Imagens técnicas: origem e implicações segundo Vilém Flusser
date post
08-Jan-2017Category
Documents
view
220download
5
Embed Size (px)
Transcript of Imagens técnicas: origem e implicações segundo Vilém Flusser
113
Comun & Inf, v. 16, n. 1, p. 113-126, jan./jun. 2013
Imagens tcnicas: origem e implicaes segundo Vilm Flusser
Technical images: origins and implications according to Vilm Flusser
Douglas Joo Orben1
(douglasorben@hotmail.com)
http://dx.doi.org/10.5216/cei.v16i1.25724
Resumo O artigo analisa, inicialmente, a apresentao flusseriana do desenvolvimento das estruturas humanas de
expresso e significao da realidade. Tal processo tem seu incio na pr-histria, a qual superada pelo pensar
histrico que, por fim, produz as condies abstrativas para o surgimento da ps-histria. A segunda parte do
texto contempla as implicaes causadas pela programao das imagens tcnicas na sociedade ps-histrica, na
medida em que o significado do mundo encontra-se determinado pelas tecno-imagens.
Palavras-chave: Flusser. Imagem. Ps-histria.
Abstract This article analyzes, initially, the Flusserian presentation of the development of human structures of expression
and signification of reality. Such process has its inception in prehistory, which is overcome by the historical
thinking that, therefore, produces the abstractive conditions for the post-history arising. The second part of the
text contemplates the implications caused by technical images programming in the post-historic society, once the
worlds meaning finds itself determined by techno-images.
Keywords: Flusser. Image. Post-history
Introduo
mquina fotogrfica, que se comparada com muitos outros aparelhos existentes poderia at
ser considerada simples e de pouca importncia, para Vilm Flusser o modelo a partir do
qual a sociedade contempornea deve ser analisada. Apesar de sua simplicidade e fcil
manuseio, a mquina fotogrfica , para a grande maioria de seus operadores, desconhecida em suas
virtualidades e programaes. Ela caixa preta, para o fotgrafo. Neste universo, o homem torna-se
um funcionrio que maneja os aparelhos, mas desconhece seu funcionamento. Esta , pois, a grande
questo que os aparelhos tcnicos nos impem: como compreender aquilo que foge sua mera
materialidade, como esclarecer as suas virtualidades programadas.
1 Mestrando do Programa de Ps-graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS e professor
do curso de Filosofia da Faculdade Palotina FAPAS (Santa Maria).
A
114
Comun & Inf, v. 16, n. 1, p. 113-126, jan./jun. 2013
Flusser denomina o universo das imagens tcnicas de ps-histrico, pois ele a sntese entre
uma pr-histria dominada por imagens pictricas e o universo histrico, o qual se inicia com a escrita
linear e culmina com os mais abstratos textos cientficos. Neste processo, o mundo ganha significado
de acordo com o perodo de seu desenvolvimento: para o homem pr-histrico o significado da
realidade era expresso e determinado pelas imagens tradicionais, por meio de pinturas e figuras
pictricas; com o surgimento da escrita, o sentido da realidade passa a ser definido pelos conceitos, o
homem torna-se um ser letrado e a sociedade organiza-se a partir de tratados, teses e textos cientficos;
a ps-histria, por sua vez, caracterizada pelo surgimento dos aparelhos produtores de imagens
tcnicas. Em tal domnio, a sociedade encontra-se orientada pelas imagens tcnicas, pois so estas que
determinam o sentido do mundo ps-histrico.
1 Pr-histria
Para Flusser, as imagens so o esboo da tentativa humana de representar algo. Elas so a
manifestao da capacidade imaginativa de criar figuras iconogrficas, as quais pretendem representar
o mundo. Pela capacidade de abstrao das dimenses fenomnicas do mundo, as imagens so
produzidas mediante o engenho criativo da imaginao que permite reconstruir as dimenses
abstradas, criando assim figuras abstratas. Segundo Flusser, as imagens so, portanto, resultado do
esforo de abstrair duas das quatro dimenses de espao-tempo, para que se conservem apenas as
dimenses do plano. (FLUSSER, 2002, p. 7). Esta concepo corresponde ao que Flusser vai
denominar de imagens tradicionais, em oposio a um segundo tipo de imagem, as imagens tcnicas.
As imagens tradicionais representam o modo de expresso do mundo pr-histrico, onde a
escrita ainda no existia e a representao se dava por imagens pictricas, produzidas mediante
capacidade imaginativa e expressas em desenhos, pinturas e figuras planas. No universo pr-histrico a
faculdade operante , sobretudo, a imaginao. , pois, ela que possibilita a abstrao e a codificao
das imagens (condio para a produo das imagens), bem como a descodificao que implica na
capacidade de compreenso das representaes imagticas. No processo de decodificao das imagens,
o observador vagueia pela superfcie plana da mesma, o olhar no segue uma temporalidade linear, mas
sim uma articulao circular. Tal capacidade imaginativa de decodificar imagens, Flusser vai
denominar de scanning. Neste sentido, o traado do scanning segue a estrutura da imagem, mas
tambm os impulsos no ntimo do observador. O significado decifrado por este mtodo ser, pois,
115
Comun & Inf, v. 16, n. 1, p. 113-126, jan./jun. 2013
resultado da sntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor (FLUSSER, 2002, p.
7-8).
A temporalidade do mundo pr-histrico acompanha o ritmo do scanning, pois o seu (do
mundo) significado se apresenta em tal processo de decodificao de imagens. Este no o tempo
linear da histria, mas o tempo circular, o tempo do eterno retorno que d significado ao mundo pr-
histrico. Na decodificao da temporalidade imagtica, o vaguear do olhar circular: tende a voltar
para contemplar elementos j vistos. Assim, o antes se torna depois, e o depois se torna antes.
O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem o eterno retorno. (FLUSSER, 2002, p. 8). O mundo
das imagens tradicionais determinado pelo retorno, pela lei do destino que atribui significado s
figuras num processo circular. Nesta dinmica, as imagens so decodificadas, passando assim a atribuir
significado realidade.
No mundo das imagens tradicionais as relaes no so determinadas por uma lei causal (causa-
efeito), pois o tempo no segue uma ordem linear. Segundo Flusser, o universo pr-histrico regido
pelo tempo mgico, orientado pela imaginao que produz significado relacional, reversvel e circular.
Como o prprio autor expressa:
O tempo que circula e estabelece relaes significativas muito especfico: tempo de magia.
Tempo diferente do linear, o qual estabelece relaes causais entre eventos. No tempo linear, o
nascer do sol a causa do cantar do galo; no circular, o cantar do galo d significado ao nascer
do sol, e este d significado ao cantar do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um
elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens o contexto
mgico das relaes reversveis (FLUSSER, 2002, p. 8).
O mundo pr-histrico, significado pelas imagens tradicionais, entra em crise na medida em que
as imagens deixam de representar a realidade, interpondo-se entre o mundo e o homem como tapumes.
Neste contexto, as imagens no mais orientam o significado do mundo, como mapas, mas acabam
criando biombos que bloqueiam o acesso ao mundo. Como biombo, a imagem torna-se vazia, pois nada
mais representa e, assim, no mais necessita ser decodificada. Se a imagem no mais representa o
mundo, se ao invs de represent-lo ela passa a escond-lo, ento o significado iconogrfico torna-se
uma idolatria2, passa-se a viver em funo das imagens. Tal , pois, o panorama da crise das imagens
tradicionais:
2 Idolatria, para Flusser: incapacidade de decifrar os significados da ideia, no obstante a capacidade de l-la, portanto, adorao da
imagem (FLUSSER, 2002, p. 77-78).
116
Comun & Inf, v. 16, n. 1, p. 113-126, jan./jun. 2013
Imagens tm o propsito de representar o mundo. Mas, ao faz-lo, interpem-se entre mundo e
homem. Seu propsito serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao
invs de se servir das imagens em funo do mundo, passa a viver em funo das imagens. No
mais decifra as cenas de imagem como significados do mundo, mas o prprio mundo vai sendo
vivenciado como conjunto de cenas. Tal inverso da funo das imagens idolatria. Para o
idlatra o homem que vive magicamente a realidade reflete imagens (FLUSSER, 2002, p.
9).
Na medida em que as imagens tradicionais deixam de representar algo, ao tornarem-se biombos
que escondem a realidade, surge um novo modo de significar o mundo, a saber: o conceitual. A escrita
conceitual nasce do esgotamento das imagens tradicionais, na tentativa de acabar com a idolatria
pictrica e redefinir o significado da realidade a partir do conceito. Surge assim o pensar histrico.
2 Histria
A inveno da escrita3 supera as imagens tradicionais e inaugura o perodo histrico. A escrita
conceitual est um passo alm do plano imagtico, pois a mesma abstrai trs das quatro dimenses da
realidade, restando apenas o smbolo conceitual. Assim, o texto (a escrita linear) exige uma capacidade
imaginativa ainda maior, uma vez que o nvel de abstrao mais elevado do que o da imagem
tradicional. No mesmo sentido, a decodificao dos textos tambm mais complexa, j que a sua
com