IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que...

21
1 IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL Euclides Benedito de Oliveira 1[1] 1. FAMILIA COM E SEM CASAMENTO Na formação da família, base da sociedade e merecedora de especial proteção do Estado, não mais se revelam prioritários os laços formais da união conjugal. Com ou sem casamento, pode instituir-se o ente familiar, com garantia de incondicional tutela jurídica. Dispõe nesse sentido a vigente Constituição Federal, art. 226, com referências à família oriunda: a) do casamento civil ou religioso com efeitos civis (inc. I e II), b) da união estável de homem e mulher (inc. III), c) da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (inc. IV). Na mesma linha de indistinta proteção aos componentes da entidade familiar, a Constituição proclama a igualdade de direitos entre marido e mulher (art. 226, inc. V) e a igualdade de direitos e qualificações dos filhos, sejam ou não havidos do casamento (art. 227, § 6 o ). Caíram por terra, em boa hora, as antigas discriminações que nosso vetusto ordenamento civil aplicava às uniões concubinárias e aos filhos havidos fora do casamento. Nesse altiplano de inovações jurídicas, põe-se em mesa de discussão a figura da união estável como espécie de entidade familiar. Trata-se de neologismo introduzido pela 1[1] Advogado de Família e Sucessões, membro da Diretoria do IBDFAM em São Paulo. Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor dos livros Inventários e Partilhas, com Sebastião Amorim, LEUD, SP, 14 a . ed., 2001, Separação e Divórcio, com Sebastião Amorim, LEUD, SP, 6 a . ed., 2001, União Estável, Ed. PALOMA, SP, 5 a ed., 2001; participação em Direito de Família e o novo Código Civil, com Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, coord. de Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, com diversos autores, Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2001.

Transcript of IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que...

Page 1: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

1

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

NA UNIÃO ESTÁVEL

Euclides Benedito de Oliveira1[1]

1. FAMILIA COM E SEM CASAMENTO

Na formação da família, base da sociedade e merecedora de especial proteção do

Estado, não mais se revelam prioritários os laços formais da união conjugal. Com ou sem

casamento, pode instituir-se o ente familiar, com garantia de incondicional tutela jurídica.

Dispõe nesse sentido a vigente Constituição Federal, art. 226, com referências à

família oriunda: a) do casamento civil ou religioso com efeitos civis (inc. I e II), b) da união

estável de homem e mulher (inc. III), c) da comunidade formada por qualquer dos pais e

seus descendentes (inc. IV).

Na mesma linha de indistinta proteção aos componentes da entidade familiar, a

Constituição proclama a igualdade de direitos entre marido e mulher (art. 226, inc. V) e a

igualdade de direitos e qualificações dos filhos, sejam ou não havidos do casamento (art.

227, § 6o).

Caíram por terra, em boa hora, as antigas discriminações que nosso vetusto

ordenamento civil aplicava às uniões concubinárias e aos filhos havidos fora do casamento.

Nesse altiplano de inovações jurídicas, põe-se em mesa de discussão a figura da

união estável como espécie de entidade familiar. Trata-se de neologismo introduzido pela

1[1] Advogado de Família e Sucessões, membro da Diretoria do IBDFAM em São Paulo. Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor dos livros Inventários e Partilhas, com Sebastião Amorim, LEUD, SP, 14a. ed., 2001, Separação e Divórcio, com Sebastião Amorim, LEUD, SP, 6a. ed., 2001, União Estável, Ed. PALOMA, SP, 5a ed., 2001; participação em Direito de Família e o novo Código Civil, com Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, coord. de Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, com diversos autores, Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2001.

Page 2: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

2

Constituição para abranger, na verdade, o mais antigo fenômeno social, que é o da união

concubinária sem formalidade escrita ou compromisso oficial. Basta a convivência de um

homem e uma mulher com propósito de instituir uma comunhão de vida, sendo que a

existência de prole em comum é sinal indicativo dessa união, embora não lhe seja essencial.

Resta ver se o ordenamento jurídico, embora não intervindo diretamente na

formação da união estável, estabelece para seu reconhecimento os mesmos requisitos

prévios que valem para constituição da união formal pelo casamento.

2. UNIÃO ESTÁVEL NÃO É CASAMENTO

Para logo se estabeleça necessária e básica premissa: união estável, conquanto

entidade familiar protegida pelo Estado, não se equipara ao casamento. Constitui união

informal, a prescindir de preparativos cartorários ou judiciais. Sua regulamentação jurídica

cinge-se aos requisitos para reconhecimento de sua existência e aos efeitos que advêm

desse tipo de relacionamento humano.

Com efeito, revelam-se patentes as diferenças entre união estável e casamento,

bastando se comparem os seus modos de formação e de dissolução.

Para a realização do casamento exigem-se: a) os requisitos formais da habilitação

no Cartório de Registro Civil para verificar se não há impedimentos, b) a solenidade do

casamento, com celebração pelo juiz (ou por ministro religioso), com expressa e pública

aceitação dos contraentes, c) a comprovação por documento público consistente no registro

do casamento, d) procedimento judicial para dissolução por invalidade, separação judicial

ou divórcio.

De seu turno, a união estável nasce do simples fato da convivência entre homem e

mulher, com intuito de constituir família. De início, um simples fato jurídico, que evolui

para constituição de ato jurídico em face dos direitos que brotam dessa relação. Não há

formalidade prévia nem qualquer ato solene que marque o princípio dessa união. Tampouco

subsiste instrumento probatório, oriundo de órgão estatal, podendo haver, quando muito e a

Page 3: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

3

critério das partes, documento escrito a respeito da comunicação do patrimônio individual

subseqüente ao tempo de vida em comum. E o término, tal como se deu com a formação

inicial da união estável, também se dá por simples acerto ou vontade de cada um dos

companheiros, sem que preciso reclamar providência jurisdicional, muito embora não se

afaste o direito à ação para dirimir eventual conflito.

Por isso é que a união estável é por alguns chamada de "família de fato", em

contraponto ao casamento, que seria, na linguagem antiga, a única espécie de "família de

direito" ou "legítima". Mas a distinção por origem do ente familiar já não se admite, ante a

ampliação conceptual advinda com a atual Constituição. A união estável, em paralelo ao

casamento, constitui família igualmente legítima. Ou, dispensando adjetivo qualificador,

simplesmente família, porque ao abrigo dos direitos assegurados na mesma Carta e nas leis

especiais regentes dessa forma de união.

Proteção jurídica garantida sim, entidade familiar de igual natureza, também, eis aí

os paralelos admitidos entre casamento e união estável. Mas tanto se distanciam, como

figuras jurídicas inconfundíveis, que já na previsão constitucional repousam, o casamento e

a união estável, em incisos próprios, numerados de I a III no citado art. 226 da Carta de 88.

E mais, ao reconhecer a entidade familiar formada pela união estável, resguardando-lhe

proteção jurídica, o mesmo preceito constitucional adianta-se a dizer que a lei venha

facilitar a sua conversão em casamento. Com isso deixa claro que, embora entidade

familiar, a união estável difere do casamento, tanto que poderá vir a converter-se nele.

Sabido que existem duas formas distintas de entidade familiar, uma originária do

casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a

intrigante e tormentosa questão, ora trazida à baila, da eventual subsistência, para os dois

institutos, dos mesmos requisitos de constituição válida, aí presentes, portanto, os

impedimentos matrimoniais de que trata a legislação civil no capítulo do casamento.

3. PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

Page 4: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

4

De retorno ao texto constitucional (art. 226, inc. III), note-se que a conceituação de

união estável está assim delimitada para que se reconheça como entidade familiar: a) união,

isto é, vida em comum entre homem e mulher, b) estabilidade, a significar união duradoura,

com certa permanência no tempo, c) interesse das partes em constituir família.

O requisito inicial diz com a qualificação das partes - homem e mulher, de logo

afastando a caracterização de união estável entre parceiros do mesmo sexo. Uniões desta

espécie, chamadas de parceria homossexual ou união homoafetiva, colocam-se à parte da

conceituação constitucional de união estável, muito embora se lhes reconheçam

determinados efeitos no plano material, especialmente na divisão do patrimônio havido por

esforço comum e na esfera dos benefícios previdenciários.2[2]

A estabilidade da união decorre de seu próprio nomen juris. Diz com certa duração

temporal, que a princípio se fixou em 5 anos (Lei 8.971/94), mas hoje se admite

indeterminada, ficando ao critério do juiz sua apreciação em cada caso, atendidos os

critérios da Lei 9.278/96.

Outro elemento caracterizador da união estável relaciona-se a aspecto subjetivo,

consistente na intenção de formar uma família, com estabelecimento de uma comunhão de

vida como se as partes fossem casadas. Decorre da própria colocação da união estável

como espécie de entidade familiar, de sorte a excluir de sua incidência outros tipos de união

com propósitos diversos.

2[2] Registre-se, não obstante a falta de previsão constitucional, a existência do Projeto de Lei n. 1.551, de 1995, autoria da deputada Marta Suplicy, disciplinando a união de pessoas do mesmo sexo, mediante contrato, seu registro no Cartório de Registro Civil, benefícios previdenciários e direito à sucessão entre os contratantes.

O assunto promete evoluir no sentido de maior proteção aos relacionamentos homoafetivos pelo direito brasileiro, visando seu enquadramento no conceito de entidade familiar. Nessa linha se posiciona a Desembargadora MARIA BERENICE DIAS, fundada em precedentes jurisprudenciais, especialmente de juizes e tribunais gaúchos, questionando a disposição limitativa do artigo 226, par. 3o, da Constituição Federal, no ponto em que exige presença de homem e mulher para caracterizar união estável. A autora justifica, “com a efetiva semelhança entre relacionamentos heterossexuais e homossexuais, a aplicação a estes, por analogia, das normas de união estável e do casamento.” Para tanto, invoca princípios constitucionais de respeito à dignidade humana, de igualdade e de expressa proibição da discriminação por motivo de sexo, a demonstrar que “não existe qualquer óbice na Constituição ao ingresso de tais vínculos na esfera jurídica” (União homossexual. O preconceito, a Justiça. Livraria do Advogado, Porto Alegre: 2000, abertura e conclusões, pág. 145).

Page 5: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

5

Ainda por leitura do preceito constitucional, tem-se que a lei haverá de facilitar a

conversão da união estável em casamento. Não se trata, aí, de preceito cogente ou

integrador da própria definição da união estável, no sentido de que somente existiria como

tal se apta à conversão em casamento. Fosse assim, e teríamos, como natural conseqüência

que a união estável restaria desfigurada na hipótese de haver impedimentos matrimoniais. E

não se compreenderia, porque seria flagrantemente inconstitucional, o dispositivo da Lei

8.971/94 que admite união estável de pessoas separadas judicialmente, as quais se acham

impedidas para novo casamento enquanto não extinto o anterior, por invalidade, por

divórcio ou morte (art. 183, VI, do CC).

Mas assim não é. Na verdade, cuida-se de mera possibilidade, a conversão da união

estável em casamento, por opção das partes, quando interessadas em sacramentar sua união

com o aparato das núpcias pelo modelo oficial. Então, e se não houver impedimentos, será

facilitado o casamento por conversão da união estável preexistente. Direito subjetivo dos

conviventes, portanto, o dar esse passo a mais, optando por casar-se, desde que não estejam

impedidos. Sem significar que o impedimento para conversão signifique a desfiguração da

união estável mantida em seus regulares contornos jurídicos.

A certas pessoas que vivem em união estável pode não interessar essa migração para

o casamento. Mesmo sem impedimentos matrimoniais, ou porque ainda mantêm o vínculo

conjugal apesar de separadas judicialmente, essas pessoas sentem-se mais livres com o

aparente descompromisso da união estável. Por esse rumo de pensamento, há também os

que se descasam, divorciam-se, mas voltam à convivência, os mesmos parceiros, passando

a constituir, então, família agora sob o pálio de uma união estável. Com isso fica ressaltado

que subsiste, intocada e intangível, a figura jurídica de união estável, quando preferida

pelos companheiros que não se interessam por casamento ou quando não seja possível sua

conversão em casamento por existência de determinados impedimentos matrimoniais, ou

quanto desistam do casamento e optem por manter uma convivência informal.

O que se está afirmando, com esta exposição à luz da norma constitucional, é que, a

priori, não se aplicam à união estável, necessária e genericamente, todos os impedimentos

previstos em lei para o casamento. Tais impedimentos haverão de ser considerados somente

Page 6: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

6

para fins de habilitação da conversão da união estável em casamento, se e quando requerida

pelas partes.

Mas não se exaure, pelo só estudo do texto da Constituição, a difícil questão que se

coloca, dos impedimentos matrimoniais frente à união estável. Há que examinar, de modo

mais circunstanciado, quanto dispõe a legislação especial aplicável à matéria e, bem assim,

os requisitos informadores do ato jurídico pela ótica do ordenamento civil codificado.

O tema suscita sérias controvérsias, em face da imprecisão do texto legal e porque a

muitos parece que a proteção jurídica a todas as espécies de entidade familiar estaria

condicionada ao requisito uno da inexistência de impedimentos, seja para o matrimônio,

seja para a união estável, enquanto a outros se afiguram distintas essas situações de união

familiar, com a necessidade de tratamentos diferenciados no plano dos requisitos para sua

formação.3[3]

Podem ser alinhadas, dentro dessa diversidade de pensamentos na solução do

problema, três posições doutrinárias entre si divergentes: a) radical conservadora - a união

estável exige ausência de impedimentos matrimoniais para que se constitua, mesmo porque,

não fosse assim, não poderia converter-se em casamento, b) radical liberal - a união estável

forma-se independente de impedimentos matrimoniais, pois constitui família de fato a ser

protegida em qualquer situação, mesmo nos casos de união adulterina ou incestuosa, e c)

conciliadora ou mista - a união estável sofre os impedimentos matrimoniais absolutos,

salvo nos casos de separação judicial ou de separação de fato das partes.

Predominante se mostra a corrente intermediária, tanto em doutrina quanto na

jurisprudência, fazendo a necessária distinção entre casamento e união estável, para que a

esta se apliquem unicamente os impedimentos matrimoniais absolutos, decorrentes de 3[3] Em aprofundada análise do tema, GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA assinala que alguns questionamentos se impõem: a) o art.226, § 3º, da Constituição Federal somente permite “união estável” entre pessoas solteiras, divorciadas e/ou viúvas?; b) diante da regra constitucional é possível que um ou ambos os companheiros sofram algum impedimento matrimonial previsto no art. 183, do Código Civil e, mesmo assim a união mantida pode ser considerada familiar, na modalidade de companheirismo?; c) a situação das pessoas casadas e separadas de fato de seus cônjuges, vindo a se unir informalmente com outras, poderá constituir “união estável”?; d) haverá alguma outra hipótese não juridicamente definida como impedimento matrimonial a ensejar a impossibilidade de constituição do companheirismo? (O companheirismo- uma espécie de família, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001, 2ª edição, pág. 180).

Page 7: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

7

parentesco (incesto) ou de anterior casamento (bigamia), com as exceções decorrentes de

separação de fato ou judicial de um ou de ambos os conviventes.

4. REQUISITOS LEGAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

Na esteira da previsão constitucional da união estável como entidade familiar foram

editadas duas leis especiais para sua regulamentação: a Lei n. 8.971, de 30 de dezembro de

1994, e a Lei 9.278, de 13 de maio de 1996, com parcial revogação da primeira.4[4]

Conquanto chamada de "estatuto da união estável", a Lei 9.278/96, assim como a

anterior, não abarca todos os efeitos jurídicos que lhe são decorrentes. São assegurados, em

leis esparsas, diversos outros direitos a companheiros. Assim é que as leis previdenciárias e

fiscais asseguram ao companheiro situação de dependente; a lei de locação (8.245/91, arts.

11 e 12) permite sub-rogação do contrato para os dependentes do locatário, aí também

posicionando o companheiro; a lei registrária (6.015/73, art. 57, § 2o) concede à mulher

direito de acréscimo ao seu nome do patronímico do companheiro; a lei do bem de família

(8.009/90) estende proteção ao imóvel que sirva de residência a entidade familiar, aí

compreendida a união estável; e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, art.

42, p. 2o), permite adoção por "concubinos", desde que comprovada a estabilidade da união.

Na legislação extravagante, porém, não se encontram referências aos requisitos

legais para formação da união estável. A aplicação de seus preceitos ficam, portanto, na

dependência da definição constante das leis específicas, como sejam as citadas Leis

8.971/94 e 9.278/96.

A Lei n. 8.971/94, no art. 1°, ao contemplar o direito a alimentos na união estável,

exige união comprovada de homem e mulher solteiros, separados judicialmente,

divorciados ou viúvos, por mais de 5 anos (salvo havendo prole).

4[4] Como a Lei 8.971/94 não sofreu revogação expressa, entende-se que continua em vigor naquilo em que não foi contrariada pela Lei 9.278/96. Enquadra-se nessa situação o art. 2o daquela Lei, que dispõe sobre direitos sucessórios do companheiro, pois, nesse aspecto, a nova Lei apenas acrescentou o direito de habitação. Já o conceito de união estável sofreu substancial mudança. Os requisitos pessoais e temporais (5 anos) previstos na lei de 1994 não mais subsistem na lei de 1996, dada a nova conceituação daquela espécie de entidade familiar.

Page 8: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

8

Os requisitos expressos nessa lei dizem respeito a dois aspectos: qualificação

pessoal dos companheiros e fator temporal, suavizado, este, no caso de existir prole.

A referência ao estado civil das partes para que se caracterize união estável leva em

conta a ausência de impedimento matrimonial decorrente do casamento (art. 183, inc. VI,

do CC), exceto para os separados judicialmente. Subsiste clara vedação à união adulterina,

mesmo que houvesse separação de fato da pessoa casada.

Mas a Lei n. 8.971/94 não refere outros impedimentos matrimoniais, deixando em

aberto a questão de serem ou não aplicáveis à união estável.

Nada se aclarou, a esse respeito, na Lei n. 9.278/96, que deu nova conceituação à

entidade familiar formada pela união estável, deixando de mencionar requisitos de natureza

pessoal, tempo mínimo de convivência e a circunstância de existir prole dessa união.

Conforme está em seu art. 1º, considera-se entidade familiar “a convivência duradoura,

pública e contínua, de um homem e de uma mulher, estabelecida com objetivo de

constituição de família”.

A nova definição legal, portanto, delimita a existência de união estável aos

requisitos de: a) convivência duradoura, sem prazo fixo, devendo aferir-se a permanência

no tempo de acordo com as peculiaridades de cada caso, b) heterossexualidade, no referir a

convivência entre um homem e uma mulher, c) publicidade, a significar reconhecimento

familiar e social da união more uxorio, d) continuidade, isto é, vida em comum sem

interrupções, e) intenção de constituir família, elemento de ordem subjetiva que afasta

outros tipos de união sem interesse na efetiva comunhão de vida entre o homem e a mulher.

Em adendo a essa tipificação da figura da união estável, a Lei n. 9.278/96, em seu

art. 2o, enumera os direitos e deveres recíprocos dos conviventes: a) respeito e

consideração, significando fidelidade e lealdade, b) assistência mútua, do que decorre a

obrigação alimentar entre conviventes, c) guarda, sustento e educação dos filhos, como

consectário do pátrio-poder.

Nenhuma referência é feita à ausência de impedimentos matrimoniais como

requisito para reconhecimento da união estável. A única inferência que se poderia extrair a

esse respeito decorre da necessidade de habilitação legal das partes para fins de conversão

Page 9: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

9

da união estável em casamento, de que trata o artigo 8o da Lei 9.278/96. Então, e para esse

fim, haveriam de estar desimpedidas matrimonialmente as partes casadoiras.

5. IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NO CÓDIGO CIVIL

Consideram-se impedimentos matrimoniais certas condições pessoais ou

circunstâncias objetivas que vedam a realização do casamento. São verificadas mediante o

processo prévio de habilitação (art. 180 do Código Civil).

Não se confundem, os impedimentos pessoais para o ato de casar, com a

incapacidade para a prática de atos jurídicos. A pessoa pode ser plenamente capaz, como no

caso dos maiores de 21 anos, e estar impedida de contrair casamento, como se dá, por

exemplo, nas uniões entre parentes próximos, em vista de seu caráter incestuoso.

Embora certas hipóteses de impedimentos resultem da própria incapacidade, a

conceituação da natureza jurídica dos impedimentos está mais relacionada à falta de

legitimação para o ato jurídico do casamento.

A matéria é cuidada no artigo 183 do Código Civil brasileiro. Estende-se em

dezesseis incisos, que a doutrina divide em três categorias por seus diversos efeitos na

hipótese de violação dos impedimentos.

A primeiro categoria abrange oito espécies de impedimentos absolutos, porque de

maior relevância em razão de seu interesse público. Sua inobservância acarreta a nulidade

do casamento. Estão aí previstas, nos incisos I a VIII do artigo 183 do Código Civil, as

situações de parentes na linha reta, parentes colaterais irmãos e de 3o grau (ressalvada, para

estes, autorização judicial), afins em linha reta, adotado com parentes do adotante, pessoas

casadas, o cônjuge adúltero com o seu co-réu por tal condenado, e o cônjuge sobrevivente

com o condenado como delinqüente de homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu

consorte.

Page 10: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

10

Na segunda categoria de impedimentos acham-se os incisos IX a XII do citado

artigo, relatando situações menos graves, atinentes à incapacidade parcial das pessoas por

vícios de consentimento, falta de autorização dos responsáveis legais e menoridade dos

contraentes (fixada, a idade núbil, em 16 anos para a mulher e em 18 anos para o homem).

A violação a esses impedimentos, considerados relativos por restritos ao interesse privado

das partes, acarreta mera anulabilidade do casamento, desde que requerida pelos

interessados em prazos decadenciais variáveis, com o máximo de seis meses.

Por último, o artigo 183 do Código Civil refere certas circunstâncias que são

meramente proibitórias ou impedientes mas não invalidam o casamento celebrado com sua

inobservância. São os incisos XIII a XVI daquele dispositivo, abrangendo os casos de

viúvo ou viúva enquanto não fizerem inventário dos bens do extinto casal, a viúva ou

mulher com casamento anulado nos dez meses subseqüentes à extinção do seu casamento, o

tutor ou o curador e seus parentes com a pessoa tutelada ou curatelada, e o juiz ou o

escrivão e seus parentes com órfão ou viúva do lugar (salvo autorização superior). Os

casamentos celebrados com esses impedimentos não são afetados na sua essência, mas

sofrem certas penalidades civis como a obrigatória submissão ao regime da separação de

bens.

O novo Código Civil brasileiro altera substancialmente o catálogo distintivo dos

impedimentos matrimoniais, passando a considerar como tais apenas os impedimentos

absolutos previstos no artigo 183 do Código vigente, incisos I a VI e VIII. Não mais

considera como impedimento a hipótese prevista no inciso VII desse artigo, que se refere

ao casamento do cônjuge adúltero com o seu co-réu por tal condenado.

As demais situações passam a ter diverso tratamento no novo Código. Assim, os

casos hoje considerados como de impedimentos relativos são tratados à parte, como causas

de anulação do casamento. E os demais impedimentos, de caráter meramente proibitório,

passam a ser chamados de causas suspensivas do casamento, com possibilidade de sua

dispensa por decisão judicial.

Page 11: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

11

6. IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS EM FACE DA UNIÃO ESTÁV EL

Conforme já analisado nos tópicos anteriores, não há explícita previsão

constitucional ou legal para que se apliquem à união estável os mesmos impedimentos que

servem ao casamento.

A ausência de impedimentos somente se torna requisito essencial na conversão da

união estável em casamento, ou seja, para a facultativa mudança da situação jurídica das

partes com relação ao seu modelo de convivência. Não se pode, por raciocínio extensivo,

pretender que, sendo vedada essa conversão pela existência de impedimentos, não haveria

união estável. Basta considerar a situação dos separados judicialmente que, não obstante

impedidos de contrair casamento, estão aptos a manter união estável, por expressa

permissão da Lei n. 8.971/94.

Cumpre observar, no entanto, que os requisitos pessoais constantes da Lei n.

8.971/94, ao indicar que os companheiros sejam homem e mulher solteiros, separados

judicialmente, divorciados ou viúvos, impede o reconhecimento de união estável de pessoas

casadas e ainda não separadas judicialmente, mesmo que separadas de fato.

Está aí, portanto, um impedimento matrimonial aplicável à união estável, símile ao

disposto no artigo 183, inciso VI, do Código Civil, com a exceção posta para a pessoa

separada judicialmente.

Na Lei n. 9.278/96, porém, não se repetiu essa disposição relativa à qualificação

pessoal dos companheiros. Sua conceituação de entidade familiar apenas refere a união

duradoura entre "um homem e uma mulher", com os requisitos de que seja pública,

contínua e com intuito de formar uma família.

A falta de menção à pessoa separada judicialmente não significa, sob pena de se

admitir retrocesso legislativo, que referido estado civil constitua impedimento para uma

união estável. A realidade social é bem outra. Bem se conhece a numerosa situação de

pessoas que se separam, ou são antigas desquitadas, e não se preocupam em obter o

divórcio, mesmo porque não pretendem um novo casamento. Sentem-se livres para uma

Page 12: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

12

outra união que, estabilizando-se no tempo e confortada pelo reconhecimento público,

constitui induvidosa entidade familiar digna de proteção jurídica aos seus componentes.

O que se há de extrair dessa nova disposição legal, portanto, é que efetivamente não

subsiste, para configuração da união estável, o impedimento relativo à participação de

pessoa casada, quando separada judicialmente, ou, também, quando separada de fato do seu

cônjuge.

Justifica-se a extensão da união estável para o separado de fato. Esta situação de

ruptura da vida conjugal, prolongada por mais de um ano, constitui motivo para separação

judicial sem causa, e, se durar mais de dois anos, fundamento para o divórcio (artigos 5o, §

1o, e 40, da Lei n. 6.515/77). Pela mesma razão, visto que dissolúvel a sociedade conjugal

nessas situações, parece claro que já não se pode falar em impedimento ao separado de fato

para se direcionar à constituição de família sob a forma de união estável.

A comentada omissão da Lei n. 9.278/96 aos requisitos de ordem pessoal,

afastando-se do modelo adotado na Lei n. 8.971/96, no entanto, trouxe dúvida hermenêutica

que levou certos intérpretes a considerar tivesse havido um endurecimento do legislador,

afastando a configuração de união estável em qualquer hipótese de impedimento

matrimonial, mesmo na hipótese de separação judicial de um ou de ambos os conviventes.

Mas certamente esse não foi o intuito da modificação legislativa. Ao contrário, desde que a

nova lei afasta a exigência da qualificação pessoal dos conviventes, deixa aberta a

possibilidade de configuração da união estável para outras situações em que já não subsista

efetivo casamento, ou seja, não só na ocorrência de separação judicial como também no

caso de separação de fato da pessoa que passa a manter união com outrem.

O que não se admite, contudo, em vista dos contornos exigidos na lei para

configuração da uma união estável, é a ligação adulterina de pessoa casada,

simultaneamente ao casamento, sem estar separada de fato do seu cônjuge. Tem primazia,

em tal situação, a família constituída pelo casamento. A outra união seria de caráter

concubinário, à margem da proteção legal mais ampla que se concede à união estável. A

verdade é que, afora hipóteses excepcionais, em tais casos geralmente a vivência

extramatrimonial é mantida com reservas, sob certo sigilo ou clandestinidade. Falta-lhe,

Page 13: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

13

pois, o indispensável reconhecimento social, até mesmo pelas discriminações que cercam

esse tipo de amasiamento.

O mesmo se diga das uniões desleais, isto é, de pessoa que viva em união estável e

mantenha uma outra ligação ou, quem sabe, até múltiplas relações de cunho afetivo.

Admitir caráter familiar a todas essas uniões seria consagrar uma verdadeira poligamia.

Tanto que preservada a primeira união, as demais não podem subsistir, porque desleais. Ou,

conforme o caso, poderá ocorrer que a segunda união derrube a primeira, por quebra ao

dever de “respeito e consideração mútuos” (art. 2º, inc. I, da Lei n. 9.278/96). Extinta que

seja a união estável por esse motivo, poderá ser a subseqüente reconhecida desde que venha

a se manter com os requisitos legais da duração, publicidade e continuidade.

Do que ficou exposto, conclui-se que não é possível a simultaneidade de casamento

e união estável, ou de mais de uma união estável. Uniões múltiplas podem ocorrer

sucessivamente, mas não a um só tempo. O texto legal expressamente restringe o

reconhecimento da entidade familiar à união de “um homem e uma mulher”, com emprego

de artigo definido singular que gramaticalmente veda a acumulação simultânea de uniões

familiares. Poderá não ter sido proposital essa especificação do artigo, e até seria

dispensável, mas, sem dúvida, reforça a interpretação de que a lei somente protege as

uniões sinceras e leais, próprias do sistema monogâmico. E assim há de ser, com efeito,

ante a ilicitude da bigamia, para a hipótese dos casados.

Ressalva-se, contudo, a possibilidade de uma segunda união de natureza putativa,

como se dá no casamento, mesmo em casos de nulidade ou de anulação, quando haja boa-fé

por parte de um ou de ambos os cônjuges, com reconhecimento de direitos, nos termos do

art. 221 do Código Civil. Da mesma forma, e por igual razão, pode haver união estável

putativa, quando o partícipe de segunda união não saiba da existência de impedimento

decorrente da anterior e simultânea união do seu companheiro; para o companheiro de boa-

fé subsistirão os direitos da união que lhe parecia estável, desde que duradoura, contínua,

pública e com propósito de constituição de família, enquanto não reconhecida ou declarada

a sua invalidade em face de uma união mais antiga e que ainda permaneça.

Em suma, não se admite, á luz das normas contidas na Lei n. 9.278/96, a chamada

união adulterina, característica do concubinato de pessoa casada. Nem união desleal, que se

Page 14: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

14

some a outra união de fato. Importa lembrar, neste passo, que o projeto original da lei

previa, como requisitos da convivência, que não fosse adulterina nem incestuosa. Essas

expressões foram afastadas do texto aprovado, o que não implica aceitação de uniões

daquela espécie, desde que se atente para os deveres dos companheiros, com destaque para

o “respeito e consideração” mútuos, ou seja, lealdade, fidelidade entre os parceiros.

Tampouco se admite, nessa mesma linha conceitual, a união de caráter incestuoso,

que seja mantida entre parentes próximos. Basta frisar que, além proibição legal do

casamento de tais pessoas, o relacionamento dessa espécie atenta contra o próprio Direito

Natural, princípios de moral pública e também interesses de ordem sanitária, que afetam os

descendentes e, por via reflexa, os interesses sanitários de toda a comunidade.

Em colação, o abalizado parecer de GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA

GAMA, no sentido de que "as uniões adulterinas ou incestuosas, não apenas sob o ponto de

vista matrimonial, mas agora também sob a ótica da presença do companheirismo no

Direito de Família, não merecem ser tratadas como espécies de família, justamente por

contrariarem valores morais, adotados pela sociedade, reconhecidos juridicamente, neste

caso específico sob a forma de impedimentos matrimoniais que também merecem pronta

aplicação ao companheirismo. Assim, as hipóteses de “concubinato adulterino”, e

“concubinato desleal”, nas expressões da Álvaro Villaça Azevedo, justamente por

carecerem da característica de unicidade de vínculo, não estão abrangidas pelo

companheirismo, podendo eventualmente se caracterizar como sociedades de fato para

efeito de partilhamento de bens, desde que atendidos os requisitos necessários."

O eminente autor vai além, estendendo à união estável os demais impedimentos

previstos em lei para o casamento, com a observação de que os de natureza relativa ensejam

anulação da união estável e os meramente proibitórios lhe acarretam sanções patrimoniais

para que se mantenha a separação dos bens dos companheiros. Ainda, acrescenta

NOGUEIRA DA GAMA um impedimento adicional a que denomina de "companheiril",

relativo à deslealdade que obsta ao reconhecimento de uma segunda união da mesma

espécie.5[5]

5[5] op. cit, págs. 163, 180, 188 e ss..

Page 15: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

15

De FRANCISCO JOSÉ CAHALI a opinião parelha com relação ao que entende ser

tranqüila doutrina e jurisprudência “no sentido de negar a proteção e efeitos enquanto

entidade familiar às relações adulterinas e incestuosas ( consideradas para alguns como

concubinato impuro6[6]), prestigiando os aspectos morais solidificados na sociedade".

Quanto às relações incestuosas, o autor lembra que "também, se não principalmente, a

família, enquanto alicerce de uma civilização evoluída, repousa seus princípios em valores

morais, indicados pela sociedade, que desde antes (na prevalência do direito canônico),

como ainda hoje, repudiam as relações de degradação, decorrente de uma nefasta

promiscuidade no seio familiar. Tendo como modelo o casamento, evoluindo à qualidade

de entidade familiar, é natural a preservação também para o instituto da união estável, dos

valores morais que informam a família decorrente do matrimonio civil".7[7]

Bem é de ver que o Direito não protege o concubinato adulterino. Assim diz

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA: "A amante, amásia ou qualquer nomeação que se dê à

pessoa que, paralelamente ao vínculo do casamento, mantém uma relação, uma segunda ou

terceira..., ela será sempre a outra, ou o outro, que não tem lugar em uma sociedade

monogâmica". Ressalva a situação em que "uma das partes concubinárias mantém o

casamento, mas apenas em sua formalidade, ou seja, quando há uma separação de fato, há

muito tempo. Embora exista uma certa polêmica entre autores, a situação é bem diferente

da anterior. Aqui, na realidade, não existe mais o casamento, apenas uma aparência e um

vínculo formal que não se sustenta em sua essência".8[8]

6[6] Cf. MARIA HELENA DINIZ, Curso de direito civil, cit., p. 226; CARLOS ALBERTO BITTAR, Curso de direito civil, cit., p. 1131; JARBAS CASTELO BRANCO, Ajuris, 62:221. 7[7] União estável e alimentos entre companheiros, São Paulo: Saraiva, 1996, pág. 60. Observa Cahali, porém, que o impedimento da adulterinidade cede passo no caso de união estável sendo um ou ambos os companheiros quando estejam separados de fato: "Efetivamente, a separação de fato põe termo ao regime de bens e aos deveres do casamento, dentre eles coabitação e fidelidade. Em assim sendo, tornam-se os cônjuges separados de fato desimpedidos para constituírem nova família da união estável".(pág. 80).

Essa interpretação constitui uma exceção ao sistema jurídico, pois, acrescenta Cahali, "tecnicamente, de um lado, a lei só contempla o encerramento dos deveres conjugais com a dissolução da sociedade conjugal, embora antecipe este efeito à separação de corpos judicialmente autorizada ou determinada, e, de outro, a união estável, nestas condições, embora caracterizada, não poderá ser convertida em casamento, não obstante tenha a Constituição recomendado à lei a facilitação da conversão".(pág. 81). 8[8] Concubinato e união estável, Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1997, 4ª edição, págs. 74 e 75.

Page 16: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

16

7. IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NO PROJETO DE NOVA LEI DA

UNIÃO ESTÁVEL E NO PROJETO DE CÓDIGO CIVIL

A inexistência de impedimentos matrimoniais para reconhecimento da união estável

consta de textos projetados para sua nova regulamentação. São ressalvadas, no entanto, as

situações de separação judicial das partes e de separação de fato dos companheiros, cuja

união estável se configura mesmo que subsistentes aqueles impedimentos típicos do

casamento.

Dispõe dessa forma o projeto de lei n. 2.686, de 1996. O conceito de união estável,

constante de seu art. 1o, menciona o requisito pessoal de que o homem e a mulher não

estejam impedidos de realizar matrimônio, salvo se separados de direito ou de fato dos

respectivos cônjuges.

Esse projeto resultou vencido pela inclusão da união estável no corpo do novo

Código Civil. O texto final aprovado pelo Congresso cuida da matéria nos arts. 1.723 a

1.727, determinando que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos

do art. 1.521.9[9]

Cumpre observar, porém, que o novo Código só contempla impedimentos

matrimoniais absolutos, ou seja, os decorrentes de parentesco próximo, adoção, afinidade

na linha reta e prática de homicídio ou tentativa de homicídio contra um dos cônjuges.

É desses fatos que cuida o citado art. 1.521, de modo que se colocam fora do quadro

de impedimentos as demais situações relativas a falta de consentimento e os impedimentos

meramente proibitórios previstos no Código Civil em vigor (art. 183). Sobre estes últimos,

mostra-se ambígua a redação do novo Código, no seu art. 1.723, § 2o, pois afirma que "as

causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável, na forma

do seu parágrafo único". Este parágrafo cuida da autorização judicial para celebração do

casamento quando se demonstrar que não há prejuízo para os interessados, ou que não

existe a gravidez da viúva casadoira, nos dez meses seguintes à dissolução de seu

9[9] Note-se que a numeração é provisória, podendo sofrer modificações nesta fase de implantação legislativa do novo Código Civil.

Page 17: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

17

casamento. A contradição está em que o § 1o do art. 1.723 limita os impedimentos aos

casos do art. 1.521, enquanto o § 2o parece estender a impossibilidade de casamento às

hipóteses de "causas suspensivas" do art. 1.523, embora ressalvando que essas causas sejam

superadas se houver autorização judicial para formalização da união estável ...

Demais disso, mostra-se por demais rigorosa essa exigência quando se sabe que,

para a hipótese de casamento com infração de tais "causas suspensivas", que são os

mesmos impedimentos meramente proibitórios do art. 183, incs. XIII a XVI do atual

Código, não se comina a invalidade do casamento mas somente determinadas sanções

como o regime obrigatório da separação de bens.

De retorno aos impedimentos absolutos, que obstam à configuração da união

estável, veja-se que sofrem duas exceções, relacionadas aos casos de separação de fato de

pessoas casadas (art. 1.723, § 1o, segunda parte) e de separação judicial (art. 1.723, § 3o),

fazendo eco, portanto, ao predominante entendimento exegético das leis vigentes, na

doutrina pátria e bem assim na jurisprudência de nossos tribunais, dando maior abertura ao

reconhecimento da união estável dos descasados apenas separados de fato ou judicialmente,

ainda não divorciados.

8. UNIÃO ESTÁVEL NÃO ACARRETA IMPEDIMENTOS

MATRIMONIAIS

Sob ângulo inverso no exame de impedimentos matrimoniais, cabe afirmar que o

casamento não está adstrito a impedimentos decorrentes de união estável. Não haverá

adultério (art. 240 do Código Penal), nessa situação de pessoa que, em união estável, venha

a contrair casamento com outrem. Muito menos se configura crime de bigamia, que se

restringe ao casamento de pessoas casadas (art. 235 do Código Penal).

O casamento celebrado em tais circunstâncias sobrepõe-se à união informal pré-

estabelecida, causando natural prejuízo à subsistência dessa união pela quebra ao dever de

lealdade entre os companheiros. Mas se o casamento for mantido em sigilo, subsistindo

Page 18: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

18

convivência com o companheiro de boa-fé, para este poderão ser ainda aplicados os efeitos

da união estável considerada putativa, à semelhança do que se dá no casamento por força

do que dispõe o art. 221 do Código Civil.

Ainda nessa situação de companheiro que mantenha união estável e venha a se casar

com terceiro, pode imaginar-se que este, desconhecendo a situação ao casar-se, possa pedir

anulação do ato invocando erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge, presentes os

requisitos do art. 219 do Código Civil.

Questão a ser ressaltada, quanto aos efeitos da união estável, diz com a afinidade

que poderia ser invocada entre um dos companheiros e parentes em linha reta do outro,

como se fossem genro (ou nora) e sogra (ou sogro), gerando o impedimento matrimonial

dessas pessoas, nos termos do art. 183, inc. II, do Código Civil. Mas não parece que devam

ser considerados afins tais personagens, visto que a afinidade somente se constitui entre um

cônjuge e parentes do outro (art. 334 do Código Civil). Seu pressuposto, portanto, é o

casamento, com o qual não se confunde a união estável. Demais disso, quanto o

dispositivo em apreço, ao mencionar que a afinidade pode ser decorrente de vínculo

"legítimo ou ilegítimo", refere-se à origem do parentesco gerador da afinidade de um dos

cônjuges, ou seja, se ele é filho de pais casados ou sem casamento, fato irrelevante para que

seus pais se considerem afins do outro cônjuge. O vínculo "ilegítimo", aí, não pode ser

confundido com o tipo de união entre os próprios companheiros.

Não há negar, contudo, que essas situações envolvendo casamento de parentes de

um companheiro com o outro, que seriam, se casados, genro e sogra, ou,

exemplificativamente, padrasto e enteada, mesmo ausente entre eles parentesco legal por

afinidade, podem ser questionadas do ponto de vista moral, em vista do laço afetivo que se

cria entre tais pessoas no concerto da relação familiar, caracterizando-se eventualmente,

como união incestuosa, por isso censurável do ponto de vista ético e moral.

9. CONCLUSÃO

Page 19: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

19

Salvo disposição de lege ferenda (como previsto na legislação civil projetada) não

existe no atual ordenamento jurídico comando expresso para aplicar os impedimentos

matrimoniais à união estável, salvo para o fim de seu conversão em casamento.

Não obstante, aplicam-se à união estável os impedimentos considerados absolutos,

que nulificam o casamento e, bem por isso, impedem igualmente a formação de entidade

familiar nos moldes de união estável, por aspectos concernentes à própria capacidade das

pessoas e a fundamentos de ordem social e moral.

As regras gerais da incapacidade para a prática de atos jurídicos têm lugar na

formação da união estável que, de inicial fato jurídico evolui para ato jurídico em vista dos

seus especiais efeitos no plano dos direitos assegurados às partes envolvidas. Assim, para

que haja união estável é preciso que as partes sejam capazes e que seja lícito o objeto da

família assim constituída, afastando-se, pois, as uniões de pessoas sem condição para

assumir encargos de cunho familiar e que não se apresentem com foros de legitimidade

moral para o consórcio afetivo, como tais se incluindo as uniões adulterinas e as

incestuosas.

Outras categorias de impedimentos matrimoniais, como os relativamente

incapacitantes, embora sem aplicação direta à união estável, podem servir como

fundamento para pedido de anulação e assim cercear os efeitos decorrentes desse ato, se

comprovada a sua realização com vício de vontade por erro, incapacidade mental,

insuficiência de idade ou outro fator invalidante, tal como se admite para decretação de

anulação dos atos jurídicos em geral.

Não cabem como óbices à união estável os impedimentos matrimoniais meramente

proibitórios, assim previstos no atual Código Civil, que o ordenamento projetado chama de

causas suspensivas, eis que meramente penalizadoras na esfera patrimonial dos contraentes,

sem invalidar o ato matrimonial.

Em suma, desfigura-se a união estável em casos de ilicitude do objeto na ampla

acepção, abrangendo: a) uniões adulterinas à margem do casamento, quando não haja

separação de fato, salvo hipótese de boa-fé, b) uniões estáveis simultâneas, salvo hipótese

Page 20: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

20

de boa-fé, c) uniões incestuosas de parentes na linha reta e colaterais até terceiro grau

(salvo, para terceiro grau, autorização judicial prevista no Decr.-Lei 3.200/41), pela ofensa

a princípios de ordem pública, moral, tradição e bons costumes, d) união entre adotado e

adotante ou seus parentes em linha reta ou colaterais de 2o grau, e) união do cônjuge ou do

companheiro sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio

contra o seu consorte ou parceiro.10[10]

Em qualquer situação, porém, mesmo quando desfigurada a união estável como

entidade familiar, como se dá em uniões adulterinas ou incestuosas, pode restar a situação

indelével da chamada "família de fato", que subsiste mesmo sem lei que lhe dê cobertura. A

falta de revestimento legal não obsta ao reconhecimento de certos efeitos jurídicos a essas

espécies de união do tipo concubinário. Seus membros fomam uma entidade familiar ainda

que sem estrita concepção jurídica. Não podem ser ignorados os efeitos dessa convivência

no âmbito interno do grupo e também no plano externo, por seu indisfarçável reflexo social.

Basta que se considere a eventualidade de formação de um patrimônio comum entre

os parceiros, a exigir partilha dos bens no momento em que se dissolva a convivência. Esse

aspecto patrimonial terá sempre relevância, ainda mesmo nos casos de múltiplas uniões em

caráter simultâneo, bastando que se distingam as aquisições pela sua origem, partilhando-se

os bens separadamente, por blocos específicos em favor dos que efetivamente hajam

colaborado na formação de cada fatia do patrimônio.

Muito menos haverá restrição de direitos aos filhos havidos em quaisquer dessas

situações extramatrimoniais desfocadas do modelo oficial da união estável. Para os filhos

não interessa como se qualifique a relação de seus progenitores. Eles fazem parte de uma

entidade familiar em conjunto com seus ascendentes, não importa a origem ou as condições

da convivência, e terão todos os direitos decorrentes da filiação, conforme lhes assegura,

em solene afirmação, o artigo 227, § 6o, da Constituição Federal.

10[10] Desmerece inclusão a hipótese de união do cônjuge adúltero com o seu co-réu, por tal condenado, por tratar-se de situação em vias de destipificação civil como impedimento (novo Código Civil) e também na esfera do procedimento criminal (já existente, pelo perdão judicial, e com efetiva exclusão do tipo, na pendência de reforma da parte especial do Código Penal).

Page 21: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL · casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida

21

Em suma, com ou sem impedimentos para sua constituição, a entidade familiar

decorrente da convivência duradoura de homem e mulher, em quaisquer circunstâncias,

merece proteção do Estado como núcleo integrante da sociedade.

Os efeitos jurídicos dessa união à moda conjugal serão examinados caso a caso, de

acordo com suas características e peculiaridades. Garantida será, no entanto, a defesa dos

direitos assegurados aos parceiros ao menos no plano patrimonial assim como assegurado o

reconhecimento de plenos e igualitários direitos aos seus descendentes, tal como se dá na

chamada família monoparental que prescinde da pré-configuração matrimonial ou de ajuste

ao figurino da união estável.

São Paulo, 9 de dezembro de 2001.