que apresenta aos pú-blicos todas as opções disponíveis no portal.

7 A pesquisa possui oitenta imagens do mapeamento das estratégias de todos os portais, desde 1995 a 2009.

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12. Contato, fale conosco, ouvidoria: permite que os públicos enviem suas dúvidas e sugestões para a organização, o ideal é que se estabe-leça um processo de comunicação entre as partes.13. Pesquisa e enquete online: ferramentas para colher informações sobre determinados assuntos que podem ser utilizadas em benefício da organização.14. Presença de notícias institucionais: o portal oferece espaço para a disponibilização de notícias sobre a organização e assuntos afins, é um local estratégico para informar os públicos.15. Projetos institucionais: os projetos relativos às preocupações so-ciais, culturais e ambientais obtêm maior visibilidade através do portal.16. Visita Virtual: promove e apresenta o espaço organizacional no am-biente da web. 17. Serviços online: utilização das possibilidades tecnológicas para a prestação ou facilitação de serviços para os públicos.18. Clipping virtual: mostra a visibilidade das ações organizacionais nos meios de comunicação tradicionais e na internet.19. Comunicação dirigida: a rede aumenta as possibilidades de se dirigir para cada público específico; a comunicação dirigida é feita através da criação de páginas dentro do portal, por exemplo: páginas para fornece-dores, acionistas, colaboradores, público adolescente.20. Espaço para imprensa: releases e galeria de imagens: Dispo-nibilização de mais informações para o uso nas mídias tradicionais e também para os públicos.21. Uso do hipertexto (texto+som+imagem): presença do texto es-crito acompanhado por som e imagem, ou disponibilização de mensa-gens em vídeo.22. Personagens virtuais: com o avanço das possibilidades do uso de multimídias na web, as organizações passam a colocar na rede seus personagens representativos.23. Presença TV e Rádio online: a facilidade no acesso a arquivos de áudio e vídeo também torna possível a abertura de canais de rádio e TV institucionais.24. Transmissão de eventos ao vivo: uma possibilidade estratégica que pode fazer com que a organização ultrapasse barreiras espaço-tem-porais através da transmissão e troca de informações online.

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

25. Disponibilização de “Fale conosco” interativo: prevê um nível de comunicação mais participativa, na qual os públicos interagem com a organização através do sistema de troca de mensagens instantâneas.26. Presença de chats: realização de conversas online com pessoas da organização, ou especialistas em assuntos ligados a ela.27. Link de blog organizacional: a web torna possível a elaboração de blogs sobre a organização nos quais a característica principal é a participação dos públicos que encontram um espaço mais alternativo e informal para expressar suas opiniões.

A dinâmica da pesquisa consistiu em constatar e analisar a pre-sença de cada uma das vinte e sete (27) estratégias propostas. Como resultado constatou-se que, no primeiro período (1995-1999) os portais apresentaram em média apenas um terço das vinte e sete estratégias nor-teadoras do estudo. Os serviços que poderiam ser realizados totalmente online ainda eram restritos, e dentre as estratégias de contato predomina-vam os telefones e os endereços físicos da organização. A presença de instruções aos usuários e explicações dos modos de acesso às informa-ções foram estratégias marcantes nos portais deste momento.

As notícias institucionais foram disponibilizadas apenas na meta-de dos portais analisados, o que pode indicar a falta de equipes respon-sáveis pela atualização de informações. A presença de links de acesso em língua estrangeira em alguns portais já evidenciava a preocupação com as questões da quebra de barreiras geográficas. Já as publicações, os projetos e as visitas virtuais foram estratégias pouco utilizadas, o que pode denotar o pouco aproveitamento institucional de um espaço emer-gente como eram considerados os portais.

A quantidade de informações disponibilizadas não era homogê-nea, enquanto alguns portais apresentaram poucas informações outros exploraram mais o espaço e as possibilidades da internet. O uso de figu-ras e desenhos foi predominante com relação ao uso de imagens fotográ-ficas. A presença de links longos e autoexplicativos e dos ícones “novo” e “new” também foram constantes nos portais. A grande maioria apre-sentou contadores de acesso, característica que mostrou o portal como um espaço que estava sendo acessado para a informação dos públicos.

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Figura 1: Portal da Sadia em 02 de dez de 1998

No segundo período (2001-2005), o número de informações e estratégias disponíveis cresceu consideravelmente e visualizamos por-tais que exploravam melhor as imagens. As estratégias de publicações institucionais, mais restritas anteriormente, já estavam em quase todos os portais em forma de: relatórios, editais, revistas, livros, diários e textos e iniciou-se o uso de comunicação dirigida aos diferentes públicos.

Com relação às formas de contato ainda estavam presentes in-dicadores de contatos telefônicos, mas já apareceram endereços de e-mails e alguns formulários eletrônicos para envio de dúvidas e suges-tões. A agenda de eventos também aumentou sua presença estratégica nos portais bem como o sistema de busca interna de informações.

As notícias passaram a ocupar local de destaque nas colunas centrais e a importância dada a esta estratégia parece demonstrar o re-conhecimento do portal como um espaço de informação aos públicos. As estratégias de aproximação com a imprensa também são intensificadas e trazem, além das notícias, galerias de fotos, clipping virtual, cadastros e eventos para informar os jornalistas.

Os serviços online aumentaram sua presença, o que pode deno-tar a confiança no portal e na praticidade do espaço oferecido aos clien-tes. Alguns destaques desta etapa foram o uso de algumas possibilida-des interativas entre os públicos como links de fóruns e o crescimento das estratégias de áudio e vídeo.

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Estratégias comunicacionais em portais institucionais

Figura 2: Portal da Avon em 29 de maio de 2002.

No terceiro período (2008-2009) constatamos um aumento do nú-mero de estratégias, entre as quais se destacam as páginas de comunica-ção dirigida e os espaços multimídia. A presença de vídeos também predo-mina, a grande maioria dos portais apresenta algum tipo de imagem móvel.

Os personagens virtuais, meios de aproximação entre organiza-ção e públicos, já ocupam maiores espaços nos portais. A estratégia de projetos institucionais foi a mais incrementada e ocupara muitos espa-ços em links nomeados como: responsabilidade social, responsabilidade ambiental, projetos culturais, de apoio, educacionais, sustentabilidade, preservação e reciclagem.

Os sistemas de busca estão presentes na maioria dos portais neste período. Com relação ao mapa do portal quase todos apresenta-ram esta estratégia, fato que se justifica pelo grande número de infor-mações disponíveis e a dificuldade de encontrá-las. Os serviços online são estratégias muito presentes e possibilitam quase todos os tipos de serviço da organização por meio do portal.

As notícias institucionais e o espaço para a imprensa predomi-nam nos portais desta etapa, onde as galerias de imagens, press kits online, releases, clippings virtuais e cadastros de jornalistas para o re-cebimento de informações foram alguns links de aproximação com este público estratégico.

O acesso em língua estrangeira predominou apenas nos por-tais de organizações com maior número de negócios internacionais e

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um dos portais apresentou a inovação do tradutor para a linguagem de libras, demonstrando a preocupação com os públicos que possuem necessidades especiais.

Os eventos estiveram presentes em muitos portais, nas organiza-ções comerciais predominaram eventos patrocinados e promoções e nas instituições de ensino, eventos e calendários acadêmicos. Nas estratégias de contato com os públicos os formulários eletrônicos firmaram sua pre-sença e o contato por e-mail predominou nos espaços de fale conosco.

As emissoras de TV e rádio das organizações que as possuem são apresentadas em links inseridos nos portais, já as demais possuem vídeos de publicidade, institucionais, spots de rádio, propagandas da TV, ou vídeos sobre a organização no Youtube. O blog organizacional, a transmissão de eventos ao vivo e a teleconferência foram estratégias encontradas apenas em portais deste período e parecem indicar a busca por interatividade e a utilização do espaço da web para unir os públicos através de eventos virtuais.

Figura 3: Layout do link “Senado Multimídia”. Portal do Senado Federal em 06 de jan de 2009.

A análise nos apresenta uma situação de aumento progressivo do uso de espaços institucionais nos portais através da disponibilização de projetos, notícias, eventos e publicidade, feitos especialmente para a rede, além da consolidação dos serviços online e da aplicação de recur-sos de multimídia como vídeos, imagens e sons. Por outro lado, encon-tramos no mapeamento portais sem uma capacidade interativa coerente

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com as possibilidades técnicas disponíveis atualmente, como, por exem-plo, a falta de estratégias de interação mútua com os públicos.

O mapeamento possibilitou concluir que as organizações estuda-das, em sua maioria, estão apenas visíveis nos portais institucionais ou utilizam propostas de interação reativa.

Considerações finais

A análise empírica dos portais e a tipificação das estratégias de co-municação na web nos levam a entender o uso do portal como uma ade-quação das organizações ao bios virtual proposto por Sodré (2002). Pois, estamos diante de acontecimentos apresentados em tempo real, caracterís-tica principal deste novo ambiente que também pode ser considerado como um marco da passagem da comunicação de massa centralizada, vertical e unidirecional para o espaço de possibilidades em rede. O que nos leva a compreender as práticas de Relações Públicas sob o prisma das novas tec-nologias e das formas de representação e sociabilidade a elas imbricadas.

Num primeiro momento, as práticas de Relações Públicas caracte-rizaram-se pela busca e conhecimento de um novo espaço (portal) e pelo crédito a uma mídia em ascensão (internet), que ainda não tinha seus resultados de visibilidade comprovados. Mas, ao mesmo tempo, essa nova mídia possuía um forte apelo de modernização e transformação dos modos de se dispor informações aos públicos, que não dependia mais exclusivamente das mídias tradicionais. E que quebrava, de certo modo, a lógica de emissor-canal-receptor, pois oferecia aos públicos mais possibi-lidades de interagir diante de um contexto.

O passar dos anos demonstra que os portais fixam suas raízes e ganham maior credibilidade. Assim, o segundo momento das práticas de Relações Públicas passa a ser de exploração de um espaço que exige conteúdos diferenciados das mídias clássicas. Em linhas gerais, esta constatação resultou num aumento da oferta de serviços online, no melhor aproveitamento das seções de notícias e publicações ins-titucionais, maior abertura para as formas de contato virtual com os públicos, estratégias de comunicação dirigida e uso de perguntas em enquetes feitas através do portal.

Já o momento atual evidencia a evolução do sistema web e sua presença cada vez maior no cotidiano da vida das pessoas. Nas

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práticas de Relações Públicas isso se reflete em estratégias da inter-net conectadas as estratégias para as demais mídias; no contato mais dirigido a cada público e no aproveitamento das possibilidades do uso de estratégias multimídia.

Finalmente, com base nas ações acima referenciadas, foi pos-sível classificar as diferentes fases das práticas de Relações Públicas na web (WebRP) ao longo dos últimos catorze anos, objetivo geral do presente trabalho.

A primeira fase da WebRP caracteriza-se por demonstrar a ocu-pação de um novo espaço de caráter informativo, com a transposição de pontos de identidade visual, dados históricos e poucas notícias.

A segunda fase da WebRP apresenta um número extremamente maior de informações e a ampliação de serviços virtuais, das formas de contato com os públicos e dos espaços de notícias.

A terceira fase da WebRP tem como traços marcantes o predo-mínio de informações dirigidas a cada público, a presença de projetos institucionais e a utilização de recursos em multimídia.

Em todas as fases estiveram presentes estratégias interativas, como o chat na primeira, os fóruns para troca de mensagens na segunda e o blog organizacional na terceira. Porém, é importante ressaltar que foram estratégias isoladas e não se repetiram na maioria dos casos. Se associarmos essas constatações aos conceitos de interação propostos por Primo (2007) podemos afirmar que a interação reativa esteve pre-sente em todos os portais e, no entanto, a interação mútua foi quase inexistente ao longo das fases estudadas.

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REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM FOTOGRAFIAS JORNALÍSTICAS: YEDA CRUSIUS EM ZERO HORA1

Laura E. de O. FABRICIO 2

Adair PERUZZOLO3

ResumoO campo jornalístico, através de seus regramentos, constrói representações dos atores que compõem os demais campos por meio de seus dispositivos, como a fotografia. Histórica e culturalmente, o campo da política gaúcha sempre foi predominado por atores masculinos. Porém, na contemporanei-dade, este cenário vem mudando: as mulheres se projetam como candida-tas e, na última eleição ao Governo do Rio Grande do Sul, no ano de 2006, elegeu-se a primeira governadora mulher. Neste contexto, o presente texto propõe-se a analisar como foram construídas as representações do femini-no nas fotografias jornalísticas de Zero Hora, no período desta campanha eleitoral, utilizando-se a candidata Yeda Crusius como objeto de análise. A partir de análises de orientação semiótica, constatou-se que há apropria-ções de diversificadas representações do feminino, como estratégias de construção simbólica da figura da mulher candidata.

Palavras-chaveFotografia jornalística; Representações; Feminino.

Representations of the female in journalistic photographies:Yeda Crusius in Zero Hora

AbstractThe journalistic field, through its discursive strategies, such as photogra-phy, builds representations of the actors that compose the other fields.

1 Trabalho resultante da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comu-nicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Área de Concentração: Comunicação Midiática. Linha de Pesquisa: Estratégias de Comunicação.2 Jornalista. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Professora do Curso de Jornalismo e Publicidade & Propaganda do Centro Universitário Francis-cano (UNIFRA). E-mail: laurafabricio@ gmail.com3 Orientador. Pós-Doutor pela Universidad Autónoma de Barcelona (UAB), Doutor em Comunica-ção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Docente do Programa de Pós-Gradua-ção em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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Laura E. de O. Fabricio & Adair Peruzzolo

Historically and culturally, the field of gaucho politics has always been predominating by male actors. The women, in turn, were mere supporting actors in politics, playing the roles of vice-governors or first-ladies. How-ever, nowadays, this scenario is changing: women project themselves as candidates and, in the last election for the Rio Grande do Sul govern-ment, the first female governor was elected. In this context, this article proposes the analysis of the representations of the female in the journal-istic pictures of Zero Hora during the 2006 Rio Grande do Sul govern-ment electoral campaign, using the figure of the candidate Yeda Crusius as the object of the analysis.

KeywordsJournalistic Photography; Representations; Female.

Este texto deriva da dissertação intitulada “Representações do feminino na campanha eleitoral de 2006: Yeda Crusius em fotografias jornalísticas de Zero Hora”, onde o estudo partiu da observação do con-texto eleitoral daquele período, em especial no Rio Grande do Sul.

O pleito eleitoral brasileiro do ano de 2006 foi marcado pela pre-sença expressiva de mulheres candidatas concorrendo a cargos eletivos em diversas instâncias (Senado, Câmara Federal, Assembleias Estaduais e Governos de Estados). Conforme dados quantitativos do Tribunal Su-perior Eleitoral4 (TSE), 2.498 mulheres candidataram-se a cargos eletivos em todo o Brasil no ano de 2006. Desse número, duas foram candidatas à Presidência da República, 26 aos Governos Estaduais, 35 ao Senado, 652 à Câmara Federal e 1.784 às Assembleias e Câmara Legislativas.

O Rio Grande do Sul, com seu campo político de característi-ca histórica e culturalmente predominado pela presença masculina5, também teve parcela na representatividade e nos números totais con-tabilizados sobre a participação das mulheres nessa campanha elei-toral: os índices de inserção das mulheres como candidatas aumen-taram cerca de três pontos no percentual. 4 Embora os dados apresentados neste texto sejam oficias do TSE, o mesmo retira do site após determinado tempo. Contudo, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA – www.cfemea.org.br) compila todas as estatísticas do órgão oficial das eleições – as quais são apresentadas aqui.5 O campo político ocidental seguiu por muito tempo o modelo grego que prevaleceu por séculos: era uma democracia excludente, pois as mulheres, os estrangeiros e os escravos não eram consi-derados cidadãos. Somente os homens livres nascidos na cidade-estado tinham representatividade social e política (RUBIM, 2000). No Brasil, as mulheres tiveram acesso ao voto em 1932 e adquiri-ram equiparidade nas candidaturas em 1995.

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

Desde a implantação da política de cotas, foi o período eleitoral com o maior número de mulheres candidatas no Rio Grande do Sul: 64 mulheres concorrendo a uma cadeira na Assembleia Legislativa do Es-tado, três disputando o Senado, 33 candidatas a Deputadas Federais e uma pleiteando o Governo Estadual. No total, foram 101 mulheres candidatas em 2006 no Estado (concorrendo com 708 homens). Embora os números e os percentuais demonstrem dados rele-vantes no que tange a participação feminina em candidaturas, o mais emblemático das eleições 2006 foi a projeção da candidata Yeda Cru-sius (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB) ao Governo do Estado. Foi, de fato, a primeira mulher6 que teve proeminência nas pesquisas eleitorais com grande chance de ser escolhida a primeira governadora mulher do Rio Grande do Sul. As primeiras pesquisas apontavam como fortes concorren-tes Germano Rigotto (Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB) e Olívio Dutra (Partido dos Trabalhadores – PT). Mas o resultado do primeiro turno surpreendeu: Yeda Crusius atingiu número de votos superior ao que as pesquisas computavam. Foi, então, para o segundo turno disputar o cargo com o candidato petista. Com 53,94 % dos votos (o concorrente recebeu 46,06% dos vo-tos) computados nas urnas gaúchas, elegeu-se a primeira mulher gover-nadora7 do Rio Grande do Sul em 29 de outubro de 2006. “Lula e Yeda. Duas vitórias para a história”, anunciava Zero Hora na manchete da edi-ção da segunda-feira seguinte. E, na abertura da matéria na página 8, Zero Hora dizia: “Uma mulher no Piratini”. Para Zero Hora, jornal de referência8 no Rio Grande do Sul, a cam-panha eleitoral de 2006 foi singular em função dessa nova condição im-

6 Em 1998, Emília Fernandes candidatou-se pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), mas não ascendeu nas eleições. Nas pesquisas, aparecia apenas com 6% das intenções de voto e, no re-sultado final, ficou com 6,9% dos votos gaúchos.7 No pleito de 2006 foi a primeira vez que o PSDB teve candidato próprio ao Governo do Estado. Em 2002, O PSDB elegeu entre os gaúchos apenas um candidato para a Câmara dos Deputados: a própria Yeda, que recebeu 170.744 votos e terminou a eleição como a quarta mais votada no Rio do Grande do Sul. A tucana já foi duas vezes candidata à prefeitura de Porto Alegre (1996 e 2000). Perdeu ambas as disputas. Em 1996, foi a segunda mais votada, com 167.397 votos (22,34% dos válidos), atrás de Raul Pont (PT), que se elegeu. Quatro anos depois, Yeda obteve 121.598 votos (15,54% dos válidos) e não passou para o segundo turno, já que terminou atrás dos candidatos do PT (Tarso Genro) e PDT (Alceu Colares).8 Zero Hora pertence ao Grupo RBS. Foi fundado em 1964 e tem o maior índice de circulação no Rio Grande do Sul e ocupa o sétimo lugar no ranking dos dez maiores jornais brasileiros, conforme a Associação Nacional dos Jornais (ANJ).

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posta pelo campo político. Nas palavras de Iara Lemos9: “Nós [Zero Hora] não conhecíamos uma campanha desse jeito. A gente não sabia como seria uma Governadora, a primeira mulher Governadora do Rio Grande do Sul. É histórico isso. Então nós não sabíamos tratar com isso”.

Foi neste contexto que Zero Hora mudou a forma de cobrir pau-tas relacionadas à campanha de Yeda Crusius, pois o impresso teve que “passar a dar uma atenção especial para aquela que tendia ser a primeira Governadora do Estado. A gente tinha que olhá-la com outros olhos, literalmente”10

Embora o modo de tratar jornalisticamente a possível Governadora do Estado fosse um novo desafio lançado ao impresso, a equipe de redação passou a olhar Yeda como dois sujeitos: o sujeito político e o sujeito mulher.

A gente tinha que contar a Yeda mulher, coisas que a mulher costuma fazer: a mulher tem que arrumar a casa, a mulher tem que ir ao supermercado. O que a gente procurava fazer? Tirar a Yeda do meio político e mostrar a Yeda mulher; que é uma coisa que nós jamais faríamos com os homens. Porque eles já estão tão tarimbados no mercado que a gente não conse-gue fazer isso. A gente acompanhou a Yeda no super-mercado, fazendo compras, escolhendo a carne que ela ia levar para casa para o marido comer quando ela voltasse da campanha. A gente acompanhou a Yeda arrumando a casa porque os netos iam chegar. A gen-te mostrou que, quando ela estava fora de casa, ela era a mulher política Yeda e, dentro de casa, ela era a dona de casa Yeda.11

A partir de tais questões acerca da figura da mulher na política, este texto apresenta alguns fragmentos da dissertação, que versou so-bre a seguinte questão: como o jornal Zero Hora constrói representações do feminino em fotografias jornalísticas durante a campanha eleitoral de 2006 através da figura da candidata Yeda Crusius?

Dessa forma, num primeiro momento, faz-se uma reflexão sobre o feminino no âmbito social para que, num segundo momento, se possa 9 Iara Roberta Bairros Lemos, em entrevista concedida à autora em 05 de fevereiro de 2009. Iara é jornalista graduada pela UFSM (2002) e jornalista do Grupo RBS desde 2003. Desde junho de 2009 é repórter de Zero Hora na sucursal de Brasília. Durante a campanha eleitoral de 2006, Iara foi uma das jornalistas responsáveis pela cobertura da agenda de Yeda Crusius em Zero Hora.10 Idem.11 Idem.

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

compreender como a fotografia jornalística, enquanto um dispositivo re-presentacional do campo jornalístico, retrata o feminino de Yeda Crusius durante a cobertura das eleições de 2006.

Sobre o feminino

O feminino12 é um conceito complexo por si só e, além disso, é di-fícil de ser extraído de obras dos mais diversificados autores que abordam o tema. Isso porque, ao longo da história da humanidade, tem uma trajetó-ria complexificada pela definição de papéis construídos sob a perspectiva do seu oposto: o masculino, onde o mesmo sempre foi construído com certa inferioridade se comparado ao seu contraposto. Também, porque só existe o feminino pela relação ambivalente do masculino, condição que determina a busca por sua subjetividade, particularidades e pluralidades de representação. Por isso, como aponta Colling (2004, p.16), “escrever um texto sobre mulheres é lidar com sombras, com desejos masculinos sobre as mulheres, com o imaginário masculino, com representações”.

Também, cercam o conceito do feminino deslocamentos e trans-gressões que se destacaram – e se destacam – a partir de figuras e mo-vimentos históricos que transcenderam – e transcendem – os “lugares” estabelecidos às mulheres na cultura, buscando a este grupo autonomia enquanto sujeitos que são. Ao mesmo tempo, ainda tem-se na contem-poraneidade uma visibilização da mulher e do feminino no contexto so-cial partindo de padrões e de ideais construídos ao longo da história e considerados próprios a este gênero, fato que se dá, muitas vezes, pelos vieses da estereotipia13.

Nesse complexo processo de definição do conceito de feminino, é importante lembrar que tais atributos, identidades, designações desses “lugares” e papéis são constructos sociais que se dão por processos de representação, a partir da linguagem e do sistema de valores emprega-dos nela e reconhecidos em um contexto específico. Também, marcam os sujeitos do gênero feminino e suas especificidades, as correlações ne-cessárias para diferenciá-los. Como afirma Santos (2004, p. 89) “[...] se 12 Feminino e masculino são tomados nesse texto respectivamente como designação de gênero, onde o feminino é um conceito atribuído ao campo da mulher, em oposição ao masculino, e este, por sua vez, em oposição ao feminino, é um conceito atribuído ao campo do homem. 13 Conforme Santos (2004, p. 99) “o estereótipo pode ser definido como uma tendência à padro-nização, com a eliminação das qualidades e diferenças individuais, mediante uma generalização abusiva e uma simplificação extremada que implicam a distorção da realidade”.

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as representações de gênero são posições sociais que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar como masculino ou feminino subentende a totalidade daque-les atributos sociais”.

Considerando-se que os papéis e os lugares sociais destinados aos homens e às mulheres nas culturas são um produto de processos de representação, que se dão a partir de linguagens e, portanto, de for-mas simbólicas que organizam os modos de dizer sobre os sujeitos e os gêneros que compõem um determinado contexto, como são construídas as diferenças entre o masculino e o feminino nos discursos sociais? E como, principalmente, a partir das perspectivas das funções sociais e as atuações profissionais do feminino e das mulheres, são colocadas as representações sociais e culturais?

A partir do modelo cultural patriarcal, a diferença histórica na re-presentação dos papéis exercidos pelo gênero masculino e pelo femini-no no âmbito social e, consequentemente, a forma como são reconheci-dos diante dessas culturas e sociedades, pode ser observada a partir do que afirma Colling (2004, p. 15):

As representações da mulher atravessaram os tempos estabeleceram o pensamento simbólico da diferença entre os sexos: a mãe, a esposa dedicada, a “rainha do lar”, digna de ser louvada e santificada, uma mu-lher sublimada; seu contraponto, a Eva, debochada, sensual, constituindo a vergonha da sociedade. Cor-ruptora, foi a responsável pela queda da humanidade do paraíso. Aos homens o espaço público, político, onde centraliza-se o poder; à mulher, o privado e seu coração, o santuário do lar.

Com relação a este exemplo de divisão social dos papéis mascu-linos e femininos, as condições do exercício do poder é que devem ser observadas como distintas. Em ambas as funções sociais, há o exercício do poder. Entretanto, conforme a ótica da autora, aquelas funções reali-zadas pelas mulheres em determinadas sociedades e a partir do modelo cultural patriarcal aparece, se comparado ao que os homens realizam, como atividades sociais secundarizadas ou mesmo vexatórias, relega-das à reclusão do âmbito social e público.

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

No entanto, conforme Santos (2004, p. 92),

[...] não só as atividades masculinas e femininas que va-riam de uma sociedade para outra, mas também as con-cepções do que seja homem e do que seja mulher, da maternidade e da paternidade, bem como do que seja público e privado e da relação que se estabelece entre essas duas instâncias e o valor que lhes é conferido.

O que se quer demonstrar com essa colocação de Santos (2004) é que nem todas as sociedades e culturas representam o papel social do feminino e do masculino sob a estrutura do sistema patriarcal. A própria autora pontua que “há sociedades e culturas em que a família e o lar não são concebidos como instâncias da esfera privada, não estando contra-postas à esfera pública (o trabalho e a política), como nas sociedades Ocidentais” (SANTOS, 2004, p. 92).

A mudança no cenário das funções estabelecidas como femininas pelas sociedades de sistema patriarcal se deu, mesmo que de forma par-cial, especialmente em função da entrada das mulheres no mercado de trabalho, com a revolução industrial, como afirma Bourdieu (1997, p. 37),

O ingresso das mulheres no mercado de trabalho per-mitiu, porém, que os princípios de visão e de divisão tradicionais fossem permanentemente submetidos à contestação, levando a questionamentos e a revisões parciais da “distribuição entre atributos e atribuições.

Inegavelmente, se percebe a atuação das mulheres em vários seguimentos sociais, especialmente onde ao campo do feminino era negada a participação, principalmente a liderança, o lugar de chefia, a condição do exercício de um poder antes só exercido por homens. Vê-se, por exemplo, maior participação das mulheres na política, circulando ativamente em cargos que até então eram coordenados somente pelo sujeito pertencente ao campo masculino.

No entanto, como demonstra Santos (2004, p. 95),

Constatando a incrível resistência e o grau profundo de penetração dos modelos culturais patriarcais re-lativos à regulamentação do sexo e das relações de gêneros, parece-nos que tais modelos foram elabo-

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rados como justificativa para situações estruturais e condições econômicas e políticas bastante diversas das atuais. Cabe-nos, então, perguntar, como esse modelos destacaram-se de suas condições histórico-estruturais, permanecendo – apesar de levemente al-terados – adequados a estruturas sociais e momentos sociais tão diversos? Que instâncias conservadoras, por excelência, conseguiram “guardar” e repassar esses modelos ideológicos através dos tempos com tanta eficácia? Isso nos leva a considerar o papel so-cializador das diversas instituições sociais e dos es-pecialistas da produção simbólica, definindo e redefi-nindo os modelos e papéis de gênero.

O campo midiático como um todo, nessa perspectiva, é uma das instâncias sociais que podem configurar o questionamento da autora. Este, por sua vez, produz discursos por meio de distintas linguagens, construindo com formas simbólicas e, a partir das mesmas, elabora re-presentações dos sujeitos no contexto cultural em que ambos estão in-seridos - sujeito e campo midiático.

O feminino, enquanto uma construção simbólica, é perpassado pela mídia em muitas das ações sociais realizadas pela atuação das mulheres em diversificados papéis. Os modos como são apresentados, no entanto, é que cabe serem investigados, para que se identifique se há remanejo de modelos culturais patriarcais ou, em função das mudanças ocorridas nos cenários sociais, reapropriações, ou mesmo novos modos de representação dos sujeitos desse campo.

Sobre o dispositivo fotojornalístico

O jornal, enquanto um dispositivo, é composto por vários outros dispositivos que, articulados entre si, constroem mensagens e, assim, proferem um discurso acerca dos acontecimentos provenientes de outros campos (tendo em vista que o campo jornalístico alimenta-se de fatos ocorridos nos demais campos sociais). Mouillaud (2002, p.32) comple-menta que “os dispositivos são encaixados uns nos outros”, e ainda segue:

Os dispositivos são os lugares materiais ou imate-riais nos quais se inscrevem (necessariamente) os textos (despachos de agências, jornal, livro, rádio,

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

televisão etc...); [...] O jornal se inscreve no disposi-tivo geral da informação e contém, ele próprio, dis-positivos que lhe são subordinados (o sistema dos títulos, por exemplo);

Isto remete a questão de que a fotografia jornalística é um for-mato dentro de outro formato, ou seja, uma organização discursiva mol-dada e regrada a partir de outro formato que a engloba, no nosso caso, o jornal impresso. Portanto, pode-se entender o conceito de dispositivo aplicado ao campo jornalístico como um “formato” que organiza os senti-dos e modos de receber esses sentidos (MOIULLAUD, 2002). Ou ainda como afirma Aumont (1995, p. 192), ao tratar a fotografia nomeia-a como um dispositivo “que regula a relação entre o espectador e suas imagens em um determinado contexto simbólico”.

A partir dessas colocações, observa-se que a fotografia jornalís-tica é um meio discursivo repleto de sentidos que estão materializados nas mensagens que carrega em si. Os sentidos14 produzidos nas men-sagens jornalísticas e que podemos entender como os valores emprega-dos tanto pelas ações de quem as constroem quanto pelos receptores das mesmas, podem ser muitos e os mais variados, já que dependem do modo como são organizados e colocados em circulação, bem como serão consumidos, como coloca Peruzzolo (1998, p. 58) sobre a questão do acionamento dos sentidos por parte de quem recebe as mensagens:

No caso da leitura da imagem, é o leitor, portanto, que atualiza tanto a problemática da “verdade” no discurso visual quanto a coerência textual, decidindo por onde começar a ver, por onde correr o olhar, que traços e que combinações de espaço e cores salientar, quais deixar na sombra, etc.

Portanto, os sentidos começam a se instaurar na fotografia jorna-lística a partir da estrutura de onde ela, enquanto mensagem, é emanada e organizada, ou seja, o dispositivo ao qual pertence e aos especialistas capacitados a operacionalizarem os dispositivos e os meios discursivos jornalísticos em que circulam as mensagens desse campo, como a foto-grafia. Barthes (1990, p. 11) contribui com essa ideia quando afirma que

14 Conforme Peruzzolo (2004, p. 17-18) sentido entende-se como “[...] o conjunto daqueles valores que fundam a atividade humana”.

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A fotografia jornalística é uma mensagem e, como tal, é constituída por uma fonte emissora, um canal de transmissão e um meio receptor. A fonte emissora é a redação do jornal, seu grupo de técnicos, dos quais alguns fazem a foto, outros a selecionam, a compõem e retocam e outros, enfim, a intitulam, a legendam, a comentam.

Todavia, é para além dos agentes que trabalham na produção da mensagem jornalística que se deve entender a fotografia jornalísti-ca. Esta deve ser compreendida como uma entidade que tem autono-mia, como o próprio Barthes (1990, p. 11) define “[...] a fotografia não é apenas um produto ou um caminho, é também um objeto, dotado de autonomia estrutural; sem pretender absolutamente separar este obje-to de sua finalidade [...]”. Vilches (1987, p. 77) complementa essa ideia ao afirmar que,

La foto de prensa no es ni uma ilustración del texto escrito ni tampouco uma sustitución del lenguaje es-crito. Tiene uma autonomia propia y puede conside-Tiene uma autonomia propia y puede conside-rarse como un texto informativo. Sin embargo, no es indiferente al contexto espacial del periódico.

Portanto, o que potencializa esse meio, o tornando uma estrutura repleta de valores e níveis que geram inúmeros entendimentos e senti-dos é a fotografia15, em primeiro lugar, como linguagem, enquanto orga-nização semiótica, e, em segundo lugar, com uma linguagem própria que a estrutura16, precedente ao ato fotojornalístico. Como afirma Peruzzolo (2004, p. 100) “[...] de modo simplificado podemos dizer que LINGUA-GEM é todo conjunto de sinais que tem regras de valor e de composição e que serve para deslanchar um processo de comunicação” [grifo do autor]. É através da linguagem fotojornalística, pautada pela semiótica barthesiana, que as fotografias escolhidas serão analisadas.15 A fotografia jornalística enquanto um dispositivo desse campo opera-se a partir do mesmo, mas antes disso, parte de sua estrutura primordial, a própria fotografia enquanto linguagem que lhe per-mite dizer do modo como se enuncia. As histórias desses meios também se confundem em alguns pontos dos percursos, pois a fotografia jornalística tem toda a sua evolução marcada pelo desenvol-vimento técnico de sua precursora, e dela, até hoje, depende seu funcionamento assim como suas mudanças, afetando tanto a técnica quanto, até mesmo, as questões conceituais.16 Os outros elementos que compõem a linguagem fotográfica serão aprofundados no texto sobre a metodologia de análise do corpus de nossa pesquisa, por serem subsídios importantes na cons-trução e na interpretação da fotografia.

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

Sobre o feminino de Yeda Crusius: análises das fotografias de Zero Hora

Análise Figura 1A fotografia jornalística correspondente a figura 1, registra uma

cena em preto e branco – o que é uma questão de edição, pois atu-almente todas as fotografias digitais captam em cores as imagens –, ou seja, há ausência de cores. Ou seja, dá a ideia de opacidade ao objeto fotografado, já que as cores significam vivacidade.

Figura 1: Fotografia publicada na página 20 da edição de 1º de setembro de 2006 de ZH.

Em um plano de conjunto, a imagem fotográfica contextualiza o ambiente em que a candidata está inserida. Conforme Sousa (2004, p. 68) “planos de conjunto são planos gerais mais fechados, onde se distinguem os intervenientes da ação e a própria ação com facilidade e por inteiro”. Assim, o conjunto de elementos sígnicos apresentado na fotografia jorna-lística em questão dão a ver que Yeda está em um supermercado.

No terço direito da fotografia está posicionada, formando uma linha vertical (que começa na linha inferior e termina na linha superior do quadro fotográfico), a figura da candidata Yeda Crusius, empurrando o carrinho – signo que indica recipiente de depósito de produtos a serem

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adquiridos em supermercados. No assento para crianças do carrinho, sua bolsa – objeto de uso feminino como utilitário e adereço – está sob o casaco e, ainda ao lado da bolsa, há um vaso de flores. Dentro do car-rinho, há objetos (como garrafas, caixa de cereal, frutas) que denotam produtos selecionados para compra. Ou seja, os objetos são indícios que reforçam que o ambiente se trata de um supermercado e, assim, a imagem denota uma mulher fazendo compras.

As mulheres, portanto, são responsáveis por administrar todos os setores que dizem respeito ao lar: fazer compras para abastecer de ali-mentos a cozinha da família (e consequentemente cozinhar), cuidados com os filhos, organizar a arrumação e a limpeza da casa, entre outras ati-vidades social e culturalmente atribuídas às mulheres. Como nota Colling (2004), nos tempos atuais, a mulher continua sendo “a cabeça do lar”.

Na fotografia, outros significados afloram nesse contexto: em pri-meiro plano, Yeda conduz com firmeza, seriedade e cabeça erguida o carrinho de compras. Tal postura registrada na fotografia conota o senti-do de comando que o Governo Estadual exige e, também, vem de uma figura que realiza atividades profissionais de economista. Ou seja, as contas da casa são administradas por ela, incluindo as compras triviais de manutenção do lar.

O olhar direcionado à frente e para fora do quadro fotográfico co-nota o sentido de que a candidata olha produtos em prateleiras que estão adiante do que a cena selecionada registra através da fotografia. Ou seja, há indícios, pelo contexto, de que Yeda está atenta às compras, pondo-se natural diante do dispositivo midiático que a registra: a câmera fotográfica.

A perna esquerda levemente flexionada dá a ver o movimento de caminhada da candidata, o que seria contraditório com o posiciona-mento do seu corpo, pois, conforme Sousa (2004, p. 74) “[...] as linhas horizontais e verticais tendem a dar a sensação de estatismo [...]”. O que denota esta ocorrência é o fato da imagem estar levemente borrada em torno da perna flexionada, o que evidencia a sensação de movimento já que, para causar tal efeito, o fotógrafo utilizou o recurso técnico da baixa velocidade do obturador17.

Yeda, portanto, caminha diante de prateleiras de supermercado que, em linhas perpendiculares a sua posição, formam uma profundida-

17 O obturador é um dispositivo técnico que se encontra dentro das câmeras fotográficas e que serve para controlar a velocidade e o tempo com que a luz atinge a película ou os pixels que registram as imagens.

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

de de campo18. A prateleira esquerda fecha lateralmente o quadro foto-gráfico no fundo da imagem, desfocando o comprimento das gôndolas e os respectivos produtos nelas localizados. A zona de foco da fotografia está na ponta da frente da mesma prateleira, onde estão dispostos cos-méticos – xampus e tintura para cabelos.

Histórica e culturalmente, os cosméticos foram criados para su-prir a vaidade feminina. Do grego Kosmetikós, significa aquilo que serve para ornamentar. Foi do Egito antigo (3.000 a.C.) que arqueólogos regis-traram os primeiros usos de produtos de beleza por parte das mulheres (e não dos homens). É egípcia, também, a figura feminina – Cleópatra – que incorporou o símbolo da beleza eterna em decorrência de seus rituais de embelezamento que incluíam cosméticos de extrato vegetal (como henna) e de minério (como rouge).

Na Grécia antiga, muitas mulheres morriam porque usavam más-caras faciais que continham chumbo. Em 180 d.C. o médico grego Clau-dius Galen foi o pioneiro nas pesquisas sobre a manipulação de cosmé-ticos. Os resultados de seus inventos foram registrados em um livro que, já no título, dirigia-se a um gênero específico: “Os produtos de beleza para o rosto da mulher”.

Interpreta-se, com isso, que os frascos de cosméticos nas pratelei-ras do supermercado conotam a vaidade e os cuidados estéticos associa-dos à figura feminina. Ou seja, a colocação desses objetos em específico logo atrás da candidata no quadro fotográfico adquire uma significação simbólica do lugar ocupado pelo feminino no âmbito social: cuidados da beleza. As próprias embalagens de tinturas capilares que aparecem na fotografia mostram imagens de mulheres, o que reforça o sentido de que tais produtos são ofertados (e consumidos) ao público feminino.

Assim, há duas significações principais nessa fotografia: a mu-lher fazendo compras e a figura do feminino diante de uma prateleira de cosméticos que, simbolicamente, condicionam à mulher tais repre-sentações no âmbito social. A candidata, portanto, conjuga seu papel político às atividades desempenhadas por ela como figura feminina que atua socialmente. Ou seja, nessa fotografia jornalística, Yeda é repre-sentada por ZH na forma simbólica histórica e culturalmente instituí-18 A profundidade de campo é a distância entre os pontos nítidos mais próximos e mais afas-tados da zona de foco, podendo causar os efeitos de longitude ou de proximidade de acordo com a intenção do fotojornalista. Uma grande profundidade de campo, por exemplo, serve para mostrar o cenário, evidenciando elementos presentes nele ou, ainda, para causar efeitos esté-ticos (SOUSA, 2004).

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da ao gênero feminino: cuidar dos afazeres domésticos (representado aqui pelas compras realizadas pela candidata) e da beleza (represen-tada pelos cosméticos).

Análise Figura 2A fotografia jornalística correspondente à figura 2 foi captada em

contra-plongé, o que significa que “a tomada fotográfica se faz de baixo para cima, tendendo a valorizar o motivo fotografado” (SOUSA, 2004, p.68). Ou seja, o ângulo projeta a candidata para cima, o que dando o sentido de engrandecimento e de superioridade. No contexto da política, a conotação é a de ascensão ao poder.

Ao lado de Yeda, dois homens e uma mulher. Os homens vestem roupas em azul marinho, com listras amarelas no punho das mangas dos casacos e broches da aviação no lado esquerdo do blazer: indícios de vestimenta de pilotos de avião. Yeda usa o quepe (objeto significante – BARTHES, 1990) de um dos pilotos, o que reforça o sentido de poder já atribuído pelo ângulo de captação da fotografia. O quepe simboliza comando, atribuindo à figura da candidata a conotação de autoridade.

Figura 2: Fotografia publicada na edição de 24 de outubro de 2006, página 12 de ZH

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Posicionada atrás de uma mesa (que fecha o quadro no canto in-ferior esquerdo da fotografia), Yeda ocupa o lugar central e, com os bra-ços abertos, sua figura causa efeito de simetria na imagem fotográfica.

Uma pessoa de pé, colocada na linha vertical central de uma fotografia com fundo neutro e com ambos os lados do corpo em posições iguais é exemplo de um motivo simétrico numa fotografia simétrica e, portanto, equilibrada. Aliás, a colocação de objetos/sujeitos no centro de uma fotografia resulta bem quando eles são simétricos (SOUSA, 2004, p. 72).

A simetria é cristalizada pela posição dos braços abertos de Yeda. À sua direita, há uma mulher, que é coberta por sua mão na fotografia. Ou seja, o sentido é de apagamento e de exclusão da outra figura femi-nina na imagem e, assim, a candidata é a única mulher focalizada na fotografia. As figuras masculinas olham e sorriem para ela, aplaudindo seu gesto, o que corrobora o sentido de centralidade que ela tem na fo-tografia jornalística em questão.

Os braços abertos e o respectivo posicionamento das mãos co-notam acolhimento a quem está diante dela (fora do quadro fotográfico). Sua posição remete à figura maternal de Nossa Senhora, que resguarda todos em seus braços sem distinção. As figuras icônicas que represen-tam Nossa Senhora têm os braços nessa posição ou, então, as mãos postas sobre o coração.

Simbolicamente, então, há relação com a figura icônica feminina da religião cristã. O semblante de Yeda tem expressões que lembram as representações de Nossa Senhora: olhar direcionado ao infinito e sorriso suave no rosto. O ângulo de tomada fotográfica (a partir do plano contra-plongé) dá o efeito de elevação do objeto, conferindo, portanto, o sentido de colocação de Yeda em um pedestal. O banner azul atrás da candidata dá a ver o manto que cobre Nossa Senhora com sua cor celestial.

O quepe ganha, nesse contexto, alusão à coroa de Nossa Senhora, o que reforça a expressividade e a força emblemática da figura feminina de Yeda na fotografia de ZH. Os homens, ao olharem para Yeda na fotografia, conotam o sentido de adoração à sua figura, bem como as pessoas se colo-cam diante de Nossa Senhora – figura poderosa para a religião.

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Considerações Finais

Este texto propôs-se a apresentar alguns aspectos do texto dissertativo sobre as representações do feminino em fotografias jor-nalísticas de Zero Hora, no período da campanha eleitoral de 2006, a partir da figura da candidata Yeda Crusius. Traz, como modo de finalização deste texto, alguns aspectos considerados de mais valia como resultado da pesquisa.

Considerando o objeto de pesquisa, observou-se que o feminino representado pelas fotografias de Zero Hora é afetado diretamente pelos modos de construção e organização discursivos desse jornal. Tais afe-tações resultaram, como foi visto também no processo das análises das fotografias jornalísticas, em construções simbólicas que conotavam certos lugares atribuídos à figura do feminino e da mulher no campo jornalístico.

Observou-se, também, a partir das análises, que o feminino re-presentado nas fotografias evidenciou-se num jogo de sentidos constru-ídos pelo jornal Zero Hora em que ora colocava a mulher candidata no lugar de poder, ora evidenciava uma relação histórica da condição das mesmas sob o domínio do modelo patriarcal, onde atividades de poder, liderança e comando eram lugares e funções sociais que não cabiam às mesmas, nem ao feminino.

Como evidenciado nas reflexões sobre o feminino, entende-se que ele é uma categoria de gênero que representa a mulher, e nele es-tão imbuídas inúmeras características que identificam os modos de ser e de vivenciar a condição de sujeito mulher e a posição do feminino no âmbito social. Estas características foram construídas ao longo da traje-tória histórica da humanidade, das culturas e das sociedades indo desde aspectos físico-biológicos, passando por modos e comportamentos so-cioculturais, até a designação dos lugares e funções sociais atribuídas às mulheres e ao feminino. Entretanto, observou-se a partir dos aponta-mentos dos autores trazidos às reflexões sobre o feminino, que ainda, em pleno século XXI, onde a mulher conquistou seu lugar de sujeito atuante nas sociedades, suas representações e condições diante des-sas atuações, estão bastante ligadas ao modelo patriarcal que muitas sociedades ocidentais vivenciaram e ainda, de alguma forma, vivenciam.

Conforme o que se pode abstrair das referências utilizadas para o tensionamento das ideias dessa pesquisa, as mulheres e o feminino,

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

dentro de determinadas culturas, ainda estão subjugados aos valores do modelo patriarcal. Tais valores, como se constatou a partir dos auto-res pesquisados, são também construídos de forma simbólica por pro-dutores com o poder de visibilidade e legitimação, como o campo jorna-lístico, e repassados e (re)significados ao contexto cultural comum em seus dispositivos, como a fotografia jornalística.

A fotografia jornalística, por carregar traços do real, potencializa a visibilidade e a representação dos sujeitos através da mensagem ima-gética embutida nela. No jornal, é um dispositivo que materializa deter-minada cena que, fragmentada do espaço e do tempo, dá a ver alguns aspectos do acontecimento que registra. Assim, vale como indício do que aconteceu, mas carrega elementos simbólicos em sua tessitura que carregam outros sentidos à fotografia e o que nela está representado.

Zero Hora, portanto, representa a candidata Yeda nas fotogra-fias jornalísticas através de um jogo (como dado anteriormente) sim-bólico que a coloca no lugar de mulher (instituído pelo sistema patriar-cal que prevalece até hoje) e no lugar de um poder antes só exercido por homens, pelo campo masculino. A análise fotográfica evidencia tal questão: ora ela aparece fazendo compras, sendo conduzida pela mão masculina na descida do carro e ora ela aparece liderando figuras mas-culinas em caminhadas, ao mesmo tempo em que é cercada por essas figuras como se estivesse sendo legitimada por este campo e capacita-da a estar nesse lugar de liderança.

Pondera-se que o jogo constitui uma estratégia do jornal na tentativa de legitimar a figura feminina na política, inserindo-a aos poucos no lugar de comando através de representações de poder, mas, ao mesmo tempo, não desvinculando a figura da candidata de um lugar histórico do modelo patriarcal de representação do feminino. Para Zero Hora, o poder é historicamente ocupado pelos homens e, então, Yeda é representada como dois sujeitos no jornal: o sujeito mulher e o sujeito político.

Contudo, as análises fotográficas demonstraram que o jornal Zero Hora, ao representar a candidata, organizando os modos de apre-sentação e circulação no âmbito social de sua imagem, o fez não a partir de uma separação da figura da mulher e da figura da candidata, conforme a instância da produção relatou na entrevista concedida. O que se observou, a partir das representações construídas nas fotogra-

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Laura E. de O. Fabricio & Adair Peruzzolo

fias jornalísticas, entretanto, foi que, simbolicamente, o lugar do femi-nino designado pelo jornal e o lugar de poder concentrado na função de liderança, da ordem do campo político e suas características, con-gregaram-se em quase todos os quadros. Isso significa uma postura do jornal que se vale do modelo patriarcal no modo de construção da figura feminina no poder (relativo ao campo político) no contexto cultu-ral em que se inserem Zero Hora, a campanha eleitoral ao governo do Estado e os atores sociais políticos.

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Representações do feminino em fotografias jornalísticas

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O JORNALISMO DIGITAL E AS ESTRATÉGIAS DE COLABORAÇÃO: SINAIS DA DES-RE-TERRITORIALIZAÇÃO1

Vivian BELOCHIO2

Luciana MIELNICZUCK3

ResumoEste texto define o território jornalístico institucionalizado e discute a sua transformação nas redes digitais. O texto define a cauda longa da infor-mação, o Pro-Am e destaca as estratégias comunicacionais do jornalis-mo nesse contexto. Em seguida, expõe aspectos apurados num estudo de caso de Zero Hora.com, interpretados como sinais da des-re-territo-rialização no jornal digital.

Palavras-chaveJornalismo digital; Des-re-territorialização; Pro-Am; Cauda Longa; Zero Hora.com

Digital Journalism and collaboration: signs of unterritorialization

Abstract This article defines the institutionalized journalistic territory and discuss-es its processing in digital networks. The text defines the long tail of in-formation, the Pro-Am and highlights the communications strategies of journalism in this context. Then exposes clearance aspects of a case study of Zero Hora.com interpreted as signs of unterritorialization in the digital newspaper. 1 Texto apresentado no 7º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, em São Paulo, no mês de novembro de 2009. O material discute pontos abordados na dissertação de mestrado “Jornalismo Colaborativo em Redes Digitais: Estratégia Comunicacional no Ciberespaço. O caso de Zero Hora.com”. O trabalho foi defendido em março de 2009, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), município de Santa Maria - RS.2 Jornalista. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Doutoranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] Orientadora. Pós-Doutora pela Universidade de Santiago de Compostela (USC), Doutora em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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Keywords: Digital journalism; unterritorialization; Pro-Am, long tail, Zero Hora.com

O alargamento do território4 do jornalismo no ciberespaço é fato notório na contemporaneidade. O surgimento de diferentes modalida-des comunicativas nas redes digitais e a apropriação destas pelas mí-dias de referência resultaram na renovação das suas possibilidades de ação. O processo parte de remediações (BOLTER; GRUSIN, 2000) e rupturas. Acredita-se que tais transformações marcam a des-re-territo-rialização (LEMOS, 2006) do jornalismo na ambiência digital, que será discutida no tópico 2.

A incorporação dos sistemas colaborativos nos sites dos jornais de referência5 é compreendida como um sinal do fenômeno. Sua inclu-são no jornalismo digital vem acontecendo desde a popularização dos meios colaborativos, que acabaram sendo vistos como concorrentes pelas mídias de referência. A rede amadora de informações forma um circuito noticioso diferente do convencional, definido aqui como a cauda longa da informação (ANDERSON, 2006; BELOCHIO, 2008; 2009).

Em adaptação ao cenário descrito, os meios jornalísticos come-çaram a implantar seções colaborativas nos seus produtos digitais. Com isso, abriram espaço para a produção cooperativa entre profissionais e amadores, isto é, para o movimento Pro-Am. Este último é uma das características da cauda longa, segundo Anderson (2006). O movimento Pro-Am pode estar acontecendo no contexto controlado dos jornais digi-tais, justamente no interior das suas seções colaborativas. Representa uma alteração interessante da relação entre os jornalistas e as suas fon-tes, distinta dos padrões vigentes até pouco tempo atrás.

Este texto define as características do território jornalístico ins-titucionalizado e discute a sua complexificação no ciberespaço. Com 4 Tal característica remete ao pensamento de Bourdieu (1997) sobre o capital que cada campo da vida social detém. Em uma de suas análises, o autor define campo como “um espaço social estru-turado, um campo de forças - há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço - que é também um campo de lutas para transformar ou conservar este campo de forças”. (BOURDIEU, 1997, p. 57). No interior do espaço descrito por Bourdieu (1997), existe um capital simbólico, a partir do qual os atores sociais definem normas, assumem papéis e funções e organizam as suas relações, estruturas e atividades (KLEIN, 2008; BERGER, 1996; MIRANDA, 2005). Assim, são criados limites e vinculações simbólicas que reforçam as fronteiras do campo, aqui relacionado ao território.5 De acordo com Berger (1996, p.1), “o jornal de referência pretende testemunhar o mundo, produ-zindo um discurso universal e objetivável”. Ele é vinculado à chamada imprensa tradicional. Neste trabalho, utilizamos o termo mídias de referência seguindo a linha de pensamento da autora.

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este intuito, contextualiza a cauda longa da informação, o Pro-Am, e destaca as estratégias comunicacionais do jornalismo nesse contexto. Parte-se do pressuposto de que as seções colaborativas e o Pro-Am representam linhas de fuga das práticas jornalísticas tradicionais. Nes-se sentido, elas são capazes de provocar rupturas6.

Por fim, são expostos os resultados de uma pesquisa que bus-cou identificar sinais da des-re-territorialização num meio jornalístico tradicional, a partir da apropriação do modelo da produção colaborativa de notícias. O texto expõe os principais achados do estudo de caso7 do jornal digital gaúcho Zero Hora.com, administrado pelo Grupo RBS, enfatizando especificamente os dados apurados a partir da observação estruturada da sua capa.

A crise do território jornalístico nas redes digitais

O conceito de território tem definição que ultrapassa a mera consciência sobre localização geográfica e divisão de fronteiras. Análi-ses de Berger e Luckmann (1985), Lemos (2006) e Ortiz (1999) reme-tem, de maneiras distintas, ao entendimento de que o homem cria re-lações simbólicas com a realidade, de certa forma moldando o mundo para sua vivência. Assim, o território nacional, por exemplo, não é en-tendido apenas como geográfico. É visto como um conjunto de valores, normas e características que estabelecem um referencial de seu todo. Neste trabalho, o território é compreendido como um espaço simbóli-co institucionalizado8, que possui o seu conjunto de regras, costumes e ética. Trata-se de um ambiente marcado pelo compartilhamento de interesses, de costumes e de condutas reconhecidas e adotadas como padrões de comportamento.

6 Para Mielniczuk (2003, p.156), a ruptura “estaria na quebra de certo padrão, a qual é propor-cionada por um grau elevado da potencialização do uso de determinada característica que acaba acarretando em uma mudança de funções ou criação de novas possibilidades”.7 O estudo de caso integra a dissertação de mestrado “Jornalismo Colaborativo em Redes Digitais: Estratégia Comunicacional no Ciberespaço. O caso de Zero Hora.com”, defendida na UFSM, em março de 2009.8 Berger e Luckmann (1985) definem os territórios simbólicos como a representação da realidade so-cial objetivada, definida como um universo simbólico criado pelos humanos, que se torna um sistema com regras e normas reconhecidas pelos cidadãos. Tal universo passa a dominar a sociedade dentro de sua lógica. Já o processo de institucionalização, segundo os autores, “ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores”, isto é, sempre que certas ações se trans-formam em hábitos cotidianos, que se tornam automáticos, quase como regras de comportamento (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.79).

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O jornalismo digital e as estratégias de colaboração

Nesse sentido, o jornalismo também tem um território. Este se formou historicamente baseado em métodos de produção e transmissão de informações que evoluíram conforme o desenvolvimento tecnológi-co. Desde os manuscritos noticiosos (BURKES; BRIGGS, 2004) e do chamado “protoperiodismo” (GOMEZ MOMPART; MARIN OTTO, 1999) foram criados modelos de produção e distribuição de informações que se transformaram em marcas dos meios informativos. Assim, o jornalis-mo se estruturou e cristalizou as suas bases produtivas no sistema da comunicação de massa, institucionalizando o seu território de ação.

Acredita-se que o surgimento de fatores de crise, tais como as tecnologias da informação e comunicação (TICs), pode acabar deses-tabilizando o equilíbrio deste território. A presença e a disseminação de distintas tecnologias na sociedade evidenciam a transformação das for-mas de representação social (CASTELLS, 1999; ECHEVERRÍA, 1999; LÉVY, 2000). Criam-se, neste ponto, diferentes possibilidades de atua-ção das instituições e dos indivíduos.

Quando a situação descrita se estabelece, começam a ser re-pensadas as práticas, os conceitos e as funções delimitadas em cada território ou campo de ação. Em suma, a necessidade da renovação, que emerge com os referidos fatores de crise, provoca tensões na execução das ações e no cumprimento das funções correspondentes ao ambiente real das instituições. Ou seja, os elementos novos podem modificar a vida cotidiana das instituições. O ciberespaço tem essa característica e possibilita/provoca mutações interessantes nos sistemas jornalísticos. Tais aspectos são marcas do processo de desterritorialização (LEMOS, 2006). Segundo Lemos (2006), ele sucede quando uma nova tecnologia impulsiona a renovação de processos, hábitos e práticas den-tro de contextos estabelecidos, podendo desencadear rupturas capazes de alterar a atuação, função e objetivos de determinados campos. A adaptação acaba tendo reflexos nas características dos produtos jor-nalísticos, já que, a partir do domínio da tecnologia, criam-se diferentes possibilidades para a sua configuração e ocorrem transformações. Consolidadas as rupturas, posteriormente à desterritorialização, ocorre a reterritorialização, compreendida como a reorganização de um sistema, que mescla características de sua identidade tradicional com distintos parâmetros de funcionamento. Ela acontece após o processo de familiarização de certos campos com as diferentes tecnologias que

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surgem e são apropriadas por eles. Assim, a reterritorialização sucede depois que ocorre uma adaptação, que as pessoas passam a dominar os elementos propulsores da mudança e que os produtos e formas de trabalho derivados dessa alteração tornam-se cotidianos.

Quando os processos de desterritorialização e reterritorialização se repetem, após um novo ciclo de renovações, ocorre o que Lemos (2006) explica ser o fenômeno de des-re-territorialização. Enfatizando o ciberespaço como elemento chave desse processo, Lemos (2006, p.7) destaca sua potência para “a criação de linhas de fuga em um espaço de controle informacional”. O pesquisador salienta, ainda, que essa mu-dança de rotas impõe uma dinâmica de readaptações. A modificação das perspectivas de produção e de consumo, além dos fluxos globais infor-mativos, evidencia a necessidade de uma nova adaptação dos produtos e práticas tradicionais à lógica destacada. Relacionando-se as observações anteriores com o desenvolvi-mento do jornalismo digital, percebe-se que, atualmente, as tecnologias inseridas no circuito da informação em rede estão provocando novamente a necessidade de adaptações. O surgimento de sistemas que facilitam a produção e publicação de conteúdos, aliado à abertura dos pólos de emissão, culminou no aparecimento de espaços como blogs e de páginas colaborativas. As tecnologias móveis também abriram diferentes opções de atuação para os indivíduos e para os meios informativos. Assim, foi iniciado novamente um processo de apropriação no jornalismo, que vem experimentando tais recursos. O ciclo de mudanças pode indicar o início da des-re-territorialização no jornalismo, devido à abertura da possibilidade de transformações nos produtos e nas formas de pensar o fazer jornalístico. As mudanças partem da absorção de tecnologias e modalidades informativas que apareceram na ambiência digital e vem mostrando a sua força. Acredita-se que a sua inclu-são no jornalismo digital, com o passar do tempo, pode acabar ocasionando alterações radicais no seu território, desencadeando rupturas.

A cauda longa da informação, o Pro-Am e as estratégias comuni-cacionais no jornalismo digital

Aspectos como a popularização e a miniaturização das ferramen-tas de produção e de publicação são impulsos ao crescimento do pro-

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cesso de participação nas redes. O contato dos cidadãos com as mídias locativas9 e com os territórios informacionais10 (LEMOS, 2007) também são fatores capazes de estimular a inserção de indivíduos e organizações no ciberespaço, intensificando as iniciativas de colaboração. A conexão ge-neralizada, que segundo Lemos (2006) é o resultado da vulgarização do acesso ao ciberespaço, contribui para a transformação. Assim, forma-se um diferente circuito de trocas entre os jornalistas e os leitores nas redes digitais. O processo é potencializado pela disponi-bilização de produtos jornalísticos em bases de dados (BDs) (BARBOSA, 2007) e pela apropriação dos recursos da Web 2.0, que tem como base o aproveitamento da inteligência coletiva (ROMANÍ; KUKLINSKI, 2007).

Acredita-se que os benefícios das BDs e da Web 2.0, das tec-nologias móveis, das mídias locativas e do território informacional (LEMOS, 2007; SILVA, 2008) na produção e difusão de dados por cidadãos e organizações impulsionam uma mudança no padrão do jornalismo digital. A marca mais evidente da fase descrita é a abertura à interferência do público nos materiais noticiosos, que está sendo experimentada nas mídias de referência.

A intensificação das manifestações dos cidadãos no ciberespaço cria um circuito da informação que pode ser relacionado ao que Ander-son (2006) define como “cauda longa”. Segundo o autor, ela possibi-lita a valorização dos chamados nichos, “numa era sem as limitações do espaço físico e de outros pontos de estrangulamento da distribui-ção” (ANDERSON, 2006, p.23). Assim, na era da comunicação digital, é possível atender a necessidades e desejos de públicos específicos por meio das redes, que possuem espaço ilimitado, abrigando, assim, tanto a preferência das massas quanto a das minorias. Com a notícia ocorre a mesma coisa: o que antes era publicado com exclusividade pelas mídias de referência agora divide espaço com as iniciativas dos amadores. O quadro atual pode configurar uma cauda longa da informação. A caracterização da cauda longa da informação é considerada ne-cessária, para que se entenda como se reformula o mercado informativo nas redes e de que maneira ele pode acabar afetando o território institu-9 Segundo Lemos (2007, p.1), “as mídias locativas são dispositivos informacionais digitais cujo conteúdo da informação está diretamente ligado a uma localidade. Isso implica uma relação entre lugares e dispositivos móveis digitais até então inédita”. 10 Instituições e sujeitos podem se fazer presentes no ciberespaço a partir do que Lemos (2007) chama de “território informacional”. Este último é definido como “o espaço movente, híbrido, forma-do pela relação entre o espaço eletrônico e o espaço físico” (LEMOS, 2007, p.12).

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cionalizado do jornalismo. Entre os pesquisadores que analisam o jorna-lismo colaborativo, é perceptível a existência de questionamentos sobre a inserção da prática da colaboração no campo jornalístico (FONSECA; LINDEMANN, 2007; GILLMOR, 2005; HEWITT, 2007; PALACIOS; MU-NHOZ, 2005; GARCÍA; LÓPEZ, 2007; BARBOSA, 2007; STORCH, 2008; LÓPEZ, 2008; NOCI; SALAVERRÍA, 2003; MEYER, 2007). Entretanto, eles ainda não chegaram a um consenso sobre quais fatores impulsio-nam a inclusão dos conteúdos colaborativos nos jornais digitais. A figura mostrada a seguir ilustra a cauda longa adaptada ao cenário informativo:

Figura 1: Na cauda longa da informação, as mídias de referência são os hits e os sistemas colaborativos estão entre as mídias de nicho.

Para entender melhor como se forma a cauda longa da informa-ção, é pertinente observar a sua estrutura no circuito informativo digital, conforme a figura 1. Seguindo o conceito de Anderson (2006), no topo da curva da demanda ficam os chamados hits, ou seja, os produtos mais consumidos, preferidos pela maioria do público. No modelo da cauda longa da informação, esse seria o caso das mídias de referência, que conquistaram credibilidade no decorrer da sua história, tais como jornais, emissoras de TV e rádio e outras marcas mais conhecidas e também atuantes fora do universo digital. Sua presença no ciberespaço é mais uma forma de projeção de seus conteúdos massivos. Na cauda, conforme descreve o autor, encontram-se os nichos, aqui entendidos como as variadas mídias que atendem demandas específicas e até personalizadas do público, podendo ter ligação direta com organizações

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O jornalismo digital e as estratégias de colaboração

e indivíduos específicos e mantendo o seu foco em assuntos determinados. Aí estão incluídos os meios informativos sustentados por amadores, que não possuem ligação direta com as mídias de referência. Nesse contexto estão os sistemas conhecidos como jornalismo colaborativo, incluindo-se as páginas colaborativas, que são espaços sustentados por amadores, com ou sem controle editorial. Estas coexistem com a mídia tradicional, isto é, convivem com os hits num mesmo espaço. Assim, a variedade de iniciativas que atende aos nichos constitui certa concorrência com os hits. O cenário constituído na cauda longa da informação obriga os meios jornalísticos de referência a repensarem as suas práticas, com o objetivo de manter a sua popularidade no ciberespaço. O processo é marcado pela apropriação dos sistemas colaborativos na mídia tradicional. A ação se con-figura como estratégia comunicacional, que visa à inclusão dos meios jorna-lísticos na cauda longa da informação. Tal estratégia se dá, inicialmente, por ações de remediação (BOLTER; GRUSIN, 2000), isto é, de adaptação das mídias mais antigas às novidades tecnológicas, a partir da sua incorporação aos produtos tradicionais. A adaptação, contudo, pode chegar a modificar certos procedimentos e normas até então vigentes como padrões dominan-tes, possibilitando, dessa forma, a des-re-territorialização.

Com o processo de remediação, surgiram as seções colaborativas, que foram desenvolvidas com base nos formatos das páginas colaborati-vas, definidas anteriormente. É o caso de espaços como o Eu Repórter, de O Globo11, do Foto Repórter12, pertencente ao Estadão.com, do Yo Perio-dista13, vinculado ao jornal espanhol El País, e da seção Leitor-Repórter14, de Zero Hora.com. O diferencial destas seções é a sua regulamentação interna. As normas adaptam o modelo colaborativo aos critérios de ação das mídias de referência, na tentativa de garantir o controle da situação comunicativa, isto é, de manter seu território equilibrado.

Vale lembrar que os meios de referência tem se apropriado, tam-bém, dos modelos do que Primo (2008) define como micromídias digitais. O pesquisador expande a descrição das micromídias analógicas de Thornton (1996), entendendo que, no contexto digital, elas são um “sub-tipo” que “di-ferencia-se substancialmente da micromídia analógica no que toca o alcan-ce”. As micromídias digitais têm maior abrangência porque estão nas redes,

11 http://oglobo.globo.com/participe12 http://www.estadao.com.br/ext/fotoreporter/foto_imagens.htm13 http://www.elpais.com/participacion14 http://www.clicrbs.com.br

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ou seja, permanecem disponíveis em escala global. Já é possível visualizar algumas páginas jornalísticas que se apropriaram dos sistemas citados. Em alguns casos, estes aparecem como espaços semelhantes aos modelos comunicacionais propostos em microblogs como o Twitter.

Outro fenômeno da cauda longa que pode estar acontecendo no jornalismo e sendo intensificado nas seções colaborativas é o movimento Pro-Am. Citando experiências da astronomia realizadas com o auxílio de voluntários, Anderson (2006, p.58) define o movimento como o sistema “em que profissionais e amadores trabalham lado a lado”. O jornalismo colaborativo e suas configurações no ciberespaço, em formatos de blo-gs, sites como Wikipedia, Wikinews e OhmyNews, além de outros canais abertos por jornais digitais da grande mídia, evidencia a incorporação da era Pro-Am nos sistemas informativos em rede.

O movimento Pro-Am é considerado uma linha de fuga, ou seja, um fator des-re-territorializante, em relação aos parâmetros tradicionais do jornalismo, mais especificamente no que diz respeito à relação estabele-cida entre os profissionais da informação e as suas fontes. É reconhecida a possibilidade de uma alteração nesta relação (PINTO, 2000; MACHA-DO, 2003; PRIMO; TRÄSEL, 2006). Entende-se que, no ciberespaço, a mudança é impulsionada pelos sistemas colaborativos, que possibilitam, entre outros processos, a ampliação da resolução semântica das infor-mações publicadas na Web (FIDALGO, 2004) e o desenvolvimento do crowdsourcing15 (BRIGGS, 2007).

No jornal digital Zero Hora.com, foram encontradas marcas dos processos descritos nos parágrafos anteriores. O próximo tópico descre-ve aspectos relevantes da pesquisa.

Estudo de caso de Zero Hora.com: observação da capa Até aqui foram identificadas mudanças que vem ocorrendo no jornalismo a partir da apropriação das TICs e dos modelos das pági-nas colaborativas no cotidiano dos meios digitais. Para visualizar sinais destas alterações, foi realizado o estudo de caso do site Zero Hora.com. A observação da capa do jornal digital, que integrou a primeira parte do estudo de caso, será priorizada neste texto. Isso porque trou-15 Segundo Briggs (2007), crowdsourcing significa o “público como fonte de notícias ou conteúdos produzidos por usuários”. O termo é compreendido como “quase um sinônimo de investigação ou re-portagem compartilhada, colaborativa, distribuída ou em código aberto”. Beneficia, então, ao Pro-Am.

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O jornalismo digital e as estratégias de colaboração

xe resultados importantes, que demonstram o Pro-Am, ou seja, linhas de fuga que podem indicar a des-re-territorialização.

A observação estruturada foi aplicada numa amostra de 96 ca-pas, captadas no período de 32 dias, entre 16/12/2008 e 16/01/2009. O que se buscou na amostra foi a frequência da utilização de conteúdos colaborativos e da apropriação do modelo das micromídias digitais. Com esse intuito, foram contabilizadas as chamadas e as manchetes16 para as notícias da seção Leitor-Repórter e para os murais17. A imagem a se-guir mostra o formato das manchetes num quadro verde e o formato das chamadas num quadro de cor laranja:

Figura 2: A manchete (quadro verde) aparece com destaque no topo da página e as chamadas (quadro laranja) são mais discretas e

aparecem em espaços menos privilegiados da capa18. 16 As chamadas remetem a atenção dos leitores para todas as matérias e links exibidos na capa. Servem como referências sobre os conteúdos gerais do jornal digital, enquanto as manchetes reme-tem aos conteúdos jornalísticos de destaque na capa. Em alguns casos, estas últimas são acompa-nhadas por fotografias e infografias, sempre localizadas na parte superior da capa.17 Espaços semelhantes aos fóruns de discussão, caracterizados pelo debate de um assunto espe-cífico e pela limitação de caracteres.18 Capa do dia 8/01/2009. Acesso via http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local= 1&section =capa_online.

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A pesquisa também notificou as chamadas que convidam os interagentes para o envio de fotografias e o número de chamadas para os blogs. A tabela a seguir mostra os resultados gerais da observação:

Tabela 1 – Número de chamadas gerais e de chamadas entre as manchetes.

CHAMADAS NÚMERO DECHAMADAS GERAIS

NÚMERO DE CHAMADAS ENTRE AS MANCHETES

Leitor-Repórter 09 06

Murais 90 23

Fotografias 61 07

Blogs 82 01

Conforme a tabela 1, em nove capas foram identificadas cha-madas para o Leitor-Repórter. Destas, seis apareceram entre as man-chetes jornalísticas. Ao todo, quatro são manchetes que remetem aos conteúdos da seção colaborativa. Duas chamadas foram localizadas na parte inferior da capa, recebendo menor destaque na publicação. Já os convites complementares às manchetes principais, expostas no topo da página, apareceram em duas ocasiões, solicitando o envio de notícias e de fotos e vídeos. Um total de 90 chamadas para os murais foi identificado nas ca-pas, sendo que 67 estavam localizadas na parte inferior da interface, ou na coluna da direita do jornal digital, que é destinada aos espaços de va-riedades. As chamadas conduziam os interagentes à participação em de-bates e discussões. Todas as vezes em que os murais foram associados às manchetes jornalísticas, coletavam depoimentos dos interagentes so-bre os assuntos das notícias. Assim, o jornal digital consegue expandir a abrangência da sua cobertura jornalística, isto é, o veículo amplia a quan-tidade de informações a respeito dos fatos transformados em notícia.

Com relação aos canais de publicação de fotografias, foram ve-rificados sete casos de chamadas-convite relacionadas às pautas jorna-

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O jornalismo digital e as estratégias de colaboração

lísticas. A maioria remete à seção Leitor-Repórter, onde as imagens são publicadas. As demais chamadas para o envio de fotografias tem como tema o cotidiano dos interagentes. Foram encontradas 82 chamadas para a leitura dos blogs. A maio-ria apresenta conteúdos dos profissionais do Grupo RBS. Portanto, tais espaços não privilegiam a publicação de conteúdos colaborativos. Apenas um blog amador foi destacado entre as manchetes das 96 capas. Conforme o exposto, percebe-se que os conteúdos da seção Leitor-Repórter e os murais apareceram com considerável frequência na amostra observada, complementando os dados jornalísticos. Neste texto, serão descritos dois casos que demonstram tal utilização.

A imagem a seguir mostra um exemplo da utilização dos murais:

Figura 3: No dia 3 de janeiro, Zero Hora.com pediu que o público enviasse relatos sobre o trânsito na volta do litoral pela freeway 19.

19 http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=capa_online.

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Na figura 3 a flecha vermelha indica o link “Deixe seu relato so-bre transtornos nas estradas na volta do feriadão”, postado junto com a manchete principal da página, intitulada como “Tráfego deve seguir intenso por pelo menos duas horas na freeway”. Percebe-se que, entre as intervenções da redação e os recursos de interação com as fontes, é estimulada a troca de informações entre jornalistas e interagentes. O retorno da chamada evidencia ainda mais o processo, como pode ser observado na capa do dia 4/01/2009:

Figura 4: Em 4 de janeiro, foram publicados os retornos dos interagentes para as chamadas da capa de 3 de janeiro20.

A flecha de número um aponta para o depoimento de uma moto-rista que teve problemas no trânsito do litoral catarinense até Porto Ale-gre. Junto com o relato da colaboradora está a frase “E você? Enfrentou problemas na estrada? Mande seu relato”. A flecha de número dois mos-tra uma fotografia enviada por uma colaboradora e postada na manchete “Ilhados, gaúchos se alimentam de sobras do feriado e doações”. A cha-mada é referente a uma matéria construída pela redação. O uso da foto-grafia captada por uma amadora foi informado no corpo da notícia. 20 http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=capa_online.

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O jornalismo digital e as estratégias de colaboração

Os dados destacados indicam que os jornalistas de Zero Hora.com utilizam o que é enviado pelos interagentes na complementação das suas coberturas. No caso descrito agora, percebeu-se a tentativa de dar mais credibilidade à notícia, na capa, a partir do relato da colaboradora. Os conteúdos captados a partir dos convites feitos aos colaboradores são reunidos por determinado período, até que a redação formule novas matérias utilizando tais informações. Assim, criam-se expectativas sobre a publicação do que é encaminhado pelo público, ao mesmo tempo em que o veículo faz uma cobertura mais completa dos fatos.

A utilização dos materiais enviados à seção Leitor-Repórter tam-bém demonstra a valorização dos conteúdos amadores em Zero Hora.com. A imagem que segue traz um exemplo:

Figura 5: A capa do dia 8 de janeiro de 2009 teve várias manchetes para os conteúdos publicados na seção Leitor-Repórter21.

Na figura 5, a flecha de número um aponta para uma das fotogra-fias coletadas por interagentes que presenciaram o acidente com o ônibus do transporte coletivo urbano de Porto Alegre, registrado na manhã do dia 8/01/2009. A imagem mostra o momento em que o veículo foi tomado pe-21 http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=capa_online.

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las chamas em pleno centro da capital gaúcha. Trata-se de uma situação inesperada, que representou perigo aos moradores e transeuntes.

O quadro verde destaca a legenda “Leitor Renan Backi Leo-nardo registrou as chamas no coletivo. Veja outras fotos”. Clicando no link, os interagentes conferiam um slide show com diversas fotos ti-radas por colaboradores e enviadas à redação de Zero Hora.com. No caso relatado, o jornal digital realizou uma ação parecida com o que foi feito no episódio do trânsito lento na freeway. Postou convites na capa do jornal digital solicitando que o público enviasse fotos, vídeos e textos (a flecha de número dois indica um desses links). O resulta-do foram 13 textos enviados ao Leitor-Repórter, alguns com vídeos e outros com fotografias. Assim, Zero Hora.com teve condições de mostrar vários ângulos do acidente com a ajuda dos interagentes. A flecha de número três mostra a chamada para um vídeo do incêndio, registrado por um colaborador.

Considerações finais

Os dados expostos reforçam a ideia de que os conteúdos cola-borativos utilizados na página Zero Hora.com são misturados aos conte-údos jornalísticos quando oportuno. O jornal digital dá destaque para os conteúdos amadores entre as suas manchetes. A abertura acontece de forma moderada, porém confirma que o meio se apropria dos materiais dos leitores para enriquecer o seu produto. Marca disso são os convites para a colaboração em discussões temáticas, com assuntos pré-defini-dos pela equipe do jornal digital. Em alguns momentos, o retorno destes convites é surpreendente, como constatado no caso do ônibus urbano que incendiou em Porto Alegre.

Percebeu-se a realização regular de convites para a participação do público. O processo não serve apenas à discussão de assuntos sem relevância jornalística: os leitores são estimulados a colaborar sempre que ocorre algum evento que transcende a capacidade de cobertura de Zero Hora.com. Assim, a utilidade da seção Leitor-Repórter e dos mu-rais evolui de estratégia comunicacional que visa ampliar os acessos da página para uma parceria com os colaboradores. Eis um sinal de que o Pro-Am acontece no jornal digital, alargando as fronteiras do seu terri-tório. A inclusão de conteúdos colaborativos na capa de Zero Hora.com

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O jornalismo digital e as estratégias de colaboração

é considerada uma das linhas de fuga características da des-re-territo-rialização, já que se mescla, no jornal digital, a atuação de jornalistas e amadores, e ambos acabam trabalhando em parceria. Cabe ressaltar que a des-re-territorialização não acontece de for-ma plena no caso de Zero Hora.com. Ocorre, no meio, a abertura mode-rada à participação do público, fator que demonstra uma transformação conservadora. Tal aspecto foi identificado nas capas observadas, já que as colaborações exibidas com destaque no espaço abordam temas refe-rentes às pautas definidas previamente por sua equipe de jornalistas. Isso mostra que os profissionais continuam buscando o controle da situação comunicativa. Também é notório o destaque conferido às informações que atendem aos critérios de importância pertinentes ao jornalismo tradicional.

A partir dos dados expostos, constatou-se que ainda não é possí-vel afirmar que a des-re-territorialização, ou a ruptura, está acontecendo. Contudo, as suas marcas são visíveis. O campo está em crise, a partir do surgimento de diferentes possibilidades de ação no ciberespaço, que provocam o alargamento das suas fronteiras. Assim, destaca-se a im-portância de verificar a possibilidade do Pro-Am em outros jornais de referência e, também, nos demais sites informativos.

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O GROTESCO MIDIÁTICO: ESTRATÉGIAS DE IMAGEM NAS CHARGES DE IMPRENSA1

Vivian C. de MIRANDA2

Adair PERUZZOLO3

ResumoPropõe-se, neste texto, apresentar os resultados de pesquisa na qual o objetivo geral buscou compreender o grotesco, através do desenho de humor de mídia jornalística impressa. Diante da possibilidade de com-preender melhor o fenômeno pela engrenagem dos textos humorísticos, a partir de uma abordagem semiológica, procurou-se demonstrar que o grotesco é uma significação que opera como princípio para a comicidade nos jornais. O enfoque na imagem, no que se refere ao processo analí-tico, apontou para estratégias discursivas utilizadas na construção dos sentidos que operam, enquanto estratégias textualizadoras, manifestas, sobretudo, através do componente visual da expressão.

Palavras-chaveGrotesco; Comicidade; Estratégia de imagem; Imprensa; Sentido.

The grotesque media:image strategies in charges in the press

AbstractIt is proposed in this article to present the results of a research in which the general objective was to understand the grotesque through the humor cartoons in the newspaper printed media. In face of the possibility to best understand the phenomenon through the gear of the humorous texts, parting from a semiological approach, it was attempt-ed to demonstrate that the grotesque is a signification that operates as a start for the comical aspect in the newspapers. The focus on image, 1 Trabalho resultante da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunica-ção da Universidade Federal de Santa Maria. Área de Concentração: Comunicação Midiática. Linha de Pesquisa: Estratégias Comunicacionais.2 Bacharel em Desenho Industrial – Programação Visual. Especialista em Arte e Visualidade e Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected] Orientador. Pós-Doutor pela Universidad Autónoma de Barcelona (UAB), Doutor em Comu-nicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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O grotesco midiático

in what is referred to the analytical process, points to discursive strat-egies used in the construction of senses, which operate while textual strategies are demonstrated, above all, through the visual component of the expression.

KeywordsGrotesque; Comic aspect; Image strategy; Press; Sense.

O grotesco diz respeito a um fenômeno que se dá em meio a outras significações, como o feio, o obsceno e o cômico. Como uma questão de mídia (grotesco midiático), vem sendo observado há algum tempo nos mais variados meios, sobretudo no audiovisual, o que impul-sionou o interesse deste trabalho para as manifestações da imprensa. Segundo as contribuições de Muniz Sodré (1973; 2002), muitas das produções culturais midiáticas se inserem nesta que o autor considera como uma categoria “estética”4. Nesse contexto, a pesquisa em questão debruçou-se sobre a possibilidade de tratar da temática do grotesco pelo viés da abordagem semiológica. O que se percebeu foi a relevância da discussão sobre o papel da imagem nesta temática, pois ela expressa muito do que discute como a manifestação do grotesco em matérias significantes. Contudo, antes de analisar as matérias, é preciso atentar para a noção do que se considerou como “grotesco” neste trabalho, que se constituiu enquanto uma significação que retoma representações associadas a tudo o que foge às normas vigentes – deformações físicas, hábitos obscenos, ex-pressões grosseiras, e assim por diante (BAKHTIN, 1996; ECO, 2007). A discussão do grotesco na aproximação com o humor, aqui vi-gente, advém de constatações de Muniz Sodré (2002) para quem o gro-tesco é uma “tensão risível”. Para Eco (2007), a violação do senso de pudor e o comportamento ou uso de expressões obscenas quase sempre fazem rir. Sendo assim, o corpus analisado, o “desenho de humor”, insere-se como textos que também recorrem à construção de certos sentidos, como o grotesco. São também manifestações visuais que se constituem em verdadeiras narrativas, em parte permitidas pelo seu caráter icônico, que faz com que a imagem seja capaz de “contar”.

4 Trata-se de uma aproximação com a vertente de estudos estéticos, que consideram a exis-tência de uma série de outras categorias, tais como o trágico, o dramático, o cômico, o poético, gracioso, sublime, etc.

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Vivian C. de Miranda & Adair Peruzzolo

O estudo acadêmico do fenômeno junto ao riso e o entrete-nimento ganha relevância no corpus midiático. Hoje, sobretudo mar-cadas, enquanto recurso comunicacional, pelo exagero, hipérboles e distorções, as formas assumidas pelo grotesco na mídia guardam forte relação com a caricatura, tipo de texto que Muniz Sodré (1973, 2002) insere na categoria do grotesco, no sentido de decorrente do recurso ao disforme, à quebra das regras estéticas correntes, àquilo que não corresponde à realidade, etc. Estas reflexões levaram a problematizar, no caso das produções midiáticas, a relação entre o grotesco na im-prensa e a comicidade. Esta referência ao âmbito cômico não é uma questão nova, e o referencial teórico chama atenção que o grotesco vem sendo estudado na aproximação com outras questões, por onde se desenvolveu esta pesquisa. Recorte este que leva a uma série de questionamentos sobre como se dão estas inter-relações, inclusive porque estes sentidos não têm sido estudados de modo isolado. E, embora reconhecendo o trabalho com mensagens multimo-dais, o conteúdo da imagem apresenta pistas relevantes para a análise com grande riqueza, o que vem a respaldar a ênfase no visual. Desde os estudos de Bakhtin (1996) e na atualidade das mídias, o grotesco vem associado à comicidade visual, sobretudo, e isso se explica por uma tradição anterior às classes populares da Idade Média, segundo a existência de uma arte grotesca arcaica que influenciou todas as de-mais manifestações posteriores. Acredita-se também que compreender o que é o grotesco hoje passe pela reflexão do fenômeno junto aos dispositivos midiáticos aos quais está aderido, e assim, delineia-se uma pesquisa que envolve a relação grotesco/imagem/mídia, que se desenvolve junto ao dispositivo impresso, através da observação empírica da Revista da Semana.

Grotesco: da cultura ao texto

Ao percorrer noções sobre o grotesco, encontram-se inicialmente os estudos de Bakhtin (1996), que discorre sobre as manifestações de uma cultura cômica popular, em que são correntes as grosserias blas-fematórias, expressões verbais eliminadas da comunicação oficial, bem como imagens “exageradas e hipertrofiadas”. Ocorre que estas formas de expressão, marcadas pela proibição pelos cânones atuais, na Idade

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O grotesco midiático

Média e no Renascimento eram parte de uma visão carnavalesca da vida, que tomou lugar na vida cotidiana, sem a observação das regras e tabus. No que concerne ao tempo do “realismo grotesco”, todo exagero tem um aspecto positivo e afirmativo, alegre, festivo, e por isso a paró-dia5 medieval guarda diferenças com as da época moderna.

No contexto dos sentidos sociais, é possível apontar como “gro-tesco” a compreensão que se tem de algo que nos causa efeito de es-tranhamento, ou ainda quando nos parece ridículo, por desrespeitar ou violar aquilo que se tem como norma ou senso. Conforme Eco (2007), a sociedade ocidental se incomoda diante da transgressão de certas re-gras, frente às quais o homem se coloca como constrangido. Tudo aquilo que “ultrapassa” as normas do pudor, principalmente o que é ligado ao sexo, aos excrementos do corpo, das necessidades naturais, também é considerado grotesco. Estas questões variam conforme cultura e época, mas de modo geral, nossa sociedade acostumou-se com certo mal-estar diante da violação do senso de pudor, do que é politicamente correto, trazendo o conceito de obscenidade, uma das formas do grotesco.

A respeito das representações, segundo Peruzzolo (2006, p. 34), trata-se do “investimento qualitativo no dado percebido. É um pro-cesso avaliativo pelo qual os estímulos percebidos recebem valora-ções, porque passam a significar algo para o organismo. Sua função é adequar as reações do organismo à sua relação com o mundo”. A interpretação ou ato de representar, no quadro da teoria da significa-ção, remete a processos que envolvem cognição, mas as discussões não se fecham somente nas teorias cognitivas, pois estes processos apontam, numa perspectiva humana, para fatores como experiências e memórias, crenças e desejos, que repercutem na representação dos fenômenos. Nesse contexto, ao que tudo indica, o que é grotesco para uns não o é para outros, questão que encontra ressonância no papel da cultura como “lugar” simbólico de organização comunitária dos sig-nificados e/ou sentidos, fundamental para o processo da semiose, ou seja, o processo de significação (significantes e conceitos que se ligam constituindo signos, que constituem textos) tem, então, dimensões cul-turais, o que coloca o texto dentre os fenômenos de natureza cultural,

5 A paródia (para = ao lado de; ode = canto) pode se manifestar sob várias formas. No âmbito cômico, sobretudo através do exagero, pode convergir tanto para um sentido crítico (contracanto), pelo recurso à ironia e sátira, ou como um elogio (canto conjunto), pelas conotações positivas, como o que se encontra em Propp (1992).

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como “objeto de relação”. Assim, muitas discussões sobre o grotesco se encaminham na direção dos textos, das representações da cultura.

No caso das imagens, por exemplo, que retomam certas signifi-cações, na perspectiva semiológica não podem ser tomadas como algo dado e passam, portanto, por um processo de significação, característi-co do processo sígnico. Como aponta Bakhtin (1996), no “realismo gro-tesco”, as contradições são parte integrante dessa cultura, e não car-regavam consigo o sentido de algo pejorativo, que só foram mais tarde firmadas com esse viés. Apontamentos concernentes à cultura erudita chamam a atenção para o sentido que para ela têm as manifestações da cultura popular, em que as representações visuais, por exemplo, “pare-cem disformes, monstruosas e horrendas”, se consideradas do seu pon-to de vista (estética clássica), ou seja – trata-se de “imagens grotescas”.

Usando da possibilidade de pensar o que uma imagem repre-senta pela descrição, é possível compreender os significados vigentes - principalmente em termos de referencialidade6. A imagem, seja pelo seu aspecto icônico ou plástico, opera num jogo, sendo capaz de deno-tar ou conotar, articulando determinados sentidos, através de procedi-mentos de natureza semântica ou sintático-visuais. Segundo os estudos da linguagem, a significação semântica é um modo de composição do significado que não se detém nos constituintes plásticos (sintáticos), in-teressando a dimensão figurativa ou icônica, e neste nível, as situações grotescas estão vinculadas à escatologia (partes baixas do corpo), à te-ratologia (monstros), aos excessos corporais e às atitudes ridículas. Es-tas imagens retomam representações que são da ordem de excreções, órgãos corporais e cheiros associados a estas matérias significantes. Conforme Villafañe (2000), a significação semântica é o modo de dar significado a uma imagem ou denominá-la, operando por uma espécie de redução a sentido.

O grotesco como gênero textual

Pensar o grotesco como categoria de texto é considerar a exis-tência de um gênero que o compreende, nesse caso o gênero literário. Para Bakhtin (2003, p. 262), cada campo da comunicação ou de utiliza-

6 Conforme Peruzzolo (2004, p. 82), a questão do referente, que designa na semiótica Peirceana “objeto nomeado pelo signo”, deve ser compreendida como o faz Eco, enquanto referente cultural ao qual o falante se refere, porque movimenta, sobretudo, um conteúdo cultural que é semiotizado.

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O grotesco midiático

ção da língua elabora tipos mais ou menos estáveis de enunciados, os quais o autor denomina de “gêneros do discurso”. Conforme o autor, um enunciado (oral, escrito), em termos de emprego da língua, reflete as condições de cada campo, e de tal modo, se caracteriza por seu conte-údo (temático) e estilo da linguagem (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais). São determinados modos de enunciação, devido à apre-sentação de recorrências, que permitem classificações diferenciadas de gêneros discursivos/textuais.

Em geral, estudam-se os gêneros de acordo com a literatura, que guarda relação com a história da ciência Estética (por isso chamados artístico-literários). De tal modo, segundo Souriau (1973), as categorias tornaram-se reivindicadas por uma série de ciências, como a Linguística, a Sociologia, a Psicologia, uma vez que fracionados o belo e o feio não são mais objetos específicos da Estética. Nesse contexto, em busca de uma terminologia que possa encontrar terreno para discussão no campo da comunicação, acredita-se que um ponto de partida possível é a ado-ção do termo “gênero” para discutir os tipos de textos característicos, em lugar de “categorias estéticas”.

No grotesco, encontram-se manifestações que muito assinalam a vulgaridade, o grosseiro, e até a crueldade, por meio da referência (ico-nicidade). Por outro lado, no interior do texto ocorre um jogo pelo qual as significações ocorrem, sob a forma de uma engrenagem. Esta questão, que é própria da semiótica, pode ser observada explorando os aspectos vigentes nos estudos sobre o texto e a construção dos sentidos. Para a construção das significações, acredita-se também que o texto seja o lugar das estratégias, implicando um processo que compreende estra-tégias de significação através de artifícios linguísticos. Por exemplo, as manifestações de caráter cômico, por serem grotescas, nem sempre exi-bem o que é puramente grosseiro, o que ocorre na mídia. Muitas mani-festações se apresentam por modos mais refinados em termos de sua constituição, causando efeitos risíveis segundo as variadas estratégias utilizadas, as quais explicam o processo de significação, para os estudio-sos do humor (BERGSON, 2001).

Este panorama se constitui no ramo de teorias que abrangem, por assim dizer, o estudo dos fenômenos e construções que trazem as significações na linguagem, de modo que é possível buscar os procedi-mentos de fabricação, pois se trata da semiótica dos jogos significantes

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ou conjuntos significantes. As matérias, expressas em linguagem, de-signam signos que as construções sociais associam a certos significa-dos (substância). Sob a perspectiva semiológica, os signos são tomados como construções, ao ponto de se questionar onde é possível “lê-los” nos estímulos materiais. Conforme esclarece Peruzzolo (2004, p. 96), observando a organização textual, uma vez que não são os signos o objeto de análise semiológica, e sim o texto, existe um “esforço para relacionar blocos de signos”, por parte do analista.

Em termos de estratégias textualizadoras, Koch (1998) trata dos recursos que dizem respeito às construções linguísticas que constroem determinados sentidos no texto, as quais se tomam aqui enquanto es-tratégias discursivas, uma vez que o termo discurso pode ser admitido, na semiótica discursiva, como sendo o próprio texto, a própria matéria.

As estratégias textuais, por seu turno – que, obviamen-te não deixam de ser também interacionais e cognitivas em sentido lato – dizem respeito às escolhas textuais que os interlocutores realizam, desempenhando dife-rentes funções e tendo em vista a produção de deter-minados sentidos. (KOCH, 1998, p. 31)

Nesse contexto, têm-se buscado compreender como estas cons-truções verbais, visuais, se materializam nos textos. Em se tratando de mensagens multimodais7, ao trabalhar com o aspecto também do verbal e sob a noção de estratégias textuais, Koch (1998) aponta recursos que são interessantes para a discussão sobre a significação, tais como estra-tégias de organização da informação, de formulação, de referenciação e de balanceamento do implícito/explícito, etc. Nessa discussão, Koch (1998) ocupa-se dos estudos do verbal para discutir os recursos que se valem de elementos linguísticos, convergindo para a construção do sentido. Isto não quer dizer que as estratégias se reduzem a estabelecer somente estes procedimentos, nem que a imagem é tomada da mesma forma como se toma o signo linguístico, pois está definitivamente reco-nhecida naquilo que lhe é próprio, em termos de apreensão ou leitura. 7 Conforme Lévy (1999), a noção de multimodalidade (a partir da qual o autor discute questões referentes à multimídia) se refere à união de várias linguagens para compor uma mensagem, existe uma co-relação entre linguagens em termos de significação. No audiovisual isto toma maiores pro-porções, pois se trata de mensagens compostas por linguagens visuais, inclusive com a adição do movimento, linguagens verbais e sonoras. Assim, é possível decompor o texto e se expressar em termos das linguagens constituintes, dizendo texto icônico, texto linguístico, etc.

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O grotesco midiático

Contudo, é porque os textos podem se colocar enquanto mensagens multimodais, que subsumem questões relativas a uma correlação com outras linguagens, em termos de significação. Esta questão encontra ressonância em ideias barthesianas sobre a complementaridade entre o verbal e o não-verbal, insistindo numa dinâmica complementar, pois as duas linguagens se complementam: uma diz o que a outra não diz. Joly (1996), citando Barthes, lembra sua proposta de interação sob a forma de ancoragem do texto, que daria indicações para a leitura da imagem. Acredita-se que a leitura da imagem, em sua especificidade, por seus próprios operadores ou elementos linguísticos não impede a análise de sua correlação com o verbal, ao contrário, possivelmente minimiza certo mal-estar, em termos puramente estético-formais da análise.

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Conforme Sodré (1973), cada época e cada meio de comunica-ção têm como marca uma das categorias estéticas, sendo que desde a década de setenta tem se mostrado como traço fundamental a categoria do grotesco. Tendo em vista estas proposições, o fenômeno aparece também como “um olhar acusador”, necessário para desvelar o que está encoberto, ajudando-nos a revelar realidades mitificadas8.

O grotesco é um olhar acusador que penetra as es-truturas até um ponto em que se descobre a sua feal-dade, a sua aspereza. A essa altura, o real antes tido como belo pode começar a fazer caretas, o pesadelo pode tomar o lugar do sonho. Uma máscara negra, um monstro gótico, obras de profunda inspiração artística, podem situar-se na categoria do grotesco. Às vezes ele nos ajuda a desvelar uma realidade mitificada: é o caso, por exemplo, do grotesco utilizado por muitos cartunistas modernos. (SODRÉ, 1973, p. 73).

Isto ocorre porque na mídia o grotesco pode ser lido na des-contextualização de significantes que pertencem a outros sistemas,

8 Segundo Nöth (1996, p. 137), Barthes abandona a teoria de uma camada de denotação primária, inocente em relação a uma secundária. Ele redefine a denotação “como o resultado final de um processo conotativo”, onde a denotação apenas aparenta ser a primeira significação. Trata-se de uma nova relação entre signos denotativos e conotativos, onde já não são os mitos (significações secundárias) que devem ser desmascarados, mas os próprios signos (semioclastia).

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como nos programas de televisão que oferecem o aberrante, o estra-nho, como signos de outra coisa (o exótico) que não são da nossa so-ciedade. Pode ser lido também nas intenções sensacionalistas para chocar, como no chocante na televisão e no cinema, aparecendo tam-bém na imprensa para desvelar problemas de caráter dos retratados. Em termos empíricos, as manifestações do grotesco se ligam aos variados meios, tanto audiovisuais quanto impressos, em que surgem algumas classificações. O Grotesco chocante é uma das manifesta-ções recorrentes na televisão e no cinema, e Sodré (1973, 2002) não deixa de apontar a predisposição às intenções sensacionalistas e à exacerbação, compreendendo a teratologia (monstro) e a escatolo-gia. Em termos de seus efeitos, na mídia são na maioria risíveis. É principalmente a partir destas considerações, de que o grotesco na mídia é uma tensão risível, que esta pesquisa apontou para uma dis-cussão em paralelo com a comicidade.

A escatologia e a teratologia atinente às manifestações midi-áticas é o “mau-gosto” extremo, ou seja, é algo muito representativo dos programas de auditório, em que aparece a exploração de alguns “significantes” como o feio, o portador de aberração, o marginal. A ex-ploração da escatologia e da teratologia possui grande influência na imaginação coletiva segundo Sodré (1973), tendo em vista que gerou uma espécie de mitologia brasileira, em que o portador de deformação física passa a ser reconhecido como infração da ordem natural. Como “signo do outro”, em um contexto que não é o seu, o horrível torna-se sensacional, inconsistente, e principalmente desligado daquilo que é, na estrutura de nossa sociedade, que explica possivelmente o motivo para o riso, pois a fealdade experimentada não causa nenhuma espé-cie de reflexão. Curiosamente, o que poderia evidenciar a aproxima-ção maior com o feio, o irreal, como é de esperar das recorrências do grotesco, manifesta-se, por exemplo, nas pegadinhas dos programas televisivos que expõem as pessoas às mais variadas situações emba-raçosas, como o que ocorre em “O Pânico na TV” e no “Programa do Ratinho” que se aproximam a uma estética do trash, proporcionando um grotesco risível.

Apesar de este trabalho possuir um tratamento que se apro-xima de uma análise dos textos considerados literários, convergindo preocupações sobre a obra em si mesma (estética), é preciso apontar

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que uma questão que vem sendo observada é a de um evento co-municativo. Estudos recentes têm atentado para o reconhecimento de que o estatuto genérico do texto tem como orientação o horizonte de expectativas do receptor, não estando somente ancorado no querer dizer do produtor, devido a existência de contratos entre produção e re-cepção. Isso ocorre porque, segundo Pinheiro (2002, p. 287), embora um enunciado esteja sempre “se utilizando de um gênero discursivo, de uma forma padrão”, na mídia esses gêneros representam práticas que envolvem produtores e receptores, e de tal modo, existem contra-tos que vinculam as duas pontas do processo, “numa incessante tarefa de produção de sentido a partir do querer dizer do produtor e do que é interpretado pelo receptor”.

Estando mais ancorada “na forma de como é dito” é que se com-preende ser a questão do grotesco uma questão mais de forma que de conteúdo. Ainda que atingindo um grau de tratamento que extrapola os limites do exagero, programas como o do “Ratinho”, mostrando a crua realidade popular, dirigindo-se ao choque, na verdade como diz Sodré (2002), permanece “na superfície irrisória dos efeitos” – é o grotesca-mente risível, situado muitas vezes no riso cruel9, mas ainda assim vinculado ao entretenimento divertido. Nesse contexto, muitas são as discussões sobre os textos que se colocam frente à distração, como modo de privar dos problemas sociais, o que Sodré acusa de uma mar-ca do grotesco na mídia - a diversão e a evasão, ou o “preenchimento dos tempos mortos” das pessoas.

No caso de Chacrinha, a evidência da forma também fica evidente, apesar de que há uma diferenciação dos demais programas, por exercer uma função social, que para Sodré (1973) se associa à devolução da fi-gura do palhaço, há muito perdida pelo espectador brasileiro. Seus tra-jes, caracterizados por uma vestimenta que resulta em uma mistura não propriamente harmônica, remetendo ao palhaço como solução visual no encontro dos vários elementos em questão: minissaia feminina, botinas, chapéu de pirata. Utilizam também recursos retóricos, como os famosos chavões “roda-roda” ou gestos que os acompanham como desenhar cír-9 Propp ([1976] 1992), em sua teoria da comicidade, propõe diferentes tipos de riso, e o mais frequente é o que encerra em si, declarada ou veladamente, a zombaria (com elementos de sarcasmo e prazer maldoso) daquilo ou de quem se ri. A derrisão é uma das marcas mais recorrentes do puramente cômico, e diz respeito ao riso de zombaria, sinônimo de ridicularização e escárnio, como ocorre no vasto campo da sátira, e às vezes na paródia. Houve uma tentativa de classificação, conforme a natureza do riso, que vai desde o riso bom, até o riso alegre, o riso ritual, o imoderado, o maldoso e o cínico.

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culos no ar. As marcas expressivas atuam como força de expansão do contraste, do contrassenso e do exagero hiperbólico que se evidenciam, na caracterização do personagem, colocando em relevância a importância da comunicação visual do grotesco. É também a utilização habilidosa de suas características físicas, empurrando com a barriga, sorrindo malicio-samente, colocando o dedo para frente e para trás, construindo o que o autor chama de “significantes paralelos”, ao seu dizer.

Bastante comum, também como modo de enunciação do gro-tesco midiático, está a manifestação do kitsch10, quase sempre vin-culado a uma questão de classe, como se acredita estabelecer em “A Grande Família”. O cômico e grotesco dos personagens se manifesta no recurso ao caricato, exagerado, representando-os de tal modo como quase irreais. Sobretudo pelo recurso ao brega, o Plano da Expressão evidencia a caracterização das personagens - Marilda, de vestimenta esteticamente barroca (exagerada), cores contrastantes, acessórios ti-picamente de uma moda ultrapassada. Nenê, em geral, também usa roupas igualmente ultrapassadas para a época, com referência à moda dos anos 50, 60. Em termos de Conteúdo, a família é o estereótipo exagerado da realidade familiar brasileira, focalizando a banalidade do cotidiano familiar, os bairros urbanos, de segmento popular.

É preciso reconhecer que um dos traços marcantes do grotesco na mídia é o entretenimento, enquanto especificidade deste gênero, muito embora na imprensa essa discussão se junte à questão da informação, de modo que se justifique falar de uma interface informação/entretenimen-to. O Grotesco crítico é um traço marcante da imprensa. Segundo Sodré (2002, p. 69), aqui “não propicia apenas uma privada percepção sensorial do fenômeno, mas principalmente o desvelamento público e re-educativo do que nele se tenta ocultar”. Para o autor, trata-se de um “recurso es-tético” para denunciar convenções, e principalmente, no caso brasileiro, rebaixar os poderosos e pretensiosos, expostos de modo risível ou tragi-cômico. O autor propõe também que neste setor da mídia, o grotesco as-sume, enquanto recurso, as formas da paródia e da caricatura, operando pela surpresa e exposição ridicularizante, que através da charge ocupa 10 O kitsch é uma terminologia bastante conhecida no campo estético, principalmente quando per-meia as referências populares. Sobre a eruditação do popular, os artistas brasileiros acompanharam o processo que se deu também em países latino-americanos ao buscarem tais referências para as suas obras, entre as décadas de 60, 70, e 80, período que coincide com o projeto de fomentação nacionalista brasileira (comentada por Muniz Sodré, 1973), mas isso tudo validado por uma autoes-tima nacionalista, por onde tomam fôlego essas referências (KNAAK, 1997).

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lugar bastante importante na história da imprensa. Em geral, associa-se à crítica feroz, e foi importante aliado no período militar no Brasil, justamen-te por driblar a repressão, pois uma imagem grotesca poderia conseguir resultados muito satisfatórios. Para o autor, exemplo disso está o trabalho de cartunistas e chargistas, no sentido de notáveis “efeitos de grotesco”. “Lúcida, cruel e risível – aqui estão os elementos da chave para o entendi-mento da crítica exercida pelo grotesco” (2002, p. 72).

O grotesco na imprensa

Percorrendo as observações sobre o grotesco na mídia, em que, sobretudo, são caras as reflexões de Sodré (1973, 2002) que propõe como marca do grotesco midiático sua especificidade risível, acredita-se na necessidade de compreender as enunciações da im-prensa na fronteira com outro gênero – o cômico. Ao examinar os tex-tos de imprensa, o grotesco, nestas manifestações, tem se mostrado princípio para a comicidade, pois a presença de um objeto ridículo se torna força de expansão para efeitos cômicos. O componente ridícu-lo (“grotesco”, engraçado, risível) é na verdade um componente das cenas cômicas, e ganha corpo em tudo o que é relativo ao homem: “É possível rir do homem em quase todas as situações” diz Propp (1992). Acredita-se, assim, que seja possível falar em um grotesco/cômico, ao compreender os defeitos físicos, as atitudes ridículas e as situações embaraçosas em que os personagens se envolvem e que são grotescos para as pessoas. O riso pode se ligar a algo risível por ser ridículo acidentalmente, como ocorre nas situações reais, ou pode resultar do trato com linguagem, estruturada nas formas dos textos, com o ridículo “intencional”, como lembra Riani (2002), e é o que fun-damenta a noção de comicidade.

O grotesco, no âmbito cômico, é aquele que está relacionado a um exagero, e depende em alguns casos da existência de aspectos escondidos, dizendo de outro modo, conotativos. De qualquer maneira, o exagero cômico (das recorrências de comicidade) produz formulações que em termos de efeito, não causam sofrimento - apelando para a pura consciência, o que deveria nos chocar, torna-se objeto do riso, simples-mente ridículo, afastando-se da seriedade, e, como tudo o que é cômico, revela a inconsistência, os defeitos.

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Alguns autores inserem a caricatura no grotesco, como o faz Mu-niz Sodré – possivelmente porque entendem que o caricatural, embora não seja propriamente a afirmação máxima dos excessos corporais, li-gados às partes baixas do corpo (escatologia), aproxima-se do grotes-co, principalmente em termos da predileção pela feiúra, uma forma de exagero. O grotesco/cômico está relacionado ao exagero cômico, um recurso descrito por Propp (1992) que está presente, por exemplo, na comicidade de caráter (ao representar as pessoas muitas vezes piores do que são). Este exagero de aspectos fisionômicos, na verdade escon-de defeitos que precisam ser desvelados, condição para produção da comicidade, dos quais esta se ocupa.

Tomando as considerações de Sodré (1973; 2002) sobre o gro-tesco na imprensa, sua proposta coloca em questão o grotesco caricatu-ral, o que empiricamente trata-se, conforme Riani (2002) do desenho de humor ou “humor gráfico”, que se desdobra entre a caricatura, a charge, o cartum e a tira (quadrinhos). O período de observação compreende os meses de maio até julho de 2008, totalizando o número de 13 revistas e 67 manifestações, denominadas pela Revista da Semana de “charges”. A escolha do dispositivo encontra respaldo numa questão que tem se in-surgido sobre esta pesquisa, na medida em que a presença do humor na imprensa possa indicar uma interface entretenimento/informação. Muito embora o jornal também traga este tipo de textos, a periodicidade se-manal desse corpus garante do mesmo modo um conjunto significativo, além da facilidade de obter a um só tempo uma série de pelo menos 4 “charges” a cada edição da revista. A opção pela revista também pesa no sentido de ser o veículo tradicionalmente vinculado mais ao diverti-mento, embora a “Semana” se coloque como constituinte do núcleo de informação da Editora Abril.

O critério para a seleção da amostra está pautado na observação, pois a noção de texto humorístico ou desenho de humor, ao recobrir uma série de manifestações, na verdade esconde uma problemática - segundo Propp (1992), a comicidade se relaciona aos temas, entre os quais muitos não permitem tratamento cômico, o que aproxima determinados textos ao domínio do trágico, sem conotações humorísticas. Apesar de o senso co-mum associá-las à comicidade como tal, muitas charges na verdade não o são, e evidenciam uma espécie de crônica ilustrada11.11 Um dos exemplares encontrados trata da violência e outros dois, na mesma linha, abordaram a questão do assassinato de rapazes entregues a traficantes.

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Em termos analíticos do texto e dos seus sentidos, acredita-se que seja relevante discernir os procedimentos que estão sendo propos-tos12, ou seja, os recursos vigentes no texto que dão boa ideia dos signi-ficados construídos, pois o componente ridículo tem como produção de sentido conotações que vão desde o engraçado, o simpático, até o feio, o mau, etc. Sabendo-se da existência de certos tipos de enunciados, mais ou menos estáveis, propõe-se a subdivisão destes recursos em modalidades expressivas e estratégicas, para melhor sistematização do processo analítico.

A caricatura13, enquanto um texto humorístico, um enunciado, compreende a especificidade de um (sub)gênero - o caricatural. Neste âmbito, se desdobra a discussão sobre algumas modalidades expres-sivas14 (paródia, caricatura) características e seus recursos atinentes (estratégias discursivas: hipérbole, ironia, paradoxo, alogismos, etc.). Também, enquanto paródia, traz à tona, através das distorções físicas, aspectos de personalidade, estando em questão não os defeitos bioló-gicos, que não são risíveis. No Plano da Expressão, quando é “amigá-vel”, evidencia apenas os aspectos bons (aquela em que o defeito não chega a ser um grande defeito, condenável) – é em geral a forma mais recorrente. A paródia inserida na caricatura tem mais o sentido de humo-rismo, inofensivo e atenuado, muitas vezes cordial e afetuoso, porque o defeito não chega a pedir condenação, e sim, reforçar um sentimento de simpatia, como diz Propp (1992). No domínio do cômico/caricatural se encontra a hipérbole, em que o exagero torna-se global. A paródia con-siste na imitação, em que são citados ou repetidos traços exteriores do fenômeno, e o componente ridículo, como princípio para a comicidade se manifesta de diferentes formas: na caricatura, através do exagero das distorções e desproporções da forma, na hipérbole do exagero global, ou seja, de excessos de todos os tipos.

12 O humor é um estado pertinente ao humano. O humor foi estudado por Freud como “senso de humor” em “Os chistes” (piada, fala feita para ser engraçada), em que é portador do humor aquele que capaz de elaborar um chiste, apreciar o que é cômico (humor na literatura). A ironia em geral coloca o sujeito como objeto do riso, como aparece em Bergson ([1924] 2001). O sarcasmo é mais agressivo, e a sátira mais ligada à “crítica de costumes”, como aparece no cartum atualmente. A sátira é mais frontal, a ironia não destrói o retratado, e a paródia pode oferecer conotações diversas.13 Nome genérico que designa todo segmento do humor. Na mídia jornalística, é a charge o termo que tem denominado o segmento.14 Utiliza-se o termo modalidade expressiva apenas para marcar o trato com a questão do enun-ciado, porque aqui tem o mesmo sentido de modalidade de enunciação, já que para alguns autores esta última delimita o ato de produção do dizer.

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A modalidade paródica na caricatura em geral se estabelece com um sentido amigável. O humor nesse tipo de modalidade se constrói, mas é de uma qualidade diferenciada do satírico, pois constrói sentidos positivos, como o herói, o que está demonstrado na caricatura (1) e que aqui se tem chamado de Heroização. Por outro lado, estas expressões figurativas podem carregar valores outros que não o estético, pois o tratamento caricatural apresenta graus variáveis, que vão desde reações que se verificam no cômico, como na ironia e também na sátira, e por isso, em geral, torna-se um valor de crítica, quando são os defeitos morais, do caráter que estão escondidos na Expressão, apontando para o que Bergson (2001) chama de comicidade de caráter. A inserção das charges no gênero grotesco, em termos de coordenadas, traz conotações de feio, estranho, odioso, etc. Isto se manifesta em alguns desenhos de humor, pois os sentidos construídos no texto apontam basicamente para significações negativas, como o que ocorre na caricatura (2), inserindo-a em uma paródia satírica, o que se tem aqui chamado de Grotesco Depreciativo.

A significação da comicidade é bastante fecunda em modalida-des expressivas que se valem do recurso a certas construções linguís-ticas responsáveis por efeitos cômicos incontáveis, como os citados por Propp (1992) e Bergson (2001), enquanto comicidade de palavras. Os trocadilhos, os jogos de palavras de semelhança formal (fônica), mas diferentes em significado, a ironia (quando se expressa um conceito, mas se subentende outro), os paradoxos (conceitos que se excluem reu-nidos, apesar da incompatibilidade), os paradoxos cuja comicidade tam-bém está em alogismos implícitos, entre outros. O exemplo (2) retrata, de um modo bastante singular, a significação da comicidade por estes

Figura 2: Caricatura. Fonte: Sinovaldo (Jornal NH)

Figura 1: Caricatura. Fonte: Clayton (O Povo)

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artifícios de linguagem. Este texto constrói uma série de significações pelos paradoxos vigentes na imagem, em que a reunião dos elementos icônicos não produz coerência no jogo da linguagem.

Observando as duas matérias significantes, a significação da co-micidade parece estar centrada na função referencial da imagem, explo-rando seu aspecto analógico, ou seja, de representação. O efeito cômico se estabelece em função das situações, que retomam representações vinculadas ao absurdo, às atitudes incoerentes, enfim, ao que a teoria da comicidade chama de “comicidade das situações”, que evidencia o uso do alogismo em (4) (juízo inconsistente de quem age dizendo coisas absur-das, realizando ações insensatas), enquanto estratégia de construção de sentido no texto. A cena (3) vem caracterizada pela oposição (um pintor retrata um modelo, mas distorce sua aparência – as distorções são tão exageradas que a modelo torna-se feia, horrível, grotesca) - “o que deve-ria ser no lugar do que é” explica Bergson (2001), estratégia discursiva do humor, oposição marcada no texto pela movimentação de significações opostas, criando as oposições entre belo e feio (possivelmente para cha-mar a atenção sobre o fato de “pintar algo mais bonito do que realmente é”, trazendo significações outras, como “mentira, enganação”, em termos conotativos). A comicidade se faz por modos de enunciação que se voltam para a comicidade das situações e ações, constituindo por serem ridícu-las, “cenas” burlescas do tipo vaudeville15. Fazendo uma releitura das pro-

15 Vaudeville é um espetáculo de entretenimento surgido na França em meados do século XIII. Trata-se da comédia teatral, em cujo desenvolvimento os personagens envolvem-se em situações equívocas, sem aprofundamento, que transcorre em evolução de tensão cômica.

Figura 3: Charge. Fonte: Ivan (Diário de Natal)

Figura 4: Charge. Fonte: Ivan (Diário de Natal)

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postas de Bergson (2001), compreende estratégias discursivas tais como a repetição periódica (de palavras, gestos, etc.), a inversão (do que é no lugar do que deveria ser), o quiproquó (interferência das séries de duas or-dens de acontecimentos), os arranjos mecânicos que reduzem o homem à coisa, e assim por diante. Os dois textos parecem guardar aspectos es-condidos, o que se evidencia numa espécie de ironia ou metáfora por trás do jogo com os elementos icônicos e verbais, quando se diz alguma coisa para dizer outra, obrigando a uma substituição, o que aponta para a não correspondência com um discurso denotativo. Outra questão está relacionada à discussão sobre as imagens midiáticas, que não podem ser analisadas tendo em vista somente seu aspecto referencial. Na verdade, as charges, enquanto mensagens eminentemente visuais, também se colocam em diálogo com os demais elementos, e no caso da imprensa, elementos noticiosos. Isto acarreta uma discussão sobre a questão da imagem se relacionar com o con-texto em que está inserida, em termos dos sentidos – apontando que o sentido da charge deve ser compreendido no dispositivo em questão, no caso, o jornalístico. Observando o dispositivo Revista da Semana, tais textos de humor se encontram na última página e o percurso que o leitor faz, ao que tudo indica, se dá no contato com a informação, apresentada nas páginas anteriores, apontando para questões como o sentido que se constrói entre o fora e o dentro (intertextualidade), não estando na charge em si, muito embora nela se construa algum significado. Este gênero textual (texto humorístico), inserido na mídia, ao tematizar o que foi noticiado, guarda relações de intertextualidade em sentido estrito com os conteúdos veiculados no dispositivo, naquele período de tempo, no caso observado, no período de uma semana.

Recuperando o exemplo (4) com o personagem que queima di-nheiro, quem o faz se parece com um dragão – signo que tem aparecido com recorrência nos textos da revista para designar “inflação”. Reside aí uma estratégia de organização da informação16, pois a informação nova só é inserida, com base em outra dada. Fazendo uma relação com o sentido da notícia, que focaliza a queda da bolsa americana na atualida-de, que nos anos 80 um escritor chamara de “Fogueira das vaidades”, no sentido de que o capitalismo hoje está muito pior. Investimentos mal fei-

16 “[...] a informação nova, que tem por função ‘introduzir nele (texto) novas predicações a respeito de determinados referentes, com o objetivo de ampliar e/ou reformular os conceitos já estocados a respeito dele’” (KOCH, 1998, p. 31).

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tos podem significar perda de bilhões de dólares. A reportagem ao lado, na coluna “Dinheiro”, comenta a volta da inflação no Brasil, fenômeno de repercussão local, mas de fundamentação mundial. No exemplo (3), recorrendo a uma estratégia de referenciação, o pintor é Lula, recuperado na intertextualidade da revista, e ao que tudo indica, é uma crítica ao governo expressa em sua paródia e no recurso à citação (CPMF e CSS – sinalização textual, que pressupõe estratégia de balanceamento de implícito17), como indica a reportagem de economia da página 34: “O fantasma da CPMF voltou. Câmara aprova volta do tributo, agora com nome de CSS (contribuição social para a saúde)”.

O exemplo (5) constrói o sentido de grotesco, sobretudo, pelo re-curso de referenciação visual e citação verbal (enunciações de Lula e Ro-naldo tal como foram expressas). A Leitura Conotativa revela aspectos es-condidos na comicidade da situação representada, que apontam, na ver-dade, para defeitos de inconsistência moral. Só ri quem pode rir, e neste caso, nenhum pode julgar nenhum, aliás, determinando uma crítica feroz, que reduz ao ridículo. Apesar de em (6) se observar a tendência da charge em apresentar situações grotescas, os recursos utilizados servem como pista ou sinalização para que o leitor, recorrendo à inferência, compreenda o sentido da charge, ao recuperar fatos ocorridos recentemente no cenário 17 Conforme Koch (1998), às estratégias de balanceamento do implícito/explícito estão vinculados procedimentos de sinalização textual, por meio dos quais se pressupõem do interlocutor relacionar conhecimentos prévios e informação textualmente expressa.

Figura 5: Charge. Fonte: Frank (A Notícia)

Figura 6: Charge. Fonte: Tiago Recchia

(Gazeta do Povo)

Figura 7: Charge. Fonte: Tiago Recchia

(Gazeta do Povo)

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político, em que Lula afirmava “não saber” nada sobre o mensalão, motivo de piada ainda hoje. Na intertextualidade de conteúdo, a charge ao mes-mo tempo relata outro fato semelhante – na página 24, uma reportagem traz o caso Ronaldo, sob a chamada “Escândalo dos travestis”. A feiúra icônica levanta a questão do trabalho exercido sobre tais “significantes”, em que é necessário fazer aparecer tal significação, e aponta para o valor de crítica, e não somente estético (feio/belo). Além do que, a mídia tem colocado em evidência discursos que repre-sentam o campo político, em geral, sob o aspecto crítico, referendan-do os discursos sociais sobre tal campo, que vem sofrendo abalos de credibilidade das suas enunciações. Traz a questão do embate entre os campos sociais, em geral focalizando o campo político, sob o olhar midiático, e de tal modo, como os mídia já têm reconhecido seu papel não somente de representar (no sentido de reconhecida a linguagem técnica, na ordem da complexidade da linguagem) como também de produzir inteligibilidades, enquadra, mostra o que ver, procura através de estratégias dar os contornos sobre os quais os demais discursos de-vem se assentar, inclusive em termos éticos. Daí certos posicionamen-tos da mídia, que vêm pressupostos nos textos humorísticos a respeito de certas condutas de políticos, influenciando na formação de opinião, conforme o espaço que recebem.

Na charge (7), os sentidos conotativos são construídos por um jogo que articula o sentido do texto verbal na correlação com o texto visual. A comicidade se produz através do recurso aos trocadilhos, por meio do qual um jogo de palavras monta uma significação. A Leitura Conotativa revela, na verdade, aspectos escondidos, em que o medo da picada é procedente, já que é feita uma comparação entre a contribui-ção e a injeção, e o significado da picada é justamente “a contribuição”, obrigando a uma releitura, o que é próprio da metáfora por trás da cena. O componente ridículo se manifesta na própria situação exagerada, se olhada do ponto de vista denotativo, que ilustra um homem com medo de injeção; em destaque uma vez mais a distorção na linguagem visual.

Neste exemplo, fica a difícil tarefa de distinguir entre cartum e charge, muitas vezes numa diferença muito tênue, pois a análise mais profunda demonstra a crítica severa ao campo político, tema recor-rente da charge. A semelhança entre o cartum e a charge é bastante grande, principalmente pelas características visuais, no entanto, no

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cartum fala-se em sátira da sociedade em geral. Conhecido como “crítica de costumes” e não se voltando especificamente para nenhum fato específico, relata cenas do cotidiano e seus personagens não remetem a nenhuma personalidade a ser reconhecida, tratando de questões mais gerais e é onde residem as diferenças, no sentido das suas relações com os fatos cotidianos noticiados.

O recurso ao exagero nas situações apresentadas esconde cer-tos costumes da atualidade, que ao que tudo indica é a contratação de jogadores ruins pelo técnico Dunga, ou por outro lado, aspectos escon-didos revelam um “costume grotesco” e atual: prender ladrão de galinha. Em (8), a associação entre seleção e circo decorre do procedimento de paradoxo, ao reunir no nível denotativo ideias que aparentemente se excluem, numa construção linguística entre o verbal e o não-verbal. A expressão “joga na seleção do Dunga” exprime uma estratégia de for-mulação, na medida em que sinaliza para o processamento textual, no sentido de que aquilo que não é dito pelo verbal é dito pela imagem, numa correlação, em termos de construção do sentido. O efeito cômico, sobretudo pelo componente visual, alude ao jogador, e ao mesmo tempo o ridiculariza. Uma leitura conotativa das significações em (9) poderia iniciar na expressão visual, em que se encontra um conjunto de ele-mentos de linguagem na representação fisionômica do retratado: formas distorcidas, olhos esbugalhados. O recurso ao exagero leva ao ridículo a situação, ao focalizar o motivo da prisão.

Figura 8: Cartum. Fonte: Erasmo

(Jornal de Piracicaba)

Figura 9: Cartum. Fonte: Iotti (Zero Hora)

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Figura 10: Tira. Fonte: Lute (Hoje em Dia)

Contudo, nem sempre a construção do sentido de ridículo, grotes-co, é motivação para a comicidade. Nos quadrinhos (também conhecido como tira), presentes mais comumente nos jornais que nas revistas e em narrativa de quadros, hierarquizadas na vertical geralmente, depende de uma leitura quadro a quadro para que o sentido se construa, por isso sua similaridade com o cinema, por seu espaço/tempo, enquadramento visual, presença ou não da linearidade. Os quadrinhos também têm uma formulação muito próxima do cartum, pois não referenciam propriamente um personagem real ou relatam uma situação específica. Sua caracte-rística principal é a sequência das cenas, muito embora essa supos-ta sequencialidade, em termos de leitura, possa ser entrecruzada por “voltas ao passado”, “saltos”, conforme explica Riani (2002). Observa-se neste exemplo que nem sempre o texto se coloca como humorístico, no entanto, em geral, o último quadro apresenta uma novidade - a novidade está por trás da cena, encontrando ressonância no que propõe Ber-gson (2001) sobre o evento surpresa que traz o riso: “O riso é então explicado pela surpresa, pelo contraste, pelo trabalho com a forma,

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O grotesco midiático

definições que se aplicariam também a uma infinidade de casos, diante dos quais não temos nenhuma vontade de rir”.

Considerações finais

A amostra selecionada, sob o número de dez charges, ofereceu a possibilidade de analisar um bom número de textos humorísticos de imprensa, sob dois aspectos da significação da comicidade: alguns es-tão assentados sob o aspecto do humor que a linguagem é capaz de exprimir, denotar ou conotar, e por outro lado, o humor que a linguagem cria. No primeiro caso, se faz presente a significação da comicidade via referencialidade (denotação), em que são apresentados signos do que é grotesco, engraçado, sobretudo através de cenas cômicas (9), bem como a significação da comicidade via processos conotativos, revelando aspectos escondidos, sem os quais o humor não se produz, como por exemplo os defeitos de caráter do personagem. Por outro lado, a lingua-gem também é capaz de produzir efeitos cômicos através do recurso ao grotesco por estratégias de linguagem, de significação, constituintes do texto, e no caso dos objetos comunicacionais, inclusive através de processos de significação intertextual. Cabe ressaltar a infinidade de re-cursos utilizados, estratégias tais como o paradoxo (3) com a oposição, (6) a inversão, a hipérbole (2), o alogismo em (4), os trocadilhos (7), vi-gentes em modalidades expressivas concernentes à constituição de um texto humorístico, como a paródia, a caricatura, a crítica de costumes (vaudeville), que na imprensa se manifestam através das charges, cari-caturas, cartuns e tiras.

Também, na imprensa, os recursos constituintes dos sentidos no texto apresentam uma espécie de atualização, pois, ao produzirem significações apoiadas na intertextualidade com a notícia, apontam para a necessidade de estratégias de referenciação (5), de formulação (8), de balanceamento de implícito (3), de organização da informação (4). Existe também imbricação das charges com a conjuntura jornalís-tica, sendo as charges representativas de um humor jornalístico, que explora suas constantes temáticas18.18 Embora em alguns casos aborde temas mais gerais, as charges, em termos de ocorrência, ge-ralmente tonificam aspectos da conjuntura jornalística, o que remete aqui às constantes temáticas da Revista da Semana: Notícias (notícias, opinião, etc.), Lazer e Cultura (cinema, televisão, livros), Sociedade (esportes, gente, comportamento, etc.), Economia (economia, dinheiro, política), Seções (Reportagem da semana, Palavra da semana, Charges).

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As manifestações analisadas apontam para algumas recorrên-cias, principalmente para o uso da linguagem visual e do conteúdo da imagem para construir ou movimentar sentidos. Nas charges, as estra-tégias de imagem dizem respeito à riqueza do componente visual da Expressão, que evidencia estratégias textuais, discursivas responsáveis em grande parte pelo efeito cômico (comicidade visual). É nesse con-texto que se articula a existência destas estratégias, pois são recursos que, segundo as análises, jogam com sua manifestação em imagens, sobretudo pelo seu aspecto referencial. Naquilo que a imagem é capaz de conotar, as estratégias dos signos visuais também estão vinculadas a estratégias retóricas, que parecem penetrar também nas imagens, como a hipérbole em (2). Quanto às estratégias semiológicas dos signos plás-ticos, muitos sentidos podem ser atribuídos a este nível de significação. Em geral, isto ocorre pelo recurso ao disforme, expresso pela deformida-de e pelo desproporcional, ao nível da sintaxe que se dá com elementos de linguagem visual tais como a linha e a forma (formato). Mostra que, supostamente, segundo Joly (1996), podem ser mais os significados dos signos plásticos que os icônicos que fundam os conceitos da análise19. Segundo Dondis (1999), o trabalho de análise do significado de uma imagem se dá por sintaxe, ao nível dos elementos plásticos que são o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala e o movimento, encontrados na composição vi-sual. O grotesco das formas ou disforme, característico do desenho de humor, ao se manifestar em nível icônico, através do exagero que tem origem no nível plástico no sistema de representação do desenho, torna-se força de expansão de uma série de sentidos, somente para recuperar alguns aqui exemplificados, o feio, o ridículo, o bobalhão, mentiroso, que evidenciam o traço marcante do grotesco midiático, que é seu avizinhamento com o cômico. As categorias de análise por enunciação – caricatura, charge, cartum e tira demonstram diferentes modos de discursivização do humorna mídia impressa, como também remontam à modalidades do âmbito cômico, porque empiricamente apontam para a imitação, a crítica pa-ródica ou a comicidade de caráter, e a comicidade das situações. Nos

19 Aqui utiliza-se o termo “supostamente” porque alguns autores acreditam que a plasticidade da imagem não engendra sentido fora do conjunto da imagem, como o faz Aumont (1993). Para Joly (1996) a análise plástica permite fazer considerações sobre significados que não são expressos nem pelo icônico (figurativo), nem pelo verbal.

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quadrinhos (10), o componente ridículo nem sempre se faz presente, de tal modo que o texto constrói o humor ancorado em outras causas, como a utilização de uma técnica para trazer um efeito de surpresa, enquanto estratégia.

Em algumas modalidades como a charge e a caricatura, existe uma vinculação mais notória com a realidade, uma vez que o sentido também se dá pela reativação de referentes da realidade noticiosa. Acre-dita-se, contudo, que o ramo das charges de imprensa, de modo geral, evidencia uma interface entre informação e entretenimento. A análise do grotesco, junto aos dispositivos ao qual se liga, chama a atenção para a análise das imagens midiáticas, que dialogam com os demais elementos onde se inserem - não são somente imagens para entreter, são também imagens ruidosas que não estão desligadas da matriz jornalística.

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Parte IIMídia e Identidades Contemporâneas

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MÍDIA E RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO:O TERRITÓRIO EM SITE DE RELACIONAMENTO1

Mônica PIENIZ2

Ada C. M. da SILVEIRA3

ResumoEste texto aborda a relação das tecnologias favorecedoras da globali-zação e sua incidência sobre a cultura local. A dualidade da categoria espaço, aplicável à dimensão virtual e à cultura local, se faz fundamen-tal. A indagação referente a sua importância remete especialmente à noção de território geográfico no que tange a sua articulação entre a condição de espaço físico e espaço virtualizado. Exemplifica-se com um estudo empírico das representações identitárias propostas por do-nos de comunidades no site de relacionamento Orkut, analisando-se o pertencimento territorial como fonte histórica de condicionamento de uma identidade cultural em particular.

Palavras-ChaveIdentidade; Território; Cultura local; Mídia; Globalização.

Media and identity recognition:territory in the social networking site

AbstractThis article discusses the relationship favoring the technologies of glo-balization and its impact on the local culture. The duality of the category space, applicable to the virtual dimension and the local culture, it is fun-

1 Trabalho resultante da dissertação “A apropriação do global para fins locais: as representações de identidade gaúcha em comunidades virtuais do Orkut”, apresentada ao Programa de Pós-Gradu-ação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Área de Concentração: Comunica-ção Midiática. Linha de Pesquisa: Mídia e identidades contemporâneas.2 Relações Públicas. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Doutoranda em Comunicação e Informação e Professora substituta na Faculdade de Bi-blioteconomia e Comunicação (FABICO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] Orientadora. Pós-Doutora pela La Nouvelle (Sorbonne III), Doutora em Jornalismo pela Univer-sidad Autónoma de Barcelona (UAB) e Docente dos Programas de Pós-Graduação em Comuni-cação Midiática e Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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damental. The inquiry concerning its importance especially refers to the notion of geographical territory with respect to its relationship between the condition of space and space virtual. For example, with an empirical study of representations of identity offered by community owners in the social networking site Orkut, analyzing the territorial belonging as a his-torical source of conditioning of a cultural identity in particular.

KeywordsIdentity; Territory; Local culture; Media; Globalization.

A indagação referente à importância da espacialidade no desen-volvimento das mídias nem sempre remete à noção de território geográ-fico. Nos últimos anos, a articulação entre espaço físico e espaço virtual vem merecendo atenção. Ela está pressuposta quando se coloca em questão a relação da cultura local com o ciberespaço nos processos de transmissão e transformação cultural.

Se cada nova forma de comunicação interfere no ambiente em que é utilizada e cada nova tecnologia aparece como consequência de um am-biente anterior que lhe deu suporte, há importantes desdobramentos no que tange à relação espacialidade e mídia. Acredita-se que o livro, os pe-riódicos, o rádio, a fonografia, a televisão e o cinema, para citar as mídias socialmente consagradas, causaram transformações sociais. Foram, por certo tempo, de uso elitizado, conforme se pensa com relação à internet, e por isso houve infoexcluídos em toda a história humana. No entanto, nas últimas décadas criou-se certo desprezo por questões afetas à articulação entre o espaço local e os sistemas midiáticos. As atenções dirigiram-se aos potentes sistemas multimídia e sua extensão planetária. As questões locais conheceram um apelo de sabor alternativo.

Este texto aborda a relação das tecnologias favorecedoras da globalização e sua incidência sobre a cultura local. Exemplifica-se com um estudo empírico das representações identitárias propostas por donos de comunidades no site de relacionamento Orkut4, analisando-se o per-tencimento territorial como fonte histórica de condicionamento de uma identidade cultural em particular.

O texto divide-se em quatro partes, responsáveis pela breve ex-posição de aspectos referentes à comunicação, tecnologia e identidade; à compreensão do Orkut e da cibercultura; às comunidades virtuais e 4 Ver <http://www.orkut.com.br>.

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representações de uma cultura local; e, por fim, à reflexão sobre a pos-sibilidade de representação do território no ciberespaço.

Comunicação, tecnologia e identidade

Sherry Turkle preocupa-se com os usos da internet, com a sua influencia nos sistemas psíquicos dos sujeitos e com a forma que ela é apropriada em suas relações. Ao falar da máquina podemos entender todas as suas possibilidades de interação disponíveis hoje:

Nuestras mentes, por supuesto, son muy diferentes unas de outra, de manera que no es sorprendente que gente diferente se apropie del ordenador de formas diferentes. La gente elige cómo personalizar y utilizar los ordenadores e interpretar su significado. Em este aspecto, el ordenador se parece al test psicológico Rorschach, cuyas manchas de tinta sugieren muchas formas pero no se comprometen com ninguna. De-pende de los indivíduos descubrir qué lês provoca ver el legado de la personalidad, la historya y la cultura. De la misma manera que personas diferentes lo adop-tan de formas diferentes. Es más, desde el principio de su desarrollo em masa, la tecnologia informática animó a 20 diversas culturas em las que tenían expre-sión um amplio abanico de valores sociales, artísticos y políticos (TURKLE, 1997, p.42).

Na cibercultura, a vida social midiatizada pela tecnologia ho-dierna da internet torna-se constitutiva do homem e, mesmo em sua fase embrionária, - e excluída de muitos cidadãos - ela é uma realidade social planetária. Ao ser um dos fatores fundamentais nos modos de relacionamentos contemporâneos, a cibercultura passa a agir na rea-firmação das identidades.

As identidades, por sua vez, apresentam-se transformadas pela singularização de suas representações, facilitadas pela viabilidade téc-nica de sua difusão imediata para quem tenha suporte técnico e habili-dade intelectual para conectar-se. Os interessados no novo fenômeno – seus usuários, espectadores, atores ou consumidores – podem ser particularizados ou tomados como coletivos; eles atuam por interesses pessoais, grupais ou corporativos, próprios ou delegados por terceiros e

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constituem a nova esfera ciberespacial, sucedânea do declínio da esfera pública burguesa. Sua unidade de condição é o desejo de compartilhar formas novas de intervenção na realidade, acesso à informação, entre-tenimento, ferramentas de trabalho, e outras (SILVEIRA, 2002, p. 108).

A estreita relação entre sociedade e contemporaneidade tem na cibercultura um produto da digitalização das mídias, do advento de um fluxo bidirecional e multimodal de mensagens, onde o receptor torna-se também emissor. Assim, a internet tem que ser tomada como muito mais do que uma tecnologia; trata-se de um conjunto de mídias operan-do na forma organizativa da sociedade.

As comunidades virtuais do Orkut que tratam da cultura local gaúcha, por exemplo, são decorrentes do espaço concreto e, a partir disso, são também atuantes e influentes neste espaço. Saber conduzir estas novas configurações identitárias influenciará na mediação que as novas tecnologias proporcionam nas sociedades em que se inserem. Os pertencentes a estas comunidades são unidos por laços que podem ter correspondências no concreto e, de suas relações virtualizadas po-dem surgir benefícios nos vínculos e na interação de grupos sociais si-tuados no território geográfico correspondente à cultura representada.

Culturas consistem em processos de comunicação. E todas as formas de comunicação, como Roland Barthes e Jean Baudrillard nos ensinaram há mui-tos anos, são baseadas na produção e consumo de sinais. Portanto não há separação entre realidade e representação simbólica [...] o que é historicamente específico ao novo sistema de comunicação organi-zado pela integração eletrônica de todos os modos de comunicação, do tipográfico ao sensorial, não é a indução à realidade virtual, mas a construção da realidade virtual [...]. Todas as realidades são comu-nicadas por intermédios de símbolos (CASTELLS, 2005, p.459).

Pensa-se que a aproximação das pessoas no ambiente virtual se dá por meio da existência de traços identitários partilhados e pelo interesse em determinados assuntos, tanto que o participante escolhe qual grupo quer se inserir, podendo ainda fazer parte de quantas comu-nidades desejar, pelo tempo que quiser.

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Ao questionar a aplicação do conceito de comunidade tradicional para chegar às comunidades virtuais, justifica-se a analogia na medida em que no virtual os agrupamentos buscam a união por meio de um assunto comum e de um espaço compartilhado, mesmo que não seja a territoriali-dade geográfica. Manuel Castells (2005) esclarece a questão das comuni-dades virtuais tomando por base os estudos de Barry Wellman, reconhe-cido pesquisador empírico em sociologia, o qual analisa o surgimento das comunidades virtuais na Internet. Wellman salienta que as comunidades virtuais não precisam opor-se às comunidades físicas, pois são formas diferentes de comunidades, com leis e dinâmicas próprias.

Entretanto, diz-se que no ciberespaço o conceito de comunidade adquire uma nova configuração. Rheingold (1993) definiu as comunida-des virtuais como agregações sociais que emergem na internet quando um número de pessoas conduz discussões públicas, em um determinado tempo, com uma intensidade emocional que forma uma teia de relações neste ambiente. A emergência deste tipo de agregação seria decorrente da diminuição dos encontros pessoais em grandes cidades. E que as pes-soas se utilizariam de palavras na tela do monitor para trocar experiências, levando ou não ao vício, podendo ou não ter contatos offline.

Dessa forma haveria um novo formato de comunidade, de acordo com as possibilidades ofertadas pela mídia, encaminhando para o argumento de Bauman (2003) de que a contemporaneidade sustenta apenas laços efêmeros e superficiais entre os sujeitos. A modernidade estaria fundamentada na liquidez, no utilitarismo, na ló-gica do consumo e da liberdade e por isso a segurança ofertada pela noção tradicional de comunidade estaria em risco. Este posiciona-mento é questionado por muitos autores que contestam a pretensa ausência de solidariedade entre as pessoas e a ideia de que os rela-cionamentos não são profícuos.5

5 Em 1887, o sociólogo alemão Ferdinand Tönnies cunhou duas classificações quanto às junções humanas e as apresentou na obra Comunidade e Sociedade. A primeira seria a de comunidade – gemeinschaft – e a segunda seria referente a associações ou à sociedade – gesellschaft. Seu con-ceito de comunidade descreve uma sociedade tradicional baseada em relacionamentos interpesso-ais, com laços de sangue, amizade, sentimentos partilhados e crenças comuns. Já as associações seriam construções artificiais que teriam uma base de relação utilitarista e impessoal, onde os indiví-duos estão isolados e pensando primeiramente em si (TÖTO, 1995). A diferença fundamental entre estes conceitos é calcada na natureza das relações humanas que se estabelecem. O que sustenta a Gemeinschaft é a tradição e o afeto, como ocorre numa família. Enquanto que a Gesellschaft é sustentada na busca de objetivos e são as relações funcionais que mantém o grupo. A comunidade seria uma forma de vida mais primitiva e as associações seriam típicas de um ambiente urbanizado como após a industrialização.

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Tanto as comunidades tradicionais quanto as virtuais conhecem diferenças em seu sentido e conceito. A liquidez dos acontecimentos e a efemeridade dos laços diante da gama de possibilidades de escolhas pro-piciados pela sociedade de consumo e pelas potencialidades da comuni-cação virtual encaminham para o que Bauman expôs com o termo “comu-nidades cabide”. Elas seriam baseadas em identidades móveis, ampara-das em objetos identificadores de um modo de vida com prazo de validade que acompanha o ritmo frenético das mudanças no mundo globalizado:

Identidade significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença, singular – e assim a procura da identidade não pode deixar de dividir e separar. E, no entanto a vulnerabilidade das identidades individuais e a preca-riedade da solitária construção da identidade levam os construtores da identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansie-dades individualmente experimentados e depois disso, realizar ritos de exorcismo em companhia de outros in-divíduos também assustados e ansiosos. É discutível se essas ‘comunidades-cabide’ oferecem o que se espera que ofereçam – um seguro coletivo contra incertezas individualmente enfrentadas; mas sem dúvida marchar ombro a ombro [...] pode fornecer um momento de alívio da solidão (BAUMAN, 2003, p.21).

As identidades tendem a ser fluídas (BAUMAN, 2003), porém fi-xar raízes não pode ser um costume totalmente superado já que depen-demos do território para a concretude da vida humana. Os processos de desterritorialização são fenômenos contemporâneos necessários que decorrem, em grande parte, da ascensão do ciberespaço. A humanidade está tateando nesta nova forma de se comunicar e daí a importância da cautela e da reflexão diante de fenômenos complexos que devem ser gerenciados pelos aldeões globais.

O Orkut e a cibercultura

Dominique Wolton (2006) acredita que quanto mais há comuni-cação no mundo contemporâneo mais as identidades fortalecem-se para defender seus territórios e seus valores. Com o advento da globaliza-ção, da internet e da comunicação em rede, a velocidade dos fluxos

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aumentou e a internet torna-se âmbito para a manifestação de diversas identidades que alcançam a todos os conectados na rede. Conforme o mesmo autor tem-se hoje uma dominação do tempo, porém as tecnolo-gias cibernéticas não conseguem dominar o espaço geográfico. Dessa forma as culturas locais, originariamente construídas acerca de um terri-tório físico, manifestam-se na internet e demarcam suas especificidades.

O primeiro aspecto expressivo do corpus analisado é que dentre milhões de comunidades virtuais há aquelas que têm assuntos seme-lhantes ligados ao território físico de determinado agrupamento humano. Utilizando-se das vantagens da comunicação planetarizada é possível manter a propagação de um discurso regionalista – emitido por pessoas comuns – que, no caso dos gaúchos, é centrado em um território. As-sim, esse público, aderido às comunidades do Orkut, busca utilizar-se de seus recursos para demarcar suas representações sociais, seu modo de vida, suas convicções mais profundas.

A escolha do Orkut como delimitação no âmbito da internet ob-servou argumentos como os dados divulgados pela revista Ciência Hoje. Tais dados são percentuais e mostram que, em 2006, 75,71% dos usu-ários do Orkut foram brasileiros, seguidos pelos Estados Unidos que têm 5,74% de participantes.6 A diferença é considerável. Quanto à faixa etária, a maioria dos membros do Orkut situava-se entre 18 e 25 anos com 53,90%, seguidos pelos de 26 a 30 anos com 15%. Mas a principal referência que se tem no tema é que a presença da língua portuguesa no ciberespaço atingiu níveis muito superiores aos de anos anteriores à expansão das comunidades entre os brasileiros.7 Hoje, o percentual presente nos dados demográficos expostos pelo próprio Orkut mostra que 51,9% dos usuários do Orkut são brasileiros. 8

Focando nas comunidades virtuais do Orkut, percebe-se que os indivíduos se apropriam de representações do espaço através da tecno-logia, trazendo uma versão própria de sua identidade pessoal. Verifica-se, assim, que as comunidades que tratam da cultura local o fazem num meio que é ícone da globalização. Dessa forma as articulações entre o 6 Criado pelo engenheiro turco Orkut Buyukkokten, funcionário da empresa norteamericana Goo-gle, o site de relacionamentos Orkut completou cinco anos de existência em 24 de janeiro de 2009. Qualquer usuário deste específico ciberespaço pode interagir sem custos com os demais por meio de convite para “ser amigo” ou também como criador ou membro de comunidades virtuais que tra-tam dos mais diversos assuntos.7 Publicação de divulgação científica da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de maio de 2006, na matéria “A invasão brasileira do Orkut”, de autoria de José Eisenberg e Diogo Lyra.8 Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll. Acesso em 10/01/2010.

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global e o local na internet se mostram como reafirmadores de culturas locais que, muitas vezes, já apresentaram suas resistências à homoge-neização, porém nem sempre se propondo, necessariamente, enquanto uma cultura de resistência.

Comunidades e representações de uma cultura local

A resistência cultural diante da tendência à homogeneização dos hábitos no mundo todo mostra que os indivíduos necessitam da segu-rança do local, mantida por laços e vínculos fortes - mesmo que em comunidades virtuais que unem pessoas ligadas a uma cultura que tem origem e é delimitada por um espaço concreto e demarcado. Como é que um sujeito se apropria do ciberespaço para postar um discurso acer-ca de um território geográfico?

Tomando-se como referência principal as representações identi-tárias que os sul-brasileiros adscritos culturalmente à identidade do gau-chismo, pode-se analisar como ela se torna extramuros, reterritorializa-da virtualmente e carregada de significação. Seria ela reafirmada pelas mensagens trocadas entre os seus membros na esfera da comunicação virtual? Que importância tem o território geográfico neste aspecto? Teria a cultura do gauchismo o poder de afirmar-se no ciberespaço?

As representações de identidade do gaúcho propostas no dis-curso de sujeitos filiados ao Orkut são engendradas por este complexo processo de enunciação nas mídias, onde estes, mesmo não sendo detentores de um grande veículo de comunicação, têm acesso a um espaço de visibilidade. 9

A seleção do corpus de pesquisa foi efetuada por meio da busca a dez palavras-chave, escolhidas intencionalmente, referentes à cul-tura do Rio Grande do Sul: “gaúcho”, “gaúchos”, “gaúcha”, “gaúchas”, “MTG” (Movimento Tradicionalista Gaúcho), “CTG” (Centro de Tradi-ções Gaúchas), “Rio Grande do Sul”, “Porto Alegre”, “Revolução Far-roupilha” e “Galpão Crioulo”.

Na etapa quantitativa a busca por palavras-chave exibiu mais de 7 mil comunidades referentes à cultura gaúcha. Destas, as 120 mais populosas – 12 de cada uma das buscas por palavras-chave – foram levadas em consideração no filtro para o corpus qualitativo. 9 Conforme o estudo de Pieniz (2009) o território como foco é a base da ancoragem de todas as catego-rias e representações, sendo que as instituições como MTG e CTGs nelas se ancoram especialmente.

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Como um dado de curiosidade na pesquisa, somando o número de membros de apenas 24 destas comunidades, chega-se a um universo de mais de 1,6 milhões de membros.

A partir disso, delimitou-se um corpus qualitativo, o qual foi com-posto por dez comunidades10, citadas a seguir, o qual reúne mais de 270 mil pessoas. Elas são elencadas a seguir já com a classificação feita na pesquisa. Tivemos a maioria das comunidades voltadas para o tradi-cionalismo, algumas inovadoras em relação a estas e outras ainda que pregam o separatismo e por isso são denominadas radicais.

Aquelas comunidades que têm um discurso tradicionalista em-basado nas instituições legitimadoras e disseminadores do gauchis-mo constituem a maioria no corpus. São elas: “Eu me orgulho em ser gaúcho” (com 86.220 membros), “Gaúchos de verdade” (3.944), “A Verdadeira Tradição Gaúcha” (6.347), “MTG” (5.525), “Viciados em CTG” (1.276) e “Comunidade Galpão Crioulo” (2.187). As que, ao contrário das anteriores, são minoria no corpus e não abordam a cultura gaúcha de forma tradicionalista, mas livre de normas estabe-lecidas pelo MTG e propagadas pelos CTGs, abrigam a maioria dos membros deste corpus de dez comunidades. Estas são denominadas: “Gaúchas Incomodam & Comandam” (20.896), “Eu amo o Rio Grande do Sul” (14.916), e “Porto Alegre” (137.778). Têm-se ainda duas co-munidades que pregam o separatismo: “Neo-Revolução Farroupilha” (28) e “Gaúchos de verdade” (3.944), sendo que esta última também foi considerada tradicionalista.

Nestas três categorias em que as dez comunidades do corpus qualitativo foram classificadas, percebe-se que 62% dos membros con-centram-se em comunidades inovadoras, as quais constituem 30% do corpus. Os sujeitos optam por uma representação periférica que dá es-paço à inovação, sem preferir posturas radicais separatistas ou rígidas ligadas ao MTG. A classificação foi efetuada levando em conta o texto des-critivo destas dez comunidades principais e as suas relações com outras comunidades estabelecidas pelos seus donos. Cada dono de comunidade pode relacionar outras comunidades que têm relação com a sua e, no seu perfil pessoal, se filiar àquelas com temáticas de seu interesse.

O território geográfico que delimita o Estado gaúcho é o espaço que predomina no discurso verbal das comunidades. Este espaço está

10 Estas comunidades foram coletadas em 18 de julho de 2008 no site Orkut.

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Mídia e reconhecimento identitário

representado por meio de várias expressões, dentre elas: “lugar”, “cam-po”, “Pátria”, “rio”, “Rio Grande Selvagem” “estado”, “querido rio grande”, “melhor lugar do mundo”, “teu lugar”, “nossa Terra Gaúcha”, “no sul”, “CTG”, Endereço geográfico do MTG, link que remete ao site do MTG, “Sul”, “Brasil”, “imenso Rio Grande”, “terra abençoada”, “nosso pago”, “meu Rio Grande do Sul”, “trincheira aberta”, “vitrine autêntica e demo-crática” e o link que remete ao site do programa televisivo11.

A diferença do local frente ao global é a busca de muitos sujei-tos, mas não está necessariamente calcada num discurso já legitimado por instituições. Neste âmbito, a veneração da cultura gaúcha é inten-sa, visto a quantidade de adeptos, mas parte de outros princípios que não os do MTG e CTGs.12

As comunidades relativas ao CTG, ao MTG e ao Galpão Crioulo são focadas no Estado como um todo e na preservação cultural, porém o fazem enaltecendo a si mesmo enquanto entidades ligadas ao local. São autopromocionais. Já as comunidades “Porto Alegre” e “Neo-revolução Farroupilha” não têm o Estado como centro, já que uma abrange somen-te a capital e a outra cita os Estados vizinhos. Ambas têm sua relevância já que uma foca no potencial e nas qualidades da capital e, a outra, é a única que retoma a epopeia farroupilha.

A forma de expressão do espaço no discurso produz o sentido de território como ancoragem, como definidor de tudo que diz respeito aos gaúchos. É a partir do território que os nascidos no Estado incorporariam diversas qualidades e a ele pertencer é motivo de orgulho. A relevância conferida ao âmbito geográfico tem o sentido isotópicos tanto no texto verbal como no icônico, cujas afirmações se fazem predominante, já que é no ambiente físico que se definem os limites territoriais do Estado e é a principal demarcação que dá razão às demais.

11 Expressões como “pago”, “selvagem”, “terra abençoada”, “campo” retomam sentido de vivência rural no texto verbal. No icônico também ocorre, no entanto, de maneira um pouco mais enfática e explícita. O cavalo aparece em quatro situações. Uma no símbolo do MTG, a outra em meio a um campo, outra em meio às cores da bandeira e ainda num cenário de batalha. A paisagem rural e ligada à natureza aparece, além do caso do campo com o cavalo, na foto de cachoeira, e com um homem pilchado de costas para o cenário.12 Não se pode deixar de registrar que, do ponto de vista midiático, foi por conta destas instituições que as músicas, o churrasco, o chimarrão e inclusive a veneração do território foram amplamente di-fundidos e tomados como costume e por isso o institucional ancora as origens mais profundas desta representação periférica destituída de normas que busca seu espaço no virtual por meio da vene-ração do território e dos costumes. A narrativa da cultura regional foi tomada pelo MTG e unificada, formalizada e expandida para além do território. As instituições formaram as bases de propagação da cultura e propiciaram a primeira fase da desterritorialização da cultura do gauchismo.

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Como típico dessa nova dimensão virtual apresenta-se a situ-ação de uma comunidade remeter a outras. O dono da comunidade “Eu me orgulho em ser gaúcho” é membro da comunidade “MTG” do corpus; O líder de “Gaúchos de verdade” é filiado na “A verdadeira tradição gaúcha”. Já o autor de “Neo-revolução Farroupilha” faz parte de duas comunidades do corpus: “Gaúchos de Verdade” e “Eu me orgulho em ser gaúcho”. Estes dados mostram que os donos estão reafirmando seus interesses, por coincidência, entre si. São simpati-zantes com as temáticas semelhantes as que eles mesmos defendem e, nestes casos não se contradizem. Cada um desses donos é mem-bro de comunidade que é coerente com a categoria da comunidade em que exerce a liderança.

Isso também exemplifica que no ciberespaço há a intercalação de papéis e a inter-relação entre emissão e recepção, ao mesmo tempo em que a circulação de informações é constante e depende somente da vontade de seus protagonistas de se apropriarem da tecnologia. As comunidades funcionam como hiperlinks, onde uma dá acesso a muitas outras, ancorando temáticas e fazendo referência a assuntos do interesse dos enunciadores. Esta é a capacidade de midiatizar os assuntos de sua localidade e, junto disso, representar uma identidade.

A relação da cultura local com o Brasil, o mundo e os demais estados e cidades está direta ou indiretamente em várias situações. De maneira explícita, o Brasil é citado duas vezes, uma na comunidade “Neo-revolução Farroupilha” e outra na “Porto Alegre”. Conotativamen-te esta relação aparece quando se mostra que o Rio Grande do Sul é o melhor lugar e que as gaúchas são as mulheres mais bonitas. Neste caso, a comparação é em relação ao país. O local está situado com o que está em seu redor.

A relação dos gaúchos com o resto do mundo está implicitamen-te representada em diversas citações como nas comunidades “Eu me orgulho em ser gaúcho”, com a expressão “quem não é gaúcho”; na “Gaúchos de verdade”, com “gente de outros estados”; na “Gaúchas in-comodam e comandam”, todo o texto verbal traz a conotação de supe-rioridade em relação a outras mulheres de outros lugares. A xenofobia pressuposta no orgulho exacerbado é verificada de modo agressivo em duas comunidades, naquela que aborda a beleza feminina e na que quer o separatismo do Estado. Na outra comunidade que propõe o separatis-

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Mídia e reconhecimento identitário

mo não só do Rio Grande, apesar do discurso radical, não há indícios de desrespeito explícito ao diferente. Portanto, oito comunidades veneram o gauchismo, mas de forma educada.

Enquanto a temporalidade no icônico é presentificada, o espaço já é passível de exemplificação conforme elementos imagéticos do cor-pus. O rural é evidenciado junto de uma valorização territorial. O verde das imagens conota natureza, vida, esperança, paisagem idílica num estado que tem sua população na maioria urbana, mas que preserva em seu imaginário estes aspectos rurais.

As imagens no perfil das comunidades são coloridas, produ-zindo um sentido de vivacidade e dificilmente alguma denota anti-guidade na forma sépia ou preta e branca. O sentido do icônico é isotópico ao sentido do texto verbal que é predominantemente escrito no presente, por uma geração de enunciadores que não só venera o passado, mas pensa no futuro de sua cultura pela união de esforços no presente. O que permite ver uma cultura dinâmica que é adequada às mídias, ao novo meio virtual de comunicação, no convívio com a diferença e afirmação de localidades pela apropriação. E a tendência que se mostra é o orgulho de pertencimento ligado ao território de forma mais livre e dinâmica, por meio de associações coletivas não bitoladas por normas.

O território representado no ciberespaço

Na pesquisa de Pieniz (2009), portanto, o corpus analisado pode ser interpretado contendo a representação nuclear baseada em valores tradicionalistas, ancorados em instituições legitimadores e for-malizadoras da cultura gaúcha e no culto ao território. E, mostrando também, representações periféricas que conferem às temáticas não explicitamente calcadas no tradicionalismo o status de maior populari-dade e conquista de membros, ancoradas nos cultos ao território e há-bitos do gaúcho. O sistema de ancoragem mais profundo destas repre-sentações periféricas, no entanto, é baseado em valores formalizados pelo MTG e pelo CTG ao longo dos anos, porém cristaliza-se de outra forma no discurso dessas comunidades. Ambas as esferas representa-cionais, centrais e periféricas, permitem uma ancoragem mais profun-da amparada pelo culto ao território e aos valores rurais, repercutindo

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sua principal fonte de dotação de sentido, o espírito da cavalaria rema-nescente da colonização pelos povos europeus (cf. SILVEIRA, 2003).

Pelas características de tempo e espaço do meio, novas possibi-lidades se abrem aos enunciadores, ou talvez as mesmas que definiram a sua posição, a sua adscrição ao site. A dualidade da categoria espaço – virtualizado e da cultura local concreta – se faz fundamental para a in-dagação referente à importância do espaço e especialmente do território geográfico no que tange a sua articulação.

É notório que as relações sociais já existentes e fixadas num ter-ritório estão sendo reterritorializadas nas comunidades virtuais do Orkut. Conforme Stuart Hall (2000), isso seria a resistência frente à tendência homogeneizante proposta pela globalização, onde a comunicação en-tre os membros seria simplesmente mediada por computador sem este discurso ser alterado devido às características do meio que está sendo apropriado para facilitar a comunicação.

É certo que o pertencimento ou não a uma comunidade virtual implica apenas o desejo de clicar e se tornar membro, ou, da mesma forma, clicar e deixar de participar. Porém, a evidência de culturas locais representadas no ciberespaço demonstra que traços identitários ligados a um território persistem, e é preciso dar atenção a este fato que parece de relevância ao falarmos de política de identidade no mundo contempo-râneo que é permeado por novas tecnologias que constituem redes de relacionamento que antes se pensavam globalizantes.

Nestas comunidades virtuais a cultura do gauchismo enfrenta a condição de um descentramento exemplar, muito superior à cisão dos vínculos platinos enfrentada pela institucionalização dos estados-nação do Cone Sul. No entanto, não é exatamente o tipo de reterritorializa-ção proposta por sites de relacionamento que vem a superar diferenças do passado. A experiência de desintegração cultural já assentou suas bases através de uma cultura midiática hegemonicamente afirmada em dois idiomas distintos, desprezando idiossincrasias locais. Sistemas tecnológicos de veiculação diferida, distribuição fragmentada e outros recursos recalcaram diferenças que há pouco mais de cinquenta anos eram bastante amenas. E ainda que se venha a conhecer muitos proje-tos integracionistas, a globalização está propondo uma nova lógica, na qual vizinhos antigos continuam desconhecendo-se mutuamente.

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Referências

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RHEINGOLD, H. The Virtual Community: Homesteading on the Electronic Frontier, 1993. HarperPerennial Paperback in USA, Manus-Frontier, 1993. HarperPerennial Paperback in USA, Manus-crito eletrônico: Disponível em: <http://www.well.com/user/hlr/vcbook/index.html>. Acesso em 20/10/08.

SILVEIRA, A. C. M. . Representações identitárias e o giro da virtualidade: as tecnologias geradoras de intertextos culturais. Animus: revista inte-ramericana de comunicação midiática, UFSM, Vol.I, n.2 julho/dez. 2002.

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WOLTON, D. Pensar a comunicação. Brasília, UnB, 2006.

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O GAÚCHO NA MÍDIA: AS REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE REGIONAL NO DISCURSO PUBLICITÁRIO CONTEMPORÂNEO1

Pauline N. FRAGA2

Ada C. M. da SILVEIRA3

Resumo O texto ocupa-se da reflexão acerca do reconhecimento identitário regio-nal proposto no apelo publicitário. O estudo qualitativo empreendeu alguns conceitos e procedimentos da Análise do Discurso enunciativa a fim de loca-lizar as produções de sentido que respondessem a seguinte problemática: que gaúcho é esse, afinal, representado pela publicidade contemporânea? Quais as principais características de sua identidade midiatizada, tendo por parâmetro o cânone identitário criado, sustentado e popularizado (em ter-mos de ampla divulgação) pelo MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho)? O corpus foi formado por dez anúncios, veiculados de 2005 a 2007. Pôde-se compreender que, convertida em mercadoria, tal identidade encontrar-se-ia ao alcance dos mais diferentes públicos-alvo, para o nível de apropriação individual, sendo ofertada conforme as necessidades de cada anunciante.

Palavras-chaveMídia; Identidade contemporânea; Publicidade regional; Reificação; Análise do discurso

The gaucho in the media: representations of regional identity in the advertising discourse

Abstract The article deals with the reflection on the recognition of identity in the proposed regional advertising appeal. This qualitative study explored a 1 Trabalho resultante de dissertação intitulada “As representações da identidade regional no dis-curso publicitário contemporâneo” (2009), apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Co-municação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Área de Concentração: Comunicação Midiática. Linha de Pesquisa: Mídia e Identidades Contemporâneas.2 Publicitária. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Professora do Curso de Publicidade & Propaganda do Centro Universitário Franciscano (UNI-FRA). E-mail: [email protected] Orientadora. Pós-Doutora pela La Nouvelle (Sorbonne III), Doutora em Jornalismo pela Universidad Autónoma de Barcelona (UAB) e Docente dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Midiáti-ca e Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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few concepts and procedures from the enunciative Discourse Analysis in order to locate the meaning production which could answer to the fol-lowing questions: What ‘gaucho’ has been portrayed by contemporary advertising? What are the main features of its mediatised identity? What are the main features of their identity mediated, with the parameter canon identity created, sustained and popularized (in terms of wide dissemina-tion) by MTG (Gaucho Traditionalist Movement)? The corpus was formed by ten ads, served from 2005 to 2007. One could understand that, con-verted into a commodity, such identity found would be reached by differ-ent audiences, to the level of individual ownership, being offered to the needs of each advertiser.

KeywordsMedia; Contemporary identity; Regional advertising; Reification; Dis-course analysis

A delimitação do estudo encontra-se na análise discursiva de peças de diferentes anunciantes, veiculadas no meio jornal, que se uti-lizaram de representações da identidade regional no contexto da Sema-na Farroupilha. Com esse objetivo, o desenvolvimento dessa pesquisa guarda sua referência inicial no, a representação cânone do habitante sulino, mito moderno construído, mantido e extremamente populariza-do – em termos de ampla divulgação na esfera social e midiática – pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG. A questão problema ocupou-se em identificar que gaúcho é o gaú-cho representado no discurso publicitário contemporâneo como o gentílico próprio dos habitantes do Rio Grande do Sul – tendo-se por parâmetro o cânone identitário criado, sustentado e popularizado (em termos de ampla divulgação) pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).

O corpus foi formado por dez anúncios veiculados em diferentes edições do jornal Zero Hora, pertencente ao Grupo RBS – Rede Brasil Sul, a mais antiga afiliada da Rede Globo. O período de coleta do ficou delimitado em três anos (2005, 2006 e 2007), restringindo-se ao mês de setembro e em especial à Semana Farroupilha e ao feriado estadual de 20 de setembro, Dia do Gaúcho. A amostra constituiu-se como intencio-nal, sendo que os anúncios foram selecionados de maneira a contem-plar produtos e serviços de diferentes naturezas, contribuindo assim à

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diversificação das representações promovidas pelos anunciantes. Para fins ilustrativos da metodologia e da aplicação das categorias de análise, será apresentado apenas um dos anúncios constituintes do corpus, o da loja Pompéia, datado de 2007.

Representações identitárias e o discurso publicitário

Os modelos culturais são ajustamentos realizados pelos dife-rentes grupos humanos e que regram as suas condutas, passando de efeito à causa – originando assim os ritos, as crenças, as tradições, os valores, os símbolos. Estes, ainda que de tempos em tempos se-jam atualizados, uma vez estabelecidos, passam a influir no compor-tamento de todos aqueles que compartilham uma cultura e sua gama de representações. Como lembrou Delgado (1997, p.184), “la cultura es uma especie de sistema o forma de organizar y explicar la reali-dad (normas, rituales, símbolos, concuctas, etc.) construída por hom-bres”. Assim, por detrás de cada ato humano, cada ação comunica-cional, existe uma cultura permeante, responsável por organizar “uma cadeia significante, que restrinja, amplie, distorça e recomponha os seus diferentes sentidos no jogo das elaborações representacionais” (PERUZZOLO, 1998, p.16).

A questão identitária permeia ativamente a vivência humana, seja em nível subjetivo, seja nas trocas sociais.

La identidad no es puramente uma construcción pasiva constituída por las expectativas de lo otros, es um proceso de interacción por médio del cual la identidad del sujeto es construída no solo como uma expresión del reconocimiento libre de los otros, sino también como resultado de una lucha por ser recono-cido por los otros (LARRAIN, 2003, p.34).

A identidade constitui a expressão de um eu frente a uma dada coletividade, e também a expressão de cada um dos integrantes de uma coletividade. Nesse sentido, Silva (2000) compreende sua cons-tituição como relacional (depende de outra identidade para existir) e, portanto, marcada pela diferença (a diferença é estabelecida pela marcação simbólica relativa a outras identidades). A identidade, nesse sentido, não é o oposto da diferença, mas sim dependente necessa-

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riamente da diferença (seja ela social ou simbólica). É pela marcação simbólica, afinal, que se dá sentido às práticas e relações sociais.

Em se tratando do processo de apropriação das identidades re-gionais pela indústria cultural, para Ortiz (1995, p.166) esta concorre com as imagens produzidas pela consciência regional: “dizer que a in-dústria cultural se apropria dos valores locais é, na verdade, considerar que na luta pela definição do que é legitimamente regional temos ago-ra a entrada de uma nova força”. E é justamente esta representação de identidade coletiva o abrigo de indivíduos e de suas subjetividades sob interesses comuns – a comunidade, que se encontra em constante processo de atualização de seus valores consagrados, pelas diferentes formas comunicacionais, entre elas a publicidade.

Complementarmente, Hall (1997; 2000) enfatiza a fluidez da identidade, definindo-a como um tornar-se. O indivíduo que reivindicaria a identidade não se limitaria a ser posicionado por esta, mas sim seria capaz de posicionar a si próprio e inclusive a reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum. Ain-da referente às representações, vale ressaltar que essas se constituem como investimentos qualitativos, avaliativos e valorativos responsáveis por organizar as concepções mentais e as ações/reações físicas – o comportamento de alguém diante dos outros e do meio social e simbóli-co. Portanto, “a categoria conceptual da ‘representação’ é também muito importante para a compreensão da lógica das culturas, pois que as dife-renças culturais se explicam por diferentes dinâmicas representacionais” (PERUZZOLO, 1998, p.83).

Na produção textual da indústria cultural as identidades são concretizadas “basicamente a partir de um reconhecimento modela-do ou estereotipado, com base na observação das grandes tradições” (SILVEIRA, 2001, p.36) – como, por exemplo, a tradição gaúcha – isto é, através de mitos, dogmas, símbolos, valores e tradições – os quais são utilizados pela publicidade como apelos comerciais. Em concor-dância a esse respeito, Esteves (2000, p.24) relata que a produção dos meios resultaria em “identidades socialmente úteis, perfeitamente co-dificáveis e estereotipadas, que nos chegam através da publicidade, da moda, das diversas narrativas mediáticas e das próprias personagens dos media [mídias, meios]”. E é justamente neste sentido que a atua-ção da indústria cultural, especialmente a publicidade, há tempos vem

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optando por “estratégias verbais e iconográficas que respondem pelo branqueamento e masculinização, visando dar conta da complexidade de seu mercado de bens simbólicos, elaborando o que chamamos de palimpsesto do gaúcho midiático” (SILVEIRA, 2003, p.229).

Não é à toa que gauchidade é uma das culturas regionais de maior força dentro da composição da identidade nacional brasileira. Desde o século XIX ocorreram no RS movimentos culturais de origem urbana que objetivavam a afirmação desta identidade – contribuindo definitivamente para a formação do mito do gaúcho bravo herói, viril, destemido, com passado guerreiro de grandiosas vitórias e feitos, en-fim, o centauro dos pampas, o monarca das coxilhas (JACKS, 1998). As indústrias culturais, por sua vez, souberam fazer uso desse arquétipo regional, produzindo discursos que se estruturam na busca da identifi-cação dos leitores-consumidores: “a [própria] publicidade é uma forma de criar mitos – uma forma historiada de comunicação. [...] Os produtos são mais sedutores quando chegam envolvidos em mundos míticos e encarnados por personagens heróicos” (RANDAZZO, 1996, p.11).

Segundo Dacanal (1998), o mítico gaúcho e seus elementos bá-sicos – a miscigenação, a democracia racial, a igualdade, o heroísmo, o amor à liberdade, etc – correspondem a uma construção ideológica da oligarquia rural sul-rio-grandense que objetivava diferenciar-se ex-ternamente (em relação à classe dirigente do sudoeste cafeeiro e es-cravista) e também justificar internamente seu poder, obtendo simpatia dos dominados – estratos sociais médios e inferiores, urbanos e rurais. Assim, coube à mitologia autojustificadora gaúcha, conforme Dacanal (1998), não somente diferenciar o Rio Grande perante o país – espe-cialmente do Sudoeste brasileiro, mas sobreviver por mais de um sé-culo à liquidação da oligarquia rural sul-rio-grandense, processo que a homogeneização do Brasil, a partir dos anos 50, é sinal mais evidente. Ainda nos anos 70, também sobre a influência dos nativistas, o mito rei-nou soberano, quando o Estado já se encontrava integrado não apenas à moderna sociedade urbano-industrial brasileira, mas também ao ma-crossistema capitalista internacional. O gaúcho inventado foi elevado ao posto de novo tipo concreto, justificado inclusive academicamente como o gaúcho histórico. Foi-lhe atribuído, a esta figura ficcional, de construção midiática, uma presença histórica permanente.

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Reificação: do conceito-chave à hipótese de pesquisa

A fim de contextualizar a relação que se visou estabelecer entre identidade e reificação social, torna-se pertinente a apresentação deste conceito. Conforme Jameson (1995), a teoria da reificação, ancorada na Escola de Frankfurt e sob o enfoque da racionalização, apresenta uma proposta de apreensão crítica dos processos e produtos dentro da indústria cultural. Isso porque se propõe a explicar a transformação das narrativas em mercadorias, ou seja, compreender a maneira pelas quais as formas “mais antigas da atividade humana são instrumental-mente reorganizadas ou ‘taylorizadas’, analiticamente fragmentadas e reconstruídas segundo vários modelos racionais de eficiência, e essen-cialmente reestruturados com base em uma diferenciação entre meios e fins” (JAMESON, 1995, p.10).

Segundo Jameson (2008), a reificação seria possível devido à dissolução dos vínculos e relações que compõe uma comunidade dita tradicional, de maneira tal que o interesse econômico passa a preva-lecer – ou melhor, se existe alguma relação, essa é determinada pelo capital. Assim, passa-se de uma condição de dependência social direta das pessoas a quem se conhece para uma situação em que se depende simplesmente de relações impessoais e objetivas com outras pessoas. Ou seja, referente à modernização capitalista, edifica-se uma realidade de total indiferença aos significados sociais subjacentes: é possível que um indivíduo torne-se objetivamente dependente de outros cujas vidas e aspirações lhe permaneçam totalmente opacas. Interessa à teoria da reificação compreender o porquê ou como os sujeitos adotam o compor-tamento reificante individualista – visto que este ocasiona a extinção da consciência de engajamento – provocado pelo esquecimento do reco-nhecimento precedente que lhes permitiu a socialização.

Pensando o processo de reificação como servindo à lógica do capital, as representações discursivas da identidade regional seriam es-truturadas e organizadas em sentidos adequados aos interesses comer-ciais de cada anunciante e, dessa maneira, tornadas mercadorias alta-mente atrativas, em muito similares às próprias mercadorias que ajudam a promover e vender (os produtos e ou serviços anunciados). A respeito da disponibilização dessas representações identitárias “prontas para o consumo”, como verdadeiros kits, afirmou Bauman (2007):

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Por fraudulenta y em definitiva frustante que esa oferta pueda parecer a veces, ocuparce perma-nentemente de la construcción y reconstrucción de la proparia identidad com la ayuda de los kits de identidad disponibles em el mercado seguirá siendo la única estratégia creíble o “razonable” a seguir, dentro de um entorno caleidoscópio inestable em cual los “proyectos integrales de vida” y la planifi-cación a largo plazo no son propuestas realistas y resultan insensatas y desaconsejables. (BAUMAN, 2007, p.74).

A gauchidade, tornada mercadoria pelo processo de reificação social, atrairia a atenção do público-alvo para o anunciante, e conse-quentemente para a mercadoria anunciada (produto/serviço), possibili-tando a adesão do primeiro à identidade regional. Tratar-se-ia de uma adesão de caráter individual, que em momento algum leva em conta os demais indivíduos abrigados nessa mesma identidade. A propósito disso, comentou Honneth (2003, p. 266) que na reificação a “pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e indivi-duado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos”.

A identidade reificada pelo discurso publicitário seria um acesso descomplicado dos indivíduos à identidade social da gauchidade. As-sim, se no contexto das trocas políticas, sociais e culturais a adesão integralmente comprometida à identidade regional, tal como proposta pelo MTG, em todas as suas implicações (adesão aos valores, sím-bolos, modos de agir, de portar-se, de manifestar e celebrar a adesão à identidade naturalizada, tais como o uso de pilchas institucionaliza-das pelo MTG, a participação em desfiles farroupilhas ou em eventos promovidos pelos Centros de Tradição Gaúcha – CTG, etc.) torna-se fardo demasiado, sua incorporação pelo viés da publicidade, no âmbito das relações comercias, por sua vez, é suavizado a ponto de tornar-se quase irresistível.

Quando a representação da identidade regional é coisificada para ser consumida, o que há de humano nela também o pode ser. Em última análise, os próprios sujeitos que se beneficiam do abrigo da identidade coisificada também estarão passíveis de serem coisificados. Eles também poderão ser tornados produtos à medida que sirvam de referência à conquista, sedução, persuasão de outros novos consu-

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midores. Bauman (2007) reflete sobre esse quase “círculo vicioso” da mercantilização, em que os próprios sujeitos nela envolvidos podem ser tornados produtos:

El propósito crucial y decisivo del consumo em uma sociedad de consumidores (aunque poças veces se diga com todas las letras y casi nunca se debata pú-blicamente) no es satisfacer necesidades, deseos o apetitos, sino convertir y reconvertir al consumidor em protucto, elevar el estatus de los consumidores al de bienes de cambio vendibles. [...] Los miembros de una sociedad de consumidores son ellos mismos bienes de consumo, y esa condición los convierte em miembros de buena fe de la sociedad. (BAUMAN, 2007, p.83).

O usufruto da identidade gaúcha – em uma apropriação conve-niente, por vezes até temporária – refletiria uma validação determinada pelos interesses individuais, da ordem da subjetividade. Não importa es-paço, tempo ou forma de apropriação, o que importa é a satisfação pes-soal, o conforto de sentir-se abrigado por uma identidade já há tempos legitimada no Rio Grande do Sul.

Categorias de análise e sua aplicabilidade: o exemplo do anúncio de Pompéia

A matriz criada pela dissertação à análise do corpus constituiu-se por seis categorias. Tais categorias fizeram variar sua capacidade de gerar conteúdo analítico conforme os textos verbais e não-verbais consti-tuintes de cada anúncio. A saber, foram as categorias criadas e aplicadas:

1. Ícones da tradição gaúcha – objetos e cenários comumente as-sociados à cultura regional. Com base em Saborit (2000) e sua proposta para análise de registros visuais, também foi considerado em relação aos objetos seu contexto de aparição (usual e não-usual), a quantidade (grau de acessibilidade, seu caráter elitista ou massivo, por exemplo) e os planos (podem apresentar detalhes significativos, perspectivas gene-ralizantes, conferir ao objeto anunciado diferentes graus de visibilidade);

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2. Valores sócio-culturais – caracterizações estereotipadas asso-ciadas aos gaúchos;

3. Iconografias – fotografias e/ou ilustrações, como a presença de personagens e sua performance. Também segundo a proposta de Saborit (2000), foram analisadas conforme a quantidade (nenhum, um, um grupo, uma multiplicidade – em agrupamentos mais ou menos insti-tucionalizados, como pares, família, equipe e outros) e tipos (humanos e não-humanos, idade aproximada, classe social, sexo, aparência física, fenótipos e outros), além de outras caracterizações, como o figurino, a ação e a tensão psicológica em cena representada;

4. Cores dos textos verbal e não verbal – associações materiais e/ou não materiais;

5. Campo semântico e relações verbais – o conceito criativo pelo texto verbal;

6. Presença e conteúdo do slogan – em geral, assina o anúncio retomando sua ideia-chave.

Exemplificando a aplicação de tais categorias de análise a cor-pus, apresenta-se aqui o caso do anúncio da loja Pompéia, veiculado no Jornal Zero Hora em 2007, conforme indicado abaixo (Figura 1):

Figura 1: Anúncio da loja PompéiaFonte: Zero Hora, 20 de setembro de 2007, p.33.

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Chamada: A Revolução Farroupilha serviu de inspiração para fazermos a nossa: levar a moda para todos.Texto de apoio: A Revolução Farroupilha aconteceu há mais de 150 anos. E seu espírito sempre acompanhou os gaúchos. Essa vontade de lutar por um ideal foi o ponto de partida para a Pompéia iniciar uma revolução alegre, bonita e que vem unindo os gaúchos com o lema “É fácil ser fashion” nas 48 lojas localizadas em 46 cidades do Estado. Os Farrapos lutaram pela independência. A revolução agora é para levar a moda para todos.Texto de assinatura: Uma homenagem da Pompéia à Revolução Farroupilha.Slogan: É fácil ser fashion.Agência: GlobalComm

Segundo informações do seu sítio eletrônico4, as lojas Pompéia estão presentes em 49 municípios gaúchos, somando até então 51 fi-liais. Trata-se assim de um anunciante bastante conhecido entre os gaú-chos, devido à sua extensa rede. A fundação da primeira loja, nessa época denominada “A principal”, é datada de 1953, empreendida pelos empresários Lins e Valdemar Ferrão, no município de Camaquã/RS. A empresa se manteve com administração familiar, sendo que a segunda geração da família Ferrão chegou à direção da rede nos anos 80 e a terceira no ano 2000.

Também conforme o histórico disponível no sítio, entre as dé-cadas de 60 e 70 foi que a rede passou a focar no público feminino. Ou seja, mesmo os seus produtos de vestuário, calçados e acessórios (além dos artigos de cama, mesa e banho) sendo destinados a adultos e crianças de ambos os sexos, ou a toda a família, a Pompéia, assim como muitas lojas de departamento, compreende as mulheres como público-alvo primário (principal) de sua comunicação publicitária, devido à sua característica de decisoras de compra dentro do núcleo familiar.

A Pompéia constitui-se, então, como um anunciante conhecido em praticamente todo o Estado, devido às suas muitas lojas (umas das maiores redes gaúchas do seu segmento5), aos mais de cinquenta anos 4 Disponível em: <http://www.lojaspompeia.com.br/culture/default.aspx>. Acesso em: 05 nov. 085 “A DCS já começa a pensar na primeira campanha de uma das maiores redes de lojas de depar-tamento do RS. Presente em 49 municípios gaúchos através de 51 unidades, a Pompéia completou 55 anos. A rede, que anunciou recentemente que vai continuar investindo forte no Estado, emprega 2.500 funcionários e adota conceitos atualizados de vitrinismo, iluminação, fachadas e equipamen-

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de existência e, claro, por tratar-se de uma empresa que se anuncia com certa frequência e quase sempre a praticamente todo o Estado (através de jornais impressos de circulação estadual e das suas publicidades em televisão, também em espaços veiculados estadualmente).

Com base nessas observações, pode-se inferir que a Pompéia é uma rede de lojas de posicionamento tradicional, como grande parte das empresas familiares. Pelo constante crescimento da rede, acredita-se que a marca Pompéia já tenha imprimido considerável confiabilidade a sua imagem institucional, tendo atingido maturidade e expressivo reco-nhecimento público. Tal conformação, após tantas décadas de existên-cia, justificaria o incremento de posicionamento de marca, como pode ser percebido no trabalho que vem sendo desenvolvido no seu mais re-cente slogan “É fácil ser fashion”. Tal conceito visa associar a rede a produtos que estão em conformidade com a moda contemporânea, ou seja, na Pompéia os consumidores encontrariam produtos modernos, que seguiriam as últimas tendências de cada nova estação, oportuni-zando a todos os gaúchos o “andar na moda”, mesmo àqueles que não entendam muito do assunto.

Quanto à categoria de ícones da tradição gaúcha, o elemento comumente associado à cultura regional presente nesta peça é o lenço vermelho, que conforme os manuais do MTG é umas das peças inte-grantes da indumentária típica sul-rio-grandense. O lenço destaca-se como referência à gauchidade não apenas pela cor (outras cores de lenço permitidas pelo MTG, além da vermelha, são o branco, azul, verde, amarelo ou carijó em marrom ou cinza6), mas também porque é usado no pescoço (outra opção de uso recomendada pelo MTG é o lenço ajus-tado na cabeça, amarrado na nuca7).

O local de uso do lenço não é inusitado, o pescoço da modelo. Já se considerando a possibilidade de referência ou equiparação ao lenço farroupilha (visto que a chamada e o texto de apoio falam em Revolução Farroupilha), o contexto de uso, por sua vez, pode ser considerado inu-sitado. Isso porque mesmo os manuais do MTG permitindo o uso do len-tos de ponto-de-venda. Sua linha de produtos atende todos os segmentos de confecções feminina, masculina, infantil, calçados, cama, mesa e banho. A nova agência da Pompéia festeja sua boa performance em 2008 com incremento nos negócios também nos escritórios de Brasília e Santa Catarina”. Disponível em: <http://www.portaldapropaganda.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=7800&Itemid=50>. Acesso em: 05 jan. 09.6 Disponível em: <http://www.mtg.org.br/folclore/INDUM_diretrizesPILCHASeENCILHAS.pdf>. Acesso em: 05 jan 09.7 Idem a nota anterior.

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ço pelas mulheres, esse deve ser acompanhado pelo conjunto do traje feminino recomendado8, que inclui, por exemplo, a bombacha feminina (mais estreita que a masculina), botas ou alpargatas e camisa estilo so-cial, com mangas longas ou curtas, colarinho, botões e em cores sóbrias (sendo vedado o uso de camiseta e camisa gola pólo).

Única peça do corpus protagonizada por uma mulher, desacom-panhada de personagens masculinos, esse anúncio explora a feminilida-de e a beleza comumente referenciada às gaúchas. O olhar determinado da modelo, seu rosto levemente erguido e sua postura ereta conotam uma personalidade forte. Seu posicionamento corporal, com uma das mãos levada à cintura, é de autoconfiança. Associada esta composição fotográfica ao apelo verbal expresso na chamada, que fala da inspiração evocada pela memória da Revolução Farroupilha, tem-se uma figura fe-minina representativa da força da mulher gaúcha. Mulher essa que luta pelos seus ideais, como indica certo trecho do texto de apoio, “Essa vontade de lutar por um ideal”, que a Revolução inspira no povo gaúcho.

Referente à iconografia, o texto não-verbal resume-se à foto-grafia de uma mulher branca e jovem, num plano que a mostra até a altura pouco abaixo dos joelhos. Ele é magra, loira, de olhos claros, pele branca, cabelo liso e preso, usa maquiagem discreta nos olhos e nos lábios. O ângulo da fotografia é plano americano, ficando seu cor-po visível até a altura dos joelhos. Ela usa um vestido de malha cinza, com comprimento pouco acima dos joelhos, bem acinturado, de alças, decotado em “V” no busto.

Trata-se de uma modelo jovem e bonita, em atitude provocativa, aparentemente desinibida. Suas pernas encontram-se à mostra devido ao vestido de comprimento acima dos joelhos cujo decote deixa seu colo à mostra e cujo tecido de malha evidencia seu contorno corporal. No pes-coço apresenta um lenço amarrado com um nó, ajustado lateralmente. Também usa um discreto brinco, pequeno, e um anel no dedo médio da mão direita, ambos em metal prateado. As unhas são curtas e pintadas com esmalte incolor. Tanto sua roupa quanto seus acessórios são dis-cretos e de cores neutras e claras, fazendo contrastar o lenço vermelho.

A jovem encontra-se de pé, com o braço esquerdo estendido para baixo, relaxado, e o direito posto pouco abaixo da cintura, no quadril. Seu queixo e seu rosto estão levemente erguidos e seu olhar direciona-se para o lado de fora do anúncio, à esquerda. Sua pose é confiante, charmosa, 8 Idem a nota anterior.

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elegante, sensual sem ser apelativa, mantendo a discrição. O cabelo preso em coque na base da cabeça e seu colo desnudo realçam o lenço vermelho no pescoço, conferindo-lhe bastante visibilidade. Seus lábios são talvez a parte mais sensual do corpo, pois, volumosos e entreabertos, resultam num delicado sorriso, que deixa à vista parte dos dentes superiores.

Destacam-se na peça especialmente as cores laranja (na tona-lidade que compõe a marca Pompéia), vermelha (do lenço) e as tonali-dades de cinza do vestido e a que recobre o plano de fundo do anúncio. A Pompéia há muitos anos enfatiza em sua comunicação a cor laranja, seja na identidade visual das suas campanhas publicitárias ou na dos próprios pontos de venda (fachadas externas das lojas da rede, decora-ção e sinalização internas, sacolas, papéis de presente onde são embru-lhados as mercadorias, uniforme dos vendedores, etc.).

Já a cor vermelha do lenço, além de fazer referência à cultura gaúcha, é uma cor quente que atrai o olhar do público-alvo à modelo, além de conotar a ela poder de sedução e sensualidade. Também o fato de a fotografia ser colorida (impressão a quatro cores) confere efeito de realidade e mesmo humanização à modelo, num resultado visual muito diferente do que se o anúncio fosse em preto e branco.

Quanto aos textos verbais, a chamada, a frase de assinatura, o logotipo e o slogan são todos aplicados na única cor da marca Pompéia, o laranja. Entretanto, devido à tonalidade de cinza do fundo do anúncio e as reduzidas dimensões da tipografia, esses textos em laranja ficaram praticamente ilegíveis, ao contrário do texto de apoio, aplicado em tipo-grafia preta, que possibilitou bom contraste sobre o fundo cinza.

O campo semântico explorado no anúncio refere-se à ação de revolucionar, ao tema revolução. Através deste acontece a equipara-ção entre a Revolução Farroupilha e o que o anúncio propõe como uma certa revolução empreendida pela moda de Pompéia, através do slo-gan “É fácil ser fashion”. São exemplos de palavras-chave exploradas pelo campo semântico do anúncio: inspiração, vontade de lutar, ideal, união, lema, entre outras.

A chamada “A Revolução Farroupilha serviu de inspiração para fazermos a nossa: levar a moda para todos” não representa exatamen-te uma homenagem institucional da Pompéia à Semana Farroupilha. Isso porque se trata de um anúncio de oportunidade, onde o anuncian-te realizou a adequação da data comemorativa a um conceito publici-

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tário que já vinha sendo trabalhado em suas práticas de comunicação. O slogan “É fácil ser fashion” já havia sido usado em outras datas co-memorativas, tais como o dia das mães, dos namorados e dos pais. Apesar desse fato, no texto de apoio o anunciante dá a entender que se inspirou no ideal dos revolucionários, em seu espírito de luta, para criar “uma revolução alegre” e “bonita”. Entretanto, a revolução susten-tada no slogan “É fácil ser fashion” não foi lançada nesse anúncio, sua veiculação já existia anteriormente.

No texto de apoio o anunciante lembra o público-alvo de que o espírito da Revolução Farroupilha, mesmo ocorrida há mais de 150 anos, “sempre acompanhou os gaúchos”. Logo, indicando esse espí-rito como o motivador da revolução fashion de Pompéia, sugere que os gaúchos também poderiam escolhê-la como a loja que acompanha as suas vidas, que esteja presente na sua história. É nesse sentido também, de aproximação do seu público-alvo, que o anunciante posi-ciona-se como democratizador da moda, especialmente quando afir-ma que a revolução do “É fácil ser fashion” “vem unindo os gaúchos”, na intenção de “levar a moda para todos”, por meio de uma “revolução alegre” e “bonita”.

Outro detalhe interessante referente ao texto de apoio é que o substantivo farrapos é escrito com letra maiúscula, apesar de não se tratar de um nome próprio. Finalizando o texto de apoio, o trecho “Os Farrapos lutaram pela independência. A revolução agora é para levar a moda para todos” conclui que com a democratização da moda proposta pela Pompéia é garantido a todos os gaúchos o direito de se vestirem com qualidade e dentro das últimas novidades do universo fashion.

Quanto à frase de assinatura da peça, “Uma homenagem da Pompéia à Revolução Farroupilha”, essa busca reafirmar o porquê do anúncio, a lembrança de Pompéia à data comemorativa mais importante da cultura regional. Por fim, o slogan “É fácil ser fashion” (usado pelo anunciante, na época da veiculação, e não criado especialmente para a peça em questão) funciona literalmente como um grito de guerra da re-volução proposta por Pompéia. O anúncio propõe que tal lema deva ser adotado pelo público-alvo porque representa uma luta a favor da moda democrática, que permanece ao alcance de todos os gaúchos. O slogan em questão, como já foi dito, já existia anteriormente à iniciativa desse anúncio, não tendo sido criado especialmente a ele.

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A representação predominante no corpus: considerações finais

O estereótipo obtido a partir da interpretação da amostra dos dez diferentes discursos revelou uma representação pela publicidade con-temporânea marcada especialmente pelas seguintes caracterizações: foco, em termos não-verbais, na plasticidade humana anônima; recor-rência a um fenótipo bastante demarcado; orientação a ambos os sexos (enquanto públicos-alvo), mas com masculinização dos personagens dominantes; compreensão da Revolução Farroupilha como o mais im-portante referencial histórico e marco zero dos valores sócio-culturais; e apropriação não fiel do gaúcho empreendido pelo Movimento Tradicio-nalista Gaúcho (MTG). Segue-se a compreensão de cada uma dessas seis caracterizações pelo estudo:

1. A representação do gaúcho pela publicidade, em termos não-verbais, é focada na plasticidade humana anônima. A principal atratividade visual, os principais destaques iconográficos nos discursos do corpus não foram os feitos de personalidades gaúchas (seja do esporte, da ciência, das letras, das artes, etc.) ou as propriedades intelectuais associadas aos gaúchos, as riquezas econômicas do Estado, os seus símbolos oficiais, as características geográficas e as paisagens naturais, a gastronomia, o ves-tuário, enfim. A presença visual de personagens humanos foi destaque em praticamente todos os anúncios (nove deles). Ou seja, os elementos ou valores associados à cultura regional não foram tomados em isolado, sen-do suas aparições associadas a fotografias ou ilustrações de personagens humanos em estratégia de aproximação dos discursos com os públicos.

2. A representação do gaúcho pela publicidade tem fenótipo de-marcado. Os personagens do corpus eram em sua grande maioria da raça branca, enfatizando a colonização europeia. Além disso, eram jo-viais em suas atitudes, em suas performances, e não apenas na idade que aparentavam nas representações. Personagens crianças ou perten-centes a terceira foram secundários ou inexistentes no corpus.

3. A representação do gaúcho pela publicidade volta-se a ambos os sexos, mas com masculinização dominante. A temática regional foi recorrente em anúncios de produtos/serviços: refrigerante, telefonia ce-lular, colchão, supermercado, roupas, cerveja [...], voltados a públicos-al-vos de ambos os sexos. Não foi utilizada por anunciantes cujos produtos eram voltados especificamente só a homens ou só a mulheres. Entretan-

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to, a figura feminina, quando apareceu representada, foi acompanhada da masculina ou impregnada de referências masculinizantes, tais como a força física e a coragem.

4. A representação do gaúcho pela publicidade é individualizante. Prova disso é que os núcleos familiares nas representações do corpus foram praticamente inexistentes. E embora alguns textos verbais falas-sem muitas vezes em nome de uma coletividade (“nós, os gaúchos”, “a nossa herança”, “a nossa terra”, “os nossos bravos homens”), os discur-sos visaram atingir seus públicos-alvo enquanto indivíduos repletos de particularidades, vontades, sonhos e desejos subjetivos.

5. A representação do gaúcho pela publicidade compreende a Revolução Farroupilha como o mais importante referencial histórico e marco zero dos valores sócio-culturais. É como se fosse impossível a constituição pelos sul-rio-grandenses de uma identidade regional e a representação desta pela publicidade independentemente do episó-dio farroupilha. A Revolução Farroupilha só foi lembrada como aspec-to positivo, jamais como a mais duradoura guerra civil brasileira, cuja finalização ocorreu não pela vitória das tropas farroupilhas, mas sim por rendição destas. Desse modo, contemporaneamente, pode ser um tema evocável a qualquer circunstância, sobre qualquer pretexto, por anunciantes de produtos/serviços de qualquer natureza, pois se trata de um tema totalmente despido de suas agruras fundantes. Atribui-se aos farroupilhas a herança quase genética, a todo sul-rio-grandense, dos mais dignificantes valores do homem gaúcho: a coragem, a bravu-ra, o espírito de liberdade, o amor ao pago. A representação do gaúcho contemporâneo pela publicidade é originada, pois, de uma representa-ção idealizada dos soldados farroupilhas;

6. A representação do gaúcho pela publicidade apropria-se da representação do gaúcho empreendida pelo MTG (MTG), mas não é fiel a ela. O discurso publicitário só é incondicionalmente fiel aos seus próprios interesses mercadológicos: os anunciantes sobrevivem por-que discursam e discursam para sobreviver. Logo, sendo conveniente, adotam certos elementos e aspectos difundidos pela representação identitária regional do MTG – afinal, muitos desses já atingiram visibili-dade e aprovação pública, bem como, inclusive, apoio do poder públi-co. Entretanto, sendo conveniente adaptá-los, ignorá-los, criticá-los ou rebaixá-los a significância alguma, também o faz.

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Como se pode perceber, o gaúcho elaborado, difundido e popu-larizado pelo MTG hoje se confunde com a representação estereotipa-da do sul-rio-grandense circulante nos espaços públicos, sendo quase indissociáveis. Seja com uma organização discursiva mais afim à re-presentação moderna ou à representação pós-moderna da identidade regional, o fato é que, obedecendo aos seus próprios interesses, o dis-curso publicitário contemporâneo se coloca como uma solução – ainda que temporária – às inseguranças, às incertezas, aos temores daqueles que embora desejem exteriorizar sua individualidade, mais cedo ou mais tarde carecem da acolhida do abrigo identitário coletivo.

Torna-se importante relembrar aqui uma das importantes ques-tões levantadas por Bauman (2007) a respeito do processo de reificação identitária, a qual reflete o “círculo vicioso” da mercantilização: adotando a representação identitária reificada promovida nos discursos publicitá-rios, os indivíduos passam também a colaborar à divulgação da mesma, servindo como vitrine aos valores e elementos estereotipados eleitos por esta como demarcadores da identidade regional.

Outro aspecto pertinente à temática em questão lembra que a adesão à identidade coletiva regional pelo sedutor viés do discurso pu-blicitário não ajuda a preservá-la ou fortalecê-la, pois não implica em engajamento dos indivíduos a seu favor, a favor do grupo. A este respei-to, conforme lembrou Jameson (2008), a reificação seria possível justa-mente devido à dissolução dos vínculos que compõe uma comunidade, fazendo prevalecer assim o interesse econômico dos indivíduos.

Como ficou evidenciado, o reconhecimento identitário regional proposto no apelo publicitário contemporâneo serve-se de fontes diver-sas. Por vezes vale-se de narrativas de verdades reconhecidas e com-provadas historicamente, por outras recorre a narrativas inventadas ou convenientemente adaptadas. O fato é que, na construção de suas pró-prias representações, a publicidade concorrerá sempre com àquelas es-tereotipadas pela consciência regional (ORTIZ, 1995).

A identidade reificada nessa óptica é tão comercial quanto os próprios produtos/serviços e marcas os quais ajuda a vender. Ela, a identidade-produto, a mercadoria simbólica, seria responsável por atrair a atenção, despertar o interesse, estimular o desejo e provocar a compra e/ou o consumo dos bens materiais, os objetos ao qual é ligada através do discurso de orientação regional. Ela, a identidade

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gaúcha reificada, atuaria contemporaneamente como a porta-voz co-mercial do discurso publicitário regionalista.

A representação reificada, desse modo, chegaria ao público-alvo como um kit identitário pronto para o consumo (BAUMAN, 2007). Por esta lógica forja-se a questão da concepção de identidade pós-moderna. Por ela a multiplicidade de identidades e identificações é cla-ramente possível, pertinente e mesmo necessária à sobrevivência dos indivíduos e suas relações sociais na contemporaneidade. Elas con-vivem simultaneamente, por períodos de tempo não necessariamen-te de mesma durabilidade ou contínuos, aliás, muitas vezes bastante ocasionais e convenientemente oportunos. Além disso, apresentam-se com intensidades de envolvimento subjetivo e comprometimentos de adesão variáveis. Em consequência a esta situação, os anúncios que fazem uso da temática identitária regional pela concepção pós-moder-na – ainda que não o saibam, por sua vez, estão muito mais aptos a construir discursos em que a identidade gaúcha seja reificada e, con-sequentemente, atrativa aos públicos-alvos reificados.

Se a indústria cultural tem por lema estabelecer cada indiví-duo em uma posição bem definida na sociedade (ESTEVES, 2000), a publicidade, por sua vez, sempre procurou estabelecer todos os in-divíduos uma única posição social: a de consumidor. Neste sentido, o verdadeiro complexo industrial da produção de discursos publicitários de orientação identitária reificada se constitui num mercado crescen-temente promissor, atraindo cada vez mais públicos-alvo pelas suas promessas de integração desses ao confortável abrigo da identidade coletiva. E esses públicos são convidados a integrarem-se à identidade adentrando ao seu universo de significações pela porta da frente, pelo tapete vermelho. O público-alvo, e consequentemente todo o seu po-tencial enquanto consumidor, em nível individualizado, é atraído pelos discursos que prometem essa integração de maneira convidativamente descomplicada, confortável, leve e até, porque não dizer, divertida – também como uma opção de entretenimento.

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AS REPRESENTAÇÕES NO “CIRCUITO DAS NOTÍCIAS”: O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS

SEM-TERRA NO JORNAL ZH1

Vilso Junior SANTI2

Márcia F. AMARAL3

ResumoEstudar a representação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) e de suas ações no jornal Zero Hora (ZH), tendo como panorama o “Circuito das Notícias” e suas distintas fases, é nosso objetivo central. Para tanto, procuramos mapear o movimento das representações e suas transformações ao longo da cadeia produção, texto e leitura sem esquecer de suas intersecções e interrelações nos diferentes momentos. O estudo propõe uma aproximação analítica entre o “Circuito da Cultura” de Johnson (1999) e o que qualificamos como o “Circuito das Notícias” – uma tentativa de abordagem integral e integradora, que reivindica uma visão global sobre os processos jornalísticos. Tal aproximação parte das contribuições teórico-metodológicas dos Estudos Culturais Britânicos e busca entender e/ou explicar a dinâmica da cultura, dos produtos culturais, e suas intersecções com o jornalismo, principalmente no que se refere às representações.

Palavras-chaveJornalismo impresso; Circuito das notícias; Representações; MST.

The representations in the “Circuit of News”: the Landless Rural Workers’ Movement (Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem-terra) in the newspaper ZH

AbstractThe main aim of this paper is to study the representations of the Land-less Rural Workers’ Movement (Movimento dos Trabalhadores Rurais 1 Trabalho resultante de dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Área de Concentração: Comuni-cação Midiática. Linha de Pesquisa: Mídia e Identidades Contemporâneas.2 Jornalista. Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: [email protected] 3 Orientadora. Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Univer-sidade Federal de Santa Maria (UFSM) E-mail: [email protected]

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As representações no “Circuito das Notícias”

Sem-terra) and its actions – reported by the newspaper Zero Hora (ZH) – by analyzing the Circuit of News and its distinctive periods. In order to achieve this objective the research presents the movements of the rep-resentations and its transformations considering production, text and reading issues. This study also proposes an analytical approach to the “The Circuit of Culture” given by Johnson (1999) which is addressed here as “Circuit of News”. The theoretical approach is based on the British Cultural Studies and the subject matter is concerned with the dynamics of culture and the relations to the journalism practices, particularly regard-ing to the representations.

Keywords Press journalism; Circuit of news; Representation; MST.

O texto trata da aproximação teórico-metodológica entre o “Cir-cuito da Cultura” proposto por Johnson (1999) e o que convencionamos chamar de “Circuito das Notícias” na ótica dos estudos de comunicação e/ou do jornalismo. Tal aproximação busca uma abordagem integral/in-tegradora dos fenômenos comunicacionais e se assenta tanto na ne-cessidade quanto na possibilidade de integração ente os universos da produção, dos textos e das leituras que marcam a globalidade complexa e multifacetada do processo comunicativo.

Objetivando estudar o tipo de representação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) e de suas ações no jornal Zero Hora (ZH), bem como mapear ao longo do “Circuito das Notícias” o mo-vimento dessas representações, junto com os seus sentidos mobilizados ao enunciar a “questão agrária”, detemo-nos a clarear como se dá e em que base se assenta tal “movimento representacional” nos diferentes momentos do “Circuito” noticioso.

Para tanto, selecionamos como corpus de trabalho os aconteci-mentos e/ou os fatos relacionados ao MST e noticiados por ZH no pe-ríodo de 12/04/2008 a 21/05/2008. Tais fatos estão todos vinculados à “Jornada Nacional de Lutas”, promovida anualmente pelo MST – o “Abril Vermelho” como prefere designar o próprio ZH, e referem-se diretamen-te à repercussão e às ações de entrada e saída do Movimento na Es-tância do Céu – área de 13 mil hectares, localizada no município de São Gabriel, na região central do Rio Grande do Sul.

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Vilso Junior Santi & Márcia F. Amaral

Na materialização do estudo, optamos por operar num ambiente teórico-metodológico formalmente não acabado, tomamos as práticas jornalísticas como um “Circuito” e procuramos conjugar o estudo da produção, dos textos e das leituras numa mesma mirada seguindo uma abordagem menos vertical e mais horizontal ou panorâmica.

Do “Circuito da Cultura” ao “Circuito das Notícias”

Falar do ponto de vista dos Estudos Culturais é, para García Canclini (1995), falar a partir de intersecções e/ou discorrer acerca de uma tradição intelectual e política e das conexões entre cultura, his-tória e sociedade (JOHNSON, 1999). Já o “Circuito da Cultura”, con-forme Johnson (1999) e Hall (2003), pode ser tomado um modelo de análise4 estratificado e não acabado (ver Figura 1) que tem na base os diferentes momentos dos processos culturais e que deriva de uma leitura que Marx faz do “Circuito de Capital” e suas metamorfoses. O “Circuito das Notícias”, por sua vez, sinaliza a possibilidade de um estudo integrador entre produção, textos e leituras além de permitir pensar cada momento do processo comunicativo à luz dos outros. Nele, o jornalismo pode ser visto como uma prática sociocultural e as notícias como um produto da cultura que, junto com as representa-ções que carregam, podem ser transformadas em seu uso.

4 O diagrama do “Circuito da Cultura”, para Johnson (1999, p.33), tem por objetivo representar o circuito da produção, circulação e consumo dos produtos culturais. Nele, cada quadro representa um “momento” e cada “momento” depende dos outros e é indispensável para o todo. Cada um deles, entretanto, é distinto e envolve mudanças características de forma. Segundo o autor, se es-tamos colocados em um ponto do circuito, não vemos, necessariamente, o que está acontecendo nos outros, já que as formas que tem mais importância para nós, em um determinado “momento”, podem parecer bastante diferentes para outras pessoas, localizadas em outro ponto. Tal percep-ção lastreia a proposta analógica de incursão relacional pelos distintos momentos do “Circuito das Notícias” na presente pesquisa.

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Figura 1: Diagrama da produção, circulação e consumo dos produtos culturais (JOHNSON, 1999, p.35).

No “Circuito”, diferentes instâncias podem ser tomadas como determinantes na circulação das representações e dos valores simbóli-cos, e, esses últimos, como os regentes do processo de significação tão caro à comunicação. Para os Estudos Culturais, conforme Hall (2003), representar é atribuir sentido, classificar e/ou lutar pela imposição de significados, e a representação pode ser vista como uma prática social que produz cultura. Nessa lógica, as representações midiáticas podem ser tomadas como encenações que possuem caráter construído e, ao mesmo tempo em que são modos de exposição que naturalizam certos vieses, podem instaurar padrões normais e modelos que influenciam as percepções sobre as coisas do mundo.

Porém, como lembra Schmeil (1999), somos influenciados por um sistema de representações que ultrapassa o contexto presente. Nesse sentido, ao resgatarmos a historicidade da “questão agrária”

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no Brasil, mediante uma intensa pesquisa do “estado da arte” sobre o tema, podemos mencionar uma “estrutura tendencial dominante de interpretação” (HALL, 2003) e/ou uma “matriz representacional hege-mônica” da problemática (ROMÃO, 2002) que, no trabalho, serviu de parâmetro para classificação das representações relacionadas ao MST como favoráveis, desfavoráveis e/ou tensionadas, seja na produção, no texto ou nas leituras.

Essa matriz demonstra a perspectiva de enunciação da “ques-tão agrária” e clareia os sentidos hegemônicos que são historicamente mobilizados em torno da luta pela terra no País. Em relação ao MST, tais sentidos dão conta de uma imagem de “baderneiro ilegal” onde a formação discursiva dominante está vinculada ao “direito sagrado à pro-priedade” (ROMÃO, 2002). Nesses termos o conjunto hegemônico de representações imprime um movimento de sentido orquestrado que, ao longo do tempo, trabalha para a circulação de dizeres através do conge-lamento de um sentido oficial relacionável a questão fundiária.

Ter presente a matriz de representação hegemônica da “questão agrária”, bem como o próprio conceito de representação, junto com as considerações teórico-metodológicas até aqui apresentadas nos permite olhar para os diferentes momentos do “Circuito das Notícias”, a fim de operacionalizar a estratégia de investigação que propomos. Tal estratégia compreende a análise integrada da produção, dos textos e das leituras, junto com seus reflexos nas culturas vividas e nas relações sociais. Po-rém, para fins de sistematização, propomos a verificação em separado das diferentes etapas, a partir do momento da produção, já que é nesse ponto que as mensagens jornalísticas são discursivamente constituídas.

Da produção e da publicação das notícias

Na análise do momento da produção, trabalhamos com os jor-nalistas vinculados ao jornal Diário de Santa Maria, responsáveis dire-tos pela cobertura dos acontecimentos em torno da Estância do Céu e porta de entrada dos fatos na rede de jornais do Grupo RBS (Rede Brasil Sul) da qual ZH é a célula mãe5.5 O jornal Zero Hora é um agente produtor de peso no Rio Grande do Sul. Ele pertence à maior organização de mídia da indústria cultural gaúcha, o Grupo RBS, e por isso desfruta de uma série de vantagens que o colocam como o periódico de referência no Estado. ZH é um dos veículos mais antigos do Grupo RBS. Ele foi fundado em 04/05/1964 e é líder de circulação em solo gaúcho – com média diária de 176.961 exemplares – conforme o Instituto Verificador de Circulação (IVC).

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A produção na lógica do “Circuito das Notícias” é um processo social e histórico e, segundo Hall (2003), o lugar onde se “constrói” a mensagem, por isso a análise pode se iniciar aí. Nela, podemos abarcar as distintas narrativas associadas à construção dos produtos noticiosos e culturais. Nesse momento, prestar atenção ao lugar da produção dos acontecimentos e não somente o lugar da produção das notícias parece-nos fundamental, pois, conforme Johnson (1999), não podemos perpe-tuamente discutir as condições sem nunca discutir os atos produtivos.

Nessa fase tratamos, portanto, da construção da notícia e do pro-duto jornalístico em si. Procuramos observar as rotinas de produção e sua relação com as culturas vividas dos profissionais envolvidos, assim como os elementos concretos da produção e da organização da própria instituição produtora. Inspirados nos aportes do Newsmaking6 usamos como ferramentas a observação das rotinas produtivas, a pesquisa par-ticipante, e as entrevistas individuais com jornalistas. Optamos por atuar no calor dos acontecimentos acompanhando todos os procedimentos desenvolvidos desde a chegada da pauta à redação até a publicação da notícia nas páginas de ZH.

Os resultados dão conta da relevante experiência dos envolvidos na cobertura – mínimo de três e máximo de 15 anos de mercado. Todos, ao mesmo tempo em que desconsideram as experiências profissionais anteriores, apontam a pertinência de uma verdadeira “reformação” ocor-rida dentro do Grupo RBS, necessária à conversão de estudantes de jor-nalismo em profissionais da imprensa. Em contraponto, as informações coletadas em relação ao que chamamos de “experiência social”, mos-tram que nenhum dos profissionais teve ou tem participação ativa em or-ganizações da sociedade civil. A maioria deles por falta de oportunidade, de tempo e até mesmo por desinteresse. Isso talvez explique primeiro a estranheza de alguns jornalistas em relação às mobilizações do MST, e depois a própria curiosidade relacionada a essas ações – todos os repórteres entrevistados expressaram a seus editores a disponibilidade em cobrir os acontecimentos.6 Conforme Wolf (2001) e Hohlfeldt, Martino & França (2001), este enfoque teórico-metodológico diz respeito a um tipo de estudo ligado à sociologia do jornalismo e está relacionado com a observa-ção da rotina produtiva cotidiana da cobertura jornalística. O Newsmaking pretende, dentre outros aspectos, analisar o conjunto de critérios que definem a noticiabilidade de um acontecimento, isto é, a sua relevância para ser transformado em notícia. O olhar dessa hipótese está centrado no emissor, visto como intermediário entre o acontecimento e a notícia. Ele dá atenção especial ao relacionamento entre jornalistas e fontes, assim como às diferentes etapas de produção: captação, tratamento, edição e distribuição da informação.

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Quando abordam sua prática profissional, em geral, os profis-sionais observados e depois entrevistados invocam valores “tradicio-nais” como isenção ou tentativa de isenção no seu fazer jornalístico cotidiano. “Nossa obrigação é colocar o fato na roda”, diz a Jornalista 1. “Botar as vozes falando cada uma a sua versão e deixar o leitor tirar as suas próprias conclusões”, aponta o Jornalista 2. “Ouvir as partes envolvidas e usar o bom senso” (Jornalista 3) e “[...] buscar o que atin-ge o maior número de leitores”, considera o Jornalista 4.

Em ZH, conforme os profissionais entrevistados, o MST e/ou suas ações são notícia/noticiados por diversos motivos: pelo “potencial conflitivo da questão agrária”; pela “tensão que envolve a disputa”; pelo Movimento ter “grandes proporções em nível nacional”; por “defender uma bandeira histórica”; porque “suas ações estão localizadas na área de cobertura do veículo”; e também porque “os leitores gostam desse tipo de pauta”. Porém, segundo a Jornalista 1, “quando o MST se mexe ele é pauta com certeza, quando ele não se mexe a gente pensa”. Ela pondera ainda que o Movimento vai ser “sempre” notícia porque “os concorrentes também cobrem”. O Jornalista 2, nesse sentido, conside-ra que “o MST usa a mídia para fazer notícia, para se promover e pro-mover a questão dele”. O Movimento é um “fato grande”, e como “fato grande” merece ser noticiado, já que suas ações afetam um grande número de pessoas e “os efeitos colaterais das ações do MST mexem com a vida de todo mundo”, diz a Jornalista 5. Porém, ela lembra que isso depende muito do dia do jornal e da pauta que o veículo tem para cobrir naquele dia.

Questionados sobre o enquadramento dado pelo jornal às no-tícias relacionadas à “questão agrária” e ao MST, os profissionais con-cordam unanimemente que a pauta seja tratada pela editoria de Geral. Segundo eles, na lógica organizativa do periódico, o MST não cabe nou-tro lugar. “A Geral é uma grande cozinha. Tudo que não tem perfil espe-cífico vai para a Geral”, diz a Jornalista 1. “Não se tem outra opção de enquadramento. Faz parte do cotidiano que é a cara da Geral”, pondera o Jornalista 2. Para a Jornalista 3, a Geral é um grande caldeirão, por isso o MST deve ser apresentado nela. “Qual seria o outro espaço?”, pergunta-se. “Sempre foi assim. É uma convenção histórica”, completa o Jornalista 4. Porém a Jornalista 5 faz questão de lembrar que: “[...] a geral é o coração da redação”.

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No detalhamento do processo de manufatura das notícias rela-cionadas à “questão agrária” podemos claramente identificar a existên-cia e/ou a ocorrência de três níveis de fluxos produtivos. Cabe ressaltar, no entanto, que tais níveis de fluxo são complementares e ao mesmo tempo indispensáveis para o entendimento do processo produtivo das notícias sobre o MST no jornal.

No primeiro deles temos os “fluxos produtivos externos”, ou seja, aqueles atos que acontecem fora do ambiente da redação e estão rela-cionados intimamente às ferramentas utilizadas pelo jornalista na apura-ção dos fatos no local onde eles ocorrem. No recorte utilizado na pesqui-sa, sinteticamente esse nível pode ser caracterizado, a partir do relato sequencial da Jornalista 1: cobertura conjunta com os demais veículos do Grupo RBS (TV + jornal); uso pronunciado de contatos por telefone principalmente devido às barreiras policiais que impediam o acesso di-reto aos acontecimentos; solicitação do jornal ZH para envio urgente de material a ser aproveitado na edição on-line; pressão do deadline para o retorno à redação; conversa com editor de Geral sobre a construção ideal de texto; mais apuração por telefone e internet; e, finalmente, a composição do texto da notícia a ser veiculada.

No segundo nível, temos os “fluxos produtivos internos”, ou seja, aqueles que ocorrem no interior do ambiente redacional e que estão vincu-lados tanto aos processos de construção e produção da pauta, papel com-partilhado pelos diversos editores do periódico, quanto aos processos de construção e produção textual, tarefa do jornalista escalado para cobertu-ra. Baseados nos dados coletados na pesquisa e nos relatos dos Jorna-listas 1 e 2 podemos assim caracterizá-lo: o repórter consulta seu editor; depois constrói seu texto; repassa-o novamente ao seu editor que, por sua vez, remete-o após as suas observações ao editor chefe. O editor chefe revisa e envia o material com suas sugestões de volta ao editor da seção que sugere ao repórter as devidas correções. Só depois de efetuados es-ses ajustes e do editor chefe dar seu parecer final é que o texto vai para a diagramação da página e depois para impressão e futura distribuição.

No terceiro nível dos fluxos produtivos de ZH, temos a “produção em rede” que está assentada basicamente sobre um sistema eletrônico de compartilhamento de conteúdos chamado Note. O Note pode ser ca-racterizado como uma ferramenta híbrida que incorpora características específicas do correio eletrônico (E-mail) e do sistema instantâneo de

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troca de mensagens (MSN). Através dele os jornalistas e os jornais do Grupo RBS compartilham previamente as suas pautas; recebem os pe-didos de material sobre temas específicos; e trocam informações prelimi-nares sobre os acontecimentos que depois serão aproveitados nas edi-ções online e impressa dos veículos. No Note, o repórter, após compor seu texto, deve arquivá-lo numa pasta chamada “Editoria 2”, essa pasta está acessível ao seu editor que reedita o material e transfere-o para “Editoria 5”. Ao disponibilizar o texto na pasta “Editoria 5”, o profissional torna o conteúdo acessível à equipe de arte e diagramação e ao mesmo tempo à todos os jornais do Grupo RBS.

Indagados sobre os constrangimentos vinculados a sua prática profissional e/ou relacionados aos processos produtivos, os jornalistas entrevistados também afirmam em uníssono que nos veículos do Grupo RBS existe plena liberdade de produção, que tais constrangimentos não existem e que as orientações a todos os profissionais apenas têm cará-ter técnico ou jurídico, são públicas e estão contidas no manual de ética, redação e estilo do jornal.

Na sequência, tratamos especificamente das representações to-madas pelos profissionais entrevistados para falar do MST e de suas ações. Ressaltamos de antemão que, nas entrevistas e no material cole-tado via observação, encontramos uma série de contradições às quais, pela necessidade de agrupamento para fins de categorização e pelo es-forço de síntese para apresentação dos resultados, podem ter sido mini-mizadas em nome daquilo tomado como mais relevante.

Nesses termos a Jornalista 1, por exemplo, movimenta sentidos muito próximos daqueles da matriz representacional hegemônica da “questão agrária”. Diz ela: “[...] então é assim: tudo bem, querem reivindi-car, reivindiquem, mas também não sejam baderneiros a fim de justificar as críticas”. Para o Jornalista 2, “[...] no MST tem muita gente que precisa, mas tem gente que se aproveita da organização para fins escusos”. Ele, embora parta de sentidos tensionados em relação à matriz, acaba por se filiar a ela também de modo favorável. “O Movimento é bem assessora-do, ninguém é ingênuo nem santo no MST, ele é o reflexo do mundo que nós vivemos”, diz a Jornalista 3, que mais uma vez movimenta sentidos alinhados à matriz hegemônica de representação. O Jornalista 4, no en-tanto, no seu dizer e fazer movimenta sentidos nitidamente tensionados em relação à matriz ao apontar que “[...] o MST é um grupo organizado,

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que tem representatividade e muitos integrantes. Eles também fazem parte da sociedade que a gente quer contemplar para o leitor”.

Porém, fica claro que de forma geral, mesmo partindo de senti-dos por vezes tensionados, os profissionais vinculados ao Grupo RBS se filiam à matriz hegemônica de representação num sentido predomi-nantemente favorável. Eles não conseguem libertar o seu dizer da noção de ilegalidade que historicamente envolve os questionamentos em torno da posse da terra. Por vezes, até movimentam dizeres diferentes, mas todos derivados da matriz de representação hegemônica da “questão agrária” que historicamente desfavorece os Sem-terra e o MST. Isso, sem dúvidas, se reflete na construção textual das notícias conforme abordamos na sequência da análise do “Circuito das Notícias”.

Do texto e seu descentramento

O estudo das representações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) no momento texto do “Circuito das Notícias” leva em conta as mesmas 18 edições do jornal ZH, que reproduziram as notícias referentes à cobertura das ações do Movimento acerca da Estância do Céu7. Nessa etapa, buscamos elucidar as formas como ZH representa o MST em suas páginas, além de traçar um mapa de sentidos que o veículo faz circular sobre o Movimento, relacionando-os posterior-mente à matriz de representacional hegemônica da “questão agrária”. Aqui também encontramos uma série de contradições às quais, pela ne-cessidade de agrupamento para fins de categorização e pelo esforço de síntese para apresentação dos resultados, podem ter sido minimizadas.

O texto, conforme Orlandi (1988), é o lugar, o centro comum de encontro entre autor e leitor, porém, descentrá-lo, ou seja, estudá-lo através das formas culturais que ele efetiva e torna disponível pare-ce-nos fundamental na lógica do “Circuito das Notícias”, já que esse contato se dá também em outras instâncias, fora do texto e dentro de determinado contexto (JOHNSON, 1999). No trabalho com o texto, utili-zamos como ferramenta primordial os preceitos da Análise do Discurso 7 Numa descrição generalista podemos assim caracterizar o jornal Zero Hora: ele segue o formato ta-blóide, tamanho de impresso que ajudou a consolidar no Rio Grande do Sul; dispõe de um bloco prin-cipal, que ocupa aproximadamente cinquenta páginas; e, é dividido em cadernos, que vão de diários a mensais, segmentados por público e temática. No corpo principal ele traz as editorias tradicionais dos impressos diários: Opinião, Política, Economia, Mundo, Geral, e Esportes, que se mantêm nas sete edições semanais e garantem a fidelidade a um formato mais clássico de jornalismo impresso.

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(AD) que levam em conta o homem na sua história e que procuram entender como um texto significa, prestando especial atenção ao movi-mento de instauração de sentidos.

Nessa linha, como para Orlandi (2001), tomamos o Discurso como efeito de sentido entre locutores e como fornecedor de representa-ções da realidade baseadas em ideias preconcebidas; Formações Ima-ginárias (FIs) como projeções que permitem passar de situações em-píricas para posições dos sujeitos no discurso; Formações Discursivas (FDs) como aquelas que autorizam o que deve e o que não deve ser dito em determinada configuração sócio-histórica compondo uma “região de sentidos”. E, Sequências Discursivas (SDs) como o trecho do texto que suporta a Formação Discursiva, arbitrariamente recortado para análise.

Partimos da materialidade do discurso presente no texto das notícias com a finalidade de identificar as FDs, relacionando-as com as FIs, para chegar às representações predominantes nos enunciados. Depois, pela aproximação e/ou distanciamento com um sentido princi-pal hegemônico buscamos categorizar tais representações como favo-ráveis, desfavoráveis ou tensionadas aos moldes de Jacks, Machado & Muller (2004). Para tanto, primeiro identificamos no texto as SDs, apontamos o sentido nuclear de cada uma e agrupamos as SDs, em cada texto, conforme o seu sentido nuclear. Depois, evidenciamos a que FD elas pertenciam e relacionamos as FDs à Formação Imaginária (FI) e/ou à matriz de representação hegemônica da “questão agrária”. Por último, categorizamos as Sequências como favoráveis, desfavorá-veis ou tensionadas em relação a essa matriz. “No método de análise fazemos o caminho inverso do discurso: partimos do texto para o que lhe é exterior”, esclarece Benetti (2007).

Assim, constatamos que ZH trata a pauta MST na editoria de Geral, longe do universo do Rural, no qual o Movimento luta para se in-serir. O veículo classifica invariavelmente os acontecimentos envolvendo o MST com a cartola “questão agrária” vinculando-a de maneira reducio-nista à questão dos Sem-terra. Para o ZH, “questão agrária” é diferente da “questão agrícola” e, portanto, não tem relação com o mundo rural do seu caderno especial Campo & Lavoura.

Para exemplificar a nossa análise, extraímos da edição de 18/05/2008 um conjunto de textos agrupados sob a expressão “Diários secretos do MST” – manchete principal de capa no dia. São três notícias

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identificadas pelas Formações Discursivas “Cadernos de luta do MST”, “Vandalismo na fazenda invadida” e “Polícia investiga a ação de milí-cias”, todas elas relacionáveis à Formação Imaginária de “baderneiros ilegais” e inegavelmente mobilizadoras de sentidos favoráveis à matriz representacional hegemônica da questão agrária.

No primeiro dos três textos, a SD83 aponta que os cadernos apreendidos pela Brigada Militar em São Gabriel revelam uma “rotina militarizada dos Sem-terra”. Esse parece ser o referencial que atravessa diagonalmente os três textos do conjunto. As SDs 84 e 85 resgatam o “saldo” da operação realizada pela Brigada Militar. Mesmo que tenham sido apreendidos diversos “utensílios” na ação, conforme a SD86, o que mais chama atenção são os “quatro cadernos” do MST. “Preenchidos a caneta, eles se dividem entre diários e atas que relatam o cotidiano dos acampados. São um misto de orientação dos líderes aos militantes e resumo das discussões internas”.

Segundo a SD87, foi a leitura desses cadernos que embasou as considerações impressas nas notícias do conjunto. A SD88 aponta a utiliza-ção de termos e rotinas militares para o gerenciamento dos acampamentos como a “organização de rondas de vigilância”. Na SD90 são descritas “no-ções de como os acampados podem resistir à desocupação das terras” e de “como podem driblar a fiscalização”. As SDs posteriores apresentam os principais trechos dos cadernos: SD91 “Como arregimentar apoio”; SD92 “Respostas padrão”; SD93 “Quem tira guarda”; SD94 “Controle do insóli-to”; SD95 “Pedras, trincheiras e bombas”; SD96 “Desavenças e punições”; SD97 “Divisão de classes”; SD98 “Lucro com bebidas”; SD99 “Uma inva-são”. SD100 “Escolha de alvos”; e SD101 “Medo de flagrante”.

Nesse texto, chama atenção a rede de significação encadea-da pelos indícios “clandestinamente” e “segredo”, numa referência ao Movimento como uma sociedade secreta, restrita a poucos e sem fi-nalidade coletiva, o que contribui para a consolidação de uma ima-gem representacional negativa do MST. Além disso, o texto reedifica a noção de marginalidade (e até mesmo ilegalidade), posto que muitas organizações secretas tenham seus objetivos e integrantes agindo de maneira escusa em atentados à “ordem democrática”.

No segundo texto do conjunto, identificamos mais uma acusação: na Estância do Céu, o Movimento – “que reclama de exageros da polícia” – teria deixado “um rastro de depredação”. Também nesse caso as SDs

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iniciais procuram resgatar o contexto e os fatos transcorridos dias atrás – já havia se passado um mês da saída dos Sem-terra da fazenda – mas acabam por recontar e ressignificar os acontecimentos lá transcorridos. As SDs102 e 103 relembram que a “desocupação” foi pacífica, mas as “marcas de vandalismo e atrocidades, difíceis de esquecer”. As SDs104 e 105 falam das “atrocidades” cometidas: “animais mortos”; “fezes espa-lhadas”; “janelas quebradas”; “paredes pichadas”; “estacas de madeira cravadas no solo”; “uma versão gigante do coquetel molotov” etc. Numa análise remissiva, causa estranheza o fato desses elementos não terem sido explorados no contexto original das ações; e também o emprego do termo “desocupação” para se referir a saída dos Sem-terra da Estância do Céu – quando eles entram “invadem” e quando saem “desocupam”.

O último texto do conjunto trata de supostas denúncias da “exis-tência de uma milícia ligada ao MST”. Para tanto, a notícia resgata epi-sódios pretéritos que não possuem relação direta uns com os outros, a não ser pela citação do Movimento nos inquéritos que investigam as ações. Na SD109 é citado um caso de 2003 ocorrido em Júlio de Cas-tilhos; na SD110, um caso de São Jerônimo em 2002; e na SD111 um caso de Jóia em 2001. As SDs 112, 113, 114 e 115, por sua vez, intro-duzem um novo assunto que, aparentemente, não tem relação com os demais. Somente nesse momento a voz dos Sem-terra e de alguns de seus apoiadores é detectada no texto.

Nesses termos, os resultados dão conta de que ZH retrata o MST predominantemente de modo desfavorável, ou seja, de modo favorável à matriz representacional hegemônica. Nas notícias e/ou nos textos do jor-nal o discurso sobre os Sem-terra e o MST deriva de valores históricos e culturais, que parecem alimentar a rivalidade e a divergência em relação à posse da terra. Sobre esses discursos se recompõe o sentido de “inva-sores” enfatizando uma espécie de violência simbólica que converte os Sem-terra em perigosos antagonistas.

Dessa forma, é inegável que o jornalismo de ZH oferece um gran-de marco segundo o qual devemos ler os fatos relacionados à posse da terra e que o seu discurso contribui para reafirmar a matriz representa-cional hegemônica da “questão agrária”. Ele traz consigo ideias precon-cebidas que circulam num sentido comum e que, junto com o ideal de objetividade, lhes confere um status de verdade. Nesse sentido, o dis-curso jornalístico de ZH organiza algumas direções de leitura, fazendo

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circular alguns sentidos e desviando outros. Como se dão essas leituras, junto aos próprios agricultores Sem-terra vinculados ao MST, é o que procuramos verificar no momento seguinte do “Circuito das Notícias”.

Da leitura como ato de produção

Na lógica do “Circuito das Notícias” a leitura não pode ser toma-da como um momento isolado do processo comunicacional, já que ela integra a dinâmica do “Circuito”. Leitura nessa ótica não é simplesmen-te assimilação, mas, conforme Johnson (1999), ela própria é um ato de produção. Nesse momento, buscamos mapear as representações movimentadas pelos Sem-terra na posição de leitores quando a pauta do jornal é o próprio MST8, com a finalidade de relacionar tais leituras à matriz representacional hegemônica que historicamente envolve a “questão agrária” categorizando-as como de oposição, preferenciais e/ou negociadas (HALL, 2003). Ressaltamos de antemão que no mate-rial recolhido encontramos uma série de contradições às quais, pela necessidade de agrupamento para fins de categorização e pelo esforço de síntese para apresentação dos resultados, também podem ter sido minimizadas em nome daquilo tomado como mais relevante.

É importante observar dessa forma que as leituras são também interdiscursivas, pois nenhuma forma subjetiva atua por conta própria e que, devido a essa particularidade, as formas de transformações cul-turais sempre acontecem nesse momento do “Circuito”. A leitura diz respeito, portanto, a uma atividade, um tipo de prática na qual o indiví-duo percebe e trabalha o material simbólico que recebe (THOMPSON, 2005). Se na produção ocorre a fixação do conteúdo simbólico, na lei-tura o processo, mesmo que complementar, é inverso, por isso no “Cir-cuito das Notícias” é importante atentar às práticas sociais de recepção entendidas como espaço de produção de sentido.

8 O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) surgiu no Brasil em meio aos conturba-dos processos sociais do início dos anos 1980, mais especificamente em 1984 com a realização do primeiro “Encontro Nacional dos Sem-terra”. No evento, foi formalizada a criação de uma organização de camponeses Sem-terra, em nível nacional, com o objetivo de lutar pela reforma agrária. Assim, apenas como fator de referência, podemos dizer que o MST nasceu entre os dias 21 e 24 de janeiro de 1984, agregando 80 representantes de 13 Estados brasileiros. No ano seguinte durante o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Sem-terra, realizado em Curitiba/ PR, o Movimento é oficializado. Desse modo fica claro que os leitores-alvo de Zero Hora estritamente não são os integrantes do MST, mas, optamos por pesquisá-los no momento leiutra do “Circuito das Notícias”a fim de observar o percurso das representações também entre o segmento diretamente interessado pelo tema.

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É na leitura então que os textos em circulação adquirem valor social e efetividade simbólica. Nela, segundo Escosteguy (2007), é pos-sível identificar algumas “posições-tipo” de decodificação que são postos hipotéticos a partir das quais as retaduções de um discurso e as repre-sentações que ele movimenta podem ser tomadas. Essas “posições-tipo” são, conforme Hall (2003), classificadas em: “hegemônicas ou dominan-tes”, onde o leitor opera dentro do que foi proposto pelo produtor; “código negociado” no qual o leitor reconhece as definições hegemônicas, mas se permite adaptá-las; e “código de oposição” segundo o qual o leitor se posiciona de modo contrário ao produtor.

Como ferramenta de trabalho nesta fase de análise do “Circui-to das Notícias” utilizamos o grupo focal, uma entrevista coletiva que busca identificar tendências. Indagamos coletivamente dez agricultores vinculados ao MST, os quais foram protagonistas das ações reportadas por ZH entre os dias 12/04/2008 e 21/05/2008. Todos eles são, portanto, leitores interessados e integravam no momento do trabalho o chamado “Acampamento em Luta de São Gabriel/ RS”.

As reuniões com o grupo focal foram realizadas entre os dias 21/05/2008 e 23/05/2008, e os textos das notícias publicadas por ZH no período selecionado foram retomados como substrato para as dis-cussões. Informações complementares relacionadas às rotinas de lei-tura também foram utilizadas na composição de um diário simplificado posteriormente empregado nas análises. O trabalho de campo com o grupo focal envolveu três momentos distintos: o primeiro deles este-ve relacionado ao relato da história de vida dos integrantes do grupo engajados na pesquisa; o segundo no detalhamento da relação com a mídia antes e depois do ingresso no MST; e o terceiro vinculado ao mapeamento e classificação das representações movimentadas pelos Sem-terra no ato da leitura.

Na história de vida dos participantes, a marca registrada é a di-versidade de perfis. No entanto, podemos afirmar que todos passaram por situações limite e experimentaram de algum modo o processo de exclusão social até ingressar nas fileiras do MST. Entrar para o Movi-mento, na maioria dos casos, não foi uma escolha política, antes repre-sentou a chance de um novo começo na vida. “Minha família trabalhava na agricultura e acabou quebrando [...] por conselho dos amigos vim acampar”, conta a Sem-terra 4. “Entrei para a Brigada Militar sonhando

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com dias melhores em plena Ditadura [...] o MST significa tentar garan-tir uma vida melhor para meus filhos”, diz o Sem-terra 7. Já a Sem-terra 9 relata que reorganizou sua vida e seus estudos para ingressar no Movimento: “Estou no acampamento, no MST primeiro pela militância e depois para contribuir na luta pela terra”.

A mídia e/ou o jornalismo são definidos pelos Sem-terra do grupo focal como a principal responsável pela formatação de uma representa-ção errônea do Movimento. Uma representação configurada basicamen-te de “fora para dentro” do MST e muito distinta da autorrepresentação do Movimento construída de “dentro para fora”. A imprensa é vista tanto como “uma ameaça” quanto como “uma ferramenta necessária”, porém o sentido mais forte que parece transpassar as contribuições é o da mí-dia/jornalismo como instrumentos de manipulação.

“O jornalismo não presta para nada. A mídia representa uma grande ameaça, pois ela prefere correr atrás de troféus a mostrar a verdade”, enfatiza o Sem-terra 2. “A mídia é uma ferramenta muito ne-cessária para nós comunicar. Ela não representa o povo, no sentido da verdadeira sociedade que a gente vive, mas a imprensa pode ser uma grande arma de avanço da sociedade”, contrapõe o Sem-terra 5. “A mídia emburrece o povo, ela aliena. Os meios de comunicação, que seriam meios para informar a população brasileira de ambos os lados, não conseguem fazer isso”, sentencia a Sem-terra 9.

Quando tratam especificamente do Grupo RBS e do jornal ZH, os integrantes do grupo focal são taxativos em classificá-los como “instru-mento de manipulação da classe dominante”, reproduzem um bordão, um grito de guerra, já tradicional nas mobilizações do MST “A gente não esquece, abaixo a RBS!” e chegam até a cogitar uma ação específica para atingir quem eles qualificam como os “latifundiários da informação”.

De acordo com a Sem-terra 9, o jornal ZH só reproduz o que os “grandes” do Estado do Rio Grande do Sul desejam. “Eles distorcem os fatos como eles bem querem, sempre para nos mostrar como as piores pessoas desse Estado. Para mim a pior raça que tem é essa empresa”. Para o Sem-terra 5 o que mais revolta em ZH e na RBS é a falta de transparência “[...] a falta de vergonha de um veículo de comunicação tão grandioso como esse”. Porém, segundo ele, quando a sociedade realmente “abrir os olhos e ver quem é a RBS, quem é o Zero Hora, eles vão ficar em maus lençóis”.

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Fica claro, no entanto, quando tratamos da forma de relacionamento com a mídia antes e depois do ingresso no MST que para a maioria dos par-ticipantes do grupo focal houve uma mudança – primeiro de entendimento, depois na própria forma de acessar as informações junto aos órgãos de im-prensa. Na maioria dos casos, eles se moveram da indiferença em relação ao sistema de mídia para uma postura crítica em relação às produções e aos textos midiáticos. Podemos dizer sem exageros que passaram de uma leitura tendencial dominante, para uma leitura negociada com matizes de oposição. É evidente que nesse caso a mediação “Movimento Social” atua fortemente na mudança de postura em relação à mídia regendo a nova for-ma de se relacionar com os produtos informativos midiáticos.

“Do lugar de onde eu vim, da vila, não tinha muito esse contato com a mídia, a não ser com a novela. Antes informação para mim era muito pouco pela realidade que eu vivia mesmo”, esclarece a Sem-terra 3. “Quando eu estava lá fora gostava muito de televisão, de olhar nove-la. Depois, no Movimento comecei a acompanhar mais as notícias, mas ainda é muito pouco”, conta a Sem-terra 6. “No acampamento estou rea-prendendo a viver sem a televisão, a internet e o jornal. Estou aprendendo a escutar rádio, mas é bem complicado porque eu não tinha o hábito do rádio”, relata a Sem-terra 9.

Já as representações movimentadas em torno do MST pelos in-tegrantes do Movimento no momento da leitura parecem muito distintas daquelas acionadas pelos jornalistas ao falar da organização na produ-ção e também daquelas apresentadas nos textos do jornal. O Movimento é visto pelo Sem-terra 2 da seguinte forma: “[...] o MST para mim repre-senta muito porque aqui eu arrumei uma nova vida, uma mudança de vida muito grande”. “O Movimento, além de uma nova chance de viver, também serve para o auto-reconhecimento das pessoas. Eu não tinha nem noção que eu podia voltar a sonhar em ter um futuro diferente, em ter um futuro melhor”, conta a Sem-terra 3. Para a Sem-terra 4, “[...] o MST é uma grande família onde se compreende que a luta é por uma so-ciedade igualitária e mais justa. Onde tu encontras amigos, tu encontras companheiros”. “Para mim o MST foi como uma luz no fundo do túnel”, diz a Sem-terra 6. “A mídia vende aquela imagem que aqui é o inferno, pelo contrário aqui é o paraíso”, rebate o Sem-terra 7.

Assim, a diferença entre o MST representado de dentro para fora (visto pelos Sem-terra) e o MST representado de fora para dentro (pelos

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As representações no “Circuito das Notícias”

jornalistas e nos textos de suas notícias) parece notável ao menos para os Sem-terra. Nesse sentido, os integrantes do grupo focal acabam por movimentar sentidos de oposição em relação à matriz representacional hegemônica ao promoverem uma leitura negociada de tendência resis-tente em relação aos textos veiculados por ZH em suas páginas. Dessa forma, apesar de essa matriz de representação hegemônica também ser formatada pelos discursos da mídia e do jornalismo, ela é composta de “fora para dentro” e, de acordo com os dizeres dos Sem-terra, não dá conta da representação adequada do Movimento.

Das considerações finais

No trabalho importou fundamentalmente observar o movimen-to de representações na produção, no texto, e na leitura – momentos onde, no “Circuito das Notícias”, todos são produtores e consumidores de discursos e onde todos operam com representações. Tais indivíduos elaboram representações para dar sentido à realidade social e os textos, inclusive aqueles produzidos pelo jornal ZH sobre a “questão agrária”, somente vão adquirir sentido mediante uma representação que lhes atri-bua um determinado significado sociocultural e histórico. Isso empresta a abordagem um caráter bastante discursivo, porém, constatamos nesse estudo que, estrategicamente, é o discurso quem indica o melhor cami-nho, a melhor forma de percorrer os meandros do “Circuito das Notícias” em suas diferentes fases.

No entanto, parece claro que esse tipo de análise só é possível, como procuramos apontar, quando as práticas socioculturais como o jornalismo, são tomadas e relacionadas conforme um esquema capaz de conjugar as instâncias de produção, do texto, e da leitura. Exata-mente porque é o somatório delas, junto com seus diferentes elemen-tos constituintes (produtores, textos e receptores), que determina a cir-culação dos valores simbólicos regentes da atividade de significação, configurando e/ou desenhando o processo comunicativo de maneira conveniente e em sua totalidade.

De tal modo, constatamos que trabalhar com as representações no “Circuito das Notícias” exige fôlego e tempo, mas pode apontar para resultados satisfatórios já que permite compreender a dinâmica dos pro-cessos jornalísticos, a interferência de agentes internos e externos no seu

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fazer e o diálogo que se dá entre produção, textos e leituras. Acreditamos que neste olhar global reside a principal contribuição dessa perspectiva.

O “Circuito das Notícias”, nessa estratégia, é vivo, multifacetado e rico em possibilidades, porém, inegavelmente, apresenta fragilidades. Como procuramos analisar os distintos momentos do processo comuni-cativo em integração, temos somados aqui os limitadores encontrados pelos pesquisadores que se dedicam a cada uma delas, mais os obstá-culos que se impõem por considerarmos o todo. No entanto, esse novo ponto de vista implica também em reelaborar velhas formulações e ele-var os estudos do jornalismo, quem sabe, para um novo patamar, dentro do campo da cultura e do universo de produção simbólica, sem nunca esquecer daquilo que realmente lhe dá vida – os seus processos.

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