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Edição conjunta de:

MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO www.movimentolusofono.org Palácio da Independência, Largo de São Domingos, n.º 11 1150-320 LISBOA

e

DG Edições Av. D. Pedro V, 15 - 5.º Esq.º 2795-151 Linda-a-Velha

Selecção, ordenação e revisão de textos por António Braz Teixeira e Renato Epifânio

Composição e maquetagem: DG ediçõesImpressão e acabamento: ISBN: 978-989-8661-Depósito Legal:Primeira edição: Novembro de 2015

© 2015, Constança Marcondes César e MIL - MovIMento InternaCIonaL Lusófono.reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.

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Constança Marcondes César

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ÍnDICe

Prefácio, por António Braz Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Pessoa, Liberdade e Direitos dos Índios em António Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Vieira e Las Casas: a questão indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

As “Reflexões” de Matias Aires . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

A metafísica de Tobias Barreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Sílvio Romero e a Escola do Recife . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Literatura e Sociedade em Sílvio Romero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Filosofia do Direito em Sílvio Romero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

Antero de Quental: ética e epistemologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

Biografias e modelos paradigmáticos do ethos: São Paulo de Teixeira de Pascoaes . . . 63

Diálogo da Renascença Portuguesa com o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

Verdade, ciência e poesia em Milton Vargas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

Liberdade e reconhecimento em Vicente Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

Filosofia e Poiésis: Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Pensamento originário e filomitia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

A filomitia de Eudoro de Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

A compreensão heterodoxa do sagrado: Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Vicente Ferreira da Silva . . . . . 133

Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Agostinho da Silva e o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

Ética e liberdade em Agostinho da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

Natural:mente, de Vilém Flusser . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

A metafísica conjetural de Miguel Reale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

Axiologia e crise segundo Miguel Reale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

Ética e liberdade em Miguel Reale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

Aspectos da teoria da justiça em Reale e Braz Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

A filosofia do Direito em Aquiles Cortes Guimarães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

O conceito de razão atlântica em António Braz Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

António Braz Teixeira e a Filosofia Portuguesa Contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

Arte e tempo em Maria do Carmo Tavares de Miranda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209

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Axiologia e ética em Eduardo Abranches de Soveral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215

A tradição escatológica da filosofia portuguesa da história . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

Aspectos das filosofias brasileira e portuguesa depois de 1950 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225

Antônio Paim e a história das idéias filosóficas no Brasil: questão de método . . . . . . 233

O orientalismo de Cecília Meireles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

Contemplação e Sabedoria nos Cânticos de Cecília Meireles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245

Guimarães Rosa: Travessias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255

A viagem como peregrinação e redenção em Dalila Pereira da Costa . . . . . . . . . . . . . 267

A Celebração dos Deuses: Vicente Ferreira da Silva e Dora Ferreira da Silva . . . . . . . 273

Dora Ferreira da Silva: caminhos em direcção ao Sagrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283

Talhamar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295

A dança, a música e a poesia em Dora Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301

Poesia e transcendência em Hilda Hilst . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305

Ariano Suassuna: O Romance d’A Pedra do Reino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311

PROVENIÊNCIA DOS TEXTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

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agradecimentos

Aos Amigos António Braz Teixeira e Renato Epifânio,pela generosidade e empenho que demonstraram na busca, apresentação

e organização dos textosao Instituto de Filosofia Luso-Brasileira

o apoio à edição

em memória de

Afonso BotelhoAgostinho da Silva

Dora Ferreira da SilvaEduardo Abranches de Soveral

Francisco da Gama CaeiroMaria do Carmo Tavares de Miranda

Maria Helena VarelaMiguel RealeSándor Pethö

E aos Amigos

Ana Maria MoogAntonio PaimAmon Pinho

Cristiana de Soveral e Paszkiewicz Irene Borges DuarteJosé Esteves Pereira

Jorge Teixeira da CunhaLeonel Ribeiro dos SantosManuel Cândido PimentelManuel Ferreira Patrício

Maria Celeste NatárioMaria de Lourdes Sirgado Ganho

Maria Fernanda HenriquesPaulo Borges

Pedro CalafateRomana Valente Pinho

Samuel Dimas

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Prefácio

Intelectual e investigadora bem conhecida no meio filosófico e universitário português, pela sua frequente participação em colóquios, congressos, seminá-rios, conferências, júris de provas académicas e comissões de aconselhamento de centros de investigação, membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, Cons-tança Marcondes César, actualmente Professora na Universidade Federal de Ser-gipe, depois de, durante largos anos, haver ensinado na Universidade Católica de Campinas e aí ter dirigido a revista Reflexão, tem repartido a sua inteligente e sensível atenção hermenêutica e reflexiva por diversas áreas, desde o pensamen-to brasileiro, português e latino-americano, até à filosofia francesa contemporâ-nea ou à moderna especulação grega, como, expressivamente, o ilustra a vasta bibliografia que foi produzindo ao longo de quase meio século.

Autora de obras como Vicente Ferreira da Silva: trajectória intelectual e con-tribuição filosófica (1980), Filosofia na América Latina (1988), Bachelard: Ciên-cia e Poesia (1989), A hermenêutica francesa: Bachelard (1966), Papéis filosóficos (1996), O Grupo de São Paulo (2000), Filosofia da Cultura Grega (2008) e Crise e Liberdade em Merleau-Ponty e Ricoeur (2011), Constança Marcondes César dedicou, ainda, inúmeros escritos a figuras maiores da filosofia e da cultura bra-sileira e portuguesa contemporâneas, com especial relevo para os consagrados e mais destacados membros da Escola de São Paulo – Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Milton Vargas, Eudoro de Sousa, Agostinho da Silva e Vilém Flusser – e a algumas das mais altas expressões da criação poética e literária luso-brasileira da centúria finda, como Teixeira de Pascoaes, Cecília Meireles, João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Dora Ferreira da Silva, Sophia de Mello Breyner Andresen, Dalila Pereira da Costa ou Hilda Hilst, com algumas da quais teve a oportunidade de privar, com especial destaque para a grande poetisa de Retratos da Origem.

Encontrando-se a quase totalidade desses escritos dispersa por revistas, ac-tas de colóquios e congressos ou obras colectivas, entenderam alguns dos seus amigos portugueses aproveitar a oportunidade da sua jubilação para reunir, em volume, a maioria desses textos, escritos e publicados de 1969 até ao presente, testemunho vivo da sua subtil penetração hermenêutica e da sua amorosa com-preensão da cultura que nos é comum e dos princípios e dos mais altos valores especulativos e estéticos que a individualizaram.

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Coube a Renato Epifânio, um dos mais recentes amigos portugueses da pen-sadora paulista e ao signatário, decerto o mais antigo desses amigos, o grato encargo de, com a colaboração e a supervisão da autora, seleccionar, ordenar e rever os textos da presente colectânea, que documentam as superiores quali-dades exegéticas de Constança Marcondes César, enriquecendo, significativa-mente, a bibliografia sobre os caminhos e os modos do pensar em português, e contribuindo para uma mais profunda e compreensiva autognose do espírito de uma pátria de língua portuguesa.

A esta quase meia centena de estudos e ensaios, assim como aos reunidos, an-teriormente, em O Grupo de São Paulo, editado, há quinze anos, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, acha-se subjacente uma atitude hermenêutica que se funda numa razão filosófica aberta a outras formas gnósicas matriciais dela com-plementares, como a intuição sensível e supra-sensível, a imaginação e a memó-ria inventiva e criadora, que a leva a valorizar o “poetar pensante” e o mais fundo sentido e valor simbólico e ontológico da palavra poética e as suas essenciais relações com a “arte de filosofar” e com a qual se articula o conjunto de autores e de temas a que a investigadora brasileira tem conferido primordial atenção.

É aqui que deve buscar-se a génese e a explicação para o interesse que, desde cedo, lhe mereceram o pensamento grego pré-socrático e a filosofia indiana, mi-tólogos como Kerény, Eliade ou Eudoro de Sousa, especulativos como Vicente Ferreira da Silva, Agostinho da Silva, Bachelard, Scheler, Heidegger, Ricoeur ou Moutsopoulos, poetas como Hölderlin, Rlke, Tagore, Celília Meireles, Dora Fer-reira da Silva ou escritores como Kazantzaki, Guimarães Rosa ou Suassuna, bem como temas como o sagrado ou o divino originário, de que Deus e os deuses são imperfeita e parcial manifestação, o numinoso que se exprime nos mitos, na poesia e na mística, as fundas e essenciais relações entre mito e logos, mito e sím-bolo e mito e história, o sentido ontológico da liberdade e as suas relações com a ética, o direito e a justiça, presentes, praticamente, em todos os textos aqui coli-gidos e que, pelo modo como são tratados, permitem apreender ou surpreender o pessoal pensamento, discreta e indirectamente expresso da filósofa brasileira.

Esse pensamento implícito ou apenas sugerido, profundamente marcado pela lição de Vicente e Dora Ferreira da Silva, e em que razão filosófica e razão poética são indissociáveis, afigura-se ser uma filosofia hermenêutica da cultura, claramente distinta da visão que desta apresenta o moderno culturalismo brasi-leiro que, reivindicando a lição pioneira de Tobias Barreto, foi profundamente renovado, desenvolvido e ampliado por Miguel Reale e exemplarmente sistema-tizado por António Paim, invocando a sua matriz neo-kantiana, o seu historicis-mo axiológico e o seu fundamento na moralidade.

Diversamente, a pensadora paulista, mais próxima de especulativos como Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, José Marinho, Dalila Pereira da Costa, An-

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tónio Quadros, Afonso Botelho ou Adolpho Crippa, atende, na sua compreensão filosófica da cultura, à natureza fundadora e originária dos mitos e ao sentido es-catológico da história, dando prevalência ao sagrado, aos valores religiosos e ao carácter ontológico e simbólico da arte, da poesia e da cultura, ao mesmo tempo que, na linha de Farias Brito e Álvaro Ribeiro, vê na verdade o fundamento da liberdade e do agir ético e confere à justiça uma radicalidade antropológica e ontológica que excede a simples igualdade ou a mera repartição de coisas ou de bens materiais, referindo-a à própria existência humana intersubjectiva.

António Braz Teixeira

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Pessoa, Liberdade e Direitos dos Índios em antónio vieira

A obra de Vieira se inscreve no horizonte de uma problemática filosófica que o precedeu1, caracterizando o século de ouro do pensamento ibérico e que teve em autores espanhóis e portugueses seu vôo e sua expressão2.

Referimo-nos à célebre Escola de Salamanca, da qual Francisco de Vitória foi um dos expoentes, renovando a Teologia e o Direito e meditando sobre a questão indígena e a da colonização. Ao lado de Vitória, os nomes de Bartolomé de las Casas e de Luís de Molina, assim como de outros professores de Évora e Coim-bra3, atestam a importância da problemática suscitada pela defesa dos direitos dos índios, nas universidades da península ibérica, nos séculos XVI e XVII4. A respeito disto, diz Pedro Calafate: “No cômputo global, a escola peninsular, onde temos que incluir não apenas Salamanca, mas também Coimbra e Évora, nega o princípio da autoridade universal do imperador em matéria temporal; recusa a autoridade espiritual do papa sobre os infiéis, e não aceita o princípio jurídico que aponta o direito de mover guerra aos infiéis pelo simples fato de o serem (...)”5.

Na perspectiva de Pedro Calafate (ibid., pp. 35-49), a contribuição portu-guesa residiu, num primeiro momento, “na atribuição de expressão concreta ao ideal cristão de unidade da natureza humana (...) e, num segundo momento, na afirmação da existência de direitos humanos inalienáveis, independentes da raça 1 GUY, Alain., Histoire de La Philosophie Espagnole, Tolouse, Association des Publications de l’Université de Tolouse-le Mirail, 1983, pp. 70 e segs. Ver também, do mesmo autor: Esquisse des progrès de la spéculation philosophique et théologique à Salamanque au cours du XVIè siècle. Paris: Vrin, 1943 (Tese complementar para o doutorado em letras na Universidade de Grenoble). 2 CALAFATE, Pedro, “A mundividência de António Vieira”, in CALAFATE, Pedro (dir.), Histó-ria do Pensamento Português, vol. II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Caminho, 2001, pp.703-731.3 Posições análogas às desses autores já encontramos em autores como Frei Serafim de Freitas, como evidencia Pedro CALAFATE, in op. cit., p. 44.4 GUY, Alain., op. cit. Ver também VV.AA. Francisco de Vitória y La Escuela de Salamanca. La ética en la conquista de América. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1984. Nessa obra, consultar também a lista dos professores espanhóis e portugueses, bem como seus principais escritos, que circularam em Salamanca, Évora e Coimbra, dentre outras cidades impor-tantes (Apêndices, pp. 661 e segs). Ainda sobre esse assunto, ver CLANET, Christian, “Las Casas et Vitoria, suspects d’ortodoxie?”, in VV.AA., Penseurs hetérodoxes du Monde Hispanique. Tolouse: Association des Publications de l’Université de Tolouse-le Mirail, 1974, pp.81-194.5 CALAFATE, Pedro, “A antropologia portuguesa da época dos descobrimentos”, in id., op. cit, p. 43. Cf. também BRAZ TEIXEIRA, António, “A reflexão portuguesa sobre o Direito nos séculos XVI e XVII”, in CALAFATE, Pedro (dir.), op. cit., pp. 647-662.

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e do credo” (ibid., p. 35). Esse reconhecimento de um núcleo comum a todo ser humano evoluiu do plano filosófico para o jurídico, implicando: a aceitação da pluralidade dos povos, dos governos, das confissões religiosas; a afirmação da noção de comunidade internacional; e culminaria na compreensão, alcançada progressivamente, do gênero humano “como um todo, na diversidade de raças e culturas.”

É no âmbito da evangelização, do projeto do estabelecimento do império de Cristo no mundo, que deve ser compreendida a atuação das ordens religiosas no continente americano.

Os temas do valor da pessoa humana, da liberdade, da guerra justa, estão presentes no filosofar dos séculos XVI e XVII.

Assim, para Las Casas (1474-1566), “o cristianismo não se impõe (...) pela força”6 e a tutela provisória dos índios deve levá-los à civilização e à liberdade.

O amigo de Las Casas, Francisco de Vitória (1480-1546), jurista e teólogo, professor em Salamanca, introduziu temas importantes tais como: o da responsa-bilidade moral dos espanhóis na colonização; o da exigência de uma colonização pacífica; o do reconhecimento de que os índios não são infra-humanos. Adota, assim, uma posição análoga à de Las Casas, quando este afirma que “todas as populações do mundo são humanas (...) todos os homens têm entendimento e vontade, todos têm os cinco sentidos externos e os quatro internos, percebem prazer e alegria, e repudiam o mal”.7

Para Vitória não há, como pretendia Aristóteles na Política, homens escravos por natureza. A liberdade e a razão são componentes essenciais do humano. A condição inferiorizada dos índios, em relação aos europeus, é remediável, não constitucional.

Há, na perspectiva desses autores, a idéia de uma identidade da condição humana, para além da diversidade das culturas, como evidencia Clanet8. Em conseqüência da igualdade essencial entre as raças, a desigualdade acidental dos índios pode ser remediada por uma “tutela emancipadora”, provisória, que asse-gure sua liberdade e sua cristianização, sendo, pois, insustentável a subordinação e escravização dos diferentes (ibid., p. 97). Vitória condena a guerra ideológi-ca, afirmando que a diversidade de religiões e culturas não é causa justa para a guerra. Assim, os índios, capazes de razão, são proprietários de suas terras; não podem ser escravizados, torturados ou obrigados a aceitar o cristianismo. Por isso, a presença dos europeus na América só se justifica como direito à livre circulação no mundo mas não como direito à invasão; a exploração escravagista é escandalosa e ilegítima9.6 LAS CASAS, Bartolomé, Tratados, V, pp. 507 e 509, apud CLANET, C., op. cit., p. 104.7 Id., op. cit., pp. XVIII e XIX, apud CLANET, C., op. cit., p. 96.8 CLANET, C., op. cit., p. cit.9 GUY, A., Histoire de la philosophie espagnole, pp. 74 e segs.

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Como bem assinalou Manuel Cândido Pimentel10 dois sermões de Vieira mostram, o primeiro, a correlação entre evangelização e proteção dos mais frágeis (Sermão da Epifania)11; o segundo, a afirmação da liberdade como valor fun-damental da existência, assim como as condições que tornariam a escravidão e a guerra justas (Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma, ibid., vol III, pp. 5-24). É nesse último sermão que aparece, em primeiro plano, o questionamento da escravidão dos índios que se desdobrará na condenação da avareza e da cupi-dez, características do comportamento de alguns colonos, no belíssimo Sermão de Santo Antonio (ibid., vol VII, pp. 223-254) pregado em Sâo Luis do Maranhão em 1654. Veremos, nos argumentos elencados por Vieira contra a escravidão dos índios, ressoar a enorme erudição, o gosto pela estrutura lógica, a extraordinária sensibilidade que animam o debate filosófico que o precedeu e que se impõe como fio condutor das discussões na fina flor do pensamento dessa época. Não por acaso vários dos mestres-filósofos que o precederam eram jesuítas ou per-tenceram a ordens religiosas importantes.

Vieira é, no Brasil e no pensamento luso-brasileiro, o equivalente de um Las Casas na América Hispânica12.

Para compreender o alcance de sua reflexão e de sua atuação, o alcance do impacto que provocou com sua palavra, focalizaremos nossa atenção, sucessiva-mente, no Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma, pregado em 1653 em São Luís do Maranhão; no Sermão de Santo Antônio, pregado em 1654 na mesma cidade; e, finalmente, no Sermão da Epifania, pregado em Lisboa em 1662, na Capela Real, à Rainha D. Luiza (então regente do reino) e ao rei D. Afonso VI (ainda menor, na ocasião).

O Sermão de 1653 é uma meditação sobre a liberdade. O ponto de partida é uma hermenêutica das tentações de Cristo, pondo em foco a última das tenta-ções na qual, segundo o texto bíblico, o demônio teria oferecido a Cristo o poder sobre o mundo, caso este aceitasse ajoelhar-se e adorá-lo.

As razões da escolha da última tentação como tema de reflexões são, segundo o pregador: primeiro, porque a tentação do poder é “a maior (...) a mais universal (...) a mais poderosa das tentações”; segundo, porque refletir sobre ela é refletir sobre a mais “própria desta terra em que estamos”, diz ele referindo-se ao Mara-nhão13.

10 PIMENTEL, Manuel Cândido, De Chronos a Kairós. Aparecida: Idéias e Letras, 2008, pp. 25 e segs. Cf. também as referências de Pedro CALAFATE, no seu livro já citado supra, pp. 233-234, ao Sermão da Epifania , assim como às cartas do Pe. Manoel da Nóbrega.11 VIEIRA, António, Obras Completas. Sermões. Porto: Livraria Chardron – Lello & Irmão Ed., 1907, vol II, pp. 5-55.12 Cf. CALAFATE, Pedro, “A mundividência de Antonio Vieira”, in CALAFATE, Pedro (dir.), op. cit., p. 722.13 VIEIRA, António, op. cit., vol III, p. 6.

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A recusa de Cristo ao oferecimento do demônio põe em relevo, diz Vieira, que a alma vale mais que qualquer poder. E o pregador estabelece uma analogia entre a importância da salvação da alma e a recusa de Cristo do poder temporal. Poder mundano e salvação da alma aparecem, assim, como pólos antitéticos. Aponta ainda outra passagem bíblica que se refere a uma situação análoga: na última ceia, Cristo se ajoelha para lavar os pés de Judas. Busca, assim, pela hu-mildade e pelo exemplo sem palavras, demovê-lo da traição, salvar sua alma.

O sem preço da alma, quando comparada a qualquer bem mundano, é rei-teradamente afirmado pelo jesuíta. Donde o escândalo: a banalização do valor do homem, sujeito espiritual, vendido em terra brasileira. Essa banalização está associada ao pecado da venda da própria alma por ganância e busca de lucro; mais escravo é, para Vieira, quem compra o índio ou o negro, do que o próprio escravo: ao comprar um ser humano, o comprador simultaneamente se escraviza ao demônio, à corrupção e à injustiça.

Evocando a passagem bíblica, que narra a punição do faraó egípcio com pra-gas e danos por se recusar a libertar os judeus de um cativeiro injusto, Vieira es-tabelece um paralelo entre a punição do faraó e a punição do povo do Maranhão, acometido por pragas, fome e invasão, retribuição divina da escravidão injusta dos índios.

A liberdade é dom de Deus aos homens; não implica merecimento da parte daqueles que a recebem. É, pois, escandaloso o cativeiro, dado que a condição natural do homem é a liberdade. Apontando como causas de procura por escra-vos: a ambição e a cobiça de riquezas obtidas à custa da indignidade imposta ao outro, o pregador condena a preguiça, a ignorância, a brutalidade dos colonos em relação aos índios.

Desmontando, com uma lógica impecável, os argumentos dos fazendeiros e colonos a favor da escravidão, Vieira exalta o valor do trabalho, do esforço para ganhar a vida e obter o próprio sustento, evocando Cristo como modelo para-digmático do trabalhador, que em vez de viver do sangue e suor alheios, obtém, com seu esforço, o necessário para si e para os seus. Exorta, assim os colonos a trabalharem para viver, em vez de explorarem o trabalho dos índios.

Às ponderações de que os escravos índios eram tratados como filhos e que tinham tão boas relações com seus donos que estes lhes atribuíram criar os pró-prios filhos; que libertá-los seria como decepar uma parte do corpo dos senho-res, Vieira responde que é melhor perder riquezas, que a alma.

Assim, o pregador critica duramente a hipocrisia e a ambição que falseavam as relações, edulcorando-as. Mostra que os índios são forçados a sair de um es-tado de liberdade em que viviam, nas aldeias e no sertão e obrigados a ir para as cidades, onde são vendidos. Afirma ainda que só seria lícito mantê-los como serviçais, se estes escolhessem ficar nas cidades e trabalhar. Caso contrário, de-

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veriam ser encaminhados a outro lugar, tendo sempre o trabalho pago. O mis-sionário repetidamente põe em relevo a necessidade de o trabalho ser pago e não escravo; de não ser excessivo, possibilitando tempo livre de que o índio poderia dispor como quisesse.

Ou seja, Vieira: a) reconhece a necessidade da convivência entre coloniza-dores e nativos; b) percebe a importância da colaboração dos índios para que a colonização seja possível; c) concorda com a necessidade da aculturação, meio para se obter a convivência pacífica e tornar possível a evangelização, objetivo último da presença dos missionários no país.

Invocando o tema da guerra justa, já abordado no século XVI por Vitória, Vieira admite a escravidão, nos seguintes casos: a) de todos os que, cativos, vi-viam à espera de ser devorados pelos índios. Resgatados, a morte seria comutada em prisão perpétua, caso tivessem sido aprisionados em guerra justa; b) de todos os que tivessem sido vendidos como escravos por seus inimigos, desde que satis-feita a condição anterior. E para avaliar se a guerra podia ser considerada justa, seriam chamados a opinar os governadores, os vigários e autoridades constitu-ídas. Caso a guerra não fosse justa, os prisioneiros seriam libertados, passando a viver em aldeias e trabalhando mediante pagamento metade do ano, tendo a outra metade livre, para cuidar de suas terras e famílias.

Mesmo pagando, o custo do trabalho dos nativos seria baixo, de modo que a objeção levantada pelos colonos de que o trabalho pago implicaria em pesados sacrifícios, é descartada pelo missionário.

Os argumentos de Vieira contra a escravidão fundam-se numa ética do res-peito ao ser humano como pessoa, ser espiritual. Afasta, desse modo, a injustiça e a crueldade no trato com os mais frágeis, advertindo severamente os cristãos e exortando-os a viver de acordo com os princípios religiosos que assumiram.

No entender do missionário, essa atitude, além de ética, é política: possibilita aproximação pacífica e colaboração entre índios e colonizadores, de um lado; de outro, resguarda a autoridade do rei, cujo dever é ser o guardião da justiça, proi-bindo a ilicitude no trato com os nativos. Daí o pensador dizer: “El-rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição” (ibid., vol. III, p. 21). Quer dizer: o rei não tem autoridade para decretar o ilícito.

Caso a proposta seja lícita – isto é, caso não transforme homens livres em escravos – tudo convergirá para a ajuda recíproca e, visando o bem de todos, terá o favor de Deus, “Autor do bem”.

A palavra de Vieira, no sermão, é dura, direta, de advertência contra o mal e de reprovação dos vícios: ambição, cobiça, preguiça, falta de generosidade e de compaixão.

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No belíssimo Sermão de Santo Antonio, pregado no ano seguinte no Mara-nhão, a linguagem se abranda. O pregador recorre a metáforas e analogias pondo em paralelo sua situação e a história de Santo Antonio, o qual, não ouvido por seus contemporâneos, faz-se ao mar e vai pregar aos peixes. Diz a lenda que, por milagre, os seres marinhos teriam acorrido para ouvir o Santo.

Como Santo Antonio, Vieira faz um sermão dirigindo-se aos peixes. Desse modo, louva virtudes e critica vícios dos seus contemporâneos, aparentando fa-lar aos peixes.

A grande virtude desses animais, segundo o pregador, foi a de terem sido bons ouvintes; seus vícios: comerem-se uns aos outros. Analogamente, os ho-mens de entredevoram por soberba, vingança, cobiça, crueldade, sensualidade.

A superação dos vícios dá-se através da busca do bem comum, fazendo-o prevalecer “contra o apetite particular de cada um” (ibid., vol VII, p. 243); dá-se também pelo exercício da humildade, medindo o próprio valor na ótica da divindade, que a todos e a tudo supera. A insignificância do homem perante a grandeza de Deus, assim reconhecida, funcionaria como um antídoto para a soberba.

A ética, em Vieira, é sempre uma ética das virtudes, pensada à luz da finali-dade transcendente da vida humana.

E é na perspectiva da dupla dimensão da vida humana: vida no mundo, com os outros, levando em conta o valor do homem e da liberdade; vida em vista da finalidade última do homem: o encontro com Deus, a salvação da alma – que o pregador considera o problema da escravidão dos índios e a ética da coloniza-ção.

É no Sermão da Epifania (ibid., vol. II, pp. 5-55), pregado na Europa, que sua reflexão leva às últimas conseqüências o binário: evangelização-proteção dos índios. Nesse sermão ressoam a valorização mítica da América como o lugar da utopia, do novo tempo, da nova época na qual ocorreria a cristianização do mundo.

Caberia aos portugueses a criação de uma nova igreja, mais universal, ins-taurando, num mundo mais amplo, “a luz do Evangelho e o conhecimento de Cristo” (ibid., p. 13). Nessa tarefa, as ordens religiosas teriam um papel central.

Mas o projeto luminoso, a afirmação do sagrado, da conversão e da liberdade, foi desvirtuado. Vieira prega na Europa, expulso do Brasil com outros jesuítas, por defender os índios, por criticar a ambição e a avareza dos colonos, por recu-sar a escravidão de homens livres, por denunciar a exploração dos mais frágeis, o fechamento de claustros, a profanação das igrejas.

O tema da evangelização e da proteção aos índios esbarra na problemática característica do tempo de Vieira. Os costumes bárbaros dos “gentios” – e o pre-

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gador se refere explicitamente à antropofagia (ibid., vol II, Sermão da Epifania, p. 20) – podem ser amenizados, uma vez que as “feras”, os “brutos”, “acolhem” e “veneram” os padres pela diligência, solicitude, serviço e cuidado que estes têm em relação aos naturais da terra.

Associando o trabalho dos jesuítas ao da estrela que guiou os magos, reis “infiéis” e “idólatras”, até o Cristo; comparando esse trabalho ao do bom pastor, que vigia e protege seu rebanho; estabelecendo analogias entre a conversão da Arábia e da Mesopotâmia, metafóricamente representadas pelos negros, e a con-versão da América, representada pelos índios, Vieira assinala a enormidade da nova missão.

Tratava-se de converter gentios, vivendo em condições precárias, numa terra sem fé, sem lei, de gente inculta e paupérrima.

Gente tão rústica, que “uma árvore lhe dá o vestido e o sustento, e as armas, a casa, a embarcação”, pois “com as folhas se cobrem, com o fruto se sustentam, com os ramos se armam, com o tronco se abrigam e sobre a casca navegam”.

Para os jesuítas, ir para a América era abandonar conforto, honras e buscar o Cristo na pobreza extrema das novas terras. Era aprender, visando a persuasão e o diálogo, línguas bárbaras num curto espaço de tempo. Era, por seus cuidados com os índios, alcançar a estima e afeição destes.

A esse trabalho imenso de conversão, de pacificação, os portugueses se opu-seram: os próprios cristãos, movidos por cobiça, em vista da exploração escrava, expulsaram os padres que denunciavam suas injustiças.

O sermão mostra, no Brasil da época, uma ruptura profunda entre a Igreja e o Estado, entre os pregadores e os colonos. E diz Vieira: “não é esse o governo de Cristo”14, não é possível separar ética e política, razão cristã e interesses da comunidade.

É preciso que quem converta possa defender; e que a ação dos missionários favoreça não o lucro de alguns, mas o rei – que teria mais vassalos – e a Cristo, que contaria com mais almas salvas.

Denunciando a torpeza dos colonos, afirma que estes não só expulsaram os padres, mas também “maquinaram contra o rei” (ibid., p. 40 e segs), associando a sua presença na América à morte e ao sangue de homens inocentes, destruindo igrejas, hospitais e toda a ação pacificadora e protetora dos missionários. A ex-pectativa dos colonos, de que a evangelização servisse para a captura dos índios e favorecesse a sua completa submissão à condição de escravos, é mostrada por Vieira como absurda e escandalosa. Suporia que os missionários consentissem que os índios perdessem “a pátria (...), a soberania (...) a liberdade” (ibid., p. 41) e ainda mais: que os padres os persuadissem a perdê-las. Pedro Calafate assinala 14 Id., ibid., p. 32. Podemos assinalar aqui uma semelhança entre a afirmação de Vieira e a de Las Casas: “O cristianismo não se impõe pela força” (cf. n. 4, p. 6).

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que Vieira é “o crítico mordaz e impiedoso da tirania e da corrupção; a finalidade do poder [para o jesuíta] é o bem comum, alcançado no respeito pela dignidade ética da pessoa humana, na justiça como fundamento da comunidade política, e na afirmação da igualdade substancial entre todos os homens, cristãos, índios, negros, asiáticos ou judus, igualdade fundada na paternidade divina”15.

Apesar dessas dificuldades apontadas, o pregador,no Sermão da Epifania, propõe, não o impedimento da colonização, mas remédio aos males dela decor-rentes. E os três remédios que elenca, os caminhos que sugere à realeza, para a reinstauração da justiça em terras brasileiras, são os seguintes: o primeiro, que a nova terra seja povoada por indivíduos de boa conduta ética e não por crimi-nosos, de modo que o bom exemplo facilite a conversão; o segundo, que sejam mandados muitos padres para o Brasil, de modo a superar o obscurantismo e a ignorância reinantes, pois “quem não tem luz, não pode guiar; quem não tem espírito não pode converter” (op. cit., vol. II, p. 53); o terceiro, consiste no efetivo cuidado com os novos convertidos: tratamento justo, garantias de sua liberdade, paz e segurança.

É dever do rei promover a justiça, “procurar efetivamente a conversão e sal-vação dos gentios” (ibid., p. 55). Esse dever se estende a todo o reino, a todos os portugueses, posto que a colonização foi concedida pelos Papas visando a propa-gação da fé16. Daí o pregador propor a direta intervenção do rei, possibilitando o retorno dos jesuítas ao Brasil e garantindo a proteção aos índios.

A perspectiva de Vieira tem pontos de analogia, como dissemos, com os mais ilustres pensadores que o precederam. Algumas das teses, como a “colonização justa”, defendida por Vieira, já se acham presentes em mestres como Francisco de Vitória, já no século XVI. Para este, o poder político, para ser legítimo, deve estar fundado na busca do bem comum. Assim, a colonização só é legítima em nome da livre comunicação e circulação dos homens no mundo, pátria comum de to-dos os humanos. A barbárie dos índios não anula sua dimensão humana, só os torna mais vulneráveis à opressão e à injustiça de quem os escraviza. Finalmente, a propaganda cristã é um direito e um dever dos europeus da época.

Podemos perceber, pelo que foi dito supra, que Vieira se inscreve na linha-gem dos grandes estudiosos que tematizaram a ética da conquista da América, exercendo, no horizonte do mundo luso-brasileiro, um papel comparável ao de Vitória e de Las Casas no mundo hispânico.

Vieira compreende claramente as dificuldades da presença dos portugueses no Brasil. Pouco numerosos, precisavam do apoio e da colaboração dos naturais da terra para poderem se instalar num mundo selvagem, e aí habitar. Precisavam 15 CALAFATE, Pedro, “A mundividência de António Vieira”, in CALAFATE, Pedro (dir.), op. cit., p. 721.16 CALAFATE, Pedro, “A antropologia...”, in id., op. cit., p. 39 e segs.; p.722 e segs. Cf. também BRAZ TEIXEIRA, António, op. cit., in CALAFATE, Pedro, op. cit., p. 656 e segs.

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de colaboração pacífica e enfrentavam as dificuldades de comunicação – pois ignoravam as línguas dos índios – e enfrentavam a primitividade e a barbárie de alguns costumes, como, por exemplo, a antropofagia ritual dos inimigos.

O enorme esforço de aprendizagem de línguas indígenas, de instauração de escolas e hospitais, de proteção dos mais frágeis, levado a efeito pelos jesuítas, encontrou na palavra estupenda de Vieira sua celebração e sua defesa.

Uma última observação: a oratória de Vieira apóia-se numa hermenêutica sacra, da qual assinalamos duas características: primeira, a narrativa bíblica é utilizada como modelo inspirador da ação ética do homem no mundo, mediante a interpretação dos eventos do tempo presente à luz dos paradigmas de ação válida encontrados nas narrativas do texto religioso; segunda, o texto bíblico narra exemplos de atuação providencial de Deus na história, orientando o agir humano numa via salvífica que abarca a humanidade como um todo, para além das diferenças evidentes de estruturação da vida social, cultura, raça, etc., que opõem os diferentes povos.

Para nosso autor, o homem é pessoa, dotado de razão e alma e a liberdade é seu apanágio fundamental.

Na nova etapa da vida mundial em que nos encontramos, na qual se faz ur-gente o diálogo e o entendimento entre povos de diversas culturas, confissões religiosas, raças e perspectivas, o verbo iluminado e o exemplo de Vieira, com todas as limitações que sua época e seu tempo impuseram à sua reflexão, perma-nece um marco em direção a um mundo futuro de convivência e liberdade, que ainda buscamos.

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vieira e Las Casas: a questão indígena

A afirmação de Vieira dos direitos dos índios inscreve-se na linhagem do debate que o precedeu, em que a Escola de Salamanca desempenhou papel crucial.

O “século de Ouro” do pensamento espanhol, que se desenrola do século XVI até a primeira parte do século XVII, foi palco do embate de idéias entre aristoté-licos tradicionalistas, dos quais Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573) é um dos representantes, e a Escola de Salamanca da qual Francisco de Vitória (1480-1546), Francisco Suárez (1548-1617) e Luiz de León (1528-1591), foram os expoentes.

Amigo de Francisco de Vitória. Las Casas se inscreve nas hostes dos religiosos que, entre 1511, até 1550, se ocuparam da questão ética da conquista. Entre 1511 e 1534, sucessivas denúncias de abusos acompanharam a colonização espanhola: Fr. António de Montesinos, Fr. Alonso de Loyosa, entre outros dominicanos, e o bispo Juan de Quevedo, precederam Las Casas na sua atuação. Reiteraram a exigência de uma ética que orientasse a presença e ação dos colonizadores na América, bem como a exigência da salvaguarda da liberdade dos índios. O fulcro da discussão é o tema da guerra justa. Ou seja, trata-se de responder à questão: em que condições a guerra contra os índios pode ser considerada justa? Respondem: quando os índios transgredirem o direito natural; quando a finalidade missionária o impuser, quando for necessário aumentar o número de vassalos do imperador; quando os chefes índios convertidos forem infiéis à Igreja. Vivendo em atraso cultural, os índios precisariam ser governados pelos mais evoluídos, de modo a facilitar a evangelização.

Entre 1511 e 1548, contudo, sistematicamente foram feitas denúncias contra os abusos dos conquistadores. E se alguns autores consideram a conquista eticamente lícita, outros, como Las Casas, a vêem como “ilícita (injusta, tirânica), porque sua regulação legal vigente se opõe aos princípios éticos do direito natural...”17. Assim, Las Casas propõe “a supressão das conquistas e sua substituição pela (...) ‘penetração pacífica’...”, o tratamento amistoso dos índios.

As teses de Sepúlveda, apoiadas na ética, na política e nas constituições de Aristóteles, são libelo contra o pacifismo e afirmação do direito dos civilizados de “submeterem, pela força, as nações atrasadas e, em consequência (...) [a afir-mação] de que a guerra contra os índios é plenamente legítima...”18, assim como sua escravização.

17 VV.AA., La Ética en la conquista de América, Madri, CSIC, 1984, p. 162.18 GUY, A., Histoire de la philosophie espagnole, APLTTM, Toulouse, 1983, p. 63.

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A Escola de Salamanca caracterizou-se pelo fecundo diálogo entre o tomismo e o Renascimento; foi centro irradiador de cultura, desde o século XV, tornando-se, no Século de Ouro, o grande polo da Escolástica espanhola. O eixo em tomo do qual, no século XVI, essa Escola gira, é a obra de Francisco de Vitória, cujos trabalhos, no campo ético-jurídico, serão especialmente importantes e originais. Na polêmica com Sepúlveda, após a condenação, em 1548, das teses deste último pelas Universidades de Salamanca e Alcalá, Las Casas apoia-se nas idéias de Vitória.

Francisco de Vitória pronuncia-se, pela primeira vez, entre 1535 e 1536, afir-mando o direito dos índios à liberdade, à igualdade, à posse de bens e à escolha de ocupação e governo, uma vez que constituem comunidades autônomas. Para Vitória, a barbárie dos índios não os faz perder seus direitos como homens, pois, a seu ver, o Imperador não é o senhor do mundo, nem o Papa tem poder tem-poral sobre pagãos. O não-reconhecimento do valor do cristianismo, por parte dos índios, não autoriza os cristãos a escravizá-los ou matá-los. A barbárie é remediável pela educação, pois todos os homens são iguais. Afirmando a igual-dade essencial das raças, e distinguindo entre diferença cultural e subordinação cultural, Vitória denuncia o etnocentrismo subjacente à dominação desses povos e considera ilícita sua expropriação. Antecipando as teses de Lévy-Strauss, e da escola fenomenológica, Vitória assinala que o pensamento indígena expõe uma das modalidades da razão humana; é diverso do nosso, mas ainda razão: “Esta racionalidade é indicada pela sua cultura, definida objetivamente pelas obras e instituições dos índios”19. O pensador sugere a evangelização pela não-violência, e levanta o problema da justiça e liceidade da guerra colonial. O modo inovador de Vitória encarar a colonização está expresso na denúncia da injustiça de guerra colonial, na condenação do racismo e do etnocentrismo. Afirma que a soberania papal e régia vale apenas para os cristãos; no que diz respeito aos povos das no-vas terras, estes não são vassalos nem submetidos ao Papa: “a tese defendida por Vitória é que nem no direito natural nem no direito positivo (...) se encontra uma base firme para um poder universal do imperador” (op. cit., p. 355). Somente no caso de uma livre eleição da soberania espanhola e da aceitação do cristianismo, poderiam os índios ser constrangidos à obediência; caso contrário, fazer guerra contra eles, é injusto e viola os direitos elementares.

Os espanhóis teriam, a seu ver, direito de estar na América, porque a terra, o ar, são propriedades comuns de todos os homens. Os colonizadores podem intervir, para defender e proteger inocentes, caso os Índios os matassem; podem também defender aliados, amigos e convertidos dos não-convertidos. A colonização se justificaria se promovesse e protegesse os índios, se oferecesse a livre escolha de novos soberanos, se facilitasse o comércio, a evangelização, a cristianização. Nessas condições, a presença dos europeus na América seria lícita.19 VV. AA., Penseurs hétérodoxes du monde hispanique, Toulouse, Univ. de Toulouse-le-Mirail, 1974, p. 100.

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Entre 1531 e 1549, vários missionários denunciaram os abusos dos conquis-tadores. Dentre eles, o amigo de Vitória, Las Casas, assinala a injustiça da guerra contra os índios, a sua escravização e a ocupação de seu território. Denunciando a conquista como eticamente ilícita, a partir dos princípios éticos do direito dos povos, propõe a evangelização sem armas, a cargo da Igreja. Insiste, de modo aná-logo a Vitória, “na identidade da condição humana, ultrapassando a diversidade de culturas” (op. cit., p. 96).

Quatro anos após a morte de Vitória, Las Casas e Sepúlveda se confrontam em longo debate.

Expressava esse debate a polarização de duas tendências éticas: a ética da força, por parte do colonizador, como “instrumento legítimo e necessário para a pacificação e plena incorporação do índio ao império” (op. cit., p. 233) e a ética da evangelização pacífica, como “único instrumento legítimo e necessário para a livre conversão e a plena incorporação do índio à Igreja”. Na primeira perspectiva, achava-se Sepúlveda, humanista, historiador e teólogo a serviço de Carlos V; na segunda. Las Casas, missionário dominicano, bispo de Chiapa e historiador das índias, amigo de Francisco de Vitória – este, antigo professor de Paris, Valladolid e expoente da Escola de Salamanca: “Sepúlveda sustenta que é preciso salvar os índios – inclusive à força e contra sua vontade – da terrível barbárie que os esmaga como indivíduos e povos. E que para alcançar esse objetivo, a justiça e a caridade fraterna nos obrigam a utilizar todos os meios necessários, inclusive os da violência institucional” (op. cit., p. 236).

Las Casas, contrapondo à tese do índio bárbaro o bom selvagem, que não podia ser considerado como rebelde e passível de submissão pela força, uma vez que não era súdito do rei; que não podia ser considerado como herege ou infiel, porque previamente não era cristão – foi “o teólogo-jurista espanhol do século de ouro que mais profunda, expressa e radicalmente reafirmou o direito à autono-mia, à auto-determinação e à plena independência, do índio e de seus senhores naturais, em todas as ordens da liberdade política, cultural, sócio-econômica e inclusive estritamente religiosa (liberdade de consciência, de religião e de culto)” (op. cit, p. 272).

Em vez de enfatizar os direitos dos colonizadores, Las Casas acentuou os deveres do Velho Mundo em relação aos índios, denunciando a tentação do poder. Tratava-se de implantai’ o Reino de Deus na terra, mediante a luta pêlos direitos humanos (id., p. 281).

As posições de Vitória e Las Casas foram objeto de ampla discussão nas Universidades da época. Em Portugal, Évora e Coimbra mantiveram estreito contato com a Universidade de Salamanca, no século XVI. Em Coimbra, Martin de Ledesma (1509-1574) questiona o poder temporal do Papa sobre o mundo e a liceidade da guerra de conquista; Antônio de Sto. Domingo, assim como

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Fernando Pérez e Pedro Barbosa, discutem o problema da escravidão e as con-dições da guerra justa. Na Universidade de Évora, destaca-se a atuação de Luis de Molina (1535-1600), afirmando o direito à liberdade de crença e discutindo, como também Pedro Simões, as condições da guerra justa.

As idéias de Vitória floresciam plenamente “na Universidade, Colégio Real e Colégio de Coimbra, na Universidade e Colégio da Companhia de Jesus em Évora e no Colégio de S. Bento, em Lisboa”; nesses centros, eram formados os religiosos que depois “iam pregar nas índias Orientais e Ocidentais portuguesas” (op. cit., pp. 476-477).

Para Molina, “são legítimos os escravos provenientes de uma região onde se saiba que os portugueses fizeram uma guerra justa; os escravos de direito penal; os condenados à morte resgatados; e, ainda, os escravos que, quando eram livres, se venderam a si próprios, e aqueles que foram vendidos por seus pais”20.

Vieira é a figura dominante do século XVII português. Entre 1653 e 1694, de-senvolveu no Brasil uma intensa atividade missionária, convertendo maciçamente os índios. Tratava-se de proteger os nativos, impedindo sua escravidão, e o jesuíta o fez, pronunciando sermões, escrevendo cartas, exercendo a diplomacia. O tema da “guerra justa” é retomado, associado ao exame das condições de legitimidade de escravidão e do tratamento dispensado aos índios, pêlos colonizadores. Nas suas cartas, acolhe como legítima a escravidão dos índios aprisionados em guerra justa; a dos que fossem malfeitores, a dos que não cumprissem seus deveres como súditos do rei, a dos que fossem antropófagos, a dos que auxiliassem os inimigos, a dos que impedissem a divulgação do Evangelho e a dos já escravizados por outros índios (op. cit., pp. 23-24).

Na verdade, o que Vieira buscava era a progressiva substituição do poder dos colonizadores sobre os índios, pela proteção das ordens religiosas, que media-riam as relações entre ambos (ibid., p. 27 e segs). Procura, então, levar os índios a aceitarem a soberania do rei de Portugal, comprometendo-se a respeitar a paz com os portugueses e, se convertidos, a serem fiéis ao cristianismo. Entretanto, o jesuíta esbarrou, como Las Casas, no conflito com os colonos, que não queriam desfazer-se de seus escravos.

O tema da guerra justa pode levar-nos a compreender, em Vieira, a coexistência, de um lado, da luta pela liberdade dos nativos e de outro, a aceitação da escravidão dos negros. Na perspectiva de Luís de Molina, por exemplo (op. cit., p. 64 e segs), a escravatura é considerada lícita se resultado de uma “guerra justa” defensiva, e que possibilite aos missionários o exercício de seu ministério. A guerra contra a África negra, contra os muçulmanos, garantia a legitimidade da escravatura negra; nessa perspectiva inscreve-se também Las Casas. No caso da América, a situação era diversa: os índios não eram inimigos, não se opunham aos cristãos, não eram infiéis: sua escravização era, pois, ilícita.

20 SARAIVA, A. J., História e Utopia, Lisboa, ICALP, 1992, p. 67.

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Vieira adota essa perspectiva, em parte. No século XVII, chegou a sugerir “a substituição dos escravos índios por escravos negros importados de Angola” (ibid., p. 55). Aceita, no entanto, valorizá-los como membros da Igreja, desde que balizados. Trata, mesmo, da vantagem da vida, apesar de escrava, caso o negro aceite o cristianismo: embora prisioneiro e arrancado de seu país, pode abrir-se à salvação. Compara os sofrimentos dos negros com os de Cristo e chega mesmo a dizer que os negros são “bem-aventurados”, se souberem reconhecer, no seu estado, “a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança” e aproveita-rem, na sua miséria a ocasião de santificação21. Em sermões, o padre chama-os de “irmãos pretos”, assinalando que o cativeiro do corpo não submete a alma e que, por misteriosos desígnios de Deus, o cativeiro pode dar acesso à fé cristã: “Os escravos devem aceitar a sua situação como um meio de salvação” (ibid., pp. 60-61). Vieira lembra, contudo, aos senhores, a necessidade de tratarem os escravos com humanidade, dado que todos os homens são livres, por natureza.

Fernando Cristóvão22 mostra Vieira como um homem do seu tempo, lutando contra a escravização dos índios, mas sem consciência clara da contradição en-tre a idéia de que todos os homens têm direito natural à liberdade e a prática da escravatura decorrente da guerra justa. Na mesma perspectiva, inscrevia-se Las Casas, no século anterior23.

Vieira, no entanto, nos seus sermões, já sugere “uma escalada para a libertação”, em três etapas, conforme assinala Fernando Cristóvão (op. cit., p. 393): a primeira, distinguindo a escravidão justa da injusta, ressalva a necessidade de atenção aos direitos espirituais dos escravos e condena os maus tratos a eles; a segunda, afirma o direito natural de todos os homens à liberdade; a terceira, enfatiza o papel da Igreja na libertação dos escravos convertidos, que culminou, dois séculos depois, na abolição.

Paulo Borges24 vincula a atuação de Vieira à sua compreensão filosófica e messiânica da história, na qual os missionários teriam um papel decisivo no que diz respeito à conversão universal, que favorecerá a generalização dos dons do Espírito. Nessa perspectiva é que deve ser compreendida a tarefa de proteção e conversão dos índios, a conversão dos negros e a afirmação de que “os homens de qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem e adoram a Cristo”25.

Em resumo, pode-se dizer que entre os séculos XVI e XVII, Vitória, Las Casas e Vieira foram, na Espanha e em Portugal, os expoentes de uma decisiva mudança

21 VIEIRA, A., in SARAIVA, op. cit., p. 57.22 CRISTÓVÃO, F., “O Padre Antônio Vieira e a escravatura dos negros”, in Cruzeiro do Sul, a Norte, Lisboa, INCM, 1983.23 Cf. op. cit., p. 384; cf. também VV.AA., Penseurs hétérodoxes du Monde Hispanique, p. 108, nota 90.24 BORGES, P., A Plenificação da História em Pe. António Vieira, Lisboa, INCM, 1995, p. 188 e segs.25 VIEIRA, A. Sermões, 4, pp. 509-537, in BORGES, P., op. cit., p. 197.

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de consciência. Os pontos axiais de sua meditação ética envolveram a discussão das condições da justiça quando em guerra e da liberdade da contraposição barbárie-civilização. Questionaram o direito de os mais civilizados imporem, pela força, seu modo de viver e seu império às nações mais atrasadas; questionaram a escravidão fundada em diferenças de cultura; abriram caminho-sobretudo Las Casas e Viei-ra – para a discussão contemporânea da tolerância e da convivência pacífica da pluralidade de culturas, abalando o etnocentrismo então vigente. Privilegiando a persuasão e a evangelização pacífica, a conversão pelo exemplo, assinalaram a primazia da paz sobre a guerra, da palavra sobre a violência. A importância do que semearam talvez só possa começar a ser medido no nosso século, onde a afirmação dos direitos humanos, da tolerância, da responsabilidade em relação à humanidade como um todo, assume o primeiro plano das discussões.

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as Reflexões de Matias aires

O Brasil do século XVIII é o Brasil das bandeiras: a conquista do sertão e a procura das riquezas alia-se à expan são política, artística e literária.

A aventura da conquista da terra está sincronizada com a aventura no plano intelectual e político – é o século das academias, onde poetas e prosadores se reu-nem para ler seus trabalhos e discutir as novas idéias que marcam os caminhos da Europa: as obras de Voltaire e de Rousseau inspirando as idéias revolucioná-rias da Inconfidência Mineira.

Êste movimento expansionista, que toma impulso a par tir do segundo quar-tel do século XVIII, no início do mesmo estava apenas esboçado. Na província de São Paulo, os je suítas ensinavam a tradicional filosofia escolástica, dando aos seus alunos uma formação humanística e o estudo apro fundado do grego e la-tim; havia pouca sensibilidade aos problemas sociais e políticos do século.

Nêste contexto nasceu Matias Aires Ramos da Silva Eça, em 1705, em São Paulo; foi o primeiro brasileiro a escrever uma obra original de filosofia, na qual reflete a formação que teve com os jesuítas, desenvolvendo um forte espírito crítico.

Em 1722 está em Coimbra, onde recebeu o título de “Licenciado em Artes”. Abandonando a faculdade, dedicou-se a aprofundar o estudo de autores greco-romanos; algum tempo depois, foi para a França, onde tomou contato com as ciências naturais, matemáticas e hebráico e com as gran des correntes filosóficas da época.

A Europa de 1730 é pura efervescência: morre uma con cepção do mundo para emergir outra; em todos os campos do saber – filosofia, matemáticas, física, étc. – surgem novos valôres que substituem os antigos. É a decadência da filo-sofia escolástica, sob influência do racionalismo inspirado em Descartes, Male-branche, Leibniz, Spinoza e a publicação das obras de Voltaire e da Enciclopédia dirigida por D’Alem bert e Diderot. Na Academia de Ciências de Paris predomi-nam as matemáticas e a física de Newton.

Em Portugal – onde Matias Aires se retirou para viver, gozando enorme for-tuna herdada do pai, na côrte de D. José I – o clima é o mesmo: o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas da terra, passando a favorecer a Ordem dos Orato-rianos, mais preocupada com a filosofia do tempo que com a tradicional esco-lástica.

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Nesta época Matias Aires começa a elaborar o seu livro: Reflexões sôbre a Vai-dade dos Homens26. A obra tem um duplo interêsse: é sensível à problemática do tempo, porque nela são abordados algumas questões a que os filó sofos do século XVIII vão dar muita importância: os temas relativos ao relacionamento homem-sociedade, ao direito divino dos reis, à decadência da nobreza puramente heredi-tária e a conseqüente valorização da aristocracia, conceito que desde o século XVII começara a se afirmar como depen dente do sangue, da posição econômica e, principalmente, das virtudes individuais, por oposição à nobreza – aparecem em seu livro, considerados sob o ponto de vista moral. As Reflexões... são refle-xões morais. O segundo aspecto in teressante do livro reside no distanciamento crítico, no olhar agudo e implacável, com que o filósofo encara o mundo da época. Nesta face de Matias Aires percebemos claramente a repercussão profun-da da formação humanística que teve com os jesuítas – um certo desdém pelas inquietações sociais e revolucionárias da época, uma recusa de hipervalorizar a razão, mestra do século, e a centralização do interêsse no homem e no seu valor ético. É o ser humano, dividido entre o amor, fôrça espiritual, e as paixões, das quais a prin cipal é a vaidade, que vai ser a preocupação fundamental de Matias Aires.

O ponto de partida para elaborar sua filosofia é a refle xão sôbre a vaidade, que leva o homem a preocupar-se apenas com a aparência das coisas. Aqui, a palavra vaidade tem um sentido muito amplo; não significa futilidade, preocupação com coisas vãs, apenas, mas antes, amor-próprio, aprovação de si mesmo, dependência da opinião alheia, engano, aceitação de opiniões errôneas, perda do sentido mais profundo das coisas – tanto no plano do relacionamento interpessoal, quanto no das ciências, pela exagerada importância atribuída à razão. A vaidade apresenta um duplo movimento: a) nega tivo, destruidor, quando é uma paixão da alma, um vício do entendimento, e se opõe ao amor; b) construtivo, quando o impulso vai-doso serve para fundamentar e incitar a repre sentação27 de atitudes de coragem, sabedoria, obediência, virtude, e defender de vícios: deslealdade, ingratidão, etc. A vaidade é pois uma paixão básica, sôbre a qual se constrói a vida humana.

Estabeleci o seguinte esquema gráfico para maior clareza:

VaidadeAmor Paixões

(movimento construtivo) (movimento destrutivo)

As vaidades podem, portanto, ser construtivas ou des trutivas; quando são construtivas, fundam-se no afeto, que em si mesmo é positivo, só se deturpando

26 1.a edição em 1752, em Lisboa.27 Que são os homens mais do que aparências de teatro?”, Ref lexões sôbre a Vaidade dos Homens, Ed. Martins, SP, s/d., p. 49.

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pela orientação vai dosa que recebe da inteligência; as vaidades destrutivas são as vaidades da inteligência orgulhosa, que levam o homem a uma pseudo-sabedoria e se reduzem a posturas pretensiosas.

As múltiplas vaidades que Matias Aires enumera podem, a meu ver, ser redu-zidas a modalidades das vaidades positiva ou negativa, e distribuídas do seguinte modo28:

A) Vaidades positivas ou construtivasa) vaidade dos místicos – é a de se sentirem superiores aos outros por causa

das boas obras que realizam. É cons trutiva, porque leva o homem a reali-zar benefícios aos outros e a si próprio;

b) vaidade da ascese – que Matias Aires distingue da vaidade dos místicos – é a recusa do consôlo e procura da solidão para obter a admiração do mundo. É construtiva porque pode conduzir a uma real ascese e porque apresenta um modêlo de santidade que, mesmo não sendo subjetiva mente verdadeiro, o é, para todos os efeitos, aos olhos do não asceta, servindo-lhe de exemplo;

c) vaidade da honra – é a maior preocupação com a honra que com a vida: em conseqüência, maior preocupação com a opinião ou conceito que os outros têm da pessoa ou que a pessoa tem de si próprio que com a vida, dom maior, existência no ser. É construtiva na medida em que apresenta um código de conduta, orientado por certos valôres morais, que serve para a grande maioria, permitindo, dêste modo, a vida em sociedade;

d) vaidade da ação heróica – é o desejo de imortalidade, pelas ações valoro-sas. É uma vaidade inútil, porque, como diz Matias Aires, sempre houve combates e batalhas, ven cidos e vencedores, na história no mundo. Pouco sabemos, no entanto, das maiores civilizações e seus heróis – no mun do tudo é fluxo, tudo está em contínua mudança, e os feitos se perdem num contôrno nebuloso e pouco preciso29. É uma vaidade construtiva, porque leva os homens a realizarem obra civilizadora;

e) vaidade do reconhecimento – é a daquêles que por confessarem o recebi-mento de um benefício, já consideram paga a dívida pela própria confis-são. É construtiva, porque torna público o merecimento de alguém;

f) vaidade da origem – surgiu da distinção entre o sangue vil e o sangue nobre, fundada não no sangue, mas no dinheiro. A vaidade da nobreza é a vaidade do luxo, é uma superstição formada de muitas vaidades. O

28 Trata-se, é claro, apenas de uma tentat iva de s istemat izar o texto assistemáti-co de M. Aires, que apresenta, no l ivro todo, uma sucessão pouco ordenada de ref lexões mais ou menos no est i lo das máximas de La Rochefou cauld. Indicarei justif icativas que me levaram a colocar certas vaidades como positivas.29 Diz Matias Aires: “O s m onu m e nt o s , qu e f a z e m d a Hi s t ór i a a m ai or p ar t e e a m ai s visível, não só se estragam mas desaparecem e de tal sorte que nem os vestí-gios deixariam por onde ao menos lhes recordemos as ruínas. Não têm mais dura-ção as cinzas dos heróis...”, op. cit., p. 50.

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sangue de todos os homens é igual, e as distinções estabelecidas entre sangue vil e nobre são pura vaidade. A nobreza é vã enquanto se funda em mitos, brasões e só pode merecer respeito, diz Matias Aires, quando é uma nobreza resultante da nobreza das ações. Neste caso, é qualidade pessoal, não hereditária, e depende do heroísmo de cada um. A vaidade da origem é uma vaidade construtiva enquanto fôr uma primeira suges-tão, através das lendas, brazões e mitos do passado heróico, para a nobreza fundada na virtude individual e no espírito, conquistada pouco a pouco em cada um;

g) vaidade do conquistador – é a daquêle que procura reunir, sob suas or-dens, tôdas as terras, homens e países, como se apenas nêle estivesse plenamente realizada a natu reza humana, cabendo-lhe, dêste modo, por direito, o domínio do mundo. É construtiva porque permite a unifica-ção de povos diferentes, promovendo a fecundação recíproca de cul turas, enriquecendo-as;

As vaidades positivas, embora subjetivamente não sejam virtudes, têm a possibilidade de apresentar certos valôres e certos modelos de conduta virtuosa perfeitamente aceitáveis como tais.

B) Vaidades negativas ou destrutivas – são as se guintes:a) vaidade da sabedoria – é a daquêles que acreditam saber mais que os

outros, enganando-se, porque “o que bus cam é a utilidade e o aplauso” (ibid., p. 175) e o seu valor se mede pela extensão e não pela qualidade das obras que escrevem. Além disso, “o que a ciência nos traz é sabermos errar com método” (ibid., p. 166) – isto se prova pelo desacôrdo entre os filósofos e entre os sábios em geral. Por outro lado, não conhecemos as coisas tais quais elas são mas apenas os efeitos que produzem em nós. Por isso, tôda ciência é vai dade e se perde tentando compreender aquilo que a inteli gência não pode penetrar30.

b) vaidade dos letrados – que pode ser:I. vaidade metafísica – quando tem por objetivo as discussões vãs, as opi-

niões mal fundadas mas que impres sionam as pessoas não iniciadas nos temas abordados;

II. vaidade da obstinação – é a de insistir no erro;III.”vaidade de adquirir nome” – é a de mostrar-se sábio aos olhos dos ou-

tros; ostentação de ciência para obter reputação;

30 Talvez pudéssemos reconhecer aqui cer ta antecipação de Kant, bem como na recusa de atr ibuir ao entendimento humano o conhecimento da coisa em si. A valorização do amor, como meio de nos levar à comunhão com as coisas, talvez possa indicar a mesma contraposição feita por Kant na Crítica da Razão Pura e na Crítica da Razão Prática entre o entendimento – incapaz de levar ao conhecimento da coisa em si – e a lei moral, fundada no afeto (imperativo categórico), que permite-nos reconhecer a validade das idéias de Deus, Alma e Mundo corno Totalidade.

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c) vaidade da certeza e da sutileza – nosso conhecimento das coisas é im-perfeito e duvidoso, mas a vaidade não con fessa a sua ignorância, fin-gindo saber tudo31. Prefere o êrro com aspecto requintado que a verdade formulada tôscamente;

d) vaidade da malícia – preferência em ser tido como malicioso, porque a malícia revela agudeza e inteligência, prevendo antecipadamente o mal;

e) vaidade da justiça – é a de parecer justo, sem ser;f) vaidade de agir mal – as más ações também são me moráveis, pela sua

gravidade, como as boas;g) vaidade da ingratidão – ter recebido um benefício significa ter estado

numa posição inferior à de quem o fêz; portanto humilha e fere a vaida-de.

Quanto à sua extensão, podemos dividir as vaidades em:universais – a) são as que unificam os homens de um país, cidade ou nação

entre si;particulares – b) são as próprias de cada indivíduo, dando origem às discór-

dias entre os homens32.No progresso da vaidade é possível distinguir as seguintes etapas, deduzi-

das das Reflexões:nascimento – a) estado sem vaidade, porque pré-refle xivo;estado de inocência – b) é a época da vaidade latente, não desenvolvida ain-

da. A alma não está preparada para receber as impressões da vaidade;aparecimento da reflexão – c) princípio da vaidade, que se manifesta e de-senvolve. Dura sempre, até o fim da vida e mesmo depois da morte pro-curamos eternizar-nos pelos tú mulos suntuosos ou ações heróicas prati-cadas, que perduram na memória dos homens.

A vida social também está fundada na vaidade. O contato entre os homens faz emergir a corrupção latente em todo homem, dando origem ao ódio, à soberba, crueldade e inveja. A vaidade permite a estruturação da sociedade em diversas camadas, estabelecendo a desigualdade entre os homens, porque é próprio da vai-dade separar e distinguir as coisas que são semelhantes, ocultando o verdadeiro ser. Por outro lado, permite a conservação da sociedade, porque faz os ho mens in-terdependentes pelas opiniões e conceitos que emi tem a respeito uns dos outros: a vaidade do saber, a vaidade da lealdade, da reputação, etc., regulam suas ações. A fonte das disputas e do ódio é a vaidade ofendida. Por isso “a vida civil se reduz a um cerimonial, composto de genuflexões e de palavras” (ibid., p. 64).

31 Diz Matias Aires: “não vemos, nem buscamos os objetos, mas a sombra dêles”, op. cit., p. 59.32 Diz Matias Aires: “A vaidade é de todo o mundo, de todo tempo, de tôdas as profis sões e de todos os estados”, op. cit., p. 76.

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Os seres humanos são animados por um mesmo princí pio, por isso sua forma é semelhante, bem como suas paixões e vaidades. Estão situados num mesmo mundo, a que todos têm direito, e sujeitos ao fluxo do tempo. A vida de cada um é uma alternância constante de prazer e alegria – infelici dade, dor. As diferenças entre eles, dissemos, são estabeleci das pela vaidade. Assim, o homem muda de atitude, quando muda seu traje, porque tornou diferente o seu parecer. A vaidade leva continuamente os homens a se identificarem não com o seu ser, revelando-o no parecer, mas, antes, identificados com o parecer, confundem-no com o seu próprio ser33.

Contudo, os reis, porque representantes da divindade, diferem, no entender de Matias Aires, dos homens comuns no pensamento, esfôrço, grandeza. Sua vaidade é justa, por que ocupam um lugar sagrado. Dependem diretamente de Deus, contràriamente aos outros homens, que dependem da aprovação da so-ciedade: é por ela que conservam sua digni dade, reputação ou pôsto. Os verda-deiros reis são aquêles que enobrecem os homens; êste seu poder é concedido por graça divina. Matias Aires considera os reis como sêres à parte, em contra-dição quase com as idéias que tem a respeito da vaidade dos homens. Talvez isto se explique pela grande admiração que votava a D. José I – de Portugal, ou pela crença, geralmente aceita em seu tempo, no direito divino dos reis. O rei é a configuração do herói-sábio, que concilia, como entre os antigos, a virtude e o poder.

Opondo-se a Platão, para quem os sábios devem reinar, Matias Aires afirma que “os sábios da terra não são mais próprios para o govêrno dela”. Cruel e ímpio, o cientista é capaz de dar ao erro uma aparência de verdade34.

Por isso, o poder, que na sua origem representava a divin dade, tendo um ca-ráter sagrado, na medida em que se difunde por uma hierarquia representativa do govêrno, degenera, caindo na mão de cientistas, contaminados pela vaidade da ciência, corruptos e em contínuo desacôrdo.

Trata ainda da vaidade em relação ao amor e à beleza. É difícil, diz o filósofo, falar do amor, porque nos invade e domina totalmente, impedindo-nos de re-fletir com clareza. Não é comparável a outra coisa qualquer, por isso falamos do amor sempre através de imagens, aproximativamente. Diverso das paixões, tem um objeto corporal; é a fôrça con servadora do mundo35, pois penetra todo ser, 33 Id., op. cit., p. 96: “a máscara, que encobre, f ica identif icada, e consubstancia l à coisa encoberta (...) e assim não olhamos para o homem; olhamos para aquilo que o cobre” (ibid., p. 122).34 Id., ibid., p. 180. Para M. Aires , o c ient ista é ident i f icado com o sof ista e o re i com o sábio verdadeiro, cujo poder é sagrado, participando da sabedoria infinita de Deus. O rei é o símbolo do amor; o cientista é o símbolo da vaidade.35 id., op. cit., p. 122: “ Tudo entra em nós ou por fôrça do amor, ou por fôrça da vaidade; a quem a vaidade não vence, vence o amor”.

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que é tanto mais perfeito quanto mais capaz de amor. É amável tudo aquilo que nos causa admiração.

O amor pode ser:medíocre – a) quando se ocupa do prazer dos sentidos e, nascendo da posse do objeto amado, é um impulso quase instintivo, que pode ser saciado e provocar uma certa inquie tação ou dor. Depende sempre de outro ser;sublime – b) quando é contemplação do objeto de amor, emergindo das profundezas da alma e encontrando sua felicidade num plano puramen-te espiritual.

A infância é a idade do amor e da esperança, é puro entusiasmo pelas coisas. Mudamos constantemente o objeto do nosso amor porque a todo momento es-tamos sendo dife rentes do que fomos no anterior e êste puro movimento é vida. Aqui vemos claramente o antigo princípio aristotélico: vida é movimento e o que atrai nosso agir é um objeto amável.

O amor e a vaidade se apresentam como princípios opos tos, mas profun-damente interdependentes: “ama-se por vai dade, e também por vaidade não se ama” (ibid., p. 114).

Tratando da beleza, diz que o amor nasce da beleza e depende dela, para sua duração e florescimento. Neste ponto Matias Aires não é muito claro, pois con-funde a beleza com ser belo. É configurada num ser humano: daí o filósofo cha-má-la de “soberba, vaidosa, ímpia e arrogante”. Certamente aqui não é criticada a própria beleza como tal, mas estamos diante da personificação de possíveis atitudes desagradáveis de uma pessoa bela. Logo em seguida, trata da vaidade da mulher bela – com quem parece identificar as personifica ções da beleza. A mu-lher bela é, diz o filósofo, quase insu portável, e acaba por afastar o amor. A be-leza é vaidosa, porque as próprias paixões e os próprios vícios, iluminados pela proximidade do belo, servem para torná-lo ainda mais evidente. A beleza escapa à nossa compreensão, porque se apresenta a nós como uma unidade e é próprio da razão dividir para compreender. É um encanto, cujo poder é tão grande que ninguém pode resistir. Daí estar tão próxima da vaidade e das paixões (impulsos básicos, motivadores do agir).

A filosofia de Maitas Aires gira em tôrno de dois pontos fundamentais: a vaidade e a corrupção humana. Para êle, o homem tem uma natureza a tal ponto corrompida que só a Providência o arranca à vaidade; tem ciência prévia do mal, mas aprende a virtude. Tudo nêle é vaidade, inclusive a pró pria razão (e aqui o filósofo se opõe frontalmente ao “século das luzes”), que o conduz a um tipo de conhecimento muito falho. Na verdade, só conhecemos a existência, não a natu-reza das coisas. O universo em si é uno e só pode ser conhecido como totalidade, de modo que qualquer tentativa de conhe cimento global das coisas, segundo o

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ponto de vista parcial das ciências, é invalidado desde o princípio. Conhecer é co nhecer a sombra das coisas36.

A natureza humana tende para o mal; para escapar a esta perversão natural o homem deve refugiar-se na religião (temor de Deus) e nos bons costumes (temor dos ho mens)37.

Seu livro enfoca, a partir do problema da vaidade e da corrupção natural de todo ser humano, os mais variados temas: o direito divino dos reis, a idéia da igualdade entre os homens, a libertação do homem pela graça – marcados por um certo pessimismo e pela recusa constante do racio nalismo que caracterizou o século em que viveu. Elabora, assim, uma filosofia de fundo moral (Reflexões sôbre a Vai dade dos Homens ou Discursos Morais Sôbre a Origem da Vaidade), em oposição ao espírito do século XVIII, mas sen sível à problemática que o pre-ocupou.

Matias Aires tem sido freqüentemente deixado de lado e esquecido; aqui, procuramos recordar suas idéias fundamen tais, e certos aspectos de uma ori-ginalidade que as faz inte ressantes e válidas até hoje. Reflete um traço cultural que nos marca ainda: o distanciamento face às grandes linhas do pensamento europeu, a necessidade de viver certos estilos de vida já ultrapassados pelos es-trangeiros e a exigência im portantíssima de afinar-nos aos problemas do tempo. Além disso, o fato de Matias Aires ter tratado o problema da vai dade como algo inerente à natureza humana permite-nos desligar Reflexões do seu contexto his-tórico e apreciar o problema em têrmos da sua validade universal.

Difere da maioria dos pensadores que viviam na Europa de sua época. Sua cosmovisão é fruto de uma aventura, ou sada e enriquecedora: o esfôrço reflexivo pessoal sôbre suas idéias correntes, antecipando posições que florescerão plena-mente na obra de Kant, o grande renovador que marca o início de uma nova época filosófica.

36 Aqui percebemos outra vez nit idamente a antecipação de Kant em Matias Aires – a impossibilidade de conhecer a coisa em si e o conhecimento apenas da sombra ou representação das coisas. É a imanência, no real, do mundo das idéias platônico, que se revela apenas como sombra ou representação. A idéia do Mundo como To-talidade, impossível de ser at ingida – como se demonstra na Crítica da Razão Pura – também está presente, na impossibilidade, reconhecida por M. Aires, de um conhecimento do universo uno pelas ciências, que dividem o real para captá-lo. Tal como em Kant, nossa intel igência não pode penetrar o real como totalidade, nem captar sua estrutura mais íntima.37 id., ibid., p. 86: “Para obrarmos bem não temos mais que consultar a natureza e fazer o contrár io”. Veja-se a máxima jesuíta “agere contra naturam”, nos Exercí-cios Espirituais de Santo Inácio, onde a virtude é conce bida como uma reação contra a natureza, a fim de se atingir um plano sobrenatural.

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a metafísica de tobias Barreto

A obra de Tobias Barreto inscreve-se no movimento que se chamou Escola do Recife, do qual participaram Silvio Romero, Clóvis Brevilacqua, Graça Aranha, entre outros, no final do século XIX e que se caracterizou por uma tentativa de crítica à metafísica clássica.

Na reflexão inicial de Tobias Barreto, esta crítica se faz primeiramente através de uma aproximação ao espiritualismo e pela recusa da subordinação da filosofia à teologia, expressa no artigo polêmico: “Teologia e Teodicéia não são ciências”. Seu interesse em fazer da filosofia uma ciência leva-o a uma certa simpatia pelo positivismo, no que tange à crítica religiosa. Mas, já nesse namoro, Tobias Barreto assinala o interesse pela metafísica, como marco distintivo do seu pensar. Mas qual metafísica?

A breve aproximação com o ecletismo espiritualista não resiste ao impacto da crítica veiculada então, na Alemanha, pela esquerda hegeliana: Strauss, Feuerbach e, na França, por Taine, Renan.

Assim, a metafísica encarada como ciência das essências, meditação sobre o ser, reflexão sobre o supra-sensível, vai ser enfaticamente rejeitada por nosso autor. É polemizando e ridicularizando o tomista Soriano de Souza, no trabalho “O Atraso da Filosofia entre nós”, que Tobias indica a questão que o inquieta: o sentido da Filosofia.

Um escrito de Silvio Romero, asseverando que a metafísica estava morta, é tomado como ponto de referência para Tobias Barreto reafirmar a metafísica. Mas não a metafísica tradicional.

É a época, então, do surto do positivismo no Brasil: Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Pereira Barreto publicam, e as novas idéias repercutem em diversos pon-tos do país: Rio de Janeiro, Bahia, Recife. As críticas ao espiritualismo e ao tomismo são marcantes; e é nesse clima intelectual que nosso autor rejeita o positivismo, despertando para uma reflexão sobre a metafísica, entendida como “discussão de problemas filosóficos”38, discussão dos limites, alcance e valor da filosofia.

Impossível retomar o tomismo; impossível aceitar o materialismo positivista; impossível a aproximação ao ecletismo, dado seu caráter mais literário que filo-sófico.38 PAIM, A., A Filosofia da Escola do Recife, Londrina: UEL, 1999, p. 41.

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É na obra de Kant que o filósofo pernambucano vai buscar a possibilidade de renovação da metafísica. A inspiração kantiana é clara no pensamento maduro do nosso autor: vai entender a filosofia como crítica do conhecimento e reflexão sobre a cultura. No seu Recordação de Kant, Tobias Barreto encara a metafísica como filosofia crítica, reflexão sobre as ciências. Considera a oposição natureza/cultura e, a partir daí, as ideias de finalidade, liberdade e evolução do homem.

A restauração da metafísica consiste, para o filósofo brasileiro, na redução da filosofia (e da metafísica) à teoria do conhecimento, que tem por objetivo discu-tir os limites, o valor e o alcance do conhecimento humano. As ciências não se explicam a si próprias, daí a necessidade da filosofia. Tal filosofia não é “ciência do absoluto (metafísica), nem explicação do universo (cosmogonia), nem qual-quer dessas grandes sistematizações, conhecidas pelos nomes dos seus autores (darwinismo, comtismo, spencerismo); mas teoria do conhecimento, disciplina mental, sobre a qual se apoiam todas as ciências constituídas e por constituir”39. Criticando o psicologismo e a possibilidade de uma ciência da alma, o brasileiro afirma a unidade da alma e do corpo, a consciência como função do organismo humano.

A nova metafísica critica, como assinalamos, no neotomismo, a subordinação da filosofia à teologia; para nosso autor, Deus não é objeto de conhecimento, mas de amor. Por isso, refuta as provas tomistas da existência de Deus, bem como a prova da existência de Deus proposta por Santo Anselmo e retomada por Des-cartes, baseada na idéia de perfeição. Esta prova está fundada num paralogismo, segundo Tobias.

Por sua vez, o positivismo não foi capaz de superar validamente a metafísica tradicional; ao invalidá-la, o positivismo recusou, simultaneamente, qualquer me-tafísica, expondo o nosso autor as limitações do materialismo vulgar de Comte.

Para Tobias Barreto, a solução não consistiu numa simples volta a Kant, mas em inspirar-se em Kant, apontando novos caminhos à reflexão e respondendo à crise filosófica do final do século passado.

Seu grande mérito foi ter aberto a discussão em torno da importante corrente de que foi contemporâneo, o neo-kantismo, cuja ressonância, no Brasil de hoje, se faz sentir numa das mais importantes escolas atuais de pensamento: o culturalismo.

39 BARRETO, T., apud PAIM, A., op. cit. p. 90.

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sílvio romero e a escola do recife

A obra de Sílvio Romero inscreve-se no movimento filosófico chamado de “Escola do Recife” pelos estudiosos da História da Filosofia no Brasil. Abrangen-do o final do século XIX e o início do século XX, foi inspirada na obra de Tobias Barreto e seus autores relevantes, Clóvis Bevilacqua, Artur Orlando e o próprio Silvio Romero, dentre outros. Desenvolvida em Recife, a partir da obra de Tobias Barreto, teve ressonâncias em Sergipe e no Rio de Janeiro. A efervescência do cientificismo encontrou em Silvio Romero um pensador que ao lado da valoriza-çào da ciência, que o encaminhou para o “entendimento da filosofia como síntese da ciência”40, o levou a fazer a crítica do positivismo à luz do neo-kantismo e a desenvolver estudos no âmbito da Sociologia.

É na perspectiva do neo-kantismo e do cientificismo que Romero assinala a morte da metafísica clássica. Entende como válida a metafísica kantiana que se reduz à crítica das ciências e limita o conhecimento válido ao mundo fenomênico. Tal crítica, Romero a chama de metaempírica, cuja finalidade é sintetizar e unificar os resultados das ciências. Nessa linha de reflexão, abandonará a investigação da cultura na perspectiva desenvolvida pelo neo kantismo, restringindo-se a um culturalismo sociológico, no dizer de Paim (op. cit., p. 413), onde “a cultura será objeto de descrições sociológicas sempre mais circunstanciais e abrangentes”.

O interêsse filosófico da obra de Sílvio Romero consiste, a nosso ver na crítica ao positivismo, exposta na obra Doutrina contra Doutrina, publicada em 1894, que aponta para o declínio do pensamento de Comte, no contexto da crise do cienti-ficismo e da emergente reflexão espiritualista. Essa crítica encontrará em Farias Brito seu maior expoente, pois, partindo de uma perspectiva inicial semelhante à da Escola do Recife, Farias Brito vai fazer a ponte para a inscrição do pensamento brasileiro nas grandes linhas do filosofar contemporâneo ocidental.

Em Sílvio Romero, a metafísica é entendida como “uma disposição natural do espírito humano a sondar as raízes últimas e a natureza intrínseca das coisas”41. A síntese do saber científico caberia à filosofia e à metafísica, a investigação de problemas “ïnsolúveis”, ïndestrutíveis”42. Tal investigação, embora não científica, 40 PAIM, A., História das Idéias Filosóficas no Brasil, Convivio | INL | Fundação Pró-Memória, 1984, p. 411.41 ROMERO, S., O. C., 2ª ed., Livraria Clássica de Alves e Cia., RJ, pp. 261 e segs., apud MACHA-DO, G. P., A filosofia no Brasil, p. 68.42 ROMERO, S., op. cit. p.274, apud MACHADO, G. P., op. cit, p. 69.

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corresponderia a uma tendência natural do espírito humano de indagar a respei-to das razões últimas das coisas, a uma atitude geral que assumimos perante o mundo e a vida. A referência a Kant evidencia uma vez mais a fonte romeriana. Movendo-se no âmbito de uma crítica ao cientificismo positivista, o qual, a nosso ver, constitui o desdobramento e a degradação última da redução kantiana do saber válido ao saber restrito ao mundo dos fenômenos, o retorno a Kant tentado por Sílvio Romero esbarra numa dificuldade epistemológica grave, assinalada pela filosofia contemporânea. A superação do cientificismo não pode se dar por um mero retorno à metafísica transcendental, mas implica numa nova fundação da metafísica, como bem Husserl e a escola fenomenógica tentaram, ou mesmo numa redefinição do próprio objeto da filosofia, conforme Heidegger. Nem mesmo os autores que se reportam a uma inspiração kantiana como Cassirer e Bachelard, para citar apenas alguns, cometem a ingenuidade de meramente repetir os en-sinamentos da Crítica da Razão Pura. Na opinião de Paim, Pinheiro Machado e Reale, a grande contribuição de Romero foi a proposta de um culturalismo sociológico. É nesse horizonte que pode ser considerado um precursor do cultu-ralismo, corrente filosófica de relevância no pensamento brasileiro atual. Como bem o assinala Pinheiro Machado, a ênfase “na perspectiva nacional da cultura” (id., p. 58) vai caracterizar a abordagem do pensador sergipano, constituindo, a nosso ver a antecipação de um dos temas relevantes na ulteritor discussão que se instala no século XX, a respeito das filosofias nacionais. Paim43 aponta o cultura-lismo sociológico de Romero como ponto de partida da sociologia brasileira e a reflexão de Alcides Bezerra, seguidor da escola, como uma restauração do cultu-ralismo filosófico. Para Reale44, o conceito de cultura em Romero é essencialmente sociológico, e não mais filosófico, como em Tobias Barreto. É na sua História da Literatura Brasileira que Romero tenta conciliar Kant e Spencer, autores aos quais se refere na obra madura.

A obra máxima de Sílvio é a História da Literatura Brasileira, na opinião de diversos autores (op. cit., p. 58); ensina a ver “um Brasil que não sabíamos que existia”45, esclarece o significado da cultura brasileira, evidenciando a formação do seu ethos46. Por literatura Sílvio Romero entende “todas as manifestações da inteligência de um povo: política, economia, arte, criações populares, ciências...”47: ou seja, cultura, na acepção famosa de Herskowitz – toda criação humana. A tarefa que se propôs ao longo de toda a obra, foi a de crítica. Entendia por crítica a parte da lógica aplicada que, estudadas as condições que originam, e as leis que regem o desenvolvimento de todas as criações do espírito humano, científicas, artísticas, 43 PAIM, A., A Filosofia Brasileira, Lisboa, ICALP, 1991, pp. 108-109.44 REALE, M., Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, pp. 110 e segs.45 José Lins do Rêgo, in ROMERO, S., op. cit., p. 93.46 Gilberto Freyre, in ROMERO, S., op. cit., p. 94.47 ROMERO, S., História da Literatura Brasileira, RJ: Garnier, 1902, t.1, p. 9.

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religiosas, políticas, jurídicas e morais, aprecia as obras dos escritores que de tais fatos se ocuparam” (op. cit., p. 82). Ou seja, para Sílvio Romero, crítica literária pode ser compreendida como crítica da cultura. Na crítica de Romero, a “aplica-ção ao Brasil é a preocupação constante; as considerações etnográficas, a teoria do mestiçamento, já físico, já moral, servem de esteios gerais; o evolucionismo filosófico é a base fundamental” (op. cit., vol. 1, Prólogo, p. XXVI).

Caracterizando o povo brasileiro como resultado da fusão das raças branca, indígena [tupis-guaranís] e negra [grupo bantu], Silvio, escrevendo no final do século XIX, assinala que dentro “de dois ou três séculos a fusão étnica estará talvez completa e o brasileiro mestiço bem caracterizado” (op. cit., vol. 1, p. 55). A importância desta mescla é também indicada por Romero: não se dá apenas no plano físico, mas no psicológico, daí resultando um tipo humano singular. Na formação do povo brasileiro o “lugar de honra deve ser dado ao português; porque êle, sem ser o único, é o principal agente de nossa cultura” (ibid., p. 57). Assim, nossa lingua dominante é o português, mas podemos, como o demonstra Romero, encontrar cantos anônimos populares, misturando português, tupi e africano; contos e lendas de origem portuguesa, americana e africana. O traço dominante desse povo é o lirismo e a busca da liberdade.

No séulo XVII, o autor que expressa, no plano da vida e das idéias tal fusão, é Antonio Vieira, que “nascera em Portugal, mas educara-se no Brasil; era filho do Colégio da Bahia [...] É um dos nossos pelo destino, pelos acidentes da vida [...]”48. Vieira se destaca pela luta em favor dos índios, e Romero o vê como “um benemérito da liberdade e da consciência” (op. cit., p. 87). Inscreve-se, deste modo no grande debate que caracterizou na Europa do final do século XVI e início do XVII, a Escola de Salamanca e a atuação de Bartolomé de Las Casas; inscreve-se também na luta mais ampla pela liberdade, que se expressa em Palmares e na literatura e história do Brasil. Diz Romero: “Nações estrangeiras e poderosas investem contra a nova colônia [o Brasil]; é travada a luta contra os holandeses em Pernambuco e franceses no Maranhão [...]. Na luta contra os estrangeiros acrisola-se o sentimento nacional. Em todos estes fatos as tres raças aparecem quase no mesmo pé de igualdade. O entrelaçamento é perfeito, o brasileiro é já uma realidade.”49. Se Vieira é representativo do Brasil do século XVII, através de seus sermões e de sua luta em favor dos índios, Gregório de Matos, pela sátira e irreverência, pelo emprego de termos puramente brasileiros, é visto como “o ge-nuino iniciador de nossa poesia lírica e de nossa intuição étnica. O seu brasileiro não era o caboclo, nem o negro, nem o português; era já o filho do país, capaz de ridicularizar as pretensões separatistas das três raças” (ibid., p. 154).

A brasilidade encontra sua afirmação e expressão na poesia da Escola Mineira, no século XVIII. Aí estão presentes o lirismo e a tematização da liberdade, sinteti-48 Id., A história do Brasil, ensinada pela biografia de seus heróis, RJ: Agir, 1959, p. 80.49 Id., História da Literatura Brasileira, vol. 1, p. 131.

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zados os feitos e lutas e os povos que nos originaram. Para Romero, a história da literatura brasileira nada mais é que a “descrição dos esforços diversos do nosso povo para produzir e pensar por si” (ibid., p. 181). Daí êle assinalar o poema O Uruguai, de Basílio da Gama e O Caramuru, de Santa Rita Durão, como exemplos maiores da mestiçagem intelectual e resumo da nossa vida histórica. Por sua vez, a poesia dos inconfidentes expôs um ideal político que ainda fulgurava, pois, no dizer de Romero, “aquele punhado de sonhadores pressentiu, no vago de suas crenças, todas as vastas idéias que êste povo deve esforçar-se por levar a efeito [...] Independência da pátria, emancipação dos escravos, unidade federal, vida autônoma e democrática, prosperidade material, alento científico [...] tudo foi antecipado naquele devanear de heróis” (op. cit., p. 208).

Apontamos somente alguns exemplos da abordagem de Romero; sua obra é demasiado vasta para podermos abrangê-la no quadro restrito de uma comuni-cação. Acreditamos, porém, que a grande contribuição do crítico foi ter apresen-tado, através do painel da literatura brasileira, uma história social que nos leva a compreender, na perspectiva do evolucionismo que a inspira, o próprio ser do homem brasileiro. Se dos pontos de vista epistemológico e metafísico Romero não alcançou grande densidade, sua leitura magistral da cultura brasileira abriu caminho para a meditação da contemporânea escola culturalista, como o reco-nhecem Paim e Reale.

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Literatura e sociedade em sílvio romero

O exame de um livro de Luiz Murat, jovem poeta estudado por Romero, serve de exemplo do procedimento metodológico que Sílvio utiliza para estabelecer relações entre literatura e sociedade.

Romero começa apresentando um amplo painel do século XIX, apontando, como sua nota dominante, a doutrina da evolução nos planos da natureza, da vida biológica, da vida política, dos fenômenos artísticos e sociais.

Razão dessa efervescência em todos os campos do conhecimento e da vida cultural foi o surto e a afirmação dos estudos históricos. Por estudos históricos Sílvio entende as criações humanas, abarcando a psicologia, a moral, o estudo das línguas, mitos, religiões, folclore; em suma, “todas as manifestações da vida, todas as projeções da alma humana”50. Podemos talvez encontrar aqui um pre-núncio, em sua obra, da célebre oposição ciências da natureza/ ciências do espírito, proposta por Dilthey.

Romero está impressionado e pinta com vivas cores o cenário do final do século: o surto das ciências da natureza e o surto das ciências humanas, privilegiando a abordagem histórica, o exame comparado das contribuições das ciências da vida, as ciências morais. Estas últimas seriam superiores às ciências da natureza. Romero inverte, assim, a perspectiva dominante da filosofia moderna, que privilegiou as ciências físico-matemáticas, as ciências da natureza, inscrevendo-se decisivamente como precursor da contemporaneidade, onde a abordagem histórica, comparativa, hermenêutica, acha-se em primeiro plano.

Não se trata, para ele, de reduzir as ciências modernas ao modelo das ciências da natureza; estas, ditas “inferiores”, é que podem, recorrendo ao método histó-rico e comparativo, próprio das ciências morais, obter benefícios e “estupendo progresso”. Afirma como idéia diretriz, que compatibiliza as diferentes orientações das ciências, a noção de vir-a-ser, “da evolução constante, do desenvolvimento perpétuo” (ibid., p. 15).

No campo das artes, especialmente no da poesia, essa mutação, essa transfor-mação, é essencialmente evidente.

Assim, Romero indaga: “qual o estado atual de arte neste final de uma fase centenária da história? Ainda vive a poesia, que a ciência prometera tantas vezes matar? (...) Qual o estado destas questões na Europa e no Brasil?” (ibid., p. 16).

50 ROMERO, S., Literatura Contemporânea, RJ: Garnier, s/d, p. 16.

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Seu tempo é marcado pelo abalo nas velhas concepções de filosofia; pela as-censão do proletariado, pela profunda alteração da vida social. Aparentemente, o triunfo da ciência anularia as contribuições da filosofia, da arte, da religião. A poesia, sob a ótica do positivismo e dos críticos E. Scherer, Lefèvre, estaria inteiramente superada. Sobreviveria como expressão da vida primitiva da hu-manidade, como expressão da imaginação, da linguagem carregada de imagens, característica da criança e dos primórdios da humanidade. A ciência não precisa de poesia; é desenvolvimento de reflexão, que supera as faculdades do homem primitivo.

Contra essa visão evolutiva do saber e do homem, na qual ressoa a lei dos três estados, de Comte, é que se levanta Romero. Concorda que a poesia é uma das manifestações antigas da alma humana, como linguagem e religião também o são. No entanto, antigüidade e morte não são termos equivalente. A poesia, uma das expressões mais antigas de nossa humanidade, é também um componente essencial da vida humana: “acabará o último poeta, quando acabar o último ho-mem” (ibid., p. 22).

A rápida sucessão de escolas literárias é uma das características, na perspectiva de Sílvio, da literatura do século XIX. Assim, o classicismo e o Romantismo, nas suas várias manifestações, foram se sucedendo. O autor examina essa sucessão de autores e escolas na França, modelo paradigmático de nossa cultura, então.

No Brasil deu-se algo de análogo ao que se passou na França: a poesia da fase clássica foi sucedida por “cinco ou seis escolas [românticas], até entrar em 1870 em plena decadência” (ibid., p. 23).

A riquíssima história da poesia dos últimos 20 anos do século XIX é mostrada, por Sílvio, na sua relação com os eventos históricos – guerra do Paraguai, abolição da escravatura – e com os eventos políticos: decadência da monarquia, revolução e república. Face objetiva da história, tais eventos têm sua contrapartida na face subjetiva, o mundo do pensamento.

“Na ciência, na filosofia, nas questões sociais é igual o fervor. Há uma sede imensa de saber, de indagar das correntes novas da inteligência européia”1. Assim, a sucessão de escolas: positivismo, darwinismo, monismo, criticismo naturalista, entre outras, repercute entre nós; o pensamento alemão ressoa na filosofia e no direito, na história; a literatura realista francesa e a inglesa são estudadas. Diz Sílvio: “Em poesia todas as grandes escolas contemporâneas contam representantes no Brasil” (ibid. p. 25): a poesia científica, o parnasianismo, o pessimismo, o diletan-tismo, o lirismo tradicionalista, dentre outras orientações, são examinados.

A nova poesia, que emerge desse quadro sócio-histórico, encontra, segundo Romero, em Luiz de Murat uma de suas expressões.

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Essa nova poesia é uma retomada do lirismo, que rompe com as concepções de arte engajada, a serviço do social, da veiculação de princípios morais ou cien-tíficos.

O poeta é homem de seu tempo; na sua arte perpassa a problemática vivida por sua época; seu interesse não são as idéias, mas a emoção e o sentimento. O poeta, na visão de Romero, diz, no plano da emoção, a problemática de sua época. Desencadeia, pela obra, o sentimento da beleza, daquilo “que nos agrada (...), que em nós desperta o sentimento da admiração”.

Assim, a poesia não é meio para educação do homem (utilitarismo), não é serva da ciência (cientificismo), não está a serviço de ideais morais: “... a nova lírica nacional não pretende ser doutrinária, nem moralizante” (ibid., p. 34), não é expressão da melancolia, da morbidez, da tristeza (ibid., pp. 34-35).

Pode ser pessimista, uma vez que expõe “o fim de um mundo, não um mundo político (...), mas um mundo do pensamento, que se modificou radicalmen-te”(...)

“A revolução nas idéias, em marcha ascendente nos últimos tempos, acabou por alterar a emocionalidade...” (ibid., p. 36).

Na poesia de Luiz Murat, o lirismo expõe a superação da melancolia român-tica, mostra “o fervor pelas novas idéias, pelo progresso (...), pela história da emancipação humana...” (ibid., p. 44); e faz ouvir um brasileirismo, que é elogio do país, tomada de consciência de si por parte de um povo, entusiasmo e força, celebração do mundo.

A abordagem de Sílvio Romero caracteriza-se por essa metodologia: primeiro, apresenta um painel do século, caracterizando o grande contexto histórico, as notas dominantes da vida cultural mundial em que a literatura floresce; em se-guida, elenca os eventos marcantes no país e sua ressonância nas obras literárias; finalmente examina um caso concreto, exemplar, no qual a história, o acontecer, são expostos através da ótica de um sujeito criador. O individual e o social, a vida da cultura, aparecem entretecidos e espelhados, desse modo, na obra de arte, na literatura.

Em resumo, podemos dizer que, para Romero, a relação literatura – sociedade se explica pondo em evidência os grandes movimentos filosóficos, a luta entre as antigas idéias e a emergência do novo. No século XIX, esse embate é mostrado como luta entre duas concepções de filosofia, duas concepções de arte: uma, ligada ao surto cientificista da modernidade, privilegiando as ciências físico-matemáticas, outra, prenunciando as grandes tendências do século XX, valorizando a vida, afirmando a prioridade das ciências históricas, das ciências humanas.

Na literatura do século XIX perpassaria esse embate, especialmente na luta entre concepções de poesia. Para alguns autores, impregnados de cientificismo,

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a poesia seria expressão do imaginativo e do sentimento, não tendo mais lugar num mundo civilizado pela ciência, pela razão; para Romero, atento ao novo sopro de idéias, que a França, a Inglaterra e Alemanha lançavam, a poesia sempre terá lugar como componente essencial de vida humana, expondo, pela imagem, a pertinência do homem ao mundo da cultura e traduzindo em novo lirismo dimensões essenciais do ser.

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filosofia do Direito em sílvio romero

Nascido em 1851 e falecido em 1914, Silvio Romero é um dos expoentes da Escola de Recife, como já vimos. Essa denominação abarca os estudiosos de Fi-losofia que se congregaram em torno de Tobias Barreto, no final do século XIX, propondo um monismo evolucionista51.

Sergipano, Romero estudou no Rio e em 1868 ingressou na Faculdade de Direito de Recife, na qual Tobias Barreto frequentava o último ano; tornaram-se amigos. Concluída a faculdade, Romero foi nomeado promotor na cidade de Estância, em 1873. Tentou o magistério universitário em Recife, em 1875, mas o concurso que fez foi anulado.

Indo para Rio de Janeiro, nosso filósofo viveu em Parati como juiz municipal entre 1876-1879, quando se mudou definitivamente para o Rio. Na capital do Império, lecionou Filosofia no Colégio Pedro II, a partir de 1880. Com outros intelectuais, fundou, no Rio, a Academia Brasileira de Letras em 1879.

Advinda à República, elegeu-se deputado Federal por Sergipe, em 1878.Antônio Paim distingue quatro fases na obra de Romero: a primeira, de adesão

ao positivismo, corrente então imperante, entre 1869 e 1875, a segunda, de 1876 até 1886, de conciliação entre positivismo e evolucionismo; a terceira, de 1888 até o final do século, de ruptura com o positivismo e aceitação do evolucionismo de Spencer; a quarta fase, de 1900 a 1914 (op. cit., p. 202-208).

Braz Teixeira52 assinala a importância da segunda e terceira fases no que diz respeito à filosofia do Direito de Romero, correspondendo ao “período de apogeu e expansão da Escola do Recife”, no qual Romero e seus companheiros publicaram “as suas obras de maior significado”.

A obra do autor sergipano é complexa, ampla, caracterizada pela polêmica e busca da originalidade, de atenção à problemática brasileira e recurso a fontes europeias, nos mais variados campos do saber. Consultou e mostra conhecimento de estudos que se tornaram paradigmáticos, em seu tempo, passando de episte-mologia à lógica, biologia, ciências sociais, história, etnologia, crítica literária, antropologia, filosofia da religião. Escolhe, muitas vezes, como referenciais teóri-

51 Cf. PAIM, A., A Escola do Recife. Londrina: UEL, 1999, p. 200-201; BRAZ TEIXEIRA, A., A Filo-sofia jurídica brasileira do século XIX. Lisboa: CHCUL/FCT/HUMUS, 2011, pp 78-79.52 BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., pp. 78-79.

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cas de seu pensamento, autores pertencentes a correntes filosóficas opostas e até mesmo rivais, como Kant, Mill, Spencer, Hartmann e Ihering.

No prefácio à primeira edição do Ensaio de Filosofia do Direito, em 1895, Romero diz que pretende oferecer uma “nova compreensão da ideia do Direito e de seu desenvolvimento (...) a datar de 1880” em diante53. Nesse prefácio, reco-nhece a importância de Ihering para a “darwinização do Direito”, bem como das propostas de Benjamin Constant, “propagador do positivismo evolucionista” e das de Tobias Barreto na Escola de Direito do Recife, para a constituição de um “monismo evolucionista” (ibid., p. 14).

Romero assevera que não aceita o positivismo e que escolhe Ihering e Spencer como seus mestres, assim como Hartmann (ibid., p. 14 e segs). Quanto a Tobias Barreto, afirmando sua importância e amizade, para a constituição de seu pensa-mento, nosso autor aponta as diferenças entre as concepções filosóficas de ambos e reafirma sua autonomia em relação à obra de Tobias.

No prefácio à segunda edição do Ensaio de Filosofia do Direito, em 1907, Rome-ro põe em relevo as diferenças de apresentação da obra quanto à primeira edição; mas reitera que manteve as ideias defendidas na primeira edição, “reforçadas aqui e ali” (ibid., p. 19). Reafirma as fontes em Kant, Spencer, Darwin, Hartmann, Schopenhauer, Gobineau, Max Müller, dentre outros. Novamente pretendeu dissolver o problema de conciliar correntes rivais, através da busca dos autores mais significativos nas diferentes áreas a que recorreu. A amplitude das referências através das quais Romero mostra um saber enciclopédico, esbarra no problema da compatibilização das contribuições hauridas em correntes filosóficas diversas.

No que segue, tentaremos de expor sua filosofia do Direito.Para abordar o Direito, começa por situá-lo no contexto mais amplo da filosofia.

Recusa a formulação de um sistema, a vinculação estrita a uma escola. Entende a filosofia como expressão do espírito crítico, atividade constante. Inicialmente simpatizante do positivismo, afasta-se da corrente em favor da doação de uma perspectiva evolucionista, no horizonte do qual escreve seu Ensaio de Filosofia do Direito. Trata de sintetizar o criticismo kantiano e o evolucionismo de Spencer.

Desenvolveu uma teoria das criações fundamentais da humanidade, que constituem fenômenos irredutíveis entre si e compõem a civilização, ao longo de seu desenvolvimento: religião, arte, ciência, filosofia, política, moral, direito, in-dústria. Para ele, a filosofia é um saber geral, que unifica a totalidade das ciências: propedêuticas (lógica e matemática); naturalísticas (mecânica, física, geologia, mineralogia, geografia, química, biologia, psicologia); de transição (antropologia, etnografia, linguística); socialísticas (economia, política, arte, religião, direito, moral, ética).

53 ROMERO, S., Ensaio de Filosofia do Direito. São Paulo: Landy, 2001, p. 13.

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A filosofia tem como função sintetizar as ciências particulares. As ciências socialísticas obedecem, também elas, à ideia de evolução. Esbarram todas no incognoscível, limite do que é acessível e o conhecimento humano. Religião e ciências são formas de busca de compreensão do desconhecido, indagação sobre a origem e o destino do Universo.

Ciência, para ele, é “o Universo interpretado pelo raciocínio e pela observação”; filosofia, é “sua síntese racional”; religião, é “o embate com o desconhecido”, “a origem universal” (id., Filosofia Brasileira, p. 208). Crítico de metafísica clássica, sua reflexão se inscreve na perspectiva que atribui à filosofia a síntese do saber científico.

É nesse horizonte da classificação das ciências que é preciso compreender a filosofia do Direito de Romero.

Para ele, o Direito é fenômeno evolutivo, que se desenvolve em correlação com o desenvolvimento da sociedade e da vida cultural e política. Expressa a busca da liberdade, a criação da instituição que asseguram a coexistência social e possibilitam superar conflitos.

Expoente da Escola do Recife, movimento inspirado na obra de Tobias Barreto e com repercussões em Sergipe e no Rio de janeiro, onde lecionou, foi contem-porâneo o de Clóvis Bevilacqua, Artur Orlando e Fausto Cardoso, também como ele alunos de Tobias. Esses discípulos e companheiros intervieram na vida cul-tural brasileira, fazendo a crítica do ecletismo espiritualista inspirado em Victor Cousin e propondo um monismo evolucionista, constituindo a terceira fase da Escola e publicando nos anos 80 e início dos 90 do século XIX, suas obras mais significativas, conforme assinalam Antônio Paim (op. cit., passim) e António Braz Teixeira (op. cit., pp. 69-100), assim como Miguel Reale54. Romero e seus companheiros repensam o lugar e o significado do Direito na renovação cultural do país, que tentaram implantar.

No prefácio à primeira edição, publicada, como já vimos, em 1895, Silvio refere-se à Taine, Spencer, Ihering, Benjamin Constant, Tobias Barreto, como defensores de novas ideias. Escolhe Spencer como um de seus mestres, e afirma ter sido o introdutor de Ihering no Brasil. Este último, autor inspirado no darwi-nismo, considera as repercussões desta última concepção no Direito. Recusa o laço com o materialismo e estuda as novas ideias como um realismo científico, um monismo filosófico (op. cit., p.18).

No prefácio à segunda edição de sua obra, Romero reforça suas teses, à luz das contribuições de autores como Kant, Spencer, Darwin e Haeckel, Huxley, Mill, Noiré e Hartmann, Schopenhauer, Max Müller, Renan, Taine, Savigny, Fustel de Coulanges, dentre outros.

54 REALE, M., Estudos de Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, pp. 125 e segs.

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A pluralidade de nomes e fontes, mostram o nosso autor procurando, nos ex-poentes de diversas disciplinas, filosóficas ou não – como a Psicologia, a História, a Etnologia, a Crítica Literária, a Antropologia Cultural, a Fisiologia – os pontos de apoio para uma espécie de enciclopédia.

Tivemos acesso apenas à segunda edição do Ensaio sobre Filosofia do Direito, publicada com os dois prefácios anteriores de Silvio, numa edição recente, de 2001, pela Landy Editora.

A obra está dividida em três partes. Na primeira, situa o Direito no contexto mais amplo da Filosofia e da Sociologia. Propõe uma epistemologia, que oferece uma classificação das ciências e uma concepção evolutiva do saber e das ativida-des humanas, inscrevendo o conhecimento no horizonte de uma interpretação da história.

A segunda parte do livro mostra a evolução das criações político-sociais e o surgimento do Direito. Na terceira parte, caracteriza o Direito e seus elementos componentes.

Por Filosofia, entende a ciência mais antiga, ciência geral, conjunto do saber humano. Ao longo da evolução desse saber, as ciências foram-se emancipando da Filosofia, de modo que as quatro ciências que aparentemente ainda eram abarcadas pela Filosofia – a Lógica, a Psicologia, a Estética e a Moral – foram se constituindo como disciplinas independentes. A Lógica, graças aos esforços de Morgan, Mill, Spencer; a Psicologia, através dos estudos de Flechner Webs, Spencer, Wundt; a Estética, a partir das contribuições de Taine, Guyau, Hartmann; a Moral, graças a Spencer, Renouvier, Simmel.

O significado da Filosofia, para Romero é propiciar a síntese das ciências, como Comte e Spencer a compreenderam. Evocando Kant, entende a Filosofia como crítica do conhecimento, epistemologia. Remontando à tradição antiga, afirma que a perspectiva monista foi representada pelos Jônicos, Pitagóricos, Eleatas, Atomistas, caindo depois em descrédito com Sócrates, Platão e Aristóteles – pro-positores de um dualismo.

Romero afirma que a oposição monismo/dualismo é o fio condutor da história da Filosofia, emergindo com força, novamente, na filosofia moderna. E só uma doutrina da evolução restabelece a unidade entre o mundo do pensamento e o mundo exterior, alcançando plena expressão no agnosticismo evolucionista de Spencer.

Assim, na modernidade, a Filosofia assumiu as características de um saber mono-evolutivo, crítico, dependente das ciências, “formada por processos a posteriori” (op. cit., p. 26).

Evocando Kant, contra Comte, Silvio o situa como fonte importante de seu pensamento, tornando-o capaz de conciliar o criticismo e o evolucionismo,

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constituindo um monismo superior, do qual Hartmann e Spencer seriam, na sua época, os representantes exponenciais.

Nesse horizonte, entende o Direito como saber científico, luta por civilização e cultura. Resulta do fazer humano consciente, é produção espiritual, atividade criadora da humanidade, como a ciência, a política, a moral, a arte, a religião, a indústria.

Nos três séculos que precederam o século XIX, Romero assinala o surgimento de uma tendência nova, que floresceu em sua época: a ideia da historicidade, entendida como evolução e progresso, e cujo impacto no âmbito do Direito foi sinalizado pelas contribuições de Savigny, Ihering. O primeiro, representante da escola histórica; o segundo, da escola naturalista. Para Romero, as contribuições de ambos convergem, resultando numa renovação profunda do Direito, pela formulação de um único método, que conjuga as contribuições das ciências naturais e morais.

O Direito aparece, assim, como produto da evolução social, mediante seleção e adaptação.

Moral e Direito têm faces complementares: a Moral é “disciplina da vontade individual (...) pela compaixão, benevolência, caridade (...) o Direito (...) é disci-plina da liberdade, modelando-a no conflito com a liberdade dos outros; dirige-se à sociedade (...) [regularizando-a] pela pena, pela coação” (ibid., p.143).

O Direito surge num mundo onde impera o conflito. Representa a intervenção da razão, para disciplinar e regrar a convivência. Seu fundamento “é a autonomia individual, contrastada pela autonomia social (...) seu lema (...) é atribuir a cada um o que lhe é devido; seu alvo, o justo”.

O princípio do Direito é por em ação as energias individuais até “onde não entrem em conflito com as energias alheias” (ibid., pp.143-144). A formulação lembra a do imperativo categórico kantiano, fonte da reflexão romeriana.

Considerando a doutrina do Direito-Força, em Tobias Barreto, Silvio pensa as categorias que possibilitam compreender o mundo da natureza, o mundo social e o lugar, neles, do sujeito individual. No mundo social, “a categoria é a sociedade, o conteúdo são os homens, a relação é o Direito (...).

Assim, para Silvio Romero, o Direito representa na vida humana, a superação da força bruta, pela força da razão, da justiça, que ultrapassando os conflitos, afirma o justo. Reúne, na sua esfera, “os fatores da natureza e da civilização, os filósofos e os psicólogos, os biólogos e os sociais” (ibid., p.150).

Na perspectiva que propõe, nosso autor se diz naturalista, entendendo o Di-reito, como a arte e a educação, como produtos da cultura: “forma-se segundo a índole dos povos”, resulta do estímulo “à natureza do homem (...) pela natureza exterior” (ibid., p.162).

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Posto isso, Silvio recusa toda concepção que afirme “um Direito eterno, anterior e superior aos povos” e procura mostrar que qualquer modificação em qualquer ramo da atividade humana repercute sobre todos os outros campos dessa atividade, implicando uma evolução orquestrada. Mostra que isso ocorreu através de três correntes da filosofia moderna: – hegelianismo, positivismo, evolucionismo.

Afirma que há “elementos naturais e biológicos no Direito (...) na intuição que lhe aplicam um Spencer, um Von Ihering, um Tobias Barreto” (ibid., p. 165).

Em razão de seu caráter evolutivo, o Direito, como disciplina prática, “varia conforme os meios, as circunstâncias históricas, políticas, econômicas, sociais”, de cada povo.

Entende o Direito também como um princípio regulador das ações sociais. Seus diferentes ramos são elencados a partir da divisão entre Direito Público e Direito Privado, ambos comportando um aspecto interno e um externo; o Direito Criminal constitui um ponto, um polo do Direito situado entre o Direito Público e o Direito Privado.

Criticando a concepção metafísica da justiça, Romero afirma que o naturalis-mo evolucionista moderno parte da vida complexa dos povos, da multiplicidade das ações humanas. Daí considerar o Direito quando ao seu fundamento, à sua finalidade, ao seu desenvolvimento e seus elementos.

Quanto ao seu fundamento, o Direito exprime que a ação de cada indivíduo é em favor de si mesmo, da própria felicidade. Ao encontrar a ação análoga nos outros, passa a existir a necessidade das regras, das disciplinas, que na sua varie-dade, através dos tempos, buscam assegurar a possibilidade de coexistência dos sujeitos.

Quanto à sua finalidade, busca assegurar que os indivíduos exerçam variadas atividades, e no âmbito da sociedade, que seus componentes possam efetivamente realizar-se.

Quanto ao seu desenvolvimento, consiste no exame da história das diferentes expressões das leis.

No Direito, é preciso considerar a intuição íntima do justo em cada um; as leis de cada Estado; as modalidades que o Direito assumiu ao longo do tempo e nas diferentes nações; sua morfologia; tudo isso, para mostrar que “o Direito é um grande todo, regulador da vida social” (ibid., p. 173).

Em suma, podemos dizer que a filosofia do Direito de Romero se caracteri-za:

a) pela abordagem epistemológica e histórica da disciplina;b) pela inscrição do Direito no horizonte de um monismo evolucionista, que

embora pretenda superar o positivismo, apenas oferece uma formulação mais moderna das fases centrais deste: antimetafísicas e redutoras da filo-

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sofia a uma crítica das ciências, como bem assinalou Patrão Neves em seu estudo sobre Romero55.

O texto Ensaio de Filosofia do Direito, do nosso autor, termina de modo abrupto. A ênfase na perspectiva epistemológica e histórica dá a impressão de o texto ser um misto de anotações de aulas sobre Filosofia do Direito e uma tentativa de reflexão, a partir de fontes que possibilitaram uma visão histórico-crítica da disciplina.

Antônio Braz Teixeira mostrou que a inflexão do culturalismo filosófico de Tobias Barreto em Silvio Romero, deu-se num sentido sociológico, que o afastará do mestre, formulando “um ecletismo sui-generis” (op. cit., p. 77 e segs). Romero integra o Direito na Sociologia, apontando seu caráter evolutivo e recusando qualquer referência a um Direito Natural. Entende o Direito como criação cul-tural, buscando harmonizar natureza e cultura, na perspectiva de um monismo evolucionista. Produto da atividade humana, o Direito emerge das condições externas em que o homem vive, daí decorrendo sua divisibilidade e variedade no tempo e no espaço. Suas fontes principais são, no entender de Braz Teixeira, a Escola Histórica de Savigny e a Escola Naturalista de Ihering, conduzindo-o a compreender a evolução do Direito de modo linear e ascendente, partindo do impulso instintivo primitivo até a sua formulação nas democracias modernas. Direito e Moral seriam, para Romero, as duas faces narrativas que regulariam as ações dos homens na sociedade. O Direito regularia os atos no plano da vida pública, servindo-se até mesmo da coação; a Moral inspiraria os atos individuais segundo regras auto-impostas, fundadas “na consciência da identidade dos des-tinos humanos” (ibid., pp. 82-83).

É, no entanto, no horizonte da concepção romeriana de cultura, de criações culturais, das quais o Direito é uma das expressões, que Saldanha, Reale e Paim, assinalam sua importância para a formulação, no Brasil, do culturalismo, vertente filosófica que alcançará, com Miguel Reale e sua escola, importante repercussão no país56.

55 PATRÃO NEVES, M. do C., “Do positivismo (conteano) ao positivismo (spenceriano): o asso-mar de uma filosofia”, in Actas do III Colóquio Tobias Barreto. Silvio Romero e Teófilo Braga. Lisboa: IFLB/ Fundação Lusíada/CTT, 1996, pp. 303-312.56 REALE, M., Estudos de Filosofia Brasileira, passim; PAIM, A., A Escola do Recife, passim; PI-MENTEL, M. C., “A crítica do positivismo conteano em Teófilo Braga e Silvio Romero”, in Actas do III Colóquio Tobias Barreto, pp. 17-55; SALDANHA, N., “Sobre a Filosofia do Direito de Silvio Romero”, in Actas..., pp. 301-338.

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antero de Quental: ética e epistemologia

Um escrito tardio, Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX57, mostra nosso autor em busca da formulação de uma “teoria geral do uni-verso” que sintetizaria “as grandes criações espirituais que, ao longo dos séculos, expressaram a vida criadora de cada período histórico (ibid., p. 56). A tarefa da filosofia é procurar explicitar a “convergência gradual dos sistemas uns para os outros”. Como a síntese é apenas um valor-horizonte, posto que irrealizável, o que nos resta é o sincretismo. Tal sincretismo ocorre periodicamente no final das grandes etapas históricas; estaria ocorrendo em sua época. Até que ponto poderia ser conseguida, ou só indicaria o surgimento de um vago ecletismo, é a indagação de nosso autor. Para respondê-la, Antero focaliza crítica e historica-mente a evolução da filosofia moderna.

Entende a filosofia como busca da verdade, não a total e absoluta, porque se fosse possível alcançá-la não haveria busca, não haveria mais filosofia. A verdade filosófica expõe a “imagem imperfeita da verdade incognoscível”, distorcida e alterada, mas ainda assim verdade. Ela é a “equação do pensamento e da reali-dade (...) equilíbrio momentâneo entre a reflexão e a experiência (...) adaptação (...) em cada momento histórico (...) dos factos conhecidos às idéias diretoras da razão” (ibid, p. 54). Para nosso autor, a relatividade da expressão histórica não implica relativismo ou ceticismo; mostra que há, entre os diferentes sistemas, afinidades e concordâncias, às vezes obscuramente pressentidas, mas reais.

Em carta de 1885, o pensador declara que pretende formular a expressão poética “de um misticismo moderno (...) científico e positivo”58. A correlação poesia-filosofia, entrevista no seu fundamento comum, a busca da verdade, mostra nosso autor inquieto, tentando formular uma teoria do conhecimento numa perspectiva otimista e racional e marcada pela preocupação com a liber-dade. Está votado, nessa etapa, à construçãode uma interpretação do universo que vincula estreitamente conhecimento e moral. Procura mostrar que sob o vi-sível e a natureza, oculta-se o mundo moral, “que é o verdadeiro mundo”, ao qual são inerentes “a harmonia, a liberdade o optimismo” (op. cit., pp. 729-730, apud 57 QUENTAL, A. De, Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX, Lisboa: Fun-dação Calouste Gulbenkian, 1991. O texto foi publicado originalmente na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós, em 1890.58 Id., Carta II, Obras Completas, vol. III, pp. 729-730, apud SERRÃO, J., “Em busca do sentido do último escrito filosófico anteriano”, in QUENTAL, Tendências..., p. 9.

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SERRRÃO, op. cit.), por oposição ao mundo da natureza, que se caracterizaria pela luta, fatalidade e pessimismo. A vida tem uma razão de ser e isso valida a existência; nisso consiste, o Evangelho eterno, expressão da essência do homem e das coisas mas do qual só o homem tem consciência (Carta a Fernando Leal de 13 de Novembro de 1886, apud SERRÃO, J., op. cit). O homem é livre, superior à natureza; sua expressão própria é o sentimento, a consciência moral entendida como consciência de seu ser verdadeiro. A ação humana expõe a liberdade, eixo da vida moral, da vida criadora das obras e instituições. Antero estabelece ana-logias entre a liberdade moral e o princípio de atividade do universo. Só desse modo, a seu ver, escapamos do risco de um existir absurdo, sem finalidade. O poeta-filósofo pretende alcançar uma síntese superadora das oposições: natu-ralismo/idealismo, otimismo/pessimismo, através da formulação de um pan-psiquismo. Para ele, a finalidade da vida é a beatitude e a consolação que decorre do contemplar. E o que se contempla? Uma verdade para além da “presunção da inteligência” e mais próxima do coração. O grande desafio é investigar “ o paradoxo das coisas”, visto como um “ divino paradoxo” que inquieta o homem (ibid., pp. 841-842, apud SERRÃO, J., op. cit.).

A proposta de Antero, já nas Cartas que precedem o Tendências..., aparece como uma aliança entre o kantismo e o espiritualismo, visando “a explicação do Universo pela consciência, mas ao mesmo tempo, a interpretação da consciência por princípios análogos às leis fundamentais do Universo, a unidade do Ser e do Universo” (ibid, pp. 900-901, apud SERRÃO, J., op. cit.). Para nosso autor, a consciência do homem é um elemento essencial do universo e a mais importan-te expressão de sua verdade; a arte é só um reflexo, um símbolo da vida moral e a virtude, o bem, são mais significativos do que a arte (ibid., Cartas II, p. 953, apud SERRÃO, J., op. cit). O exame da evolução de Antero da poesia à filosofia, feita por Joel Serrão (op. cit. pp. 27-28), mostra que na trajetória de Antero ocor-reu uma crescente aproximação à filosofia e um abandono gradual da poesia, mas também o surgimento de uma filosofia enraizada nas vivências poéticas, um poetar-pensante. Tal filosofia reflete sobre as implicações sociais e políticas da liberdade, sobre a necessidade de uma ética social fundada na virtude dos indivíduos e na afirmação dos laços entre Ser e Bem, fim último da evolução do universo.

Se nas Cartas e textos filosóficos anteriores ao Tendências... a ênfase se dá na formulação de uma ético-ontologia, no Tendências... a ênfase se proporá como ético-epistemológica, expondo a atenção de nosso autor à evolução da filosofia moderna e às preocupações e tendências de seu tempo.

A análise crítica da filosofia moderna ocorre pela busca de compreensão de suas grandes etapas.No início da filosofia moderna, um substrato metafísico ins-piraria as noções comuns aos diferentes sistemas, assim como a vida criadora da

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arte, poesia, religião, política. As idéias centrais são, segundo Antero, as “de for-ça, de lei, de imanência ou espontaneidade e de desenvolvimento”59. Por enfatizar essas idéias, a filosofia moderna se diferencia da filosofia antiga, assumindo um caráter decididamente realista. Caracteriza-se por focalizar a realidade como “ o fieri incessante do ser em si só potencialmente existente e que só realizando-se atinge a plenitude” (ibid., p. 60); nessa perspectiva, matéria e forma são indisso-ciáveis e o movimento presente na realidade é permanente criação, metamorfose e renovação. Para nosso autor, a filosofia moderna vê a realidade como uma totalidade, uma substância única, da qual todos os seres são expressão, relacio-nando-se entre si permanentemente. O universo assim entendido é um ser vivo, com uma unidade imanente, intrínseca e fundada na diversidade dos seres que o compõem. Essas idéias foram propostas no início do Renascimento por Nico-lau de Cusa, Agripa, Paracelso, Giordano Bruno, dentre outros. O despertar das ciências modernas anunciou um espírito novo, com Descartes, Bacon, Leibniz e Spinoza. Descartes, por exemplo, extraiu conseqüências do princípio da iden-tidade entre ser e saber, retomado por Spinoza nos seu panteísmo e por Leibniz na Monadologia. As idéias centrais que foram consolidadas com esses autores foram as de força e lei. No século XVIII, nova etapa da filosofia moderna: a idéia de desenvolvimento é acrescentada às noções-chave já discernidas, fazendo com que o universo seja concebido como totalidade em expansão, com ilimitada e inesgotável virtualidade; dá-se um surto de desenvolvimento das ciências, que inspira autores como Diderot, Lessing, Vico, Voltaire, Rousseau. Ainda no sécu-lo XVIII a idéia de lei encontrará em Kant nova formulação, associada a novas inquietações: que podemos conhecer? Que podemos fazer?

Promovendo a crítica à metafísica tradicional, Kant centra a reflexão sobre a epistemologia, buscando fundamentar nossas certezas. O impacto de sua re-flexão faz-se sentir nas filosofias de Schelling e Hegel, que, embora “ repetindo o naturalismo e o panteísmo do período anterior”, reveste-os do novo ponto de vista do idealismo, contido na Crítica da Razão Pura” (ibid., pp. 66-67). É com Schelling e Hegel que, no início do século XIX, as idéias de força, imanência e de-senvolvimento são sintetizadas na idéia de evolução,” processo dialético do ser”, fundado na natureza e na busca da consciência de si (ibid., p. 67).

Mas, assinala Antero, no mesmo século XIX a perspectiva do romantismo foi contestada pelo surgimento de um naturalismo que questionava os grandes sis-temas, em favor da busca de inspiração diretamente na realidade. Tal naturalis-mo mostrava que se a filosofia fecunda a ciência, não pode, contudo, substituí-la no processo do conhecimento: “A cada ciência preside uma idéia fundamental. Pode a filosofia, e essa é uma das suas funções, apropriar-se dessa idéia e de todas elas, para as tornar matéria de suas especulações” (ibid., p. 69). Cabe à ciência “ desenhar, com os traços firmes das leis positivas, o quadro do universo na sua 59 QUENTAL, A. de, Tendências..., p. 59.

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variedade e complexidade fenomenal;à filosofia, a missão de interpretar supe-riormente a significação desse quadro” (ibid., p. 70). A grande idéia filosófico-científica que torna possível esse diálogo é uma nova compreensão da noção de evolução. Mostra, sob a variedade dos corpos e formas, uma mesma matéria fun-damental, inspirando as investigações da astronomia, da física, da antropologia, da biologia, da geologia, da paleontologia, dentre outras ciências.

Na segunda metade do século XIX, o surto de desenvolvimento das ciências levou à recusa da metafísica; no âmbito da ciência histórica, refutava-se a cons-trução interpretativa de Hegel: história não é metafísica, não existe uma ordem necessária dos fatos humanos que conduza à afirmação da liberdade e da consci-ência. Surge a Psicologia e o que isso produz é o “reconhecimento da unidade e autonomia do eu e daquele fundo sentimento da sua própria liberdade e íntima dignidade moral” (ibid., p. 75).

É no horizonte desses debates que emerge o espiritualismo francês, represen-tado por Maine de Biran, Cousin, Ravaisson, dentre outros. Para muitos – assim como para Antero – o espiritualismo não constituiu propriamente uma filosofia, por reduzir-se à meditação sobre o homem moral, Deus, alma, infinito; recusara a aliança com a ciência e tornou-se, na opinião do nosso pensador, uma “ontolo-gia de mitos” (ibid., p. 77). Entretanto, ao fazer a crítica da metafísica tradicional e do idealismo alemão, o espiritualismo assinalou o surgimento de uma crise que foi crucial para a renovação da filosofia do tempo de Antero.

Na segunda metade do século XIX, o descrédito da metafísica e do idealismo alemão teve como contrapartida a renovação do criticismo kantiano e o sur-gimento de uma nova filosofia vinculada às ciências. Nela, não há renúncia à filosofia nem descrédito da razão, mas, antes, a filosofia “de metafísica torna-se científica; de transcendental, realista; de dedutiva, indutiva” (ibid., p. 81). A res-posta à crise é dada pelas filosofias de Comte, Spencer, Stuart Mill, dentre outros. Mecanicismo, determinismo, necessidade são as notas dominantes, as palavras-chave da nova filosofia da natureza; não há lugar para acaso, Providência, mas apenas ordem invariável e fatal, previsível e cognoscível. A idéia dominante é a de evolução, explicável pela sucessão de fatos e seu encadeamento e entendida como “um estado progressivo de complicação e nada mais” (ibid., p. 84). Antero reconhece nessas concepções algo grandioso e, ao mesmo tempo, “tenebroso e desolado”, produto da inteligência científica; provavelmente, suspeita nosso au-tor, “envolve algum (...) problema ontológico, que lhe escapa” (ibid., p. 85); seu fundamento é sempre a experiência, a generalização, o mecanismo; falta-lhe a espontaneidade, “a realidade viva e misteriosa das idéias, da ‘ consciência’ para além da sensibilidade”.

Aqui, a grande crítica do cientificismo do século XIX assinala a direção do pensamento de nosso autor como busca de algo vivo e que diga respeito ao co-

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ração, às aspirações morais. As perguntas: para que? por que? existe o universo e qual o sentido da nossa vida nele, não são respondidas pelo cientificismo. Seria então “ uma ilusão monstruosa essa concepção mecânica do universo?” (ibid., pp. 86-87). Não é assim que o poeta-filósofo vê. O cientificismo tem sua verda-de, mas circunscrita aos limites dos dados empíricos, do mundo sensível. Sua incompletude exige, da parte do homem, uma nova luz, que será representada pela crítica do espiritualismo e pela volta a Kant e às suas fecundas idéias. A posição de Antero prefigura, de certo modo, o imenso papel de renovação das relações entre filosofia, ciência e ética que será epresentado mais tarde pelo neo-criticismo e pela fenomenologia. Voltaremos a isso adiante.

Diz o poeta-filósofo: “O influxo do kantismo é bem sensível em todo este processo de dissolução do velho espiritualismo” (ibid., p. 88). A crise profun-da do espiritualismo antigo apela à renovação do espiritualismo pelo criticismo kantiano. Esta renovação funciona como anteparo ao ceticismo e ao raso mate-rialismo. A obra de Laplace, no entender de nosso autor, representa o novo espí-rito, pois, para ele, como destaca Antero, há uma tendência, na espécie humana, para expressar o racional e o progresso nessa direção é o que a caracteriza.

A mecânica ignora as “causas, o ser íntimo e a realidade substancial das coi-sas” e é isso que a consciência conhece por si, “porque nela reside a noção de que não é sensível (...) só ela tem a percepção imediata desse estrato mais fundo do ser, inacessível [a partir] da pura sensibilidade” (ibid., p. 92). Consciência é energia, sua essência é a espontaneidade; percebe o universo adaptando-o a si, de modo que os fatos, inertes e inexpressivos, adquirem significado pela inteli-gência. Espontâneo na apreensão do conhecimento, o espírito o é também no âmbito da vontade, Determina sua ação em função da própria vontade, da sua força consciente. Conhece, não só a natureza, mas também a si próprio, gradu-almente se identificando com o Eu Absoluto ou Deus, plenitude de Ser. A vida moral consiste na realização dessa busca, finalidade do existir humano e da sua liberdade. A síntese do pensamento moderno é, para nosso autor, a aproximação entre o dinamismo mecânico da natureza e o dinamismo psíquico, estudados respectivamente pela ciência e pela filosofia, sob a noção convergente de força. Daí o poeta-filósofo dizer: “O espiritualismo dará ao materialismo o que lhe falta, completando-se, por esta insuflação do espírito na matéria, a compreen-são ao mesmo tempo positiva e especulativa do universo”. Pensar o mundo é reconhecer a analogia entre pensamento e mundo; é postular, como princípio e fundamento dela, a “identidade (...) do objeto e do sujeito”, sem a qual não seria possível nenhuma reflexão sobre a realidade ou sequer a consciência da existên-cia da realidade: “na espontaneidade da consciência, tem o caráter de evidência” (ibid., p. 95).

Há uma racionalidade no universo e ela supõe uma unidade entre nosso espí-rito e a substância do mundo. O númeno, para Kant incognoscível, para Antero

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existe em nós, está em nós. Essa afirmação do poeta-filósofo não é mera reto-mada do idealismo alemão do início do século XIX; expressa, antes, a renovação do espiritualismo e o surgimento do neo-kantismo, de modo que o processo do conhecimento é compreendido como uma interpretação da realidade, a qual não é criada pela consciência, mas mostra-se a ela. Daí nosso autor dizer que “a metafísica e a ciência não são (...) rivais, mas colaboradoras na obra do co-nhecimento (...) [não como] duas esferas opostas, mas como dois círculos con-cêntricos” (ibid., p. 97). Assim, o saber, compreendido na totalidade, implica o experimental e o reflexivo, abarcando desse modo o ser.

O núcleo essencial da síntese proposta por Antero é a contraposição deter-minismo/liberdade, antítese que trata de superar mediante a introdução da idéia de espontaneidade. Em tudo “ palpita (...) uma vontade própria, a vontade de realizar o próprio fim. Há algo de espontâneo e um “acordo do Ser com a sua verdade profunda e com a sua infinita virtualidade ainda nos fenômenos mais elementares da matéria” (ibid., p. 98). Mesmo no nível mais elementar da ex-pressão do ente, o ser “ é sempre causa: a sua idéia latente [é] a virtualidade da afirmação plena de si mesmo (...) seu fim último vem já envolvido (...) nas suas determinações mais elementares”. Isto quer dizer que todo ser busca sua plena realização; no homem, a realização se chama liberdade. Daí nosso autor dizer: “A liberdade (...) é (...) a espontaneidade quando plena” (ibid., p. 99), que cria conscientemente a orientação da vida do ser, em vista de sua realização. No caso do homem, determinar a si mesmo é expandir-se, buscando a perfeição da liberdade no plano moral. Se Deus existisse, seria o ser no qual se expressaria a plenitude absoluta da liberdade; no caso do homem, a liberdade está in fieri, é plenitude nunca alcançada, em razão da sua essencial incompletude, como ser moral.É identificando-se com o próprio ideal que o ser humano se torna o que ele é.

Há graus de liberdade: no ser inconsciente de si mostra-se como esponta-neidade, até mesmo das “simples atrações materiais” (ibid., p. 101); no caso do ser humano, é consciência de uma ascensão, com o objetivo de expressar ma-ximamente suas virtualidades. Daí nosso autor dizer: “A cadeia universal das existências (...) aparece-nos como ascensão dos seres à liberdade” (ibid., p. 102). A evolução não é cega, mas racional, tendo como finalidade a plena expressão da liberdade, “aspiração profunda” do universo; não é casual, mas expõe um progresso, uma mudança qualitativa, por uma irresistível atração em direção a um ser mais.

A liberdade, a que o universo inteiro aspira, só se realiza no plano humano, no plano da história, da construção do mundo da razão, da ordem moral e do direito. Implica esforço sempre renovado em direção à justiça, que consiste no desdobramento, no plano social, da energia moral.

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O direito cria uma ordem, que sintetiza moralidade e liberdade; representa a superação do jugo da fatalidade, a coincidência entre bem e dever. Renúncia do egoísmo, “o caminho do direito (...) leva à liberdade, à perfeição, à beatitude” (ibid., p. 107). Tornando-se, por essa renúncia, instrumento do bem universal, o homem expressa a união do bem e da virtude, síntese que realiza a “ liberdade suprema” e o conduz à aproximação a Deus, entendido por nosso autor como a perfeição absoluta.

Liberdade, virtude, busca da perfeição: esse é, para o poeta-filósofo, o único culto, a única inspiração válida, o único saber: “ Se só a perfeita virtude (...) defi-ne (...) a liberdade, e se a liberdade é a aspiração secreta das coisas e o fim último do universo, concluamos que a santidade é o termo de toda evolução” (ibid., p. 108. Grifo nosso).

A trágica morte de Antero renova a indagação: até que ponto um poeta pode ser filósofo? A filosofia e a poesia são ramos de um mesmo tronco, como diz Heidegger no Da experiência do pensar?60. O dizer poético pode ter implicações filosóficas; mas tentar dizer a filosofia pode silenciar o poeta? A trajetória de An-tero não teria sido uma experiência dessa aporia, experiência do silêncio ou da impossibilidade da linguagem, quando confrontada com o mistério? Ou indica, antes, a impossibilidade da escolha entre filosofia e poesia, indissociavelmente ligadas e reciprocamente fecundadas;duplo dizer que, focalizando o ser e o sa-grado, fala de uma unidade originária, apenas entrevista mas permanentemente buscada, do Bem, Beleza e Verdade.

A abordagem histórico-crítica da filosofia moderna, empreendida no Ten-dências... visa a compreensão de uma profunda crise e também entrevê a possibi-lidade de renovação que a aliança entre a filosofia e a ciência poderia trazer para o homem do final do século XIX.

Antero, a nosso ver, antecipa e sintetiza, nos seus escritos, a grande problemá-tica que encontrará em Husserl e Heidegger, no início do século XX, alguns de seus expoentes: a discussão da crise da razão, que só pode ser ultrapassada por uma meditação que examine, em profundidade, a finalidade da vida humana e sua eticidade e liberdade. Antecipa também a renovação da compreensão dos la-ços entre filosofia e ciência, representada pelas contribuições do neo-criticismo do início do século XX, e exposta nas investigações de Brunschvicg e Bachelard, dentre outros, os quais, como Husserl, embora sob outra luz, também buscaram estabelecer laços entre filosofia e ciência, ética e epistemologia.

60 HEIDEGGER, M., Da experiência do pensar. Porto Alegre: Globo, 1969, p. 49. Tradução de Ma-ria do Carmo Tavares de Miranda.

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Biografias e modelos paradigmáticos do ethos: São Paulo de teixeira de Pascoaes

Na mais antiga tradição ocidental, Homero, Hesíodo e os trágicos gregos narraram histórias dos deuses e heróis, propondo aos homens da cidade antiga um ethos, um modo de ser que se caracterizava pela busca da areté, a excelên-cia moral. Não se tratava de uma conformação a um modelo coletivo, mas da individualização através do belo gesto que possibilitava ao indivíduo a auto-su-peração contínua. Indo além do vigente, imitando os deuses e heróis, instaurava novos modos de ser e de realizar o humano. Assim concebida, a areté implicava uma maturação, uma compreensão e uma disciplina que desencadeavam o salto qualitativo em direção a um ser-mais. O que caracterizava o homem bom, era, exercendo o hábito e a disciplina, expressar o ethos: ser o que verdadeiramente é, realizar as possibilidades mais altas da própria existência. Tal realização não se esgota na afirmação do sujeito como indivíduo isolado, mas encontra sua plena expressão na comunidade, na cidade.

Sabedoria e prudência, fundindo conhecimento e ação, acham-se, nas obras de Platão e Aristóteles, associadas à realização do Bem, na cidade perfeita. Assim a reflexão sobre o ethos alcança, na tradição filosófica, sua culminância nas obras de Platão e na formulação das éticas, de Aristóteles: a Nicômaco, a Eudemo, a Grande Ética e mesmo na Política, afirmando a responsabilidade do indivíduo por seus atos, pela escolha intencional que orienta a ação segundo o que o pensa-mento, o conhecimento reconhecem como bom. Aristóteles assinala também a perfectibilidade do caráter, do ethos, que faz do homem adulto um bom cidadão, realizando a felicidade própria e a dos outros. Abandonando o mal intencional, a inteligência prática assinala como agir, de modo a expressar as qualidades pro-priamente humanas: razão e virtude, excelência moral61.

A tradição agostiniana acrescenta, às virtudes que possibilitam o bem-viver no mundo, as virtudes teologais, que conduzem à salvação da alma. O objetivo da vida humana não é apenas a expressão da prudência, da excelência moral, mas da santidade: a caridade, a fé e a esperança. O santo é quem, na história do Cristianismo, imita o Cristo, modelo paradigmático que inscreve, no tempo, o caminho que conduz à eternidade.

Essa perspectiva está presente, como veremos adiante, na leitura de Teixeira de Pascoaes da vida de São Paulo.

61 Solange VERGNIÈRES, Éthique et politique chez Aristote. Paris: PUF, 1995.

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Um contemporâneo de Teixeira de Pascoaes, o filósofo alemão Max Scheler, em uma obra importante, Modelos e Líderes62, fala do papel da pessoa na história e dos modelos que marcam a vida humana no tempo: o santo, o gênio e o herói.

No caso do santo, o santo absoluto é Deus; o santo da origem é sempre uma figura onde o real histórico e o mito, o dogma se confundem. Voltado para Deus, o santo – como por exemplo Jesus Cristo – é oferecimento de um caminho, a revelação de uma vivência profunda que repercute na posteridade tornando-se presente, primeiro através de “seus discípulos imediatos e também pelos santos seus imitadores (...) pela autoridade e tradição” que dele se originaram. O santo é “presença viva nos que lhe dão continuidade” (ibid., p. 65.), influindo pelas virtudes que expressou, e através de seus discípulos, manifestando a “misteriosa (...) presença continuada do seu ser e agir” (ibid., pp. 67-68).

Em Teixeira de Pascoaes a biografia de São Paulo faz papel análogo ao sinali-zado por Scheler, quando se refere aos modelos paradigmáticos do ser humano. É um romance, uma narrativa, extremamente vívida e colorida, da existência do santo. Supõe um conhecimento histórico das fontes, uma sólida ancoragem na documentação que trata da época. Mas implica também uma liberdade cria-dora que descreve o acontecer como se o tivesse testemunhado pessoalmente. É ocasião para importante obra poética, que também desvela o pensamento de um grande artista, cujos comentários expõem, pouco a pouco, no desdobrar da narrativa, sua própria perspectiva acerca do homem e do sentido da história.

A obra de Pascoaes apresenta pontos de analogia com grandes poetas con-temporâneos, como Kazantzakis: também ele fala de Odisseu, fala do Cristo e da tradição cristã, numa perspectiva muitas vezes heterodoxa, que resultou na sua excomunhão e na proibição de ser enterrado em solo consagrado. Seu túmulo, em Creta, fica no alto de uma colina, de onde se vê o porto e o mar. Voltando a Pascoaes: a biografia é pretexto para o poeta compreender o Cristianismo, a mudança histórica que representou, figurada pela trajetória de São Paulo. Com Unamuno, citando Pascoaes, dizemos: “A idéia de Deus, no homem é o próprio Deus a revelar-se humanamente” 63.

O que caracteriza o homem, na perspectiva de Pascoaes, é exceder “ seus limites”, buscando um Deus que é “ sentimento da Origem e da unidade moral das criaturas (...) força espiritual humanizada, convertida num ser perfeito ou modelar”64. Para ele, São Paulo é o homem paradigmático que, na decadência do Império Romano, busca expressar a esperança, o amor, a criatividade espiritual: “Deu asas à besta trôpega, aproximou-a de Deus” (ibid., p. 29).

Pascoaes se interessa pela religião como revelação da poesia, expressão da vida criadora, energia viva, superação da morte. O Cristianismo nascente as-62 Max SCHELER, Modelos e Líderes. Curitiba: Champagnat, 1998.63 Miguel de UNAMUNO, San Pablo y abre España!, in TEIXEIRA DE PASCOAES, São Paulo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 19.64 TEIXEIRA DE PASCOAES, “Prefácio”, in op. cit., pp. 24-25.

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sumiu a perspectiva oposta às da decadência e da morte, que caracterizavam o Império Romano no seu declínio. O Cristianismo afirmava a caridade, a igual-dade, a imortalidade – para os escravos e os pobres, os marginalizados da épo-ca. Nosso poeta entende a relação entre Deus e as criaturas, entre eternidade e tempo, como um movimento circular, onde o ímpeto criador inicial regressa ao ponto de partida. Para ele, a eternidade contém todos os séculos e a totalidade do tempo (ibid., p. 31). Na sua concepção, o homem existe e vive: “Existir é ser abrangido pelo espaço; viver é abranger o tempo (ibid., p. 32).

O homem é o ponto central do universo, onde a natureza se torna consci-ência; é a consciência universal, que espiritualiza o mundo. Estabelecendo um paralelismo entre o Paganismo e o Cristianismo, nosso autor mostra que, no primeiro, as criaturas são sacrificadas aos deuses; no segundo, o filho de Deus é sacrificado às criaturas. Paganismo e Cristianismo seriam faces da “mesma religião eterna”, que põe os opostos em relação de complementaridade: “Deus e o Universo, o Espírito e a Matéria (...) a Vida e a Morte” (ibid., pp. 33-34). O Cristianismo representaria “a espiritualização do paganismo” (ibid., p. 36) e São Paulo foi o intérprete do Cristo, da esperança, da religião que sintetiza a dor e o amor (ibid., p. 37). Num sentido amplo, todo homem é religioso; não há ateus nem crentes absolutos (ibid., p. 38), o que existe é o homem, vivendo um con-flito, uma ambiguidade: participa do mundo, mas quer superá-lo. Seu viver é contínua busca de ir além do já dado, pois “pressente a outra face das cousas – o Infinito”, “o Criador (ibid., pp. 39-40).

O poeta entende que “a finalidade da nossa existência“ é o “aperfeiçoamento, a redenção” (ibid., p. 40), a caminhada em direção ao futuro, à realização do im-possível, da utopia. São Paulo representa, aos olhos do nosso autor, a promessa, a aspiração à liberdade, à igualdade, à imortalidade, à instauração do Reino de Deus. Como os poetas, o santo imagina um mundo futuro e afirma, apaixona-damente, sua possibilidade: um mundo onde cabem todos os sonhos, todas as fantasias, “todas as estrelas” (ibid., p. 42).

Deus, para nosso poeta, é o Espírito, a Origem; o universo é “um sistema de vibrações sensíveis, que se conjugam num todo harmonioso e numa aspira-ção ao estado consciente, a realizar-se na Humanidade” (ibid., p. 56). Para ele, a tarefa do homem é “conhecer e adorar”; conhecer a matéria, o mundo, é fazer ciência; conhecer o Espírito é religião, íntima crença, visão. Ambas convergem no infinito e em nós, seres ambíguos, “encontro do corpo com o espírito”.

Pascoaes entende Jesus como um dos nomes de Deus, uma das revelações do Espírito. Não é o Cristo histórico dos Evangelhos que o interessa; mas a lembran-ça da Origem, presente naquele. Cristo representa a esperança do renascimento, da imortalidade, da redenção. Na sua opinião, podemos discernir na história sinais da intervenção da Providência, que tece o sentido do tempo. A época em

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que São Paulo viveu teve essas características; o poeta entende São Paulo como o que encontrou o Cristo, quer dizer, o que encontrou “aquele profundo ser moral, que principiava a revelar-se na Humanidade” (ibid., p. 44). A descrição da pes-soa e da época de São Paulo é extremamente vívida: deve ter-se apoiado numa sólida documentação histórica, que possibilitou ao poeta descrever, como se os testemunhasse, a vida e o contexto do apóstolo.

Descreve a cidade de Tarso, onde o santo nasceu: montanha e planície; narra que o avô de São Paulo recebeu em uma ocasião um importante general romano em sua casa, dele recebendo, como pagamento pela hospitalidade, o título de cidadão romano, estendido aos seus descendentes. Judeu, Paulo é também cida-dão romano, título que lhe valerá como salvo-conduto em diferentes ocasiões. Na juventude, foi enviado a Jerusalém, para estudar. Pascoaes descreve a surda tensão da cidade: nela viviam diferentes seitas de judeus ortodoxos, que odiavam Roma, que os oprimia. Na cidade, dentro da comunidade judaica, sucessivos in-divíduos se apresentavam como o Messias, incitando o povo contra a dominação romana. A opressão gerou ódio, fanatismo, assassinatos. Bom religioso, educado no estudo da lei judaica, Paulo perseguirá os cristãos, vistos pelos judeus orto-doxos como heréticos.

A conversão, o apostolado, as prisões e a chegada de São Paulo a Roma – como prisioneiro e como romano – são descritos pelo poeta num crescendo, que culmina com o estabelecimento de um paralelismo, nos últimos capítulos do livro, entre Nero e São Paulo.

Nos capítulos que falam da chegada de São Paulo a Roma, Pascoaes medita sobre o sonho humano, a revelação da Verdade: a mensagem sobre a morte e a ressurreição de Cristo, é acolhida pelos pobres e escravos, que se alegram com a religião do amor e do espírito. Diversamente dos intelectuais e da plebe livre e bruta, que experimentam, os primeiros, o tédio em relação à vida e aos festins, e os segundos, o vazio da embriaguez e da ferocidade, do pão e circo – os mais desvalidos, os mais pobres e excluídos se rejubilam com a descoberta da nova irmandade. São Paulo apresenta a eles um “guia moral ou protótipo” (ibid., p. 243): o Cristo como modelo do novo homem.

No grande circo, o Coliseu, cem mil espectadores, “ébrios de vinho e de san-gue” (ibid., p. 245); nas ruas, nos subúrbios pobres, os doentes, os famintos, as prostitutas e os criminosos, os escravos, procuram o santo, que neles inspira esperança, falando de Cristo. Mostra “ que tudo é em Deus”, que “o amor trans-formou os deuses em Deus e (...) os homens no Homem, naquele protótipo ide-alizado, que é Jesus Cristo” (ibid., p. 252).

Que é o homem? “Um impossível realizado”, a ponte entre o céu e a terra, “espírito e matéria em busca da liberdade, da imortalidade” (ibid., p. 265). Quer edificar o reino de Deus, o reino da esperança, da igualdade, da universalidade. Diz Pascoaes: “uma nova alma embriaga tudo; e tudo é alma (...) O período clás-

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sico é o da arte, da sensualidade e da riqueza (...) [ o Cristianismo é o período] dos pobres e dos poetas, fora de todas as muralhas (...) na amplidão do mundo” (ibid., p. 257).

Nosso autor tece um paralelismo entre a decadência de Roma e nossa época, que vive o inferno da fábrica, a adesão ao mecânico, o prestígio da técnica. A ana-logia não se detém aí. O poeta anuncia a chegada de uma nova onda do espírito, que levará o homem a cumprir seu destino “religioso ou de elevação perpétua para Deus, seu destino de conhecer e amar” (ibid., p. 263). A crítica à civilização técnica é retomada no último capítulo do livro, quando o poeta contrapõe poesia e técnica, e denuncia a “orgia industrial moderna”, que produz a morte da alma: a “existência delirante”; e a morte do corpo, num mundo de “gases asfixiantes, máquinas perversas”; mundo que depende de materiais esgotáveis, de recursos não renováveis (ibid., p. 263).

O Cristianismo é o mundo da poesia, da caridade, da pobreza, da confraria dos irmãos.

No último capítulo do livro, Pascoaes contrapõe Nero e São Paulo, apresen-tando-os como as duas faces da mesma moeda. Os atos de Nero, que culmi-nam no incêndio de Roma imputado aos cristãos, são a metáfora da decadência do Império. Nero, imperador e artista, representa o niilismo e a canalha, que o aplaude e nele se vê, engrandecida.

Como se assemelham Nero e São Paulo? Ambos concorrem para a destruição de Roma, símbolo da mentalidade antiga. Nero a incendeia concretamente; Pau-lo a incendeia pela palavra. Ambos exprimem, de modos diversos, a “História (...) feita por um Espectro invisível, que nos dirige para fins só dele conhecidos” (ibid., p. 287).

A espantosa decadência de Roma é descrita no capítulo sobre o espetáculo do circo, onde serão massacrados os cristãos, aos quais fora imputado o incêndio da cidade. O espetáculo da morte, o sofrimento atroz, representam cenas de mitos antigos: “Hércules, nas chamas, Orfeu devorado por um urso, Pasifae entregue às fúrias dum touro, Laureolas crucificado e as Danaides, com todos os ultrajes ao pudor” (ibid., p. 290).

O poeta vê, no martírio, a metáfora da condição humana: natureza que sofre, ama e se transfigura em Cristo (ibid., p. 291). Os cristãos eram oferecidos à fome de feras que não comiam há vários dias. O pesadelo dos mártires é celebrado pela turba que enche o Coliseu, ávida de álcool e de sangue. Na destruição, des-pedaçamento dos cristãos, as feras, diz o poeta, comungam os santos e a feroci-dade é convertida em santidade, irmanando homens e feras “em Deus, criador dos homens e das feras” (ibid., p. 293). Os espetáculos se sucedem, até o por do sol: “ a morte é vermelha”, diz o poeta. Descreve o anoitecer: Nero canta e dirige as corridas de carruagens, ele próprio cocheiro. Os postes das avenidas de Roma

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estão cheios de corpos de cristãos, amarrados, envolvidos em sacos de resina e enxofre. Os cristãos serão tochas humanas, que iluminarão “ as avenidas, duran-te as corridas de quadrigas e folguedos populares” (ibid., p. 295).

A transfiguração do mundo, o surgimento de uma nova época da história tem em São Paulo seu arauto emblemático. Ele e Nero concorrem “para a des-truição do Paganismo” (ibid., p. 300): Nero, pela loucura e devastação que pro-voca ao seu redor; São Paulo porque interpreta a verdade, identificando-se com Cristo e afirmando que Deus é liberdade e amor. Situa-se, “para lá do Bem e do Mal”, valorizando o homem, não o pecado (ibid., p. 302). Precede, assim, San-to Agostinho, Bossuet, Dostoievski, Nietzsche, na opinião do poeta. São Paulo representa a nova face do mundo, a reiteração do valor do sagrado, da poesia; assinala a possibilidade da superação da decadência, do ateísmo, do ceticismo e do racionalismo estéreis. Representa uma nova etapa da expressão do Espírito na história. Contrapõe a pobreza à riqueza, a caridade à violência, o silêncio e meditação ao circo e ao prostíbulo, a vida eterna à vida terrena, o reino de Deus ao Império, o passado ao futuro, o sonho à realidade imediata.

Na perspectiva de Pascoaes, como na do romantismo alemão, sobretudo em Hegel, para quem os povos e personagens históricos são expressões do Espírito no tempo; bem como na perspectiva de Scheler, na importante obra Modelos e Líderes, as figuras emblemáticas das diferentes épocas são modelos do ethos e expressam a evolução da humanidade em direção a um ser-mais.

Ao recriar, na literatura, a vida de São Paulo, Pascoaes expôs sua própria con-cepção do homem e sinalizou o papel do Cristianismo numa profunda mudança da história, através da atuação dos santos que a protagonizaram, como instru-mentos do Espírito. Ao traçar, brevemente, um paralelismo entre a queda de um Império e a nossa época, o poeta assinalou a decadência contemporânea espelhada no homem que perdeu a consciência crítica acerca de sua existência, seduzido pelas máquinas, “desviado de seu destino”. Mergulhado nas exigências crescentes da civilização técnica, o homem contemporâneo se embrutece. A de-cadência da civilização técnica precisará ser superada, para que a alma floresça, para que a liberdade e a poesia sejam novamente possíveis. O poeta acredita que a santidade e o amor, a esperança e a fé, a expectativa da intervenção providen-cial na história, são os caminhos de uma renovação possível.

Estaríamos vivendo um ponto de ruptura, uma virada histórica análoga à que o surgimento do Cristianismo representou na época do fim do Império Roma-no. E o poeta nos convida a escolhermos a direção da mudança profunda, que assegure que o sonho e a imaginação predominem e que o sagrado de novo se avizinhe.

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Diálogo da Renascença Portuguesa com o Brasil

Movimento filosófico-cultural, fundado no Porto, em 1912, por Jaime Corte-são, Álvaro Pinto, Leonardo Coimbra, visava mobilizar as “reservas espiriturais” do povo português, a fim de superar a crise em que o país se achava mergulhado.

Seus expoentes são: Leonardo Coimbra, o filósofo do criacionismo, e Teixeira de Pascoaes, o poeta da saudade. Seus temas comuns: a crítica da modernidade, do positivismo, a meditação sobre Deus e o mal, a nostalgia do Absoluto, a va-lorização da liberdade.

O movimento buscava fazer emergir em Portugal um pensamento novo, ins-pirado nas correntes filosóficas “em ebulição na Europa (…) do anarquismo ao cristianismo”65.

Em 1910, estudantes que lutavam contra o ditador João Franco criaram a revista A Águia; são eles: Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra e Álvaro Pinto.

Com a adesão ulterior de Teixeira de Pascoaes, foi fundada a associação cul-tural Renascença Portuguesa, que adotou a revista A Águia como seu órgão de expressão.

Leonardo Coimbra é considerado como um dos autores que representam a reflexão filosófica mais fecunda em Portugal no século XX66. Sua meditação se caracterizou por uma recusa do positivismo e do evolucionismo, que o conduziu a propor uma filosofia de caráter espiritualista e metafísico, o criacionismo, que tem como eixo uma inspiração cristã. Concebia a criação como um espelho do amor divino e o mal como decorrência da liberdade do homem quando este se recusa a percorrer a via ascensional em direção à plenitude do ser.

Teixeira de Pascoaes propõe uma mitopoética da saudade, entendida como nostalgia do Absoluto e como síntese de paganismo e cristianismo. O neo-pa-ganismo de Pascoaes expresso na poesia como “messianismo profético” e cele-bração da natureza sacralizada67, tem como contraponto e expressão filosófica o criacionismo de Leonardo Coimbra.

O movimento se propõe, no plano prático, a atuação no campo da educação, lugar privilegiado da renovação e resgate espiritual do povo português. Mostra 65 SEABRA, J. A., “Da Renascença Portuguesa à Nova Renascença: ponte para o futuro”, in Actas do Colóquio Internacional de Pensadores Portuenses Contemporâneos. Lisboa: UCP/INCM, 2002, vol. I, p. 23.66 Id., op. cit.; PINHARANDA GOMES, J., A “Escola Portuense”. Porto: Caixotim, 2005. 67 PASCOAES, T. de, Maranus. Lisboa: Assírio e Alvim, 1999, passim.

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essa inquietação a criação de universidades populares e livres, a edição de obras filosóficas, artísticas, científicas, históricas e a criação em 1919 da Faculdade de Letras do Porto.

Com a ascensão de Salazar, A Águia deixa de ser publicada e a Faculdade de Letras é extinta. Os intelectuais que fundaram o movimento ou se afastaram da vida pública – como Pascoaes – ou se encaminharam para o exílio, como Jaime Cortesão.

Em 1932, um novo grupo inspirado pelos ideais da Renascença Portuguesa emerge, aglutinando antigos alunos da Faculdade de Letras: dentre eles Delfim Santos, Adolfo Casais Monteiro.

Em Lisboa, outros discípulos de Leonardo atuam através de grupos de estudo e de revistas, retomando os ideais da Nova Renascença. São seus antigos alunos que propõem “um diálogo entre as civilizações e as culturas, no horizonte de uma civilização do universal (…)”68. Destacamos dentre os participantes, Agos-tinho da Silva.

Braz Teixeira mostra, em um texto apresentado no Congresso de Pensadores Portuenses Contemporâneos69, as diferentes etapas da reflexão filosófica desen-volvida no Porto e seus laços com o Brasil entre 1840-1950. Assinala a impor-tância, em um primeiro momento, das filosofias de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Farias Brito (pensador brasileiro), assim como a sua inspiração para as duas escolas filosóficas mais importantes “de Portugal e do Brasil no século XX” (ibid., p. 235).

Discípulos de Leonardo, como Agostinho da Silva e Delfim Santos, bem como outro intelectual que não foi aluno de Leonardo, mas tinha orientação filosófica análoga à dos membros da Renascença Portuguesa – Eudoro de Sousa --pertenceram a um grupo de estudiosos que “no início dos anos 40, em torno de Álvaro Ribeiro, José Marinho e Sant’Anna Dionísio, tomaram em mãos o legado de (…) Leonardo, Pascoes (…)” (ibid.). Do grupo participaram Afonso Botelho, Antonio Quadros, assim como outros filósofos, poetas, escritores, artistas.

É através dos discípulos de Leonardo que “a fecunda lição”do mestre repercu-te no Brasil70. Os ideais da Renascença Portuguesa são amplificados, tornando-se projeto de reformulação e resgate do sentido do homem e da vida social. O diálogo se dá através da relação dos pensadores portugueses com membros da

68 SEABRA, J. A., op. cit., pp. 33 e segs.69 BRAZ TEIXEIRA, A., “O Porto e o diálogo filosófico luso-brasileiro”, in Actas…, vol. I, p. 217-242. Ver também: id., O essencial sobre a filosofia portuguesa (séculos XIX e XX), Lisboa, INCM, 2008.70 Id., ibid., passim. Ver também LEITE, R. M., e LEMOS, F. (orgs.), A missão portuguesa. Rotas entrecruzadas. Bauru/SP. EDUSC/Editora UNESP, 2003, passim; e GOBB, M. V. Z.; FERNANDES, M. L. O.; JUNQUEIRA, R. S., Intelectuais portugueses e a cultura brasileira. EDUSC/UNESP, 2002, passim.

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Escola de São Paulo, exponencialmente representada por Vicente Ferreira da Sil-va e Miguel Reale.

É através da criação do Instituto Brasileiro de Filosofia, por Miguel Reale, em 1949, e da Revista Brasileira de Filosofia, em 1951; da revista Diálogo (1955), fundada e dirigida por Vicente Ferreira da Silva, e da revista Cavalo Azul, criada e dirigida por Dora Ferreira da Silva, sua esposa, após a morte repentina de Vi-cente – que o diálogo também ocorreu.

No Brasil, Agostinho e Eudoro mantiveram por breve tempo, mas com in-tensidade, contato direto com Reale e Vicente; o diálogo à distância, epistolar, e durante a visita que fez ao Brasil, foi o realizado com Delfim Santos71.

Os temas comuns foram a meditação sobre o sagrado, a reflexão sobre a cul-tura, a afirmação da liberdade e do laço profundo entre filosofia e poesia. Como na Renascença Portuguesa, no Brasil os expoentes dos dois campos – filosofia e poesia – tornam seus caminhos complementares. A poesia de Dora Ferreira da Silva e a reflexão de Vicente Ferreira da Silva e de Reale evidenciam aspec-tos desse diálogo. Um texto importante de Vicente, Sobre a poesia e o poeta, foi escrito por Vicente, asseverava Dora, com sua colaboração; Reale aventurou-se pela poesia, e fez estudos sobre os laços entre Direito e Literatura, que ainda repercutem.

A participação de Agostinho e de Eudoro, nas três revistas, mostra o diálogo continuado entre autores brasileiros e portugueses. Os temas do sagrado, da fi-losofia da mitologia e da mística são axiais nessa troca. Por sua vez, Reale, presi-dente do Instituto Brasileiro de Filosofia, promoveu o estreitamento de laços en-tre os pensadores–herdeiros dos ideais da Renascença Portuguesa, como: Delfim Santos, Antonio Quadros, Afonso Botelho, acolhidos em congressos e reuniões científicas no Brasil e como colaboradores da Revista Brasileira de Filosofia.

Neopaganismo, cristianismo, mística72: impossível não lembrar a síntese da vertente leonardina e da vertente pascoalina realizada na trajetória dos escritos de Dalila Pereira da Costa, pensadora do significado simbólico de Portugal e de seus laços com o Brasil. Emblema dessa reflexão é o texto: “A ‘Peregrinação’: uma ascese portuguesa”, publicado na revista Cavalo Azul73. O texto aborda os temas do sagrado, do sacrifício, do amor, do significado da aventura marítima dos portugueses. Nele repercute a dupla inspiração de Leonardo e de Pascoaes: dizer o sentido do homem e do mundo, mediante a reflexão sobre a travessia da vida e do tempo, entendida como caminho ascensional e resposta à nostalgia do Absoluto.71 SANTOS, F. D. e CARVALHO, J. M. de., Delfim Santos e o Brasil. Lisboa: Arquivo Delfim Santos, 2011.72 SILVA, C. H. do C., “Filosofia e mística na Escola Portuense ou destino místico de uma literatura pensante?”, in Actas..., vol. I, pp. 291-322. Menções a Dalila Pereira da Costa, pp. 297 e 306.73 COSTA, D. P. da., “A Peregrinação: uma ascese portuguesa”. SP: Cavalo Azul, n. 8, Maio-Junho, 1979, pp. 85-108. Ver também, infra: Dora Ferreira da Silva. Caminhos em direcção ao sagrado.

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A repercussão no Brasil dos ideais da Renascença Portuguesa se efetuou pelo recurso a fontes comuns da tradição filosófica ocidental destacando-se a mís-tica de inspiração neoplatônica e agostiniana, na qual o percurso do homem no tempo e no espaço é lido como possibilidade aberta de uma via ascensional em direção a Deus, como se pode ver na leitura da história de Dalila Pereira da Costa, Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Antonio Quadros, Vicente Ferreira da Silva. E também o recurso a fontes fenomenológicas na axiologia de Reale, na fenomenologia da religião e nas obras de Husserl, Heidegger, em Eudoro de Sousa, Vicente e Dora Ferreira da Silva. Na confluência do rigor crítico e da formulação de um poetar pensante, podemos ver ainda, nesses autores a busca da matriz grega, a retomada dos pensadores originários; a valorização do mito como acesso ao limite extremo da possibilidade da linguagem, tal como encon-tramos, por exemplo, na lição de Eudoro de Sousa e seus discípulos brasileiros – dentre os quais destacaria o esplêndido trabalho de Ordep Serra, de traduções críticas e comentadas dos hinos homéricos.

A repercussão se dá também através de uma importante ação educativa e cultural, realizada exponencialmente por Casais Monteiro, Eudoro de Sousa, Agostinho da Silva, Jaime Cortesão, representada: a) pelo oferecimento de cur-sos de altíssima qualidade e, mais profundamente, pela contribuição na criação de universidades e bibliotecas, centros de estudo, e atuação em universidades recém-criadas no Brasil:Brasília, Federal da Paraíba, Federal de Santa Catarina, criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia, para citar apenas algumas; b) pela promoção e participação importante em even-tos e congressos: o congresso do IV Centenário da fundação de São Paulo; o Congresso Luso-Brasileiro de Escritores na Bahia; a participação nos congressos realizados pelo Instituto Brasileiro de Filosofia; c) mediante a atuação editorial e em jornais de grande porte em São Paulo e Rio de Janeiro; estudos de Jorge de Sena74sobre cultura e literatura brasileira, mencionando uma das mais im-portantes vozes da poesia brasileira contemporânea, Hilda Hilst; d) através da contribuição de Jaime Cortesão como historiador e investigador, promovendo a publicação de textos portugueses na Editora Livros de Portugal; e) através das lições de Casais Monteiro, Jorge de Sena, Vitor Ramos, em Assis e Araraquara, e mesmo fora das universidades, como escritores, jornalistas, artistas, eruditos, promovendo a renovação do teatro, concertos e recitais.

Essa espantosa atuação dos intelectuais portugueses na vida universitária e cultural do país levou o Professor Antonio Cândido de Melo e Sousa, da Uni-versidade de São Paulo a falar de uma “missão portuguesa”75, por analogia com 74 SENA, Jorge de, Estudos de Cultura e Literatura Brasileira. Lisboa: Edições 70. Aborda o livro da poetisa Hilda Hilst (que era amiga e frequentou a casa de Vicente e Dora Ferreira da Silva), Trovas de muito amor para um muito amado Senhor. São Paulo: Ed. Quíron/INL, 1980, p. 273.75 MELO E SOUZA, A. C., in GOBBI, FERNANDES, JUNQUEIRA, Intelectuais portugueses e a

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a chamada de “missão francêsa”, colaboração de professores franceses que, com sua atividade e presença, marcaram profundamente a Universidade de São Paulo nos anos de sua fundação. A expressão “missão portuguesa” designa a atuação dos intelectuais portugueses, com resultados convergentes, apesar de terem vin-do individualmente, como exilados, num primeiro momento.

É sobretudo na área de Letras que a compreensão do ideal da Renascença Portuguesa se expõe, no Brasil. No campo da Filosofia, o Grupo de São Paulo, a Escola de São Paulo, polarizados em torno de Vicente Ferreira da Silva e Miguel Reale, expressou o acolhimento das teses centrais da Renascença: a concepção de uma ética voltada para o amor e o serviço ao outro, para a promoção de ser; a concepção da história como projeção, no tempo, dos mitos fundadores que inspiram a ação; a expectativa de uma superação possível da crise da civilização ocidental, na direção de uma nova concepção do homem e do sagrado; a priori-dade do mito e do símbolo sobre a razão discursiva e instrumental.

A fundação em 1990 do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira com o apoio em Portugal de Francisco da Gama Caeiro e de Miguel Reale no Brasil, assim como os colóquios Tobias Barreto e Antero de Quental, promovidos desde então alternadamente, ora em Portugal ora no Brasil, visaram favorecer o estudo siste-mático das relações Brasil-Portugal no âmbito da especulação filosófica. Mostra-ram a repercussão contemporânea do projeto de renovação da vida do espírito e da valorização do diálogo, assim como possibilitaram o exame sistemático dos marcos dessa tradição espiritual76.

Num tempo mais próximo de nós, as revistas Nova Renascença, fundada em 1980 por José Augusto Seabra (entretanto extinta), e Nova Águia, lançada em 2008 (e que se mantém: novaaguia.blogspot.com), reativam as propostas dos mestres inspiradores, ampliando-as na direção de um aprofundado diálogo in-ternacional, que visa sugerir alternativas de ultrapassamento da nova e grave crise contemporânea na qual todos os povos se acham mergulhados. Uma dessas alternativas é o estímulo e o favorecimento de uma aproximação entre os povos lusófonos.

Uma última observação: à margem da universidade mas com repercussão in-tensa, a poesia de Carlos Maria de Araújo tem ressonâncias importantes na obra poética de Hilda Hilst. Ao poeta português, que viveu vários anos no Brasil, ela dedica no grande poema Trajetória Poética do Ser, os versos da parte intitulada “Iniciação do Poeta”; e na morte do amigo, dedica a êle os belíssimos versos de Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araujo, série de poemas divididos em duas séries: Corpo de Terra e Corpo de Luz.

cultura brasileira. São Paulo: EDUSC/UNESP, 2002. Ver também LEMOS, F., e MOREIRA LEITE, R. (orgs.), A missão portuguesa. Rotas entrecruzadas. São Paulo / Bauru: EDUSC/UNESP, 2003.76 BRAZ TEIXEIRA, A., O Porto e o diálogo..., pp. 217-241.

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São de Corpo de Terra os versos:Dorme o amigo no seu corpo de terra/ E dentro dele, a crisálida ama-nhece: / ouro primeiro, larva, depois asa/ hás de romper a pedra, pastor e companheiro.

E de Corpo de Luz os versos:Teu sono não é o sono vulgar. Estendes a vigília/ E apareces através da opacidade / Também assim / Repousa o mar77.

A música dos versos de Carlos Maria Araújo parece estar presente na poesia de Hilda. Um estudo comparado para estabelecer a profundidade e os limites do diálogo entre os dois poetas assinalaria, a nosso ver, aspectos ainda pouco estu-dados do significado amplo e marcante, no Brasil, das relações inspiradas pelo movimento da Renascença Portuguesa.

77 HILST, H., Poesia. São Paulo: Ed. Quíron/INL, 1980, pp. 273-274.

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verdade, ciência e poesia em Milton vargas

1. IntroduçãoNascido em Niterói, Milton Vargas foi cedo com a família para São Paulo.

Estudou no Colégio de São Bento, com Vicente Ferreira da Silva, do qual desde então tornou-se amigo.

Fez o curso superior de Engenharia na Escola Politécnica da USP e em 1946, o Mestrado em Harvard, tornando-se ulteriormente em 1952 professor da Escola Politécnica da USP, aí chegando a ser catedrático e professor emérito.

Como engenheiro, recebeu diversos prêmios, dentre os quais o Jabuti e o Ro-berto Simonsen; foi agraciado com medalhas de mérito, pelo governo brasileiro, por sua contribuição ao país.

Sua obra, como cientista e pesquisador, desenvolveu-se nos âmbito da Mecâ-nica dos Solos, Metodologia da Pesquisa Tecnológica. Fez importante contribui-ção para Filosofia da Tecnologia, publicada em 1994. Foi um dos fundadores da Sociedade de estudos sobre a História da Ciência, campo ao qual dedicou vários livros e artigos.

A vertente científica da obra de Milton Vargas, resumida em dois escritos-chave: Verdade e Ciência (1981) e Para uma filosofia de tecnologia (1994), mostra uma reflexão original, aberta à inovação e aos valores do saber científico, pensado a serviço do homem.

Essa vertente é contraponteada por uma série de artigos, a respeito da essência do poético, publicados nas revistas Diálogo, a partir de 1955, encerrando-se em 1979; e na Cavalo Azul, dirigida pela poetisa Dora Ferreira da Silva, ulteriormente enfeixados no livro Poesia e Verdade78.

Paralelamente ao exercício do magistério e ao trabalho como engenheiro na THEMAG, firma que ajudou a fundar, dedicou-se à Filosofia e à crítica literária.

António Braz Teixeira o situa como um dos membros da Escola de São Paulo e Gilberto de Meio Kujawski como um representante do Grupo de São Paulo79. A presença de autores que pertenceram ao círculo ou foram aí estudados, citados nas obras de Vargas, assim como a corrente filosófica a que se vincula, eviden-78 VARGAS, M., Poesia e Verdade. São Paulo: Duas cidades, 1991.79 Veja-se também nosso O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM, 2000. E o texto de BRAZ TEIXEIRA, A., “Conhecimento e ‘senso comum’ no pensamento de Heraldo Barbuy e Gilberto de Melo Kujawski”, in Revista Cultura, nº 29 (nova série), 2013.

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ciam os laços estreitos que manteve com o Grupo de São Paulo e com o campo da Filosofia. Em 1951, foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia, tornando-se seu vice-presidente por vários anos, aí ministrando cursos de Filo-sofia e História da Ciência. Fundou, em 1983, a Sociedade Brasileira da História da Ciência, da qual se tornou o primeiro vice-presidente.

2. verdade e Ciência Considerado um autor que se caracteriza pela busca inovadora, nas perspec-

tivas de Shozo Motoyama e de Jorge Pimentel Cintra80, no que tange ao exame do significado e papel da ciência e da tecnologia, assim como de suas implica-ções éticas no mundo de hoje, Milton Vargas tem como ponto de partida de sua meditação81 a afirmação de Jaspers de que a ciência é conhecimento irresistivel-mente certo, cuja verdade independe de ideologias, princípios religiosos, opini-ões pessoais. Ao tentar compreender por que Jaspers vê na ciên cia uma “certeza irresistível’’ (ibid., p. 7), nosso autor busca uma resposta examinando a história da ciência, mostrando que a ciência se apresenta como uma invenção dos gregos no século VI a. C. Estuda, assim, a caracterização da ciência ao longo dos séculos da sua história, no Ocidente.

A investigação de nosso autor seguia essa direção quando descobriu, em 1960, um texto de Popper, A lógica da investigação científica, no qual Popper introduz a noção de falseabili dade como elemento demarcador entre ciência e não ciência. Vargas vê, nesse texto, uma tese complementar à de Jaspers. A ciência implica, segundo Jaspers, uma certeza irresistí vel que torna suas verdades compulsórias, mas cuja “validade se restringe às circunstâncias em que foram experimentadas” (ibid., p. 9. Grifo nosso). Por sua vez, Popper diz que as teorias devem poder ser falseáveis, para serem científicas; mas diz também que “não são verdadeiras fora de circuns tâncias experimentais em que se expõem como tais” (ibid. Grifo nosso) como já o afirmara Jaspers, diz Vargas.

Qual o valor da complementaridade percebida por nosso autor entre as teses de Jaspers e as de Popper? É a de ajudar a compreender a demarcação entre filo-sofia e ciência. Esta demarcação está intimamente relacionada com o problema da “verdade das asserções científicas e filosóficas” (ibid., pp. 91 e 93) e com o esclarecimento do que é ciência.

Para realizar esse intento, o de esclarecer o que é ciência e o que é verdade, nos âmbitos da ciência e da filosofia, Vargas retoma o confronto das teses de Jaspers e de Popper, bus cando novamente mostrar que são complementares e não opostos absolutos. Apresenta, para tanto, inicialmente, a concepção de ciência de Jaspers,

80 MOTOYAMA, S., “Apresentação”, pp. IX e X, in VARGAS, M., Para uma filosofia da tecnologia. SP: Alfa-Ômega, 1994; CINTRA, J. P. Prólogo, p. XI, in op. cit.81 VARGAS, M., Verdade e Ciência. SP: Duas Cidades, 1981.

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evidenciando sua pretensão à validade universal, a referência às hipóteses que a fundamentam e o caráter de conheci mento que vale por si, que se impõe por si.

Em seguida, Vargas apresenta a concepção de ciência de Popper, mostrando que nela teoria e experiência se conjugam e que o saber daí resultante é essen-cialmente um saber capaz de falseação. O critério de cientificidade de um saber é pois a falseabilidade, não a verificabilidade. A característica da ciência é ser con-jecturai, teoria só validada enquanto não refutada por fatos, quer dizer, enquanto teoria “potencialmente refutável”.

Para nosso autor, Jaspers e Popper são opostos complementares, uma vez que a ciência exige o contínuo confronto com a realidade, para assegurar suas certe-zas; mas se impõe a nós como verdade inexorável. A idéia de um saber cuja ver-dade é provisória, compor tando reformulações para se aproximar do real seria o denominador comum entre Jaspers e Popper. A busca do conhecimento é a busca da verdade e da compreensão de um con junto de coisas, decifração de um mundo. A decifração repercute sobre o homem, modificando sua relação com os outros homens e também com seu próprio compreender, con sigo mesmo e com seu modo de ser.

Milton Vargas recorre, para expor sua concepção de ciência e verdade, a tex-tos de Vicente Ferreira da Silva e de Eudoro de Sousa, assim como a Husserl, Heidegger, De Waelhens, Delfim Santos. Apóia-se, portanto, na escola de ins-piração fenomenológica e heidegge riana que, em Portugal e no Brasil, difundiu uma nova visão de ciência, verdade, homem, marcante desde então na filosofia luso-brasileira.

O pensador aplica ao campo da epistemologia a tese central de sua leitura da história da ciência: uma nova teoria não exclui totalmente a anterior, mas responde a novos desafios, aos quais a teoria anterior não foi capaz de responder. Assim, todas as teorias devem ser focalizadas à luz do contexto histórico-cultural em que nasceram e ter sua validade cir cunscrita aos paradigmas e eventos que pode abarcar, nos marcos de sua atuação possível.

Mantendo a sua adesão inicial à escola fenomenológica, Vargas discute a questão da relação entre verdade e não-verdade à luz dessa escola. Faz, para tan-to, o confronto das teses da fenomenologia com as do neopositivismo. Afirma que verdade é “algo que se diz de alguma coisa; está portanto [relacionada com a] linguagem (...) [mas] também [é] alétheia, descobertura (...) de uma realidade que tendia a encobrir-se por trás das aparências enganosas dos fenômenos (...) [daí] verdade é dizer teoricamente o que a realidade (...) é” (ibid., p. 111).

Outro marco importante da meditação de nosso autor foi a leitura da obra Lógica, Semântica, Metamatemática, de Tarski, cujo capítulo dedicado ao con-ceito de verdade em linguagens formalizadas o impressionou vivamente. O texto de Tarski, descoberto em, 1960, na tradução brasileira, fora publicado em 1935.

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Põe em relevo as dificuldades para se falar da verdade no âmbito da linguagem coloquial. As linguagens formalizadas valem -se da escolha de sentenças axio-máticas das quais deduzem conseqüências consideradas verdadeiras, desde que obedeçam a regras de inferência previamente definidas. Para que tais sentenças possam ser verdadeiras em relação ao mundo, as linguagens formalizadas de-verão ter sentido material. Utilizando o recurso a sentenças comprováveis por dedução de axiomas verdadeiros, Tarski construiu uma definição geral das sen-tenças verdadeiras, propondo uma classe a que estariam submetidas todas as sentenças verdadeiras. Chamou a essa classe de definição adequada de verdade, quando dela resultaram sentenças verda deiras, isto é, sentenças que satisfaziam todos os objetos de uma classe.

Em 1952 Tarski publicou outro escrito, Semântica e filosofia da linguagem, no qual expôs a concepção semântica de verdade, estudando a aplicação da noção a outros ramos de ciência, como a Matemática e a Física.

Inspirado em Tarski, Vargas entende a verdade como expressão adequada à realidade como experiência. Essa adequação supõe a coerência lógica do sistema científico como sua condição; e também a verificação, que interpreta os dados e o que é expresso por ela. Realiza, assim, uma concepção de ciência que implica: coerência lógica, adequação epis temológica, verificação empírica e certeza irre-sistível, como suas características, fundindo as três vertentes em que se apóia: Jaspers, Popper, Tarski.

Essa concepção de ciência, fundada na coerência lógica e verificação empí-rica, deve contudo levar em conta que há graus de universalidade, de modo que uma teoria científica só tem validade no horizonte das circunstâncias em que “suas asserções são satisfeitas com seus objetos”, tanto no âmbito das ciências dedutivas quanto no das ciências empíri cas. Assim, a teoria aceita como válida, em uma dada época, só pode ser substituída por outra mais ampla, que a englobe e responda a novas indagações.

Mas esse saber, o da ciência, não esgota as possibilidades de conhecimen-to e pode estar sendo posto em uma posição secundária, com a emergência da “tecnicização da ciência” (ibid., p. 130) que caracteriza o mundo moderno. Essa reflexão abre o livro Para uma filosofia da tecnolo gia (ibid., p. 15). Na primeira parte do livro, dedicada ao tema filosofia e ciência, o capítulo inaugural aborda a relação entre ciência, técnica e realidade; na segunda parte, o primeiro capítulo estuda o logos da técnica.

Entendendo a ciência como atividade e saber – vinculada desde a sua origem com a noção de teoria, que, como assinala, é palavra derivada do grego theoria, significando ver, contemplar -, nosso autor faz uma abordagem histórica desse tipo de conhecimento. Mostra que, a partir do Renascimento, a ciência deixa de

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ser apenas um contemplar, um ver o essencial, para ser também um atuar, em busca do domínio da natureza.

A ciência não apenas se torna uma via teórica de compreensão do mundo, màs tam bém implica uma face prática, um atuar sobre o mundo. É esquema in-terpretativo, modelo lógico que comporta hipóteses, antecipações e conjecturas sobre sua finalidade e/ou sobre fatos. A teoria é interpretação da realidade, e há três tipos de modelos interpretati vos fundamentais: a filosofia, a história e a ciência. Há um vaivém entre a interpretação do real pela teoria e a modificação do real interpretado, moldado pelo homem. A ciência é um tipo de saber teórico, tem estrutura lógica claramente posta; é também atividade e por isso, inscrita “na história (...) e deverá ser encarada como um processo” (ibid., p. 15). Como a filosofia, a ciência surge do espanto perante o mundo, é teoria que visa conhe-cer de modo competente a ordem do mundo e solucionar problemas práticos. Estreitamente associada a ela, a técnica (techné) é habilidade em realizar modifi-cações no mundo, servindo ao homem para que aí ele viva melhor. O campo da techné abrangia, nas suas origens, as habilidades profissionais, como a medicina, a arquitetura, a mecânica. É um “saber que só se realiza como aplicação prática e não como contemplação” (ibid., p. 18). Visa modificar o mundo, intervir na natureza. A transformação da natureza, feita pelo homem, leva-o a construir a cultura, campo de realidade preenchido por todos os produtos das atividades humanas.

Relacionando filosofia, ciência e técnica, como expressões da cultura e inspi-rando-se em Ortega, Cassirer e Bunge, Vargas discute o logos da técnica.

Entendendo, na esteira de Cassirer, a cultura “como um sistema simbólico” (ibid., p. 172 e segs), mostra que esta vincula-se estreitamente à técnica e à lin-guagem, evoluindo graças à associação entre símbolos, que representam a coisa percebida e organizam a utilização humana dos artefa tos. Perspectiva análoga encontra em Ortega, quando este examina, no Meditação sobre a técnica, o papel da técnica: levar o homem a viver melhor.

Mostra que no Renascimento ocorreu “uma confluência entre técnica, arte e ciência” (ibid., p. 178), dado que, a partir de então, o saber fazer da técnica é orientado pela ciência. O saber teórico abandonou o critério de verdade baseado apenas na coerência lógica e buscou, formulando conjecturas, confrontar teoria e experiência, aproximando-se da técnica. Mas é só no mundo contemporâneo que surge a indagação sobre o logos da técnica. Tal logos é a tecnologia, realização conduzida pelo conhecimento científico: “(...) a tecnologia (...) visa específica e diretamente as obras ou produtos (...) estuda os materiais, os processos e os mé-todos de projeto, construção e fabricação que são empregados pela engenharia e pela indústria” (ibid., pp. 179-180).

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A essência da técnica é adaptar a natureza ao homem para que ele viva me-lhor no mundo; a da tecnologia é empregar o saber científico para solucionar os problemas da técnica (ibid., p. 180).

Situando-se entre o saber teórico, que busca a verdade, e a técnica, que busca a utilidade, – a tecnologia também constitui um saber.

Vargas se propõe a construir uma filosofia da tecnologia, centrada na in-dagação sobre a sua essência, seu critério de verdade, sua caracterização como saber e seus valores. Aspectos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e éticos estão envolvidos nessa meditação. A essência da tecnologia é expressa em sua maneira de ver o mundo, que permite ao homem realizar sua busca de uma vida melhor. Modo de ver, modo de desvelar, de descobrir e conhecer o mun-do, a tecnologia sintetiza, na verdade que estabelece, duas fontes diversas das quais emerge: a ciência e a filosofia. Da ciência, guarda o critério de adaptação entre teoria e experimentação e o dever de passar pelo teste da utilidade para ser considerada válida. Da filosofia retém a idéia de método, que a torna “um ins-trumento de conhecimento do mundo (...) que emerge da própria tecnologia” (ibid., p. 185).

Invocando o texto de Julián Marías Cara ou coroa da eletrônica, Vargas mos-tra que não é possível “eliminar a utilização da tecnologia, nem esperar que ela se auto-limite”, mas sim que submetamos à apreciação axiológica e ética suas implicações, de modo a orientar sua utilização.

Afirmando a exigência da liberdade política, que possibilita subordinar a utili-zação da tecnologia à valorização da liberdade dos povos e aos direitos humanos, Vargas reconhece que, numa civilização técnica planetária, é preciso garantir a defesa do homem. Fala da necessidade de o desenvolvimento técnico ser subme-tido ao que chama de filtros sociais. Mostra que as sociedades contemporâneas são dotadas de um sistema tecnológico, que deve funcionar harmoniosamente, para que o objetivo de viver melhor seja alcançado.

Em resumo, a meditação sobre as relações entre ciência e verdade, fio con-dutor de toda a reflexão de nosso estudioso, parte da demarcação entre saber comum e saber científico, entre ciência e filosofia, e se desdobra, através de uma abordagem das relações entre ciên cia e técnica, e no pensar a respeito da técnica e da tecnologia. Esse percurso é feito sob quatro ângulos filosóficos: o ontológico, o axiológico, o epistemológico e o ético.

Inspirado na tradição da escola fenomenológico-existencial e na filosofia de Heidegger, dialoga também com a obra de Popper e discute criticamente o neopositivismo lógico e as contribuições de Popper. Estabelece, desse modo, uma tentativa de superar as oposições vigentes entre as correntes filosóficas, mostrando a complementaridade e a convergência de algumas posições, ape-sar de sua oposição aparente. O lugar privilegiado dessa conver gência é a me-

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ditação sobre a linguagem, denominador comum de todas as correntes. É na linguagem que se dá a verdade, que o significado aparece ao homem. E Vargas conclui apresentando sua concepção de ciência: saber válido que se impõe ir-resistivelmente, mas restrito ao marco teórico que o inspira; e saber de caráter provável, em transformação, em evolução, pela substituição de teorias vigentes por teorias mais amplas, sem que haja des truição do já alcançado. Assume, no que tange à ciência, uma atitude análoga à de Gaston Bachelard, expressa nas obras do filósofo francês sobre o caráter aproximado do conhecimento cientí-fico e no La Philosophie du non. Mas, no que tange à técnica, ao discutir suas implicações éticas, inspira-se em Heidegger, de modo que, apesar de considerar o saber tecnológico um saber que se afirma como incontornável, no mundo contemporâneo, também aponta seus riscos – inevitáveis – e a necessidade de se subordinar a ciência, a técnica e a tecnologia a uma ético-axiologia que bus-que, como na antiga tradição grega, o bem viver como seu objetivo último. E na esteira da releitura dessa tradição nosso autor vincula estreitamente verdade e arte, imaginação e razão, conhecimento e beleza, como o atesta seu último livro, Poesia e Verdade. Ainda aqui a linguagem aparece como o lugar privile giado do conhecer, fio condutor do pensar, no labirinto do mundo. Poesia e Verdade: a poética de Milton Vargas.

3. Poesia e verdadeA apresentação do livro de Vargas, Poesia e Verdade, escrita pelo crítico José

Geraldo Nogueira Martinho, em 1990, destaca a originalidade de reflexão aí de-senvolvida a respeito da essência do poético.

Em que consiste essa originalidade? Em meditar sobre a poesia como forma espiritual, abordando o fenômeno poético a partir da compreensão da poesia na perspectiva dos próprios poetas. Para tanto adota como fio condutor do seu pensar a tese da estreita ligação entre poesia e verdade, já afirmada por Keats, Hölderlin, Novalis.

A tese diz que a poesia desvenda o real como beleza, alcançando o real absoluto, o real como verdade. Nessa direção, Vargas retorna as teses do romantismo e da grande tradição que vem de Píndaro a Petrarca, Milton, Yeats, Antero, Pessoa.

A essência da poesia é desvendar, fazer ver de modo inaugural o mundo, des-velar aspectos do real ainda não apreendidos.

Milton Vargas se inscreve na perspectiva proposta por Dora e Vicente Ferreira da Silva, frequentando o grupo da Diálogo e mantendo, a vida toda, a amizade com Dora Ferreira da Silva, como bem assinala Nogueira Moutinho82.

82 NOGUEIRA MOUTINHO, J. G., “Entre Orfeu e Dioniso”, in VARGAS, M., Poesia e Verdade, pp. 12-13.

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Com Vicente, Milton evoca o caráter poético do pensar, já presente na mais antiga tradição filosófica do Ocidente: os pré-socráticos diziam o filosofar através de poemas.

Na introdução ao seu livro, Vargas diz que os ensaios nele presentes “nunca pre-tenderam ser crítica literária”, mas só buscaram evidenciar “o conceito romântico de poesia como verdade” (ibid., p. 15), sem confundir os dois campos. Tratava de investigar “como e porque a poesia é essencialmente verdade (...) dando a palavra aos próprios poetas” (ibid., p. 16).

É na linguagem que se dá a verdade da poesia. A inspiração reflexiva é buscada em Heidegger, no ensaio Sobre a essência da obra de arte e nos estudos heideg-gerianos sobre a poesia de Hölderlin. Para este, poesia é a palavra originária, que dá nome aos deuses e funda o mundo.

Outro texto importante de Heidegger a que Milton se refere é Ser e Tempo, como veremos adiante.

Na “Introdução” ao seu livro, Vargas faz referência ao valor simbólico da palavra, da poesia, expondo a unidade dos opostos e a polaridade do real, no qual convivem luz e trevas, razão e intuição. Recorre a Lawrence – autor também estudado, como Hölderlin e Heidegger, por Vicente e Dora Ferreira da Silva, seus companheiros na investigação do homem e do poético.

Ainda na “Introdução”, Milton aponta a importância da obra literária para desvelar a essência da regionalidade, nela descobrindo o universal humano. Examina, para tanto, a pintura da realidade brasileira nas obras de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa.

Veremos, no que segue, mais detidamente, esses temas fulcrais. Não são os únicos.

Vargas escreve sobre Eliot e sobre Lawrence em Poesia e Verdade. Não abor-daremos aqui esses estudos, que também refletem a meditação de Dora e Vicente expondo temas significativos da Escola de São Paulo.

Vamos nos ater essencialmente aos dois primeiros capítulos de Poesia e Verdade e aos que se referem a Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, por considerá-los importantes trabalhos sobre o significado do homem brasileiro e sua contribuição para compreender a universalidade do humano. A partir do Brasil, do sertão, Vargas fala da condição humana, espelhada nas obras monumentais de prosa poética de Euclides da Cunha e de Rosa.

No primeiro ensaio, “Poesia e Verdade”, que dá nome ao seu livro, nosso au-tor defende a tese de que o romantismo, “mais que um estilo (...) mais que uma atitude diante da vida”, mais que movimento literário de uma época histórica, é um pensamento, atitude e ação englobantes, buscando “abarcar a realidade como

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totalidade”, identificando verdade e realidade, verdade e beleza. Para Vargas, citando Keats, a “beleza é revelação estética da realidade e essa é a essência da verdade”, assim como a essência do romantismo (ibid., pp. 22-23).

Nessa concepção de verdade, entendida como reflexão que sintetiza os con-trários, “o hegelianismo (...) o idealismo alemão e o marxismo [podem ser vistos como] doutrinas românticas” (ibid., p. 25).

Partindo de Keats, que identifica poesia e verdade, percorre largamente, no Holzwege, o texto de Heidegger sobre “A origem da obra de arte”, e expõe sua própria concepção das relações entre poesia e verdade. Com o pensador da Flo-resta Negra, entende a obra de arte como revelação do ser do homem enquanto existente. Na poesia, pela palavra, o homem funda seu mundo, descobre seu laço com o sagrado. Repetindo o verso de Hölderlin [citado por Heidegger] lembra que “Tudo o que é permanente o inauguram os poetas”83.

E lembrando outros ensaios de Heidegger “Hölderlin e a essência da poesia”, Sobre a essência da Verdade e Ser e Tempo, Vargas mostra que a ontologia fun-damental aí proposta é uma “volta às coisas mesmas”, no sentido de indagar o que é o ser do ente. Interpretando, descreve a radical existencialidade do ser-aí, o Da-sein, o homem, cuja essência é estar lançado no mundo, com a tarefa de compreender, descobrir possibilidades de realização da existência.

Assim, Milton entende o homem como um existente aberto ao futuro, proje-tando seu poder-ser. Existir, para o homem, consiste em articular o sentido do seu ser-no-mundo pela linguagem. Angustiado, preocupado, vivendo uma exis-tência precária e sempre ameaçada pela possibilidade da morte, o homem pode recusar-se a meditar sobre ela, esquecê-la. É a existência inautêntica que então o caracteriza. Ou pode assumir a sua precariedade, buscando construir no mundo o sentido do seu existir. Tal é a existência autenticamente humana, que busca o significado do indivíduo e da vida. Desdobrando sua temporalidade, o Da-sein produz o tempo, estabelece o significado do mundo. O homem está, assim, fun-dado no passado; mas vive no presente, no qual toma decisões, projeta o futuro. Continuamente sendo, o homem é perpassado pela historicidade, a “mobilidade de sua própria existência” (ibid., p. 32).

É meditando sobre a linguagem, a verdade, que o homem vivencia o aberto, seu campo de atuação e de emergência do que é, da verdade entendida como Alétheia, desvelamento, apreensão interpretativa de tudo que existe, deixando ser aquilo que é. Verdade é liberdade, deixar ser, deixar emergir o mistério da totalidade. Seu oposto é o erro, o errar pela via extraviada: a existência inautêntica.

A essência da poesia, “ocupação inocente”, é testemunhar o que é; é expor o diálogo entre os homens e o mundo; entre os homens e os deuses; dos homens

83 HÖLDERLIN, apud VARGAS, M., op. cit., p. 27.

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entre si. Assim, a poesia instaura “o que é permanente, verdadeiro e sagrado (...), o que é essencial para a existência humana”: aquilo que é (ibid., pp. 35-36).

A linguagem inicial, primitiva, era poética. Com ela, os homens denominavam as coisas e instauravam um mundo, aí fundando a sua existência, tornando pos-sível o advir as coisas como verdade: “A linguagem (...) possibilitando o aberto, possibilita ao homem o seu ser-no-mundo” (ibid., p. 37).

Como o homem e o mundo são essencialmente temporalidade, permanente mutação, “caberá à Poesia (...) a redenominação constante dos aspectos mutáveis das culturas (...) o reestabelecimento constante do que deve perdurar e perma-necer”; a partir disso é possível pensar o ente.

A síntese proposta Vargas, invocando primeiro o romantismo, e depois Heide-gger, não é casual. Mostra claramente a meditação na vertente do imaginário e do poético, vigente na Escola de São Paulo, constituída em torno da figura marcante do filósofo Vicente Ferreira da Silva, amigo de Milton. E faz vir à luz o pano de fundo sobre o qual se constituiu seu pensamento, nascido dos diálogos com Vi-cente, Dora Ferreira da Silva, Eudoro de Sousa, como ele próprio a explicita, no texto esplendido do segundo capítulo da Poesia e Verdade, intitulado: “Poesia, filosofia e imortalidade”.

Nesse texto, a meditação de Vargas vai de Orfeu a Vicente e Dora. Aí, a ver-dade da poesia é a que emerge para o homem, como meditação sobre a morte, e busca de transcendência e imortalidade. Fazendo da reflexão sobre a morte o eixo da discussão que empreende, nosso pensador busca responder à inquietante pergunta sobre o seu sentido.

Para tanto, recorre à tradição que fez surgir na Ásia os shamãs, “homens extraordinários (...) que, sobre uma determinada concepção de imortalidade, fundamentaram uma forma cultural”. Descrevendo a iniciação que os levava a serem capazes de abandonar o corpo e viajar, entendiam a alma com a verdadei-ra realidade, de que o corpo era apenas um repositório. Recorrendo ao livro de Doods, Os gregos e o irracional, Vargas menciona a hipótese de que Orfeu tivesse sido “um shamane mítico ou um protótipo dos shamanes” (ibid., p. 39): poeta, mago, mensageiro dos deuses, revelador dos mistérios, afirmava que o corpo é a prisão da alma imortal.

Nos poemas de Homero, nos Cantos de Ezra Pound, afirma-se que o homem pode, em circunstâncias especiais, comunicar-se com os deuses, alcançar a imorta-lidade. A importância do mito órfico da imortalidade da alma, Vargas a reconhece nos textos de Eudoro de Sousa, de Romano Guardini, no Fédon de Platão, na tradição cristã que assinala a presença, na alma, de um impulso ascensional, que salva o espírito e o corpo. A ressurreição é descrita por Dante na Divina Comédia e referida pelos textos dos Evangelhos.

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Mostrando que as idéias sobre a imortalidade da alma perpassam a filosofia ocidental desde a Antiguidade, Milton Vargas aponta várias concepções de salva-ção e de imortalidade, através do tempo e das culturas. O tema inquietou Vicente Ferreira da Silva, constituindo “assunto frequente de suas conversas, como foi também o [assunto] de sua notável contribuição ao IV Congresso Brasileiro de Filosofia em 1963 [e] o motivo principal de seu Diálogo da Montanha, um de seus últimos escritos (ibid., pp. 52-53).

Na revista Diálogo, número V, editada por Vicente e Dora, o pensador paulista se refere ao poema de Lawrence, “O barco da morte”, traduzido por Dora: “A noção de vida, em Lawrence (...) é complexa (...) abrangendo o duplo domínio da vida e da morte”84. A proposta lawrenciana, aceita por Vicente e Dora e mencionada por Vargas, é a de “Superar a separação entre a vida e a morte, é habitar esse domínio unitário (...) do viver e do não viver”85. Milton menciona o tema, abordado no artigo “O duplo reino da vida e da morte”, publicado na Diálogo, número 15.

Ser imortal é ser capaz de viver nessa totalidade, em que os opostos – vida e morte – estão sintetizados.

Essa concepção, em Vicente, mostra a repercussão de uma concepção de Deus e do sagrado, exposta, diz Vargas no artigo “O Deus vivo de Lawrence”, publicado na Diálogo, número 9. Para Vargas, o mundo de Lawrence é aparentado com o da Grécia primordial, campo de fascinação onde os deuses – “poderes desvelantes primordiais” – se manifestam.

Existem muitas imortalidades, como há muitas manifestações do divino, desvelamentos diversos do significado do mundo, diferentes acessos às múltiplas faces da “verdade eterna”86, para Vicente.

E foi no Diálogo da Montanha que Vicente teria apresentado a última for-mulação de seu pensamento acerca da morte, da poesia e da imortalidade. Nela, assinala o avizinhar-se de uma nova concepção do sagrado, através da linguagem simbólica dos mitos e da grande poesia, expressa por Eliot, Lawrence, Hölderlin. Esses poetas sinalizaram a emergência de forças transformadoras do significado do mundo, do “salto para fora da atualidade vigente” (ibid., p. 56-57).

Ainda no horizonte das discussões sobre poesia e verdade, acha-se a meditação de Vargas sobre a literatura brasileira e sobre o significado mito-poético do Brasil. Os polos dessa meditação são as leituras do Brasil a partir da compreensão do interior do país, do sertão tematizado por Euclides da Cunha e por Guimarães Rosa.

84 FERREIRA DA SILVA, V., apud VARGAS, M., op. cit., p. 53.85 VARGAS, M., op. cit.86 FERREIRA DA SILVA, V., apud VARGAS, M., op. cit., pp. 54-55.

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Nosso autor contrapõe as duas perspectivas: a de Euclides da Cunha e a de Guimarães Rosa, dois romancistas-poetas. Euclides é poeta, não só por ver a rea-lidade do sertão, mas por revelar o Brasil que opõe a população do litoral, voltada para a ordem, o progresso, a ciência e a técnica; Brasil “eurocentrado, ilustrado” (ibid., p. 136) que esquece, recusa, a outra população “caótica, arcaica [mas plena] de afetiva passionalidade” (ibid., p. 135).

A dimensão sertaneja, em nós, diz Vargas, é a “dimensão do sonho, da fantasia e da vivência; enfim: do que fomos em nossas origens” (ibid., p. 136).

Euclides opta, decisivamente, pelo Brasil litorâneo, como se vê nos textos de Vargas dedicados a eles: “Dois Sertões: Euclides da Cunha e Guimarães Rosa” (ibid., pp. 133-138) e “O interior de Canudos”.

Rosa, no Grande Sertão: Veredas, recupera, diz Vargas, componente essencial da nossa brasilidade, a “dimensão da nossa própria alma” (ibid., p. 136), através da descrição da vida do sertanejo, intuída no seu significado essencial. Daí Mil-ton dizer: “esses dois sertões [o de Euclides e o Rosa], tão dispares (...) se com-plementam para revelar poeticamente a complexidade de nossa nacionalidade. Uma oposição entre a urgência de uma eficiência técnica (...) e a necessidade de continuarmos (...) aprendendo a viver perigosamente em sonho e imaginação” (ibid., p. 138).

Assim temos: de um lado, a exterioridade, a razão, a ciência, a técnica, o pro-gresso; de outro, o sonho, a imaginação, a mais funda interioridade, a poesia.

Mas a perspectiva de Vargas, é preciso dizer, é mais sutil: ele entrevê poesia também no desvendamento de quem nós somos, os brasileiros, nos Sertões de Euclides.

De que modo se expressa essa poética? Como descrição arrebatadora “de verdades objetivas sobre nossa terra e nossa gente” (ibid., p. 157).

A descrição do interior de Canudos, por Euclides, reflete a concepção de Cunha sobre o movimento e a cidade de Antônio Conselheiro. Recordando as outras lendas associadas à busca de uma sociedade arcaizante, que recusa o pro-gresso e a ciência – tais como a lenda da Pedra Bruta e dos Serenos – Euclides se comporta como um cientista. Descreve o clima, a hidrografia e a flora da região, depois, estuda as características do homem do sertão, seu meio e sua religião. São mestiços, jagunços, que constituem a própria “negação de mortalidade positiva de Euclides” (ibid., p. 140). São vistas por ele como brutos, que identificam uma terra miserável como “a terra de promissão” (ibid., p. 142). Euclides ignora o so-nho, a bravura, a religiosidade de Conselheiro e dos que defenderam Canudos. Os Sertões expõe a ruptura que caracteriza o país: a face litorânea, vinculada ao progresso técnico, às grandes cidades, aos portos de mar, contraposta ao Brasil das favelas, do interior ainda agreste, selvagem, imenso e intacto.

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Milton Vargas opta decisivamente a favor de Guimarães Rosa. Grande Sertão nos ensina a nossa mais profunda intimidade, desvenda “o sertão em nós, [mostra] o quanto fazemos parte dele” (ibid., p. 159).

Alçada ao universal, a vivência do sertão descreve, no brasileiro, a condição humana. Três aspectos principais propiciam a compreensão do ser humano, na obra de Rosa:

O primeiro, na textura do romance: pura temporalidade, puro fluxo, sem a) divisões em capítulos, mas “cheia de recorrências rememorativas”; O segundo, mostra o fluir de uma energia poderosa: o da vida humana b) em seu fluir inesgotável, do qual “Deus (...) é o ‘gatilho’ deflagrador”;O terceiro consiste na trama, que não descreve a natureza ou a subje-c) tividade do escritor, mas mostra o sertão como englobante do mundo objetivo e da interioridade do homem (ibid., p. 160).

Vargas lê a obra de Rosa com as categorias de Bergson, o qual afirmou a tem-poralidade como a essência do ser e mostrou o valor, não só da razão científica, mas da intuição, como caminho privilegiado de conhecimento da realidade, da duração.

Em Rosa, haveria a adoção de uma atitude intuicionista, com repercussão di-reta na própria forma literária da [sua] obra. Esta “deixa de se apoiar na aparente verificabilidade dos fatos narrados (...) para adquirir o tom de sugestibilidade próprio da poesia” (ibid., pp. 162-163). Por isso, Vargas acredita “que Grande sertão: Veredas pode ser colocado entre aqueles raros livros que escritos em prosa, são na verdade poesia” (ibid., pp. 163-164).

Guimarães Rosa teria recorrido ao que Milton Vargas chama de “técnica das lendas”: narra, através de situações-padrão, a condição humana; “torna o sertão próximo e compreensível”, na sua realidade abarcante “e medida da maior gran-deza”. Tentar dizer objetivamente a realidade complexa do sertão – metáfora da condição humana – é perder seu significado essencial. Este estende-se no tempo, flui como um rio. Só o narrar desvenda o sertão em nós e fora de nós; e o des-venda a partir da vida humana, considerada como centro de uma energia que impregna o todo e como fornecedora de tipos, modelos ou padrões que tornam “os acontecimentos e as coisas (...) compreensíveis” (ibid., p. 166).

Narrando a partir dos dois personagens principais, Riobaldo e Diadorim, polos opostos que “formam a totalidade do que existe e dão sentido às coisas”, como “o fogo e a água, o corpo e o espírito” (ibid., p. 168), Rosa nos oferece, diz Vargas, a visão da aventura humana, que, passando pela aprendizagem do viver, conquista o segredo da vida e da morte (ibid., p. 170).

Denominando a totalidade abarcante de sertão, Rosa não o mostrou apenas como “fato geográfico, geológico ou botânico”, como frisava Euclides. O romancista

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de Grande Sertão o instaura em nós e nos faz “conhecê-lo intimamente (...), pois tornou-se poesia” (ibid., p. 171).

Poesia é, para Vargas, um fazer ver, um desvelar a dimensão profunda, es-sencial, da realidade. Fazendo ver o significado do sertão, Rosa devolveu-nos o Brasil poético, mítico, metáfora do mundo, onde o narrar desvenda o significado da realidade e onde, no mais regional e arcaico, na profundidade intocada de imensas terras, espelha-se a aventura humana de viver.

Milton Vargas: cientista e poeta. Na sua obra, legou-nos um exemplo da com-plementaridade entre ciência e poesia, como expressões da verdade.

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Liberdade e reconhecimento em vicente ferreira da silva

Os estudos sobre a ética de Vicente Ferreira da Silva87 centram-se na proble-mática da liberdade, do lúdico, da autenticidade e do amor, presente nos diversos escritos do nosso autor.

Braz Teixeira reconhece três etapas na trajetória intelectual do pensador bra-sileiro: a primeira, voltada para os escritos sobre lógica simbólica, entre 1939 e 1942; a segunda, iniciada pelos Ensaios Filosóficos, de 1948, e que se desenrola expondo a temática antropológica e ética, até 1955, ano que marca o início da terceira etapa, com a publicação da Introdução à Filosofia da Mitologia e se esten-derá até sua morte, em 1963.

A nosso ver, na obra do filósofo (1916-1963), a meditação sobre a liberdade e o reconhecimento de si e do outro são temas correlatos e recorrentes. Desde os Ensaios Filosóficos, de 1948, até os escritos de 1962, pouco antes de sua morte, Vicente a retoma, sob vários aspectos.

Veremos, no que segue, o percurso de filósofo em torno desses temas, bem como a sua evolução progressiva da abordagem fenomenológico-existencial a uma leitura crescentemente original, inspirada no romantismo alemão e em Heidegger, do significado da liberdade, do reconhecimento, na sua vinculação com o tema do sagrado e com exame crítico de nosso tempo e das possibilidades de transcendência propostas ao homem contemporâneo.

Publicado no Ensaios Filosóficos, “Utopia e Liberdade” mostra o homem sem-pre aberto a novas alternativas de ser, tecendo, no plano da ação histórica, a responsabilidade essencial sobre suas decisões. Não tendo modelo invariável a seguir, o ser humano, no seu íntimo, funda poeticamente sua essência, “auto-projetando sua fisionomia humana (...)”88.

No Exegese da Ação, livro de 1949, o pensador propõe “uma moral lúdica” (ibid., p. 137 e segs), para o homem que experimenta a ampliação da consci-

87 BRAZ TEIXEIRA, A., “A Aventura Filosófica de Vicente Ferreira da Silva”, in FERREIRA DA SILVA, V., Dialéctica das Consciências e outros ensaios. Lisboa: INCM, 2002, pp. 7-34. Ver também: PEREIRA, J. E., “Filosofia como idioma de Apelo e de Liberdade”, pp. 43-50; MOOG RODRI-GUES, A. M., “A moral lúdica na obra de Vicente Ferreira da Silva”, pp. 61-72; RODRIGUEZ, R. V., “Aspectos Éticos e Antropológicos do pensamento da Vicente Ferreira da Silva”, pp. 73-84, in Mito e Cultura. Actas do V Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 2001. 88 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas. S. P.: IBF, 1964, Vol. I, p. 65.

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ência e da liberdade através da beleza. Não dispondo de “um modelo prévio de existência (...) [o homem] não tem outro recurso senão transcender imagi-nativamente para o seu poder ser (...)”, diz nosso autor. Invocando Hölderlin e Heidegger, entende que a poesia e o mito – expressões da linguagem original do sagrado – imprimem “um paradigma de ser sobre a nossa consciência” (ibid., p. 121). Para Vicente, como para Ortega, explicitamente citado por ele, “a vida é uma faina poética” (ibid., p. 122), pois a palavra poética, linguagem originá-ria, descortina nossas possibilidades de ser, uma vez que é “um verbo distensivo e libertador, uma franquia para a transcendência” (ibid., p. 123). Enfatizado o papel emancipador e de libertação, desencadeado pela obra de arte, vê nesta a expressão do sagrado que arrebata o homem, transfigurando-o e impelindo-o a metamorfoses e realização das potencialidades mais altas do seu existir (ibid., p. 122 e segs). É no horizonte do Exegese da Ação que o filósofo fala de uma “moral lúdica”. Nesse texto, Ferreira da Silva diz o que o homem contemporâneo vive uma vida degradada, tem “consciência de uma privação” (ibid., p. 137 e segs), da perda do sentido da existência numa sociedade técnica, subordinando o viver à finalidade econômica.

Ora, nas tradições filosóficas antiga e medieval, a felicidade e o bem-viver – objeto da ética – estão vinculados à expressão da vida do espírito, à contempla-ção, ao exercício da racionalidade; hoje, o jogo, o lúdico, consistiriam no “mais próximo paradigma de um sentido de felicidade que o homem moderno perdeu quase inteiramente” (ibid., p. 141).

Um ensaio importante do livro é o que aborda as figuras emblemáticas de Novalis e Rilke, poetas que visam captar o sentido da realidade via intuição emo-tiva e artística, afirmando a existência de uma liberdade transcendental, símbolo de vida do espirito e do transcender permanente do mundo e do homem. Aqui, a meditação sobre a liberdade aparece como reflexão sobre a vontade de ultra-passar limites, sobre a busca permanente de transcendência que caracteriza os humanos, uma vez que “não temos uma forma de ser [previamente estabelecida] e que nossos limites se apresentam como convite e proposição a superá-los (...)” (ibid., p. 115).

É no âmbito da crítica ao mundo contemporâneo, à civilização técnica que nosso filósofo afirma a tarefa poética do ser. Nesse horizonte surge, em 1950, o livro Dialética das Consciências89. Recordando a tradição filosófica moderna, representada por Hegel e na contemporaneidade, evocando “Husserl, Scheler, Heidegger, G. Marcel, Jaspers” (ibid., p. 146), o filósofo paulista neles encontra as balizas de sua meditação sobre a alteridade e a intersubjetividade. É sob a égide do verso de Hölderlin: “nós, homens somos um diálogo” e do Fenomenologia do Espírito, no qual “Hegel anuncia que somos a luta do mútuo reconhecimento 89 Id., Dialética das Consciências, in id., OC., vol. 1, pp. 145-230.

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(...), processo de conhecer no outro a subjetividade que somos”90, que Vicente desenvolve sua ética da alteridade e sua reflexão sobre o reconhecimento.

O outro é tematizado como problema teórico e como problema prático, par-tindo da dialética do senhor e do escravo, proposta por Hegel no Fenomenolo-gia do Espírito. Mas Vicente também aborda o homem como ser continuamente aberto à transcendência, à ação que o conduz “ao conhecimento de si mesmo e do outro, ao cogito ampliado que revela seu ser-com-o-outro”91. Retomando a questão da existência compartilhada com os outros homens, Ferreira da Sil-va evoca as categorias heideggerianas da analítica existencial proposta em Ser e Tempo: o homem é um ek-sistente, um ser-no-mundo, um ser com-o-outro. Evoca também Jaspers, Buber e Sartre, para os quais a correlação eu-outro é axial para o reconhecimento e a compreensão de si. Diz ainda, com Heidegger, que o modo de ser próprio do homem se expressa como cuidado e solicitude (ibid., p. 111).

Na ética da alteridade assim evidenciada, Ferreira da Silva afirma, com Hei-degger, o valor da palavra criadora, da poiésis, como fundadora do mundo e da história. Cita expressamente “Hölderlin ou a essência da poesia” e conclui que é na linguagem originária dos mitos – poesia primordial – que é preciso buscar o “elo primigênio” que unifica as consciências (ibid., pp. 310-397). Sinaliza assim o surgimento de uma temática que aprofundará na sua filosofia da mitologia e nos Diálogos, publicados póstumamente92.

Ainda no Dialética das Consciências, a questão do reconhecimento aparece no capítulo “O processo do reconhecimento”, no qual invoca as contribuições con-vergentes de Gabriel Marcel, Berdiaeff e Jaspers, os quais falam sobre o ser hu-mano como aquele que busca em si a sua verdade. Na filosofia contemporânea, o reconhecimento é enfocado como uma manifestação do “nosso ser (...) como liberdade”93. Evocando Sartre e Jaspers, nosso filósofo descreve o outro como um análogo a nós, consciente de si. Nesse reconhecimento, dá-se a comunicação e a luta entre os homens, intrínsecas “à dialética das consciências” (ibid., p. 168).

O reconhecimento de si implica a auto-superação, o ir além de si mesmo, diz nosso filósofo, apoiando-se em Hegel, Grassi. Para ele, a alegria, a felicidade, a realização do valor pessoal, a fidelidade a si mesmo, constituem as vias heróicas da consciência, no exercício do viver.

90 Id., ibid., p. 149. António Braz Teixeira, no seu prefácio, “A aventura filosófica de Vicente Fer-reira da Silva”. In: FERREIRA DA SILVA, V., Dialética das Consciência e outros ensaios, pp. 8-27, particularmente, considera o livro como marco principal da segunda fase do pensamento do filó-sofo de São Paulo. 91 FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 159.92 Id., O. C., vol. II, 1966, pp. 569-538. 93 Id., Dialética das Consciências, O. C., vol. I, p. 167.

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É da dialética entre o si e o outro que surge a confirmação de nós mesmos:“a presença do outro nos arroja da minoridade do ser-entre-as-coisas (...) é

diante do seu testemunho (...) que devemos operar a emancipação do nosso ‘em sí’ (...) O homem [é] um mais que sua própria vida, um mais que procura o seu direito e o seu reconhecimento” (ibid., p. 170).

Mas o filósofo percebe que o laço entre o eu e outro está sempre ameaçado pelo conflito, pela luta das consciências, como bem vira Hegel.

E é criticando Hegel, o qual pensa o reconhecimento apenas no âmbito da luta e do trabalho, que o pensador brasileiro, citando Huizinga, mostra que no Homo Ludens este evidencia “o que há de festa, regozijo e pura expansão lúdica na evolução da cultura e da consciência humana” (ibid., p. 171). Para Vicente, o homem não se esgota no existir coletivo, mas expressa a verdade existencial da interdependência entre os sujeitos individuais. Assim, podendo reconhecer a consciência e a liberdade dos outros, reafirmamos as mais profundas significa-ções de nós mesmos (ibid., p. 173).

As formas do reconhecimento do outro variaram ao longo da história; nelas se desenvolve a “patenteação da presença pessoal (...) [que] é o resultado do en-trechoque formador do consciências e da verdade que nasce da dor, do esforço e do sofrimento” (ibid., p. 174). Elenca, assim, a caracterização da noção de re-conhecimento:

- em Hegel: o amor é o que conduz à unificação das consciências; o reconhe-cimento é sua face, no plano universal;

- em Ortega, quando este mostra que o jogo, a atividade lúdica, é “o lugar das emulação e da luta pelo reconhecimento”;

- em Huizinga, que afirma que o lúdico abrange a totalidade da cultura, todos os seus fenômenos;

- em Schiller e Frobenius, o jogo é expressão da liberdade e do reconhecimento reciproco, desde a mais remota tradição, a dos jogos olímpicos, que implica-vam a expressão criadora da consciência de si, a transcendência do mero viver, a abertura de novas possibilidades de ser (ibid., p. 177).

Dialética das consciências ainda aborda a solidão e o encontro, pondo em re-lêvo a ambiguidade essencial da existência pública: nela, duas faces antagônicas do si são postas ao outro. De um lado, o sujeito se oculta, se mascara, fazendo da esfera pública o campo “da contrafaccção, dissimulo e hipocrisia” (ibid., p. 182) como vários moralistas já assinalaram, dentre os quais Scheler, Gabriel Marcel e Buber. Estes descrevem a esfera pública como o lugar do ódio e da objetiva-ção do outro. Mas também mostram que ela pode ser o lugar da superação do isolamento, se houver autêntica comunicação, autêntico viver no qual a pessoa se abre ao diálogo, à alteridade e expressa seu poder-ser e sua liberdade, como Buber e Jaspers já mostraram.

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A dialética das consciências patenteia, na opinião de Ferreira da Silva, a busca de um ser-mais, cuja via é o amor, visando a realização, pelo indivíduo, das pos-siblidades mais altas de sua natureza. A arte e o amor seriam as formas de apro-ximação a esses ideais, como nos dias de hoje Scheler, na obra O Santo, o gênio e o herói já indicou, assim como Platão o fizera no Banquete. Através da arte e do amor, “o mundo abre-se para o valioso e para o sagrado (...)” (ibid., p. 211).

A primeira aproximação ao tema mostrou que “o homem é o revelador da verdade das coisas, aquele que transforma (...) em linguagem (...) o que jaz na obscuridade do irrevelado” (ibid., p. 219). A palavra reveladora do sentido do real comparece, de modo “eminente, na poesia, na filosofia e no verbo anuncia-dor das religiões”.

Na sua busca de transcendência e liberdade, o ser humano apresenta-se como “o ato vivo do reconhecimento: [ele é caracterizado pela] luta, o esforço, a apro-ximação e o zelo pelo advento de suas mais altas possibilidades”, que testemunha a si e aos outros (ibid., p. 218).

Expõe-se como um poder-fazer, uma capacidade de ir além do imediatamen-te dado, uma ampliação de si pela ação que tende à veracidade, à liberdade e o amor, diz Ferreira da Silva, apoiando-se nos escritos teológicos de Hegel e no Sobre a verdade, de Jaspers.

A correlação liberdade-reconhecimento é ainda uma vez afirmada na conclu-são do livro quando o pensador brasileiro mostra que o homem, aberto à trans-cendência, é convocado à realização de si voltando-se à intersubjetividade, que se traduz pelo reconhecimento.

Apresentando a concordância entre diversos autores que examinaram a dia-lética intersubjetiva, nosso filósofo entende o homem como um ser-com-outro, que só assim alcança sua expressão mais própria: “Através da interação dos com-portamentos humanos a consciência vai desabrochando (...) para sua conduta fundamental (...) como existir aberto à transcendência, como viver na proxi-midade daquilo que o supera” (ibid., p. 213). Testemunhando a si mesmo, o ser humano tornou-se “o ato vivo do reconhecimento” (ibid.. p. 218).

É pelo diálogo – esse transcender que expõe um poder-fazer – que a liberdade se desdobra “como promoção do outro, acesso à verdade do ser” (ibid., p. 222). Liberdade e veracidade, reconhecimento de si e promoção do outro coincidem, na ética vicentina.

As temáticas da liberdade e do reconhecimento são novamente abordadas em diversos textos, escritos entre 1961 e 1963: “O homem e a liberdade na tradição humanística”94; Liberdade e imaginação” (ibid., pp. 385-392); “A filosofia do reco-nhecimento” (ibid., vol. II, pp. 217-233); “Ciclo e Liberdade” (ibid., pp. 259-262).94 Id., O. C., vol. I, pp. 205-215.

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Sob o impacto das obras de Heidegger e de Ernestro Grassi, Carta sobre o humanismo, do primeiro, e Defesa dos Vidas individuais, do segundo, Vicente assinala que “o ente é uma realidade fundada”, resultante de “um ciclo de vi-vências típicas de uma certa variedade histórico-natural” e que “a essência do homem não é ontomórfica”, constituindo-se, antes, como liberdade, exposição à revelação do ente95. Mostra que essa perspectiva é ancorada no pensamento re-nascentista, quanto este apresenta o ser humano como “um ser pluridimensional (..) capaz de revelar (...) criativamente os diferentes aspectos do mundo” (ibid., p. 212), tal como Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, dentre outros, o concebe-ram. Contemporaneamente, tal concepção das qualidades humanas ressurge no pensamento de Husserl e no de Heidegger. Este último entende a liberdade como “a entrega do homem ao desvelamento do ente enquanto tal” (ibid., p. 213). Diz ainda o pensador brasileiro: “O pluralismo da manifestação do ser encontra sua contrapartida na receptividade livre do homem às suas proclamações soberanas” (ibid., p. 214).

No seu conjunto de escritos sobre a Filosofia da Mitologia e da Religião, um dos tópicos é intitulado “Liberdade e Imaginação”. Nele, a valorização da imagi-nação criadora está associada à vontade do poder nietzschiana, entendida como “vontade de plasmação artística (...)”, que não está centrada no homem, mas em um deus. Para Nietzsche, diz Ferreira da Silva, “somos os personagens que pas-sam no sonho de um deus e que se tornam o que ele sonha”96.

A superação da noção do sujeito aparece como crítica do eu intramunda-no, em favor “de uma força poética excêntrica, universal (...) paixão plasmadora transcendental (...) As coisas e o próprio sujeito se originam de uma transcen-dência, de um desenhar prototípico” (ibid., pp. 387-388). É no universo da lin-guagem, especialmente na linguagem da poiésis, que se dá a abertura do sentido do mundo, pela imaginação prototípica. Na disponibilidade do homem ao apelo do Ser, como mostra Heidegger em A origem da obra de arte, diz Ferreira da Sil-va, consiste a sua liberdade: a da conformação a modos de ser oriundos do ditado do Ser, a consagração da vida e da história.

No artigo de 1962, “A Filosofia do Reconhecimento”, os problemas da alteri-dade e da comunicação, da coexistência, põem-se como indagação sobre a ve-racidade da constatação do próprio eu, da corporeidade, da efetiva realidade do mundo e do outro. Inspirado no célebre texto de Husserl, Meditações Cartesianas, Ferreira da Silva refaz o percurso da superação do cogito cartesiano, a partir da noção de intencionalidade, que postula a alteridade como conteúdo intencional da consciência e, com Scheler de Sobre a essência e as formas da simpatia, con-

95 Id., O. C., vol I. p. 210.96 Citação de Nietzsche, La Volonté de puissance, Paris: Gallimard, 1942, apud FERREIRA DA SILVA, O. C., vol. I, p. 387.

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sidera a percepção emotiva da reciprocidade entre os homens, tema que servirá também como foco da atenção de Heidegger, em Ser e Tempo.

Explanando a problemática do reconhecimento proposta por Fichte, exami-na “a ação recíproca das consciências como comportamento e práxis”, pois “na ação recíproca de seres racionais (...) pode nascer a experiência do outro. Só na ação e na influência recíproca pode originar-se a consciência de si e o reconhe-cimento do outro”97. Ainda com Fichte, entende o mundo como “a auto-intuição da liberdade (…) [e o corpo é visto] como “a auto-intuição do eu na esfera ma-terial” (ibid. pp. 331-332).

Herdando de Fichte e Hegel a ideia da consciência como liberdade, e a da epifania do humano na descoberta do outro, Ferreira da Silva desdobra sua refle-xão, apoiando-se em Heidegger de Ser e Tempo, que formula o ser-com-o-outro como uma categoria existencial. Daí Vicente afirmar que: “o desvelamento de nós mesmos, no interior do mundo é, simultaneamente, o desvelamento da pos-sibilidade do outro (...)”, aquilo a que Heidegger dará o nome de solicitude (ibid., pp. 231-232).

Em “Ciclo e Liberdade”, publicado postumamente em 1966 (ibid., vol. II, pp. 259-262), uma vez mais reaparece o tema da liberdade, desta vez relacionado a uma interpretação da história. Recusa simultaneamente as teses do progresso contínuo e a da subordinação do homem a leis cósmicas (ibid., p. 261). Para Vi-cente, a história humana é um avançar em direção a um sentimento crescente de liberdade e de apropriação de si ao longo do acontecer temporal (ibid., p. 262).

É nos Diálogos: do Mar, da Montanha, do Espanto e do Rio (ibid., pp. 493-538), dos quais o único datado de 1962 é o Diálogo do Mar, os demais aparecendo sem data na edição das Obras Completas – que a díade liberdade/reconhecimento as-sume claramente uma nova formulação.

Assinalados por Braz Teixeira como pertencentes ao terceiro estádio do ca-minho especulativo do Vicente, é no horizonte de uma filosofia da mitologia e da religião que é preciso ver a problemática a liberdade e do reconhecimento. O homem é compreendido “como um princípio derivado e subordinado, que supõe (...) um princípio original”98; o mundo é a obra do Ser como Fascinador, a transcendente liberdade que outorga à liberdade humana a possibilidade de escolha entre possibilidades diversas.

No Diálogo do Mar, diversos personagens falam da ampliação do horizon-te da existência, da abertura a uma plenitude do ser, da aproximação de “um novo universo prototípico”, da irrupção de uma nova compreensão do sagrado. A abertura ao transcendente é a exposição a um “Poder de Luz, de Conhecimen-

97 Id., O. C., vol. II, p. 221. 98 BRAZ TEIXEIRA, A., “A aventura filosófica de Vicente de Ferreira da Silva. In FERREIRA DA SILVA, Dialética das consciências e outros ensaios, p. 28.

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to (...) deflagrador de um mundo de possibilidades”: é a descoberta de uma nova expressão de liberdade, pela identificação do homem com o Ser transcendente e fascinante99.

Entre 1962 e 1963, o pensador brasileiro escreveu os outros diálogos: o da montanha, o do espanto e do rio.

O Diálogo da Montanha aborda “a aparição de outros aspectos luminosos das coisas” (ibid., p. 512), a libertação da estreiteza vigente na atual imagem do mun-do e do homem, expondo-nos ao “campo arrebatador” do mito e da poesia.

No Diálogo do Espanto – no qual o espanto é a admiração perante o mundo e as coisas, representada pela atitude filosófica – Ferreira da Silva diz estarmos no limiar de uma nova época, uma nova concepção do mundo, uma nova cultura, em que o homem se identifica com uma “vida pletórica”, um estado de entusias-mo, de proximidade com o divino. A partir da crítica herdeggeiana à essência da técnica, o tema do reconhecimento reaparece, sob o aspecto negativo. Hegel, diz o filósofo brasileiro, já mostrava que o reconhecimento é sempre “reconhe-cimento do outro, é a expressão da [nossa] liberdade na liberdade do outro (...) é a cadeia infinita dos eus iguais em direitos e possibilidades” (ibid., pp. 532-533). Essa concepção do mundo, diz Vicente, resulta no império da técnica, no antropocentrismo, que nos envolve até hoje. Relacionando antropocentrismo e teocriptia, como já fizera no Teologia e Anti-humanismo 100, de 1953, o filósofo brasileiro sublinha que outras possibilidades de desempenhos existenciais po-dem arrebatar-nos, “revelando-nos dominações imortais e imortalizantes. As cenas eternas do mundo que constituem o universo prototípico dos deuses, po-dem abrir-se à nossa passagem, convocando-nos (...) para as diversas moradas indestrutíveis (...)”101. A liberdade assim alcançada será libertação do tédio e da angústia, característicos do mundo contemporâneo, uma vez que “O essencial em nós (...) é descoberto como inerente ao ‘nunc stans’ da cena sagrada pro-piciada por um deus (...). Assistimos à nossa devolução a um universo sempre presente e actualizável” (ibid., p. 520).

No Diálogo do Mar, um dos melhor sucedidos do conjunto dos Diálogos, Fer-reira da Silva, evocando Schelling, Rilke, Walter Otto, afirma que assistimos a uma mudança profunda da história, à irrupção de uma nova concepção do sa-grado, do mundo e do homem.

Os Diálogos retomam temas do conjunto de escritos Sobre Filosofia da Mito-logia e da Religião, publicados entre 1955 e 1962 e que constituem o fulcro da contribuição original de nosso autor. Aqui, liberdade é abandonar-se às faces do sagrado que emergem e nos resgatam da derrelicção e de perda de significado da

99 FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. II, p. 505. 100 Id., Teologia e Anti-humanismo, O. C., vol. I, pp. 275-298. 101 Id., Diálogo do Espanto, O. C., vol. II, p. 519.

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existência no mundo contemporâneo; é reconhecimento de nosso laço com uma liberdade originária que desencadeia, no tempo, novas possibilidades de existir e novas etapas da história.

Segundo o percurso do filósofo, vemos a progressiva passagem de uma abor-dagem fenomenológico – existencial a uma leitura original, inspirada no roman-tismo alemão e em Heidegger, do significado de nossa época e das possibilidades abertas ao homem contemporâneo. Uma leitura surpreendente, que invoca a ex-periência fundadora do Ocidente, na mitologia grega, vista como exemplo dessa proximidade criadora com o sagrado originário.

A obra de Ferreira da Silva se caracteriza por uma atualidade, uma capa-cidade de responder aos desafios presentes. Sua tematização da liberdade e do reconhecimento antecipa a ressurgência desses tópicos em alguns dos mais sig-nificativos autores contemporâneos, que fazem dessas palavras o eixo de suas éticas: Ricoeur e Honneth. Mais ainda: Vicente formula uma hermenêutica do mito, explicitando suas implicações ético-ontológicas, numa direção ainda pou-co explorada, abrindo horizontes de reflexão que convidam à frequentação de seus escritos e sugerem novos caminhos, novas indagações.

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Delfim santos e vicente ferreira da silva

Amigos e participantes do chamado Grupo de São Paulo, Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva representaram aspectos significativos das escolas de inspiração fenomenológica e heideggeriana, em Portugal e no Brasil.

Leitores originais de Heidegger, ambos se apresentavam como introdutores ou primeiros filósofos que, nos dois países, reconheceram a importância da obra do pensador alemão para a reflexão contemporânea102.

Abordamos o tema das relações entre Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva sob três aspectos: no primeiro, mostraremos as características da trajetória dos autores até a sua descoberta da obra de Heidegger; no segundo, pomos em relevo o encontro pessoal que tiveram em São Paulo e o diálogo aí mantido; no terceiro, examinaremos a contribuição original de cada um que tange à formula-ção de seu conceito de filosofia.

Por ocasião das comemorações do 80º aniversário de Delfim Santos, Antonio Quadros fez uma conferência abordando sua vida e obra, em Lisboa, na Escola Preparatória e Secundária Professor Delfim Santos.

Nesse texto103 assinala que no início da década de 30, Delfim Santos fez está-gios como bolsista da Junta de Educação Nacional em Viena, Berlim, Londres e Cambridge, encontrando os mestres neo-positivismo, como Moore. Na mesma ocasião, teve seu primeiro contato com Husserl, Heidegger, Frobenius, Klage, Hartmann104.

Com formação matemática, a primeira orientação do filósofo foi na direção da epistemologia e da filosofia das ciências, interesse que é atestado por sua par-ticipação, em 1937, em Paris, no Congresso Descartes e no Congresso para a Unidade das Ciências.

102 Ver nosso “Heidegger no Brasil”, in MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM, 2000, pp. 231-236. Ver também nosso “Delfim Santos e Heidegger” (13 p., digitado), no qual estudamos o assunto a partir da correspondência do filósofo português. Ver ainda nosso Vicente Ferreira da Silva, trajetória intelectual e contribuição filosófica (Tese de livre-docência). Campinas: PUC-Campinas, 1980 (digitado), passim.103 QUADROS, A., Delfim Santos, Introdução à vida e à obra (digitado). Lisboa, 1987, pp. 7-8.104 Ver, a propósito, A. SOVERAL PASZKIEWCZ, C., “A Filosofia de Delfim Santos”, in CALAFA-TE, P. (org.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol I, tomo 1. Lisboa: Caminho, 2000, pp. 425-433. Ver também SIRGADO GANHO, M. de L., O essencial sobre Delfim Santos, Lisboa: INCM, 2002.

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O largo pendor do filósofo para a epistemologia e a caracterização do co-nhecimento científico, distinguindo-o do filosófico, é indicado por Quadros e Sirgado Ganho105.

Leitor na Universidade de Berlim, de 1937 a 1942, nosso autor foi aluno de Hartmann e “aproximou-se de Heidegger e do seu pensamento, que o marcou profundamente”106.

Talvez pudéssemos ao dizer, entre o início da década de 30 ao início da déca-da de 40, uma ruptura na orientação reflexiva de nosso autor, uma vez que parte da meditação sobre a ciência e volta-se para a metafísica e a ontologia, quando se aprofunda o encontro com a obra de Heidegger.

Essa ruptura marcaria o afastamento de Delfim Santos também quanto ao positivismo de inspiração francesa, vigente em Portugal na época, mas cuja criti-ca já principiara, entre 1912 e 1930, através do magistério de Leonardo Coimbra, ao qual Delfim Santos dedica diversos trabalhos.

A sua crítica ao positivismo contemporâneo é feita, inicialmente, a partir das teses do neo-positivismo das Escolas de Viena, Berlim e Cambridge107.

O laço entre ciência e epistemologia levou-o a tentar aproximar idealismo e realismo, metafísica e ciência positiva, numa abordagem que tem pontos de con-vergência com o idealismo crítico desenvolvido por Brunschvicg e Bachelard, so-bretudo nas obras deste: O materialismo racional e o Racionalismo Aplicado108.

Contrariamente a Comte e adotando posição que se aproxima da metafísica e da epistemologia neo-kantianas de Brunschvicg e Bachelard o pensador por-tuguês trata de mostrar “conotação do pensamento metafísico com a realidade sensível e com seu estudo pelo método científico”109.

O exame de bibliografia consultada por Delfim Santos, indicada na obra Situ-ação Valorativa do Positivismo, mostra o conhecimento não apenas dos autores do Círculo de Viena, do neo-positivismo, que se dedicaram à crítica da ciência, mas também do idealismo crítico francês, como Renouvier, Ravaisson, dentre outros, o que teria possibilitado a atitude crítica em relação não apenas ao po-sitivismo, mas também em relação ao neo-positivismo que aparece claramente nessa obra. A bibliografia também mostra a amplitude do conhecimento das teo-rias de Física e da Matemática contemporânea e da Filosofia das Ciências, numa perspectiva extremamente interessante, com posições análogas às de Brunschvi-cg e de Bachelard, ou até mesmo inspiradas nestes.105 SIRGADO GANHO, M. De L., op. cit., pp. 27-36.106 QUADROS, A., op. cit., p.7.107 SANTOS, D. Situação Valorativa do Positivismo (Texto de 1938), in O. C., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 12.108 BACHELARD, G., Le materialisme rationnel. Paris: PUF, 1963; Le rationalisme appliqué. Paris: PUF, 1970. A citação das obras de autores franceses, representantes do idealismo crítico, tais como Ravaisson, Brunschvicg, Bachelard, aparece na bibliografia de Situação Valorativa do Positivismo.109 QUADROS, A., op. cit., p. 14.

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Assim, o itinerário de nosso autor vai da epistemologia para a metafísica, “itinerário que ele irá seguidamente percorrer” diz Antonio Quadros, colocando a metafísica como o estágio mais alto na atividade mental orientada para o co-nhecimento e para a procura da verdade (ibid., p. 15).

O enfoque crítico da filosofia da ciência e o contato aprofundado ulterior-mente com a obra de Heidegger, em 1937-1938, marcam a ruptura com as pre-ocupações essencialmente epistemológicas da primeira fase da obra de Delfim Santos e preparam o terreno para o surgimento de uma segunda vertente de inquietações, redefinindo a tarefa da filosofia na perspectiva da analítica existen-cial, e dando ênfase à problemática da ontologia.

A obra Da Filosofia, de 1939 e as obras seguintes de nosso autor mostrarão a guinada temática, vinculada ao primeiro e segundo Heidegger, numa escala de crescente interesse de Delfim Santos pela obra do pensador alemão.

Por razões diversas, a trajetória de Vicente Ferreira da Silva fez percurso aná-logo.

Se o despertar para a filosofia deu-se no jovem Vicente, através do contato com a obra de Nietzsche, como escrevera Milton Vargas em seus depoimentos110, a primeira publicação relevante do filósofo paulista foi contudo, o estudo sobre Lógica Simbólica111 em 1940. Pouco depois, em 1942, nosso filósofo tornou-se assistente de Willard van Orman Quine, na Universidade de São Paulo.

O livro é considerado por Newton da Costa – o mais significativo investiga-dor da lógica matemática no Brasil – um marco dos estudos da nova lógica entre nós112.

O interesse pela lógica matemática, ao menos como exercício intelectual, per-sistiu durante toda a vida de Ferreira da Silva, e é atestado pelos cursos que pe-riodicamente ofereceu sobre o assunto, no Instituto Brasileiro de Filosofia.

Assim como em Delfim Santos, a guinada da lógica para a metafísica e ontolo-gia fez-se, em Ferreira da Silva, através do encontro com a temática da fenomeno-logia existencial, de que Dialética das Consciências e Ensaios Filosóficos (1948) são o marco. Vicente já conhece, certamente, nessa ocasião, a obra Ser e Tempo.

Em Idéias para um novo conceito de homem, de 1954, o encontro com a obra de Heidegger é assinalada e o exame da contribuição desse pensador surge como o coroamento da nova visão de homem, que o pensador paulista busca, apoiada na Carta sobre o Humanismo.

Em Vicente, a ruptura entre a primeira perspectiva, voltada para a lógica ma-temática e a segunda, inspirada na fenomenologia existencial e na filosofia hei-110 VARGAS, M., “O jovem Vicente Ferreira da Silva”. São Paulo: Convivium, Convívio, nº3, Maio-Junho 1972, pp. 194-201.111 FERREIRA DA SILVA, V., Elementos da Lógica Matemática. In Obras Completas. São Paulo: IBF, Vol II, pp. 9-94.112 COSTA, N. da., Vicente Ferreira da Silva e a Lógica. São Paulo: Revista Brasileira de Filosofia. IBF, Vol XIV, fasc. 56, pp. 499-508.

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deggeriana, é mais profunda que a ruptura ocorrida entre as duas fases da obra de Delfim Santos. Para este pensador, na verdade, o diálogo com a escola feno-menológica – que se tornou, a partir de seu estágio em Berlim, a sua orientação filosófica dominante – embora imprima uma orientação nitidamente metafísica a seus escritos, fazendo emergir temas que envolvem a meditação sobre o ser e sobre o homem – é marcado também, por um amplo esforço de reflexão, dedica-do ao problema do conhecimento.

A dissertação de doutoramento de Delfim Santos, de 1940, terá como título Conhecimento e Realidade. Aí, o filósofo busca “a determinação ontológica da realidade”113, compreendendo a filosofia como ciência de rigor, que fundamenta as demais ciências e estabelece níveis de objetividade, regiões da realidade a se-rem metodicamente exploradas através de formas diversas de aproximação.

Em Vicente Ferreira da Silva, a ruptura é mais radical, como dissemos. A questão lógico-epistemológica passa a segundo plano e a análise da existência, no horizonte da fenomenologia existencial perpassa os seus escritos, de 1948 a 1953: Ensaios Filosóficos, Exegese da Ação, Dialética das Consciências, Idéias para um novo conceito de homem, Teologia e Anti-humanismo.

Aí, os temas da alteridade, da solidão, da angústia, são sucedidos por uma compreensão histórico-crítica de uma nova resposta ao significado do homem, pensado à luz de sua relação com o Ser. O Heidegger da primeira Kehre está pre-sente no comentário ao Holzwege, publicado por Vicente em 1951, bem como na raiz da compreensão do Ser como origem, nos escritos sobre Filosofia da Mitologia (1956), que constituem a mais original contribuição do pensador brasileiro.

O breve exame da cronologia dos textos da primeira fase de Delfim Santos e Vicente Ferreira da Silva mostra que: em épocas muito próximas, estavam se dedicando a estudos da filosofia da ciência e da lógica simbólica; conheceram as obras do Círculo de Viena e dos neo-positivistas. Isso ocorre no final da década de 30, início da de 40.

Mas assim como Delfim Santos, que paralelamente aos estudos sobre filosofia da ciência descobre a fenomenologia e a obra de Heidegger, sobretudo o Heideg-ger de Ser e Tempo, da analítica existencial, também Ferreira da Silva conhecia as obras de Nietzsche e estudou a filosofia existencial, fazendo, por volta de 1940, a primeira conferência sobre Sartre, no Brasil.

O encontro com a obra de Heidegger, da primeira Kehre, é atestado, em Del-fim Santos, através dos ensaios “Heidegger e Hölderlin” de 1938 e “Sentido epo-cal das formas de pensamento” (1939).

“Heidegger e Hölderlin” é o marco da mudança de orientação de Delfim Santos, indicada pela crescente aproximação à fenomenologia. Esta tendência 113 QUADROS, A., op. cit., p. 16. SANTOS, D. O. C., Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 266 e segs.

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se tornará, ulteriormente, a nota dominante de seu pensamento, perfeitamente consolidada nos escritos da década de 50: “Temática existencial” (1950), “Funda-mentação da Filosofia” (1954), “Filosofia como Ontologia Fundamental” (1955). O escrito “Heidegger” sem data, reitera essa direção de seu pensamento.

Os temas apontam um laço de Delfim Santos sobretudo com o primeiro Hei-degger, da analítica existencial, apropriado criticamente pelo filósofo português, como atestam os estudos sobre o assunto de Cristiana Abranches de Soveral e Paszkiewicz114, de José Maurício de Carvalho115, Maria Adelaide Pacheco116 e também nosso “Delfim Santos e Heidegger117”.

A evolução da filosofia de Ferreira da Silva em direção ao diálogo com a obra de Heidegger, também mostra o início da década de 50 como o período em que este se consolida; o marco dessa consolidação é o livro publicado em 1951, Idéias para um novo conceito de homem.

O encontro entre o filósofo português e o filósofo paulista pode ter ocorri-do, inicialmente em Mendonza, na Argentina. Mas certamente conviveram em 1954, data do congresso comemorativo do IV centenário da cidade de São Paulo, do qual Vicente foi um dos organizadores, e no qual Delfim Santos apresentou a comunicação “Fundamentação da Filosofia”. Nela, distingue entre filosofia e ciência, considerando aquela um saber fundador, “que origina a ciência”118.

Delfim Santos freqüentou o círculo Vicente Ferreira da Silva, em São Paulo, como o atesta em carta sua dirigida à Dora Ferreira da Silva, esposa de Vicente.

Convergências entre os dois pensadores em relação à fonte heideggeriana, envolvem a tematização dos laços entre filosofia e poesia, a concepção epocal do pensamento e do ser, a ligação – aceita ou recusada – entre filosofia e filomitia, que emergem, na década de 60, como ponto focal da atenção de ambos.

É como se o encontro pessoal entre os dois filósofos tivesse sido longamente preparado, nas décadas de 30 e 40, por trajetórias filosóficas que apresentam pontos de analogia na sua evolução.

Vejamos as posições de cada um quanto aos tópicos supra-indicados.A relação filosofia-poesia é estudada por Delfim Santos no texto “Heidegger

e Hölderlin”, publicado em 1938. Apresenta as grandes linhas do ensaio heide-ggeriano Hölderlin e a essência da poesia. Resenha didática, não constituindo abordagem original, é contudo importante divulgação, quase imediata, de um escrito marcante do pensador alemão.

114 SOVERAL E PASZKIEWICZ, C. A. de., A Filosofia pedagógica de Delfim Santos. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 1977, 1ª parte.115 CARVALHO, J. M. de, A idéia de Filosofia de Delfim Santos. Londrina: UEL., 1966.116 PACHECO, M. A., in A herança de Heidegger, op. cit.117 MARCONDES CÉSAR, C., Delfim Santos e Heidegger (digitado).118 SANTOS, D., O. C., vol II, p. 209.

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Delfim Santos destaca a poesia como “atividade lúdica” (id., vol. III, p. 335), “ocupação inocente”, mas também “o mais perigoso dos bens” oferecido aos ho-mens, como Heidegger afirma, evocando Hölderlin.

Perigoso bem, a linguagem, porque pode exprimir o mais alto e o mais vulgar, o mais luminoso e o mais obscuro que nos habita. E bem, porque expressa a possibilidade de diálogo, de comunhão com os outros homens e com os deuses; porque expressa, na temporalidade, a descoberta de um destino.

A poesia é assim, “antecipação e interpretação” (ibid., p. 339) do significado do tempo em que estamos: tempo de carência e fuga dos deuses, tempo de anún-cio dos deuses por vir.

Citando o poema de Hölderlin, visto à luz da interpretação heideggeriana, Delfim Santos põe em relevo a importância da linguagem para a fundação do mundo humano, da vida ética, que implica decisão, responsabilidade, criação da história, reconhecimento do ser do homem.

A poesia é, assim, o dizer que põe à luz a essência da realidade; é invoca-ção dos deuses, interpretação e antecipação da história, prenúncio de uma nova compreensão do sagrado (ibid., p. 336 e segs).

No livro Idéias para um novo conceito de homem de Vicente Ferreira da Silva, publicado em 1951, acha-se o capítulo “ A intuição hölderliniana do mundo”.

O livro é considerado por Braz Teixeira como um dos marcos de ruptura de Vicente com a lógica matemática, bem como do surgimento de uma nova orien-tação de sua filosofia, inspirada em Heidegger e em outras fontes119.

No texto sobre Hölderlin120, o pensador brasileiro fala sobre o papel do poeta, homem que vive no umbral do sagrado e imprime novo sentido à vida coletiva, como mediador entre os deuses e os homens. Diz ele: “o poeta é um propiciador de destino”, expondo as concepções de Hölderlin, invocadas por Heidegger em Aproximação à poesia de Hölderlin e em Caminhos de Floresta.

Escrito em colaboração com a esposa, Dora Ferreira da Silva, o texto de Vi-cente Sobre a Poesia e o Poeta data de 1953. É a Rilke, Hölderlin, mas também a Schlegel, Stefan George, Fernando Pessoa, Yeats, Miloz, Eliot, que recorrem, para expressar a crítica ao mundo contemporâneo e ao cientificismo que o ca-racteriza. A arte é abertura à transcendência e ao mistério e o lamento pela perda de sentido do religioso, no mundo actual (ibid., p. 382 e segs).

Os autores recordam a abertura ao mundo divino através da poesia, invo-cando as perspectivas de Walter Otto, de Rilke e de Eliot; e, mencionando Yeats, referem-se às “figuras” do divino que transportam o homem para o mundo ori-ginário. A arte torna-se “encontro e anunciação”, invocação do sagrado e funda-119 BRAZ TEIXEIRA, A., “O Sagrado e a experiência religiosa na Escola de São Paulo”, in Cultura, Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, vol XII, p. 109 e segs, 2000-2001.120 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas. São Paulo: IBF, 1964, vol I, pp. 250-252.

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ção de um mundo, na medida em que oferece aos homens “modelos do valioso e significativo”, “epifania do Deus” (ibid., pp. 385-386).

Ainda em 1951, Vicente publica um comentário ao Holzwege, mencionan-do os textos: “Sobre a origem da obra de arte” e “Por que poetas em tempos de carência?”. Reitera o caráter fundador das obras de arte e evoca os poetas Höl-derlin e Rilke como anunciadores de um novo sentido da existência. No mesmo comentário, Vicente se refere ao ensaio “A época das imagens do mundo”, en-fatizando o caráter epocal das manifestações do ser e assinalando que a época moderna transforma o mundo em imagem do mundo e reduz a realidade ao instaurado pela técnica121.

Os temas do nihilismo e da crise de valores, mencionados a propósito do estudo sobre Nietzsche, na mesma obra de Heidegger, também apontam os inte-resses de Vicente, bem como a perspectiva que adota a partir de 1953, nos textos Teologia e Anti-Humanismo e em Filosofia da Mitologia e da Religião, escrito entre 1954 e 1962 e que constituem, a nosso ver, seus escritos mais originais e mais importantes. Quando comentou Holzwege, Vicente já conhecia Ser e Tempo e Carta sobre o humanismo, explicitamente citados (ibid., p. 287).

Outro aspecto comum a Delfim Santos e Ferreira da Silva é a reflexão sobre a filomitia. Em Delfim Santos, o tema aparece em um texto de 1962, publicado em Lisboa122. Numa acentuada crítica às filosofias ditas nacionais, o texto do pensador português é uma afirmação da universalidade da filosofia. A seu ver, não se pode falar, senão numa perspectiva histórica, de filosofia portuguesa ou de qualquer nação: espanhola, francesa, alemã. Não há, na opinião do filósofo, uma filosofia nacional, pois a filosofia não se confunde com a visão do mundo típica de um povo ou em o estudo dos mitos que orientam sua ação: “Mundividência, Sociologia, Filomitia alicerçada na interpretação dos poetas” (ibid., p. 328) não são filosofia; podem ser campos que interessem à filosofia, mas não a circunscrevem.

O que caracteriza a filosofia é a “valorização do diálogo e da interpretação”, a oposição às idéias vigentes, numa “dialética ascensional” que recorda o método platônico, de questionamento constante em busca da verdade (ibid., p. 330).

Diz o filósofo: “A filosofia não tem pátria”, é universal “busca da verdade, do bem e do belo”, atendo-se, não a tal ou tal país, mas “ao ser do homem na sua correlação com o ser do tempo”, como proposição de um futuro que questiona as idéias vigentes, em favor da utopia, tempo próprio do filósofo (ibid., p. 330).

Reconhecendo embora a existência de nomes de relevo na cultura portuguesa, que se dedicaram à filosofia, deixa um opúsculo em que examina a sua contribui-ção, intitulado O pensamento filosófico em Portugal, escrito em 1946123. Delfim decisivamente afirma, no texto de 1962, que “se há filósofos portugueses, eles não

121 Id., Holzwege, O. C., vol. II, pp. 287-289.122 SANTOS, D., O. C., vol. II, pp. 327-330.123 Id., O. C., vol. I, pp. 438-454.

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expõem uma filosofia ´portuguesa´, embora mais tarde (...) suas filosofias sejam incorporadas no patrimônio cultural comum dessa nação”124.

Para ele, a filosofia não surge como conseqüência direta da cultura, da língua ou do povo a que o pensador pertence, mas em oposição ao seu tempo e ao seu mundo, tornando-se freqüentemente, em sua época, um “indesejável, perseguido e até excluído da comunidade de seus compatriotas (...) [ou até mesmo] excluindo-se a si pelo exílio, pelo silêncio ou pelo suicídio” (ibid., p. 329). Como exemplos dessa ruptura, Delfim cita Sócrates, Bruno, Kant, Kierkegaard (ibid., p. 330).

A fonte heideggeriana aparece, na concepção de filosofia do pensador por-tuguês, na distinção entre ser e sendo; busca do conhecimento do ser é filosofia; a do sendo é conhecimento existencial, científico. O primeiro é busca de princí-pios; o segundo, examina o mundo de experiência. A distinção entre o campo de filosofia, entendida como ontologia fundamental, do campo das ciências, volta-das para o mundo empírico, acha-se presente no Heidegger da analítica existen-cial e é retomada por Delfim Santos, em “Situação e Mundo”.

Entre 1939 e 1962, a reflexão de nosso autor mostra a meditação filosófica voltada para a busca da universalidade do humano e inspirada, decisivamente, pelo primeiro e segundo Heidegger.

Numa perspectiva diversa, Ferreira da Silva considera o mito como prioritá-rio ao logos125, entendendo a filosofia, na última fase de seu pensamento como meditação sobre o Ser, fundamento originário.

Entre 1954 e 1962, Vicente aborda o tema da filosofia da mitologia e da religião.A filomitia de Vicente não é um puro retorno aos mitos arcaicos, mas a reto-

mada, na senda de Walter Otto, de Kerényi, do romantismo alemão, da poética de Heidegger, do valor fundante do mito. É reflexão sobre o mito e a poesia, vis-tos como via de acesso ao Ser, entendido como “Poder Pulsional, Fascinação”126. É meditação sobre o sagrado, como bem viu Braz Teixeira127.

Constituindo o cerne da contribuição filosófica de Vicente, a Filosofia da Mi-tologia e da Religião encontra seu complemento nos Diálogos do Mar, da Monta-nha e do Espanto, nos quais os personagens, que evocam Vicente, sua esposa e os amigos, conversam sobre a realidade abissal, o mundo contemporâneo, o mundo futuro – apenas pressentido – e uma nova concepção do sagrado.

A busca da beleza, do ser, de universalidade, da verdade, do sagrado, caracte-rísticas da filosofia desde seus primórdios, recebe, em Ferreira da Silva, um tom de descoberta, de admiração, de espanto perante o real.

O filósofo paulista assinala claramente a sua originalidade em relação a Hei-degger e suas outras fontes, reconhecendo-se, contudo, tributário delas128.124 Id., O. C., vol. II, p. 329.125 Cf. O nosso O Grupo de São Paulo, passim.126 FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. I, pp. 303 ss.; pp. 309-310; p. 315 e segs.127 BRAZ TEIXEIRA, A., “O Sagrado e a experiência religiosa na Escola de São Paulo”, in Cultura. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, vol. XII, 2000-2001, pp. 155-181.128 FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. I, pp. 310 ss.; vol. II, p. 341 e segs.

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Assim, as teses de Vicente, são:- a desocultação dos entes é proto-poesia (ou mitologia);- a aproximação entre o Heidegger da primeira Kehre e a filosofia da mito-

logia de Schelling;- a experiência do Ser entendida como Fascinação, encontro com um Poder

Passional;- a concepção da mitologia como proto-poesia, que condiciona toda lin-

guagem;- a compreensão do desenrolar da História a partir do tema hölderliniano

da conversão infinita.Um aspecto da originalidade de Vicente consistiu em ter percebido a conexão

essencial entre o romantismo alemão e o pensamento Heidegger, e em ter lido a obra deste último através dessa ótica.

A grande contribuição do romantismo, reconhecida por Vicente em seus En-saios Filosóficos, foi a intuição emocional e artística da realidade, que traz como conseqüência a união entre poesia e filosofia e se expressa através de uma “lógica da paixão”, abordagem emotiva – intuitiva do mundo129.

Outro tópico abordado por Delfim Santos e Vicente, que atesta o laço de am-bos com a obra de Heidegger e com Schelling, é o sentido epocal do Ser e das formas de pensamento.

O texto de Delfim Santos sobre “A epocalidade das formas de pensamento”, mostra a sucessão dos modos de compreensão que caracterizam, nos diversos tempos, “a mentalidade característica de determinado século”130, expressando algo “que ultrapassa o homem e se serve do homem para se revelar (...)”. Pode-mos recordar, aqui, o tema da epocalidade do Ser, abordado por Heidegger.

Esse tema reaparece em Ferreira da Silva e está claramente presente nos Diá-logos, quando o filósofo fala de um novo tempo. O pensador diz: “somos seres do limiar (...) só podemos pressentir a sombra das coisas por vir”131.

De modo análogo, a história do Ser segundo Heidegger, condiciona a exis-tência humana. O homem vive no aberto, na clareira do Ser, no oferecido pelo Ser em cada época132.

Em resumo, podemos dizer que a obra de Delfim Santos atém-se sobretudo ao primeiro Heidegger, de Ser e Tempo; e a alguns aspectos do segundo Heideg-ger, sobretudo dos Ensaios e Conferências.

A leitura de Delfim Santos situa Heidegger na esteira da filosofia existencial. Os textos de Delfim, de 1950 a 1956, quando certamente estava em contato com 129 Para um estudo mais detalhado dessa perspectiva, ver nosso Vicente Ferreira da Silva: trajetória in-telectual e contribuição filosófica (tese de livre-docência). Campinas: 1980, p. 124 e segs. (digitado).130 SANTOS, D., O. C.. vol. I, p.. 248.131 FERREIRA DA SILVA, V., Diálogos do Mar. O. C., vol. II, p. 507.132 HEIDEGGER, M., Paris: Gallimard, 1962, p. 260.

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Ferreira da Silva, – sobretudo o texto de 1954, apresentado no IV Centenário de São Paulo, do qual Vicente participou, mostram a permanência da temática heideggeriana, impregnando posições do filósofo português.

É no escrito de 1954, “Fundamentação da Filosofia” que, distinguindo entre saber filosófico e saber científico, o filósofo português assinala a prioridade da filosofia sobre a ciência, dado que “não é a ciência que origina a filosofia mas a filosofia que origina a ciência” 133.

O domínio próprio da filosofia é o “transobjetivo”, dado que a filosofia é “constituinte da objetividade”, “promoção da coisa a objecto” (ibid., p. 210). A filosofia é um saber autônomo, “que origina e garante as ciências”134.

Embora inspirado em Heidegger, Delfim Santos não se alinha completamen-te às posições do filósofo alemão. Aberto às idéias de seu tempo, o filósofo por-tuguês desenvolve uma reflexão que amalgama várias fontes, resultado de um diálogo continuado com os principais pensadores de seu tempo”135, privilegian-do a vertente alemã, mas estabelecendo também estreito vínculo com autores franceses, espanhóis, ingleses, brasileiros.

O pensador se apóia na tradição filosófica, sendo Aristóteles, Santo Agosti-nho, Santo Tomás, algumas de suas fontes. A obra de Mounier não lhe era es-tranha e a ênfase na noção de pessoa, com suas implicações sociais e educativas, separam-no da abordagem heideggeriana136.

Por sua vez, Vicente Ferreira da Silva, inspirando-se em Heidegger, atém-se sobretudo ao segundo Heidegger, o da primeira Kehre, lido com as categorias do romantismo. E aqui vê-se a radical distinção que opõe Ferreira da Silva a Del-fim Santos: o recurso do primeiro não à tradição aristotélica-estóico-cristã, que caracteriza o pensador português, mas sim à filosofia da mitologia de Schelling, que leva Vicente a postular: o Ser como Fascinação, a prioridade do mito sobre o logos, a existência de uma Poiésis originária e o caráter poético do pensamento.

Dois autores importantes, com leituras diversas de uma fonte comum: Heide-gger. O encontro deles deve ter sido fascinante e explosivo, pois a aproximação aparentemente estreita, à primeira vista, revelou-se, no exame do diálogo que estabeleceram e na leitura de suas obras, impulso para a constituição de filosofias originais, que põem em questão o sentido mesmo do filosofar, em duas perspec-tivas contrapostas.

133 SANTOS, D., O. C. vol. II, p. 209.134 Id., ibid., apud. CARVALHO, J. M. de, A idéia de Filosofia em Delfim Santos. Londrina: UEL, 1996, p. 216.135 Cf. a tese de doutorado de ABRANCHES DE SOVERAL E PASZKIEWICS, C., A Filosofia pe-dagógica de Delfim Santos, Lisboa, INCM, 2000.136 CARVALHO, J. M. de., Filosofia da Cultura. Delfim Santos e o Pensamento Contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, pp. 59-67; SIRGADO GANHO, M. de L., O essencial sobre Delfim Santos. Lisboa: INCM, 2002, p. 68 e segs.

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filosofia e Poiésis: eudoro de sousa e vicente ferreira da silva

Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Souza são pensadores que convergem na meditação sobre os laços entre filomitia e filosofia. Essa convergência expres-sa, em ambos, a busca de um pensar originário, que tem no mito e na religião seu modo de se manifestar. Esse tipo de pensar, que prioriza, ou ao menos valoriza o mito em relação ao logos, torna-se o fulcro de uma reflexão que supera a pers-pectiva tradicional a respeito do papel e do significado da filosofia.

Em Vicente, o mito é a poiésis primordial, o desvelamento, para o homem, do dizer originário do Ser. Sua filosofia da mitologia trata de explicitar esse modo de ver, apoiando-se em Schelling e em Heidegger, assim como na fenomenologia da religião.

A partir desse enfoque, Vicente tece as relações poesia–filosofia, no texto “Sobre a poesia e o poeta”137. O horizonte de meditação assim aberto tem am-plas analogias com o pensamento de Heidegger tal como se acha exposto, dentre outras obras, no A origem da obra de arte. O texto de Vicente a que aludimos, foi escrito em 1953, em colaboração com a poetisa Dora Ferreira da Silva, sua esposa. Aí é feita a crítica da sociedade técnica e das concepções de arte nela vigentes: a que entende a poesia como expressão da subjetividade emotiva, dos impulsos e emoções coletivas, ou então, a que vê a poesia como mero jogo, orna-mento, reduzindo o fenômeno estético à expressão do mundo psicológico. Para Vicente, a obra de arte se caracteriza por ser revelação, desvendamento de uma transcendência que nos põe em face do sagrado. Invoca o significado da poesia inscrevendo-o numa tradição que chama de “órfica”, na linhagem “de um Fer-nando Pessoa, de um Rilke, de um Milosz, de um Yates, de um Stefan George ou de um Elliot” (ibid., p. 382). Evoca também a queixa de Hölderlin a propósito da ruptura dos laços entre o homem e o sagrado, presente nas Grandes Elegias, bem como a concepção da poesia como “a mais perigosa e grave das ocupações” (ibid.,p. 383). Recorda, na mesma senda, o verso de Rilke nos Sonetos a Orfeu: “o canto é existência”, para significar que a poesia é “condição do aparecimento de um mundo (...) tarefa órfica de suscitação do real” (ibid. O grifo é nosso), imperativo de metamorfose, ruptura “ do confinamento do aqui e do agora, re-metendo-nos ao reino da ‘relação pura’” (ibid., p. 384) com as coisas.137 FERREIRA DA SILVA, V., Sobre a poesia e o poeta, in id., Obras Completas. SP: IBF, 1966, vol. II, pp. 381-386.

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Do romantismo alemão, da fenomenologia da religião, da reflexão heide-ggeriana, provém a outra face da poiésis, tal como Vicente a compreende. De Schelling, o filósofo paulista retém a afirmação de que “o cerne da (...) poesia encontra-se na mitologia e nos mistérios dos antigos” (ibid., p.383. O grifo é nos-so); de Walter Otto, guarda a concepção do poético, em cada um, como “ o que (...) põe em contato com o divino, isto é, com a mais alta realidade”. O poeta inato é, por natureza, aparentado com o ser do mundo, de tal modo que,” como que tocado por um relâmpago divino, dá nascimento ao canto da infinitude”138; de Heidegger, citando a exegese dos versos de Hölderlin, feita no A origem da obra de arte -- texto ao qual Eudoro também faz menção explícita, nos escritos sobre a figura emblemática de Orfeu – Vicente considera a compreensão da arte como “ projeto instituidor de um mundo”, pois é “através dela que um povo recebe os paradigmas, medidas e valores que determinarão sua história” e o “próprio ho-mem é instituído através das possibilidades emergentes do verbo poético”139.

A afirmação mais importante, que sucede imediatamente no texto do pen-sador brasileiro e que mostra o parentesco entre Vicente e Eudoro é a seguinte: “A obra de arte assim compreendida é por essência mitologia” (ibid. O grifo é nosso). Eudoro não é citado, em nenhum momento do texto. É a Schelling que Vicente se reporta, para afirmar, com o romântico alemão – que será uma das fontes importantes da filosofia da mitologia e da religião que proporá – um novo tipo de pensar, que prioriza o mito em relação ao logos, não como pura sucessão temporal, mas como fonte de cada ciclo de revelação do Ser, do Sagrado, em cada época histórica.

A obra de arte originária é, para Schelling, retomado por Vicente, a formação mítico-religiosa. Assim, diz o pensador paulista, no “fenômeno da festa, que é ao mesmo tempo dança, canto, representação e iniciação está implicado o fe-nômeno germinal de toda arte”, pois “a arte não é magia humana, mas magia divina” (ibid., p. 386). O poeta é “o homem sacral”, “ligado ao absolutamente ‘ outro’, à transcendência, representada, na poesia de Hölderlin, pela aproximação ou afastamento cíclico dos deuses, e na poesia de Rilke, pelo ‘Anjo terrível’, que aniquila a entidade demasiado humana do poeta, para convertê-lo num arauto do real” (ibid., p. 385).

Mito e mistério, filomitia e filosofia aparecem na “ carta de navegação” da vida do espírito (que o texto de Vicente representa e sintetiza) como faces de um pensar que anuncia a superação do esquecimento, a superação da noite e ausên-cia dos deuses. Tal pensar é ultrapassagem da crise contemporânea, recordando ao homem de nosso tempo a antiga tradição que faz do poeta o “ mediador entre os deuses e os homens” e da arte “ Encontro e Anunciação” do sagrado, revelação da verdade originária.

138 OTTO, W., Der Dichten und die alten Götter”, apud FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 385.139 FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 385.

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Para Eudoro, o diálogo filomitia-filosofia, representado pela figura de Orfeu, emerge na aurora do pensamento ocidental e, de modo cada vez mais intenso, na tradição neo-platonica. Simboliza “a vida interior de todo o filosofar”140 e mostra, de modo metafórico, “ o que não se pode dizer, diretamente, da própria natureza da filosofia” (ibid., p. 384). Um ponto merece destaque: segundo nosso autor, as doutrinas derivadas do orfismo, no final do Império Romano, convergem na me-ditação sobre os laços entre a vida e a morte, o destino das almas (ibid., p. 284); mais ainda: o exame dos textos e fragmentos, levado a efeito por Eudoro, põe à luz um vínculo estreito entre o orfismo e os sistemas de Pitágoras e de Platão.

O orfismo é, antes de mais nada, uma teogonia, marcadamente abstrata, que supõe o Tempo como fonte originária dos deuses. Nela a catábase aparece como um tema central. Mas é a Proclo, comentador de Platão, que nosso autor re-corre para caracterizar Orfeu como o teólogo da Grécia, revelador dos deuses aos homens, filho de Apolo e da musa Calíope. Sua música despertava homens e outros entes para uma vida superior, para uma ascensão a um nível superior ao que se encontravam; apaziguava as feras e propiciava as divindades subter-râneas. Poeta, sua poesia seria “ naturalmente melódica (...) sobrenaturalmente catártica” (ibid., p. 294), emblemática da transcendência da morte, que o mito narra como descida e retorno dos infernos. Orfeu seria também o fundador dos mistérios. A catábase é essencialmente a experiência arquetípica do confronto com a morte, que a filosofia platônica traduz no entendimento do filosofar como aprendizagem da morte (ibid., p. 298 e segs), encontro com o mistério. Música, dança, rito141, revelam e imitam a antiga história dos deuses. Assim, “a ‘música-filosofia’ [e] a ‘música-religião’ (...) [aparecem] emblematizadas (...) pela figura de Orfeu”142.

Para Eudoro, assim como para Jaeger, explicitamente referido pelo filólogo, o pensamento grego mostra-se “ no diálogo entre a philomythia e a philosophia (...) [expondo] a perenidade de uma recíproca relação entre as formas da consciência religiosa e da consciência filosófica” (ibid., pp. 308-309).

Criticando a tese tradicional de que a filosofia surge da transição do mito ao logos, nosso autor mostra que ambas, a philomythia e a philosophia correm jun-tas e que poesia, mito e filosofia expressam um certo tipo de pensar que não tem linguagem própria e onde se expõem “ duas objetividades complementares” que se referem a uma realidade situada além da experiência religiosa ou científica. Orfeu representaria a busca da síntese dessas duas linguagens, síntese irrealizá-vel, mas que poderia achar-se em vias de realização no Cristianismo, diz Eudoro (ibid., pp. 318-319).

140 SOUSA, E. de, Dioniso em Creta e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades, 1973, p. 281.141 Cf. FERREIRA DA SILVA, n. 6, 9 e 10.142 SOUZA, E. de., op. cit., p. 305.

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Orfeu é o nome da vida interior da filosofia. A teogonia e a escatologia a ele atribuídas podem ser sintetizadas pelas seguintes afirmações: a) a da imortalida-de da alma; b) a da dualidade do homem, “filho da terra e do céu estrelado”143; c) a da existência de um percurso de libertação da matéria, conduzindo a alma ao retorno a seu lugar de origem, um lugar supra-celeste. Diz Eudoro: “(...) filomi-tos, por excelência, são os poetas: Homero, Hesíodo, Orfeu (...)”144; mas também Parmênides e Empédocles, que exibem a correspondência entre mitologemas e filosofemas. O pensar das origens mostra coincidências de significado entre o mito e o logos, denunciando a existência de uma correlação entre poiésis e noésis: “(...) no pensamento dos órficos (...) a mitologia e a filosofia parecem (...) duas cifras de um pensar que não tem linguagem própria (...) [e] que os Antigos cifraram (...) no mito de Orfeu” (ibid., pp. 108-109).

Assim, o que se mostra, através da figura do músico-poeta-hierofante, é o fato de que não há um abismo entre a poesia e a razão, mas uma perene e recíproca relação entre a consciência poético-religiosa e a filosofia, diz Eudoro, apoiando-se em Jaeger (A teologia dos antigos filósofos gregos) e em Frobenius (A cultura como ser vivente) (ibid., p. 137 e segs).

Orfeu, o “mais músico” e o “mais filósofo”145, expressaria a revelação da ver-dade, a busca do saber sobre o homem e o mundo, característicos da filoso-fia e da mitologia, sintetizados na experiência religiosa do homem arcaico. O mito põe à luz a complementaridade da vida e da morte, a unidade dos opostos, profundamente enraizada na alma do homem. A figura de Orfeu-poeta põe em relevo ainda o denominador comum a todas as artes, que é poesia: “poesia das palavras, que é poema (...), poesia do som, que é música, poesia da cor e da luz, que é pintura (...)”146.

A intuição da essência é o objetivo da poesia e da filosofia. Na arte, é invoca-ção, visão que se manifesta no discurso sobre a beleza. Para os Antigos, a arte é mimésis, imitação do real; para o Romantismo, arte é criação. Para Aristóteles, invocado por Eudoro, a arte é imitação criadora da própria origem dos entes. Por isso, a poesia é busca do mistério, “revelação da origem, no originado” (ibid., p. 172). Ou seja, a arte é Alétheia, desvelamento, saída de um estado de ocultação, diz Eudoro, reportando-se ao célebre texto de Heidegger A origem da obra de arte (ibid., pp. 172-173). A arte imita, desvela, a origem do ser, mediante símbo-los. Por isso Orfeu, emblema da unidade entre poesia, religião e filosofia, desce aos infernos, isto é, transpõe “o horizonte que envolve todo o campo da experi-ência comum” (ibid., p. 179).

143 CARRATELLI, G. P., Les lamelles d’or orphiques. Paris: Belles Lettres, 2003. 144 SOUSA, E. de, Origem da Poesia e da Mitologia. Lisboa: INCM, 2000, p. 105. Cf. também FER-REIRA DA SILVA, n. 4, 8, 9, 10, 12.145 Eudoro cita Otto KERN, Orphicorum Fragmenta. Testimonium. 46, p. 14.146 SOUSA, E. de, Dioniso em Creta, p. 165.

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O que Eudoro se propôs fazer foi a hermenêutica do mito, desdobrando o significado da poesia e da filosofia. Interpretar é exprimir, e o que a poesia e a filosofia tratam de expressar é um outro mundo, um outro nível de realidade, que coincide só parcialmente com o nosso, com a realidade material. Mas como não coincide totalmente nos planos da sensibilidade e da inteligibilidade, o que a interpretação faz é mostrar como, no símbolo artístico, “se altera este mundo, no sentido do outro” (ibid., p. 182). A poesia, no limite entre o dizível e o indizível, põe à luz o mundo simbólico, que sintetiza o particular e o universal, o sensível e a significação.

Em resumo, na hermenêutica do mito de Orfeu, Eudoro assinala:- a coexistência da filomitia e da filosofia;- a tese de que poetar e pensar são duas cifras, dois modos de abordar o

mundo simbólico, a realidade para além do dado imediato;- a catábase, entendida como metáfora da transcendência da vida comum,

confronto com a equivalência entre a vida e a morte;- a indissociabilidade entre religião, arte e filosofia;- a complementaridade entre mito e filosofia.

Vicente e Eudoro convergem na proposição de um novo tipo de pensar, que retoma a tradição originária do Ocidente e a relê a partir das contribuições do romantismo alemão, da fenomenologia e da hermenêutica.

Esse novo tipo de pensar propõe uma reformulação da idéia de sagrado e assinala a poesia como seu lugar de expressão, no mundo contemporâneo.

Nesse pensar filomitia e filosofia, filosofia e poiésis são aspectos indissociá-veis de uma interrogação que sonda o mistério do Ser.

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Pensamento originário e filomitia

É no horizonte da meditação sobre a tradição grega e sobre os mitos que é preciso compreender a aproximação ocorrida entre os pensadores da Escola do Porto – Delfim Santos, Agostinho da Silva –, o filólogo e filósofo Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva – este, o mais importante autor brasileiro de inspiração heideggeriana.

À luz do magistério de Leonardo Coimbra, «o primeiro que [...] se referiu [...] à analítica existencial heideggeriana»147, os estudiosos portugueses abordaram, em seus textos, a filosofia e mitologia gregas.

Por volta de 1950, nossos autores acham-se em São Paulo, convivendo com Ferreira da Silva. Mantêm entre si um im portante diálogo espiritual, lançando o germe do Grupo de São Paulo148.

A nosso ver, os filólogos Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, sob o impacto directo da reapropriação do pensamen to grego, levada a efeito por Heidegger, buscaram a Grécia viva, originária, raiz da civilização ocidental. É possível que o magistério de Leonardo Coimbra, conhecedor da obra de Husserl, Heidegger, tenha impulsionado tal busca, pois na Faculdade de Letras do Porto o filósofo formou «um numeroso e valioso grupo de discípulos que, sem prejuízo da diver-sidade de caminhos especulativos que cada um deles veio a trilhar, permanece-ram sempre fiéis»149 ao mestre.

A diversidade dos «caminhos especulativos» é menos evi dente na orienta-ção inicial de Agostinho da Silva. Poderíamos distinguir, na sua trajectória in-telectual, ao menos três mo mentos. Nascido no Porto, nosso autor formou-se em Filologia Clássica na Faculdade de Letras. Foi aluno de Leonardo Coim bra e sua tese de doutorado foi sobre O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas (1929). A Religião Grega (1930) e Con versação com Diotima (1944) exemplifi-cam a primeira fase de sua obra, marcada pelo interesse pela Grécia Antiga. A se gunda fase seria constituída pelos textos que anunciam o mo ralista de estilo aforismático: Considerações (1944), Glossas (1945), Sete Cartas a um Jovem Fi-lósofo (1945). Esses escritos reúnem as meditações de Agosti nho sobre o mun-do contemporâneo e prenunciam a terceira fase, mais conhecida, sob a influên-147 BRAZ TEIXEIRA, A., «A filosofia portuguesa do século XX», in Ética, Fi losofa e Religião, Évora, Pendor, 1997, p. 26.148 CÉSAR, C. M., O Grupo de São Paulo, Lisboa, INCM, 2000.149 BRAZ TEIIXEIRA, A., op. cit., p. 15.

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cia do joaquimismo. É pre ciso dizer que o pensador emigrou para o Brasil, em 1944, trabalhando, na Universidade Federal Fluminense, com Jaime Cortesão. O encontro será decisivo para o compromisso com uma visão profética, inseri-da «numa linha escatológica e paraclética, próxima do joaquimismo e na qual é assinalável um franciscanismo essencial» (ibid., p. 19), que marcará a terceira fase de sua trajectória. São dessa época Reflexão (1957), As Apro ximações (1960) e os vários escritos reunidos em Dispersos (1988-1989), de entre outros.

O fio condutor da sua meditação, que parte da apropria ção da Grécia, vista como metáfora do espírito, e desemboca na celebração de Portugal como ins-trumento de construção do império do Espírito e superação da conturbada ci-vilização téc nica em que nos encontramos, é a busca do sagrado, traduzida, no plano do sujeito individual, como fidelidade ao deus inte rior. Na caminhada de Agostinho encontramos, num primeiro momento, a tradição socrático-plató-nica; na sua obra de matu ridade, a repercussão dessa temática na afirmação do dever essencial de santidade, numa perspectiva inspirada em Joa quim de Fiore. A íntima relação entre pensamento e vida «deve entender-se à luz dessa prefe-rência pela transformação da vida, em ordem à libertação e realização pessoal e comu nitária»150. A passagem da ênfase na Grécia metafórica ao Por tugal meta-fórico dá-se a partir da vida no Brasil e da medi tação sobre o sentido da cultura portuguesa: «assumindo o franciscanismo e paracletismo que Jaime Cortesão vislumbra nos Descobrimentos, passa a assumir Portugal, o Brasil e a comuni-dade de lingua portuguesa como sujeitos histórico-cul turais de uma privilegiada missão, visando unificar fraternal mente o planeta, numa idade final de plenitude e convergên cia entre tempo e eternidade e o divino e o humano, referida como o Império do Espírito Santo» (ibid., p. 3).

Mais conhecida, esta última fase de seu pensamento, a do «paracletismo franciscano»151, a do «homem de Deus»152, é preci so compreendê-la no horizonte de um ecumenismo, pois sua opção pelo cristianismo deve-se mais «a motivos de ordem geográfica, histórica e sociológica, porque sendo a religião dos portu-gueses foi naturalmente para ele a mais próxima» (ibid., p. 292). Aberto a todos os caminhos que conduzem o homem à perfei ção moral, afirmando um Deus impessoal e conciliador dos contrários, nosso autor está longe de uma ortodoxia católica. Propõe uma ética das virtudes, que privilegia a sabedoria e o amor, apon-tando a santidade como «o único fim de todos os homens» (ibid., p. 282).

Nesta fase, Agostinho diz o sagrado a partir das categorias do cristianismo, mas apresenta, na sua concepção, uma radical abertura a todas as religiões, en-tendidas como plurais expres sões da busca de Deus. Diz Abranches de Soveral:

150 BORGES, P., «Agostinho da Silva» (dactilografado), p. 2.151 BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., p. 19.152ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Agostinho da Silva: um homem de Deus», in CALAFATE, P. (dir.), História do Pensamento Filosófico Português, vol. v, t. 1, Lisboa, Caminho, pp. 273-295.

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[Agostinho] «Pensava que cada um deveria ter a sua religião, mas olhar também, como se fosse sua, a religião dos outros; e acolher o que há de religioso no pró-prio ateísmo». E ainda: «o proble ma de Deus apresenta-se basicamente idêntico para todos, e as soluções encontradas têm também um idêntico valor existencial, pelo que haverão de ser respeitadas e olhadas com simpatia». Agostinho vê nos ateus «uma inquieta busca da verdade», a qual expressaria, de certo modo, «uma exigente religiosidade, mais louvável que a fé acomodatícia de muitos crentes...» (ibid., p. 281).

Sublinhamos a presença da temática do religioso em Agos tinho, desde os seus primeiros textos (v. g., A Religião Grega, 1930). Essa temática será um dos denominadores comuns, como veremos, entre Agostinho, Eudoro e Vicente Fer-reira da Silva, entre a Escola do Porto e a Escola de São Paulo153. Embora Eudo-ro tenha estudado na Universidade de Lisboa, frequentou, na cidade, a casa de Antonio Sérgio, onde um grupo de discípulos de Leonardo Coimbra se reunia; nessa casa «circulavam [...] Delfim Santos e Agostinho da Silva»154.

Na primeira fase de seu pensamento, marcada por um «neoclassicismo de matriz helénica»155, Agostinho faz uma lei tura «crítica e heterodoxa» do cristia-nismo” (ibid., p. 12), «destacando o ‘carácter social’ da pregação de Cristo» (ibid., p. 13) e propondo uma con cepção imanentista e transcendente de Deus, fusão do Espíri to e Matéria, expressão da Inteligência e do Amor. Uma leitu ra crítica do cristianismo estará presente também em Vicente Ferreira da Silva, no seu Teologia e Anti-Humanismo156, e em Eudoro de Sousa.

Os textos mais importantes que expõem o vínculo à Grécia, na primeira fase do pensamento de Agostinho, são: A Religião Grega (1930), Conversação com Diotima, Pólicles e Apólogo de Pródico de Ceos (1944).

Em A Religião Grega, a Grécia é vista como metáfora do espírito: a «caracterís-tica essencial do espírito grego [...] é [...] o amor insaciável pela Beleza»157. E a reli-gião grega «é a pro jecção, no eterno, no sagrado, no divino, do amor da Nature za, do amor da Vida e [...] do amor da Beleza» (ibid., p. 11). E ainda: «por todo o tempo ficará no Homem a saudade, o anseio de reencontrar essa Grécia divina onde se adoravam, sobre todos os deuses, a Beleza e a Vida» (ibid., p. 103).

Conversação com Diotima é reconhecida, por Paulo Bor ges (op. cit., p. 17),

como uma das mais significativas obras de nosso autor, do ponto de vista filo-sófico. Escrito sob a forma de um diálogo entre um Estrangeiro e Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia que, no diálogo de Platão – O Banquete –, é interlocu-153 BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., passim.154 ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in CALAFATE, P., op. cit., p. 298.155 BORGES, P., «Estudo introdutório», in Agostinho da Silva, Textos e Ensaios Filosóficos, vol. I, Lisboa, Âncora, 1999, p. 11.156 Texto de 1953, publicado em São Paulo, em edição do autor.157 Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 5.

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tora de Sócrates, o texto de Agostinho é riquíssimo: apresenta uma pluralidade de facetas, onde a meditação alcança enorme pro fundidade. A Grécia viva, a temática da beleza, a indissolúvel ligação entre o conhecer e o contemplar, o artista encarado como aquele que desvela a maravilha do mundo, a reflexão sobre a felicidade e a íntima relação entre felicidade e sabe doria, entre verdade e amor, estão presentes nesse escrito. Mas Agostinho ressalva: «A Grécia, que me encanta, tem todas as qualidades, Diotima, mas falta-lhe talvez a do Amor». E afir ma: «se um dia surgir na terra o amor [...] que morrerá pelos escravos, pelos humildes [...] então [...] a vida seguirá rumos que hoje nos parecem totalmente fechados»158.

Em Pólicles, a forma dialógica também é a escolhida. Nesse escrito Agostinho aponta a exigência de auto-superação do homem; ao mesmo tempo, recria a paisagem da Grécia e recorre ao mito de Héracles – símbolo, para ele, do destino heróico, proposto a cada um. A menção a Héracles já aparece em Conversação com Diotima, onde a personagem o Estran geiro diz: «Entre os deuses e os ho-mens, se não venerasse o que é ainda mais alto do que os deuses e os homens, tomaria para meu guia e modelo o gigantesco Herácles»159.

Na filomitia, na apropriação da Grécia como paisagem, na referência à expe-riência originária de pensamento e do encon tro entre filosofia e vida, Agostinho expressa o modelo para digmático do existir humano. Trata de construir uma ponte entre o finito e o eterno, mediante a fidelidade à inspiração dos deuses e o reconhecimento de que o caminho mais áspero é o que melhor possibilita a transcendência.

Filologia, filomitia, filosofia da mitologia: a trajectória de Eudoro de Sou-sa segue percurso análogo ao de Agostinho da Silva. Eudoro estudou Filologia Clássica e História Antiga em Heidelberga, onde foi leitor de português, por in-dicação de Delfim Santos. Conheceu, aí, o pensamento de Heidegger e foi amigo pessoal de Jaspers. Estudou, depois, Filosofia, no Insti tuto Católico de Paris.

A convite de Agostinho da Silva, emigrou para o Brasil, vindo ter a São Paulo, onde encontrou Vicente Ferreira da Silva e os pensadores da revista Diálogo – dirigida por este. Esses pensadores eram, na sua maioria, também participan tes do Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado em 1949 por Miguel Reale. Consti-tuíam o chamado Grupo de São Paulo, ou Escola de São Paulo, nas acepções de António Paim e António Braz Teixeira160.

Em 1953, passou a lecionar na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica. Nesse ano, Vicente Ferreira da Silva publicou um artigo na Revista Brasileira de Filosofia, no qual examina as teses de Eudoro.158 SILVA, A. da, Conversação com Diotima, in Textos e Ensaios Filosófi cos, vol. 1, Lisboa, Âncora, 1999, p. 167.159 Idem, p. 134. Cf. também Pólicles, in ibidem, pp. 190-191.160 MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo, op. cit.

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São muitos os escritos de Eudoro abordando a Grécia ar caica. Já no ensaio de 1946, Origem da Poesia e da Mitologia no Drama Ritual, nosso pensador estudara as relações entre mito e rito, utilizando uma abordagem fenomenoló-gica, con cluindo que «da filosofia mitológica nasce a necessidade de revalorizar os ritos abandonados»161. Formula, aí, as grandes linhas de sua Filosofia da Mi-tologia.

Vamos nos deter em dois estudos que parecem evidenciar a correlação en-tre filomitia e pensamento originário. Os estu dos são intitulados: a) «Orfeu e os comentadores de Platão» (comunicação apresentada no XIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, em 1950); b) «Orfeu ou acerca do con-ceito de filosofia antiga» (artigo publicado na Revista Brasileira de Filosofia, em São Paulo, em 1953).

Escolhemos os dois trabalhos por serem comentados por Vicente Ferreira da Silva, o que permitirá entender a aproxi mação entre os dois autores.

Em «Orfeu e os comentadores de Platão», Eudoro assinala que Aristóteles, na Metafísica, «equipara o filósofo ao filomito pela admiração ante o ser tal qual é»162. Para o nosso autor, «a verdade do pensamento grego se nos revela sempre em transe do mito para o logos...» (ibid., p. 106) e o exame das relações entre ambos sempre consistiu, na filosofia neoplatónica, num esfor ço «por reintegrar a filosofia grega na sua origem» (ibid., p. 108). Orfeu simbolizaria, segundo Eu-doro, a relação entre o mito e o logos, entendidos, pelos comentadores de Platão, não como «duas linguagens que exprimem o mesmo pensamento, mas sim duas cifras de um pensar que não tem linguagem própria»; e ainda: «as coincidências de significado entre o mito e o logos» mos tram que, «enquanto viveu, circulou a verdade do pensamento grego, no âmbito da religião, entre a poiesis e a noesis» (ibid., p. 109).

Assim, para Eudoro, «o pensamento filosófico diz-se origi nalmente pelo si-lencioso gesto do drama ritual, originalmente pela harmoniosa sonoridade desse gesto, originalmente pelo ritmo do verso, originalmente pela articulação do dis-curso» (ibid., p. 108).

O outro texto, «Orfeu ou acerca do conceito da filosofia antiga», publicado em São Paulo, retoma a tese de que «a ver dade do pensamento grego se nos re-vela sempre no trânsito da philo-mythia para a philo-sophia»163. Fazendo apelo a Frobenius e Kerényi, trata de mostrar que poesia e mitologia são a linguagem primordial e reafirma que «mitologia e filoso fia parecem [...] duas cifras de um pensar que não tem lin guagem própria» (ibid., p. 140). Orfeu – «teólogo, poeta,

161 ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in ibid., p. 301.162 SOUSA, E. de., Origem da Poesia e da Mitologia, Lisboa, INCM, 2000, p. 105.163 Idem, «Orfeu ou acerca do conceito da filosofia antiga», ibid., p. 136.

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hierofante» – simbolizaria tal pensamento, pois na Grécia, mito e logos se riam expressões da busca de compreensão dos deuses, do universo e do homem (ibid., p. 141).

E ainda, num texto ulterior, «Orfeu – músico», afirma: «Phi lomythia é isso mesmo [...]: no poeta-filósofo ou no filósofo-poeta, nostalgia de religião que a filosofia não pode ser»164. Pois «o intérprete da poesia e o estudioso de mitologia encontram-se diante da mesma necessidade de invocar a transcendência; uma transcendência que não fala linguagem alguma»165.

O tema da religião está, assim, presente em Eudoro, no exame das relações entre razão e fé, cultura helénica e cultura pré-helénica, mito e mistério, como bem assinalou Abranches de Soveral166, nos sucessivos textos que o filósofo pu-blicou.

Vicente Ferreira da Silva, que Eudoro encontra em São Paulo, em 1953, é, como dissemos, o mais importante autor de inspiração heideggeriana no Bra-sil167. Na última fase de seu pensamento, formula uma Filosofia da Religião e da Mitolo gia, sua contribuição mais original. Nela, afirma «a primazia do Mito sobre o Logos»168. O saber a que aspira é a busca do ser como Fascinação; sua filomitia está expressa nossa busca. Diz o filósofo: «A primazia do mito sobre o logos implica a precedência da Abertura do Ser sobre a esfera total do inte ligível [...] O Logos ata-nos ao já oferecido, o Mito nos trans porta para o domínio des-velante primordial»169.

A verdade do Ser é, para ele, poesia transumana, fulgura ção fascinante das potências divinas, arrebatamento da cons ciência pelo abissal e o sagrado: «O domínio do Ser é um Poder Passional» (ibid., p. 317).

Visando instaurar uma nova compreensão do homem e de sua relação com o meta-humano, afirma que «mais forte e mais profundo que o dizer filosófico está sempre o mitologema ini cial de uma cultura»; «o filosofar [...] deve ceder lugar a um pensamento que está além de todo ente, não é mais pensa mento humano, mas pensamento do Sugestor».

Frobenius, Eliade, Heidegger, Schelling, Otto, são os auto res nos quais Vicen-te se apoia para expor sua concepção filo sófica. Particularmente interessante é o artigo: «A fonte e o pensamento», publicado na revista Diálogo, em São Paulo, em 1957. Nele, Vicente mostra que «a dimensão da origem é o fundo de um sa-ber mais original que o querer-saber do ente originado; na Matriz originante já 164 Idem, Dioniso em Creta, São Paulo, Duas Cidades, 1973, p. 318.165 Idem, «Mito pré-helénico e mitologia grega», in Origem da Poesia e da Mitologia, p. 145.166 ABRANCHES DE SOVERAL, E. «Eudoro de Sousa», in op. cit., pp. 301 e segs.167 REALE, M. «Prefácio», in FERREIRA DA SILVA, V., Obras Com pletas, São Paulo, IBF, 1964, vol. 1, p. 7.168 Idem, ibidem, p. 11. Cf. também nossa abordagem em O Grupo de São Paulo, passim.169 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. 1, p. 397.

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estão dadas todas as filoso fias possíveis de um lapso histórico» (ibid., p. 344).Nos Diálogos (do Mar, da Montanha e do Espanto) (ibid., vol. 2, 1966, pp.

493-538), es critos por volta de 1962, nos quais intervêm as personagens George (Agostinho da Silva?), Mário (Vicente?), Diana (Dora Ferreira da Silva, a poe-tisa, esposa de Vicente) e Paulo, Vi cente aponta a necessidade de superação do antropocentrismo contemporâneo, em direcção a uma nova mitologia, um novo universo prototípico, um novo tipo de pensamento (ibid., Diálogo do Mar, pp. 500 e segs), capaz de «fazer reverdecer e florescer as vertentes polimórficas da Vida», uma vez que «nossa realidade é posta por uma Ori gem» e «na Origem estão os Deuses» (ibid., p. 506).

A crítica ao mundo contemporâneo, visto como vazio e marcado pela fuga dos deuses, pela ausência do sagrado, ins pira-se em Rilke, Heidegger (ibid., Diá-logo do Espanto, pp. 526 e 533). O novo tipo de pensar é aber tura «à nova rotação da roda do Divino» (ibid., Diálogo do Mar, p. 506), que permitirá ao homem libertar-se do «ideograma científico-construtivo», ca racterístico de nossa época. Como isso se dará? Vicente não sabe. Diz-nos apenas que «somos seres do limiar [...] Só podemos pressentir a sombra das coisas por vir» (ibid., p. 507).

Perante a crise de um mundo, só nos resta uma ética do telurismo, inspirada em Lawrence, e aberta a todos os deu ses (ibid., «O deus vivo de Lawrence», pp. 389-400). É ainda em Lawrence que se inspira para propor uma ética das virtudes: temperança, silêncio, ordem, resolução, fru galidade, trabalho, sinceridade, justi-ça, moderação, limpeza, tranquilidade, castidade, humildade. E ainda esta ética que o leva a afirmar o religioso numa perspectiva ecuménica, dizen do, de modo análogo a Agostinho: «Comei e festejai com Baco ou mastigai pão seco em com-panhia de Jesus, mas não vos senteis à mesa sem um dos deuses» (ibid., p. 405). E adiante: «Sois res ponsáveis para com os deuses que habitam em vós e para com os homens através dos quais esses deuses falam»; «Não deveis perder tempo com as ideias, mas servir o Espírito Santo. Jamais servir a humanidade»; «Deveis encarar todo homem e toda mulher relativamente ao Espírito-Santo que os habita», pois «o valor do homem, para Lawrence, reside em sua disponibilidade infinita em relação ao ‘Holy Ghost’ que habita sua alma» (ibid., p. 407).

No texto Orfeu e a Origem da Filosofia, em que fala sobre Eudoro, Vicente re-conhece o filósofo português como «expoente do espírito português» (op. cit., p. 153) e enfatiza o caráter mito-poético do pensar grego, repetindo, com Eudoro, que «mitologia e filosofia [são] duas cifras de um pensar que não tem linguagem pró pria» e que «a presença do divino [...] seria o solo [...] donde teriam surgido a poiesis mitológica e a noesis filosófica» (op. cit., p. 155).

Há, pois, nos três autores – Agostinho, Eudoro, Vicente – uma filomitia e uma busca da raiz da vida espiritual do Oci dente. Tal retorno se expressa como recusa

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e crítica da socie dade tecnocrática, como tentativa de instaurar uma meta-filo-sofia, no sentido heideggeriano do termo. Ou seja, tratam de redescobrir, na retomada da Grécia e de seus mitos, um poetar-pensante, uma nova linguagem que expresse o surgir de um novo tempo, a profunda mudança que o esgotamen-to das formas de viver, características de nossa época, estaria anunciando.

O diálogo entre os três pensadores se apoia em fontes comuns: a tradição órfico-platónica, a filosofia da mitologia de Schelling, a ontologia fundamental de Heidegger, a fenomeno logia da religião. Não é por acaso que autores como Eliade, Kerényi, Otto, Frobenius, são mencionados, especialmente por Eudoro e Vicente.

Os laços entre os três aparecem, primeiro, no comentário extremamente fa-vorável de Eudoro ao livro de Agostinho, A Re ligião Grega170, e na convivência pessoal que mantiveram, em Portugal, de início, depois no Brasil. Eudoro veio ao Brasil em 1953, a convite de Agostinho, que já se achava no país; os três se encontram, em São Paulo, em casa de Vicente.

Esse encontro de almas, de uma mesma família espiritual – como assinala Dora Ferreira da Silva, esposa de Vicente e membro do Grupo de São Paulo –, dá-se pelo interesse por fontes filosóficas comuns, mas, essencialmente, pela tentativa de pensar as Origens, o sagrado abissal, reflectido no deus presente em cada um. E de viver, não mais a partir de si mesmos, mas a partir dos deuses assim celebrados171.

Tal pensar é pensamento do limiar, pensamento «nos limi tes da filosofia [...] nos limites do pensar e do pensável, porém convertendo-os sempre em limiares»172. É uma meta-filosofia, como o próprio Vicente assevera e como bem compreendeu Fernando Bastos, referindo-se a Eudoro173.

O diálogo entre os três autores, examinado por Gilberto de Mello Kujawski174,

por António Braz Teixeira175, por Eduardo Abranches de Soveral, de entre ou-tros176, aponta para uma retomada da matriz grega.

170 SOUSA, E. de, «Duas perspectivas da helenidade», Origem da Poesia e da Mitologia, op. cit., p. 46.171 FERREIRA DA SILVA, V., op. cit., p. 528: «Não viveremos mais a partir de nós mes-mos, mas sim a partir da sabedoria dos Deuses que irrompem em nosso caminho.»172 BORGES, P., «Eudoro de Sousa ou o helenista saudoso da ante e trans-helenidade», in SOU-SA, E. de., Origem da Poesia e da Mitologia, op. cit., p. 8; cf. também FERREIRA DA SILVA, V., ibidem, Diálogo do Mar, p. 507: «Somos seres do limiar [...] só podemos pres-sentir a sombra das coisas por vir.».173 BASTOS, F., Mito e Filosofia, Brasília, EDUNB, 1992, p. 25: «Uma ‘filosofia’ [...] ‘cui-dado em pensar’ um pensamento que se aproxime mais do Ser nas suas origens.».174 Discurso sobre a Violência e Outros Temas, São Paulo, 1985.175 O Espelho da Razão, Londrina, UEL, 1997, pp. 223 e segs.176 VARELA, M. H., Microfilosofia(s) Atlântica(s), Braga, APPACDM, 2000, pp. 198 e 250 e segs; MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo, passim; Paulo BORGES, op. cit. na nota 63, p. 7.

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Não se trata, em qualquer deles, de uma simples volta à Grécia primordial, um simples retorno ao mito. Trata-se, em todos eles, de uma reapropriação, uma redescoberta do valor do mito. A Grécia como inspiração de um novo modo de ser: tal é o que buscam nossos três pensadores.

O pano de fundo dessa retomada, que ocorre de modos diversos nas obras dos três autores, é, certamente, a poderosa irradiação do pensamento de Heide-gger, que influi directamen te em Eudoro e Vicente e que talvez, de modo indi-recto, atra vés do magistério de Leonardo Coimbra – é a nossa hipóte se – tenha ressoado em Agostinho.

A busca de uma linguagem originária, que em Heidegger é levada a efeito a partir da meditação sobre os pré-socráticos, em Vicente, Eudoro e Agostinho é feita pela recuperação do valor de verdade do mito, pela busca da mito-poiesis entendi da como tentativa de dizer o sagrado abissal.

Nos três autores, dá-se uma apropriação da riqueza origi nária da língua grega, na qual se expressam os mitos. Eudoro e Agostinho são filólogos; e é desvelando os mitologemas fun dadores que Vicente constrói sua filosofia da mitologia.

Nos três ocorre ainda a superação do mero retorno ao mito. Tal superação, em Agostinho, é recriação da Grécia como paisagem, é narração do mito e exposição de seu conteúdo moral. A Grécia é, assim, em sua obra, inspiração e modelo da tarefa imposta a todo homem: a busca da perfeição, da plenitude, apontada nos mitos e lendas dos heróis (Héracles).

Em Eudoro, a superação do mito dá-se como redescoberta de Orfeu, reconhe-cido como emblema do pensador e de Dioniso, presença arrebatadora do divino. Orfeu e Dioniso simbolizam, em seus escritos, o papel gnósico do mito, via de acesso, «via de regresso ao Sagrado»177.

Em Vicente, a superação do mito resultou numa Filosofia da Mitologia e da Religião, que busca decifrar, nos mitos, a fascinação espiritual que nos orienta em direcção a valores, à transcendência: «os deuses [...] abrem campo a efectu-ações existenciais eternizantes [...] os deuses são a própria orienta ção do nos-so transcender [...] [pois] nosso coração é uma chis pa do coração selvagem do divino»178.

A extraordinária contribuição desses três mestres do pen samento, o privi-legiado diálogo que mantiveram, consistiu na resposta criadora que deram ao enorme desafio lhes foi pro posto: a constituição de um novo tipo de pensar, a

177 ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in op. cit., p. 312.178 FERREIRA DA SILVA, V., Religião, Salvação e Imortalidade, in Obras Completas, vol. 1, pp. 395 e segs.

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fundação de um novo modo de ver, a recuperação da nossa axial tradi ção, tendo em vista o mundo futuro.

Filosofia: filomitia, pensamento originário, poetar-pensan te – tarefa da Esco-la do Porto e da Escola de São Paulo.

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a filomitia de eudoro de sousa

Eudoro de Sousa foi um dos mais expressivos representantes do que António Cândido chamou de A Missão Portuguesa179 e António Braz Teixeira de O Grupo de São Paulo180, pondo em relevo o diálogo espiritual entre estudiosos portugue-ses e brasileiros a partir de 1940, e enfatizado em 1950.

Os textos Dioniso em Creta, Mitologia e História e Mito abor dam aspecto essencial do pensamento de nosso autor, conforme o afirma Fernando Bastos: «Desde seus primeiros escritos, Eudoro de Sousa se preocupa com a problemá-tica do mito [...] tema central de suas indaga ções filosóficas [...] o escopo dessa mitosofia (ou filomitia) é [...] o hele nismo e o paganismo»181.

Bastos assinala a importância desses escritos que constituem a «sín tese e siste-matização do pensamento de Eudoro de Sousa [...] sua ‘obra programática’ [que abrange] Horizonte e Complementaridade (1975) [...] Sempre o mesmo acerca do mesmo (1978), Mitologia (1980) e História e Mito (1981)». A estes se vinculam os escritos da antologia Dioniso em Creta (1966/1973), que retomam trabalhos já publicados em Portugal, bem como os editados no Brasil, como informa Joa-quim Domingues182.

Publicado em 1966, «Dioniso em Creta» é o ensaio que abre o volu me edita-do pela Livraria Duas Cidades em 1973, em São Paulo, reunin do outros estudos de Eudoro sobre as origens pré-helénicas dos mitos e da filosofia grega.

Na perspectiva de Eduardo Abranches de Soveral183, os temas axiais do pen-samento de nosso autor são a relação entre mito e rito, mitologia e filosofia, a universalidade da cultura grega, a busca da convergência entre o mito e o logos, a meditação sobre o mistério e sobre as relações entre o homem e a natureza, que precedem Dioniso em Creta.

Atendo-se ao mundo pré-helénico, à cultura minóica, Eudoro mostra que nela o kosmos é deus, ou deus se revela na diacosmese, princípio e «plenitude

179 MELO E SOUSA, A. C., «Prefácio», in Fernando LEMOS, F. e MOREIRA LEITE, R. (orgs.), A Missão Portuguesa, SP/Bauru, UNESP/EDUSC, 2003, pp. 15-20.180 BRAZ TEIXEIRA, A., O Espelho da Razão. Estudos sobre o Pensamento Filosó fico Brasileiro. Londrina:UEL, 1997, pp. 223-226.181 BASTOS, F., «Escatologia e soteriologia no paganismo mitopoético e onto-teo-lógico de Eu-doro de Sousa», in LEMOS e MOREIRA LEITE, op. cit., p. 89.182 DOMINGUES, J., «Eudoro de Sousa perante a Filosofia portuguesa», in V Colóquio Tobias Barre-to: Mito e Cultura: Braga e Viana do Castelo, 1998.183 ABRANCHES DE SOVERAL, E., «Eudoro de Sousa», in CALAFATE, P. (dir.), História do Pen-samento Filosófico Português, vol. V, O Século XX, tomo 1, pp. 207 -315.

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de uma ordenação do céu e da terra e de todos os seres natu rais, humanos e divinos»184. Aborda a relação entre o pensar e o conhecer, no pensamento sim-bólico, que enlaça mito e ritual, poetar e pensar, mito e mistério. Nesse texto, o pensador afirma que «a mitologia não nasceu de qualquer anseio por explicar o Mundo, o Homem e Deus: é pura expres são do encontro de homens com deuses, em um mundo que é, para cada encontro, o cenário em que o mesmo decorre» (ibid., p. 118). Tal mitologia é música e poesia, celebração de uma realidade que não pode ser dita através de outra linguagem. É intuição da origem, revelação do mistério, da ver dade das coisas, pela mediação do símbolo – que funde o ideal e o real.

Hermenêutica de uma realidade outra, a arte, de modo análogo ao mito, aproxima os planos da inteligibilidade e da sensibilidade, este mundo e o de uma transcendência que transpõe todos os horizontes da experiência comum.

Fazendo a exegese dos mitos, Eudoro mostra esta experiência de transcen-dência através do exame dos mitos associados ao tema do ouro, símbolo da imortalidade, da vida que supera a morte, do mito de Psiqué e da simbólica da luz, vistos como alegorias «da teoria do conhecimen to e [...] do ritual dos misté-rios» (ibid., p. 238), do laço entre mito e dialéctica em Platão, encarado como transposição intelectual do mistério. Considera ainda a teogonia e escatologia órficas, a filomitia aí presente, que ressoa no pensamento platónico e neoplatóni-co, em Píndaro, Empédocles e nas Lamelas Áureas – narrando a história da alma, sua trajectória em busca do mundo supraceleste. Orfeu representaria, segundo Eudoro, o diálogo entre a filomitia e a filosofia, a razão e a poesia, integrando teologia, antropologia, cosmologia, na sua relação. Filomitia e filosofia aparecem «como linguagens das duas objectividades complementares, me diante as quais [...] uma realidade situada para além do horizonte da experiência religiosa ou cientí-fica» (ibid., pp. 318-319) se deixa entrever.

Dioniso em Creta é uma das obras mais bem sucedidas de Eudoro; nela se aliam a linguagem elegante, a originalidade da temática e da perspectiva propos-tas e uma riquíssima e erudita bibliografia, pontuan do a inscrição de nosso autor junto à tradição do romantismo, via Schelling, e situando-o ao lado de mestres como Bachofen, Eliade e Kerényi.

O texto Mitologia data de 1980. O próprio autor o situa como uma continui-dade e aprofundamento da reflexão desenvolvida no escrito de 1975, Horizonte e Complementaridade.

Na «Apresentação» da 3ª edição, publicada em 1988 pela Univer sidade de Brasília, Fernando Bastos faz uma advertência, repetindo pa lavras do próprio Eudoro, no prefácio à 1ª edição: Mitologia não é «colectânea de mitos, nem filo-sofia da mitologia».184 SOUSA, E., Dioniso em Creta. São Paulo: Duas Cidades, 1973, p. 93.

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A ousada aventura do pensador português consiste na investigação do mis-tério, do originário; é tentativa de dizer o indizível, abordando o campo das cos-mofanias, das teocriptias, através da meditação sobre a lin guagem simbólica.

Na reflexão assim encaminhada cruzam-se o Das Ding heidegge riano, as filo-sofias pré-socráticas de Heraclito e Parménides, as tradições platónica e judaico-cristã, a redescoberta do mito nas obras de Frazer, Jensen, Otto e Kerényi, resul-tando uma abordagem original e instigante do ofício do pensar.

O livro se desdobra em três partes: na primeira, o tema é o triângu lo – mun-do, homem, deus – da complementaridade e do simbólico; a segunda, aborda o tema do diabólico e do simbólico, concluindo com a definição da mitologia como cosmofania. A terceira parte consiste na tra dução de A Coisa, de Heideg-ger, precedida de uma introdução, na qual Eudoro mostra o texto heideggeriano como fio condutor da sua medita ção em Mitologia.

O ponto de partida da investigação é a pergunta: que é o homem? A resposta de Eudoro mostra o ser humano como aquele que recusa a identificação imediata com o mundo, como alguém que se define pela recusa. E recorre ao mito adâmi-co, interpretado como a expressão do «acontecer humano, a primeira afirmação do homem, que é um querer firmar-se ele em si mesmo»185, exibida na recusa do paraíso por Adão, em vista da construção de um mundo, que se torna seu afazer. O mito nos mostra, assim, o homem e o mundo como «parceiros do mesmo jogo», ambos em permanente mutação e correlação. Cada época expres sa um tipo de homem e um tipo de mundo, configurados em seu mito instituidor.

Investigar o que correlaciona homem e mundo, sem reduzir um ao outro, mas mostrando-os dependentes de um projecto instituidor; exibir a relação en-tre mundo e deuses, dizendo que «cada deus munda, faz seu mundo do que ainda o não era – diacosmiza, numa palavra só» (ibid., p. 42); estabelecer a sinonímia entre Projecto, Mito, Mítico, Cultura, Drama, significando o plano desconhecido do jogo que o homem joga com o mundo e consigo – tudo isso, para Eudoro é mitologia.

Assim, «o mito é o modo de se falar do homem e do mundo» (ibid., p. 45); precede o logos, não só cronologicamente, mas enquanto significado institutidor da correlação. É um falar sobre os deuses, é «tautegoria dos deuses e alegoria do Homem e do Mundo». Inspirando-se em Schelling, afirma que «um mundo seria um deus visível e um deus, um mundo invisível» (ibid., p. 48). A mitologia se entenderia, assim, como cosmofania teo críptica, isto é, como desvelamento de uma ontofania, cosmofania e antropofania, que seria, simultaneamente, oculta-ção dos deuses.

Eudoro afirma que os mitos apontam para um Deus além dos deu ses, que ele chama de a Excessividade Caótica, o Abismo sem fundo que está fora de todos os

185 «Mitologia», p. 28. Todas as remissões serão para a edição da INCM (Lisboa, 2004).

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limites. Assegura também que em qualquer dos deuses vê-se uma imagem desse Deus. Buscar esse abismo é o caminho e a tarefa do homem.

Daí Eudoro abordar, no segundo capítulo da primeira parte, catába ses, teo-gonias e metamorfoses. Esses três elementos são os três ramos da mitologia en-quanto investigação das origens. Os mitos da descida aos infernos relatam os rituais de passagem, vivências de situações liminares, de mudança de sentido do mundo: «já não sou o que fui, mas ainda não sou o que serei» (ibid., p. 58). O homem comum vive num mundo único; aquele que excede a si mesmo, aquele que transcende a experiência humana comum, vivencia o limite de um mundo e o limiar de outro. Em termos religiosos, a experiência da transcendência, diz Eudoro, «é um ritual de iniciação», é «ver-se suspenso sobre o abismo do entre-mundos» (ibid., p. 59).

Tais relatos estão associados à metamorfose, à mudança profunda de quem se pôs a caminho: «De modo que ‘iniciação’ nos põe a caminho de um mundo para outro; ‘passagem’ é o de um mundo para outro e ‘me tamorfose’ minha é também metamorfose do mundo» (ibid., p. 61).

Mitologia é falar desse caminho, onde a Excessividade Caótica, o Abis mo sem fundo se mostra nos deuses que descem ao mundo da matéria e dos homens que ascendem para a divindade: «a meio do caminho, os ho mens se reconhecem nos deuses e os deuses, nos homens... Os deuses, descendo, iniciam-se no Homem; os homens, subindo, iniciam-se em Deus» (ibid., p. 65). Os mitos referentes às catábases, exemplificadas pelo autor atra vés do mito de Inana, falam do caminho que une os deuses e os homens.

Tal caminho é percorrido «por nostalgia». É sempre uma odisseia, a da supe-ração da vida imediata, por iniciação, metamorfose, em busca do Deus «que se entrevê na passagem de mundo para mundo» (ibid., p. 66).

Outro aspecto da mitologia é o das teogonias. Na Teogonia de Hesíodo, por exemplo, o mundo aparece como a complementaridade entre terra e céu, deuses e mortais, que resulta do «transbordar das águas primordiais do Grande Abis-mo» (ibid., p. 72).

A teogonia «se desdobra em cosmogonia e antropogonia», não é «biografia dos deuses» (ibid., p. 73), mas fala da relação entre a cosmogonia, a antropogo-nia, vistas como rememoração, «acenos dos deuses», os quais, por sua vez, são «acenos da divindade» sem forma. Assim, a mitologia é biografia, não dos deu-ses, mas do homem e do mundo, entretecidos por um deus que neles se oculta. Daí Eudoro falar do triângulo cosmogónico, de que o homem e o mundo cons-tituiriam a base e cujo vértice seria ocupado pela divindade. A relação dinâmica entre esses elementos faz surgir uma sucessão de mundos, na sucessão dos deu-ses que os instau ram e significam.

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O terceiro elemento da mitologia é a tematização da metamorfose, associada por nosso autor à permanente mutação, transformação, trânsi to do «mesmo» ao «outro», à relação entre a vida e a morte. O pensa dor, aqui, estabelece uma equivalência entre morte e iniciação, entre sair de si e tornar-se outro, em vista de desocultar o que se é, na própria subjectividade irredutível. No jogo das ca-tábases, cosmogonias, metamor foses, nos iniciamos no caminho que nos leva à divindade e cuja mensa gem é superar-se continuamente, vivendo, assim, a única «vida que mereça chamar-se de humana» (ibid., p. 86).

Na segunda parte do livro o filósofo aborda os temas do diabólico e do sim-bólico.

Recorrendo à linguagem metafórica, refere-se ao diabólico para de signar o mundo do homem comum, o mundo da objectividade técnica, do predomínio do intelecto e da vontade, da atenção à realidade vista como coisa, é o mundo do homem-humano, do homo faber, marcado pela concupiscência. É o mundo do trabalho, do «afazer sem gosto de o fazer» (ibid., p. 102), da escravidão aos objec-tos, da busca angustiada pela ascensão social. É o mundo que permanece sempre o mesmo, que tem horror à mudança, ao ultrapassamento de limites.

A este mundo se opõe o dos marginalizados, vinculados ao ócio cria dor, ao inútil, à contemplação que os liberta e os torna disponíveis a uma outra dimen-são da realidade.

Ao diabólico, Eudoro opõe o simbólico. Para ele, «‘coisas’ são símbo los desin-tegrados; como ‘símbolos’ são coisas reintegradas» (ibid., p. 108).

O símbolo possibilita a abertura ao mistério, descentrando o homem do ime-diato e abrindo-o a um além-horizonte, a uma transcendência. No símbolo cin-tilam as «Fulgurações Ofuscantes do Ser», a «Caótica Exces sividade», ou Deus, que é «Real Absoluto», «Trans-Objectividade» (ibid., pp. 119-120).

E Eudoro afirma: «Na trans-objectividade, o homem, já não-só-hu mano, é excêntrico» (ibid., p. 127); distrai-se do mundo objectivo, do mundo das coisas, encontrando-se em outro mundo, onde as coisas se convertem em símbolos.

No símbolo se conjugam um homem e um mundo, lançados por um deus (ibid., p. 137); e estes são figurações do Macro-Símbolo, da Divindade. O ho mem da trans-objectividade é o distraído, o excêntrico, em relação ao mundo das coi-sas; é a «‘subjectividade irredutível’, rebelde a toda a objec tivação» (ibid., p. 141).

A experiência da trans-objectividade é a experiência da filosofia, da religião, da poesia, enquanto reconhecem, nos símbolos, modos de expres são do Macro-Símbolo: é iniciação para a morte, enquanto esta significa metamorfose e renas-cimento.

Eudoro identifica a superação da objectividade com a experiência da ini-ciação nos antigos Mistérios. Os mistérios menores consistiriam na morte do

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«homem-humano», do homem comum, que opõe sujeito e ob jecto, para renas-cer no trans-humano, na apreensão simbólica da reali dade. Os mistérios maio-res representariam a morte do homem trans -humano, que renasce no divino, na sua «subjectividade irredutível». No primeiro momento, o homem passa da objectividade para a trans-objecti vidade; no segundo, mergulha além da trans-objectividade, na aproxima ção com o Deus que se acha acima e além de todos os deuses.

Religião, arte e filosofia são «códigos de decifração das cifradas men sagens da Divindade» (ibid., p. 161); expõem-nos à «Fulguração Ofuscante», à «Ex-cessividade Caótica» da transcedência, da qual os deuses são «acenantes mensa-geiros» (ibid., p. 156).

Para que o acesso à trans-objectividade se dê, é preciso que o ho mem se tor-ne disponível à possessão pelos deuses. Primeiro, pela experiência religiosa do drama ritual, que simboliza a mensagem da Ori gem. Depois, no campo da arte, pois é por meio dela que «o deus come ça a falar uma linguagem humana» (ibid., p. 170), através da superlatividade do simbólico. Enfim, na filosofia, «experimen-to de linguagem I...] desti nado a encher de significação o silêncio insignificado por entre as sig nificativas palavras dos mitos» (ibid., p. 171), o que vem à luz é que os deuses são «mensageiros da Divindade», e esta aparece apontada no seu ser, atra vés do «oculto reinar» daqueles (ibid., p. 175). A filosofia indica, assim, a possibi lidade de superação da própria trans-objectividade, da transcendência de «qualquer dos mundos acenados pelos deuses», levando-nos à beira do «Ho-rizonte Extremo», além do qual habita a «Caótica Excessi vidade», que nos envia «Fulgurações Ofuscantes. Fulgurações que são mundos manifestos. Ofuscantes porque no manifestado não se alcança o ser do Manifestante» (ibid., p. 177). A filosofia leva-nos, assim, ao limiar máxi mo do conhecimento, só desocultado completamente na experiência da morte.

O pensador afirma que a vida humana é circunscrita por dois hori zontes pos-síveis: o primeiro é o «da objectividade, que é limite da objec tividade e liminar da trans-objectividade; [o segundo é] o horizonte da trans-objectividade, que é limite da trans-objectividade e liminar da Rea lidade» (ibid., p. 181). No primeiro horizonte, o homem reina num mundo de coisas; no segundo, reina um deus, num mundo de símbolos, como acenante mensageiro da Origem.

Recorrendo aos fragmentos de Heraclito e à afirmação de que a morte de um deus é vida de um mundo, perspectiva adoptada por Jensen, Otto e Kerényi e reconhecida pelo nosso pensador, este procura mostrar que toda «Cosmofania é Teocriptia» (ibid., p. 187), e que o conteúdo essencial de todo pensar é reflexão sobre o que acontece no mundo, sobre o drama ritual, sobre o sacrifício que torna a vida possível.

Mitologia é, então, para ele, relato da Origem, «enredo do drama ritual em que se representa a origem» (ibid., p. 188), e o pensar sobre esse relato, a aproxi-mação ao mistério.

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No livro intitulado História e Mito, Eudoro reitera, no prefácio, que não se trata de filosofia da mitologia nem de filosofia da história, mas daquilo que ele chama de mitologia, ou seja, de tentar dizer o indizível, investigar o Originário, mediante o exame da relação do homem com o mundo e com o sagrado. Trata-se de medita-ção sobre a «Presença do Presente – Presença do Passado»186. Aqui, o mito aparece como «‘medi da’ da sensibilidade e da natureza» (ibid., pp. 295 e segs), e a relação mundo-homem-deus é figurada por um triângulo equilátero, em cujo vértice está a divindade e em cujos pólos opostos da base estão o homem e a natureza.

O mito trata da lonjura e do outrora, categorias que o pensador utiliza para abordar o além-horizonte, o além-tempo, do mistério.

O homem habita o presente, a actualidade. Cada época se define por «um regime de fascinação, por uma fulguração ofuscante» que «diacos miza», isto é, «configura homem e cosmo» (ibid., p. 230). Presente, passado e futuro são o campo de possibilidades aberto ao homem no tempo concreto. Cada época se vê reflectida no passado que actualiza; o antigo é apenas actua lidade atenuada (ibid., p. 236) e por isso «cada actualidade tem sua antiguida de; e há sempre uma antiguidade esperando ser descoberta (ou inventada?) pela actualidade que a me-rece» (ibid., p. 233); «cada época ostenta um projecto do passado-lonjura ou do passado-outrora» (ibid., p. 235), formando uma sucessão de leituras do passado, uma sucessão de projecções do passado, que não são falsas, mas que não esgo-tam o passado.

O passado de nossa cultura ocidental tem a Grécia como referência; e há «UMA GRÉCIA ANTIGA que só o Romantismo mereceu» (ibid., p. 233), como há as imagens da Grécia apresentadas no Renascimento, no Iluminismo, no Neo-Humanismo. A imagem da Grécia que surge aos olhos do homem de hoje é a da atenção às infra-estruturas, à economia agrícola, mercan til, à vida dos artesãos, às relações entre capital e trabalho, etc.

Nessa sucessão de leituras que cada época faz do passado, mostra-se o limite da história, a qual busca, para trás e para frente do agora, «a presença do presen-te», a «atenuada presença do presente» (ibid., pp. 240-241).

Para Eudoro, trata-se de investigar o além da história, o mítico como matriz da história. Recorrendo novamente à imagem do triângulo, que expõe a comple-mentaridade do simbólico, afirma que na base do triângu lo opor-se-iam o actual e o antigo e no vértice, dominaria o outrora, a experiência originária do além da história. Daí o pensador afirmar: «O mito e o rito põem o agora no outrora» na «hora dos deuses» (ibid., p. 242), no tem po dos deuses.

A história não tem sua significação em si mesma; é «projecto de uma realida-de inexaurível», seu tema constante é o homem e o mundo. No campo do mito e do mítico, encontramos o mistério: aqui, «a natureza é mistério da inexaurível 186 «História e Mito», p. 219. Todas as remissões serão para a edição da INCM (Lisboa, 2004).

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sensibilidade» (ibid., p. 272) e fala a mesma linguagem da religião, entrelaçando «o reino dos vivos e o reino dos mortos, presença do presente e presença do passado» (ibid., p. 280). O mito aparece, assim, como a «linguagem da transcen-dência do sensível» (ibid., p. 289), é «‘medida’ da sensibili dade e da natureza» (ibid., p. 295). Expressa o regime «nocturno» da consciência (ibid., p. 298), como o logos expressa seu regime diurno (ibid., p. 299).

Pensar o mito, na sua relação com o homem e a história, é pensar o Caos originário, o Abismo sem fundo, o laço entre a vida e a morte. Pensar o mítico é «pensar o ‘antes’ I...1 a metamorfose, a vida que de corre de mudança em mudan-ça [...1 para realização de possíveis sempre outros» (ibid., p. 302).

Eudoro imagina, como dissemos, um triângulo com três pólos: deus, homem, mundo; supõe também ter ocorrido uma catástrofe, que provoca ria a ocultação do divino na natureza e na sensibilidade; afirma também, como vimos, que a cada divindade corresponde um tipo de homem e um tipo de mundo. Nessa li-nha de reflexão, vê o mito como a expressão da presença do passado e a história, da presença do presente. Aquele mos tra, no drama ritual, a morte de um deus e sua ocultação, que põe à luz um certo tipo de homem e um certo tipo de mundo. Por sua vez, «a História, em qualquer época, desenha os contornos da presença do pre sente» (ibid., p. 342).

A referência à Grécia, como lugar privilegiado em que história e mito se de-frontam, possibilita ao nosso autor o reconhecimento de muitas «Grécias» na Grécia, pois a «actualidade lê-se na antiguidade que ela reflecte» dando-nos, as-sim, «uma Grécia renascentista, uma Grécia iluminista, uma Grécia romântica; e agora temos a Grécia [...1 neo-humanista» (ibid., p. 341), expondo a riqueza de uma história tão densa que não se esgota nessas sucessivas projecções. Essas diferentes leituras do signifi cado da Grécia põem-nos em contacto com a beleza e o mistério de uma inesgotável profundidade que se acha além do tempo e do espaço, o mis tério de uma transcendência balbuciada no mito e no tempo.

A filomitia de Eudoro, expondo um tipo de pensar «trans-racional», supera-dor do logos moderno, aponta o laço entre uma tradição filosófica que se enraíza na Grécia mitopoética de Homero e Hesíodo e nos pré-socráticos, abrindo-se a uma transcendência que nos leva a romper com os limites do homem actual, e nos instaura no limiar do mistério.

Filomitia que recupera uma sabedoria ancestral, que fez da Grécia a matriz inspiradora de nossa civilização e a utopia que nos apela à meta morfose, à supe-ração do presente – o pensamento de Eudoro de Sousa se inscreve na linhagem dos grandes mestres de nossa época.

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a compreensão heterodoxa do sagrado: agostinho da silva, eu-doro de sousa, vicente ferreira da silva.

Uma das expressões da crise actual dá-se na relação do homem com o sagra-do.

Essa crise se mostra, de um lado, como abandono e perda do sentido do religioso, como dessacralização, identificação com o mundo das coisas, com a vida voltada para a exterioridade; de outro lado, é busca de um encontro com a transcendência, de uma religiosidade outra, diversa das concepções institucio-nais vigentes.

Nos dois casos, a consciência de estarmos numa virada histórica, que põe em jogo a forma do homem se relacionar com o mundo, consigo mesmo, com os outros homens e com a transcendência, marca a atitude contemporânea.

Na filosofia luso-brasileira, três pensadores do chamado Grupo de São Pau-lo187, que mantiveram entre si fecundo diálo go, assinalam o momento de profun-da mudança que se anun cia no horizonte contemporâneo.

A reflexão desses autores – Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva – teve como ponto de partida a crítica da sociedade actual e, particularmente, a crítica das religiões institucionais.

Como fontes comuns que inspiraram a atitude crítica dos três autores pode-mos apontar a fenomenologia da religião, a filosofia da mitologia, as obras do romantismo alemão, sobretu do as de Schelling, e os escritos de Nietzsche e de Heidegger.

Em maior ou menor grau, todos levam em conta essas fon tes, como se pode perceber nos trabalhos de Agostinho da Sil va, por exemplo, em A Religião Grega, belíssimo estudo sobre os mitos vivos, sobre a Grécia no seu esplendor originá-rio; nos escritos de Eudoro de Sousa, que evidenciam sua filosofia, como Dioniso em Creta, Mitologia, História e Mito; na Filosofia da Mitologia e da Religião, de Vicente Ferreira da Silva.

Exemplos de expressão dessas fontes em Agostinho da Silva foram também os cursos dados por ele em casa de Vicente Ferreira da Silva sobre a contraposi-ção Apolo/Dioní sio em Nietzsche; os diálogos que teve com o pensador brasi-leiro sobre a filosofia da mitologia, testemunhados pela poeti sa Dora Ferreira da

187 Ver nosso O Grupo de São Paulo, Lisboa, INCM, 2000.

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Silva, esposa do filósofo brasileiro e também amiga de Agostinho da Silva, assim como de Eudoro de Sousa, com o qual, na opinião da poetisa, deu-se um dos mais profundos diálogos do pensador paulista.

Para os três autores, trata-se de pensar a crise contempo rânea e, nela, as ques-tões de secularização e do sagrado.

Conhecendo o mundo contemporâneo, os três autores ten tam compreender o sagrado de dois modos: primeiro, expõem suas fontes comuns na tradição gre-ga, na fenomenologia da religião em Heidegger e que consiste na reapropriação do pas sado, encarado como inspiração para o homem actual. O segundo modo consiste na proposição de utopias ou ucronias ou, ao menos, na sinalização de uma profunda mudança his tórica, no surgimento de indícios da emergência de um novo tempo e de uma nova concepção de Deus.

O recurso à tradição, aos mitos da Grécia arcaica, não é pura e simples volta ao mito, nem aceitação do mito como tal. É, antes, recuperação do valor simbó-lico da sua linguagem, é tentativa de recuperação da proximidade com o sagrado atra vés da hermenêutica dos mitos.

Esse dizer o sagrado a partir das categorias dos mitos gregos explica-se, em parte, pela formação dos pensadores portugueses: ambos são filólogos e Eudoro estudou na Alema nha, tendo contacto directo com as obras da escola fenomeno-lógica e com os textos de Heidegger, do qual também foi tradutor188.

O percurso da filologia à filosofia, característico de Nietzsche, também foi feito por Agostinho da Silva e por Eudoro de Sousa.

As mesmas fontes: a tradição clássica, a fenomenologia da religião, o roman-tismo alemão e as obras de Nietzsche e de Heidegger, acham-se nas obras de Vicente Ferreira da Silva.

O encontro de Vicente com Eudoro foi o mais importante, em vista do diá-logo muito próximo de ambos com os textos de Heidegger, Otto, Kerényi e das próprias posições filosóficas que assumiram.

O ponto de partida dos três para a discussão do problema do sagrado é a pro-posição de uma concepção heterodoxa da religião. Por concepção heterodoxa entendemos uma busca que se realiza fora do âmbito das religiões institucionais e pela crítica do cristianismo, no caso desses autores.

Para Agostinho, a crise actual se mostra como a escravi dão do homem ao trabalho, como esmagamento da vida cria dora, como prioridade do fazer sobre a contemplação.

A planetarização da crise evidencia-se, por exemplo, pelo desemprego cres-cente, cuja contrapartida é a sobrecarga dos que ainda estão empregados, força-dos a suportar o ónus do desequilíbrio existente.188 Veja-se, por exemplo, a sua tradução do Das Ding, publicada em Mitologia. História e Mito, Lisboa, INCM, 2004, pp. 191-215.

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Essa crise é, exponencialmente, ruptura do homem com o sagrado. Aparece, nos escritos de Agostinho da Silva, em pri meiro lugar, como esgotamento do catolicismo tradicional e dessacralização da vida na sociedade técnica.

A ruptura do pensador com a face do catolicismo vigente em Portugal duran-te o regime salazarista tem ponto de ori gem na crítica do cristianismo feita por Nietzsche, bem como na valorização da religião grega, vista como paradigma da abertura ao sagrado, na primeira fase da obra de nosso autor.

A retomada da tradição grega é também recuperação do mito vivo, do sagra-do arcaico na sua plenitude e no seu es plendor.

Já no Brasil, em 1954, o contacto de Agostinho da Silva com Jaime Cortesão o conduziu ao encontro com as teses de Joaquim de Flora e à redescoberta de uma certa formulação do cristianismo. Propôs, a partir daí, uma religiosidade hete rodoxa, inspirada na obra do monge calabrês.

A busca da proximidade com o sagrado mostra-se nos seus escritos mediante a recomendação do recolhimento monástico, da simplicidade de vida, da afir-mação do amor e da exigência de aperfeiçoamento pessoal permanente, assim como no senti do social e mesmo epocal da acção. O agir deve visar a cons trução de um novo mundo, através do estreitamento de laços entre pessoas e grupos, a fim de favorecer a eclosão das qua lidades mais altas de cada um, nos planos do coração, da inteligência e da vida do espírito.

Exemplos dessa busca do sagrado, fora dos quadros reli giosos institucionais vigentes, se expressam através do pro fundo amor aos outros seres humanos; da grande fé no poder transformador da vida e da acção; da imensa esperança que o leva a afirmar a possibilidade da renovação dos laços do ho mem com a divin-dade.

Trata-se, para nosso autor, de propiciar, através da acção, o advento de uma nova concepção de Deus, vivificadora do mundo e do homem. Trata-se de cons-truir, de instaurar o reino do Espírito Santo, em nós e fora de nós.

Exemplo de como essa concepção heterodoxa do sagrado o caracteriza e ins-pira sua acção foi a experiência levada a efei to no Itatiaia.

Com um grupo de amigos, dentre os quais se achavam Vicente e Dora Ferrei-ra da Silva, Agostinho criou uma comu nidade estruturada segundo regras ins-piradas pelas comuni dades monásticas medievais. Tentou a implantação de um novo modo de viver e de ser, com repercussão sobre a popu lação circundante da casa em que vivia. A tarefa educativa junto à população empregava teorias e técnicas de vanguarda e visava lançar as bases de uma nova sociedade.

O Deus que é buscado por Agostinho, embora este se atenha a um vocabu-lário cristão, inspirado em Flora, para designá-lo – o Espírito Santo –, não pode ser reduzido à sua compreensão ortodoxa na Igreja actual.

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Na ideia de Deus de Agostinho cabem todas as formas de religião e de culto, todas as alternativas, todos os caminhos, todos os opostos, todos os paradoxos. De Buda a Maomé, pas sando pela religião afro, Deus é a transcendência que inspira a acção, a ética das virtudes, a realização do homem no mun do. Trata-se, para ele, de libertar o homem contemporâneo de suas escravidões, do trabalho repetitivo, das confissões reli giosas, das autoridades de todos os tipos.

Assim, no caso de Agostinho da Silva, podemos falar de duas fases de seu pensamento a respeito da religião e do sagrado. Na primeira, a filosofia o leva a celebrar a religião grega; na segunda, a propor uma concepção utópica ou ao menos ucrónica do mundo vindouro do Espírito, valorizando uma religiosidade ecuménica, que acolhe as contribuições e as virtudes reconhecidas por diferentes vias de acesso a diferen tes faces de Deus.

Uma religião não-institucional, um cristianismo do qual retém apenas va-lores da verdade, do amor, como ponto axial. Um cristianismo considerado in-dependentemente da hierarquia eclesiástica, dos ritos e das igrejas, assim como de qualquer autoridade exterior. Uma religião do Espírito Santo, inspirada nas teorias do monge calabrês Joaquim de Flora.

A ideia de que o mundo vindouro pode ser mais amoroso e mais fraterno, e de que é possível começar a construí-lo imediatamente, através de acções culturais que eduquem e disponibilizem o homem de hoje às suas finalidades mais al tas, foi expressa por Agostinho da Silva. Uma das expe riências mais interessantes, à qual já aludimos, e que pode ser considerada emblemática dessa nova vida foi a comuni dade de poetas, artistas plásticos, cientistas e filósofos que viveu durante dois meses na montanha do Itatiaia e consti tuiu o chamado «Grupo do Itatiaia», do qual fizeram parte, como dissemos, o filósofo Vicente Ferreira da Silva e sua esposa, Dora, poetisa e tradutora de Hõlderlin, Rilke, Saint John Perse, Jung. A comunidade vivia segundo uma regra de vida análoga às da vida monástica, ex-plicitada no texto Alcorão, escrito de Agostinho da Silva, que recebeu publica ção póstuma recente189.

Nesse novo mundo espiritual em construção, o que se espera é o surgimento de «uma realidade mais alta e mais bela que o amor, uma força em que se fun-dem o entendimen to e o amor, um acto pelo qual compreender e adorar sejam apenas as várias gradações da mesma chama eterna»190.

Dois textos, As Aproximações e Só Ajuntamentos, publica dos em Lisboa, em 1960 o primeiro e em Salvador, em 1962, o segundo191, abordam, a nosso ver de 189 SILVA, A. e AGOSTINHO, P. (orgs.), Agostinho da Silva no Brasil, Rio de Janeiro, Casa Rui Barbosa, 2007.190 SILVA, A., «Conversação com Diotima», in Textos e En saios Filosóficos I, Lisboa: Âncora, 1999.191 Idem, Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 168. Veja-se, a propósito desse texto, publica-do originalmente em Portugal em 1944, o estudo de Romana Valente Pinho em Religião e Metafísica em Agostinho da Silva, Lisboa, INCM, 2004, que o assinala como um marco na passagem da inspiração grega para a cristã.

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modo exponencial, a crítica à civilização tecnológica. A crítica é exposta através de meditações pontuais, que também apontam possibilidades de superação da crise. E no belíssimo Pensamento à Solta, publi cado pela primeira vez em 1999 (ibid., pp. 145-179), o autor reúne reflexões sobre Deus, o homem, o mundo. E afirma o carácter parado xal do sagrado: «Não sou do ortodoxo nem do hetero-doxo; cada uma delas só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.» (ibid., p. 145). Assim, o paradoxo é a via de acesso ao sagrado, que não tem nome, pois está além de toda lingua gem.

Esse Deus «não exige de nós nenhum culto; prestamos nossa homenagem [a Ele] quando desenvolvemos nossa inte ligência e nosso amor; um laborató-rio, uma biblioteca [...], uma escola [...], uma oficina [...], um homem [...] é um tem plo de Deus [...]. Todos podemos ser sacerdotes, porque todos temos ca-pacidades de inteligência e de amor; e praticamos o mais elevado dos cultos a Deus quando propagamos a cultu ra, o que significa o derrubamento de todas as barreiras que se opõem ao Espírito.»192

A redescoberta do sagrado, da vida do Espírito, é o cami nho que Agostinho aponta para a superação da crise actual.

A busca de compreensão da crise à luz de uma nova con cepção do sagrado está presente também em Eudoro de Sousa, mas numa perspectiva diversa da escolhida por Agostinho da Silva.

Como denominadores comuns, podemos assinalar a filo mitia193 e a crítica à civilização técnica, ao predomínio do homo faber, do trabalho, à escravidão aos objectos, ao homem-humano – isto é, ao homem encerrado em si, avesso à trans-cendência.

A esse mundo, do qual o sagrado se ausentou, Eudoro opõe o ócio criativo, a contemplação que liberta, a valorização do simbólico e a abertura ao mistério. Associando a filosofia, a religião e a poesia à antiga iniciação aos mistérios, o pensa dor fala da religião como código de decifração das mensagens da divin-dade, vista como «Fulguração Ofuscante», «Excessivi dade Caótica»194, «relato da Origem». A religião é aproxima ção ao abismo sem fundo, vida no limiar do sagrado.

Dois textos importantes e complementares que se acham em História e Mito tratam de: «O que é religião nas religiões antigas...» e «Também é religião, nas re-ligiões modernas?» (ibid., p. 188).

A frase interrogativa abarca a totalidade dos dois capítu los, nos quais Eudoro de Sousa pretende mostrar que «o que é religião, nas religiões antigas, não pode ser religião, nas modernas»195.

192 Idem, «Doutrina cristã», in Textos e Ensaios Filosóficos I, pp. 81 -82.193 Ver, infra, A Filomitia de Eudoro de Sousa.194 SOUSA, E. de, Mitologia I, Brasília, UNB, 1995, p. 156.195 Cf. nota da p. 33 da edição brasileira e p. 263, epígrafe, da edi ção portuguesa.

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Reportando-se à religião da natureza, dentre os gregos antigos, procura evi-denciar que a natureza, para o homem arcaico, não se reduzia ao apresentar-se da realidade circun dante, composta de coisas, mas, antes, expressava uma qua-lidade, uma realidade indescritível, mas presente, através «do bosque, da gruta, da voz, da melodia, do gesto»196.

A contemplação da natureza, para o homem do passado, era celebração de uma fascinação arrebatadora perante o mistério.

Eudoro de Sousa mostra, assim, que para o homem anti go havia uma rela-ção estreita entre mistério, religião e natu reza. Tratava-se, para esse homem, de entregar-se «ao misté rio inexaurível da sensibilidade», onde coincidem os con-trários, a vida e a morte, a concretude e a transcendência. Daí o pensador dizer: «na presença do passado, uma só linguagem é a que falam religião e natureza e [...] essa é a do mito» (ibid., p. 40).

É nesse horizonte que nosso autor discute a possibilida de da existência de religiões modernas. Coloca-nos diante de duas alternativas: ou não há religi-ões modernas, ou o senti do do religioso hoje é diverso do das religiões antigas. Re cusando a primeira alternativa, propõe-se a investigar os de nominadores co-muns entre as religiões do passado e as do presente.

Criticando a concepção moderna, que se expressa essen cialmente no ilumi-nismo e no neo-humanismo actual, que con sidera «a religião como intromissa, inoportuna e incómoda sobrevivência do passado»197, trata de assinalar a carên-cia da religação do homem com o sagrado na actualidade.

A causa dessa ruptura é o próprio homem, que vive numa natureza sem espí-rito, circunscrito a uma racionalidade e objectividade estreitas.

Nessa redução, o pensador vê o auge do mito teândrico, a hominização. O homem que se considera a si próprio como centro expõe «um mito que se des-conhece como mito» (ibid., p. 46). Dá -se, assim, «a ocultação do deus, no mundo e no homem» (ibid., p. 70).

A recuperação do sentido do religioso é vista como «dispo nibilidade para o ‘aceno’»198 da divindade, na perspectiva de Eudoro.

Nos mitos, o sagrado se mostra sob a forma de símbolo, de diacosmese, de desencadeamento, pelos deuses, do homem e do mundo. Para além da lingua-gem do mito acha-se, entre tanto, uma «Realidade Absoluta, a Existência Essen-cializante, a Excessividade Fulgurante, o Ser Entificante» (ibid., p. 89), o mistério abissal. O transobjectivo, o além-mundo, «é a ambiência natu ral do Religioso, do Poeta, do Filósofo» (ibid., pp. 87 e segs), e de todo aquele que vive no limiar «do Ser ou do Ultra-Ser, do Absoluto-Secreto, de Deus [...]» (ibid., p. 94).196 Id., Mitologia I, Brasília, UNB, p. 36.197 Idem, História e Mito, Brasília, UNB, 1995, p. 42.198 Idem, Mitologia I, pp. 95-104.

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Assim, para nosso autor, os mitos, os ritos são possessões do homem pelos deuses, primeiro nível de contacto com o sagrado. Os deuses são, diz Heidegger – repetido por Eudo ro –, «os acenantes mensageiros da Divindade»; um «mun do é a desocultação do oculto reinar dos deuses», isto é, «os acenantes acenam e [...] faz-se mundo» (ibid., p. 79). Os deuses são in termediários entre Deus e o mundo e o macrossímbolo de Deus é a quadratura: terra e céu, deuses e mortais, que se reflete nos microssímbolos: objectos sacralizados pela acção ritual.

Os deuses acenam para o «Original-Originário de todos os dramas repre-sentativos das mensagens do Ser»: o que se si tua além do Horizonte Extremo, a Fulguração Ofuscante, a Origem, que só se deixa entrever no originado (ibid., p. 91).

Hoje, religião, arte e filosofia são os «códigos de decifra ção das cifradas men-sagens da Divindade» (ibid., p. 94).

No mundo contemporâneo, o homem acha-se mergulhado na objectividade, que reduz a religião ao «acto rotineiramente repetido», a arte à procura de «tor-nar mais grata a vida», a filosofia ao mero «reflectir sobre princípios e métodos da ciên cia e da técnica» (ibid., p. 95).

Numa sociedade caracterizada pela competição, pela figu ra do trabalhador, pela realidade encarada como um amon toado de coisas, rompe-se com o mundo mítico, onde o deus, «mensageiro da Origem», se apossa do homem, «para que ele gesticule a mensagem cifrada» (ibid., p. 97). Como a religião, o mito e a arte põem o homem em contacto com a transobjectividade, abrindo-o à possessão pelos deuses.

O sentido religioso da arte e da filosofia consiste, hoje, em por o homem perante a divindade, perante o silêncio pre nhe de significação que remete, ao úl-timo limite, ao «Horizon te Extremo», à «Caótica Excessividade», à «Fulguração Ofus cante» (ibid., pp. 99-100).

Comentando Heidegger, que trata de superar, Eudoro se refere a um Deus que está além de toda a linguagem, além dos deuses, das formas, da vida (ibid., pp. 80 e segs).

No mundo do mito, morre o humano «para renascer no [...] transumano»; no mundo actual, morre o transumano «para renascer no divino [...]. Mas o que entre eles [...] há de comum é o morrer-renascer da metamorfose.» (ibid., p. 82)

A religião, para o homem actual, converge com a filosofia e a arte: «talvez porque são o mesmo», remetendo ao trans objectivo, ao limiar «do Ser ou do Ultra-Ser, do Absoluto Se creto, do Deus [...]» (ibid., p. 84).

Há um certo tipo de filosofia que encerra o homem no mundo objectivo e se reduz à crítica das ciências; mas há também uma filosofia que é aparentada com a religião e a arte, expondo a experiência fundamental da superação da objecti-vidade, lançando o homem em direcção ao Absoluto.

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Eudoro pontua suas reflexões por uma constante referên cia a Heidegger; mas para ir além de Heidegger, para com preender, interpretar o pensador da Floresta Negra e desco brir novos caminhos a partir de sua obra.

Esses novos caminhos são os da compreensão de Deus como «Excessividade Caótica», «Ultra-Ser», «Absoluto Secreto», como já assinalamos.

Numa linha análoga de reflexões, mais próxima de Eudoro que de Agostinho da Silva, acha-se o pensador brasileiro Vicente Ferreira da Silva.

Vicente é um crítico do cristianismo, como se pode ver em diferentes escri-tos, como, por exemplo, Natureza e Cristianismo199.

O mundo contemporâneo se caracteriza pela crise, diz o filósofo: é contesta-ção do valor e das possibilidades de conhe cimento verdadeiro; é afirmação do antropocentrismo.

A apoteose da metafísica antropocêntrica dá-se no início da modernidade. Postula a hegemonia da consciência traba lhadora e uma natureza dessacraliza-da, mero objecto nas mãos do homo faber.

O cristianismo aparece, na reflexão de nosso autor, como responsável pela «negação do paganismo [...], rebaixamento e demonificação das antigas postes-tades religiosas [...] O cris tianismo afirmou-se como teocriptia [...]».

Para Ferreira da Silva, a «religião cristã representa a culminância de um pro-cesso de humanização do divino, com a consequência de que o extra-humano foi gradativamente ba nido do cenário mundial [...]» (ibid., vol. I, p. 285).

Em decorrência da hipervalorização do homem, ofusca-se o sol do espírito, a proximidade com o divino. A natureza passou a ser considerada «como esquema utilitário-industrial», produzindo-se um «lamentável aniquilamento das coisas, como resultado do pensar científico industrial» (ibid., p. 292).

Alienado de si mesmo, o homem vê a sua própria acti vidade como um valor em si, de modo que «maquinismo e cristianismo são duas expressões de um im-pulso em desenvol vimento»: «a fúria do fazer [...] expressão da vontade calcula-tória-industrial [...] advento da noite dos deuses» (ibid., p. 292).

E Vicente recorda os versos de Hõlderlin, citados por Heidegger, para descre-ver nossa época: «é o tempo dos deuses em fuga [...] tempo de carência» (ibid., p. 295).

Vendo no cristianismo a negação do paganismo, que re sulta na teocriptia e na afirmação do homem, Vicente mostra que o cristianismo é um criptograma, a ocultação das antigas manifestações religiosas e expressão de uma antropofania, anunciadora do niilismo e da técnica planetária, sua máxima eclosão. Assim, «o regime de Fascinação que comandou a parusia do homem recebeu historica-mente o nome de Cristia nismo».199 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II, São Paulo, IBF, pp. 195-201.

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Nossa época, que se caracteriza pelo declínio da civiliza ção em que vivemos, assinala o apocalíptico fim de um mun do, marcado pela emergência da barbárie, do monstruoso e do niilismo. A destruição se anuncia «através de um sem-nú-mero de guerras, convulsões, catástrofes [...], [da] pulverização das consciências e multiplicação das linguagens» (ibid., vol. II, p. 177), diz o filósofo, em um texto de 1951.

A catástrofe, fim de um mundo, anuncia, contudo, a pos sibilidade do surgi-mento do novo.

E o novo está associado, para o nosso pensador, a uma reformulação da no-ção de sagrado, exposta no Filosofia da Mitologia e da Religião, assim como nos Diálogos: do Mar, da Montanha, do Espanto e do Rio200.

O novo tipo de pensar, que impulsiona o homem em di recção ao sagrado, é um pensar «livre em relação ao ente revelado, livre em relação ao comércio hu-mano [...]»201; é aber tura ao Ser, concebido como Fascinação, Poesia em si, Poder Selvagem, Poder Passional, abismo (ibid., pp. 315-317).

A presença e apelo do Ser são presença e apelo do sagra do, instituição de um mundo. Para o homem actual, esse apelo desencadeia uma Kehre, no sentido heideggeriano da palavra. Desse modo, ele é exposto ao «aórgico», isto é, ao «não posto pelo homem» (ibid., pp. 323-324).

A tarefa do pensamento é a superação do meditar cen trado no homem, aber-tura a «uma sabedoria não-humana, do trans-humano, ou do meta-humano».

Tal pensar é metafilosofia, regresso à fonte, pensamento da Origem.Há uma primordialidade, segundo Ferreira da Silva, do fenómeno religioso,

do sagrado, na inauguração, na instaura ção de um mundo, na abertura das pos-sibilidades do existir histórico, fixando seus limites e sua ordem.

Assim, o ocaso do humanismo, a ameaça da técnica pla netária, teria como contrapartida e exigência de uma busca, de uma nova formulação do sagrado, de abertura a modos desconhecidos de ser202. Diz o filósofo: «o novo só poderá sur gir sob o império [...] de um novo universo prototípico». Estaríamos vivendo a emergência de uma nova concepção do sagrado, como «seres do limiar», que pressentem as «coisas por vir», a «nova rotação da roda do Divino» (ibid., pp. 506-507).

O sagrado é, para Vicente, a irrupção de um regime de fascinação, que nos leva além de nós mesmos, abrindo-nos a aspectos insuspeitados e espantosos do nosso existir.

200 Idem, Filosofia da Mitologia e da Religião, in Obras Completas, vol. I, pp. 299-397; idem, Diálo-gos, in Obras Completas, vol. II, pp. 493-538.201 Idem, Filosofia da Mitologia, p. 313.202 Idem, Diálogo do Mar, in Obras Completas, vol. II, pp. 494 e segs.

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A formidável prostração que sentimos e o vazio do mundo em que vivemos, a angústia e a ausência dos deuses são si nais do esgotamento de uma forma de ser e de viver, são in dicação de uma mudança profunda na concepção do mundo e de Deus, experimentada como tédio e náusea, negatividade e desgosto: o existir espúrio.

Na poesia de Hõlderlin e de Rilke, nas obras de Schelling, Heidegger, Kerény, Otto, estão assinaladas as possibilidades de superação da situação contemporâ-nea, assim como nas obras de Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa e Vicente Fer reira da Silva.

Em resumo, para os três pensadores, a via de acesso ao sagrado é a vida como poiésis: celebração, embriaguez e entu siasmo, que os caracterizou na vida pessoal e na actuação cultural que desenvolveram.

O sagrado é abordado numa perspectiva heterodoxa, que principia com a crítica do cristianismo e da civilização técnica e se desdobra numa busca que recorre ao passado, à lingua gem simbólica e aos mitos, num processo de remiti-zação, que fala de epocalidade do Ser, da sucessão de mundos como epifanias das diferentes faces de uma realidade originária, inesgotável e fascinante.

Essa busca se abre também ao futuro, mostrando-se como expectativa: de um deus vindouro, da revelação iminente de um novo aspecto da divindade, ou como advento e instaura ção da Idade do Espírito.

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agostinho da silva e a construção do mundo do espírito

Para compreendermos o significado do reino do Espírito, na obra de Agostinho da Silva, é preciso tomarmos como ponto de partida suas considerações sobre o mundo atual, sobre a crise da sociedade contemporânea.

O tempo em que vivemos apresenta, na ótica de nosso autor, várias analogias com o fim do Império Romano. Tais analogias são levadas ao extremo quando o pensador julga poder reconhecê-las na oposição entre o hemisfério Norte e o hemisfério Sul. O hemisfério Norte e suas “sucursais”, como ele chama a Austrália e a África do Sul, são as regiões mais desenvolvidas. Na periferia dessa área, e mesmo dentro dela, acham-se inúmeros desempregados.

A área desenvolvida é identificada com um segundo Império Romano. As menos desenvolvidas, cheias de famintos e sem trabalho, são os novos bárbaros, que já começam a invadir a área “civilizada”. Os pólos de entrada desses novos bárbaros serão o que nosso autor chama de as duas Penínsulas Ibéricas: a primeira, constituída por Portugal e Espanha; a outra, pelos países da América Latina203.

O desafio consiste no fato de as áreas desenvolvidas enfrentarem uma persis-tente crise, decorrente de um progresso tecnológico desordenado, produzindo efeitos indesejáveis, do ponto de vista humano.

Assim, de um lado, temos desumanização e desmoronamento de um mundo; de outro, o alvorecer de uma nova época.

No mundo que se desmantela, encontramos o conflito entre liberdade e sobre-vivência. Agostinho se refere explicitamente ao conflito que opunha, na década de 80, as duas grandes potências: EUA e Rússia. A primeira celebra a liberdade de pensamento, mas estoca alimentos enquanto parte da população mundial morre de fome; aqui se vê crescer o uso de drogas e o suicídio de jovens; e aumentar a violência e o número de prisioneiros. A outra potência celebra a eliminação da fome; mas essa foi feita à custa da instauração de governos ditatoriais, totalitários e repressivos204.

A organização atual da sociedade parece fadada a desencadear uma crise de enormes proporções. Ela se expõe no amplo desemprego dos que não podem ser absorvidos pelo mercado de trabalho; no desespero dos jovens que “educados para trabalhar, chegam à idade de trabalhar e não trabalham. Não podem comer sem 203 SILVA, A. da., “Carta Vária XLI”, in id., Dispersos. Lisboa, ICALP, 1988, p. 830.204 Id., “Carta Vária LIV”, in op. cit., pp. 842-843.

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trabalhar; e não podem sequer divertir-se sem trabalhar”205. O impasse vem se acentuando e duas saídas igualmente difíceis se anunciam: a ampliação da busca das drogas e do álcool ou a violência.

A crise ocorre por falha do Estado, que foi incapaz de orientar corretamente os resultados da capacidade inventiva do homem. Trata-se, para Agostinho, de reduzir o tempo de trabalho de todos; de possibilitar o amplo acesso a alguma tarefa; de canalizar o tempo livre de todos para o lazer e o aprimoramento.

O Estado atual só melhorou as condições daqueles que já têm acesso ao traba-lho. Acentuou, assim, a divisão entre empregados e desempregados.

O caráter burocrático e desumano da sociedade atual vai perdurar muito tempo. Mas já começam a surgir sinais de que a situação pode ser superada. É “só a fé no homem, nas possibilidades divinas do homem [que] nos pode levar de novo à Idade de Ouro (...), [ao] tempo de fraternidade e de amor, sem angústia e sem dramas, tempo de contemplação e de absorção em Deus, tempo de ação mental, a mais verdadeira e a mais eficaz de todas as ações”206.

A possibilidade está aberta para sairmos dessa circunstância opressiva: cabe-nos, diz o mestre, usar a imaginação.

É recorrendo à teoria da história de Joaquim de Flora, que pensa a sucessão do tempo à luz das três figuras da Trindade, que Agostinho vai oferecer alternativas. O reino do Espírito será construido ao buscarmos novos modos de viver e ser, ousando o impossível.

O impossível é a realização do reino de Deus na terra, o reino do Espírito Santo, caracterizado pela liberdade, criatividade, plenitude. Do lado do império econômico e político que se desmantela, não há liberdade política, não há liber-dade econômica: há “coação exercida pelos que dispõem dos meios de produção, de transportes e de crédito (...)”, [há] “fácil corrupção do voto” (...) [e] “a miséria nem pensar pode”207.

A sociedade atual está baseada na opressão de uns sobre outros, na idéia do homem como instrumento de produção; baseia-se na concorrência e no lucro, na propriedade.

Ora, “a questão é que não se pode ser capitalista e religioso”, diz Agostinho. Não se pode afirmar a fraternidade, sem o respeito ao outro; e ainda: “Não há propriedade alguma que Deus possa abençoar; Deus só pode abençoar a não-propriedade”, o serviço a todos. Trata-se, para o nosso autor, de instaurar a liberdade econômica, mediante a “propriedade coletiva da terra”, como “ponto a

205 Id., “A minha meta é o ponto sem dimensão” (entrevista ao Diário de Notícias) in id., op. cit., p. 142.206 Id., “A Comédia Latina”, in id., op. cit., p. 190.207 Id., Considerando o Quinto Império, in id., op. cit., p. 193.

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que se dirigem, convergindo, o progresso da consciência ética e o progresso da utilização técnica das ciências”, estabelecendo cooperativas.

Se essa iniciativa não for levada a efeito imediatamente, “conseqüências graves [advirão] para todo o mundo”, na opinião de nosso autor (ibid., p. 194).

Uma revolução está em marcha, provocada pela automação: “um futuro tempo em que todo o produto manufaturado, pelo emprego das fábricas automáticas, não exigirá de ninguém trabalho involuntário (...)”208.

Essa revolução virá; caso a propriedade seja coletiva, virá mais depressa. No capitalismo, com a automação, só vai crescer o número de desempregados e os trabalhadores em atividade acabarão por não ser capazes de pagar o subsídio para os outros. Desse impasse, decorrerão guerras ou revoluções, dando lugar a uma nova etapa: a de luta entre a não-propriedade e a propriedade coletiva, luta do hemisfério sul contra o hemisfério norte (ibid., p. 232).

Daí a exigência de se construir uma nova ordem, aquilo que Agostinho chama de reino do Espírito. Essa nova ordem é uma nova concepção do religioso, das virtudes, com ressonâncias no âmbito da economia, da política, da educação.

No plano religioso: a religião do Espírito Santo não é confessional, mas resulta da convergência de três princípios: “o homem deve dominar as coisas e não ser dominado por elas (...) deve obedecer ao que o transcende e não aos seus capri-chos; nenhum corpo deve fazer o que a alma reprova, nenhuma alma deve fazer o que reprova o corpo”209. As virtudes de “humildade (...), generosa alegria (...), imaginação (...), inocência”, presentes nas crianças, consideradas como modelo de vida, de entusiasmo, tiveram grande expressão nos momentos históricos de maior criatividade, como ocorreu entre os gregos, os árabes de Córdoba, os ita-lianos do Renascimento.

Recriar esse espírito de entusiasmo, de invenção, de sacralização da vida e do mundo, é a proposta de Agostinho.

A instauração do reino se inicia, diz nosso autor, no espírito dos homens; consiste na celebração de uma nova ordem, a partir de três votos essenciais: “o de criar beleza (...), o de servir (...), o de rezar (...)” (ibid., p. 198).

Esse espírito é essencialmente religioso: a religião do Espírito propõe a cada um a fidelidade a si e o amor aos outros, como princípios essenciais210. Religioso é tudo o que enfoca como valor essencial a unidade; é o “desejo supremo de fusão no Uno”211, é o desejo de fraternidade, acima da busca do saber ou do conheci-mento (ibid., p. 228).

208 Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 231.209 Id., Considerando o Quinto Império, in id., Dispersos, p. XXXXXX.210 Id., Carta chamada Santiago, in id., op. cit., p. 586.211 Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 227.

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No reino do Espírito, o ideal de governo é “o não haver governo”212; o “de economia, o não haver economia” eliminando-se a oposição produtor/consumi-dor, patrão/operário (ibid., p. 200); no plano de vida política, é a superação das antinomias entre criança/adulto, ignorante/sábio, homem/mulher213.

Definindo a política como “uma ponte de passagem entre um hoje e um futuro” (ibid., p. 233), trata de discernir as características da política que possa conduzir ao reino do Espírito, de modo que este não seja apenas uma utopia, um sonho, mas irrompa no agora. Para tanto, uma “política sem partidos” é condição de nos irmanarmos, de acentuarmos não o que nos opõe, mas o que nos une.

Trata-se, assim, de levar o homem a chegar a compreender “a mais alta idéia, a de que o sonho vale mais do que a realidade, a de que o contemplar sobrepuja o agir” (ibid., p. 239).

As escolas, por sua vez, terão que acentuar a capacidade de criação, de inven-ção, em todos os campos; serão “escolas sem professores, apenas com o encontro quotidiano de pesquisadores e inventores e criadores em vários graus de progresso (...)”214.

A escola atual segrega o aluno, faz dele um especialista, dócil às expectativas dos adultos e o torna ferozmente competitivo.

A escola do futuro dará a prioridade à criança, levando o adulto a reaprender a imaginação, o jogo, o sonho215. Nosso autor busca criar “o lugar cívico de edu-cação e de vida (...) em que o criar vá muito além do saber (...) em que o jogar se encontre com o trabalho, em que a liberdade crie sua própria disciplina e em que o contemplar domine o agir, e o adorar se sobreponha ao poder” (ibid., p. 237).

A construção do reino do Espírito passa pela atuação importante de Centros de Estudos, de Universidades. Atribuindo um papel essencial ao Brasil, nessa abertura de um novo tempo, Agostinho assinala a importância do surgimento da Universidade de Brasília, que ajudou a fundar.

Estabelecendo analogias entre a época em que vivemos e a do surgimento das ordens monásticas, propõe como inspiração o lema de São Bento: ora e trabalha. Ou seja, acha importante associar o estudo e o trabalho, de modo que o povo se reúna à volta das Universidades, como outrora, dos agrupamentos circundantes aos mosteiros, surgiu o que hoje é a Europa. Talvez desse modo, diz o pensador, possa surgir, num mundo “frágil e ameaçado”, uma nova raça “de sábios, monges e soldados”216 que possa superar as guerras e conflitos em que estamos mergu-lhados.

212 Id., Considerando o Quinto Império, in id., op. cit., p. 199.213 Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 232.214 Id., Considerando o Quito Império, in id., op. cit., p. 199.215 Id., Ecúmena, in id., op. cit., p. 235 e segs.216 Id., Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília, in id., op. cit., p. 252.

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Agostinho, a partir de sua atração nas Universidades brasileiras, criou Cen-tros de Estudo que realizaram, concretamente, o estabelecimento de laços entre América, África, Europa e Ásia.

O grande projeto de fundação de Centros Universitários interligados está ex-posto no texto Bahia: Coleção de Folhetos. Refere-se a um projeto feito no Brasil, mas publicado em Lisboa em 1971 (op. cit., pp. 493-499).

Aí, narra a criação, em 1959, do Centro de Estudos Afro-Orientais, na Bahia; a criação, em 1962, do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos Clássicos, na Universidade de Brasília. Refere-se à formação de grupo de colabo-radores, professores pesquisadores de diferentes áreas: História, Filologia, Arte, Filosofia, Música, Poesia.

Mirar o sonho, ousar o impossível; e com fé, alegria, paciência, persistência, realizar o possível, nas circunstâncias dadas. Foi o que Agostinho fez, ao longo de sua vida inteira. Reuniu grupos de estudiosos que abraçaram o sonho e trataram de pô-lo em andamento.

O entusiasmo, a profundidade de sua contribuição, fizeram de nosso autor um mestre, a semear uma espantosa obra cultural, e a ascensão humana e pessoal daqueles que tiveram a felicidade de encontrá-lo e com ele colaborar.

A fé no sonho, na capacidade do homem de realizar o melhor de si mesmo; o convite a traduzir em ação e em vida o conhecimento, o saber; a poderosa inflexão de suas idéias e de seus projetos, tiveram impacto decisivo na transfor-mação das regiões do Brasil onde esteve. Fundador de Centros de Estudos e de Universidades, fez de sua atuação em diversos deles uma ponte para o futuro: a construção do reino do Espírito. Entendendo o mundo novo também como um mundo profundamente interligado e dialogante e considerando que esse diálogo teria que se estabelecer acima dos conflitos e interesses, acima dos jogos de poder e das lutas que contrapõem culturas, religiões, economias, filosofias – Agostinho estabeleceu metas concretas para o papel a ser desempenhado pelas universidades, nesse campo.

Assim, diz: “suponho ter ficado mais ou menos definido (...) que, a poder-se um dia voar mais largo, teria que se estabelecer os Centros, não [só] no Brasil, mas nas regiões em que se estivesse interessado, criando junto de todas as Universida-des brasileiras postos de recrutamento de bolsistas e, nas respectivas bibliotecas centrais sessões especializadas”217.

O Brasil seria, na perspectiva de nosso autor, o novo ponto focal entre Euro-pa, Ásia e África uma vez que já representa esse encontro, dos pontos de vista cultural e racial.

217 Id., Bahia: Coleção de Folhetos, in op. cit., p. 494.

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O grupo de estudiosos que se reuniu em Brasília, na fundação da Universidade, em torno do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos Clássicos, em colaboração com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, teve, dentre outros, nomes como os de Ordep Serra, Emanuel Araújo, altamente expressivos no ce-nário nacional.

O projeto da Universidade de Brasília enfatizava os estudos clássicos, a tradução direta do latim e do grego, a organização de coleções de edições bilíngües, assim como a tradução de manuais básicos de diferentes áreas. A Universidade deveria ter postos avançados em diferentes pontos do mundo.

A certeza de que o sonho é possível, a fé no homem e nas suas potencialidades criadoras, a esperança no futuro, que conduz a ações concretas para a realização do melhor em nós e nos outros, talvez seja o grande legado de Agostinho.

O sonho impulsiona; funciona como valor-horizonte, meta que produz uma orientação geral da vida para a realização de um novo mundo. O grupo que trata de instaurar o novo, “é fundamentalmente do lugar em que qualquer um de nós reside e da obra que estivermos realizando (...)” (ibid., p. 497).

O importante não é esperar, para agir, circunstâncias absolutamente favorá-veis; é, antes, ter um projeto e pautar a vida por ele; é por o sonho em marcha, realizando o que for possível.

O legado de Agostinho é uma ética do possível, uma ética do sonho. Como ele mesmo diz, “o sonho vale mais que a realidade”, a contemplação conduz a ação. E se não é possível realizar de uma vez por todas e de imediato o mundo sonhado, é, contudo, um convite e uma incitação começar realizá-lo no instante presente, na circunstância dada, com os instrumentos, alternativas e pessoas disponíveis.

Em resumo, pode-se dizer que: o ponto de partida da interpretação da situação contemporânea, em a) Agostinho, é a constatação da crise presente. Tal crise é analisada como resultante de uma ruptura entre o fazer técnico e o significado profundo do existir humano. As atuais estruturas economico-políticas só acentuam essa ruptura, produzindo fome e desemprego, contraposição entre países desenvolvidos e não-desenvolvidos, guerras e conflitos entre culturas, gerações, trabalhadores e desempregados;recorrendo à interpretação da história de Joaquim de Flora, monge me-b) dieval discípulo de Santo Agostinho, nosso pensador se refere à Idade do Espírito, como objetivo a ser buscado, ideal a ser concretizado. Afirma a fé nas possibilidades criadoras do homem como fio condutor para sairmos do impasse atual; afirma o amor como via privilegiada dessa realização, e a esperança não como espera vazia, mas como certeza de que a utopia é possível.

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Fé, esperança e amor se unem na férrea disciplina intelectual, no exercício quotidiano da busca de conhecimento e na repartição desse conheci-mento através de ações concretas, educativas, e do estreito diálogo com grupos de intelectuais atentos às possibilidades abertas pelos recursos da ciência atual;

c) a crítica à sociedade contemporânea e a afirmação das virtudes está vin-culada, em Agostinho da Silva, a uma ética do possível.

Por ética do possível entendemos sua concepção de agir voltado para a reali-zação do melhor, a cada momento dado. É uma sabedoria prática, interessada em solucionar problemas concretos, visando alcançar a máxima expressão do humano como resultado. Trata-se de suscitar, em si e nos outros, a coragem transformadora do mundo, libertando o ser humano da servidão do trabalho repetitivo, para a vida criadora, na qual “o sonho vale mais que a realidade”.

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agostinho da silva e o Brasil

A vida e a obra de Agostinho da Silva estão semeadas de referências ao Brasil. Tendo vivido no país durante anos, Agostinho da Silva marcou definitivamente o seu desenvolvimento cultural: fundador de Universidades importantes, em to-dos os pontos cardeais, como a de Brasília, a de Florianópolis, a de João Pessoa; criador de Centros Culturais, como o de estudos Afro-Orientais, na Bahia, e o Centro de Estudos Portugueses de Brasília, dentre outros; mestre de vida, com um profundo sentimento ético da existência, mestre de amor aos homens, dia-logou com pensadores brasileiros do porte de um Vicente Ferreira da Silva – um dos nossos mais originais filósofos contemporâneos – com poetas, como Santia-go Naud, Dora Ferreira da Silva.

Mestre de vida, Agostinho levava cada um a acreditar nos seus próprios so-nhos, a realizar os seus sonhos, a ser fiel a si mesmo. Ele próprio foi o exemplo vivo dessa ética onde simplicidade, humildade intelectual, vão associadas a um grande amor, um grande optimismo, uma grande esperança. Uma ética que en-contrava na acção cultural, na acção educativa, o caminho de expressão do espí-rito, a construção do reino do Espírito Santo.

«Sou é do Espírito Santo», escreveu-me um dia, quando iniciando os estudos sobre o seu pensamento, buscava compreender as fontes e a referência de sua reflexão a Joaquim de Flora.

Este sopro do Espírito, a sua palavra iluminada, o seu coração amoroso der-ramaram no nosso país. Tentou realizar a utopia do amor fraterno, em toda a extensão de suas possibilidades, de suas virtudes pessoais e intelectuais.

Homem do fazer, aliava a uma espantosa erudição o senso agudo do político, a compreensão profunda do mundo em gestação, do tempo novo em que esta-mos vivendo.

Tive o privilégio de conhecê-lo e de experimentar a surpresa e a alegria de um acolhimento em Lisboa que superou qualquer expectativa; imaginava uma visita formal, académica, uma entrevista conseguida a duras penas com um homem importante, que veria apenas uma vez. Fui recebida inúmeras vezes, acompa-nhada por ele para ver o Museu das Janelas Verdes, o painel que retrata Portugal, como os estudos de Afonso Botelho tão bem mostraram.

Tive o privilégio de o ouvir, encantada, e sair desses encontros com a certeza íntima de estar aberta a múltiplas alternativas de ser, de poder realizar os meus

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projectos. Essa certeza, Agostinho da Silva a viveu, intensamente, quanto a seu projecto de vida, o de construção de uma comunidade de língua portuguesa, que fosse inspiradora, no nosso tempo, de um mundo de paz e de cultura. Essa certeza, essa busca da metamorfose, legou-a a cada um de nós, na sua palavra, nos seus escritos.

Na sua obra, o Brasil é o lugar da utopia. Nas suas cartas, nos seus escritos, o Brasil aparece, repetidamente, como um novo pólo de expansão espiritual.

Diz ele, em carta a Milton Vargas, engenheiro e filósofo de ciências, que per-tenceu ao círculo de Vicente Ferreira da Silva: «Aqui no Brasil, sirvo mais e me-lhor.» Está ao serviço da construção de um mundo que leve cada um a «ser fiel a si próprio, cumprir-se, realizar-se, no exemplar único que é [...]».

E mais ainda: «Minha fé no Brasil não morre, ele será guia do mundo, já que seu diálogo com os outros povos é mais fácil [...]. E com ele, todo o Ibérico».

É a partir do Brasil que ele busca, num dado momento da sua vida, educar para o mundo vindouro, o mundo onde «a grande força será a do Amor», o mundo da «Poesia à solta».

E com o Brasil, juntos, Europa, Ásia e África, que ao ver de Agostinho, nosso país de certo modo sintetiza – caldeirão de raças e culturas. Pois, «de qualquer modo, fabricamos o futuro».

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Ética e Liberdade em agostinho da silva

Agostinho da Silva, nascido em 1906 e falecido em Lisboa em 1994, passa por diferentes fases em seu pensamento. Na primeira fase, marcada pela licenciatura e doutoramento em Letras na Faculdade de Letras do Porto, é inspirado por um neo-classicismo. Fatos importantes nessa fase são: a demissão do ensino público, pelo Estado Novo, em 1935 e sua detenção em 1943, por motivos ideológicos. Desse período data sua colaboração na Seara Nova, reunida nos três volumes de Glossas (1934), onde uma reflexão sobre o cristianismo, a meditação sobre o reino de Deus na terra, a discussão crítica da sociedade contemporânea e um profun-do senso ético da existência desembocarão no texto importante publicado em 1944, Considerações. No mesmo ano, publica Conversação com Diotima, diálogo de estilo platônico entre um Estrangeiro e Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia, sobre a verdade, a felicidade, o sentido da vida humana, sua concepção de Deus, numa perspectiva de inspiração estóica e agostiniana. Da mesma época, os textos: Parábola da mulher de Loth (1944), Pólicles, Apólogo de Pródico de Céos (1944), apresentam os temas de liberdade, do amor, de exigência ética de ser si mesmo, retomados em Diário de Alcestes (1945) e no Sete Cartas a um Jovem Filósofo (1945), no qual enfatiza o papel e o significado ético do afazer filosófico.

Esse primeiro período se encerra com a vinda de Agostinho ao Brasil, em 1944, onde viveu por vários anos. É no Brasil que Agostinho elaborará a sua reflexão sobre os laços entre as culturas portuguesa e brasileira, já sob a inspira-ção do pensamento de Joaquim de Flora, e onde tematizará o Quinto Império, o Reino do Espírito Santo e onde sua meditação sobre o sentido da história, a ética e a educação receberá importantes formulações, reunidas no volume Dispersos, publicado pelo ICALP.

Na primeira fase, destacamos o texto Considerações, que reúne, num estilo análogo ao de Glossas, meditações temáticas sobre questões éticas. Abre-se com uma discussão sobre o significado da virtude, mostrando que esta é voluntária e implica em coragem: “É um contínuo querer e uma contínua vigilância, uma batalha perpétua (...)218” Virtude, para ele, é o desejo de auto-superação, “luta entre a natureza e a vontade” (ibid., p. 84).

A meditação sobre a liberdade assume, aqui, o caráter de um monólogo: “O discurso da serpente”, no qual Agostinho, personificando a serpente, se dirige a

218 SILVA, A. da, Textos e Ensaios Filosóficos I, Lisboa, Âncora, 1999, p. 83.

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Eva, e mostra a importância da ruptura com as leis e barreiras impostas por Deus à vida no Paraíso, de modo a se alcançar “a liberdade plena “(...)” e, “banidos os deuses” (ibid., pp. 87-88), o homem tornar-se Deus.

A liberdade associada à virtude é esforço de libertação de todas as tiranias, luta em favor dos fracos contra os opressores que os prendem “à bruteza e escuridão” obrigando-os “a serem piores do que são” (ibid., pp. 88-89). Para o homem virtu-oso, a liberdade se confunde, na sua forma mais perfeita, com a razão e a justiça, com o bem” (ibid., p. 88).

A excelência moral consiste em realizar atos de grandeza e generosidade, não apenas para sermos dignos dos antepassados, mas por um padrão de futuro, pelo que tivermos feito em favor dos que vierem depois de nós. E, para tanto, é necessário não ceder à crítica fácil, à moda, mas mantermos coração e vontade abertos à vida criativa, à fidelidade ao que há de essencial: a coragem para viver, a despeito de todas as dificuldades.

Esse viver ético é o viver para a vida do espírito, entregar-se à reflexão, à con-templação, sonhando “com o século em que seja possível, feito rapidamente, em parte mínima do dia, o trabalho material que houver a realizar” (ibid., p. 91).

Na ética de Agostinho, cumprir o dever, fazer o que se deve fazer, não significa obediência a regras impostas, mas “aspiração sempre mais larga à posse de todo o mundo racional” (ibid., p. 97), fidelidade a si mesmo, domínio dos sentimentos pela razão, buscando expressar, na própria vida, amor, beleza e justiça. Trata-se, para ele, de fortalecer a vontade, de modo que o querer “tenha sua origem e seu apoio em coração aberto à nobreza, à beleza e à justiça (...) vontade inteligente e não manhosa, altruísta, e não virada ao sujeito, pedagógica e não sedenta de domínio” (ibid., p. 105). Nosso filósofo procura encontrar o ponto de equilíbrio “pelo culto da razão, da serenidade, da beleza harmoniosa, da medida atitude”, exercitando a calma alegria, a piedade, a paciência, a veracidade, a tolerância, a compreensão e a coragem. Recorda que “a primeira condição para libertar os outros é libertar-se a si próprio” (ibid., p. 107).

A finalidade da ética, para ele, é, assim a auto-superação contínua e a liberdade, o desenvolvimento do espírito criador, da inteligência e do amor219.

A qualidade literária da escrita de Agostinho acompanha a profundidade e a riqueza de seu pensamento. Um bom exemplo dessa dupla dimensão, literária e reflexiva, de sua obra, é Conversação com Diotima.

Nesse diálogo, no qual se entrecruzam ecos do pensamento de Platão, Sto. Agostinho, Schopenhauer e Nietzsche, os personagens são um Estrangeiro e Diotima, a sacerdotisa que fala sobre o amor, no Banquete platonico. Os temas do diálogo são: a busca da verdade, o problema do mal, a concepção de um deus que se desdobra constituindo uma alma e um corpo universais, que englobam todas 219 Id., Doutrina Cristã (1943), in Textos e Ensaios Filosóficos, I, pp. 81-82.

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as almas e todos os corpos. Na alma desse deus residiria a expressão da liberda-de, em seu corpo, a da fatalidade. Corpo e alma, liberdade e fatalidade, prazer e dor, vida e morte, existem como opostos. Seu confronto pode ser atenuado pela arte, religião, filosofia e ciência que, elevando-nos do particular ao universal, promovem a libertação de aparência e da temporalidade, conduzindo à unidade, à vida divina, onde os opostos se fundem. A via para essa superação é o amor, que leva à união com a divindade, à inteligência autocontemplativa. A tarefa dos seres humanos, o seu dever, é, através do amor, caminharem, como espécie, em direção à unidade divina.

O diálogo aborda a relação consciência-natureza que, no artista, é admiração e busca de universalidade. Cabe à arte facilitar a contemplação do mundo, mas supõe-se, da parte do sujeito contemplante, a capacidade de apreender a beleza. As “almas de escravo” são as daqueles incapazes de tal felicidade, uma vez que para elas a felicidade não consiste na beleza, mas no ódio, na inveja, na dureza.

O artista e o filósofo são mais felizes do que os “escravos”, porque, se no mundo real há dor e sofrimento, os contemplativos têm a esperança de que seja possível o regresso ao paraíso. Falando através do personagem do Estrangeiro, Agostinho chega mesmo a levantar a hipótese de que, para o homem, só existe a marcha contínua em direção a um ser mais e que o seu melhor modelo é a figura mítica de Hércules, que combate e morre por amor.

O horror pela tragédia do existir, claramente inspirado em Nietzsche, é exposto pelo personagem do Estrangeiro. Diotima, expressando a verdade poética, mostra a superação do horror, numa perspectiva schopenhaueriana, spinozista, falando de uma divindade que contém em si a totalidade, age e contempla, e engloba as consciências individuais. Para além das aparências de individualização dos entes, nosso corpo seria fragmento de um grande corpo universal; nossas almas, frag-mentos da grande alma universal – de modo que tudo é interdependente, embora exista uma batalha entre o corpo e a alma.

Essa batalha gera o sofrimento e, para atenuá-lo, o caminho é, para o sujeito individual, a busca da liberdade, que o leva à supressão de dor, à integração na alma divina. Na contemplação de obra de arte, na devoção religiosa, na busca da verdade pela ciência e na meditação filosófica – ou seja, na vida do espírito – dá-se a superação do tempo e da individualidade, a experiência da harmonia, do repouso feliz. Assim, amor e conhecimento são fundidos numa unidade mais alta, de modo a fazer ressoar, na alma individual, a grande alma divina.

O tema de liberdade reaparece na Parábola da mulher de Loth, confronto entre a moral aberta, representada pela mulher e a moral do rebanho, obediência sem questionamentos à autoridade religiosa, à ordem social, que o marido simboliza. A cidade que vai ser destruída é a daqueles que ignoram “as ordens dos tiranos” e “sobre todas as coisas adoram a liberdade” (ibid., pp. 174-175). É também a cidade

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para qual a mulher retorna, para viver a mesma sorte dos que “vão morrer pela liberdade”, recusando a opressão dos sacerdotes e o deus punitivo, que representa essa opressão.

Em Pólicles (ibid., pp. 177-202), a liberdade é mostrada como o “bem supre-mo” (ibid., p. 179), suprema dádiva do mestre ao discípulo: aprender a navegar no mundo do espírito. A tarefa dos mestres é esculpirem na criança um ideal de homem, desenvolvendo “o que neles há de verdadeiramente humano (...) [levando-os] a que tenham as idéias como guias da vida” e conduzindo-os a reconhecer que “todo homem que pensa e se obedece é um caminheiro da estrada da verdade” (ibid., pp. 186).

No Apólogo de Pródico de Céos, Agostinho apresenta as alternativas de vida oferecidas ao homem: a) o caminho do amor, prazer e riquezas; b) o da ciência e da busca da imortalidade; c) o caminho do herói.

As virtudes do herói, isto é, do homem que procura sua realização como ser humano, são elencadas por Agostinho da Silva, no Diário de Alcestes: sacrifício, lealdade, tolerância, justiça, persistência, sabedoria, amor, fortaleza, coragem. Trata-se de “não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores (...) [de] não quebrar as leis eternas, as não escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento (...)”220.

Na transição de primeira para a segunda fase de seu pensamento, sob o im-pacto da obra de Rilke, Agostinho escreve o belíssimo Sete Cartas a um jovem filósofo, regra de vida para tornar-se verdadeiramente um homem. Dentre as muitas sugestões do mestre ao discípulo, presentes nas cartas, destacamos a referência, na Carta II, à busca de um núcleo de ser, imperturbável, que permita resistir às crises da existência e faça do sofrer e o amar “um todo único, em todo o seu esplendor”221.

A ética das virtudes, proposta por Agostinho, na primeira fase, é busca de plenitude do humano, da vida subordinada à alma racional. É também a busca da liberdade, da autarquia, da felicidade contemplativa, da sabedoria.

O tema do amor, numa perspectiva cristã, já está presente na primeira fase. Na segunda, sob a inspiração de Joaquim de Flora, às virtudes que tornam o ho-mem bom, características de ética clássica, são acrescidas as virtudes teologais: fé, esperança, caridade.

A fé é fé no homem, na “fraternidade (...) na liberdade (...) na unidade do mundo (...) [no] Reino de Deus” 222. É fé no Espírito Santo, como “o centro abs-

220 Id., Diário de Alcestes, in op. cit., p. 218.221 Id., Sete Cartas a um jovem filósofo, in op. cit.222 Id., Prefácio a As Três Taças – Os Atlantes (1980), in Dispersos, p. 678.

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trato, o ponto simultaneamente ideal e existente (...) em que se encontram todas as religiões”223.

A esperança é a da construção do reino do Espírito, em que a técnica nos leve à não-propriedade, a economia seja “de generosidade e desprendimento” 224, a po-lítica sem partidos, a educação ofereça às crianças a possibilidade de desenvolver suas capacidades de invenção, de criação, de sonho, de modo que “o criar vá muito além do saber (...), o contemplar domine o agir” (ibid., in op. cit., p. 237).

A caridade é a qualidade de pessoa que, por sua personalidade, presença, estimula os outros a realizarem sua humanidade no que esta tem de mais alto. É o esplendor do cuidado consigo e com os outros; é desejar que os outros nos superem, de modo a atingirem sua plena expressão, é sermos capazes de admirar quem ajudamos, ou seja, é desapego, serviço ao outro225

Os princípios práticos que regem tal ética são: viver, saber, fazer, poupar, ser-vir226; as virtudes: sentimento, humildade, generosidade, confiança, entrega227, despojamento, disponibilidade, criatividade, porque “somente como Poeta, isto é, criador, na Arte, na Ciência, na Técnica, na Ação e na Contemplação, será o Homem verdadeiramente à imagem e semelhança do Divino: Centelha em nós do Pensamento eterno”228.

O viver, disciplinado e ascético, desapegado, deve unir saber e amor, de modo a fazer brilhar no mundo a centelha da alma, através da ação.

A exigência, para cada homem, é que “se cumpra e que, cumprindo-se, desem-penhe seu papel na representação geral (...)”229, de modo a fazer de existência “um tranqüilo assumir do que acontece, graça ou desgraça, conflito ou amor”. Assim, o ser humano, “agora livre, se chegue a mais alta idéia, a de que o sonho vale mais do que a realidade, a de que o contemplar sobrepuja o agir (...)” 230.

Se o sagrado é o valor supremo, se o dever é de tornar-se santo, a felicidade reside no vir a ser si mesmo, na liberdade. A grande mensagem é a da liberdade, “do comunitarismo econômico (...) de educação de todos para todos, e daquela universal religião de fidelidade a si próprio e de amor aos outros, que juntará crentes e descrentes (...) 231.

223 Id., Goa – Cadernos Teológicos (1971), in op. cit., p. 472.224 Id., Ecúmena (1964), in op. cit., p. 232.225 Id., O Baldio do povo (2) (1971), in op. cit., pp. 537-539. Ver também Estilo e conteúdo (1972), op. cit., pp 565-566.226 Id., Quinze Princípios portugueses, in op. cit., pp. 253-268.227 Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., pp. 253-268.228 Id., Virá a Revolução (1981), in op. cit., p. 707.229 Id., De como os portugueses retomaram a Ilha dos amores (1982), in op. cit., p. 721.230 Id., Ecúmena, in op. cit., p. 239.231 Id., Carta chamada Santiago (1974), in op. cit., p. 586.

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A ação deve visar a liberdade, própria e alheia, de modo que haja coincidência entre pensar e ser e que com nossa liberdade e generosidade possamos auxiliar o desabrochar da liberdade, da largueza de espírito, da generosidade alheias232.

De todas as liberdades: econômica, política, de crença, etc. a mais importan-te é a de pensamento, “condição fundamental de ser homem”233, pois implica em responsabilidade em relação a si e dever “de garantir aos outros a mesma liberdade”234. O ser humano realiza sua humanidade quando se cumpre como ser livre, nos planos da inteligência, da criatividade, da vontade235.

Três liberdades são essenciais: “não possuir coisas, não possuir pessoas, e não se possuir a si próprio”236, obedecendo ao que nos transcende. O sentido religioso de vida se expressa no pedir que se cumpra o plano de Deus e que “sejamos nós os seus dóceis, fiéis e preparados instrumentos (...)” eis que a vida seja “louvor de Deus e agradecimento do milagre que somos”.

Na ética de Agostinho, o sentido religioso de vida é busca da totalidade, da comunhão com o universo, respeito ao mistério237; é procura da justiça e da paz238, é “desejo de fusão no Uno”239, afirmação da unidade essencial de todos os seres (ibid., p. 229), reconhecimento de que a vida propriamente humana é via de redenção, de retorno a Deus240.

Se na primeira fase de seu pensamento Agostinho da Silva é nitidamente inspirado pela ética clássica das virtudes e da auto-superação, na fase iniciada com sua vinda ao Brasil, e que se prolongará até o final de sua vida, a regra de ouro da ética pode ser resumida em: criar beleza, servir e rezar241. E o essencial é o rezar, porque a vocação do homem é a santidade, a revelação do Espírito, “o florir como pode...”242.

Vicente Ferreira da Sila, filósofo brasileiro e interlocutor de Agostinho da Silva no período em que esteve no Brasil, também apresenta uma ética, centrada nos temas da liberdade e das virtudes.

Sob o impacto da escola fenomenológia existencial e da obra de Heidegger, de quem foi um dos introdutores no Brasil, Vicente em Exegese da Ação, de 1949, fala de uma moral lúdica, como antídoto à crise contemporânea. 232 Id., Ecúmena, in op. cit., p. 234.233 Id., Composição do Brasil (1972), in op. cit., p. 560.234 Id., Proposição (1974), in op. cit., p. 662.235 Id., O Baldio do Povo, in op. cit., p. 538.236 Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., p. 198. 237 Id., Quinze Princípios Portugueses, in op. cit., p. 258.238 Id., O Espírito Santo das Ilhas Atlânticas (1972), in op. cit., pp. 570-571.239 Id., Ecúmena (1964), in op. cit., p. 227.240 Id., Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília (1964-1965), in op. cit., pp. 241-252.241 Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., p. 198.242 Id., Considerando o Quinto Império, in op. cit., p. 200.

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A experiência das duas guerras no século XX, o vazio e a angústia a elas ligados mostram o existir como “ consciência de uma privação”243. A crise atual explicita uma atitude mais antiga, apoiada na revolução industrial e na civilização do tra-balho, que representa a recusa da plenitude da vida, da transcendência, da ação voltada para a utilidade imediata, num mundo de coisas.

Em todos os planos, no econômico, na política, na tecnologia, na arte, na filo-sofia, cresce o “ conhecer monstruoso”, “desarticulador e analítico” (ibid., p. 138), que se caracteriza pelo antagonismo “ entre a teoria e a ação, entre o conhecimento e a vida” (ibid., p. 139), pela escravização do homem ao trabalho, à produção, ao consumo. A civilização tecnológica é destruidora das forças do espírito; é marca-da pela situação moral de tolhimento, constrangimento, infelicidade e angústia. Nela, o homem perde o sentido do instante, dissolvendo-se “contínuamente numa transitividade insubstancial” (ibid., p. 140).

Invocando Aristóteles, para quem a atividade mais perfeita, plenamente hu-mana, é a filosófica, a contemplativa, e acrescentando às vitudes dianoéticas a virtude cristã do amor e a busca da liberdade criadora, Vicente propõe a “moral lúdica”, cujo símbolo é a gratuidade do jogo.

A gratuidade da ação, presente no jogo, exercício de liberdade que rompe com o utilitário, a mesquinhez do dia a dia, é o símbolo da conduta ética desejável para que o homem recupere a felicidade.

O “sentido lúdico da vida (...) não deve ser confundido com a frivolidade, a irresponsabilidade ou a diversão” (ibid., p. 141), mas expressa a alegria, o entu-siasmo, o desapêgo em relação ao imediato, a possibilidade de nos relacionarmos com o infinito, com a vida, a generosidade, a criatividade.

A moral esboçada em Exegese da Ação encontra seu pleno desdobramento na “ética do telurismo”, inspirada em Lawrence, cuja obra Vicente analisa em dois textos de 1958 e 1962, publicados na revista Diálogo: “O Deus Vivo de Lawrence” e “Uma Floresta Sombria”.

No neo-paganismo e no dionisimo de Lawrence ecoam os próprios princípios éticos de Vicente. O romantismo, “renovado telurismo”, “hierofania de Afrodite”, encontra em Lawrence, na celebração do “ poder obscuro” do sangue e da vida, na crítica à civilização tecnológica e seu conhecimento profano e dessacralizado, uma nova expressão.

Enfatizando o lado dionisíaco de Lawrence, vendo a realidade “ como o firma-mento dos deuses, como o próprio vir-a-ser desses deuses e não como facticidade banal ou objeto cognoscível”244, nosso filósofo caracteriza a “ética do telurismo” inspirada no romancista. Tal ética é “um sentido de consagração à verdade do homem e das coisas. Viver na ‘ morada da vida’, dormir ‘perto da lareira do mun-243 FERREIRA DA SILVA, V., Exegese da Ação, O. C, vol. 1, S. P., IBF, 1964, p. 137.244 Id., “O Deus Vivo de Lawrence”, in O. C., vol. 2, pp. 393-394.

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do vivo’, ‘diante do fogo da vida’, tudo isto é o mesmo que se integrar à chama omni-compreensiva da existência, abandonando-se ao fluxo criador que subjaz a tudo” (ibid., p. 394).

O homem deve, nessa ética, tornar-se um “servidor da vida”, transformando em culto e adoração essa proximidade com a terra, com “ o júbilo das apoteoses cósmicas” (ibid., p. 395), incorporando a “fulgurante beleza dos deuses sem men-sagem”, liberto da estreiteza quotidiana num “estar fora-de-si na grande morada da vida e não na morte da autoconsciência”.

A vida assim se torna recepção e acolhimento ao meta-humano, reconheci-mento dos deuses que estão em nós. Para Vicente, como para Lawrence, “a alma [é] uma potência aórgica, devotada ao serviço das cenas primordiais”245, pois “nosso ser mais profundo não é reclusão (...) mas entusiasmo, estar-fora de si na presença dos deuses” (ibid., p. 404).

Nessa perspectiva, Vicente faz a releitura das virtudes tradicionais, contestando “o ‘teclado apoticário ‘das virtudes da respeitabilidade social, do existir unicamente em sociedade do homem moderno” (ibid., p. 402).

Tais virtudes são: a temperança, o silêncio, a ordem, a resolução, a frugalida-de, o trabalho, a sinceridade, a justiça, a limpeza, a tranquilidade, a castidade, a humildade.

Na releitura de Vicente, a temperança é comunhão com o cosmos, rememora-ção da presença dos deuses. Daí, o que importa, na temperança, é esta abertura à presença dos deuses. E Vicente diz: “comei e festejai com Baco ou mastigai o pão sêco em companhia de Jesus, mas não vos senteis à mesa sem um dos deuses” (ibid., p. 405).

Comer e beber não são pura busca de conservação do indivíduo, mas encon-tro com o cosmos, fusão com os deuses, reconhecimento do significado da obra humana e de seu lugar num mundo que celebra a divindade.

O silêncio é consonância com o entusiasmo criador, com “a vontade colérica da vida”. Assim, não é uma regra absoluta, mas uma fidelidade ao que emerge do mais profundo em nós; daí, na ética vicentina, a recomendação: “ permanecei silenciosos quando não tiverdes nada a dizer; quando uma verdadeira cólera dominar-vos, dizei o que deveis dizer, e com ardor” (ibid., p. 406).

O homem é responsável pelos deuses que o habitam; é um porta-voz da di-vindade que está presente nele: “ao agir, o homem revela-se e ao revelar-se revela os princípios tutelares de seu ser, isto é, seus deuses” (ibid., p. 408).

Como há deusues maiores e menores, estabelece-se uma hierarquia, uma escala de valores, da qual decorre nossa relação com os outros.Nessa hierarquia consiste a ordem das relações interpessoais e sociais. Na ética de nosso filósofo, “através dos homens. São os deusus que falam”.245 Id.,”Uma Floresta Sombria”, in O. C., vol. 2, p. 403.

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Daí a exigência de se obedecer ao mais profundo em nós, de sacrificar o super-ficial ao essencial, a persona social, o pequeno eu, ao testemunho dos deuses. Nisso consiste a virtude da resolução: obedecermos “ao Espírito Santo (...) marcando assim as obras do sentido reverencial aos deuses” (ibid., p. 401).

A frugalidade consiste em não nos abandonarmos às questões menores da existência, em não nos desgastarmos com os pequenos problemas.É respeito e amor ao “ inaudito, o irrevelado e oculto em nós”, “o ilimitado que nos habita”, sem nada pedir e aceitando o que parecer justo. É ênfase no ser e não no ter.

A virtude do trabalho não consiste em amontoar tarefas, no existir para a so-ciedade. É serviço ao “ Espírito Santo” (ibid., p. 409), é cumprir a tarefa própria do homem: pôr-se à escuta dos deuses.

A sinceridade é reverência à nossa alma, à verdade de nossa alma: “ser sincero é ser livre e desobstruído (...) para os deuses que vão e vêm na representatibilidade da nossa ação”. Assim também a justiça é obediência “à intuição sincera da alma, seja ela de cólera ou de doçura” (ibid.,p. 411).

A moderação consiste no não-dogmatismo, no reconhecimento da pluralidade das manifestações do sagrado, do religioso. Recusando absolutos, reencontrare-mos, diz Vicente, o absoluto da Vida e a polivalência do religioso (ibid.,p. 412).

A limpeza consiste em reconhecer no próprio corpo uma manifestação do divino, contra as perspectivas puritanas e negativistas em relação a este (ibid.,pp. 412-413). A tranquilidade é a pleniude que resulta da obediência ao mais profundo, a fidelidade ao Espírito Santo em nós (ibid.,p. 413). A humildade é reconhecimento de que o Espírito Santo habita todo homem e toda mulher; é “disponibilidade infinita em relação ao ‘Holy Ghost’” (ibid.,pp. 414-415) que está presente em cada um.

A castidade é reconhecimento do caráter sagrado da sexualidade, não con-siderada em vista de finalidades como a geração, a saúde, o prazer, mas como “oferenda aos deuses sombrios e todo-poderosos – nada mais”, pois “ no amor, é o amor que se realiza através de nós” (ibid.,p. 414), são forças não criadas pelo homem que se manifestam.

Nas axiologias de Agostinho e de Vicente, o sagrado é o valor supremo e o sentido ético da existência consiste no reconhecimento desse valor, na disponi-bilidade para a transcendência, na fidelidade ao deus que nos habita, ao Espírito Santo presente em nós.

Nessa abertura ao Transcendente, residem a plenitude, a felicidade, e a liber-dade do homem, cuja pequena vida é então impregnada pela “prodigiosa vida dos deuses”, como afirma Vicente.

O diálogo entre o neo-paganismo do filósofo brasileiro e a celebração do Es-pírito Santo, em Agostinho da Silva, ocorre através da valorização de sacralidades diversas,” máscaras da Vida una”.

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Nos Diálogos Filosóficos, de Ferreira da Silva, principalmente no Diálogo do Mar, no Diálogo da Montanha e no Diálogo do Espanto, através dos persona-gens Mário, George, que representam, nos diálogos, respectivamente Vicente e (George) Agostinho da Silva, como bem assinalou Antonio Braz Teixeira, é que encontramos as possibilidades de convergência entre os dois autores, explicita-mente reconhecidas.

Diz Vicente, através do personagem Mário: “(...) embora diferentes, somos tripulantes do mesmo barco e, no fundo, concordamos num ponto fundamental: é preciso superar o velho mundo do humanismo antropocêntrico. Devemos tender para uma realização vital policêntrica”246.

E o personagem George afirma: “Toda forma pessoal ou individual de ser não seria mais do que uma das máscaras da Vida unitária...” (ibid., p. 505).

Em ambos, constatamos o horror ao mundo caracterizado pela fuga de Deus ou dos deuses, e a busca de uma plenitude, de um estado de entusiasmo, de ar-rebatamento pela divindade, de disponibilidade para uma outra forma de viver e de ser.

Para ambos, a experiência da liberdade é a da máxima disponibilidade à Trans-cendência; e a obediência ao mais alto em nós, é o sentido ético fundamental da existência.

246 Id., Diálogo do Mar, in O. C., vol. 2, p. 494.

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Natural:mente, de vilém flusser247

Natural:mente, cujo subtítulo é “vários acessos ao significado de Natureza”, aborda a questão das relações natureza-cultura.

Flusser, num estilo revelador das leituras de Husserl, Heidegger, Wittgens-tein, trata de compreender o que acontece com a relação homem-natureza, num mundo que se caracteriza pela crise da ciência. “Tal crise da ciência”, afirma, “exi-ge uma reformulação radical tanto dos métodos da ciência quanto do interesse da ciência pelas coisas” (ibid., p. 143).

O reconhecimento da importância crescente das ciências humanas, leva o homem contemporâneo a inverter a perspectiva tradicional, que conferia à física o papel de modelo do saber. Por isso, “de certa maneira está recomeçando (...) o esforço todo de conhecer cientificamente o mundo que nos cerca”. Pertencer a esse grupo de pioneiros, criar uma nova forma de ver o mundo, um novo con-ceito de ciência: tal é a aventura que Flusser se propôs, reconhecendo como seus precursores Husserl, Ortega e Bachelard.

Pondo em jogo o conceito de natureza, Flusser escreve, filosófica e poetica-mente em torno de temas aparentemente banais: caminhos, vales, pássaros, chu-va, o cedro no parque, vacas, grama, dedos, a lua, montanhas, a falsa primavera, prados, ventos, maravilhas, botões, neblina.

Nosso autor pretendia submeter as “coisas naturais a testes sucessivos”. Es-tabelecia, nesses testes, várias e sucessivas negações da noção de “natureza”. As-sim, em “chuva”, procurou negar a natureza pela “cultura”, com o significado de “manipulação planejada” (...). Em “Falsa Primavera”, procurou opor o conceito grego da natureza (physis) ao conceito da ciência da natureza (...). Em “Botões”, procurou opor os dois climas que emanam da natureza: o do sentimento trágico e o do absurdo. E, em “Neblina”, opôs a mistificação da natureza pelo espírito ideológico ao “autêntico mistério de uma realidade que se enconde ao revelar-se” (ibid., p. 139).

O livro de Flusser se lê com o encantamento de quem descobre novos poemas; e com a admiração de quem se surpreende perante o enigma do mundo desvela-do a partir do quotidiano mais banal, da paisagem de uma casa de campo.

A refinada erudição que transparece no texto, Flusser a usou apenas como instrumento para aguçar a profundidade da sua leitura.

247 FLUSSER, Vilém, Natural:mente. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.

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A partir da natureza européia – o livro foi escrito na Europa – nosso autor oferece ao leitor brasileiro um “guia turístico”, entendendo por turismo a “visão interessada mas despreconcebida daquele ente provisório e estrangeiro no mun-do chamado ‘homo viator’” (ibid., p. 148).

Escrevendo a partir da natureza européia. Vilém Flusser medita sobre a in-serção do homem no mundo, numa renovada abordagem.

Encantamento: é isso que o mágico da palavra nos oferece.

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a metafísica conjectural de Miguel reale

Se a fonte remota do pensamento de Miguel Reale é a obra de Kant, a fonte próxima da ulterior evolução de seu pensamento é a Escola fenomenológica.

No texto que expressa de modo exponencial esta trajetória, Verdade e Conjec-tura248, nosso autor busca “elaborar ideias metafí sicas” que levam a compreender sujeito e objeto “na sua essencial correlação” (ibid., p. 13).

A metafísica conjetural que Reale propõe consiste “numa tentativa de ir além dessa complicação dialética “do sujeito e do objeto, visando a algo que transcen-dentalmente a condicione” (ibid., pp. 13-16).

O ponto de partida da sua metafísica é a constatação de que o homem, na bus-ca da verdade, se orienta por conjeturas. Reale começa por distinguir entre pen-samento conjetural e discurso probabilístico, dizendo que o primeiro é apoiado em elementos qualitativamente considerados, em verossimilhança (ibid., p. 15), e recorre à imagi nação, à intuição e à linguagem metafórica.

Negligenciado, desde a Antiguidade, que privilegiou o pensamento analógico e probabilístico, o pensamento conjetural não é um ceticismo, um relativismo, mas resulta da compreensão de que verdade e conjectura são termos complemen-tares.

Quando há impossibilidade de se atingir diretamente o ob jeto visado, no pla-no do conhecimento ou da ação, a conjectura serve de fio condutor de reflexão: daí a volta, na filosofia contemporânea, ao mundo da vida e do senso comum, e à meditação sobre os futuríveis.

Reale pretende dar a conjectura, não apenas a função de predição, mas “veri-ficar se é possível atribuir ao pensamento conjectural um status lógico ou episte-mológico próprio” (ibid., p. 18). Sua indagação encontra pontos de convergência com a temática da conjectura em Popper (ibid., pp. 18-20), pondo em evidência o valor desta, no que diz respeito à busca da verdade, e distinguindo-a do palpite gratuito.

A fonte kantiana do pensamento conjectural é evidenciada por nosso autor, quando mostra que o pensador alemão, já na Críti ca da Razão Pura, caracte-rizava a metafísica “como expressão de um raciocínio problemático” (ibid., p. 26), sem, contudo, abordar sistematicamente o assunto. O pensamento proble-mático, em Kant, exprime possibi lidades lógicas; seu âmbito é delimitado por

248 Lisboa: Fundação Lusíada, 1996.

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intuição e entendi mento, diversos do conhecimento racional; utiliza conceitos pro blemáticos, que abordam objetos não-experienciáveis, mas passí veis de co-nhecimentos válidos, enquanto estes constituem princípi os reguladores da razão pura. Kant estabelece correlações, ainda, entre pensamento problemático e pen-samento analógico, fixando “as grandes linhas de uma metafísica problemática” (ibid., p. 31), diz Rea le, indagando sobre o sentido da história, da liberdade, da cultura (ibid., p. 33).

Um aspecto importante que o filósofo brasileiro põe em relevo, na obra de Kant, é a distinção entre conjectura e quimera: a conjetura “não contradiz a ex-periência, mas com ela se compatibiliza”, tendo “o raciocínio problemático valor provisório, ou de mediação” (ibid., p. 34).

O pensamento conjectural se caracteriza, segundo Reale, por quatro pontos: a) surge, quando precisamos compreender o que não é abordável a partir das evi-dências empíricas; b) busca trans cender a experiência, através do que é plausível aceitar, isto é, re cusa contradições lógicas, recusa o absurdo; c) desenvolve-se no plano das idéias, porque não pode abordar seu objeto no plano dos conceitos; d) conjuga intenção, racionalidade e imaginação, para “pensar além daquilo que é conceitualmente verificável” (ibid., p. 36). É sempre tentativa de ir além da expe-riência, respondendo às ques tões como se fosse possível solucioná-las.

Mais ampla que a probabilidade e a analogia, aliando razão e imaginação criadora, a conjectura busca superar a experiência, estabelecendo vetores de sen-tido.

O ponto de partida da metafísica realeana é Kant (ibid., p. 37); mas a filosofia de Reale quer ir além de Kant, colocando o pensamento conjectural como cerne de toda metafísica. Essa filosofia é, a seu ver, uma metafísica crítica, que “rei-vindica a validade do conjectu ral” (ibid., p. 41), afirmando-se como pluralista, hipotética, e considerando a intuição como um dos elementos necessários do saber, mas só va lidada, na medida em que se apresentar correlacionada aos ou-tros elementos. Tal metafísica não é ciência; esta última procede de problemas a soluções, enquanto aquela procede de problemas a conjecturas, isto é, “passa de um problema a soluções razoáveis ou plausíveis que envolvem outros problemas, até chegar-se a ‘conje turas fundantes’” (ibid., p. 42). Seu objeto é a validade, não a verdade ou a certeza.

E é recorrendo ao diálogo com a fenomenologia, especial mente a de Husserl e Merleau-Ponty, que o filósofo brasileiro afirma a necessidade da metafísica e a faz desenrolar-se entre dois horizontes: o do âmbito da experiência e o da “transcen-dental razoabilidade”, o de confronto com o transcendente (ibid., p. 43).

A validade da metafísica consiste em nos possibilitar uma certa perspectiva, uma apreensão mais clara de nosso desejo de transcendência e de significado, uma resposta às exigências espi rituais de nossa época, uma “busca do sentido da totalidade” (ibid., p. 113).

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Os temas privilegiados de sua metafísica são a liberdade, os valores, a cultura (ibid., p. 115). Não se trata, aqui, de retomar o cogito de inspiração cartesiana; antes, deve-se buscar o que é comum a todos os eus, dialeticamente considera-dos, na sua relação inter-humana e na sua relação com o Lebenswelt. É ainda esse novo sentido da ontologia, inspirado em Hartmann, Husserl, Scheler, que apa-rece na meditação de Reale sobre a ontologia dos valores249, e na sua leitura do primeiro Heidegger, para quem a temporalidade e a historicidade são dimensões essenciais da existência humana.

A referência à corrente fenomenológica, pólo que marca o pensamento de Reale, não é, contudo, a de alguém que assume a escola como discípulo. A partir de Husserl, Heidegger, para além de Husserl, Heidegger: tal é a atitude de Reale, que estrutura uma filosofia própria. Correlacionando ontognosiologia e histori-cismo axiológico, nosso filósofo pretende “superar a atitude estáti ca, puramente descritiva, do sujeito cognoscente perante a realida de, como ocorre na filoso-fia fenomenológica, para [levar] em conta a originária historicidade do ser que conhece”250.

Contra o cogito cartesiano Reale põe o homem como um ser que pensa, bus-cando alcançar novas verdades, novas realiza ções de seu ser, no tempo. A aber-tura para a temporalidade instau ra o homem no mundo da cultura, do qual é inseparável. A perma nente busca de aperfeiçoamento, de transcendência, é tam-bém bus ca de comunicação, de intersubjetividade. Para além de Husserl, que postula o eu transcendental, Reale propõe a intersubjetividade transcendental, de um ser que se caracteriza pela linguagem e pela abertura à alteridade.

Por essa razão, reconhece que pensamento e linguagem, “atos concomitante-mente individuais e coletivos”, [são] condicio nados por quatro fatores, a saber:

a) a consciência intencional (...)b) a natureza infinitamente determinável de algo (...)c) a igual natureza de todos os homens (...)d) a historicidade originária do homem” (ibid., p. 91).

Para Reale, o homem, ser perfectível, ser pessoal, tem como mundo o da cultura, acervo espiritual comum, pro gresso em direção a valores – objetivados e traduzidos em obras criadoras, bens constituídos.

Daí, criticando Husserl, Reale afirmar o pensamento conjectural, que “não pode (...) ser reduzido a mero momento provisório de uma intuição eidética, porque já assinala o ponto culminante de nossa meditação ontológica sobre a 249 Veja-se, sobre isso, o importante artigo de Reale, intitulado Invariantes Axiológicas.250 Id., Verdade e Conjectura, p. 89. O próprio Reale assinala, em nota, na mesma página, os textos em que eplicou sua posição original: Experiência e Cultura, capítulos VI e VII; Filosofia do Direito, p. 87 e segs; Teoria tridimensional do Direito, capítulo V; Introdução à Filosofia e Paradigmas da Cultura contemporânea, passim.

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insuperável relação eu-mundo, ou o que vem dar no mesmo, espírito-natureza” (ibid., p. 97). E ainda: “Se, de um lado, a Lebenswelt condiciona as estruturas ob-jetivas das ciên cias, estas, de outro lado, ‘afluem no mundo da vida’, de tal modo que (...) ele se converte (...) em um mundo transformado segundo variáveis con-dições históricas” (ibid., p. 100). Há, dessa forma, uma dialética de complemen-taridade entre a experiência estruturada segundo es quemas lógicos, culturais, dominantes em certo tempo ou história, e a criação de conjeturas e hipóteses.

As conjecturas metafísicas, enunciadas apesar de sua inverificabilidade, de-lineiam o horizonte do mundo cultural, uma vez que constituem “o horizonte envolvente, englobante da cultura” (ibid., p. 102).

É recorrendo ao conceito gadameriano de efetividade his tórica que Reale medita sobre correlação entre valor e tempo: o tempo histórico é tempo axiológi-co, a experiência da temporalida de humana é uma experiência de valores. Esses valores, apesar da multiplicidade com que se apresentam na história, são cons-tantes que asseguram a harmonia do mundo da cultura, porque, para Reale, há uma identidade essencial do espírito humano, apesar da pluralidade de indivíduos e de tempos. O tempo qualitativo, o tem po axiológico é o tempo da liberdade, que instaura, na natureza, o mundo da cultura.

No pensamento conjectural, a metafísica é “o englobante fundamental da cul-tura” (ibid., p. 106), dado que possibilita o transcender do individual em direção ao eu comum. Reafirmando, para além de Kant e da fenomenologia, a possibili-dade da metafísica; pondo em relevo a importância do pensamento conjectural na busca da verdade e dos valores; medi tando sobre o sentido ontológico da cul-tura e do tempo, Reale nos instaura no mundo qualitativamente considerado, no tempo propri amente humano da inquietação pelo dever-ser e pela liberdade.

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axiologia e crise segundo Miguel reale

Ao examinar a sociedade contemporânea, Miguel Reale correlaciona ética, axiologia, ontologia e meditação sobre a cultura e a crise atual.

Em “Os riscos da revolução tecnológica” nosso autor251 questiona a excessiva valorização da técnica, da globalização, vista por alguns pensadores como capa-zes de melhorar rapidamente a vida de todos os povos.

Na verdade, o progresso técnico só será propício ao homem, se acompanha-do de “medidas políticas e econômicas destinadas a promover a justiça social” (ibid., p. 55). Mostrando a ambigüidade da crise, uma vez que todo evento im-portante vem sempre acompanhado de resultados benéficos e de conseqüências nocivas não previstas, o filósofo critica a sociedade de consumo, da utilidade, na qual o durável tornou-se um desvalor, e a busca do lucro imediato, a substituição rápida de bens, sua característica.

As consequências dessa inversão de valores são o desemprego, a supressão de postos de trabalho, dentre outras. A alternativa proposta por Marx e Lênin, de recurso ao Estado empresarial, mostrou-se inviável, dado o descalabro que representou sua adoção na União Soviética (ibid., p. 57).

A exigência de mudanças na mentalidade dominante é exigência de mudan-ças na escala de valores adotadas pela sociedade atual. Focalizada no poder e no lucro, tal sociedade divorciou-se do humano, não podendo encontrar seu caminho senão recolocando em primeiro plano a satisfação de necessidades es-senciais de saúde, educação, justiça (ibid., p. 58).

A sociedade contemporânea caracteriza-se por uma crise, que põe em jogo o problema ético. Para nosso autor, a ética é “um dos aspectos da Axiologia ou teoria dos valores (...)”252. O campo da ética é o do estudo do bem e da ação hu-mana que visa sua realização.

A Axiologia considera a pluralidade de valores que o homem escolhe para dar sentido à sua vida. Para alguns, tal sentido é encontrado na beleza, na concepção estética da existência; para outros na utilidade, o valor econômico é dominante; para outros ainda, a ética, a religião, constituem o pólo de atração, desdobrando-se assim a Filosofia em Ética, Estética, Filosofia da Religião, conforme o valor considerado dominante.

251 REALE, M., Variações 2 , RJ, Academia Brasileira de Letras, 2003, pp. 55-58.252 Id., Introdução à Filosofia, SP, Saraiva, 1988, p. 27.

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O valor não é um ser; é não-espacial, atemporal, não se confunde com os osbjetos ideais. O valor não é, mas vale: “o seu ‘ser é o ‘valer”’ (ibid., p. 141), e só existe nas coisas, nos seres valiosos, nos bens. Corresponde à ordem do dever-ser; é bipolar, sempre supõe um anti-valor e implica reciprocamente ou-tros valores. Não é um fato;implica a tomada de posição, o reconhecimento por um sujeito humano, ou seja, tem como característica a referibilidade, ou seja, a referência a um sujeito; a preferibilidade, quer dizer, a ordenação hierárquica. É objetivo e inexaurível, não se esgota nas suas manifestações em seres, embora se expresse historicamente.

Assim, o valor não é ser, mas qualidade do ser; põe à luz o mundo do dever-ser, através das criações, das obras em que se projeta e realiza o ser humano (ibid., pp. 144-145).

O impasse em que se encontra a filosofia contemporânea, ante as concepções subjetivas e objetivas do valor253, nosso filósofo o apresenta elencando as princi-pais teorias do valor; trata de superar o impasse, propondo uma teoria histórico-cultural dos valores.

A pergunta a que todas as tendências buscam responder é: como e por que os valores valem?

A resposta subjetivista abarca as teorias psicológicas da valoração das quais Reale destaca as teorias hedonistas, representadas pela tradição que remonta a Aristipo e Epicuro e se expressam, na atualidade, através das obras de Bentham e de Meinong. Nessas teorias, valioso é aquilo que agrada, que dá prazer. O subje-tivismo aparece também nas teorias voluntaristas, que se reportam a Aristóteles e, na filosofia recente, transparecem nos escritos de Ribot e Ehrenfels. Essas teo-rias afirmam que o valor é o desejado ou pretendido por alguém. Reale resume o subjetivismo dizendo que nessa corrente, “valioso é o que nos causa prazer, suscitando nosso desejo” (ibid., p. 146). O valor é, então antes de mais nada, uma vivência estimativa.

Na perspectiva crítica de nosso filósofo, o subjetivismo axiológico é inaceitá-vel, pois reduzindo o valor às valorações individuais, ao ato de valorar, cairíamos num relativismo, que impediria a distinção entre os desejos e prazeres aceitáveis e os desejos e prazeres não-aceitáveis, para além da esfera das apreciações estri-tamente individuais.

O indivíduo, tomado como medida dos valores, não permite que se explique a existência de estimativas de grupos, comunidades, nem a pressão social que tais estimativas podem representar.

Em decorrência, nosso pensador afirma a prioridade do objetivismo axioló-gico, pondo em relevo três exemplos dessa posição: o das interpretações socioló-

253 Id., ibid., p. 146 e segs. Ver também FRONDIZI, R., Qué són los valores?, México, Fondo de Cultura Econômica, 1968.

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gicas, o das interpretações ontológicas e o das interpretações histórico-culturais dos valores.

Na perspectiva sociológica, o valor expressa a consciência coletiva ou as crenças e desejos de uma sociedade. São representantes desse enfoque Tarde e Durkheim; o último vê “ a consciência coletiva como repositório de valores (...) exercendo [estes] pressão ou coação exterior sobre as consciências individuais” (ibid., p. 149).

Essas concepções tiveram especial importância no campo do Direito, repre-sentadas por Davy e Bouglé.

O grande problema não resolvido pelas teorias psicológicas e sociológicas do valor, é, diz Reale, “explicar por que os valores obrigam” (ibid., p. 150). Reduzir o valor a uma expressão da consciência, quer individual, quer social, não explica a existência de mártires e de heróis, que se singularizam constestando os valores vigentes de uma dada época, em uma dada sociedade. E mais ainda, afirma o filósofo: “A opinião da maioria não traduz (...) a certeza ou a verdade no mundo das estimativas” (ibid., p. 151).

As dificuldades apresentadas pelas teorias sociológicas, identificando valor com a opinião da maioria, num dado contexto social, levou à tentativa de supe-ração, tanto das teorias subjetivistas quanto das do objetivismo sociológico, por duas outras teorias objetivistas: o ontologismo axiológico e a teoria histórico-cultual dos valores.

O ontologismo axiológico é representado por Scheler e Hartmann, que en-caram os valores como realidades a priori, existentes em si, num mundo ideal e apreendidas por intuição, quer sentimental (Scheler), quer eidética (Hartmann).

A dificuldade entrevista por Reale nessas abordagens objetivistas, é a mul-tiplicação dos níveis de realidade, fazendo dos valores os componentes de um “mundo subsistente e cerrado em si mesmo “e estabelecendo uma radical sepa-ração entre valor e história (ibid., p. 153).

Reconhecendo as contribuições das teorias psicológicas e sociológicas do va-lor: a idéia de referibilidade, ou seja, de vínculo entre valor e apreciação deste por um seujeito; e a idéia de independência, transcendência do valor tanto em relação à valoração individual quanto em relação à sua expressão em seres, nosso filó-sofo propõe, como mais aceitáveis, as teorias histórico-culturais do valor. Esta perspectiva foi adotada, no passado, por Hegel, Marx e Dilthey. O denominador comum desses autores é a afirmação de que o valor só pode ser apreendido na história, “entendida esta como realização dos valores ou como projeção do espí-rito sobre a natureza” (ibid., p. 154).

A tese central da teoria histórico-cultural é a de que o homem é criador da cultura, instaurando seu mundo sobre o mundo da natureza. Esse mundo é um

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mundo espiritual, histórico, expressão da liberdade: é mundo dos valores, da realização do espírito, da projeção da consciência dentro do tempo, através das gerações e de suas obras. Essa expressão da auto-consciência humana no tempo, constitui o mundo da cultura, dos ciclos culturais ou civilizações. Assim, através do tempo, os valores se expõem como “elementos constitutivos dessa (...) experi-ência” (ibid., p. 156).

Daí, para Reale, os valores não constituem um mundo à parte, uma realidade ideal em si, mas “são algo que o ser humano realiza em sua própria existência (...) através do tempo (...)”, objetivando-os através de suas criações. Não são tam-pouco, totalmente independentes do sujeito que aprecia, mas não se trata, aqui da referência a um sujetio individual, empírico, mas ao “homem como sujeito universal de estimativa” (ibid., p. 157), ao homem na sua universalidade como pessoa, como unidade espiritual, fonte de todo reconhecimento de valores.

Valor em si, o homem é capaz de reconhecer valores, isto é, de expressá-los na temporalidade, através de sua ação. O valor é, para o ser humano, critério de compreensão da sua existência, integrando ser e dever-ser.

A vida humana, voltada para a contínua superação do já dado, abre-se à pos-sibilidade de instauração do novo, da constituição de novos modos de ser. É nessa realização ininterrupta, nessa permanente superação de si mesmo que se funda, para nosso autor, a característica do homem: sua capacidade de sintetizar ser e dever-ser, existência finita e plenificação infindável, através do tempo. Por essa qualidade sintetizadora, o homem é pessoa. Nele se inscrevem a consciência e a liberdade, a possibilidade de escolha constitutiva de bens, poder de síntese (...) e auto-consciência (ibid., p. 161).

A atividade da pessoa, enquanto ser espiritual, é sempre dirigida a outrem; por isso, diz nosso filósofo, “a tomada de consciência do valor da personalidade é a expressão histórica da atualização do ser do homem como ser social (...)”. E afir-ma: “entre pessoa e sociedade há (...) uma correlação primordial” (ibid., p. 162).

Por isso, alguns valores, quando chegam a ser percebidos como tais pela consciência coletiva, tornam-se aquilo que Reale chama de invariantes axiológi-cas254, isto é, valores constantes, definitivamente reconhecidos pela humanidade a partir de um certo momento. Dentre esses valores, objetivos e universais, nosso autor elenca a dignidade da pessoa, o direito à vida e à liberdade, a isonomia, em suma, tudo aquilo que reconhecemos hoje como os direitos fundamentais.

Conferência proferida em 1991 no Rio de Janeiro e publicada na Revista Bra-sileira de Filosofia em 1992, o texto Invariantes Axiológicas é considerado pelo próprio autor como uma contribuição importante. Nesse escrito, o filósofo re-toma e aprofunda o assunto, mostrando a progressiva constituição da Axiologia e do tema dos valores, ao longo da tradição filosófica ocidental. Reitera, ainda,

254 Id., Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, IFLB, 1994, pp. 207-221.

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a importância da questão em nossa época, na qual o homem se mostra “cada vez mais disperso na sociedade de massa, cada vez mais impotente no círculo da absorvente comunicação cibernética; cada vez mais temeroso no meio de revo-lucionárias conquistas científicas e técnicas, ameaçadoras dos bens da natureza e da vida em nosso planeta, sentindo todos os riscos de perder o valor supremo de seu ser pessoal no Mundo” (ibid., p. 221).

Nessa conferência, Reale propõe a questão: existem ou não valores que guiam os homens na sua vida quotidiana? Nosso autor responde afirmativamente à per-gunta, chamando tais valores de invariantes axiológicas. Tais invariantes cons-tituem o fulcro da vocação de cada um, aquilo que cada homem elege como horizonte de sua existência: o sagrado ou a beleza, a riqueza, a verdade, a justiça (ibid., p. 209); no embate entre o subjetivismo e o objetivismo axiológico, trata de superar sua oposição, mediante a análise da palavra valor ao longo da sua emergência para a filosofia. Na Antiguidade, o termo áxios, diz o autor, indicava, para os gregos, o que é digno de estima. Em Platão e Aristóteles, a idéia cor-respondente à de valor é a idéia de Bem. Na tradução latina de Cícero, o termo áxios corresponde ao aestimabile, o que é estimável; mas os romanos também empregaram, para designar o valor, a palavra Bonum, bem, reconhecendo na justiça o bem supremo.

Assim, na Antiguidade, as invariantes axiológicas não são percebidas como tais, apresentando-se como ontológicas ou éticas.

É somente na Idade Média que o termo valor aparece no latim e, ulterior-mente, nas línguas neo-latinas. Mas para a filosofia medieval, prevalece ainda a palavra Bonum, para designar o ser.

Uma certa correlação entre bem e valor aparece na obra de Dante, onde “a expressão eterno valor [indica] o supremo bem” (ibid., p. 209). E em Nicolau de Cusa, o problema do valor aparece no exame das relações entre Deus, e na refle-xão sobre a coincidência dos opostos (ibid., pp. 210-211).

Daí nosso autor afirmar: “Podemos concluir que, até a época do Humanismo, não nos seria possível tratar de invariantes axiológicas (...) pois o que prevalece é a subordinação do Valor (...) ao conceito primordial de Ens” (ibid., p. 211).

Em Descartes e seus continuadores, a perspectiva antropocênctrica e a nova gnoseologia não provocaram uma independência das pesquisas sobre o valor: reiteram “a antiga correlação entre Ens e Bonum” (ibid., p. 212).

É somente com Kant, na opinião de Reale, que se abre nova perspectiva a respeito do assunto, como distinção entre ser e dever-ser, proposta na Crítica da Razão Prática. Mas é a partir da concepção do valor, no plano econômico, tal como é considerado por Adam Smith e David Ricardo, que o tema se torna autônomo (ibid., p. 213).

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São o questionamento da Economia Política, por Marx e a crítica do Cris-tianismo, por Nietzsche, que abrem a possibilidade de surgir, no final do século XIX, começo do século XX, a Axiologia como disciplina autônoma, a partir das obras de Hartmann e Urban, bem como a Axiologia de base psicológica e de base sociológica. Estas últimas foram caracterizadas pelo subjetivismo, como já assi-nalamos, e tem em Durkheim, Bouglé e, recentemente Marcuse, seus expoentes.

Na primeira metade do século XX, entre as duas guerras mundiais, Scheler e Hartmann propuseram uma concepção objetivista dos valores afirmando que valor é o que vale, constituindo um mundo de objetos ideais.

Na perspectiva de Reale, superadora das posições extremas do subjetivismo e do objetivismo, o homem é o “valor-fonte de todos os valores”, pois “o ser do homem é seu dever ser”. O campo da realização dos valores é o da vida histórica, uma vez que o “ser do homem é essencialmente histórico” (ibid., p. 216). Afirma a possibilidade de “uma compreensão transcendental (...) do valor, em correlação com a experiência histórica (ibid., p. 217), com a tomada de consciência, por parte do ser humano, de sua comunhão com os outros e de seu valor próprio. Nessa perspectiva, “os valores [são] concebidos como expressões ou modelos do dever-ser (ibid., p. 218). Demarcam o universo da cultura, formulando o hori-zonte da vida histórica, na qual a pessoa humana se inscreve, aí realizando seu projeto de ser. Daí nosso filósofo dizer: “(...) a história do homem não é (...) uma aventura sem nexo (...) mas desenvolve, através de (...) inevitáveis conflitos, as possibilidades existenciais da espécie humana (...) [segundo uma] constelação cultural valorativa” (ibid., p. 221).

Um aspecto muito interessante dessa discussão sobre os valores e sobre a pessoa humana como valor fundante, é exposto em Verdade e Conjectura255, pu-blicado em primeira edição em 1983 e, a nosso ver, uma das obras mais impor-tantes de nosso autor.

No capítulo “Ontologia da Liberdade e do Valor” (ibid., pp. 69-88), Reale explicita tanto a inspiração kantiana da sua definição de homem, cujo “ser é seu dever-ser”, quanto os aportes que provocaram a ampliação do tema, definindo a pessoa pela liberdade.

Ser e dever-ser são abordados, inicialmente, como categorias lógicas, com as quais o sujeito compreende a realidade e aprecia segundo um padrão. É a totali-dade das faculdades do sujeito – não apenas a intelectual, mas também a intuiti-va, volitiva, imaginativa – que está em jogo no conhecimento.

Nesse texto, nosso autor reitera a definição do mundo propriamente humano como o mundo da cultura, “constituído pelos objetos que “são enquanto devem ser” (ibid., p. 72), e enfoca a questão do valor numa tríplice perspectiva: a ôntica, a gnoseológica, a teleológica.255 Id., Verdade e Conjectura, Lisboa, Fundação Lusíada, 1996.

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No plano ôntico, define o valor como o “que constitui o “ser” de certos objec-tos (ibid., p. 73); no plano gnoseológico, mostra que há seres que só podem ser conhecidos através de juízos axiológicos, como nos campos da ética e da estética; no plano teleológico, mostra a correlação entre valor e ação, meios e fins.

O ponto central dessa reflexão é a consideração do enigma da existência hu-mana, cuja nota dominante é ter consciência de si, o que torna possível a cada um ser o que é, “em sua condicionalidade ético-biológica própria intransferível; e o de cada homem poder e dever agir com fundamento em sua liberdade, visan-do atingir a meta suprema de seu aperfeiçoamento moral” (ibid., p. 75).

A partir da meditação de inspiração neo-kantiana, que encontra em Bache-lard e em Gonseth, no âmbito da filosofia da ciência, uma importante expressão, nosso filósofo relaciona o caráter inventivo, criador, da investigação científica, com a afirmação da liberdade, como “condição transcendental de todos os atos humanos” (ibid., p. 78). Assim, a liberdade, no plano do agir, expõe o valor da pessoa, pois diz Reale, “o problema do valor (...) é o problema do próprio homem e de sua liberdade” (ibid., p. 74), uma vez que este se acha aberto a uma infini-dade de alternativas de realização de seu ser. Aqui, a liberdade aparece como característica de um pensamento do plausível, disponível para a variedade da experiência e impulsionador do progresso científico.

Liberdade e valor “são termos conversíveis” (ibid., p. 82), nessa filosofia que reconhece a liberdade como fundamento tanto da razão prática quanto da vida teórica (ibid., p. 80).

A dignidade e a importância da pessoa consistem então, nessa característica vinculação entre auto-consciência e liberdade, que torna o homem um ser úni-co: a liberdade se mostra, pois, como “auto-consciência primordial, em função [da] circunstancialidade” própria de cada um.

A existência, que se desdobra no tempo através de múltiplas direções, múl-tiplas opções, realiza no entanto, o dever-ser próprio do homem, tanto no que se refere “ao eu comum (...) em sua universalidade (...) como ao eu pessoal do destinatário da conduta desejável ou exigível” (ibid., p. 83).

A auto-consciência põe o ser humano perante alternativas, perante a possi-bilidade de erro e acerto, de propor-se fins e orientar a ação para realizá-los. E é por isso, pela ‘compreensão da liberdade como fundamentum hominis”, que nosso autor “faz do homem (...) um valor, cujas características de polaridade (...) e de inexaurabilidade (...) não são mais do que conseqüências ou reflexos das alternativas da liberdade” (ibid., p. 84).

O enigma e a maravilha do existir consiste nessa enorme variedade de exis-tências, de faces múltiplas de um mesmo ser, de uma mesma raiz comum. A igualdade, representada pela capacidade, de todos e de cada um, de realizar o seu dever ser, isto é, de realizar o ser que especificamente corresponde ao homem,

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leva o filósofo a supor uma raiz adâmica, original e comum a todos os homens, e a sugerir a possibilidade “de um Ser que seja ao mesmo tempo Valor (...) o ho-mem é o único valor que originariamente (...) é e vale (...)”, conduzindo “à idéia de uma relação entre Criador e Criatura” (ibid., p. 86).

A correlação igualdade / liberdade tem outras implicações. Se existimos “como seres iguais uns aos outros, mas ao mesmo tempo, diversos uns dos ou-tros, cada um com a sua intocável liberdade” (ibid., p. 85), daí decorre a exigên-cia ético-política do “dever de suprir cada vez mais as razões contingentes da de-sigualdade” (ibid., p. 86). Decorre também a exigência de “tolerância das idéias divergentes”, associada um anti-dogmatismo, não relativismo e não-ceticismo. Trata-se de reconhecer que o enigma fundamental é “o fato de haver indivíduos da espécie humana, cada um deles dotado de uma subjetividade distinta e in-tocável” (ibid., p. 87), o que torna possível o surgimento de muitos modos de realização da humanidade em cada um.

Desse modo, a meditação sobre a crise de nosso tempo e a reflexão sobre os valores encontram seu ponto de convergência contínua nos valores, é, na sua universalidade, a garantia da transcendência destes em relação à sua expressão, num momento dado.

A crise contemporânea é sanável, na opinião de nosso autor, na medida em que o homem se reconhecer como fonte dos valores e buscar inscrevê-los na vida da cultura. Reconhecendo-se como pessoa, como ser espiritual, reconhe-cerá também sua tarefa mais própria: a de priorizar os valores do espírito, a de constituir um mundo sobre o mundo da natureza.

Esculpir a si mesmo, de modo cada vez mais perfeito, ao longo do tempo: essa tarefa do homem, ser perfectível, pessoa.

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Ética e liberdade em Miguel reale

A noção de pessoa é uma noção-chave na antropologia filosófica e na éti-co-axiologia de Miguel Reale. Um texto, cuja importância foi sinalizada pelo próprio filósofo, aponta, numa perspectiva histórica, a emergência da noção de pessoa “ como valor-fonte de todos os valores”256 e sintetiza a concepção de nos-so autor, como bem assinalou Ángeles Garcia257, que a denomina “personalismo axiológico”.

Estudando a noção de pessoa como uma invariante ou constante axiológica, Reale a compreende como um valor universal e objetivo, que orienta a humani-dade para a sua realização. Está intimamente conectada com as noções de racio-nalidade e liberdade, fundamentando a ética numa antropologia.

A noção de pessoa é o valor-fonte, isto é, aquele no qual todos os demais valores estão fundados. Ser que é e deve258 ser, pois seu ser é seu dever-ser, o homem se caracteriza pela capacidade de dar sentido às coisas e ao seu existir, pela capacidade de invenção e superação. Centrando a definição de pessoa nessa capacidade de valorar e de realizar valores espirituais (Ibid., p. 214), nosso autor afirma o homem como pessoa graças ao seu poder de sintetizar liberdade e auto-consciência e de constituir o mundo da cultura. Entendendo que a condição de ser pessoa é intrínseca ao ser do homem e, por isso, universal, Reale diz que “se surgem sempre novos valores (...) certos valores (...) uma vez revelados à consci-ência humana, tornam-se invariantes axiológicas, atuando universalmente ‘como se’ fossem inatos”259.

Que é pessoa, para nosso filósofo? É o ser “ enquanto valoriza seu dever ser”, é uma “unidade espiritual”, é “o espírito na autoconsciência de seu por-se cons-titutivamente como valor”260. Com essas características, pessoa é o homem, en-quanto livre dos determinismos de comportamento que caracterizam o ethos do 256 REALE, M., Invariantes Axiológicas, in id., Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa: Instituto de Filosofia-Luso-Brasileira, 1994, p. 216 e segs.257 GARCIA, A. M., A teoria dos valores de Miguel Reale. SP: Saraiva,1999, passim. Ver também OLMEDO LLORENTE, F., “A filosofia crítica de Miguel Reale”. SP: Convívio, 1985, p. 121 e segs.; MOOG, A. M., “A perenidade dos valores no pensamento de Miguel Reale”, in Actas do IV Co-lóquio Tobias Barreto. Viana do Castelo: IFLB, 1998, pp. 141-151; SEVERINO, A. J., A Filosofia Contemporânea no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 152 e segs.258 REALE, M., Filosofia do Direito. SP: Saraiva, 20ª ed., 3ª tiragem, 2002, p. 211 e segs.259 Id. in NOBRE, M. e REGO, J. M., Conversas com Filósofos Brasileiros. SP: Ed. 34, p. 19 e segs.260 REALE, M., Filosofia do Direito, p. 209.

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animal. Pessoa é o ser capaz de criar novos modelos de comportamento, racio-nalmente fundados e apoiados no que Reale chama de invariantes axiológicas, constantes axiológicas, valores universais. Tais valores universais transcendem os contextos históricos, apesar de se expressarem na história. Representam a to-mada de consciência de si própria da humanidade, como autoconsciência do espírito, através do tempo e da vida da cultura. Desvelam-se gradualmente, mas fundam-se no ser humano enquanto vinculado a um fim: a realização de sua própria significação.

No belo texto de Ángeles Garcia, a discussão sobre a noção de pessoa aparece desdobrada em duas instâncias: a antropológica e a ética. Na primeira, a estu-diosa mostra a correlação, em Reale, entre racionalidade e liberdade. Mostra, na segunda, as fontes de sua filosofia na tradição kantiana e fenomenológica, especialmente em Husserl, Scheler, Ortega; assinala também a originalidade da concepção de nosso autor, quando indica a inseparabilidade entre as noções de homem, pessoa e valor261. Reale se inscreve, pois, numa orientação personalista e estabelece laços entre a antropologia e a axiologia, que o conduzem a formular um personalismo axiológico262.

Reale diz, repetindo Kant, que a racionalidade humana se mostra tanto no campo da razão pura teórica quanto da razão pura prática263.No plano do co-nhecimento, o homem desvela sua humanidade, atribuindo sentido a si e ao mundo;no plano da ação, inscreve-se no âmbito da vida ético-social, transfor-mando o mundo, construindo a história. É no tempo que, pela racionalidade, o indivíduo se expressa e se inscreve num contexto cultural, tomando decisões, criando obras.

Assim como a racionalidade, a realidade essencial do homem é também co-notada por sua liberdade 264, entendida como “liberdade espiritual,possibilidade de escolha constitutiva de bens”265; sua realização mostra o ser humano como inconcluso e aberto a possibilidades sempre diversas de existência. Vinculada à razão, a liberdade mostra sua face essencialmente teórica, gnoseológica, como poder de criar o novo, construir o mundo da cultura;e também uma face prática, como experiência essencial da vida ética, dado que esta é entendida, por Reale, como “ a realização da liberdade” (ibid., p. 219). Ética e Direito expõem, através do tempo, o destino humano de racionalidade, que concilia liberdade e norma, vida criadora no âmbito institucional e no da comunidade.

261 GARCIA, A. M., op. cit., p. 73 e segs. Ver também OLMEDO LLORENTE, op. cit., cap. VI, passim.262 GARCIA, A. M., ibid., cap. IV, passim.263 REALE, M., op. cit., p. 211.264 Id., Experiência e Cultura, p. 207 e segs.; id., Pluralismo e liberdade, p. 31 e segs.265 Id., Filosofia do Direito, p. 212.

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Votado a valores, através da ação o homem busca a realização de bens, esco-lhendo entre alternativas266. A abertura ao possível, a expressões sempre novas de seu existir e de seu fazer é a característica da pessoa, que inscreve suas escolhas no tempo. Essa consciência de si, dos valores e da própria capacidade de criar mundos e história, constituem sua dignidade. Valor incondicionado, fim em si, capaz de liberdade porque autônomo, assim é o ser humano, como já o concebe-ra Kant.Mas, pretendendo ultrapassar o filósofo alemão, nosso autor assinala o formalismo que para aquele caracterizava a razão prática, assim como o esqueci-mento da sua dimensão histórica267, propondo um salto qualitativo que, relacio-nado liberdade e valor, move a reflexão do campo da ética ao da ontologia268. Diz nosso pensador: “O problema do valor é o problema próprio do homem e de sua liberdade,por ser ele um ser finito, aberto a inumeráveis alternativas (...)”,269 uma vez que o dever e o poder de agir nele se acham intrinsecamente imbricados270. Assim, a finalidade da liberdade é o aperfeiçoamento moral do homem, a sua realização como ser.

Para nosso autor, a liberdade é a “autoconsciência primordial” (ibid., p. 83), relacionada com a circunstancialidade do sujeito. Ela constitui, assim o “funda-mentum hominis”, que o torna um valor, caracterizado pela polaridade – capa-cidade de discernir e de escolher entre o positivo e o negativo – e pela inexauri-bilidade, isto é pela possibilidade inesgotável de realização de suas virtualidades (ibid., p. 84). Assim, reconhecendo a liberdade como característica fundamental do homem, nosso filósofo vê que ela é o que torna possível “existirmos como se-res iguais uns aos outros, mas, ao mesmo tempo, diversos uns dos outros” (ibid., p. 85), como sujeitos individuais. Êsse reconhecimento fornece a “base ética de tolerância e de convivência entre os homens” (ibid., p. 87). Ética e liberdade são termos correlatos, não existindo separadamente. Embora seja uma qualidade es-sencial da pessoa, a liberdade se expressa no tempo; assim, Reale, inspirando-se em Scheler, trata de “superar o abismo marcado entre o plano do ser e o do dever ser”271 da afirmação de que “ o homem é e deve ser “ e também que “ o ser do homem é seu dever ser”272, pois nele se conciliam o existir presente e a abertura a novos modos de realização. O desdobrar-se, no tempo, da vida criadora, tor-na a história e a cultura, nas quais o fazer se expressa, o lugar de manifestação por excelência da liberdade e da humanização do homem. Essa humanização se

266 Id., Experiência e Cultura, p. 172 e segs.267 Id., Teoria Tridimensional do Direito, p. 134.268 Id., Pluralismo e Liberdade, p. 34.269 Id., Experiência e Cultura, p.196; id., Teoria Tridimensional do Direito, p.138; id., Filosofia do Direito, p. 204 e segs.270 Id., Verdade e Conjectura. Lisboa: Fundação Lusíada, 1996, pp. 74-75.271 GARCIA, A. M., op. cit., p. 89.272 REALE, M., Experiência e Cultura, p. 196.

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expõe como afirmação da pessoa, tanto como sujeito individual quanto como participante da vida coletiva, da comunidade.

No livro Experiência Cultura273, Reale trata da correlação entre liberdade e cultura. Ato de transcendência, característico da vida intencional da consciência, a cultura é a objetivação da vida do espírito e expressão da liberdade. Esta é ins-tauração de um mundo, cujo correlato, no âmbito do sujeito individual, consiste no reconhecimento de si como um valor. Liberdade não é, assim, apenas livre-arbítrio, mas consciência de motivos e superação da facticidade, abertura per-manente a novos modos de ser. Com Lavelle, Reale afirma o laço entre liberdade, posibilidade e temporalidade; com Ferreira da Silva, Reale converge mostrando o laço entre liberdade e vida criadora (ibid., p. 210). É por ser livre que a pessoa humana se apresenta “como centro polarizador da experiência cultural”, diz nos-so autor, evocando Georges Bastide; e é como ser livre que se expressa no tempo, como bem viu Bergson, que o homem não dispõe ´de um feixe pré-ordenado de valores ou de acontecimentos” mas “assume em si e por si os riscos de suas opções” (ibid. p. 211).

A vida cultural implica, assim, na participação criadora do homem; apresenta-se como uma “ aventura”, decifrando “ sempre caminhos inesperados” que su-põem, de um lado, valorização da tradição e de outro, ousadia e orientação da vida política que garantam a coexistência de pluralismo e liberdade (ibid., p. 212).

Considerada na sua dimensão social, a liberdade é entendida por nosso autor como participação274. O texto, ulterior à primeira versão do Experiência e Cul-tura, parte da consideração das transformações sociais e políticas da sociedade contemporânea, que mostram uma tendência ao concreto, à interdisciplinari-dade, à busca de uma visão de totalidade que integre as diferentes perspectivas a respeito do mundo e do homem, sem anular a sua pluralidade e diferença. A tendência de buscar a convergência e a possível complementaridade das pers-pectivas, de modo a ultrapassar oposições radicais e conflitos, expressa, na visão de nosso autor, a liberdade do homem, compreendida à luz de uma ética da situ-ação, que valoriza a circunstancialidade humana, numa perspectiva análoga à de Ortega e, no plano da Filosofia do Direito, à de Ricasens Siches.

273 Id., Expérience et culture. Bordeaux: Ed. Bière, 1990, p. 209 e segs. Utilizamos aqui a edição francesa, revista e ampliada em relação à edição brasileira, SP: Grijalbe / USP, 1977.274 Id., O homem e seus horizontes. SP: Convivio, 1979, cap. V, p. 91 e segs.

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aspectos da teoria da justiça em reale e Braz teixeira

A justiça, compreendida como virtude e como instituição, é o ponto axial das meditações de Miguel Reale e de Antonio Braz Teixeira, no âmbito da Ética e da Filosofia do Direito. Na intersecção da Ética e Política, Ética e Direito, o tema é abordado numa perspectiva histórico-crítica, pelos dois pensadores.

Para Reale, na sua Filosofia do Direito, o termo aparece relacionado com as noções de bem comum, alteridade e valores, e é enfocado numa perspectiva his-tórica, que parte de Aristóteles e desemboca na discussão das principais teorias contemporâneas.

Para Braz Teixeira, no texto Sentido e Valor do Direito, a justiça é a ques-tão filosófica central do Direito, enquanto “valor ou princípio de que o Direito depende”275. Desta forma, o Direito converge com a Ética, na meditação sobre a justiça, embora a abordem de modos diversos.

Nos dois autores, a questão da justiça é o ponto nodal que articula o Direito, a Axiologia e a Ética; em ambos,no plano ontológico, a reflexão sobre a justiça põe em relêvo a consideração do homem como pessoa e as relações interhumanas.

Reale, na meditação sobre as relações entre justiça e bem comum, mostra o estreito vínculo entre pessoa e sociedade, apoiando-se em Aristóteles, Scheler e Unamuno. Para êle, a pessoa é o valor – fonte do Direito, uma vez que na sua Axiologia Jurídica busca o justo como o valor mais alto, entendendo-o como “a coexistência harmônica e livre das pessoas segundo proporção e igualdade”276.

A justiça é expressão do bem comum, intersubjetivo, e seu pressuposto é o valor da pessoa humana, da liberdade, como fundamento da ordem jurídica. Para nosso autor, a experiência jurídica é histórico-cultural, “de natureza ética” e “normativa”, e “tem como valor fundante o bem social da convivência ordenada, ou o valor do justo” (ibid., p. 248).

Direito e Moral, Direito e Ética são, contudo, distintos; para o filósofo, “a Mo-ral cuida, de maneira direta, imediata e prevalecente, do bem enquanto indivi-dual e (...) o Direito se preocupa, de maneira direta, imediata e prevalecente, do bem enquanto do todo coletivo, isto é, do bem comum ou justiça” (ibid., p. 249). A Ética abarcaria a Moral e o Direito, sendo a “ciência normativa da conduta ou do comportamento humano”.275 BRAZ TEIXEIRA, A., Sentido e Valor do Direito, Lisboa, INCM, 2000, p. 38.276 REALE, M., Filosofia do Direito, São Paulo, Saraiva, 1975, vol.1, p. 247.

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A justiça, considerada como virtude, é mostrada em Aristóteles, Santo Tomás e os juristas romanos; hoje, o sentido que o termo assume tem, segundo Reale, um caráter objetivo, institucional, designando a ordem social que realiza o bem comum, segundo a liberdade e a igualdade (ibid., pp. 250-251). Optando, contra o individualismo e o coletivismo, por uma concepção personalista do homem, Reale afirma que a plenitude deste é a pessoa, e nesse valor fundamenta o seu culturalismo jurídico, no qual o tema da alteridade ocupa um lugar exponencial.

Para o nosso autor, a idéia de pessoa implica um elemento ético, na medida em que, sendo um “eu”, acha-se em relação com outros “eus” e reconhece seu valor. Daí o filósofo afirmar: “... a relação de um’eu’ com outro ‘eu’ (alteridade) é o fundamento da Ética”277. Nosso pensador se apoia na Escola fenomenológica, recorrendo, para suas análises, principalmente às obras de Scheler. Afirma a pes-soa como valor supremo, em torno do qual gravitam constelações axiológicas, apoiadas no verdadeiro, belo, útil, santo e bom, sendo este último valor ligado à Ética, Moral e Direito278.

A dimensão pessoal funda a dignidade do ente “que é e deve ser, tendo cons-ciência dessa dignidade” (ibid., p. 192). Para Reale, “o homem [é aquele] cujo ser é seu dever ser” (ibid., p. 193); é quem institui, com sua atividade criadora, um mundo “à sua imagem e semelhança”, o mundo da cultura. A pessoa, como “autoconsciência espiritual, é o valor que dá sentido a todo evolver histórico, ou seja, o valor a cuja atualização tendem os renovados esforços do homem em sua faina civilizadora” (ibid., p. 194).

É nesse valor e na consideração da relação pessoa-sociedade, pessoa-alterida-de, que o autor fundamenta a teoria do culturalismo jurídico personalista (ibid., pp. 200 e 254). Criador de cultura, de bens, o homem tutela o que cria, o que re-aliza. O Direito consiste nessa busca de tutelar os bens, expressando o justo, isto é, a harmonia entre “liberdade, normatividade e poder” (ibid., p. 199). Enquanto instituição, a justiça é a expressão dos valores de convivência; “pressupõe o valor transcendental da pessoa humana”, fundamentando toda a ordem jurídica (ibid., p. 247). Realizando o justo, o Direito expõe a sociedade como comunidade con-creta, comunhão de fins, cooperação e coexistência de pessoas, e ordena o “bem social ao bem comum”, visando a “justiça nos limites das circunstâncias histórico-sociais” (ibid., vol. 2, p. 621).

Combinando a abordagem histórico-crítica, a descrição fenomenológica e a hermenêutica, Reale estabelece sua teoria da justiça, ponto de encontro da Axio-logia, Ética e Direito.

Braz Teixeira aborda o tema da justiça na sua correlação: a) com a Filoso-fia do Direito, uma vez que aquela constitui a finalidade desta; b) com a Ética

277 Id., ibid., p. 254. Ver tb. REALE, M., Verdade e Conjectura, Lisboa, Fundação Lusíada, 1996, passim.278 Id., Filosofia do Direito, p. 215.

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– distinguindo-a da Moral –, uma vez que a Ética Social aborda o problema da justiça, confluindo, assim com a Filosofia do Direito; c) com a Axiologia, dado que o valor justiça constitui o fundamento do Direito; d) com a Ontologia, posto que esta reflete sobre o homem como pessoa, consciência e liberdade, capaz de relações intersubjetivas e de criação de cultura.

A meditação do pensador português inscreve o tema da jusiça no contexto mais amplo da discussão sobre o sentido e o valor do Direito, partindo de uma caracterização da ontologia do Direito e desembocando numa reflexão sobre o conteúdo axiológico que o caracteriza.

A metodologia histórico-crítica empregada por nosso autor o leva, no exame da ontologia do Direito, a perpassar as orientações contemporâneas a repeito do assunto, para, em seguida, estudar as convergências entre a Filosofia do Direito e a Antropologia Filosófica, no que tange às relações entre o homem e a cultu-ra. Para o filósofo, “o Direito é uma realidade radicalmente humana (...) num duplo sentido: (...) é criação do homem e (...) refere-se direta e exclusivamente à vida do homem”279. O homem, ser de conhecimento e ação, orienta-se por valores, dentre os quais o verdadeiro, o belo, a justiça e a liberdade são os mais importantes. No exame do tema, Scheler e os autores da Escola fenomenológica são frequentemente citados, de modo que as fontes utilizadas por nosso autor confluem com as utilizadas por Reale. Mas estão presentes, também, além de Scheler, Hartmann, Ortega, autores como Romero, Cassirer, Berdiaeff, Zubiri, Buber, os portugueses Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra, o brasileiro Vicente Ferreira da Silva.

Para Braz Teixeira, o homem é pessoa, realidade espiritual, valor e fim em si, expressão do espírito e da liberdade (ibid., p. 116); é, ainda, um ser social, dialó-gico, cujo verdadeiro mundo é o “da relação ‘eu-tu’” (ibid., p. 117).

Mostrando as possibilidades de aproximação e também a distinção entre Éti-ca e Direito, põe em relêvo o tema do justo, critério de valor para solucionarmos os inelutáveis conflitos de interêsses que ocorrem na vida social.

Caracterizado pela sua dimensão axiológica, pois pressupõe a liberdade e re-gulamenta condutas segundo princípios e valores, o Direito tem também uma dimensão temporal, histórica. Daí o filósofo dizer: “Partindo da Justiça como princípio, valor ou ideal, o Direito é, pois, o meio de que o homem se serve para alcançar uma adequada ordenação de sua conduta social com o fim de coordenar o exercício da liberdade de cada um com a liberdade dos restantes, realizando, desse modo, o bem comum da sociedade política” (ibid., pp. 136-137).

Se o Direito converge com a Moral e a Ética, é, contudo, distinto destas. Or-dem normativa, como o Direito, a Moral tem por objeto “o conhecimento de como se comportam os homens (...) [é] ciência dos costumes...”, enquanto a Ética

279 BRAZ TEIXEIRA, A., op. cit., p. 103.

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é “ciência especulativa sobre o dever ser da conduta em função do Bem” (ibid., p. 141).

Examinando o Direito como ordem normativa, Braz Teixeira se afasta tanto dos teóricos que “identificam Direito com a Moral, considerando o primeiro uma parte ou aspecto da segunda “como dos que distinguem radicalmente as duas ordens280.

Nosso autor aponta quatro tópicos de distinção entre Direito e Moral: esta última considera a conduta levando em conta “o sentido que tem para a vida do sujeito”, vinculando-se à consciência individual,à intenção, à interioridade, e “ ao Direito apenas importa o alcance ou a dimensão social dessa mesma conduta”, enquanto leva em conta “ o bem social ou o bem comum”, a exterioridade da conduta (ibid., pp. 145-147).

Ademais, a Moral se caracteriza pela unilateralidade, a sanção íntima, e “o Direito se define (...) pela sua bilateralidade atributiva, em que a cada direito corresponde sempre um dever, e vice-versa” (ibid., p. 221). Mas dialogam, Di-reito e Moral, na medida em que a concepção moral de uma época se expõe no plano jurídico.

A reflexão do filósofo português sobre a ontologia do Direito culmina na Axiologia do Direito. Esta é entendida como meditação sobre o justo natural e a idéia de justiça, discussão sobre o fundamento do Direito.

A abordagem histórico-crítica da idéia de direito natural leva Braz Teixeira a identificar os elementos comuns às doutrinas jusnaturalistas, partindo das con-cepções de natureza, na Antiguidade, Idade Média e pensamento moderno. Para o autor, não se trata de fazer mera cronologia, mas de, prescindindo “de uma visão puramente cronológica e historicista da sucessão das doutrinas...”, estabe-lecer uma tipologia das concepções.

Estudando a questão na filosofia contemporânea, Braz Teixeira perpassa as teorias da escola neo-kantiana, da existencial e de seus críticos, como Kelsen, Bobbio, Alf Ross. Enfoca ainda os autores que discutem a própria possibilidade da existência de direitos naturais, como Hart e a fundamentação do jusnatura-lismo na natureza das coisas, como Reinach, Welzel e Radbruch propuseram, dentre outros.

É importante reter, desse panorama histórico-crítico é que o exame, feito pelo autor português, das concepções tradicionais e modernas, põe em relêvo que “o Direito se inscreve no domínio da cultura e das criações espirituais, apresen-tando, por isso, uma essencial dimensão axiológica, a referência constitutiva e fundante a valores, princípios, idéias ou ideais”. Mais ainda: que o problema da Filosofia do Direito é o problema da justiça, “ (...) entendida como valor, princí-pio, a idéia ou o ideal de que o Direito enquanto ser depende” (ibid., p. 240).

280 Id., ibid. Na primeira perspectiva, nosso autor inclui Dias Ferreira e Farias Brito; na segunda, Thomasius, Kant, Kelsen e Hart.

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A justiça é enfocada como virtude e como princípio, sendo a primeira, a pers-pectiva da Ética e a segunda, a da Filosofia do Direito e da Axiologia. Como virtude diz respeito à ação e às relações interpessoais. Em uma perspectiva histó-rico-crítica ou “ tipológica”, como prefere denominá-la, nosso autor estuda a jus-tiça como princípio, valor ontológico. Confronta tal enfoque com a tradição que, a partir dos sofistas e ressoando em Hume, Bentham, Mill, considera a justiça como convenção humana. Finalmente, apresenta as teorias da justiça no pensa-mento contemporâneo, pondo em evidência que a atualidade do tema se deve às “aporias com que se defronta (...) o pensamento jusnaturalista”, à crise do Estado e à necessidade de se “garantir certos princípios essenciais nas diversas ordens jurídicas” (ibid., p. 250). Reconhece cinco grandes orientações sobre o assunto, na filosofia atual: as concepções emotivistas, representadas por Kelsen e Alf Ross; as formalistas, de que del Vecchio, Perelman e Walzer seriam os expoentes; as historicistas, com Miguel Reale, Robert Nozick; as teleológicas, repesentadas por Luigi Bagolini, Ilmar Tammelo, Emil Brunner, Sérgio Cotta; e, as deontológicas, das quais a mais relevante é a teoria de John Rawls. Aponta também as críti-cas que Rawls recebeu de Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Paul Riceur, de modo a apresentar um vasto panorama do tema.

Estudioso da obra de Reale, que aproxima da del Vecchio “pela sua matriz neo-kantiana”, mostra que o filósofo brasileiro não considera possível “ alcançar uma idéia absoluta de Justiça, independente das conjunturas históricas” e que a justiça “possibilita que os restantes valores valham”, garantindo “uma compo-sição isenta e harmônica de interêsses”, de modo que tratando “igualmente os iguais e desigualmente os desiguais (...) as desigualdades progresivamente dimi-nuam” (ibid., p. 251). Para Reale, segundo Braz Teixeira, a justiça é idéia trans-cendental, cultural e existencial, correlacionada com a de pessoa, “valor fonte de todos os valores”, que se realiza “como intersubjetividade, de que a Justiça é a medida social” (ibid., p. 277).

Braz Teixeira se interessa pela justiça “num sentido objectivo, como valor, princípio ou idela e não subjectivo, como virtude”. Partindo da concepção tradi-cional, inspirada em Aristóteles, põe em relêvo as relações entre justiça e Direito, lei, igualdade, equidade (ibid., p. 282). Para nosso autor, a justiça é o princípio que sustenta o Direito, e este deve ser aferido por aquela. O fundamento da jus-tiça é o respeito à pessoa humana, à sua liberdade de realizar-se como tal. A qualidade dominante da justiça é, então, a afirmação da liberdade, da igualdade. Esta não pode ser entendida como igualdade matemática, mas como igualdade proporcional, imparcialidade, equidade.

O filósofo português identifica justiça e equidade, uma vez que a justiça, sen-do sempre concreta, não pode ter como critério a igualdade matemática, porque não há igualdade real de condições e oportunidades, nem a lei, dada a generali-dade que que caracteriza esta última (ibid., p. 288).

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O exame do tema prossegue, na obra de nosso autor, através da consideração dos atributos da justiça, sua gnoseologia e sua relação com outros valores.

Atributos da justiça são a insubstancialidade, pois ela é valor-horizonte, nun-ca plenamente realizado; a bilateralidade, uma vez que implica as relações inter-humanas; a equivalência ou proporcionalidade, equilíbrio entre as partes envol-vidas. Propondo um normativismo concreto, Braz Teixeira afirma que são mais importantes, na realização da justiça, o juiz do que o legislador, a jurisprudência e o costume que a lei e a norma.

Sendo valor, princípio, a justiça não é objeto de um conceito, de uma defini-ção, mas deve ser apreendida na existência, de modo intuitivo-emotivo. Relacio-na-se “com a ordem, a paz, a liberdade, o respeito pela personalidade individual, a solidariedade ou a cooperação social e a segurança” (ibid., p. 290).

A meditação metafísica sobre a justiça, que é o objetivo último de nosso au-tor, implicaria a interrogação sobre Deus, o mal, a discussão das “relações entre Justiça e a caridade”, a ontologia da liberdade, de modo a se compreender o tema no horizonte do significado do homem no universo.

Nos dois filósofos, Reale e Braz Teixeira, a reflexão sobre a justiça tem como denominador comum a referência à obra de Scheler, à fenomenologia existen-cial. Para ambos, a pessoa humana é o ponto focal: é o valor fonte de todos os demais valores, segundo Reale; é o valor que possibilita ao homem sua realiza-ção, assevera Braz Teixeira. Os dois reconhecem, assim, o homem como o polo de referência do tema da justiça.

Reale desdobra sua reflexão no horizonte de uma meditação sobre a cultura, cuja finalidade é expressar o bem comum, a dimensão espiritual e criadora do homem. Braz Teixeira aprofunda sua discussão do assunto, inscrevendo-a no horizonte de uma metafísica de cunho existencial, que põe em primeiro plano as relações do homem com o mundo, com os outros e com Deus.

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a filosofia do Direito em aquiles Cortes Guimarães

Aquiles Cortes Guimarães nasceu em 1937 em Aimorés, Minas Gerais. Bacha-rel em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense, fez o Mestrado em Filoso-fia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1977 e doutorou-se em Filoso-fia pela Universidade Gama Filho, em 1982. Foi professor da UERJ e coordenador do Mestrado em Direito desta Universidade, de 1988 a 1992. E coordenador da pós-graduação em Filosofia da UFRJ, de 1987 a 1999, onde leciona atualmente.

Estudioso da fenomenologia husserliana, propõe uma interpretação da feno-menologia jurídica, inspirando-se em Husserl, Scheler e integra, na sua inter-pretação, alguns conceitos importantes de Miguel Reale, como o de invariantes axiológicas, bem como algumas contribuições de Ricoeur, no que tange à medi-tação sobre o justo.

Preside o conselho editorial da revista Fenomenologia e Direito, da Escola de Magistratura Regional Federal da 2ª Região EMARF, editada em cooperação com o programa de pós-graduação em Filosofia da UFRJ, o qual conta com con-tribuições de especialistas brasileiros e estrangeiros de renome internacional.

Na obra Lições de Fenomenologia Jurídica editada em 2013281, estão reunidos seus trabalhos sobre Fenomenologia e Direto.

Vamos nos ater à apropriação das perspectivas husserlianas feitas pelo autor brasileiro, de modo a evidenciar os conceitos-chave que utilizará para elaborar uma teoria fenomenológica do Direito que integra, numa perspectiva original, a inspiração husserliana e a recente evolução da fenomenologia na direção de um diálogo com a ontologia hermenêutica, com pontos da analogia com a via ricoeuriana.

O ponto de partida de Cortes Guimarães é a caracterização da fenomenologia de Hussel, situando sua contribuição para a filosofia do século XX. O pensador alemão é considerado por Cortes Guimarães como “o filósofo mais produtivo e original do século XX” (ibid., p. 1), cuja influência repercutiu durante todo o século passado e continua a ressoar na filosofia do início do século XXI.

É examinando a filosofia contemporânea que Husserl se referirá, nas Investi-gações Lógicas, escritas entre 1900 e 1902, à exigência da superação dos impasses da filosofia da época, marcada pela redução do saber a um pensar do tipo cientí-fico, caracterizado pela razão calculadora e técnica. 281 GUIMARÃES, A. C., Lições de Fenomenologia Jurídica. RJ: Forense Universitária/GEN, 2013.

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É sob o signo da crise, não apenas da razão, mas da humanidade, assinalada na célebre conferência de Husserl A Crise da Humanidade Europeia e a Fenome-nologia e também no A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Trans-cendental, que se desenvolverá a reflexão do pensador brasileiro.

A crise assinalada por Husserl consiste, diz Cortes Guimarães, na “matemati-zação e logicização do mundo”; na desnaturação do real. Para superá-la, Husserl propõe o retorno “às coisas mesmas”, sem pressupostos, considerando o que é dado à consciência, no seu aparecer perante ela. Trata-se, para o pensador ale-mão, de fazer da filosofia uma “ciência de rigor não mais comprometida com quaisquer atitudes especulativas e abstratas” (ibid., pp. 2-3), mas com o mundo real, tal como este se mostra à consciência intencional, isto é, à consciência en-quanto tende para o mundo, considerado o correlato de seu existir, o polo atra-tivo de seu contemplar.

A obra de Husserl é uma severa crítica da crise epistemológica do final do século XIX, que o conduziu a repensar o papel da filosofia perante o saber cien-tífico. Husserl viveu na época caracterizada pelas especulações que conduziram ao surgimento do neo-positivismo do Círculo de Viena.

Para Husserl, fazer da filosofia uma ciência de rigor é buscar os fundamentos do conhecimento filosófico, postulando a problemática epistemológica do “vol-tar às coisas mesmas”, eliminando o peso da tradição, da história e da cultura para apreender o objeto na sua essência, no seu eidos ou idéia. A característica do sujeito humano, consciência que apreende o mundo, é estar sempre relacionado com as coisas; é tender para o mundo, ser intencional. A intencionalidade da consciência é a característica que faz com que só exista mundo para uma consci-ência, que por sua vez só existe como polo doador de sentido.

Husserl chama de noema, objeto intencionado, essa permanência do mundo como o que aparece para a consciência. A atividade própria do sujeito, enquanto sujeito cognoscente, é chamada por Husserl de noésis. O par noésis-noema pos-sibilita a descrição do mundo como fenômeno, como aparecer que no próprio manifestar-se revela a sua essência (eidos) (ibid., p. 12).

Fenomenologia é pois a atitude filosófica da descrição dos fenômenos me-diante um método, que parte da correlação entre a consciência e o mundo, afir-mando só existir consciência como testemunha de um mundo e mundo como o intencionado pela consciência, expondo a essência universal, o eidos, presente nos objetos intencionados, nos fenômenos que aparecem à consciência.

Descrever as essências dos objetos, do que aparece à consciência, é eliminar as significações acessórias envolvidas nos “objetos e mostrá-los na sua visada universal e necessária” (ibid., pp. 8-9; p. 12).

Husserl propõe a volta “às coisas mesmas”, para apreendê-las no seu aparecer originário à consciência doadora de sentido, descrevendo o invariante originário

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presente em toda manifestação: “Doar sentido significa (...) um empreendimento de redescoberta do mundo.

O que é a essência do mundo assim abordada? É a “ideia universal sobre os objetos”, apreendida no que é dado à consciência enquanto intencionalidade (ibid., p. 12).

Husserl, diz Cortes Guimarães, no A crise das ciências europeias..., no A filo-sofia como ciência de rigor, fala da epoché, da suspensão do juízo sobre o objeto, que significa no que tange ao sujeito cognoscente, recusar a tradição, as ideias pré-concebidas e tentar intuir diretamente o que à coisa é; no que diz respeito ao mundo, epoché significa deixar de lado os seus aspectos imediatos e empíri-cos, para alcançá-lo como noema, “unidade significativa ‘descoberta’ pela noésis”, pela intuição.

Assim, diz Cortes Guimarães, no pensar husserliano, “intuição e intenção operam juntas”. A intenção da consciência se dirige aos objetos, dos quais des-crevem as essências como expressão “de conexões universais e invariáveis nos objetos” (ibid., p. 13).

Há, no pensar husserliano que pretende fundar A filosofia como ciência rigo-rosa, a busca de critérios para alcançar seu objetivo. Não basta a epoché, a sus-pensão do juízo que “põe entre parênteses” os significados empíricos do objeto, para voltarmos “às coisas mesmas”, na sua pureza originária. É preciso que a descrição das essências apreenda o eidos, a ideia presente nos fenômenos que se mostram à consciência e que nesse aparecer patenteiam seu ser. Trata-se, então, de apreender o mundo, não na sua materialidade imediata, mas como dado.

Trata-se de buscar, nas diferentes perspectivas sobre os fenômenos, que ex-pressam o testemunho dos sujeitos individuais acerca do mundo, os denomi-nadores comuns a essas descrições, os invariantes presentes nas descrições do mundo. Esses invariantes constituem o eidos, intuído nos diferentes objetos que se mostram à consciência. É preciso alcançar o mundo como ideia, a partir das vivências originárias que o homem tem dele. Trata-se de dizer o eidos, tal como aparece não mais apenas para as consciências individuais, mas para o Eu Trans-cendental – que não é ninguém em particular, mas o nome que Husserl dá à função do conhecimento da espécie humana.

Afirmando que o método de Husserl é de uma grande fecundidade, servindo “a todas as vertentes do saber” (ibid., p. 16), Cortes Guimarães trata de aplicá-lo ao campo do Direito, visando apreender o seu eidos.

No emprego habitual do termo feito pelos juristas, o objeto do Direito é “a norma, o regulamentado, o estatuído” pelo Estado, como garantia última da jus-tiça e da segurança dos bens.

Perguntando “o que é o ser do Direito?”, Cortes Guimarães assinala que o ser do Direito é definido pela sua finalidade: “abrigar a justiça” (ibid., pp. 16-17); in-

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daga também como os objetos constituídos no campo normativo se expressam.Para nosso autor, objeto jurídico são as Instituições do Direito e todo o univer-

so que passa ser submetido “à visada e ao controle da ordem jurídica”, tudo que possa ser descrito como “universo da vivência jurídica”, ou seja, como perten-cente ao “mundo da vida do Direito” (ibid., p. 17). É nesse horizonte que deve ser investigada a essência do Direito e desdobradas suas significações.

Cortes Guimarães transpõe, como parece evidente, o conceito de Lebenswelt husserliano ao campo dos objetos jurídicos, propondo o mundo da vida do Di-reito como campo próprio de investigação do filósofo do Direito.

A intencionalidade da consciência visaria, aqui, o desvelamento da essência dos objetos jurídicos a partir do seu aparecer concreto, as normas. Para tanto, é preciso investigar, diz nosso autor, “o que faz com que o Direito seja Direito (...)”; “Descobrir o sentido do Direito”, mediante a “compreensão e interpretação da vivência jurídica” (ibid., pp. 18-19).

O Direito, no seu aparecer, mostra-se como sustentáculo da ordem jurídica, assegurando a possibilidade de convivência entre os homens, numa sociedade caracterizada pelo conflito inelutável de perspectivas e interesses.

O jurista diz como funciona a ordem jurídica; o filósofo esclarece os senti-dos dessa ordem, voltando-se para a apreensão de sua essência, embora partin-do “dos fatos ou atos [aos quais essa ordem] se destina” (ibid., p. 19). Trata de compreender e investigar o Direito em vista de sua finalidade: “a realização da justiça” (ibid., p. 23).

Para Cortes Guimarães, a hermenêutica jurídica é “uma derivação da (...) hermenêutica aplicada”, vista à luz do pensamento hermenêutico “de Heidegger, Gadamer e Paul Ricoeur” (ibid., p. 25), que orienta a leitura do processo históri-co pelo qual passamos e que se caracteriza pela busca de compreensão da vivên-cia contemporânea em geral e não apenas “da vivência jurídica” (ibid., p. 27).

Partindo da crise histórica vivida por Husserl, que levou o grande pensador e refletir sobre o significado da crise da razão que se apresenta no início do século XX e a propor uma nova tarefa para a filosofia, relegada esta como o fora pelo positivismo e cientificismo à mera função de crítica das ciências, Cortes Guima-rães repassa os conceitos fundamentais da fenomenologia husserlliana. Assim, contrapõe doxa e episteme, assinalando os termos novos que Husserl empregou, e os utilizando para examinar a essência do Direito: fenômeno, intencionalidade, objeto intencional, redução eidética, redução fenomenológica, redução trans-cendental, eu transcendental, mundo da vida, intuição, epoché, noesis, noema.

Para ele, a essência do Direito é expressa, antes de mais nada, pelo sentimento do Direito, que busca a realização da justiça a partir da pré-compreensão do justo e do injusto. Diz nosso autor: “A essência do Direito não está na lei, mas na ideia

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de justiça” (ibid., p. 42), que reconhece o valor da pessoa humana e se mostra através de regras de conduta que favorecem a realização do justo como valor.

A proposta de Cortes Guimarães é elaborar uma teoria fenomenológica do Direito, centrada na apreensão de uma eidética do Direito. Ciência cultural, o Di-reito funda-se no pressuposto de uma eidética – termo grego usado por Husserl e que significa ideia, conteúdo inteligível, reconhecimento intuitivo das essências. A eidética sustenta o Direito. Trata-se de assegurar, de viabilizar a coexistência entre seres humanos “como polo de significações a partir do qual é estruturada a ordem jurídica (...) esquema normativo de vida dos povos civilizados” (ibid., p. 178).

A ordem jurídica é o conjunto de normas que o Estado dita, a partir do Direi-to, buscando realizar “a ideia do Direito e o ideal de justiça” (ibid., p. 179). Para alcançar tal resultado, é preciso investigar o que é o Direito, desvelar as estrutu-ras ideais e necessárias que subjazem à sua expressão como fato e como história, ou seja, como fenômeno de vida social.

Fazendo a epoché da dogmática jurídica, Cortes Guimarães busca compreen-der o fenômeno jurídico na sua manifestação originária: assegurar a existência humana como coexistência.

No seu aparecer fenomênico, o Direito se mostra na sua positividade; mas na sua significação, o universo jurídico se mostra como aquilo que visa possibilitar uma coexistência pacífica e civilizada entre os homens, nas sociedades que se caracterizam pelo conflito. O ver fenomenológico, ao apreender os problemas ju-rídicos, aborda não apenas o Direito atualmente vigente, mas também considera as teorias sobre o Direito que emergem ao longo da história. Trata, assim, de evi-denciar os sentidos que as teorias jurídicas imprimiram “às instituições ordena-doras das relações intersubjetivas” (ibid., pp. 188-189). O que Husserl pretendia era fundamentar, não só a filosofia, mas “as ciências do espírito ou da cultura, às quais pertence o Direito” (ibid., p. 191), diz o pensador brasileiro.

Contrapondo-se às teorias vigentes na segunda metade do século XIX: na-turalismo, cientificismo, positivismo, que enfatizavam o método das ciências empíricas como único método válido para a constituição de um saber científi-co, Husserl evidenciou “a riqueza infinita da intencionalidade da consciência”, fazendo a crítica dos fundamentos do conhecimento científico que encobriam o mundo da vida e reduziam o conhecimento das ciências humanas a novas especulações sem rigor.

Para Cortes Guimarães, uma teoria fenomenológica do Direito, inspirada em Husserl, deve considerar os fenômenos jurídicos como se manifestam. Estes ex-põem a existência de uma “razão legisladora” que “ordena os sistemas jurídicos” à luz do “mundo do dever-ser” (ibid., p. 197).

Os problemas centrais da teoria fenomenologia do Direito na opinião do pensador brasileiro são os seguintes:

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- estabelecer laços entre a universalidade dos fenômenos jurídicos apreen-didos “nas suas essências e significados e a singularidade dos indivíduos que constituem a teia das relações jurídicas”.

- buscar o encontro das verdades sentidas, expressas nas conexões das essências com a estrutura normativa que os regula” (ibid., p. 199).

O campo do Direito, a “região ontológica” que ocupa, é o que abriga os “ob-jetos revestidos de juridicidade” (ibid., p. 201). Que é a juridicidade? Não é só a qualidade do que é jurídico; “é o foco intuitivo da essência mais universal do Direito (...) a essência suprema que orienta as conexões de essências nos planos factuais, normativos e hermenêuticas, na explicitação dos modos de ser dos ob-jetos jurídicos” (ibid., pp. 201-202).

Um fato é jurídico porque na sua essência está conectado com a juridicidade; a norma só efetiva a juridicidade no âmbito das relações jurídicas. A referência da juridicidade não é só o Direito, “mas o ideal da justiça, concebida como uma estrutura de valores”, alcançada numa intuição emocional que sustém o justo.

A juridicidade é o ato da consciência valorativa, desvelado no mundo da vida. Provém da intencionalidade valorativa, que explicita “a tessitura normativa re-ceptiva de valores” (ibid., p. 204). Ela é a garantia da normatividade; é a medida do justo, quando confere caráter jurídico à conduta humana (ibid., p. 205). E ainda: “O que confere legitimidade à positividade normativa do sistema jurídico é a ideia de juridicidade como essência do justo (...). Por isso (...) toda norma in-justa carece de juridicidade, porque desvinculada da essência do justo” (ibid., p. 207). Daí Cortes Guimarães afirmar que a juridicidade é “a medida (...) da justiça possível, ou do justo como valor” (ibid., p. 212).

A fenomenologia é, para nosso autor, uma via para a compreensão da estru-tura significativa dos fatos, ao descrever seu conteúdo axiológico. Permanentes, os valores expõem as essências imutáveis dos objetos, intuídas emocionalmente. Deste modo, o problema da realização dos valores torna-se a questão central da hermenêutica jurídica. Trata-se de incorporar os valores nas leis (ibid., p. 215) de modo que a vida jurídica se mostre como uma tessitura de regras legais destina-da a garantir e expressar valores que são progressivamente desvelados ao longo do processo civilizatório (ibid., p. 218).

As normas visam à justiça, sua realização no mundo concreto. À hermenêu-tica jurídica cabe assinalar os princípios que fundamentam as constituições e garantem a cidadania e a paz social.

Para Cortes Guimarães, o fio condutor de sua teoria fenomenológica do Di-reito é a ideia de juridicidade, que legitima as relações jurídicas no plano dos fatos (ibid., p. 221). Graças a esse conceito, é possível distinguir entre legalidade e legitimidade. Legítimo é o que favorece a coexistência pacífica entre seres huma-nos, tornando o Estado de Direito a via para a realização do justo. A lei é neces-

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sária, porque no mundo de facticidade, ela é a garantia de solução pacífica dos conflitos, de modo a preservar a liberdade de cada um e de todos. Mais ainda: “A formação do Direito é descobrir, perceber e preservar valores” (ibid., p. 224), uma vez que o que fundamenta os sistemas jurídicos é o valor.

Daí Cortes Guimarães dizer que os valores se integram no sistema jurídico através da teia normativa, meditada por uma razão jusfilosófica que apreende o caminho possível para superação dos conflitos; daí valores como vida, liberdade, honra, dentre outros, exigirem a proteção jurídica.

A tarefa de uma fenomenologia do Direito, na reflexão de Cortes Guimarães, está fundada na “fenomenologia de Edmund Husserl (...) mas também nas in-vestigações (...) de seus discípulos Max Scheler (...) e Nicolai Hartmann” (ibid., p. 228).

Entendendo a vida, liberdade, consciência como pilares do direito natural, fundamentando o próprio Direito como instituição, Cortes Guimarães mostra que essas noções constituem, no campo do saber jurídico, exigências irrecusáveis e princípios auto-evidentes, que põem em relevo a dignidade humana e o valor da coexistência.

Referindo-se à dignidade da pessoa humana, nosso autor afirma que o signi-ficado da justiça se apoia nesse valor. Pessoa é o homem, indivíduo único, irrepe-tível, valor-fonte. Seu direito decorre de sua estrutura ontológica e não das leis.

Em resumo, na fenomenologia do Direito de Aquiles Cortes Guimarães, a problemática epistemológica que põe a questão: que é o Direito e qual seu valor como saber?, inspira-se na meditação husserliana, na fenomenologia de Scheler, na tradição kantiana e na reflexão de Miguel Reale sobre Invariantes axiológicas. Para Cortes Guimarães, falar sobre a fundamentação do Direito é falar sobre o homem como pessoa, capaz de distinguir valores, de ser-com-os-outros, de ser-no-mundo e nele construir sua apreensão da justiça como o que torna imperati-vas a lei e a norma.

O esforço sempre renovado, por parte do homem, ao longo de seu existir no tempo, de expressar civilização, liberdade e convivência pacífica, apesar da pre-cariedade constitutiva de seu ser e dos conflitos inelutáveis que encontra, quan-do busca superar essa fragilidade – é o desafio essencial com que se depara desde os primórdios da humanidade.

A fé na razão, na dignidade e valor do homem, a busca da justiça são os cami-nhos que afirmavam, ao longo da história o valor e o sentido do Direito.

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o conceito de razão atlântica em antónio Braz teixeira

I. IntroduçãoO pensamento de António Braz Teixeira representa uma das mais interes-

santes contribuições da reflexão contemporânea em Portugal. Capaz de uma amplitude incomum de percepção do cenário actual da Filosofia, nosso autor se inscreve no horizonte e confluência da feno menologia existencial, da herme-nêutica, adoptando uma perspectiva de cisivamente metafísica, de inspiração agostiniana.

O entrelaçamento dessas vertentes ocorre no seu projecto de com preensão do pensamento português e de seu desdobramento no Brasil. Parte da ideia de que a filosofia, embora seja universal como actividade do espírito humano, se expressa como pensar em situação, dialogando com seu tempo e com seu mundo, com os problemas específicos em que cada homem se encontra, num momento dado. Essa expressão acontece através da linguagem e é por meio das diversas línguas que o filosofar expõe seu horizonte de reflexão, de racionalidade.

Enraizado no mundo, é pela mediação de uma língua, de um contexto histó-rico-cultural, que o homem diz a si mesmo sua existência, sua circunstância.

Levando em conta essa característica do ser humano, Braz Teixeira toma como ponto de partida do seu filosofar a condição do homem português e do homem brasileiro, que têm língua e tradição cultural-comuns. Longos anos de estudo de filosofia comparada levaram nosso autor a ser um dos idealizadores e fundadores do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira cujo foco de atenção é o exame dos pontos de convergência e também das diferenças entre o filosofar dos dois países.

Além da consideração dos pontos de convergência dessas filosofias, tanto ao longo dos séculos de história comum, quanto na contemporaneidade, Braz Tei-xeira trata de elencar os autores mais significativos que marcaram o diálogo e o confronto de posições, no decorrer do tempo. Procura ainda explicitar a origina-lidade da contribuição desses pensado res à filosofia mundial, bem como estabe-lecer categorias que permitam evidenciar seu enfoque característico.

Uma dessas categorias é a de razão atlântica.Por razão atlântica nosso autor entende uma racionalidade aberta, que en-

globa a razão discursiva, mas também seus pólos complementa res: a intuição, a

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imaginação, o sentimento, a percepção; tal racionalidade caracterizaria a incli-nação marcante, seria o traço distintivo do filosofar em Portugal e no Brasil. Seu pressuposto é que o real é cognoscível e que a realidade não se esgota na alçada da experiência sensível e imediata, mas aponta para o invisível, a radical origem, «o mistério ou o enigma, no qual e pelo qual o ser e a verdade, simultaneamente se ocultam e patenteiam ao espírito do homem»282. Tal racionalidade supõe a dimensão metafísica como contrapartida invisível da realidade visível. Apoia-se nas contribuições da experiência, nas suas múltiplas formas; na sensação, intui-ção e imaginação, estabelecendo um laço com o irra cional pré-reflexivo, mas também com o transracional, com a investiga ção sobre o ser e a verdade.

Recorrendo a D. Duarte, que no século xv aponta a saudade como a dimen-são característica de um «saber do coração», especificamente português, nosso autor mostra a ampliação desta ideia na nostalgia do divino, posta exemplar-mente por Camões, Frei Agostinho da Cruz, D. Francisco Manuel de Melo, e por uma filosofia da história providencialista, de cariz agostiniano, que perpassa a filosofia portuguesa em diver sos momentos.

A dimensão metafísica do real, o problema do sagrado originário, a questão do mal, o recurso ao paradoxo para provocar a superação dos quadros estreitos da razão reflexiva – temas presentes na tradição mís tica cristã medieval – en-contram, na grande poesia portuguesa, de Camões a Pessoa, e nas filosofias de inspiração neoplatónica e agostiniana de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, José Marinho, a expressão de um pensar original.

A razão atlântica é o nome, para Braz Teixeira, de um tipo de pen sar que re-conhece «a profunda e radical relação entre a razão e o irra cional» buscando «a complementar unidade dos aparentes ou supostos contrários numa ontologia do Espírito» (ibid., p. 8), «o diálogo com as múltiplas formas da experiência», pondo em relevo a meditação sobre o amor, «a alegria, a dor ou a saudade» (ibid., p. 9).

Essa racionalidade aberta ao mistério, à transcendência; esse poetar-pensante, onde a filosofia e a poesia se en contram na dimensão criadora da investigação do ser originário e da realização da obra de arte tem sua expressão contemporânea nas filosofias dos brasileiros Vicente Ferreira da Silva e Renato Cirell Czerna e dos portugueses Afonso Botelho, António Quadros, Eudoro de Sousa, Agos-tinho da Silva; na literatura de Guimarães Rosa e Ariano Suassuna e na poesia de Pessoa. Os dois primeiros meditam sobre a relação mito-filoso fia, o sagrado ori-ginário; Afonso Botelho explora «as virtualidades deste novo conceito de razão», que investiga as «formas do irracional por exces so», «o mistério e o enigma», o «radical ponto de partida de todo o pen samento» (ibid., pp. 10-11).

A razão atlântica é o conceito-chave elaborado por Braz Teixeira para a eluci-dação do pensar que se exprime em língua portuguesa. O pressuposto essencial 282 BRAZ TEIXEIRA, A., Formas e Percursos da Razão Atlântica: estudos de filosofia luso-brasileira, Londrina, UEL, 2001, p. 5.

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que o conduz a estudar o que chama de filosofia luso-brasileira é o de que «o pensamento é indissociável da linguagem e de que cada língua contém virtuali-dades especulativas próprias» (ibid., p. 13).

A razão atlântica designa, assim, o pensamento de expressão portu guesa que, em Portugal e no Brasil, refere-se a uma família espiritual enraizada na tradição de inspiração agostiniana, para a qual os temas da tristeza do finito, da graça, da liberdade, da nostalgia do Absoluto, do «saber do coração», falam da permanen-te busca, da itinerância do ho mem, que o coloca face a face com o mistério da origem. Trata-se do reconhecimento, pelo pensar, de um secreto invisível como contrapartida do visível e que constitui seu fundamento e significação.

Para superar a adesão à experiência imediata, tal pensar recorre ao paradoxo, ao mito, ao símbolo, à arte, à meditação sobre o ser, à intui ção, para encontrar a dimensão transcendente, metafísica, do real. Ra zão e imaginação, razão e sen-timento, razão e sensibilidade, aparecem como indissoluvelmente ligados, no itinerário dessa investigação.

II. MétodoA abordagem do conceito de razão atlântica implicou, na obra de nosso filóso-

fo: o estabelecimento de um campo de questões que caracteri zariam a especificidade dessa racionalidade; o exame de uma linguagem inovadora, na qual tais questões seriam formuladas; a identificação de autores cujos escritos apresentariam temáti-cas que permitiriam reconhecê -los como expressão de uma família espiritual, de uma linhagem de pensadores; o exame comparativo dos pensadores identificados, em Portugal e no Brasil, como pertencentes a essa tendência, apontando conver-gências e diferenças entre eles, a contribuição original de cada um.

A noção de razão atlântica é o fulcro dessa reflexão porque, no entender de Braz Teixeira, «a primeira e [...] essencial diferença entre os vários filósofos e as diversas filosofias radica no conceito de razão de que partem ou em que se fun-dam» (ibid., p. 6). Assim também seus denominadores comuns, sua pertença a uma tradição filosófica, podem ser considerados a partir do conceito de razão ao qual se encontram vinculados.

Apontando o laço estreito entre as filosofias brasileira e portuguesa, as quais manifestam a mesma origem cultural, nosso autor estuda «as influências recí-procas das duas filosofias», as «relações profundas existentes entre elas», a partir do pressuposto «de que o pensamento é da linguagem» (ibid., p. 13).

O estabelecimento de um campo de questões fez-se mediante o exame dos ci-clos históricos da reflexão, nos séculos XVIII, XIX e XX, pondo em relevo o kan-tismo, o eclectismo, o espiritualismo, o krausismo, o positivismo, o marxismo, a fenomenologia, o neotomismo, o existencialismo, a hermenêutica, nas suas expressões luso-brasileiras.

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A travessia dessas correntes mostrou que há confluências entre as filosofias brasileira e portuguesa na tematização comum do «Espírito como liberdade, no fundo interesse especulativo pelo sagrado e pela relação entre razão e irracional, na preocupação pelos problemas antropológicos, [...], na versão positivista do marxismo, [...] [na] preocupação […] pela epistemologia e pela filosofia das ci-ências, ou em recente interesse pela hermenêutica» (ibid., pp. 25-26).

Temas como o mistério do mal, a saudade e o sentido messiânico da história, presentes na filosofia portuguesa, ressoam, no Brasil, na literatura de Guima-rães Rosa, Euclides da Cunha, Ariano Suassuna, José Lins do Rêgo, e pouco ou quase nada na filosofia. Questões a respeito da técnica, da historicidade, da alta expressão do positivismo lógico e da filosofia analítica, da fenomenologia e do existencialismo, ao contrário, caracterizariam fortemente a reflexão brasileira e começam a repercutir na filosofia portuguesa.

Apesar das diferenças, a criação de uma linguagem original tem estado asso-ciada a esse campo de questões, expressando-se, em Portugal e no Brasil, expo-nencialmente na filosofia mais recente, nas chamadas Escola do Porto e Escola de São Paulo, termos também lançados por Braz Teixeira. Essa linguagem é o veículo das categorias empregadas no exame das questões; em Braz Teixeira, por exemplo, a palavra-chave é razão atlântica; em Vicente Ferreira da Silva, um dos mais expressivos nomes da filosofia brasileira contemporânea, é a do ser, enten-dido como fascinação; em Eudoro de Sousa, estudioso português radicado no Brasil e por longos anos professor da Universidade de Brasília, é mitologia.

A identificação dos autores representativos dessa linhagem e linguagem, foi levada a efeito segundo duas vertentes: a histórica, que mostrou a vinculação dos pensadores com os movimentos filosófico-literários de seu tempo, identificou as figuras mais expressivas nos diversos ciclos históricos e mostrou analogias entre as posições defendidas ou até mesmo algum relacionamento entre os filósofos portugueses e brasileiros. A segunda vertente consistiu no estudo sistemático dos autores, pondo em relevo «a unidade [...] de seu pensamento [...] o que singu-lariza e define a sua actividade reflexiva» (ibid., p. 13). Essa dupla vertente da abordagem do assunto permitiu a Braz Teixeira evidenciar «os filosofemas, as grandes teses, as tendências profundas e as atitudes comuns a ambas as filoso-fias, bem como aquilo que as afasta uma da outra, definido a sua sin gularidade» (ibid., p. 15).

O diálogo entre os pensadores ocorreu de forma tácita ou directa. Inicial-mente tácito, o diálogo consistiu num paralelismo entre atitudes ou tomada de posição pelos filósofos dos dois países. Assim, a atenção à obra de Kant, assina-lável nas obras de Feijó, Tobias Barreto e Reale, desenvolveu-se numa direcção original, sem analogias com os trabalhos de estudiosos portugueses, tais como Antero de Quental, António Sérgio e Cabral de Moncada, também interessados na obra do mestre alemão.

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Analogias e convergências explícitas ocorreram no ciclo filosófico seguinte, espiritualista, de Portugal e do Brasil. Caracterizou-se pelo impacto, em Portu-gal, do krausismo, em Amorim Viana e do eclectismo em Gonçalves de Maga-lhães. Temas comuns são, dentre outros, «a ideia de Absoluto [...], a importância conferida à percepção [...], um conceito de razão que aceita a racionalidade da fé e da revelação [...], a [...] admissão da imortalidade [da alma] [...], uma visão [...] optimista do universo» (ibid., p. 19).

No final do século XIX o espiritualismo foi amplamente criticado pelo posi-tivismo e pelo cientificismo que caracterizaram a época. A colabora ção directa entre os autores fica evidente através da direcção conjunta da Revista de Estudos Livres, feita pelo português Teófilo Braga e pelo brasileiro Sílvio Romero, conver-gentes na aceitação do «naturalismo evolucionista [...], o relativismo axiológico» (ibid., p. 22), dentre outros aspectos de seus pensamentos.

A atenção crítica à Escola do Recife caracterizou o português Sampaio Bruno, que, com Leonardo Coimbra, do Porto, esteve na origem do mais importante ciclo reflexivo da filosofia luso-brasileira. O diálogo mais sig nificativo entre os pensadores dos dois países iniciou-se no século XX, através da Escola do Porto, «fruto do magistério de Leonardo Coimbra e da tradição iniciada por Amorim Viana e Bruno» (ibid., p. 24), e da Escola de São Paulo, em cuja origem Braz Tei-xeira situa Vicente Ferreira da Silva e Miguel Reale. A actuação se expressou, no caso de Vicente, através da revista Diálogo, na qual colaboraram os pensadores portugueses Delfim Santos, Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva; no caso de Reale, através da fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, em 1949, e da Revista Brasileira de Filosofia, que aglutinou alguns dos mais relevantes autores brasileiros e portugueses contemporâneos.

Nosso autor divide em dois períodos o recente diálogo luso-brasilei ro, que institui o cerne da perspectiva filosófica por ele denominada de razão atlântica. No primeiro ciclo, o diálogo é protagonizado pela Escola do Porto e pela Escola de São Paulo e marcado pela presença, no Brasil, daqueles estudiosos que serão chamados, por António Cândido, de a missão portuguesa283, dentre os quais des-tacamos Agostinho da Silva, Delfim Santos e Eudoro de Sousa.

Esse período caracterizou-se por analogias entre os dois grupos de pensa-dores, inspirados no neokantismo, neo-idealismo, neo-escolástica, fenomenolo-gia e filosofia existencial, rompendo com o positivismo. Formularam também a questão das filosofias nacionais: em Portugal, Álvaro Ribeiro e José Marinho, e, no Brasil, Miguel Reale.

À meditação metafísica aliou-se a reflexão sobre a história da filo sofia em Portugal e no Brasil, assim como o interesse pelo campo da filosofia jurídica,

283 MELO E SOUSA, A. C., “Prefácio”, in LEITE, R. M. e LEMOS, F. (orgs.), A missão portuguesa. Rotas entrecruzadas. Bauru/SP. EDUSC/Editora UNESP, 2003, pp. 15-20.

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pela filosofia da religião, da axiologia, pela reactivação do tomismo, aberto ao dialogo com a filosofia contemporânea, nas Universidades Católicas de Portugal e do Brasil,

O segundo período deu-se a partir de 1974, com a vinda ao Brasil de pensado-res portugueses, iniciadores de cursos sobre o pensamento luso-brasileiro. Ide-alizaram a Enciclopédia Logos, feita em colaboração com estudiosos brasileiros, e fundaram o Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com apoio do Instituto Brasilei-ro de Filosofia, da Universidade Estadual de Londrina, da Universidade Católica Portuguesa e da Universidade Nova de Lisboa. A colaboração assim estabelecida envolveu, de entre outros, António Paim, Miguel Reale, o próprio Braz Teixei-ra, Eduardo Abranches de Soveral, Francisco da Gama Caeiro, Esteves Pereira. Em 1981, em Braga, realizou-se o I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia; em 1990, a Univer sidade Nova de Lisboa organizou um Colóquio em homenagem ao brasilei ro Tobias Barreto. A partir de então, surgiu um projecto de filosofia com parada, visando estudar sistematicamente as relações entre as duas filoso-fias, através de uma sucessão de colóquios, em Portugal e no Brasil, dedicados ao assunto e envolvendo a presença de estudiosos brasileiros e portugueses, de diferentes universidades, Assim, foi realizado cm Recife e Salvador um colóquio sobre a obra de Antero de Quental, sucedendo-se alternada e anualmente coló-quios em Portugal e colóquios no Brasil até hoje. Destacamos alguns desses coló-quios: o dedicado a Miguel Reale; a Vicente Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa; a Sampaio Bruno; a Antônio Vieira e Leonardo Coimbra, Em 2001 foi realizado no Porto, pela Univer sidade Católica Portuguesa, um importante congresso sobre Pensadores Portuenses Contemporâneos, no qual um dos aspectos foi o estudo dos laços entre a Escola do Porto e a Escola de São Paulo284.

ConclusãoO estudo comparado assim levado a efeito pôs em relevo a importância da

expressão razão atlântica, para designar aquele aspecto do filosofar, em Portugal e no Brasil, que Braz Teixeira considera mais con sistente: o da tradição inspirada remotamente no agostinismo, em Joa quim de Flora e na escolástica tomista; e, recentemente, o que surge do dialogo entre neokantismo, fenomenologia, filoso-fia existencial e herme nêutica, com essa tradição.

A razão atlântica é o nome, para nosso autor, de uma racionalidade aberta à imaginação e ao sentimento; uma racionalidade que afirma o transcen-dente e recusa o cientifícismo e o materialismo, em favor da metafísica, da onto-logia ou de um poetar pensante, de inspiração heideggeriana. É o nome de uma racionalidade crítica de nosso tempo, crítica da prioridade da técnica sobre 284 Id., “O Porto e o diálogo filosófico luso-brasileiro”, in Actas do Congresso Internacional Pensa-dores Portuenses Contemporâneos (1850-1950), Lisboa, IN-CM/ UCP, Centro Regional do Porto, 2002, vol. I, pp. 217-242.

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o humano, e afirmativa do valor da pessoa. É o nome, ainda, de uma racionalida-de que propõe, como valo res axiais, o sagrado e a justiça; que chama de saudade a nostalgia do Absoluto, presente no «inquieto coração» do homem.

O estudo pontual, cuidadoso, de autores representativos dessa ver tente de pensamento vem sendo feito por Braz Teixeira há muito tempo.

Desse trabalho paciente resultaram primorosos estudos sobre o tema do sa-grado, em Vicente Ferreira da Silva e em outros pensadores brasileiros e portu-gueses; sobre o Direito e a justiça, em Portugal e no Brasil: sobre a saudade, em Leonardo Coimbra, Afonso Botelho, Dalila Pereira da Costa, Miguel Reale.

A precisão, as intuições luminosas, a aguda percepção de analo gias, no vasto panorama que as obras de nosso filósofo propõem, a partir da categoria-chave de razão atlântica, foram inspiradoras para vários outros estudiosos do pensamento luso-brasileiro. Assinalo a repercussão directa de tal conceito nos escritos da fi-lósofa e poeta Maria Helena Varela, dedicados ao hetero-logos, às microfilosofias atlânticas, às conjunções filosóficas luso-brasileiras, na sua busca de categorias que pudessem expressar a vivência luso-brasileira do mundo e do homem285. E de modo também directo, nos importantes trabalhos de Paulo Borges, sobre o finistérreo pensar, sobre as filosofias atlânticas286, bem como os dedicados a um autor que não apenas simbolizou o diálogo entre os dois países, mas efectiva-mente o viveu, através de sua obra escrita, sua actuação cultural, sua convivência com pensadores brasileiros: Agostinho da Silva, mestre construtor da vida do Espírito.

Assinalo ainda a repercussão desse conceito como fio condutor da magis-tral história da filosofia portuguesa287 dirigida por Pedro Calafate e nos estudos de Manuel Cândido Pimentel sobre filosofia luso-brasileira288. Com Eduardo Abranches de Soveral289, Francisco da Gama Caeiro, Afon so Botelho, José Este-ves Pereira290, António Braz Teixeira é um dos mes tres fundadores dos estudos sobre o pensamento atlântico.

285 VARELA, M. H., O heterologos em língua portuguesa: elementos para uma antropologia filosó-fica situada, Rio de Janeiro, 1996; Microfilosofia(s) Atlânticas(s): confrontos e contrastes, pref. de Jorge Coutinho, Braga, APPACDM, 2000; Conjunções Filosóficas Luso-Brasileiras, Lisboa, Fund. Lusíada, 2002.286 BORGES, P., Do Finistérreo Pensar, Lisboa, IN-CM, 2001; Pensamento Atlântico, Lisboa, INCM, 2002.287 CALAFATE, P., História do Pensamento Filosófico Português (dir.), Lisboa, Caminho / CFUL/ Círculo de Leitores, 1999, 5 vols.288 PIMENTEL, M. C., Odisseias do Espírito: Estudos de Filosofia Luso-Brasileira, Lisboa, INCM, 1996.289 SOVERAL, E. A. De, Pensamento Luso-Brasileiro: estudos e ensaios, Lisboa, Instituto Superior de Novas Profissões, 1996.290 PEREIRA, J. E., Percursos de História das Ideias, Lisboa, INCM, 2004.

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antónio Braz teixeira e a filosofia Portuguesa Contemporânea

O pensamento de Braz Teixeira sobre a Filosofia Portuguesa desdobra-se através de diversos estudos. Examinando o tema inicialmente no horizonte da filosofia jurídica, em A Filosofia Jurídica Portuguesa Actual (1959), O pensamen-to filosófico-jurídico português (1983), Caminhos e Figuras da Filosofia do Direi-to Luso-Brasileira (1991), Filosofia Jurídica Portuguesa Contemporânea (1992), sua reflexão aborda pontualmente alguns autores (O pensamento Filosófico de Cunha Seixas, 1971; O pensamento Filosófico de Gonçalves de Magalhães, 1994), e apresenta um grande painel da filosofia portuguesa, tratando de encontrar seus aspectos axiais, sua especificidade. Dessa caracterização, Filosofia da Saudade (1986); Deus, o Mal e a Saudade (1993); Ética, Filosofia e Religião (1997) e O Espelho da Razão (1997), representam o grande vôo compreensivo.

Identificando correntes e autores, as grandes linhas de panorama da filosofia portuguesa acham-se sintetizadas no capítulo de abertura do livro Ética, Filoso-fia e Religião, intitulado “A filosofia portuguesa do século XX”, ao qual nos ate-remos, para mostrar como se apresenta o seu exame compreensivo. Classificar correntes, identificar autores, interpretar o pensamento, assinalar a relevância de suas contribuições, vinculá-los às temáticas axiais que caracterizam a formu-lação original, a especificidade da reflexão portuguesa, tem sido a grande tarefa em que Braz Teixeira vem se empenhando. Na pluralidade de idéias, autores, publicações, que a efervescência de vida cultural portuguesa apresenta, a leitura de Braz Teixeira possibilita a descoberta de caminhos, a apreensão sintética, a ordenação do magma.

Seu ponto de partida é o reconhecimento dos temas que imperaram na filo-sofia portuguesa do século XIX: Deus, o mal, as relações entre razão e fé, filosofia e religião, razão científica e razão filosófica. Ou seja, o cerne do debate, no século XIX, foi constituído pela reflexão sobre a idéia de Deus e as relações entre filoso-fia e religião, em Portugal.

Hoje, permanecem os temas da origem, extensão e significado do mal, assim como a indagação sobre o sentido e valor ético-religioso do cristianismo. Mas, à medida que o século XX se desenrola a problemática antropológica assume um papel central na meditação filosófica, em Portugal: a questão do homem é relacionada com a meditação sobre a teodicéia, a filosofia, a história, a ética e a filosofia da religião.

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A antropologia filosófica, versando sobre a origem e o destino do homem, refletindo sobre a liberdade, o mal, a morte, a imortalidade, a saudade, não se apresenta como puramente centrada numa perspectiva humanista; antes, acha-se aberta ao cósmico, ao sentido escatológico do homem e do real.

Três gerações de pensadores estarão envolvidas nessa reflexão. Sob a inspira-ção de Guerra Junqueiro (1850-1923) e Sampaio Bruno (1857-1915), e do gru-po da revista A Águia, um movimento denominado Renascença Portuguesa foi o propulsor do mais importante centro de criação, expressão e irradiação do pensamento filosófico. Os mentores dessa renovação filosófica foram Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e Leonardo Coimbra (1883-1936). O movimento ocorreu no Porto, a partir de 1912. Três tendências marcaram seu despertar: o criacionis-mo, representado por Leonardo Coimbra, congregou “numeroso e valioso grupo de pensadores, poetas, ficcionistas e dramaturgos [procurando] reagir, numa li-nha espiritualista (...) contra o positivismo...”291 reinante; o saudosismo, de Tei-xeira de Pascoaes; o naturalismo, de Teixeira Rego (1881-1934).

O grupo da Renascença Portuguesa polemizava também com ilustres mem-bros de duas outras tendências filosóficas: o modernismo, cujo órgão de expressão era a revista Orpheu (1915); dentre os participantes desse movimento, ressalta-mos Fernando Pessoa (1888-1935), Mario de Sá Carneiro (1890-1916), Almada Negreiros (1893-1970). E o racionalismo crítico, cujas figuras de proa foram Raul Proença (1884-1941) e Antonio Sérgio (1883-1969), e cujo órgão de expressão foi a Seara Nova (1921).

Leonardo Coimbra foi o orientador e diretor da primeira Faculdade de Letras do Porto; durante seus doze anos de existência (1919-1931), o pensador “formou aí um numeroso grupo de discípulos, que, sem prejuízo da diversidade de cami-nhos especulativos que cada um deles veio a trilhar, permaneceram sempre fiéis ao seu alto magistério filosófico e espiritual” (ibid., p. 15). A chamada “Escola Portuense” constituiu a segunda geração do movimento da filosofia portuguesa. Abarca os discípulos de Leonardo, entre 1919 e 1931: Sant’Ana Dionisio, Delfim Santos, Augusto Saraiva, Álvaro Ribeiro, Agostinho da Silva, José Marinho.

Apesar da pluralidade de tendências, uma certa perspectiva espiritualista está presente em todos: assim, o ceticismo trágico caracterizou Sant’Ana Dionisio (1902-1991), cujo pensamento evidenciava pontos de acordo com Bruno, Pasco-aes, Proença. Os temas: Deus, mal, imortalidade, sentido de vida, estão presentes em sua reflexão.

Delfim Santos (1907-1966), orientou-se em direção à filosofia existencial, de inspiração heideggeriana; os temas: matéria, vida, existência, caracterizaram sua meditação. A influência de Leonardo, primeiro a se referir a Husserl, Scheler e

291 BRAZ TEIXEIRA, A., “A filosofia portuguesa do século XX”, in Ética, Filosofia e Religião, Évora, Pendor, 1997, p. 10.

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Heidegger no A alegria, a Dor e a Graça (1916) repercute em Delfim Santos e em seus amigos: Antonio José Brandão (1906-1984), primeiro tradutor de Heideg-ger em Portugal, e Eudoro de Sousa (1911-1987), amigo de ambos e que expõe sua reflexão em torno de uma Filosofia da Mitologia e de uma Teodicéia. Anto-nio José Brandão concilia as vertentes fenomenológicas – Scheler, Hartmann, Heidegger – com a tradição aristotélico-tomista, e aborda, como campo privile-giado de interesse, a Filosofia do Direito (O Direito. Ensaio de Ontologia Jurídica (1942); Filosofia do Direito como problema filosófico (1971)).

Outro discípulo de Leonardo, Augusto Saraiva (1900-1975), marcará seus trabalhos pela filiação a uma dialética ideo-realista, que alcança a inteligibilidade do ser reunindo pensamento e ação, homem e universo.

Álvaro Ribeiro (1905-1981) está mais próximo do mestre, propondo uma fi-losofia criacionista, que tem como pontos de referência a meditação sobre o ho-mem, o mundo e Deus. O homem é criatura de Deus, e são a dor, o mal e a morte, conseqüências do pecado original. Razão animada, o homem tem como caracte-rísticas essenciais o conhecimento e a virtude, a linguagem, a liberdade. Apesar da queda e do pecado, a educação e a graça podem resgatá-lo da derilicção. Por sua vez, o mundo é emanação de Deus; sua ordem supõe uma teleologia. Deus é incognoscível e misterioso; só podemos apreendê-lo pela revelação.

Agostinho da Silva (1906-1994), é lembrado por Braz Teixeira a partir da úl-tima fase de seu pensamento, o de um paracletismo franciscano, que propõe uma ética fundada na obediência e no amor, em vista da redenção e do encontro do homem com Deus (Dispersos, 1988; Educação de Portugal, 1989).

Finalmente, José Marinho (1904-1975), com sua Teoria do Ser e da Verdade, representou “a realização daquela ontologia do Espírito que era o escopo da me-ditação leonardiana” (ibid., p. 19), e retoma, sob a inspiração das metafísicas de Bruno e Pascoaes “as noções principiais de enigma e de mistério” (ibid., p. 20). Reflexão sobre o Espírito, a verdade, o Nada, a liberdade, a filosofia de Marinho se inscreve na grande orientação do espiritualismo português.

Sob o impacto do pensamento de Álvaro Ribeiro, de Delfim Santos e de Agostinho da Silva, desdobra-se a terceira geração da filosofia portuguesa, na qual ocupam lugar expressivo Afonso Botelho (1919-1996), Antonio Quadros (1923-1993), Orlando Vitorino (1922-2003), António Telmo (1927-2010), Fran-cisco Sottomayor (1927-1985), Dalila Pereira da Costa (1918-2012), Pinharanda Gomes (1939-).

Afonso Botelho aborda os temas da saudade, do amor e da morte; Antonio Quadros propõe uma estética e uma filosofia da história, centradas, a primeira, na fenomenologia da arte portuguesa, a segunda, na teoria do mito e na “herme-nêutica da razão de ser de Portugal” (ibid., p. 31). Por sua vez, Orlando Vitorino, sob a influência de Hegel, aborda os problemas do mal, do Direito, da justiça, e

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da liberdade; Antonio Telmo trata do “sentido secreto da história e língua por-tuguesa” (ibid., p. 21); Francisco Sottomayor examina o sentido cosmológico da ciência, da matemática; Dalila Pereira da Costa, propõe um laço estreito entre filosofia e mística, na sua busca do sagrado primordial; Pinharanda Gomes estu-da a história do pensamento português; desenvolve também meditações sobre a experiência religiosa e o tema da morte.

É ainda sob a repercussão das filosofias de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra que é retomada, no século XX, a filosofia da saudade. Originalmen-te proposta por D. Duarte (1891-1438) e D. Francisco Manuel de Melo (1606-1666), a reflexão sobre a saudade, em nossa época, está centrada em dois aspec-tos: a análise fenomenológica da consciência saudosa, do sentimento saudoso e a ontologia, a metafísica da saudade.

A fenomenologia da consciência saudosa encontra em Joaquim de Carvalho (1892-1953), em Sílvio Lima (1904-1994) e em João Ferreira (1927 -), os seus autores exponenciais.

Joaquim de Carvalho vê a saudade como uma prerrogativa do homem, pois só este tem consciência da “presença espiritual de uma consciência já vivida acompanhada do desejo de tornar a viver” (ibid., p. 22); Silvio Lima põe em relevo o aspecto tridimensional da saudade, porque esta é retrotensa, intensa e protensa, expressando o desejo de regresso ao paraíso (ibid., p. 23); João Ferreira vê na saudade um sentimento complexo, misto de lembrança e desejo, carência. Envolve as noções de tempo e memória como elementos essenciais.

A metafísica da saudade tem como expoentes Antonio Dias de Magalhães, S. J. (1907-1972), Afonso Botelho, Dalila Pereira da Costa e Pinharanda Gomes.

Antonio Dias de Magalhães, discípulo de Pascoaes e Leonardo, vê na sau-dade o sentimento de contingência, a nostalgia do Absoluto, que habita todo homem.

Afonso Botelho, sob o impacto das reflexões de Leonardo, Pascoaes e José Marinho, encara a saudade como “memória da unidade originária do ser” (ibid., p. 23). Examina as relações entre saudade e tempo, morte e amor; afirma que a criação se cumpre por via do amor.

Dalila Pereira da Costa vê na saudade o reencontro com a unidade originária perdida, e Pinharanda Gomes reflete sobre as relações entre o Mesmo e o Outro, expressões da saudade.

No vasto panorama que esboçou, Braz Teixeira assinala ainda a existência de outras correntes especulativas, representadas por autores portugueses. São elas: as novas formas do positivismo, a neo-escolástica, a filosofia existencial, a feno-menologia e o pensamento dialético.

Num texto de 1938, Delfim Santos aponta a influência da Escola de Viena e do Grupo de Cambridge em Portugal. Dois contemporâneos de Leonardo, Abel

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Salazar (1889-1946) e Vieira de Almeida (1888-1962) expõem a orientação ins-pirada no positivismo lógico e na lógica matemática. O primeiro, médico, artista plástico, filósofo, deixou estudos sobre A posição atual da ciência, da filosofia e da religião (1934) e sobre A Crise da Europa (1943). Vieira de Almeida, estudioso de lógica, gnoseologia, filosofia da linguagem e filosofia da arte, terá influência marcante em Edmundo Curvelo (1913-1953), também estudioso de Lógica, dei-xando estudos introdutórios à lógica matemática, a fundamentação lógica da filosofia, (Decisão e Imanência, 1953). Ambos, Vieira de Almeida e Edmundo Curvelo, inspirarão a filosofia de Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), dedica-da à lógica, ao exame da estrutura da moralidade, à crítica do utilitarismo (Ética I, 1992).

Finalmente, inscreve-se nessa orientação Amorim de Carvalho (1904-1976), interessado em examinar O positivismo metafísico de Sampaio Bruno (1960).

O renascimento da reflexao escolástica, apoiada na tradição inspirada em Pe-dro da Fonseca (1528-1599), deu-se na Faculdade de Filosofia de Braga, a partir de 1947. A Faculdade foi integrada, desde 1967, à Universidade Católica Portu-guesa e dois jesuitas, Cassiano Abranches (1896-1983) e José Bacelar de Olivei-ra (1916-1999), representam a corrente. O primeiro se dedica à metafísica e à hermenêutica do pensamento de Pedro da Fonseca; o segundo, à Antropologia Filosófica e à Ontologia. O autor mais importante da corrente é, contudo, Ar-naldo Miranda Barbosa (1916-1973). Abordou a Lógica, a Metafísica, a Teoria do Conhecimento, buscando mostrar a filosofia como sistema, como explicação racional do mundo e da vida; tratou de fundamentar criticamente a metafísica escolástica e de mostrar os laços entre metafísica, ética e axiologia.

Com Leonardo, foi um dos primeiros a falar sobre a fenomenologia husser-liana. Seus discípulos mais importantes floresceram na década de 50 e são os verdadeiros fundadores dos estudos fenomenológicos em Portugal: Alexandre Morujão (1922-2009), Júlio Fragata, S. J. (1920-1985), Eduardo Abranches de Soveral (1927-2003).

Os primeiros estudaram principalmente a fenomenologia husserliana; Edu-ardo Soveral, enfatizou o exame do método fenomenológico, da ética e da filoso-fia da cultura, e, a partir de 1995, focaliza seu interesse no pensamento português contemporâneo, no pensamento luso-brasileiro e nas relações entre fenomeno-logia e metafísica.

No mesmo horizonte da escola fenomenológica, inscrevem-se: Gustavo Fra-ga (1922- 2003), interessado no percurso da fenomenologia, de Husserl a Hei-degger e nas relações entre fenomenologia e dialética; Maria Manuela Saraiva (1924-2002), autora de importante tese sobre Husserl, publicada em Louvain; Fernando Gil (1937-2006), na esteira da escola, trata de antropologia filosófica, epistemologia, lógica; e José Enes (1924-2013), fazendo da filosofia um saber

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que, através da experiência estética e religiosa, aborda o Ser, a linguagem, funda-menta um diálogo entre o tomismo e a fenomenologia e a hermenêutica.

A abordagem existencial, instaurada a partir do magistério de Leonardo, o primeiro a se referir a Husserl, Scheler, Heidegger, além dos discípulos imedia-tos: Delfim Santos, Antonio José Brandão, Eudoro de Sousa – encontra resso-nância em Diamantino Martins, S. J. (1909-1979), Virgilio Ferreira (1916-1996) e Fidelino de Figueiredo (1889-1967).

Diamantino Martins aproxima Bergson, Sto. Agostinho, Unamuno, pondo em primeiro plano as questões da antropologia filosófica e da teodicéia. Assim, os problemas de Deus, mundo e homem, constituem o cerne de sua reflexão.

Ateísta, a reflexão metafísica de Vergílio Ferreira examina a trajetória da Fe-nomenologia de Sartre; e Fidelino de Figueiredo põe em relevo uma reflexão antropológica, agnóstica e histórica, na esteira da fenomenologia existencial.

O pensamento dialético, na sua dupla vertente: hegeliana e marxista, tam-bém encontra, em Portugal, os seus cultores. A inspiração hegeliana está presente nos escritos de filosofia jurídica e política de Antonio José de Brito (1927-2013), Afonso Queiró (1914-1995) e Orlando Vitorino (estudioso de Hegel); e nos es-tudos de ética e metafísica de Augusto Saraiva.

A inspiração marxista tem em Alberto Ferreira (1920-2000) e Maria Carme-lita Homem de Sousa (1934-1995) seus expoentes. O primeiro vê na dialética um instrumento de transformação das estruturas sociais; a segunda, partindo da fenomenologia, direciona-se a um “transrelativismo dialético”, que exclui a separação entre natureza, homem e estruturas sociais.

A grande figura inspiradora da filosofia portuguesa e da filosofia em Portu-gal, no século XX, é Leonardo Coimbra. De modo direto, deveu-se à sua atuação e ao seu magistério a grande renovação levada a efeito pelo movimento da filoso-fia portuguesa na Faculdade de Letras do Porto; de modo indireto, está presente nos estudos de Delfim Santos, acerca do positivismo, e no confronto com seus contemporâneos; ressoa na filosofia existencial e, através dos discípulos de Mi-randa Barbosa – estudioso, como Leonardo da fenomenologia husserliana – no despertar de interesse pela fenomenologia; está presente, através de Augusto Sa-raiva e Orlando Vitorino, representantes, respectivamente da segunda e terceira geração da filosofia portuguesa – no desenvolvimento do pensamento dialético de inspiração hegeliana.

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arte e tempo em Maria do Carmo tavares de Miranda

Maria do Carmo Tavares de Miranda é uma das representantes da Escola heide-ggeriana no Brasil. Nasceu em Vitória de Santo Antão da Mata, em Pernambuco, a 6 de agosto de 1926. Seu pai radicou-se em Recife, onde nossa pensadora estudou. Aprendeu, em casa, grego e latim, descobrindo os filósofos: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho. Bacharelou-se e licenciou-se em Letras Clássicas e Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Na França, doutorou-se em Filosofia pela Sorbonne (1956); fez estudos pós-doutorais na França e na Alemanha. Foi assistente de pesquisa e de seminários em Metafísica e Filosofia Geral, na Sorbon-ne. E também na França estudou Física, Matemática e Teologia. Essa formação repercutiu em seu pensamento e na temática filosófica que abordaremos e que consideramos o fulcro de sua obra: o problema do tempo.

Retornando a Recife, em 1957, organizou cursos de especialização sobre a ontologia fundamental de Heidegger, de quem fora aluna; em 1961 planejou o doutorado em Filosofia da Universidade Federal de Recife, e de 1969 a 1981 dirigiu o Seminário de Pesquisa Filosófica, na mesma Universidade. Lecionou também na França, na Alemanha, na Grécia, nos Estados Unidos, como convidada, sem-pre mantendo o vínculo com a Universidade de Recife. Participou das atividades da Fundação Joaquim Nabuco e da Fundação Gilberto Freyre, em Recife, onde dirigiu o Seminário de Tropicologia.

Dentre os temas do Seminário de Pesquisa Filosófica, podemos destacar o sobre o problema da verdade, enfocado com nítida acentuação heideggeriana. A abordagem oferecida por Maria do Carmo é exemplar: estuda o Sobre a essência da Verdade, o De Veritate, bem como as posições de Aristóteles e Santo Agostinho sobre o assunto292. Maria do Carmo mostra assim como, em sua reflexão, a vertente heideggeriana estará sempre contraponteada pela filosofia de inspiração cristã.

Vivendo “a vida como dimensão do espírito”293, nossa pensadora entende a filosofia como um “ trazer à claridade”294 o sentido do homem e do tempo. O filosofar, para ela, é estar perante o mistério do Ser, Presença que sustém o ho-mem. Ek-sistente, ser-no-mundo, ao filosofar o homem se conforma ao logos, pois

292 TAVARES DE MIRANDA, M. C., Caminhos do Filosofar, Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991, pp. 100-104.293 Id., Conjugando Memórias, RJ, Tempo Brasileiro / Secretaria de Educação do Estado de Per-nambuco, 2ª parte, pp. 49-104.294 Id., Caminhos do Filosofar, p. 32.

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“filosofar é um pathos – o com-padecer – e converter-se de cada um a si mesmo, ao outro e com os outros. Este com-padecer ou sofrer a revelação dos seres é es-tabelecer a relação de integração, medida e coexistência de todas as coisas” (ibid., p. 23). Marcada pela reflexão de inspiração cristã, como já dissemos, o filosofar, na sua perspectiva, é busca da verdade, busca de comunhão com todas as coisas, ascultação amorosa, dialógica, do outro e do mundo.

A filosofia é experienciar metafísico, reflexão sobre o Ser, epistéme theoretiké, busca da ousia, arché, alétheia. Investiga, assim, a relação entre ser e pensar, ser e verdade, ser e nada, ser e tempo (ibid., pp. 27-32).

A meditação sobre a experiência ontológica do tempo é reiterada em diver-sos escritos da pensadora: Pedagogia do Tempo e da História (1965), O homem e o tempo (1983), Conjugando Memórias (1987), Caminhos do Filosofar (1991), Aventura Humana (1996): “No sempre, no advém, no há, e no que passa está pre-sente o tempo, não só numa de suas modalidades, mas indicando e anunciando o que é junto ao Ser, possibilitando-o” (ibid., p. 33). A reflexão sobre as relações entre Ser e tempo, sobre o fluir da existência como viver entre, como caminho – o homem é um viandante, no dizer de Maria do Carmo – desdobra-se no exame dos sentidos gregos do presente: chrónos, aion, nun, exáiphnes, kairós, hora: “A forma do presente, o é de todos os modos, é enquanto se mensura – chrónos, mas é também em sua totalidade – aion, como é neste momento presente, o agora – nun, e no de repente do instante, também algo eterno – exaíphnes, e é enquanto hora oportuna ou conveniente, ocasião – kairós, enquanto período ou momento favorável – hora” (ibid., p. 39).

Falar sobre o presente é falar sobre o Ser enquanto revelação, Presença; ao homem “compete dizer o que é e consiste, através do presentificar do Ser e dos diversos modos do seu movimento de presentar” (ibid., p. 44). É no tempo que se revela o Ser, nos diferentes modos temporais.

O “pensar orante”295 de nossa filósofa busca, na reflexão sobre o tempo e a existência, um caminho: a apreensão amorosa do existente, a superação da fuga-cidade, ao captar o divino em cada ser. Seu modelo é São Francisco, que integra temporalidade e graça, na acção (ibid., pp. 73-88).

Ser-no-mundo, o homem vive o seu ser-entre nascimento e morte, memória e esperança: “determina-se pelo daimon que é nous/nomos”296. Sua destinação é antes de mais nada ética pois, situado no mundo, sua própria condição reclama o reconhecimento do outro e da transcendência, o totalmente Outro. É confronto consigo mesmo e com o secreto do real, com o mistério, contínuo criar e recriar de sentido: “vislumbra-se apenas uma radiação constante do Ser que se mantém oculto, deixando-se, porém, entrever” (ibid., p. 55). O acontecer do homem é

295 Id., Conjugando Memórias, p. 70.296 Id., Caminhos do Filosofar, p. 52.

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atividade criadora, aventura e transfiguração, revelação da verdade e ascultação do mistério. A ciência, a filosofia e a arte são seus campos privilegiados de ma-nifestação.

É principalmente na meditação sobre o sentido da obra de arte que o pensa-mento de Maria do Carmo expõe essa dimensão criadora. Alguns de seus escritos tanto podem mostrar a presença da temática heideggeriana como a originalidade da abordagem da nossa filósofa.

Assim, no “A existência humana segundo Rilke”297, ela apresenta o homem como aquele que está diante do Aberto, no esplendor do instante e da metamor-fose contínua do tempo, buscando dizer o indizível, celebrando a terra. Poeta do “duplo domínio”, habitante do estar-entre o céu e a terra, a vida e a morte, Rilke certamente inspirou o texto seguinte, “ Morte e vida transfigurada” (ibid., pp. 94-102), do mesmo livro Conjugando Memórias. Diz a autora: “A vida diz seu próprio caminhar à morte (...). A finalidade deste processo é a Vida que nasce da morte, Vida, pura Vida, porque libertada de mudanças, metamorfoseada (...) Não mais, após a morte, os tempos das mutabilidades. Mas o tempo ilimitado (...) Este tempo dirá o Ser (...) Como todo caminho é sempre o mesmo, ascendendo ou descendo (...) o Fim é sem fim, porque (...) é, ao mesmo tempo, um Começo, como a Morte (...) é Vida como Presença Definitiva” (ibid., pp. 100-102).

A obra de arte é, para Maria do Carmo, descoberta, transfiguração, desvela-mento “do ser do ente”298, “manifestação da quaternidade do Ser, sua unidade, verdade, atração, manifestação radiosa, por algo (...) diferente dele” (ibid., p. 70). O tema da quaternidade, que em Heidegger expõe a relação entre céu e terra, deuses e mortais, aparece aquí reformulado, na linha da meditação tomista: a beleza é o que se caracteriza pela claritas, integritas, proportio, sendo atributos do Ser a unidade, a verdade. Esta integração entre a fonte heideggeriana e outros autores, essa leitura original que recoloca o problema da obra de arte como sondagem do mistério, são a característica distintiva da hermenêutica de nossa filósofa.

A arte, como desvelamento, retomada contínua do espaço e do tempo, “mag-nifica o real” (ibid., p. 71), falando do Ser, pondo à luz a totalidade: “a obra de arte é uma existência que clarifica o real e pronuncia o Ser em sua magnificência” (ibid., p. 72).

O tema da relação entre arte e mistério reaparece em dois textos apresentados por Maria do Carmo na terceira Semana Internacional de Filosofia da Arte299 e na sessão de 1984 da Academia Internacional de Filosofia da Arte300. A obra de 297 Id., Conjugando Memórias, pp. 89-93.298 Id., Caminhos do Filosofar, p. 69.299 Realizada em Corfu, 1984: “L’ oeuvre d’art et le mystére de l’être”, Diotima, Atenas, Sociedade Helénica de Estudos Filosóficos, n.14, 1986, pp. 59-61.300 Calamata-Messênia: “Art et Mystère”, Diotima, Atenas, Sociedade Helénica de Estudos Filosó-ficos, n.18, 1990, pp. 30-33.

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arte é portadora do sentido do ser, revelação da totalidade, magnificando o real301. Assim, a obra de arte “veicula o mistério do ser no ente” (ibid., p. 60), nisso consis-tindo o segredo de sua permanência e de sua profundidade. Exemplificando essa compreensão da arte, Maria do Carmo examina a obra de Niemeyer, focalizando sua atenção no Memorial da América Latina, um dos trabalhos do arquiteto. A obra de arte engendra um novo espaço. Transfigurando o real, estabelecendo re-lações entre o que ela é, o que mostra e o que coloca como apêlo (...)”302, a busca de transcendência. Transfiguração do espaço, refiguração do tempo, a obra fala “de uma contemporaneidade de todos os presentes comemorados no passado, no presente, no futuro, porque ela é celebração” (...) “jogo do possível” (...) “um jogo que ‘ordena o mundo’ como diz Heidegger (...)”. Nela se fundem sentimento e contemplação; testemunho do mistério do Ser; nela o inefável, o totalmente Outro se apresenta ao homem. Interpretá-la, é desvelar a verdade, indagar a intimidade do real, da totalidade.

A meditação ontológica sobre o tempo reaparece em dois outros textos, apre-sentados em congressos da associação Cosmos e Filosofia303, bem como no livro Aventura Humana304.

No primeiro, “L’avenir: une aventure pour l’homme”, Maria do Carmo combina a referência à tradição grega (Heráclito) e às fontes contemporâneas: Heidegger, Jonas, Arendt, Moutsopoulos. O homem exposto ao surto da tecnociência está também exposto à sua ambiguidade. A vida humana assume uma conotação dramática, em virtude das transformações da ação humana. É em relação ao poder da técnica que as meditações heideggerianas são invocadas, em especial as da Introdução à Metafisica e da Carta sobre o Humanismo. Os desafios que se apresentam hoje dizem respeito ao sentido do futuro, da vida em comunidade: “ameaças pesam sobre o futuro humano, sobre a biosfera e sobre a natureza inteira”305. É desse modo que a autora aponta o nexo entre o imperativo indicado por Hans Jonas em O princípio responsabilidade, em Técnica, Medicina e Ética: “que a humanidade exista” – e o dever de existir, a questão do ser e do não-ser, em Heidegger (ibid., p. 93).

A situação do homem atual exige uma reflexão ético-ontológica sobre o tempo, de modo a levar a compreender o sentido da condição humana e as implicações da civilização técnica. Inscrito no mundo, por sua temporalidade, o homem necessita tecer seu destino, articulando bios e logos, liberdade e solidariedade, memória e esperança (ibid., pp. 94-95).301 Cf. nota (20), pp. 59-60.302 Id., cf. nota (21), p. 31.303 “L’avenir: une aventure pour l’homme”, in Espace cosmique et Philosophie, Diotima, Atenas, So-ciedade Helénica de Estudos Filosóficos, n. 24, 1996, pp. 91-95; “Le rythme cosmique”, in L’homme et le cosmos, Diotima, Atenas, Sociedade Helénica de Estudos Filosóficos, n. 29, 2001, pp. 10-15.304 Recife, Ed. Comunicarte, 1996.305 Id., “L’avenir...”, p. 92.

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O segundo texto, “Le rythme cosmique”, novamente recorre à tradição grega, vista como “fonte da cultura filosófica ocidental”306. Mostra que o homem é um ser que, existindo no tempo, experimenta aí o desenrolar de suas possibilidades. A tradição grega perpassa o Ocidente e ressoa em Agostinho, Tomás de Aqui-no, Descartes, Kant, Hegel, Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Lévinas, Habermas. Estes últimos, contemporâneos, mostram a necessidade de uma “racionalidade transcultural” (ibid., p. 11), aberta ao outro, ao conviver num mundo complexo. Vemos, assim, uma vez mais, a problemática do tempo associada, por nossa autora, a uma ético-ontologia, que parece ser o eixo de sua meditação recente. Assim, indaga a filósofa: “Pela compreensão do que é o mundo na sua marcha rítmica, o homem, enquanto ‘operador’ das possibilidades do ser, terá a sabedoria de decidir corretamente...” (ibid., p. 15), de fazer escolhas que o conduzam à expressão de sua humanidade, e não à destruição?

A reflexão ético-ontológica sobre a condição humana e sobre a sociedade atual, reaparece no livro Aventura Humana, no qual a temporalidade é o fio condutor que tece as contribuições de Jonas, Bachelard, Marcel e Heidegger às meditações da autora.

Podemos dizer então, em resumo, que a filosofia de Maria do Carmo, inspiran-do-se em Heidegger, constroi uma reflexão sobre a arte e o tempo, combinando o recurso à tradição grega e às filosofias de vertente cristã e às de autores con-temporâneos. Essa meditação é, de início, uma ontologia do tempo e da história, uma filosofia da arte; desemboca gradualmente numa ético-ontologia, ao abordar a nossa época, examinando a situação do homem atual.

A obra da filósofa brasileira, da qual destacamos apenas alguns aspectos, tem repercussão internacional. Pomos em relêvo, a título de exemplo, o estudo dedicado a ela e a tradução, para o francês, de um extrato do livro Pedagogia do tempo e da história, feitos por Marie Laffranque307, membro da equipe do CNRS então dirigida por Alain Guy, na Universidade de Toulouse-le Mirail. Assinalamos também as menções, do próprio Alain Guy, aos seus trabalhos308, bem como a atenção de Gilberto Freyre, de quem foi colaboradora e amiga309.

306 Id., “Le rythme cosmique”, p. 10.307 Marie Laffranque, “Maria do Carmo Tavares de Miranda”, in A. Guy (org.), Le temps et la mort dans la philosophie contemporaine d’ Amérique Latine, Toulouse, Éd. Universitaires du Sud, 1992, 2a edição, pp. 11-23. Marie Laffranque pertence ao grupo do Centro de Investigações de Filoso-fia ibérica, ibero-americana e comparada, da referida universidade. O grupo é reconhecido pelo CNRS.308 GUY, A., Panorama de la philosophie ibero-américaine, Genebra Patiño, 1989, p.212; id., La philosophie en Amérique Latine, Paris, PUF, 1997, p. 96.309 Sobre os laços de cooperação entre ambos, veja-se o testemunho da filósofa, em Aventura Hu-mana, pp. 68-70.

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axiologia e ética em eduardo abranches de soveral

Definindo o homem como pessoa, isto é, como indivíduo capaz de reconhecer a si a partir de um valor, a liberdade, e a exigência de expressá-la na vida inter-subjetiva, na vida interhumana, Soveral se inspira em um humanismo cristão de matriz próxima à do neo-humanismo de Maritain coordenando-o com as filosofias de Kant e Scheler, como assinala Luís de Araújo310.

Partindo de uma reflexão sobre as noções de pessoa, subjetividade e intersub-jetividade, na edição de seus cursos sobre Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto311 e mencionando explicitamente Soi-même comme um autre, de Ricoeur, como o dialogante implícito nas suas reflexões, o pensa-dor português desenvolve uma sugestiva meditação, iluminada pela linguagem fenomenológica, a respeito da consciência, da intersubjetividade e da liberdade (ibid., p. 73 e segs).

A partir da compreensão do eu, entendido como eixo da vida espiritual, “su-jeito de todas as vivências conscientes”, atuais e passadas, nosso autor o vê como “consciência de”, aberta ao futuro, imanente, “para-si” de uma subjetividade mas voltado à transcendência por vivências novas, como “titular de uma liberdade responsável” que o torna sujeito ético (ibid., p. 77).

O eu se caracteriza pela finitude, mas também pela vocação para a plenitude, para a “apropriação e participação no Ser” (ibid., p. 78). A plenitude, experiência de transcendência da precariedade do finito, é sempre buscada pelo “eu” que, ao buscá-la, desvenda o mundo interior como imensidão sem fronteiras, que o deslumbra e atemoriza. Na história da Filosofia, Sócrates, Platão, Santo Agostinho assinalaram essa descoberta; na investigação psicológica, Freud e Jung mostraram sua riqueza; na poesia e na mística, é visto como habitação das musas ou lugar de ascensão para Deus.No caso do pensador português, é como fenomenólogo que irá considerar as estruturas do eu.

Eixo do mundo interior consciente, caracterizado pela singularidade, o eu busca entrar em contato com as consciências alheias, das quais tem conhecimento indireto e analógico, nelas reconhecendo como nota dominante a liberdade.

A primeira experiência do eu em relação a si é reconhecer-se como eu potencial concreto, “situado no contexto de uma inter-subjetividade onde se define e valida, por assimilação analógica, ou por contraste” (ibid., p. 81).310 ARAÚJO, L de., “A modo de Prefácio”, in SOVERAL, E. A. de, Sobre os valores e pressupostos da vida política contemporânea e outros ensaios, Lisboa: INCM, 2005, p.10 e segs.311 SOVERAL, E. A. de., Fenomenologia e Metafísica. Porto: Centro Leonardo Coimbra, da Univer-sidade do Porto, VI capítulo, 1997, p. 73 e segs.

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Inscrito no mundo pela mediação de seu corpo, o eu se inscreve na comunidade intersubjetiva, que lhe faculta falar de si e de nós, da relação eu-tu, possibilitando-lhe “o conhecimento do outro e, correlativamente, de si mesmo também” (ibid., p. 82).

O “eu” se afirma, no plano biológico, como busca da sobrevivência; mas no plano ontológico, só a admiração e o amor o fazem passar de indivíduo a pessoa, sujeito capaz de laços comunitários e do exercício da liberdade e da responsabi-lidade (ibid., p. 85), ou seja, de uma vida ética (ibid., pp. 86-87).

Num texto publicado em 2005312, Soveral retoma a meditação sobre a liberdade, aprofundando a discussão. Falando da liberdade individual, nosso autor mostra a consciência de si como capacidade do homem apropriar-se de si mesmo e de orientar-se intencionalmente em direção a valores, de modo a conferir à vida a melhor realização possível. A afirmação de liberdade individual esbarra na exis-tência da liberdade dos outros e na possibilidade de um conflito das liberdades. A solução desse conflito aponta para duas alternativas: a imposição da vontade de uns à dos outros, pela violência ou a limitação das liberdades pela justiça. No primeiro caso, a afirmação de liberdade de um é “desvalorização de liberdade dos outros”, “luta sem regras”, “competição desleal” (ibid., p. 21), defendida por Maquiavel e Hegel. No caso do primeiro filósofo, é garantia “de interesse público”, de governabilidade; mas impediria “a dignidade e a liberdade dos súditos”. No caso de Hegel, este afirma que “é o egoísmo dos heróis que fez avançar a humanidade” (ibid., p. 22). E mencionando Darwin, mostra como, para o biólogo, a supremacia dos mais fortes caracterizaria a evolução das espécies.

Todos esses autores: Maquiavel, Hegel, Darwin–teriam atribuído um sentido positivo à luta sem regras, no conflito das liberdades.

Para outros autores, a competição é saudável, mas deve ocorrer dentro de limites éticos. É a ética do guerreiro, que valoriza, no conflito, o adversário, respeitando-o e admirando-o, mas, caso vença a luta, despreza os fracos.

Para nosso filósofo, a solução do conflito das liberdades dá-se na perspectiva de uma ética cristã, que aceita a liberdade de todos, afirmando a exigência supre-ma de caridade, do repúdio à violência, de responsabilidade do forte pelos mais fracos, subordinando a violência à justiça.

É na meditação sobre a liberdade cristã, desdobrada nesse texto, que nosso autor assinala a correlação liberdade / igualdade; liberdade / justiça.

O fundamento de “liberdade das criaturas é condição de seu mérito”; constitui sua dignidade essencial, pois todos os homens, como filhos de Deus, têm “idêntica capacidade potencial” (ibid., p. 24).

A liberdade se reconhece como qualidade essencial, na medida em que, des-crevendo os outros homens “como titulares potenciais de capacidades idênticas às nossas e como estando potencialmente abertos também a um número não de-finido de possíveis identificações conosco” (ibid., p. 44), permite aí reconhecemos a manifestação de sua liberdade.312 SOVERAL, E. A. de, Sobre os Valores e Pressupostos da Vida Política Contemporânea e outros ensaios. Lisboa: INCM, 2005.

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Considerando as características essenciais do homem, percebemos neles a igualdade como capacidade potencial análoga à nossa, e como correlato dela, a exigência de limites éticos à liberdade.

Esses limites consistem na não instrumentalização de sujeitos livres, o que implica não apenas na exigência ética, mas também na estruturação de parâme-tros jurídicos para a existência, de modo a impedir a violência, nos inevitáveis conflitos das liberdades. Para nosso filósofo, “o único antídoto da violência é a justiça” (ibid., p. 45).

A justiça consiste no reconhecimento de uma igualdade originária entre os homens; sua função não é apenas impedir conflitos, mas apontar “idealmente para a plenitude da conciliação de todas as virtudes éticas (...) realizando a mais perfeita convivência intersubjetiva (...)” (ibid., p. 49).

O estudo do problema ético de liberdade aparece ainda uma vez, no mesmo texto, quando Soveral aborda uma tipologia dos comportamentos éticos, debaten-do as relações entre causalidade / liberdade; espontaneidade / liberdade; dualismo metafísico / liberdade.

A liberdade, nesse estudo, implica as capacidades do homem de autonomia, antecipação do futuro “e poder para modificar o real” (ibid., p. 277). Para que essa autonomia assuma uma dimensão ética, é preciso que o agir esteja orientado segundo valores, aos quais o homem seja fiel e que tenha por objetivo realizar o melhor.

É nesse horizonte que se situam, historicamente, os temas e os debates em torno da liberdade. O primeiro aspecto assinalado pelo nosso autor é a discussão da relação causalidade / liberdade.

Diversamente da compreensão de fenômenos naturais, onde a relação causa-efeito auxilia o conhecimento e a atuação sobre eles, no âmbito de liberdade, da vida subjetiva, a noção de causalidade não se põe. A liberdade implica “o que não tem causa, que é espontâneo” e mais ainda, “a iniciativa da ação” (ibid., pp. 278-279), isto é, a decisão do sujeito.

Assim, a espontaneidade só está associada à liberdade quando atinge o plano de consciência, aí recebendo um significado. Distinguindo entre instinto, desejo e razão, Aristóteles e Kant reconhecem só a ação racional como ação ética. Des-cartes, por sua vez, só considera como ação voluntária a que se processa no plano consciente, relegando a vida instintiva ao âmbito da paixão. Freud partiu de uma concepção complexa de vida anímica, pensando a sexualidade e a corporeidade no âmbito de uma configuração biológica, dirigida à fruição de prazeres. Contestando a arqueologia da psique proposta por Freud, embora reconheça a importância, para este, da consideração do “homem como titular de uma acção espontânea cujo afloramento, a nível da consciência, observou com rara penetração” (ibid., p. 281), nosso filósofo procurou mostrar que uma causalidade subconsciente das ações compromete a liberdade. Para assegurá-la, só o exame das noções de esforço e de criação humana o permitiria, possibilitando a compreensão do ato voluntário.

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A noção de determinismo, examinada a seguir, exprime a relação causa-efeito no plano do conhecimento e no plano metafísico. Postulando a existência de leis ou constantes no mundo natural, o determinismo epistemológico se expressa, no âmbito da Filosofia, como base explicativa do mecanismo do mundo, em Descartes; em Kant, é a estrutura a priori das categorias que possibilita o conhecimento do mundo; em Hegel, expõe a repetição que caracteriza o mundo orgânico; em Spinoza, “o determinismo tem uma configuração metafísica e é absorvido pela noção mais ampla de razão divina” (ibid., p. 283-284), de modo análogo à noção leibniziana da harmonia pré-estabelecida.Na perspectiva do determinismo, as concepções filosóficas que o apóiam “envolvem o problema da naturalização do homem e a negação de sua liberdade” (ibid., p. 284). O determinismo, exigido pelas ciências empíricas”, impôs uma visão naturalista (...) a toda a cultura” (ibid., p. 286).

Sua superação, como atitude epistemológica, dá-se a partir da cibernética atual, que mostra ser possível a existência de máquinas finalizadas, capazes de auto-correção, cuja existência implica, não a negação de liberdade, mas a possi-bilidade de se “inscrever, de fora, no sistema de relações causais, uma finalidade”, reafirmando que a característica de liberdade é a eleição dos fins” (ibid., p. 287).

É recorrendo a Kant que nosso autor procura superar a contraposição deter-minismo / liberdade.

Para Kant, o homem é corpo e espírito; por seu corpo, acha-se sujeito aos fins sensíveis; mas pelo uso de razão, transcende o determinismo, inscrevendo a dimen-são meta-empírica no seu existir, pela observância das máximas da razão prática, que o conduzem ao “respeito pela autonomia própria e alheia” (ibid., p. 289).

A partir de Kant, aprofundando a posição kantiana, mas inspirada em Husserl, acha-se a ética de Scheler, que pode ser sintetizada do seguinte modo: na existência humana concreta acha-se “uma pluralidade de valores realizáveis” (ibid., p. 290), sendo alguns preferidos, outros excluídos da realização. A escolha de um valor como valor supremo possibilita ao homem hierarquizá-los, por uma opção livre, e assegura o comportamento ético, entendido como fidelidade à opção feita.

Desse modo, recorrendo à noção de intencionalidade da consciência e à proposição de valores como modelos paradigmáticos da ação, Soveral afirma o homem como sujeito ético, pessoa, capaz de reconhecer racionalmente o melhor e orientar a ação segundo esse reconhecimento.

Consciência de si, escolha de valores, proposição de uma finalidade para a ação, foco da totalidade de vida na afirmação dessa consciência e desses valores: condições da vida ética e da liberdade, assim como a abertura ao outro, com o qual se constrói a vida propriamente humana.

Liberdade responsável que faz o sujeito tender para sua realização como ser humano: indivíduo e participante de uma comunidade de seres livres, convivendo para a realização de objetivos análogos.

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a tradição escatológica da filosofia portuguesa da história

Um exame comparativo das filosofias da história em Portu gal e no Brasil põe em relevo alguns traços comuns: fontes no agostinismo, no romantismo alemão e afirmação da prioridade do mito na hermenêutica da história.

A grande síntese de António Quadros313 servirá de fio condutor para nossa abordagem inicial. A oposição entre mito e história, marcada pelo início do pensa-mento grego, leva Quadros a examinar a noção de causa final em história, a busca da verdade, do sentido, que existe nos textos dos pensadores portugueses.

Santo Agostinho, que propõe uma história filosófica, é a fonte principal do pen-samento português. Seu discípulo, Paulo Orósio, estabeleceu “nexos comparativos entre várias evolu ções nacionais” (ibid., p. 32). Sua concepção providencialista da história ressoa no pensamento português, de Vieira a Sampaio Bruno, a Jaime Cortesão e a Agostinho da Silva (ibid., p. 33).

Vieira tematiza o Quinto Império, teoriza a ucronia, e reper cute em Bruno, Pessoa, Agostinho da Silva. Anunciando o Quinto Império, Vieira propõe uma leitura do sentido da histó ria, que floresce no messianismo judaico-português e no mito sebastianista, impregnando sua reflexão com uma espécie de “mitologia cristã (...) mitologia do futuro” (ibid., p. 57).

Há, na história, um dinamismo prospectivo, sem o qual a apreensão de um mero suceder de fatos seria caótico; não basta recolher os fatos, registrá-los: a história exige sempre análise e interpretação dos documentos, sem poder nada desprezar. Deve tratar, pois, de encontrar, mediante a filosofia da história, “o cri-tério de integração universal, capaz de desco brir a relatividade de todas as partes perante um todo que lhe seja simultaneamente imanente e transcendente” (ibid., p. 67).

E foi a partir “de Oliveira Martins, Cunha Seixas e Sampaio Bruno” (ibid., p. 92), que a filosofia portuguesa buscou um elemento universal, um fundamento meta-nistórico para a compreensão da história.

Outra vertente importante do pensamento português deve-se ao também dis-cípulo de Santo Agostinho, Joaquim da Flora, o qual propõe a teoria da sucessão, na história, das três ida des – a do Pai, do Filho e a do Espírito Santo – e tematiza o Evangelho Eterno. Seu pensamento teve ressonância profun da em Portugal e

313 Introdução à filosofia da História, Lisboa, Verbo, 1982.

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influiu na obra de Cortesão e de Agostinho da Silva, e, de modo particular, no Brasil, inspirou indiretamente movimentos populares, como a pregação de An-tónio Conse lheiro e, na literatura, um Jorge de Lima, um Suassuna, uma Neide Archanjo.

O pensamento de Joaquim de Flora teria inspirado, segun do A. Quadros, através do martinismo, autores românticos franceses e alemães, e a reflexão de Sampaio Bruno (ibid., p. 109 e segs); inspi rou ainda, por leitura direta dos textos medievais, autores recentes, como Agostinho da Silva.

Teleologia, escatología e profetísmo combinam-se, no dizer de A. Quadros, na reflexão filosófica sobre a história, ern Portugal: “Toda a história é teleológica. Toda a história é escatológica. Toda a história particular se subordina a causas finais. Todas as causas finais, na história universal, se subordinam à causa última (...). A atividade profética é própria do homem” (ibid., p. 207), e o historiador traduz o finalismo da história “em termos de futuras realidades concretas” (ibid., p. 209).

Assim, a leitura da história a partir de um mito fundador, levaria à compreen-são do acontecer e das suas possibilidades de resolução futuras: no sebastianismo, mito fundador de Portugal, pode ser lida a busca permanente de redenção do homem, assim como no mito do Quinto Império. É esta hermenêutica do mito, como ponto de partida para a compre ensão da história, para a busca de redenção e sabedoria, que caracteriza o pensamento português: “O mito exprime de forma narrativa e simbólica o enigma de existir e ser (...) a relação do homem com Deus” (ibid., p. 229).

Nesta perspectiva, autores portugueses, como Cunha Seixas, buscaram “uma fórmula compreensiva de toda a história humana”, abertos ao “enigmático do mito e ao misterioso da religião” (ibid., p. 263), encontrando sua fonte principal em Joaquim de Flora, e em variantes do neo-platonismo, como Sampaio Bruno, que tematiza como finalidade da história o “regresso ao homogéneo” (ibid., p. 265), ou “uma espiralada ascensão” (ibid., p. 270 e segs), como diz Leonardo Coimbra, em direção a um mundo fraterno, cuja garantia é o Cristo; ou ainda, como a ca-minhada da humanidade em direcão ao paraíso perdido, em Teixeira de Pascoaes e em Pessoa” (ibid., p. 273 e segs). Sua expressão maior, no plano filosófico, vai se encontrar na ontoteologia de José Marinho, para quem a finalidade da história é a revelação do ser do homem e do sentido de sua caminhada em direcão ao “ime morável” (ibid., p. 274 e segs); no paracletismo de Agostinho da Silva e de Jaime Cortesão (ibid., p. 280 e segs): “Agostinho da Silva visava a Humanidade em marcha para o reino da fraternidade universal e do amor (...) para o império (...) do Espírito da Verdade (...) entendendo o D. Sebastião coletivo [como] o povo luso-brasileiro” (ibid., p. 282).

Estes temas, que Agostinho da Silva desenvolveu e reto mou em múltiplos textos, constituem o núcleo de um pensa mento cuja irradiação será sentida atra-

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vés da atuação inces sante deste pensador, que irá realizando, no desenrolar da história concreta das universidades e centros de cultura brasi leiros, a ponte entre o valor – horizonte, representado pelo mito do Reino universal do Espírito, e a sua expressão no fluir do tempo.

Outra vertente do pensamento português prende-se mais diretamente ao pensamento filosófico grego, ao romantismo alemão, ao heideggerianismo, à fenomenologia da religião. Refiro-me aos textos magistrais de Eudoro de Souza, pensa dor português radicado no Brasil, cuja contribuição para a decifração dos mitos gregos, e do laço entre filosofia e mito, mito e história, foram amplamente estudados por Fernando Bastos314.

No Brasil, a meditação sobre o sentido da história, a sua compreensão a partir do mito fundador do cristianismo, é posta em primeiro plano por Vicente Ferreira da Silva e seu discípulo, Adolpho Crippa, e pelos autores da escola heideggeriana, da qual destacarei Maria do Carmo Tavares de Miranda.

Os laços de amizade de Vicente com Agostinho da Silva não assinalam fontes comuns; este sinal aparece, contudo, nitida mente, no diálogo com Eudoro de Sou-za, voltado para a filosofia grega e para as obras de Kerényi, Eliade, e os românticos alemães. O denominador comum a todos eles reside na “hermenêutica da época humana”, na hermenêutica da história através de mitos fundadores.

Alguns textos de Vicente são especialmente sugestivos: “Sobre a Origem e o fim do mundo”, “Sobre a Teoria dos Modelos”, “Hermenêutica da Época Humana”, “História e Meta-história”, “Diálogo do Mar”.

Em “Sobre a Teoriados Modelos”, Vicente diz: “Corno matriz transcendente dos sucessivos modelos históricos, as protoformas mítico-religiosas agiriam como princípios supe riores de plasmação histórica. Evidencia-se aqui a tese de Schelling e Bachofen, segundo a qual é o mito que explica a História e não a História que explica o mito”315. Ou seja, o mito fundador é aberto pela iluminação do Ser, como pensava Heidegger, e o sentido da história é dado através de uma sucessão de mundos; as diferentes etapas históricas são instauradas pela emergência de sucessivas e exclusivas con cepções do sagrado; história é teomaquia. Estaríamos viven do, diz Vicente, o fim de um mundo; um apocalipse que se caracteriza pelo surgimento do monstruoso e pelo tédio; mas também vivemos a alvorada de um novo modo de ser, apenas entrevisto. O mito propicia o desvelamento do ser do homem, abre o horizonte das nossas possibilidades; o mito é a poesia primordial do Ser, fundadora dos mundos: “O regime de Fascinação que comandou a paru-sia do homem, recebeu historicamente o nome de Cristianismo” (ibid., p.177); estaríamos esgo tando as possibilidades abertas pelo mito cristão e vendo emergir, ainda sem clareza, um novo sentido do sagrado; “Somos seres do limiar (...) só

314 Mito e filosofia, Brasília, UnB, 1991.315 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II.

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podemos pressentir a sombra das coisas por vir” (ibid., vol. I, p. 507); pois “todo o processar-se da História cumpre-se no interior das sugestões consignadas pelo Fascínador” (ibid., vol. II, p. 187). A história é a sucessão de ciclos numinosos, a suces siva possessão da consciência humana por diferentes deuses, diferentes sentidos do sagrado: “A catástrofe mundial é ao mesmo tempo uma nova epifania mundial” (ibid., p. 189). E é a Schelling que Vicente tributa esta leitura teogônica da história, sem contudo identificar-se inteiramente com as propostas desse autor, como já mostramos em outros estudos.

Nessa perspectiva, há “uma primazia do futuro na estrutura do mundo” (ibid., vol. II, p. 536), na prospecção do mito vindouro, na busca de um pôr-se à escuta do tempo de uma Fascinação, de um domínio projetante: “Creio que o mundo flui do futuro para o presente e daí para o passado (...) o poder-ser é mais forte e decisivo que o estar-aí do real” (ibid., p. 536).

A história caminha para uma superação do humanismo, para a emergência de novos deuses, de novas possessões da consciência por formas ainda desco-nhecidas de ser.

Maria do Carmo Tavares de Miranda, aluna e discípula de Heidegger, repre-senta, no plano do pensamento, um laço entre a inspiração heideggeriana e a tradição portuguesa. Vamos nos ater ao seu texto Conjugando Memórias316, onde a autora tematiza “a vida como dimensão do espírito” (ibid., p. 47), como medita ção sobre a fugacidade do existente, dilaceramento entre o passado e o futuro. Mas o tempo é também recordação e espera, por-se à escuta do sentido do Ser, busca da liberdade e da verdade. O filosofar é ponte e palavra, “caminho do pensar e do agir” (ibid., p. 53), em direção ao Bem, entendido em sentido agostiniano: “A finalidade deste processo é a Vida que nasce da morte, Vida, pura Vida, porque libertada de mudanças, metamorfoseada” (ibid., p. 101). Pensar o tempo, assim, é pensar a “ges tação do ad-vir” (ibid., p. 69), é pensar o homem como ser suspenso entre a finitude e o infinito.

É à luz desta compreensão do sentido da história e do homem que Maria do Carmo interpreta a ação dos portugue ses, o sentido do homem português: “A consciência portugue sa é como o fluir do Tejo e o ondular do mar: faz-se e opera entre o fatalismo do que a abarca em imensidão e ativa as ações pontilhando todos acontecimentos” (ibid., p. 60). É a partir de Fernando Pessoa que nossa autora reconhece o português como um peregrino, que constrói passagens; com o homo viator, cuja audácia expansionista se explica pela exigência interna “de estabelecer relações vitais com o mundo” (ibid., p. 61), de ampliar o sentido do humano, universalizá-lo, construindo o futuro. Herdeiro do messianismo hebraico, o povo português tece seu destino, através de “aventuras de cooperação”317. Lendo

316 Tempo Brasileiro, RJ, 1987.317 FREYRE, G., in TAVARES DE MIRANDA, M. C., op. cit., p. 62.

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o sentido de Portugal e a universalidade de sua experi ência através do Mensagem, de Pessoa, Maria do Carmo entende sua história como a do homem peregrino, em busca do Ser.

Não esgotamos as possibilidades de reflexão sobre ser e tempo, na escola hei-deggeriana; seria preciso examinar os textos sobre o sentido da história de Ernildo Stein, Carneiro Leão; o hegelianismo do Pe. Lima Vaz; a meditação culturalista de Reale; o tomismo aberto de Van Acker, dialogando com Bergson; os estudos sobre Teilhard de Chardin, de José Luis Archanjo.

Escolhemos nos deter em alguns autores cuja meditação-de inspiração agos-tiniana e/ou romântica e heideggeriana, estudiosos da mitologia – estabeleceu pontos que servem para refletirmos sobre o contato entre o pensamento português e brasileiro, ao afirmar a importância do mito, do futuro, para a compreensão da história.

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aspectos das filosofias brasileira e portuguesa depois de 1950 Entre 1950 e 1955, Vicente Ferreira da Silva, pensador reconhecido como

uma das mais originais expressões da atual filosofia brasileira318, afirmava uma vinculação com a cultura ocidental e sua representação da vida pondo em relevo a “isocracia” e a “isocronia” entre os pensamentos americano e europeu319.

É nesse horizonte, de permanente diálogo com a filosofia européia, que au-tores como o próprio Ferreira da Silva320, Renato Cirell Czerna321, H. Cláudio de Lima Vaz322, Lídia Acerboni323, L. Washington Vita324, A. Paim325, assinalam, de modo convergente, a presença de três grandes orientações na filosofia brasileira, a partir de 1950: a corrente existencial, a culturalista, a reflexão sobre a ciência. Esses três eixos, a nosso ver, estão polarizados por três pensadores: Vicente Fer-reira da Silva, Miguel Reale, Newton da Costa.

Foram eles os autores que dialogaram, de modo mais fecundo, com o pensa-mento ocidental de nossa época e cujas obras alcançaram maior repercussão fora do país. Todos reuniram, em torno de si, outros estudiosos e exprimiram uma reflexão original através de seus escritos.

Vicente Ferreira da Silva, nitidamente apoiado em Heidegger326, expõe e aco-lhe os temas-chaves do pensamento heideggeriano: a finitude; a liberdade como exercício num campo aberto de possibilidades; o Ser como o Nada, em relação ao mundo dos entes; a ruptura com a metafísica tradicional; a relação entre o ser e o sagrado. Mostrando aquilo que o diferencia de Heidegger, Vicente interpreta o Ser como Fascinação e a mitologia como protopoesia. A obra de Heidegger 318 PAIM, A., História das idéias filosóficas no Brasil, Londrina, UEL, 1997, pp. 696 e segs; KUJA-WSKI, G. De M., Discurso sobre a violência e outros ensaios, S. P., 1985, pp. 149-153; BRAZ TEI-XEIRA, A., O Espelho da razão, Londrina, UEL, 1997, pp. 223-226.319 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II, S. P., IBF, 1966, p. 256.320 Id., “Discurso sobre o pensamento filosófico contemporâneo”, 1950; “A situação atual da filo-sofia”, 1954; “Enzo Paci e o pensamento sul-americano”, 1955; “A situação da filosofia em nossos dias”, 1955 (todos os textos se acham no volume II das Obras Completas).321 “Panorama da Filosofia no Brasil”, Anais do 1º Congresso Brasileiro de Filosofia, S. P., IBF/EDUSP, 1950, p. 257.322 “O pensamento filosófico no Brasil de hoje”, in L. Franca, Noções de História da Filosofia, R. J., Agir, 1969, passim.323 A filosofia contemporânea no Brasil, S. P: Grijalbo, 1969, passim.324 Panorama da filosofia no Brasil, Porto Alegre: Globo, 1969, passim.325 Op. cit., passim.326 Cf. nosso “Heidegger no Brasil”, in O grupo de São Paulo, Lisboa, INCM, 2000, pp. 231-236.

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respondeu às indagações do próprio Vicente, confirmando sua problemática e possibilitando a caminhada de nosso pensador em direção à sua própria filoso-fia. Este propôs a supremacia do mito sobre o logos, de modo a tornar o pensar teofania religiosa e poética. Sua filosofia da mitologia representa a leitura mais interessante, no país, sobre a questão do mito. Pode ser considerado, por isso, como um precursor das atuais reflexões sobre o simbólico e o imaginário, na filosofia hermenêutica. A ressonância da obra de nosso filósofo é testemunhada por seu diálogo com pensadores do porte de Luigi Bagolini, Ernesto Grassi. Mas o diálogo maior foi sem dúvida o estabelecido com Eudoro de Sousa, que tem fontes comuns com o filósofo paulista.

Numa identidade quase textual com os escritos deste, os temas da oposição entre o mito e o logos, a aproximação entre a mitologia e a filosofia, a apreensão da corporeidade como expressão de um rito originário e de uma sacralidade meta-humana, apareceram como alguns dos pontos de convergência entre os filósofos brasileiro e português327.

A permanência do interesse pela obra de Heidegger é atestada, em Portugal, pela publicação, em 1989, de um número especial da revista da Sociedade Por-tuguesa de Filosofia328, com a colaboração de Nuno Nabais, Irene Borges Duarte, José A. Bragança de Miranda, apresentando artigos e um repertório bibliográ-fico das publicações (traduções, resenhas, monografias, artigos), em Portugal e no Brasil, sobre o filósofo alemão. Os números especiais da Revista Portuguesa de Filosofia329, o primeiro, dedicado a Heidegger; outro, no centenário de seu nascimento – trazem artigos de Carlos Henrique do Carmo Silva, Jorge Cesar das Neves, Carlos Estevão e, novamente, uma bibliografia de obras de e sobre Heidegger.

Retomada recente do assunto foi feita por Irene Borges Duarte e Alexandre Franco de Sá, examinando a recepção de Heidegger em Portugal e atualizando a bibliografia disponível até 1999330, reune a colaboração de Fernando Bernardo, João Constancio, Helder Lourenço, Vitor Moura, Bernhard Sylla, num projeto do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Irene Borges Duarte criou um grupo de estudos sobre Heidegger em Português. Teve apoio da Fundação Gulbenkian para publicar, com o grupo, traduções e edições críticas de textos de Heidegger: Caminhos de Floresta, em 1998; Lógica, em 2008. Publicou ainda os textos do Colóquio Internacional A Morte e a Origem, realizado em colaboração

327 SOUSA, E, de, Orfeu ou Acerca do conceito de Filosofia Antiga, S. P., RBF, IBF, vol. III, fasc. 3, nº 11, julho-set., 1953, pp. 384-399; FERREIRA DA SILVA, V., Orfeu e a Origem da Filosofia, in Obras Completas, vol. II, pp. 153-155. Cf. também ABRANCHES DE SOVERAL, E., Pensamento luso-brasileiro, Lisboa, ISNP, 1996, pp. 213-227.328 Filosofia, Lisboa, vol. III, nºs 1/2, outono.329 Braga, 1977; julho-set, tomo XLV, 1989, fasc.3.330 Philosophia, Departamento de Filosofia da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, nº 13, Abril de 1999, pp. 151-167.

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com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e a secção de Filosofia da Universidade de Évora, em torno de Heidegger e Freud em 2008, e em 2014, seu livro Arte e Técnica em Heidegger. Promove Seminário permanente dedicado à obra de Heidegger, em Évora. Destaque-se também a sua participação na publi-cação de número especial da RPF, em 2003, sobre a Herança de Heidegger.

Do lado brasileiro, as traduções e estudos sobre Heidegger estão presentes desde as décadas de 60/70, desdobrando-se até a década de 90, com os trabalhos de Carneiro Leão, Maria do Carmo Tavares de Miranda, Benedito Nunes, Gerd Bornheim, Ernildo Stein331. Muito importantes também: o estudo de João Ama-zonas Mac Dowell, A gênese da ontologia fundamental de Martin Heidegger332, publicado em 1970 e reeditado recentemente pela Loyola; a tradução de Ser e tempo333, por Márcia de Sá Cavalcanti, prefaciada por Emmanuel Carneiro Leão; e o aparecimento de Heráclito – mesma tradutora334 -, em 1988.

A permanência de estudos acadêmicos sobre a obra de Heidegger mostra o interesse das filosofias brasileira e portuguesa por esse autor. Mas a direção fe-cunda, presente em Vicente e Eudoro, ressoando em Adolpho Crippa de modo imediato, parece-nos provir de um diálogo, não apenas com Heidegger, mas com autores da Escola de Eranos, como Kerényi, Eliade, Jung. A apresentação da revista Diálogo, publicada em São Paulo e escrita por Vicente, mostra essa convergência. Estudos mais recentes, no Brasil, mostrou a crítica às associações da filosofia de Heidegger com o nazismo. Trata-se do ensaio Heidegger Réu, de Zeljko Loparic, publicado em 1990; os trabalhos de Leda Miranda Hühne (org.), sobre o poetar pensante em Pessoa e Heidegger, editado em 1994; as traduções, retomadas pela editora Vozes, de vários textos de Heidegger: os Seminários de Zollikon, A Caminho da Linguagem, Parmenides, Metafísica de Aristóteles 1-3, Ser e Verdade, e do estudo introdutório, Compreender Heidegger, por seu tradutor brasileiro, Marco Antonio Casanova. Destaque-se a realização, em Santa Catari-na, do I Simpósio Internacional Hermeneia, dedicado a Heidegger, organizado por Roberto Wu e Claudio Reichert do Nascimento, publicado com o título de A obra inédita de Heidegger, em 2012, com o apoio da CAPES e da Universidade Federal de Santa Catarina.

E é nessa direção, de um diálogo amplo com outras fontes: os autores pre-sentes na Escola de Eranos, que a importante meditação sobre o mítico e o sim-bólico ressurge, nos escritos de Gilbert Durand, da Escola de Grenoble, e de que, em Portugal, o livro Cavalaria Espiritual e Conquista do Mundo é exemplo paradigmático, como no Brasil o são os estudos de José Carlos de Paula Carvalho e Denis Badia, em São Paulo, e os de Danielle Rocha Pitta, em Recife.331 Cf. Heidegger no Brasil, in O Grupo de São Paulo.332 São Paulo, Herder/EDUSP.333 Petrópolis, Vozes, 1988, 2 vols.334 R. J., Relume-Dumará.

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A outra grande vertente do pensamento brasileiro é o culturalismo, cuja fi-gura de proa é Miguel Reale335. Na sua obra, três momentos são marcantes: sua inspiração inicial, na filosofia kantiana, que tem como ponto importante O di-reito como experiência, de 1968; o encontro com o pensamento fenomenológico, ultrapassando Kant, na direção do neo-criticismo de Brunschvicg e Bachelard e na descoberta das obras de Husserl, Scheler, Merleau-Ponty, de modo a ser supe-rada a oposição entre natureza e espírito, ser e dever-ser; a leitura da hermenêu-tica heideggeriana e de seus desdobramentos em Gadamer, bem como o relevo atribuido às hermenêuticas de Betti e Habermas, levando Reale além da posição husserliana e desenvolvendo uma reflexão crítico-histórica. Tal reflexão põe em primeiro plano a dialética homem-mundo, valoriza a intersubjetividade e desco-bre o ato interpretativo na sua natureza axiológica. A trajetória dessa superação acha-se sintetizada na obra Experiência e Cultura336, cuja primeira edição é de 1977, conforme mostrou Antonio Paim337 e em Verdade e Conjectura338.

A obra de Reale não sintetiza apenas sua trajetória; representa, também, a própria evolução histórica do pensamento brasileiro, que encontra na difusão da fenomenologia husserliana, nas de Scheler e de Merleau-Ponty, cultores expressi-vos. O trabalho sistemático de exame e difusão desses autores foi feito exemplar-mente por Creusa Capalbo, através de seu livro sobre Fenomenologia e Ciências Humanas, conforme mostram diversos estudiosos339. Diz José Maurício de Car-valho: “A contribuição de Creusa Capalbo foi a interpretação inovadora do método fenomenológico” (op. cit., p. 223), entendido como hermenêutica e dialética.

A escola fenomenológica é uma das mais representativas da nossa filosofia atual; dentre tradutores e intérpretes de Merleau-Ponty, por exemplo, temos: José Anchieta Correa, Salma Tannus Muchail, Antonio Muniz de Rezende, Marilena Chauí. Traduções e estudos das obras de Scheler também devem ser postos em relevo, como atestam as publicações feitas pela Editora Vozes, de Petrópolis.

Por sua vez, a escola hermenêutica, na tríplice orientação: como ontologia, a partir de Heidegger, Gadamer, Bachelard, Ricoeur; como metodologia, a partir de Betti; como crítica das ideologias, na linhagem de Habermas, Apel – vem de-sencadeando estudos, traduções, colóquios.

335 Cf. “A hermenêutica de Miguel Reale”, in O grupo de São Paulo, pp. 161-168.336 Há nova edição, em 2000, pela Bookseller, de Campinas.337 “Um marco fundamental da filosofia contemporânea”, S. P., Caderno de Sábado, Jornal da Tar-de, 16/09/2000, p. 30.338 R. J., Nova Fronteira, 1983; Lisboa, Fundação Lusíada, 1996.339 CORTES GUIMARÃES, A., O pensamento fenomenológico no Brasil, RBF, fasc. 198, Abril-Junho de 2000, pp. 266-267; SEVERINO, A. J., A Filosofia contemporânea no Brasil, R. J., Vozes, 1999, p. 107; A. Paim, op. cit., p. 691 e segs.; CARVALHO, J. M. de, Curso de introdução à filosofia brasileira, Londrina, CEFIL/UEL, 2000, pp. 221-232.

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Assim, temos as traduções de Verdade e método340; da Hermenêutica, de Sch-leiermacher341; de A transformação da filosofia, de Apel342; dos textos de Haber-mas: Dialética e hermenêutica343; Pensamento pós-metafísico344; Consciência mo-ral e agir comunicativo345. Dentre os cultores da obra de Habermas, podemos destacar: Flávio Siebeneichler, L. Bernardo Leite Araújo, Álvaro Valls.

A hermenêutica francesa, de Bachelard, foi objeto de um colóquio em Cam-pinas, na PUC, reunindo estudiosos como Maria do Carmo Tavares de Miranda, Elyana Barbosa, Marly Bulcão, Mirian de Carvalho; a filosofia de Ricoeur foi tema de congresso no Rio de Janeiro, organizado por Alino Lorenzon. As obras de Ricoeur foram divulgadas em traduções e escritos de Hilton Japiassu e foi objeto do Colóquio na UNICAMP, editado em 2011; do II Simpósio Hermeneia, na UFSC em Santa Catarina, organizado por Roberto Wu e Claudio Richert do Nascimento e de inúmeros eventos, no Brasil e na América Latina, destacando-se o importante Congresso Internacional realizado na PUC do Rio de Janeiro: Paul Ricoeur. Ética, Identidade e Reconhecimento, em 2011 e cujas conferências plenárias foram publicadas pela Ed. Loyola/PUC do Rio, em 2013. A obra de Ri-coeur vem sendo traduzida pela editora Loyola e editada também pela Martins Fontes e editora da UNICAMP.

Estudos sobre o filósofo foram organizados por Ruth Rieth Leonhardt e Elsio José Corá, na UNICENTRO, e publicados em 2011; e dentre os estudiosos de seu pensamento, destacamos Hélio Gentil, Jeanne-Marie Gagnebin, Maria da Penha Villela-Petit, que trabalham em colaboração com o Fonds Ricouer, de Paris.

No âmbito da filosofia do direito, a hermenêutica é estudada por Nelson Sal-danha, de Recife e professores do Rio Grande do Sul. Ricoeur e Gadamer, Betti, despertam interesse.

As traduções portuguesas das obras de Bachelard; as dos livros de Palmer e Bleicher, respectivamente sobre história da hermenêutica e sobre as suas cor-rentes contemporâneas346; os artigos de Dias Costa, Estanqueiro Rocha, F. Hen-riques, Sirgado Ganho e M. Sumares, sobre Ricoeur, na Revista Portuguesa de Filosofia347; o estudo crítico sobre o problema do conflito das interpretações, de Maria Portocarrero348, que já publicara texto sobre Gadamer; as traduções de Ricoeur pelo Instituto Piaget (O justo), bem como do importante estudo de 340 Petrópolis, Vozes, 1997.341 Petrópolis, Vozes, 1997.342 S. Paulo, Loyola, 2000.343 Porto Alegre, L&PM Ed., 1987. Tradução e introdução de Álvaro Valls.344 R. J., Tempo Brasileiro, 1990.345 Mesma editora.346 Lisboa, Ed. 70.347 Janeiro-Março de 1990.348 Ed. Univ. de Coimbra. Maria Luiza Portocarrero mantém um Seminário permanente, na Uni-versidade de Coimbra, dedicado a Paul Ricoeur.

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Mongin, A promessa e a regra – parecem assinalar a vitalidade, em Portugal, dos trabalhos sobre tais autores. Em Évora, Maria Fernanda Henriques organizou congressos internacionais sobre Ricouer; e Margarida Amoedo organizou um acervo bibliográfico sobre Ricouer em português.

As filosofias fenomenológica e hermenêutica, valorizando a dimensão sim-bólica do pensar, podem ser um fio condutor para a compreensão de pensadores portugueses contemporâneos que, meditando sobre os mitos, buscam decifrar o significado do mundo de língua portuguesa: Afonso Botelho – Teoria do amor e da morte; Antonio Quadros, – Portugal: razão e mistério; Agostinho da Silva – Dispersos, Escritos filosóficos I, II; Francisco da Gama Caeiro; Dalila Pereira da Costa – são impulsionadores desse tipo de reflexão.

Compreender a repercussão da filosofia hermenêutica, na linhagem de Hei-degger, Gadamer, Bachelard, Ricoeur, em Portugal e no Brasil; entender o sig-nificado dessa valorização do mítico, do poético, do simbólico, nesses grandes mestres – é examinar como, dando a pensar, tal filosofia pode sugerir-nos cami-nhos para decifrarmos a nós mesmos.

Por sendas análogas, dialogando com esses autores, Reale elaborou sua on-tologia centrada no valor da pessoa. Em Portugal, fontes semelhantes podem indicar uma comum experiência da mesma vida do espírito.

Com papel aglutinador semelhante ao de Miguel Reale, trabalhando no cam-po de uma meditação sobre a filosofia do Direito e propondo uma concepção metafísica do homem, tem Portugal, a nosso ver, António Braz Teixeira. Esses filósofos – Reale e Braz Teixeira, não têm as mesmas posições filosóficas, não utilizam as mesmas fontes. Mas convergem no interesse pelo axiológico e na tematização da justiça, na afirmação do valor da pessoa humana, no reconheci-mento de uma dimensão transcendente, no interesse pelas filosofias nacionais e no esforço de dialogar com as diferentes correntes contemporâneas.

O livro de Braz Teixeira, Sentido e valor do Direito (Lisboa, Imprensa Nacio-nal); seus estudos sobre a saudade; seu trabalho de altíssima qualidade no exame comparativo das filosofias brasileira portuguesa349 – fazem de nosso filósofo um dos autores mais expressivos da atualidade, em Portugal.

A terceira direção significativa, entre nós, brasileiros, pode ser representada pela obra de Newton da Costa, que constituiu uma original versão de lógicas não-clássicas: a lógica paraconsistente.

Newton da Costa é um dos autores que, meditando sobre a lógica, a filosofia da ciência, é considerado criador de uma modalidade das lógicas difusas. Nessa

349 Como atestam, v. g.: O Espelho da Razão: estudos sobre o pensamento filosófico brasileiro (1997), dentre muitos outros escritos. E os recentes: História da Filosofia do Direito Portuguesa (2005); A Filosofia Jurídica Brasileira do século XIX (2011); A Teoria do Mito na Filosofia Luso-Brasileira Contemporânea (2014).

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lógica, a reflexão sobre o tema da quase-verdade o levou a desenvolver o conceito de verdade pragmática, a partir da constatação de que “as teorias científicas pos-suem campos de aplicação limitados, não sendo verdadeiras de forma irrestrita”350. Nosso filósofo teria reformulado as noções de indução e probabilidade, critican-do Quine e Popper. Sua concepção de racionalidade científica mostra o cientista como um elaborador de conceitos; o procedimento racional é identificado ao “proceder conceitualmente” (ibid., p. 275). O critério para escolhermos deter-minada lógica ou determinada teoria “é o critério pragmático (...) [que leva] em conta a clareza, a intuitividade, a expressabilidade (...) das entidades envolvidas” (ibid., p. 276). O pensador reconhece a existência de entidades contraditórias, uma vez que a lógica paraconsistente recusa o princípio de não-contradição e aceita teorias inconsistentes.

Os campos privilegiados de interesse de Newton da Costa e de seu grupo de pesquisas – é preciso dizer que ele influiu largamente no surto de estudos de lógicas não-clássicas – são as implicações filosóficas da matemática e da física, pois, “como é bem sabido, duas das teorias mais importantes de nossa época (...) a mecânica quântica e a relatividade (...) apesar de aparentemente elas serem com-plementares (...) são incompatíveis” (ibid., p. 277). Daí Newton da Costa supor, no dizer de Krause, que “talvez a lógica dedutiva usada pela física possa ser a lógica paraconsistente”.

Newton da Costa não é o único cultor de lógicas não-clássicas entre nós. Mas é sem dúvida aquele cujos trabalhos alcançaram repercussão internacional. A Sociedade Brasileira de Lógica, atualmente dirigida por Ítala d’Ottaviano, mos-tra, nas suas investigações, a influência marcante das pesquisas do nosso autor. A lógica matemática teve entre seus divulgadores Leônidas Hegenberg; a filosofia da ciência e da tecnologia foram abordadas por Milton Vargas em Ciência e Ver-dade e em Filosofia da Tecnologia, obras em que a investigação das implicações humanas da ciência e da técnica ocupam o primeiro plano das reflexões. A filo-sofia analítica, nas suas variadas manifestações, vem representando um campo importante na atual filosofia brasileira, especialmente através das divulgações de Danilo Marcondes, Alberto Oliva, Maria Cacília Carvalho351, culminando com a criação, em Campinas, da Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica.

Um filósofo que trabalhou largo tempo na Universidade de São Paulo, convi-vendo com Newton da Costa e seu grupo, é um dos representantes da meditação sobre a ciência em Portugal. Trata-se de João Paulo Monteiro, cujos trabalhos sobre Hume e sobre o ceticismo são especialmente interessantes.

350 Cf., a propósito da importância de Newton da Costa, o artigo de Décio Krause, “Newton da Costa: homenagem aos seus 70 anos”, publicado na Revista Brasileira de Filosofia, vol. L, fasc. 198, Abril-Junho 2000, pp. 268-280. A citação acha-se na p. 274.351 A filosofia analítica no Brasil, Campinas, Papirus.

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E, numa outra direção, mais próxima da inspiração fenomenológica, os es-critos de Miranda Barbosa sobre a Lógica Pura352, entendida como fundamenta-ção da axiologia mostram a presença desse tipo de inquietação na atual filosofia portuguesa.

Nossa abordagem está longe de ser exaustiva; busca apenas indicar três gran-des direções, centradas em pensadores representativos, dos dois lados do Atlân-tico. Essas orientações da filosofia atual emergiram do exame cronológico das principais correntes européias depois de 50. Um levantamento bibliográfico das publicações apenas começa a ser feito, bem como a identificação dos grupos de pesquisa. A criação da Associação Nacional da Pós-graduação em Filosofia, que reune junto ao Ministério da Educação grupos de trabalho interuniversitários e promove encontros bi-anuais, a cada vez em um ponto diferente do país e tem publicado os resultados das pesquisas e as listas dos grupos de estudos no Brasil. Nesses encontros as principais editoras brasileiras apresentam os trabalhos mais recentes publicados pelos pesquisadores.

Os trabalhos de A. Paim, António Braz Teixeira, Eduardo Abranches de So-veral, Esteves Pereira, começam a indicar as imensas possibilidades de estudos comparados, que podem e devem ser feitos, sobre a riquíssima produção da se-gunda metade do século, em nossos países.

352 SOVERAL, E. A. de., “Algumas notas sobre a gênese do pensamento de Miranda Barbosa”; “Sobre a essência do conhecimento”, in Pensamento Luso-Brasileiro, Lisboa, ISNP, 1996, pp. 89-98 e 99-110.

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antônio Paim e a história das idéias filosóficas no Brasil: questão de método

Falar sobre a História da Filosofia no Brasil, na década de 90, é falar sobre a contribuição essencial de António Paim para nossa atual compre ensão do as-sunto.

O grande texto publicado em 1967, História das Idéias Filosóficas no Brasil, lhe valeu o Prêmio do Instituto Nacional do Livro em 1968 e o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas em 1985; foi sucedido por diversos trabalhos, dos quais destacaremos, na mesma linha de visão de conjunto: O Estudo do Pensamento Fi-losófico Brasileiro, de 1979, que conheceu uma segunda edição em 1986, enrique-cida e atualizada, com a indicação de obras gerais e de novos autores e correntes; e A Filosofia Brasileira, de 1991, editada pelo ICALP.

Sua abordagem da história do pensamento brasileiro surge, confor me depoi-mento do próprio Pairn, a partir de dois elementos centrais: a crítica a Sílvio Ro-mero, Cruz Costa e Leonel Franca, buscando precisão metodológica na escolha de autores relevantes; a inspiração na obra de Miguel Reale, que o leva a tratar da história da filosofia a partir da iden tificação de problemas e temas dominan-tes, em cada época, e a resposta peculiar dada aos mesmos em cada momento histórico.

Podemos indicar, assim, o estudo do ecletismo, do kantismo, do sur to do po-sitivismo, da Escola de Recife, do neo-kantismo, marxismo, fenomenologia, cul-turalismo, filosofia analítica e liberalismo contempo râneo, como assuntos que vão sucessivamente despertar seu interesse.

Na obra História das Idéias Filosóficas no Brasil Paim estabeleceu as linhas mestras de sua investigação ulterior. Sua formação inicial foi marxista; de-pois, na USP, dedicou-se à leitura direta dos autores – Aristóteles, Kant, etc. -, que conhecera anteriormente apenas através da crítica marxista. Estudou detalhadamente a obra de Kant, daí decorrendo sua aproximação com a es-cola culturalista atual. Sob a influência do marxismo e de Hegel, bem como de Cousin, entende a história da Filosofia de modo cíclico. A história da Filo-sofia seria caracterizada por uma regularidade de ascensão e decadência das escolas, a partir do desenvolvimento de problemas centrais.

Na história da filosofia brasileira, nosso autor identificou três temas recor-rentes: o do homem como liberdade, que implica uma acepção de pessoa e um

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ideal de homem e que comporta duas respostas antagônicas: a que afirma o homem como ser livre e a que o considera como alguém que pode ser ma-nipulado. O outro tema é o das relações entre filosofia e ciência; ao longo de nossa história do pensamento essa relação foi apre sentada ora sob a égide do cientificismo, ora de sua crítica.

A questão das relações entre ética e política, o papel da filosofia política também é considerado por António Paim como um dos assuntos que tem merecido atenção constante dos nossos estudiosos.

Vamos nos deter, para exemplificar a metodologia de Paim, nas duas escolas filosóficas em cujo exame o emprego do método pareceu-nos mais evidentes: o ecletismo e o positivismo.

A indagação que serve de ponto de partida para o exame do ecletismo foi: Por que tal escola se tornou a corrente dominante no Brasil do século XVIII?

A resposta a esta questão o levou a avaliar o ciclo da meditação que se seguiu à reforma pombalina. O empirismo mitigado da era pombalina, expresso na crí-tica à Escolástica feita por Vemey, implicava na redução da filosofia à ciência; foi sucedido pelo tradicionalismo, que reafirmou os valores da antiga Escolástica. É nesse contexto que surge a figura de Silvestre Pinheiro Ferreira, cujas principais contribuições foram: a “crítica aprofundada do empirismo, a tematização da linguagem e do homem como liberdade, a proposta de uma ética inspirada no utilitarismo e a defesa do liberalismo político. Sua ênfase no tema da liberdade o aproximou, segun do Paim, das teses de Maine de Biran; sua meditação “era a ante-sala do que veio a ser chamado de ecletismo espiritualista”353.

Silvestre Pinheiro Ferreira teria sido o iniciador do pensamento brasileiro, na medida em que, embora português por nascimento, residiu lon go tempo no Brasil, aqui ensinando a filosofia e marcando a formação da elite brasileira.

O exame do ecletismo obedece aos parâmetros metódicos que assina lamos anteriormente: a formação, o apogeu e o declínio da escola. Segun do Paim, entre 1833 e 1848 surge o ecletismo espiritualista, como “pri meira corrente de filosofia rigorosamente estruturada”354.

O problema que se apresentava para os intelectuais da escola era o de integrar a liberdade e o liberalismo político numa visão empirista coeren te355.

Os critérios para a seleção dos autores relevantes da Escola eclética, no seu período de formação, foram:

a) a atividade de vulgarização das idéias ecléticas, mediante cursos, por Frei José do Espírito Santo (Olinda), Salustiano José Pedroza (Bahia), Gonçal-

353 A Filosofia Brasilei ra, p. 31.354 “A trajetória da filosofia no Brasil”, in FERRI & MOTOYAMA, História das ciências no Brasil, vol I, p. 14.355 O estudo do pensamento filosófico brasileiro, p. 46.

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ves de Magalhães (Rio de Janeiro), os quais valorizam as obras de Cousin, Royer-Collard, Jouffroy;

b) as traduções das obras de Cousin, por António Pedro de Figueiredo, em Recife, e por Moraes e Vale, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro;

c) o conhecimento dos autores franceses, por nossos estudiosos (alguns deles tendo vivido na França como Magalhães e Pedroza), e atestada pela cor-respondência de Gonçalves de Magalhães e Mont’Alverne, mencionando Cousin, Jouffroy (ibid., p. 43).

d) as publicações de manuais de difusão da escola eclética, como o Esboço da História da Filosofia e o Compêndio de Filosofia Elementar, de Salustiano Pedroza, e o Compêndio de Filosofia Elementar, de Frei Itaparica, mestre de Tobias Barreto;

e) o exame das revistas e publicações periódicas dedicadas à difusão do ecle-tismo, como a Minerva Brasiliense (Rio de Janeiro), O Progresso (Recife, direção de António Pedro de Figueiredo) com, respec tivamente, 3 e 2 anos de duração; o Mosaico (Bahia), O Crepúsculo (Bahia);

f) a discussão filosófica nas Faculdades de Direito de São Pau lo e Recife, e nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia;

g) “o concurso para provimento da cadeira de filosofia (o gri fo é nosso) no Colégio Pedro II (...) em 1844 (...) é transformado em evento consagrador do ecletismo”356.

No momento de formação, a escola eclética aparece pois ligada ao debate filosófico, polemizando contra o espiritualismo de João da Veiga Murici e contra os naturalistas, de que Manoel Genésio Oliveira e Eduar do Ferreira França são os representantes. O tema da liberdade e a ação política levam os espiritualistas a polêmicas com os tradicionalistas, que então propunham “a pura e simples adesão aos dogmas cristãos”357.

No período de apogeu, a relevância dos autores é estabelecida a par tir de:a) identificação de obras importantes, com ressonância na Eu ropa, como

Fatos do Espírito Humano, de Gonçalves de Magalhães, que publicou também A alma e o cérebro, e o Ensaio sobre o direito adminis trativo, do Visconde de Uruguai;

b) a difusão do ecletismo nas escolas oficiais, como o Colégio Pedro II e os liceus estaduais, nas décadas de 50 a 80 do século passado. No Colé-gio Pedro II, por exemplo, foi adotado o compêndio de Janet “e até cuidou-se de sua tradução” (o grifo é nosso)358;

356 A filosofia brasileira, p. 40.357 O estu do do pensamento filosófico brasileiro, p. 44.358 A filosofia brasileira, p. 59.

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c) o exame do debate sobre o fundamento da moral, através dos periódicos da época: O Progresso, A Carteira.

A seleção dos autores é feita a partir da expressão social, política e literária destes e da ressonância de sua obra; assim, com Sílvio Romero, Paim põe em destaque: “Monte Alverne, famoso pregador na sede do Im pério; Moraes e Vale, que foi diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; e Domingos de Magalhães, figura de proa do romantismo e da vida política” (ibid., p. 49).

No período de apogeu, a temática filosófica da escola eclética assu me cunho ético-político; está vinculada à busca dos fundamentos “da mo-ral, em bases modernas, que Biran não lograra estabelecer” (ibid., p. 50). Gonçalves de Magalhães aparece como o autor mais representativo desse momento, sendo reconhecido como alguém que buscou “um caminho pró prio, independente de seus mestres franceses (...)”, abandonando “o espiritualismo realista de Cousin (...)” por um “idealismo espiritualista” (ibid., p. 53-54).

Combatido intensamente pelo tradicionalismo católico, de que D. Romualdo de Seixas, primaz do Brasil, foi expoente – através da im-prensa católica, e pelo tradicionalismo de cunho político, de que José de Gama e Castro seria figura destacada, o ecletismo começa a declinar a partir da ascensão do positivismo, do chamado “surto das ideias novas” que reafirmava o científicismo e da queda do Império.

Assim, a ascensão do positivismo dá-se de modo significativo a par-tir da República, pois a “maioria dos espíritos aderiu à suposição de que haveria filosofia, política e moral científicas”359.

O pensamento de Comte se adequava a um modo de encarar as rela ções entre filosofia e ciência que encontrava ressonâncias entre nós, pre parado que foi pelo cientificismo do século XVIII, apoiado por Pombal. No seminário de Olinda e na Real Academia Militar, o cientificismo se difundiu, afirmando a relação entre filosofia, ciência, política e moral.

É sobretudo na vertente chamada de positivismo ilustrado que a re lação entre filosofia e política alcança, no Brasil, maior expressão: com o castilhismo, Borges de Medeiros, Pinheiro Machado e Getúlio Vargas. Sob a inspiração de Comte, Júlio de Castilhos elabora uma Constituição estadual e relaciona poder e saber.

O positivismo, no seu apogeu, expressa-se por uma filosofia política de feição autoritária; uma filosofia da educação que recusa a Universida de, em favor do ensino profissionalizante; e uma filosofia moral que subordina toda conduta às normas da Igreja positiva.359 O estudo do pensamento filosófico brasileiro, p. 104.

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A relevância dos autores é estabelecida pela ressonância de sua atuação, bem como pela difusão do positivismo nas escolas e junto às elites: Alberto Sales, Luís Pereira Barreto, Benjamin Constant são alguns dos nomes relacionados.

O período de decadência do positivismo ocorre no momento em que uma nova concepção de ciência – e das relações entre filosofia e ciência – emerge na vida brasileira. Sinais marcantes disso: a mudança de orienta ção do ensino no Colégio Pedro II, que deixa de se inspirar na corrente francesa, e a crítica à con-cepção de ciência do comtismo, pela elite da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que tem como figuras de proa Otto de Alencar e Amoroso Costa.

No âmbito da filosofia política e das relações entre filosofia e eco nomia, o cien-tificismo sobreviveu, por algum tempo ainda, na variante marxista. No Rio de Janeiro, na Faculdade de Direito, Leonidas de Rezende, Hermes Lima e Edgard de Castro Rebelo desenvolveram o chamado marxismo acadêmico.

A relevância dos autores foi estabelecida a partir da contribuição original a) que puderam fazer, ao enfocar as relações entre filosofia e política, b) a ressonân-cia de suas idéias até mesmo na “pregação de repre sentantes dos profissionais de polítíca” (ibid., p. 115).

A atuação de Cruz Costa na USP e a adesão de Álvaro Vieira Pinto na Uni-versidade do Brasil à corrente marxista, deram origem à tentativa de aproxima-ção entre positivismo e marxismo e à “versão positivista do marxismo” (ibid., p. 116).

É, contudo, no âmbito das relações filosofia-ciência e da filosofia política que o cientificismo de inspiração marxista encontra maior ex pressão. Paim assinala a contribuição original de Caio Prado Jr., cujo economicismo, no dizer de Paim, influi sobre sociólogos e economistas brasileiros, fazendo escola. Ele aponta ain-da a tradução de livros de Kautsky, Labriola e Engels, como instrumentos de di-fusão de ideias, bem como os recentes estudos e divulgação das obras de Lukács e Gramsci.

Em resumo, podemos dizer que a temática das relações entre filoso fia e ciên-cia, da filosofia política e da filosofia moral persistem como axiais no pensamento brasileiro de inspiração positivista; e que a escolha e de terminação da relevância dos autores deu-se, analogamente ao exame do ecletismo e segundo os mesmos critérios metodológicos, mediante: a) a atividade de vulgarização (Seminário de Olinda, Real Academia Militar), b) o conhecimento da obra de Comte (Benjamin Constant), a açao políti ca (Castilhismo, Pinheiro Machado, Getúlio Vargas), c) a repercussão na educação (ênfase no ensino profissional, orientação filosófica dominante do Colégio Pedro II), d) a importância da filosofia moral (A Igreja positivista); e) a significação e originalidade de seus intérpretes (positivismo ilus-trado, versão positivista do marxismo: Álvaro Vieira Pinto, Cruz Costa).

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A crítica ao positivismo terá sua primeira grande expressão na cor rente neo-kantiana, que inspirou a trajetória da filosofia na Escola Poli técnica do Rio de Janeiro, a partir da obra de Brunschvicg (ibid., p. 125 e segs), bem como no culturalismo, a partir de Lask, Radbruch e Cabral de Moncada – seu introdutor em Portugal.

A larga influência ulterior do culturalismo, sobretudo através da obra de Mi-guel Reale, assinala um novo ciclo do pensamento brasileiro, cuja ascensão se inicia na primeira metade do século e cujo apogeu se expressa contemporane-amente, tendo como eixo de manifestação a plural atividade do Instituto Brasi-leiro de Filosofia. No exame da crítica ao positivismo, o critério metodológico será compreender como os ciclos de ascensão e do apogeu das novas idéias se manifestam: questão de método.

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o orientalismo de Cecília Meireles

Cecília Meireles nasceu no Brasil, no Rio de Janeiro, a sete de novembro de 1901; aí faleceu, a nove de novem bro de 1964. De ascendência açoriana, pelo lado materno, dedi cou-se ao estudo das línguas, do canto e do violino, da literatu ra, filosofia e história. Foi professora, a partir de 1935, na Uni versidade do Distrito Federal, aí oferecendo cursos sobre literatura luso-brasileira, literatura compara-da e literatura ori ental. Fez inúmeras conferências sobre Gandhi, Tagore, Saroji-ni Nidu, traduzindo poemas destes últimos. Em 1953 viajou à Índia, tornando-se sócia do Instituto Vasco da Gama, em Goa, e rece bendo o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Entre 53 e 59 colaborou no “Suple-mento Literario” do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. Em 1953 publicou, no Rio, pela Livraria São José, os Poemas Escritos na Índia. E entre 60 e 63, publicou “Gandhi, um herói desarmado?” in Grandes Vocações (S. P., Donato Ed.).

A orientação metafísica dos escritos de Cecília Meireles é marcante, como o assinalam Nuno Sampaio, Paulo Ronai, Darcy Damasceno, entre outros. Vamos nos ater à imagem da Índia, tal como esta emerge nos textos da poetisa. Que é a Índia, para Cecília? É, antes de mais nada, o mundo sensível e seus elemen-tos: cores, tipos, animais, eventos naturais dominantes. É o percurso através das cidades aborda das naquilo que as caracteriza como paisagem, personagens ou trabalhos.

A Índia é, nos poemas, o espaço sagrado por excelên cia, onde o tempo ime-morial, das origens, marca a existência quo tidiana. É a sacralidade da existência concreta, onde a casa, as fa mílias, sugerem a doçura e o mundo venerável onde os homens e os deuses mesclam suas trajetórias. Aí, os gestos hieráticos repe tem os ritos, tornando os homens graves e serenos.

É nesse quotidiano que se explicita o princípio en raizado na grande tradição dos Vedas, do bramanismo e do bu dismo: Ahimsa, o amor a todos os seres, tra-duzido na não-vio lência e na compaixão, notas dominantes do comportamento indiano que alcançam expressão nas palavras iluminadas de Tagore e Gandhi.

A pobreza é vista como despojamento, como ideal de vida e de ascetismo; há também o reconhecimento da unida de de todas as coisas, exposta miticamente na tradição indiana pela harmonia criada pelos Gandharvas, músicos celestes.

Detalharemos a seguir os temas supra. Nestes, os perfumes e cores descre-vem os homens e a terra: é o vermelho e o azul, ouro, prata, negro, rosa, açafrão.

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São as especiarias, o sândalo, os “Aromas de frutas, incenso, flor, óleo fervente.” (Bazar).

Das crianças aos adultos, a poetisa mostra com enor me delicadeza, o povo oriental. Meninos e seus afazeres, meni nos e seus brinquedos, têm “rosto de tâ-mara, / tênue como a palha de arroz / (...) os meninos de retrós e sândalo” (Can-ção do menino que dorme).

No tempo arcaico em que vivem mergulhadas, na civilização milenar que representam, “as mães contam histórias à sombra dos templos / para meninos tênues, fluidos como nuvens” (Os jumentinhos).

A adolescência também é abordada por Cecília que recria as lendas, a con-vivência harmoniosa da jovem com o mundo, a solidão lúdica: “As solas de teus pés pintados de ver melho. De teus pés correndo no verde chão do parque / (...) sob a orla dourada da seda azul/ (...) (A moça brincava sozinha, / ia e vinha assim com o ar, com a luz...) (Adolescente). A beleza e o mistério, a nobreza dos gestos e das pessoas são evidenciados pela descrição das jovens: “E havia a moça, pássa-ro, princesa, / com uma diáfana voz de sol e de flores” (Aparecimento).

As mulheres resplandecem, mesmo nas tarefas mais humildes: “os vasos de cobre polido que elas carregam / como coroas (...)” (Manhã de Bangalore); seu andar é “o passo rítmi co das mulheres majestosas” (Bazar).

E tudo é cor e perfume, altivez de um povo sagra do: “Os saris de seda relu-zem / (...) Nas narinas fulgem diaman tes / (...) e luar e lótus entre os cílios. / Há pimenta, erva doce e cravo, / crepitando em cada sorriso” (Família Hindu).

A humildade, a abertura ao sonho, mostram-se nos homens e na família. Até o pedinte, no gesto de pedir, revela a transcendência: “Ele estava de mãos postas / e, ao pedir, aben çoava. / Era um homem tão antigo / que parecia imortal. / Tão pobre / que parecia divino” (Pobreza).

O pobre e o santo, o homem-santo, tão popular na tradição indiana se asse-melham: “O Santo passou por aqui. / Tudo ficou bom para sempre / tal foi sua santidade. / Tudo sem temor” (Santidade).

O cego para o mundo, vidente ao nível do espírito, sonha e vê, como o astró-logo: “A mão do cego vai na mão do menino. / Suas barbas são do vento. / Seus olhos são do sonho” (Cego em Haiderabade). O astrólogo, “Era o vidente do ar. / Tinha uma loja azul-cobalto, / claro céu dentro do bazar. / Teto e paredes só de estrêlas: e a lua no melhor lugar.” (Loja do astrólogo).

Varrendo, tecendo, os homens e as mulheres cinti lam: a mulher “Varre seu próprio rastro. / (...) Recolhe à som bra/ suas luzes; ouro / prata, / azul” (Humilda-de); os bordadores de Cachemir, de “finos dedos”, tecem, voam, como pássaros, “inventando flores / que não morrem nunca” (Canto aos Bordadores de Cache-mir). O sagrado, o amor, mesclados ao quotidiano, ex pressam-se nos gestos de

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amizade e caracterizam “os homens altivos, / serenos e graves, / com um sangue sem violência/ e um coração de liberdade.” (Parada), pois “quando alguém fala é tão doce / como o claro cantar dos rios, / numa sombra de cinamomo, / açafrão, sândalo e colírio” (Família Hindu). Nessa mesma perspectiva, a poetisa vê as casas do Oriente: “A casa cheirava a especiarias / e o copeiro deslizava descalço / (...) / anjo da aurora entre paredes brancas” (Aparecimento). No meio do campo, a casa é celebração da vida; seus donos, mostram nas suas pessoas o hierático ancestral: “O dono da casa era ao mesmo tempo / inatual como um rei antigo / e simples e próximo como um parente / (...) Sua mulher ainda usava um diamante na narina/ e em sua cabeça pousavam muitas coroas / de histórias antigas e can-ções de amor.” (id.).

O colorido e os perfumes, a serenidade dos tipos humanos, mostram-se até mesmo num bazar: “Jardins borda dos: roupas, sandálias / como escrínios de sêda para alfanges. / E negros olhos. / Molhos de penas de pavão. Colares de nardo / a morrerem entre tufos de fios de ouro. / E os delicadíssimos dedos. / Pratos de doces verdes e cores-rosa: / pistache, côco, amêndoa, gulah. / Lábios de veludo.” (Bazar).

A descrição do mundo feita nos poemas põe em evidência a sacralidade da existência e os ritos que assinalam seus momentos importantes. A vida é rito, no espaço sagrado e no tempo ancestral, que regem o quotidiano. Aí, “invisíveis ca banas acordam, / cinzentas e obscuras, / porém cheias de deuses sob os tetos de palha.” (Manhã de Bangalore). Nesse mundo, “Tudo está coberto de aroma. / Em cada gesto existe um rito.” (Família Hindu). E os homens são associados aos deuses, nas suas tarefas: “Bem de madrugada. / deuses? Sacerdotes? Mági cos? Patriarcas? / (...) Os homens esposam a terra, semente, água, / (...) com reveren-tes gestos” (Bem de madrugada).

A sacralidade da ação expõe o amor reverente do homem pela natureza: “Não deixaremos o jardim morrer de sêde. / Mali asperge com um pouco d’água as plantas. / Como quem rega? Como quem reza.” (Romãs).

A sacralidade da ação expressa-se também na repe tição dos gestos ancestrais, no reconhecimento da transcendência através da música; não esqueçamos dos Gandharvas, músicos celestes, símbolos da harmonia cósmica, na mitologia in-diana: “Pelos degraus daquela música, Bhai, / podia-se ver além do mundo, além das formas / e do arabesco das estrêlas do céu, / (...) na clara noite – toda azul como o deus Khrisna -/Tão frágil sopro em flauta rústica, Bhai – como o da vida em nossos lábi os provisórios... / – um amor? queixume, pensamento? /(...) / da vida é morte, que dizemos, Bhai, e a quem?” (Música).

O mundo indiano é o mundo onde ainda se reco nhecem os animais como sagrados e onde a não-violência se ex pressa como respeito e acolhimento às di-ferentes formas de vida. Nos poemas de Cecília, além da descrição dos tipos

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humanos, encontramos a da terra e dos animais, pondo em relêvo a con vivência pacífica dos diferentes reinos. Assim, “Mulheres de saris vermelhos e azuis, / homens com velhas tangas / crianças more nas e dóceis, / tudo se mistura com veneráveis bois (...)/ E de pois há campos verdes, campos. / campos de mostarda em flor, campos...” (Campo na Índia, in Dispersos).

Os animais são búfalos, pássaros, macacos, elefan tes, cavalos, jumentos, ca-melos: “De uma exígua moita/ sai de repente um bando imenso de pássaros: / como um fogo de artifício todo de estrêlas azuis” (Campo na Índia); “E no par-que, os pavões, também vestidos de sol e céu” (Adolescente).

Os macacos, os camelos, os jumentos, acham-se mis turados à vida da cida-de: “Ah, os macaquinhos do templo de Rama/ constroem rendadas pontes de bambu.” (Canção do me nino que dorme); “E os camelos parecem moldados no barro” (Campo na Índia); “Então, à tarde, vêm os jumentinhos / de movimentos um pouco alquebrados, / cinzentos, brancos – e car regados/ com grandes trou-xas das lavadeiras” (Os jumentinhos).

A ancestralidade dos movimentos, o tempo ime morial de que a Índia emerge, aparecem através da descrição dos búfalos: “Búfalos negros, curvos e mansos, / – oh, movi mentos seculares! – / odres de leite, sonho e silêncio.” (Banho de búfalos).

Os elefantes, Cecília os vê como: “fatigado patriar ca” ou “avô complacente”, “ancião” (O Elefante, Jaipur).

Os cavalos são os “cavalinhos de Delhi”, colori dos, enfeitados; são “os cavalos do Marajá”, cobertos de sêda (Cavalariças).

Na descrição do país, Cecília evoca as cores da ter ra: “A estrada – pó de aça-frão que o vento desmancha” (Cidade Sêca). Aí estão o pó, a solidão, as tama-reiras; aí “Os rios – valas amarelas. / O pó que o vento levantava/ (...) O sol baço de névoa e pó. O sol que os monges de Ajanta viram / quando lavravam seus mosteiros nestas rochas” (Horizonte).

A Índia é o país das grandes tempestades de verão: “relâmpagos azuis voavam entre os cântaros, / retalhando os la gos. /Tremiam veludos e sêdas. / e o pólem delicado, / na noite violenta.” (Tempestade).

A Índia é o Ganges, o rio sagrado, que percorre a existência do nascimento à morte: “Eis o Ganges que vem de longe para servir aos homens / (...) Eis o Gan-ges que diz adeus à terra, / (...) que recolhe as cinzas dos mortos em seu- regaço d’água: / (...) Eis o Ganges que sobe as escadas do céu. / Que entrega a Deus a alma dos homens. / Que torna a descer, no seu serviço eterno” (Ganges).

Cecília narra a sua trajetória através do país, des crevendo sua vivência das cidades. Assim, nos Poemas escritos na Índia há referências a Bangalore, Cache-mir, Puri, Patna, Burma, “Haiderabade: / anel de prata/ com a só turquesa da

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água parada.” (Haiderabade); ao esplendor do Taj Mahal, supe ração da morte e do tempo: “Eis o sono da rainha adorada: / longo sono sob mil arcos, de eco em eco / (...) Entre a morte e a eternidade, o amor, / essa memória para sempre.” (Taj Mahal); à presença da dança, sons, perfumes, na colorida Jaipur: “Adeus, Jaipur, / (...) pórticos, peixes azuis nos arcos de entrada. / (...) Adeus, cortejos dourados, música de casamentos, / festa bailada cintilante das ruas, o trinado da flauta. / Adeus, sacerdote de candeia fumosa, / (...) e os gonzos e os sinos e a porta de prata/ a Deusa antiga, / e a existência fora do tempo. / (...) adeus, tarde morna de erva-doce, canela e rosa, / cravo, pistache, aça frão. / Adeus, cores. / Adeus, Jaipur, sandálias, véus.” (Jaipur).

A Índia é o caminho, a Índia é a passagem para o transcendente, encontro marcado com Gandhi, Tagore, Kali.

Gandhi é o mestre, o arquitéto do indiano: o ho mem que se caracteriza pela não-violência e o amor à liberdade, o sentido ético-religioso da existência, a bus-ca da justiça e da paz. Homem para quem a pobreza é simplicidade e ascetismo, e cuja grandeza moral é celebrada em poemas e escritos em prosa de Cecília. Gandhi representa “Acima de tudo, meus irmãos: a Não-Violência”; é a última voz de concórdia, com a qual a po etisa se identifica: “Que correntes havia entre o teu coração e o meu. / Para que sofra meu sangue, sabendo o teu derramado?” (Elegia sobre a morte de Gandhi, in Dispersos). Gandhi foi, para a nossa autora, o “Construtor da esperança, mestre da li berdade, o Mahatma. / (...) No trabalho, no sonho, falando lúcido, / o Mahatma.” (Mahatma Gandhi). Sua mensagem perma nece, para além das contingências: “De dentro da morte falando vivo, / o Mahatma.” (Id.).

Tagore, por sua vez, significa, na obra da poetisa, o caminho poético em di-reção a uma trans-vida, o mergulho no mundo divino. Tagore é o mestre de sa-bedoria, cuja palavra iluminada se desdobra em poemas: “Chegaremos de mãos da das, / Tagore, ao divino mundo / em que o amor eterno mora/ e onde a alma é o sonho profundo / da rosa dentro da aurora.” (Cançãozinha para Tagore).

Superação do tempo, superação da morte, a via gem para a Índia culmina no encontro com o mistério tremendo de Kali. Kali a tenebrosa, a inviolável, a des-truidora, a Grande Mãe que nos acolhe. O poema de Cecília, a ela dedicado, não ousa se quer mencionar o seu nome. Chega-se a Kali pelos atributos indicados verso a verso, onde a deusa aparece fascinante e ter rível: “Todos querem ver a Deusa. / (...) queremos ver Aquela que reina entre os paludes. / a do tenebroso cólera, / a das alastrantes febres. / E ela brilha entre chamas lanceoladas, / com dentes triangulares que ameaçam o mundo, / Ela resplandece em lugar inviolá-vel/ entre enormes chamas também triangulares: / altos dentes de fogo. / (...) de sinal vermelho na testa / (...) Todos seremos destruídos por ti, / deusa! Somos todos irmãos. Em ti, afinal, irmãos! (...) deixando-nos devorar por tua fome, / ó

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Deusa! ó Morte! Mas pairamos com asas inolvidáveis / acima de tuas chamas.” (Deusa).

Impossível não recordar a pira funerária, tradição que visa libertar a alma do peso do sensível. Na Índia, Cecília, através da descrição do mundo perpassado pela sacralidade e pela imemorial busca do eterno, na arquitetura do Taj Mahal, na poesia metafísica de Tagore, nos ensinamentos do Mahatma, na Deusa que é, a um tempo, destruição e metamorfose.

Da passagem pela Índia, Cecília guarda a percep ção da unidade do universo, pois “Caminham os búfalos ao lado dos homens, / como uma só família” (Cam-po na Índia). Daí a poetisa reconhecer a “Unidade, alegria, (...) inocência do mun do” (Manhã). Esta unidade mostra-se no som de todas as coi sas: “(...) aérea música azul que a flauta ondula. / Por um mo mento, o universo, a vida/ podem ser apenas este pequeno som / enigmático / entre a noite imóvel e o nosso ouvi-do.” (Som da Índia).

Ao encerrarmos, voltamos ao princípio: aos versos que abrem o livro Poemas escritos na Índia e que falam da ilusão e sua ultrapassagem, pelo viandante: o poeta que rasga o véu de Maya – “Passante quase enamorado / nem livre nem pri sioneiro / (...) a escutar o chamado / o apelo do mundo inteiro / (...) Passante quase enamorado. / pelos campos do inverdadeiro.” (Lei do Passante).

A trajetória de Cecília pela Índia dói a experiência da explosão de cores e perfumes, e do lento reconhecimento, nos tipos que se apresentavam, na vida exuberante, da sacralidade que os perpassa. Foi a experiência da ruptura com a morte, pelo encontro com a divindade, com a poesia, com a estupenda gran deza moral de um povo e de seus mestres. A Índia imemorial, trazida até nós por esses versos, ensina a sábia e fina trama que tece juntos o visível e o invisível.

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Contemplação e sabedoria nos Cânticos de Cecília Meireles

Em uma entrevista publicada por uma revista brasileira de grande circula-ção, Cecília Meireles fala do sentimento da precariedade do existir, mas também da beleza do mundo, do silêncio e da solidão que caracterizaram sua infância. Encantada com livros, partituras, canto, violino; mas também com a Grécia e o Oriente das línguas, história, filosofia.

Entre 1940 e 1958, a poetisa viajou muito, lecionando Literatura e Cultu-ra Brasileira no Texas e fazendo conferências no México, Uruguai, Argentina, Açores, Índia, Porto Rico, Israel. Foi sócia honorária do Gabinete Português de Leitura no Rio, do Instituto Vasco da Gama em Goa, Doutora Honoris Causa da Universidade de Delhi; recebeu o grau de Oficial da Ordem do Mérito no Chile.

Escreveu peças de teatro, prosa poética, crônicas; traduziu Rilke, Lorca, Ta-gore, dentre outros poetas. Sua poesia inspirou composições musicais de autores populares como Chico Buarque, Aldir Blanc, Fagner; mas também de composi-tores eruditos como Camargo Guarnieri, Mignone, dentre outros. A musicalida-de da poesia de Cecília aparece todo o tempo em seus escritos.

Experiência de solidão e de liberdade, de encontro com a vida do espírito, sua obra tem pontos de acordo com a tradição do pensar originário da Grécia e com os grandes poemas sagrados indianos, com a poesia e a obra de Tagore, que desvenda no cotidiano o pulsar do eterno.

Na tradição grega, na qual ela explicitamente se inspira, os “mestres da ver-dade” são os adivinhos e os poetas, mas também os filósofos360.É a primeira ver-tente à qual ela se atém.

Nas lâminas de ouro órficas361, encontradas nos túmulos de iniciados órficos, as instruções para a viagem no além-túmulo, que possibilitariam a libertação das encarnações sucessivas, a purificação da alma era obtida pela filosofia (Mou-siché) “constituindo o conjunto de experiências intelectuais às quais as Musas, filhas da Memória, presidem”362.

Se Orfeu, ancestral mítico dos “Mistérios” e da poesia, faz do canto aquilo que possibilita ultrapassar a barreira da morte, unindo os opostos: vida e morte

360 DETIENNE, M., Les maîtres de vérité dans la Gèce archaïque. Paris: La Découverte, 1990.361 CARATELLI, G. P., Les lamelles d’or orphiques. Paris: Belles Lettres, 2003, passim. 362 Id., ibid., p. 20. Também Platão se refere, no Fédon, à filosofia como “arte das Musas”, “música suprema” (Fédon, I, 61 a-b).

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– numa totalidade, são os “pensadores originários”363 – Parmênides – Heráclito – que buscam a sabedoria, entendida como apreensão da totalidade una.

Na mais antiga tradição filosófica, representada pelas figuras emblemáticas de Parmênides e Heráclito, o pensar sobre a physis, a natureza, era dito em versos.

Parmênides distinguia dois caminhos: o da verdade (episteme) e o da opinião (doxa) baseada nas evidências empíricas. Para ele, filosofia é o saber sobre o Ser inteligível e se opõe à opinião da maioria.

O caminho ascendente, descrito no poema, é seguido pelos que amam a justi-ça e a verdade (fr.1) e escolhem a razão como via para pensar o Ser e suas carac-terísticas: não-divisibilidade, permanência. Idêntico a si mesmo, o ser é pleno, imóvel, sem início nem fim, sem nascimento ou morte (fr.8).

O caminho de opinião é o que afirma as oposições: nascimento e morte, ser e não-ser, mutação, como absolutamente verdadeiras.

Heráclito pertencia a uma família de sacerdotes, ligada às cerimónias dos Mistérios de Elêusis. Temas centrais dos fragmentos do pensador são: a sabe-doria consiste na fusão do logos do indivíduo com o Logos do universo; a afir-mação da unidade dos contrários, pela sua convertibilidade. (fr. 60,62,76,88); a proposição de um caminho que se afasta daquele do homem comum, pois o sábio prefere o eterno ao perecível, enquanto o homem comum se satisfaz com o efêmero (fr.28).

Denominadores comuns unem os dois pensadores gregos: para eles, a via da razão é a que apreende a realidade essencial, na qual os opostos se encontram in-dissociavelmente unidos, numa totalidade. Ser sábio é ver através da razão, supe-rando a opinião comum, centrada nas evidências empíricas. Ser sábio é sondar o invisível, é ver a totalidade do existente do ponto de vista do eterno, dos deuses.

Na vertente grega do pensar, em Heráclito, assim como em Parmênides, o ca-minho da sabedoria é o caminho em direção aos deuses. Para Heráclito, o fogo é a metáfora da razão, no homem, e do Logos que perpassa o universo, eternamen-te vivo. É apreensão da imutabilidade e permanência do Ser, em Parmênides.

Para Heráclito e Parmênides, o dizer filosófico se faz através de poemas. Mas o recurso ao verso, em Parmênides, não é um dizer que se refere apenas ao mito. Através do poema, o que se mostra é a busca da verdade, a sabedoria daquele que se distancia da adesão imediata e exclusiva ao sensível, para compreender o real na perspectiva do eterno. A linguagem é poética; recorre a metáforas e a imagens; mas o que é dito, “embora conserve a métrica e os modos da poesia tra-dicional, se enche de conteúdos novos (da ética à teologia, da política às ciências naturais”364.363 CARNEIRO LEÃO, E. e WRUBLEWSKI, S. (introdução e tradução), Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991. Ver também: BORHEIM, G. (org.), Os filósofos pré-socráticos. S. P.: Cultrix, 1967, pp. 35-46; 53-59; Les pré-socratiques. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, pp.129-187, p. 233-272. 364 CASERTANO, G., Os pré-socráticos. São Paulo: Loyola, 2011.

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Desde as origens do pensamento filosófico grego, a reflexão sobre o mundo o apreende como “uma realidade única, imutável, no interior da qual decorriam as vicissitudes das coisas em devir e mudança. Não duas realidades (...) mas uma só realidade, que pode ser entendida de dois pontos de vista: o da totalidade e da unidade, o da particularidade e da multiplicidade” (ibid., p. 84).

Esta concepção, presente em Parmênides, se expressa como uma reflexão ori-ginal sobre os métodos e os discursos usados para falar sobre os dois aspectos do real.

O poema de Parmênides está dividido em duas partes: no primeiro fragmen-to, o filósofo narra uma viagem que o conduz à presença da deusa, que fez a ele uma revelação: a perspectiva da totalidade, que mostra a verdade, abarcando o fundo imutável, mas também a experiência do homem comum.

Assim, o conhecimento, a sabedoria que Parmênides procura engloba, “para a deusa, todo o campo do saber humano, quer o que a deusa chama de verdade, quer o que chama de experiência” (ibid., p. 86). Só o caminho da sabedoria pos-sibilita alcançar a pistis alethés, a certeza verdadeira.

O discurso que conduz à apreensão da verdade acerca da totalidade una, é o da filosofia; o discurso que conduz à apreensão da realidade como multiplicida-de, é o da doxa.

Daí Casertano dizer: “A novidade da obra de Parmênides reside [em] estabe-lecer” que episteme e doxa “são dois métodos diferentes de ler a mesma realidade e (...) na justificação lógica das suas afirmações” (ibid., p. 87). O saber do huma-no, para Parmênides, segundo Casertano, não contrapõe a “verdade da razão” e ‘opiniões enganadoras’ (...) “o saber do homem tem que englobar ambos os cam-pos: o “discurso verdadeiro (...) e o discurso sobre as experiências” (ibid., p. 101). Este último discurso, baseado na empiria, não tem o mesmo grau de verdade do discurso filosófico, baseado em princípios lógicos, “discurso coerente”, fundado na reflexão. O que importa, para o sábio, é conhecer os dois discursos e privile-giar o que torna possível a apreensão do real como totalidade, isto é, a filosofia.

Posição análoga é encontrada em Heráclito, que propunha a harmonia dos opostos e fazia a crítica da opinião comum e dos saberes tradicionais. Heráclito emprega, “frequentemente, as metáforas da cegueira e da surdez, como fizera Parmênides, para indicar a incapacidade de compreensão do sentido autentico da realidade”; utiliza também, no mesmo sentido, as metáforas “do sono e da ausência”. A característica da filosofia de Heráclito é procurar a lei fundamental que regula a sucessão das coisas, buscando “a razão pela qual tudo é governado através de tudo”365.

Um dos aspectos importantes de sua reflexão é a afirmação da tensão e da unidade dos contrários. Para ele, o caminho da sabedoria é o que leva a perceber 365 HERÁCLITO, apud CASERTANO, G., op. cit., p. 102.

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a unidade e a convertibilidade dos opostos. O sábio vê, pela inteligência, a lei “que regula o acontecimento de todas as coisas (...) O logos é a lei universal dos acontecimentos (...) é simultaneamente a explicação racional desta lei (...), com-preensão do mundo eterno (...), efeito da tensão dos opostos (...) é a conquista difícil que o homem pode obter apenas se abandonar a visão limitada e particu-lar das coisas”366.

Em ambos, Parmênides e Heráclito, a filosofia é um ver, que abarca a totali-dade do real e ensina um caminho, um método, que orienta a compreensão e a ação.

A outra vertente do poetar- pensante de Cecília é a tradição oriental, encon-trada na leitura dos antigos textos sagrados, pelos quais sempre se interessou, conforme seu próprio depoimento concedido ao jornalista Haroldo Maranhão, em Belém do Pará, em 1949367.

Cecília não diz quais são exatamente essas fontes; mas faz referência a “clás-sicos orientais”; conhece a obra de Gandhi e traduziu Tagore, dedicando a eles poemas como “Cançãozinha para Tagore” e “Mahatma Gandhi”, publicados no livro Poemas escritos na Índia368; faz também uma comunicação sobre a obra de Gandhi, em congresso na Índia em 1953; escreveu sobre Gandhi numa obra intitulada Quatro apóstolos modernos369 e sobre Tagore, um folheto em 1961, em inglês, editado pela Brazilian National Comission for UNESCO370.

Gandhi viveu de 1869 a 1948, quando foi brutalmente assassinado; Tagore viveu de 1861 a 1941; são pois contemporâneos e exprimem de modos diversos a releitura da tradição dos grandes textos sagrados indianos: os Vedas, os Upa-nishades, o Bhagavad- Gita.

Cecília visitou a Índia em 1953. Os dois – Tagore, o poeta e Gandhi, o pensa-dor – já estavam mortos. Mas escrevendo sobre eles, na viagem à Índia, a poetisa resume o significado de suas obras, em belos poemas.

Gandhi provinha de uma família rica e instruída; estudou na Índia e na Grã-Bretanha. Retornou à Índia para atuar em favor dos mais pobres, sob a influ-ência da grande tradição dos textos sagrados, mas também de Ramakhrishna (1836-1886), sacerdote, místico e filósofo que tratava de revitalizar o hinduísmo e de explicitar a universalidade da contribuição do pensamento indiano. Gandhi inspirou-se também em Vivekananda (1863-1902), pensador impregnado pelas filosofias européia e indiana, que afirmava a necessidade de uma religião racio-nal, que libertasse os homens. Místico, falava sobre a importância do serviço ao 366 CASERTANO, G., op. cit., p. 107.367 DAMASCENO, D., “Notícia biográfica e bibliográfica”, in MEIRELES, C., Poesia Completa. RJ: Nova Aguilar, 1984, p. 89. 368 MEIRELES, C., op. cit., pp. 709 e 734. 369 Id., Quatro apóstolos modernos. São Paulo: Donato Ed., s/d.370 DAMASCENO, D., in. MEIRELES, C., op. cit., p. 96-97.

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outro; asceta, queria desvendar a essência da alma; cientista, buscava inspirar a ação e conciliar razão e fé.

Precedendo imediatamente Gandhi, a figura importante é a de Tagore. Fi-lho e neto de príncipes, tornou-se célebre por sua obra teatral e por sua poesia, expressões de um profundo amor e “comunhão com a natureza, reveladora de Deus”371. Tagore vê a unidade da humanidade, na diversidade das culturas, com-plementares entre si.

Gandhi se inspira nessa grande tradição indiana, mas também em Tolstói, Ruskin, Thoreau, nos Evangelhos. O ideal de Gandhi “é a realização da felicidade no mundo, através de uma vida simples [devotada] ao conhecimento da ver-dade”, ao amor que implica a não-violência: Ahimsa, a paz a todos os seres. As virtudes da coragem, da modéstia, da liberdade são exaltadas por ele372.

Diz Olivier Lacombe:A originalidade (...) de Gandhi consiste essencialmente no modo que

ele soube transpor a não-violência segundo a grande tradição indiana, do campo da moral pessoal para o da ação política373.

De que modo Gandhi e Tagore convergem? Poeta místico, Tagore “foi acla-mado por Gandhi como ‘o grande mestre’ e reconhecido por todos os indianos como ‘o sol da Índia’.” Diz Ivo Storniolo:

Desde a adolescência [Tagore] foi capaz de ver e proclamar a grandeza que se esconde na pequenez [e nos] grandes paradoxos: triunfo na derro-ta, beleza no feio e [na] amizade (...) que Deus tem pelos pobres, humildes e perdidos, como fica evidente no Gitanjali (Oferenda Lírica), obra que o fez reconhecido mundialmente374.

*

A obra de Tagore faz-nos descobrir “a maravilha que é existir como ser hu-mano”, tornando-nos capazes de contemplar o mistério em nós, no deslumbra-mento pela vida, diz Storniolo375.

Tagore, místico e poeta, também é pensador. Um exemplo da sua reflexão pode ser encontrado na obra Sadhana376, que reúne oito conferências a propósito dos Upanishads. Nelas, mostra que a beleza, a verdade e o amor são caminhos

371 BOULIER-FRAISSINET, J., La philosophie indienne. Paris: PUF, 1961, p. 106.372 Id., ibid., p.108 e segs. Ver também: LASSIER, S., Gandhi et la non-violence. Paris: Seuil, 1970; GANDHI, M. K., Tous les hommes sont frères. Paris: Gallimard, 1969.373 LACOMBE, O., “Préface”, in GANDHI, M. K. Tous les hommes sont frères, p. 9.374 STORNIOLO, I., “Prólogo”, in TAGORE, R., Gitanjali. São Paulo: Paulinas, 1991, p. VI-VII.375 Id., “Prólogo”, in TAGORE, R., Passos Perdidos. S. P: Paulinas, 1991, p. VI. 376 TAGORE, R., Sadhana. O caminho da realização. São Paulo: Paulus, 1994.

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da realização do homem e de seu destino de união com Deus. Apresentadas em Harvard, a convite do Professor James Woods, foram traduzidas do bengali por amigos de Tagore e por seu sobrinho. Expressam a ideia de que o homem é uno com o mundo no qual se inscreve, exprimindo a “plenitude da (...) comunhão com todas as coisas” (ibid., p. 61); mas é também separado de tudo, como in-divíduo. O ser duplo do homem deve, para se realizar, enraizar-se no universal “O eu sou individual atinge seu perfeito fim quando realiza a sua liberdade de harmonia no eu sou infinito” (ibid., p. 75).

O caráter paradoxal “da coexistência do infinito com o finito” (ibid., p. 81), da união dos opostos na harmonia do todo, se resolve através do amor: “unidade da nossa alma com o mundo e da alma do mundo com o supremo amante” (ibid., p. 99).

A contemplação maravilhada do mundo permitindo aí entrever uma dimen-são espiritual, que caracteriza Tagore, também está presente na poesia de Cecília. Exemplo claro é sua visão extasiada do mais banal, fazendo-nos aí perceber a beleza do mundo, dos seres humanos, das coisas.

Solidão, silêncio e contemplação extasiada caracterizam os dois poetas: Ta-gore e Cecília. De que modo se encontram, na poesia de Cecília, as duas grandes tradições: a grega, do Ocidente, a indiana, do Oriente? No poetar-pensante que descobre na beleza, no amor ao mundo e às coisas, a presença da divindade.

As analogias entre o pensar da Grécia originária e o poetar-pensante e devo-cional da Índia são surpreendentes. Na Grécia é pela razão e pela argumentação que se expressam as teses da unidade dos contrários, o homem e o mundo, e da presença da divindade no todo. Na Índia, na poesia e na reflexão de seus sábios, as notas dominantes são o amor, a reverência e o maravilhar-se perante o mun-do, no qual palpitam a beleza e o sagrado.

Essa dupla vertente, Grécia e Índia, perpassa a poesia de Cecília; ela está en-cantada, como Tagore, com o esplendor que se patenteia no quotidiano. Esse es-plendor é paz, música, harmonia. Mas é também algo a ser contemplado a partir de uma perspectiva mais alta, que impede a adesão imediata ao sensível, para apreendê-lo como a totalidade una, em que o manifesto é o reverso da divindade presente em tudo.

O caminho da sabedoria é o que mostra esse distanciamento com liberdade, libertação de luta dos contrários: vida e morte, dor e alegria, sagrado e profano; como compreensão da totalidade una; como realização daquilo que se é, intrin-secamente.

Essa perspectiva impregna diversos poemas de Cecília, desde Viagem, po-emas escritos entre 1929-1937, onde se lê: “Deixa-te balançar entre a vida e a

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morte, sem nenhuma saudade (...). Não é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo”377. Ou ainda:

“Por que pensar em qualquer coisa se tudo está sobre a minha alma: vento, flores, água, estrelas e músicas de noite e albas?378.

A mesma perspectiva está magistralmente expressa nos Poemas escritos na Índia379 e também em Poemas de Viagens380, nos quais há referências à Índia e seu povo, bem como a “Elegia sobre a morte de Gandhi” e o “Cântico à Índia Pacífica”, no qual se acham os esplendidos versos:

Os que nunca te viram, de longe, por ti perguntam ó Índia remota (...) com a esperança de quem vê em ti uma transcendente pátria (ibid., p. 1336).

E ainda no poema “Dança Cósmica” (ibid., p. 1338):

Nataraja, o senhor dos Dançarinos dança no centro do universo (...) Nataraja dança, invisível e visível (...) a vida ilusória e o sonho imortal.

Mas é nos Cânticos, do qual conhecemos a edição de 1993, nas Obras Com-pletas381, que estão sintetizadas poesia e filosofia, sentido ético da existência e via ascensional em direção ao sagrado.

Dedicado à liberdade, sopro do espírito que desfaz a adesão imediata ao efê-mero e mostra o eterno em nós, Cânticos é composto de 26 poemas, nos quais Cecília, assumindo o papel de mestra a iniciar um discípulo – no caso, todos os seus leitores – faz recomendações que possibilitam o distanciamento do viver o imediato e o assumir a existência na perspectiva do sagrado.

Uma hipótese, da Professora Luísa Malato, pareceu-me muito interessante: escritos em 1927, os Cânticos são a fala de Cecília mestra de uma iniciação, dai-mon de Cecília, à jovem Cecília, propondo caminhos, programa de vida a ser realizado. A nosso ver, o desdobramento, nos poemas de Cecília em mestra e discípula de si mesma, não exclui o fato de a poetisa dirigir-se também a seus leitores, tornando-nos todos seus discípulos.377 Id., “Êxtase”, in id., Viagem, O. C., p. 129.378 Id., Vaga Música, O. C., p. 199.379 Id., O. C., pp. 699-748.380 MEIRELES, C., O. C., pp. 1332-1339.381 Id., ibid., São Paulo: Nova Aguilar, 1993, 4ª edição, pp. 1408-1419.

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A primeira recomendação, no poema I, é não ter pátria, posses, mas escolher a perspectiva mais alta, que abarca todos os horizontes. Esse olhar nos devolve tudo o que aparentemente perdemos: a pátria, as posses diluem-se na adesão à totalidade do existente.

A segunda recomendação, no poema II, é o convite para superar o tempo, reconhecendo-nos em todas as vidas e todas as mortes, vivendo ao modo de eternidade: contínuo passar, perene mudança. O tema reaparece no poema VI, como veremos mais adiante.

A terceira recomendação, no poema III é: não dizer “palavras vãs. As palavras do mundo”; recusando “a vaidade do falar”. Trata-se de permanecer “completa-mente silencioso. / Até a glória de ficar silencioso, /Sem pensar”. Silêncio que é plenitude, esvaziamento da mente, esvaziamento de si, para dar lugar ao divino em nós (ibid., p.1409-1410, poema III).

O tema reaparece no poema IX, que mostra o enganoso dos sentidos e afirma que há uma “verdade silenciosa” dentro de nós, “a Verdade sem palavras” (ibid., p.1412); reaparece também no poema XII, quando a poetisa diz: “Não fales as palavras dos homens (...) Faze a tua palavra perfeita. / Dize somente coisas eter-nas” (ibid., p.1413).

No poema IV, Cecília indica que devemos nos abandonar à “música da vida”, ao seu encantamento, á identificação com “a alma infinita de tudo”, trocando o “curto sonho humano /Pelo sonho imortal” (ibid., p.1410). E ainda, no poema V, como já fora dito na tradição dos Mistérios e de Platão, Cecília assegura que o corpo é “um fardo (...) prisão de pedra” que precisa ser destruída, para dar lugar à identificação com o infinito, com “o grande sopro / Que circula” (ibid., p.1410-1411).

A poetisa afasta o temor da morte, mostrando que morremos e renascemos muitas vezes, ao longo de uma mesma vida, “no amor. / Na tristeza. / Na dúvida. / No desejo”. Morremos até percebemos, sob a mudança, a permanência do ser. Diz Cecília, no poema III:

“és sempre outro (...) és sempre o mesmo (...)morrerás por idades imensas. Até não teres medo de morrer. E então serás eterno” (ibid., p. 1411).

O tema reaparece, modificado ligeiramente, no poema XI, quando a poetisa assinala que a identificação com a totalidade do mundo e seus elementos, impe-de que estes se tornem ameaçadores ou inóspitos (ibid., p. 1413).

A recomendação presente no poema VII, é o desapego em relação ao amor. Aí Cecília diz:

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Não ames como os homens amam.Não ames com amor.Ama sem amor.Ama sem querer. Ama sem sentir (...)Sem esperar (...) (ibid., p. 1411-1412),

sem nos inquietarmos para onde o amor nos conduz: à felicidade, à morte, a algum lugar.

Amor, diz ela, é deixar-se levar, deixar fluir, sem tentar aprisionar o que é amado, nem aprisionar-se nele. A recomendação é que não nos identifiquemos com finito, mas, buscando o infinito, amemos o imperecível, o que permanece o mesmo, apesar do fluir. O tema reaparece nos poemas XV, XVI e XVII (ibid., p. 1414-1415) quando Cecília diz:

“Não queiras ser (...) a Eternidade é muito longe.dentro dela tu te moves, eterno. Sê o que vem e vai” (ibid., p. 1414, poema XV).

Este é o caminho proposto pela grande tradição, que fala pela voz de Cecí-lia:

“Este é o caminho de todos os que virão” (ibid., p. 1412, poema X); é o cami-nho sem pressupostos, para que possamos ser “o de todos os caminhos (ibid., p. 1417, poema XVIII), fazendo-nos “à imagem do mar” (ibid., poema XXII).

E ainda:Não há mundos nem caminhos Para o que é maior que os caminhosE os mundos. (...)Circulas em todas as vidasPairas sobre todas as coisas (...) (ibid., p. 1416).

O tema reaparece nos poemas XX, XXI, XXII, quando a poetisa recomenda que o discípulo se volte para si mesmo, identificando-se com o que vem de longe e no qual fim e começo coincidem. Sugere que se volte para a totalidade, que é sempre a mesma e sem mudança, que o homem comum não pode apreender (ibid., p. 1416-1417): a mutação eterna e a imobilidade são o mesmo.

Os homens comuns oferecerão ao discípulo riquezas, beleza, amor; pergun-tarão por sua alma (poemas XIV, XVII, XVIII); rugirão de dor, temor e desejo (ibid., p. 1414-1416).

Mas o discípulo, que renunciou a tudo – pois alcançou a perspectiva da totali-dade – vê com os olhos da sabedoria, apreendendo o sagrado da unidade entre o visível e o invisível. Assim, recusa tudo, toda posse, porque sabe que está sempre

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em tudo: “Sem forma. Sem termo” (ibid., p. 1414, poema XIV) mostrará ao ho-mem comum apenas a curva do seu voo (ibid., p. 1415, poema XVII).

Cecília diz a quem busca o caminho da sabedoria:

“Sê o que renuncia Altamente: Sem tristeza (...) sem orgulho” (ibid., p. 1418, poema XXV),

e assinala o resultado da grande renúncia:

“Verás o que vias: Mas (...) verás melhor” (ibid., p. 1419, poema XXVI).

Os últimos poemas, que encerram o livro, ecoam o percurso da sabedoria perfeita: após a contemplação maravilhada do sensível, a atuação no mundo – embora sempre conservando o distanciamento que permite a compreensão da totalidade una – a última etapa a ser cumprida é a do renunciante, a daquele que, por amor à totalidade, tudo abandona e se retira, identificando-se com a divin-dade, na contemplação extática.

Dois modos de conceber a sabedoria, presentes na obra de Cecília: na verten-te grega, pela afirmação do valor da razão, presença do deus em nós; na vertente indiana, pelo desapego e pelo amor, identificação com a totalidade divina.

Nas duas tradições, a complementaridade entre o visível e o invisível, a con-templação de unidade do todo, a afirmação de convertibilidade dos contrários.

Na poesia de Cecília, herdeira dessas duas tradições, o contemplar encantado do esplendor do mundo dá lugar, finalmente, à renúncia, que oferece ao cami-nhante a inscrição na totalidade e no fluir identificado com o eterno.

A existência assim percebida está além dos opostos: vida e morte, dor e ale-gria. Alcança a perfeita liberdade, mencionada na oferenda que abre os Cânticos e que de certo modo sintetiza todo o percurso do discípulo.

Na poesia de Cecília Meireles, a música dos versos está associada a uma for-ma de ver que convida a trilhar uma via ascensional, como os antigos mestres da sabedoria propuseram. Para ela, o dizer em versos exprime um contemplar que permite apreender a vida sob o aspecto da eternidade: como caminho que con-duz ao próprio centro, à liberdade. Nos Cânticos, contemplação e sabedoria são tecidas juntas, exemplificando essa nota dominante de seu poetar. Os Cânticos são caminhos.

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Guimarães rosa: travessias

In memoriam: Maria Helena Varela, 1952-2004

João Guimarães Rosa nasceu em 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais. A casa onde nasceu e passou a infância tornou-se o Museu Casa Guimarães Rosa. As primeiras letras e o estudo do francês e holandês, bem como do alemão, fez com um frade franciscano. Estudava, sob a orientação deste, o mapa da Europa, acompanhando os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial.

Entre 1918 e 1924, estudou no Colégio Santo Antonio, em São João del Rei e depois em Belo Horizonte, com padres alemães. Continua aprendendo novas línguas e lê os clássicos: francês, inglês, italiano, esperanto, russo, sueco, latim e grego, húngaro, árabe, polonês, tupi, hebraico, japonês, finlandês, dinamarquês, chinês arcaico. Estudava por prazer, por distração.

De 1925 a 1930, fez a faculdade de Medicina em Minas Gerais. Casa-se com Lygia Cabral Pena. É agente de Serviço de Estatística do Governo de Minas Gerais e publica os primeiros contos na Revista O Cruzeiro, O Jornal (Rio de Janeiro).

Até os 22 anos, Rosa ouvia, em Belo Horizonte, histórias de jagunços e de lutas de batalhões do Exército; tomava conhecimento de lutas políticas – pano de fundo de histórias recriadas depois em seu romance Grande sertão.

Entre 1931 e 1932, trabalha como médico em pequeno povoado rural; nasce sua primeira filha. Visitava doentes a cavalo, conversava com moradores de sítios e fazendas, trabalhadores da estrada São Paulo – Belo Horizonte. Escreve contos, reunidos depois no livro Sagarana.

Em 1932, alista-se como voluntário da Força Pública; em 1934, torna-se oficial médico da Força Pública, por concurso. Estuda russo e japonês, com imigrantes russos e japoneses. Nasce sua filha Agnes, em Barbacena, Minas Gerais. Em Mar-ço, torna-se capitão-médico; em Julho, presta concurso para o Itamaraty, sendo aprovado em segundo lugar. Trabalha, entre 1933-1935, no Serviço de Proteção ao Índio.

Nomeado cônsul, ingressa na carreira diplomática e pede demissão do cargo de capitão-médico. Vai para o Rio de Janeiro, onde cursa Direito e estuda línguas eslavas.

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Em 1936, seu primeiro livro de poemas, Magma, ganha o primeiro lugar no concurso da Academia Brasileira de Letras; a edição só foi publicada em 1997, após a morte de Rosa.

Em 1938, vai sozinho para Hamburgo, como cônsul adjunto. Conhece então a funcionária do consulado, Aracy Moebius Carvalho, que se tornará sua segunda esposa. Descreve, em um diário, os acontecimentos da 2ª Guerra Mundial.

Em 1941, passa por Lisboa, durante 15 dias, em missão diplomática.Em 1942, o Brasil rompe relações diplomáticas com a Alemanha; Rosa fica

confinado em um hotel em Baden-Baden, com outros funcionários. Saem de lá para Lisboa e depois para o Rio.

Em 1942-1944, é nomeado segundo secretário da Embaixada do Brasil em Bogotá. Sozinho, fica lá por dois anos; sofre o «mal das alturas», descrito em Estas estórias (1969). Desquita-se da primeira esposa.

Em 1945, no Rio de Janeiro, vinculado à Secretaria do Estado, termina Saga-rana.

De 1946 a 1948, é chefe de gabinete do Ministro do Exterior. Em 1948 é de-signado para a Embaixada do Brasil em Paris. Faz viagens pela Europa: Holanda, Bélgica, Alemanha. Frequenta o ateliê de Cícero Dias em Paris. No Brasil, viaja, conversa com vaqueiros em fazendas de gado, com caçadores de onça. Vai a Bogotá. Tira férias na Itália, visitando a Magna Grécia; lê e anota a Ilíada e a Odisséia.

Em 1952, em carta a amigos, fala da viagem pelo sertão. Cita Odisseus; faz, com Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas, uma viagem ao sertão da Bahia. Relê Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Em 1956, publica Corpo de baile e Grande sertão: veredas, que recebe os prê-mios: Machado de Assis (INL), Carmen Dolores (S. P.), Paulo Brito (RJ).

Em 1962, publica Primeiras estórias; é nomeado chefe do Serviço de Demar-cação de Fronteiras, do Itamaraty.

Em 1963, é eleito Membro da Academia Brasileira de Letras (mas adia sua posse por quatros anos, até Novembro de 1967).

Em 1964, publica Manuelzão e Miguilim; em 1965, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão, reunidos no Copo de baile. Participa do Congresso Latino-Americano de Escritores em Gênova, com Glauber Rocha, Cacá Diegues, Paulo Cesar Sarraceno. Estreia do filme: Grande sertão, de Renato Santos Oliveira.

Em 1966, o conto «A hora e a vez de Augusto Matraga», de Sagarana, é trans-formado em filme, por Roberto Santos. Rosa participa do Congresso Internacional do Pen Club em Nova Iorque, encontrando Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Victoria Ocampo, Pablo Neruda, Haroldo de Campos, Arthur Miller. Recebe, no Brasil, a Medalha da Inconfidência e é condecorado com a Ordem do Rio Branco.

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Em 1967, publica Tutaméia; falece no final do ano. Em 1969, surge Estas estórias; e, em 1997, Magma, seus primeiros poemas; em 1970, Ave, Palavra.

A obra emblemática de Guimarães Rosa é Grande sertão: veredas. Nela é nar-rada a vida dos jagunços, descrita a luta política entre pobres e ricos – pano de fundo do exercício da justiça como vingança. A aspereza do sertão é o lugar do herói guerreiro – o jagunço – e do confronto entre o bem e o mal – os justiceiros e os bandidos (estes últimos podendo ser tanto o fora-da-lei violento, sem prin-cípios éticos, quanto o senhor tirânico). É o lugar do pacto com o poder sombrio, do confronto com o demônio. É ainda o lugar da errância – busca do amor e da auto-superação, mas também consciência da fragilidade do existir, da precariedade da vida e da iminência da morte.

Para Rosa, o sertão percorrido na errância do jagunço e no trabalho do vaqueiro – travessias do espaço – é também o emblema da travessia do tempo, exigência do fazer heróico, que instaura uma ética: a da justiça como resistência à opressão dos poderosos, como vingança de afrontas sofridas e de assassinatos. No mundo arcaico, a vingança é restauração de uma ordem transcendente, quebrada pelo homem ímpio, tirano ou bandido. Mais ampla que a dimensão política do agir, é a compreensão do fazer como feito heróico, que assegura o viver com honra e liberdade, mais caros que a própria vida. O modelo paradigmático de Rosa é o herói guerreiro da epopeia homérica, como anotações feitas por ele à margem do seu exemplar dos poemas clássicos permitem perceber.

Rosa diz que foi «médico, rebelde, soldado (...)» e que estas três experiências «configuraram seu mundo», em entrevista feita por Günter Lorenz em Gênova, em 1965.

O sertão roseano é um microcosmo, no qual se reflete a experiência essencial do homem no mundo: a aventura do viver. Rosa universaliza, a partir do maxima-mente regional e rústico, a travessia da existência e a luta humana para alcançar o significado da precariedade implicada na possibilidade da morte.

Diz Rosa: «Eu carrego um sertão dentro de mim, e o mundo no qual vivo é também o sertão (...). Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito, o momento não conta»382.

As fontes do escritor são, dentre outras, a tradição oriental: o Tao-te-King, os Vedas e os Upanishads; a tradição religiosa cristã dos evangelistas e de São Paulo; a tradição filosófica platônica e neoplatônica; a mística de Ruysbroeck, o Admirável, Bergson e Berdiaeff, mas também T. Mann, Musil, Kafka, Rilke, Freud, dentre outros383. Escreve sobre a realidade humana e vital, sobre o mistério cósmico,

382 LORENZ, G., «Diálogo com Guimarães Rosa», in GUIMARÃES ROSA, J., Ficção completa, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, pp. 31-61.383 GUIMARÃES ROSA, Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri, Rio de Janei-ro: Nova Fronteira, 2003, pp. 86-91.

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redescobrindo e resgatando antigas linguagens: dos clássicos, do português arcai-co, para dizer o que intui, o que surge como revelação e inspiração. Esta última é um ver que capta o momento, descrevendo a coisa vista, a ação que se desenrola, mediante a intersecção entre os planos da exterioridade, da poesia e da metafísica; assim, na sua obra, o sertão torna-se metáfora do universo, do ser-no-mundo384. Nele, dá-se o «viver [que] é muito perigoso»385, em busca da sabedoria, prudência que nasce do coração386. Assim, o romance Grande sertão é também um poema, entretecido de sonhos premonitórios, intuições, pressentimentos, como a vida mesma de Rosa, segundo sua própria atestação a Paulo Dantas, ao falar sobre Sagarana e Corpo de baile387.

Declarando-se religioso, embora não vinculado a nenhuma confissão, reco-nhece o fundo neoplatônico e humanista dos seus escritos, em correspondência dirigida a Edoardo Bizarri388.

Os estudos de Walnice Nogueira Galvão mostram, em Grande sertão, três planos que se superpõem: o geográfico, pois é no sertão de Minas Gerais, Goiás e Bahia que o romance se passa; o místico, pois a luta entre jagunços e coronéis é inspirada tanto nos romances de cavalaria quanto na Ilíada e na Odisséia389, conforme também assinala Elisabeth Hazin390, a partir das anotações de Guima-rães Rosa feitas na edição alemã da Ilíada e Odisseia, consultadas pelo escritor e arquivadas na pasta E17 do Arquivo Guimarães Rosa, na USP.

O terceiro plano da narrativa é o metafisico, diz Walnice Galvão, posto que no sertão o que está em jogo é o destino do homem, no horizonte cósmico de uma batalha entre o bem e o mal. No espaço do sertão, Rosa recria, nos moldes da tradição oral medieval, da literatura de cordel, o drama da errância e do exílio – símbolos primários da alienação humana, como assinala Ricouer391, mas também busca, através da ação e do feito heróico, do sentido do existir. O confronto com o mal é representado, no romance, pelo pacto com o demônio – confrontado pelo personagem Riobaldo, na solidão das montanhas e da noite. Neste espaço, na linguagem aparentemente rude do narrador, se entrecruzam o português e o espanhol arcaicos, o tupi, o babilônico, o sânscrito, o grego, o latim, na tarefa 384 GUIMARÃES ROSA, Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, pp 238-9.385 GUIMARÃES ROSA, Carta a J.-J. Villard, 21 de novembro, Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, USP (Fundo Guimarães Rosa), 1962.386 LORENZ, op. cit., pp. 41-61.387 GUIMARÃES ROSA, Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-1, 2006, pp. 25-9.388 GUIMARÃES ROSA, Correspondência com seu tradutor alemão…, p. 90.389 NOGUEIRA GALVÃO, W., «Rapsodo do sertão», in Cadernos de Literatura Brasileira. São Pau-lo: Instituto Moreira Salles, n. 20-1, 2006, pp. 144 e segs.390 HAZIN, Elizabeth, «De Aquiles a Riobaldo: ação lendária no espaço mágico». Disponível em http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/158/146.pdf391 RICOUER, Paul, La symbolique du mal. Paris: Seuil, 1960, pp. 25 e segs.

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roseana de explorar as possibilidades da linguagem, para dizer a alteridade e traduzir o mistério392.

Ana Luiza Costa393 e David Arrigucci Jr. (ibid., p. 191) também assinalam o trabalho, em Rosa, de construção de uma língua, mescla única de vocábulos ga-rimpados em muitas línguas que se misturam constantemente. É na linguagem que Rosa diz o mistério, tenta dizer o indizível: o significado da errância, o significado da travessia da existência.

Uma das mais interessantes abordagens da obra é feita por Benedito Nunes, na chave de interpretação que aproxima filosofia e literatura. Nunes mostra que os conceitos filosóficos, com os quais o escritor expressa seu pensamento metafí-sico, aparecem nas vicissitudes dos personagens e na voz do narrador, elucidando os conflitos. O conflito por excelência é expresso no pacto de Riobaldo com o demônio, que mostra o «processo de auto-conhecimento de Riobaldo (...) seu embate com o destino»394. A escrita, que narra a condição humana é, para Rosa, «oração e sacrifício», o lugar onde se dá «a grande viagem, a travessia» exemplar (ibid., pp. 242-243).

O número 8 da Revista Diálogo, editado em São Paulo por Vicente Ferreira da Silva e tendo como redatores Dora Ferreira da Silva e Milton Vargas e como colaboradores efetivos poetas, filósofos, artistas, estudiosos de literatura – com-ponentes do Grupo de São Paulo, da Escola de São Paulo395 –, foi inteiramente dedicado à obra de Guimarães Rosa. Número de qualidade excepcional, traz estudos de Antônio Cândido, de Milton Vargas, de Dora Ferreira da Silva, para destacarmos apenas algumas dessas importantes contribuições.

Antônio Cândido focaliza o que chama de «deslumbrante (...) jorro de ima-ginação criadora, na língua, na composição, no enredo, na psicologia», de modo que «o artista, o mundo e o homem são um abismo de virtualidades», que através da ação criadora do artista permitem entrever uma «realidade potencial, mas ampla e significativa»396.

Os temas presentes em Grande sertão: o amor, a morte, o júbilo e a dor, diz Antônio Cândido, mostram o sertão como microcosmo no qual se expressa o mundo. O território percorrido pelos personagens existe, é tangível, mas é através dele que se constrói um universo mítico, no qual a realidade física é recoberta 392 Cf. FLUSSER, V., Bodenlos: uma autobiografia filosófica, São Paulo: Annablume, 2007, pp. 129-142.393 MARTINS COSTA, A. L., «Via e viagens: a elaboração de Corpo de baile e Grande sertão: vere-das», in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-21, 2006, pp. 191-192.394 NUNES, «O autor quase de cor: rememorações filosóficas e literárias», in Cadernos de Literatu-ra Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-1, 2006, p. 238.395 Cf. MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Aí também se acham os trabalhos de BRAZ TEIXEIRA, A., sobre a Escola de São Paulo, e os de KUJAWSKI, G. de M., sobre o Círculo Dora-Vicente Ferreira da Silva.396 MELO e SOUZA, A. C., «O sertão e o mundo», in Diálogo, São Paulo, n. 8, 1957, p. 5.

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pela realidade mágica. O rio São Francisco, fio condutor do romance, separa, com suas margens, o simbólico em direita e esquerda, o convencional e o ameaçador. Essa dualidade, assinalada por Antônio Cândido, aparece no horizonte de vida dos personagens: há os que vivem a vida comum e há os que vivem a vida do jagunço, do fora-da-lei, do assassino. O romance, na sua opinião, se caracteriza pela «coexistência do real e do fantástico, amalgamados na invenção e (...) difi-cilmente separáveis» (ibid., p. 8).

No romance, o herói é um filho bastardo do fazendeiro, que se alia aos justi-ceiros, os fora-da-lei que protegem a população e buscam, para matar, o terrível bandido Hermógenes. Este último teria feito um pacto com o demônio, daí de-correndo seu caráter temendo e sua força.

O percurso que transforma o filho bastardo em chefe do bando de justiceiros dá-se no espaço e no tempo, mas é também percurso interior, no qual se dá o con-fronto com o mal e com o próprio lado obscuro, o das paixões sombrias. O mal é personificado pelo demônio; o confronto com as paixões é apresentado através do amor, sempre recusado e reprimido, de Riobaldo por Diadorim, amigo da infância. A morte violenta de Diadorim leva à revelação de que se tratava de uma mulher travestida, filha de um justiceiro assassinado pelo bandido Hermógenes. Diadorim é criada como menino, para ser protegida da fúria do assassino, este último encarnação do mal gratuito, da violência. Engajando-se no bando, disfar-çada de homem, Diadorim – Maria Diadorina – procura o bandido para matá-lo, vingando a morte do pai.

Mais do que uma mulher travestida, Diadorim aparece, ao longo do romance, como uma espécie de daimon tutelar, que apazigua Riobaldo e o chama para as-sumir, de modo crescente, o destino do herói. Lembra os deuses disfarçados, que protegiam Odisseu; é descrita como «a que nasceu para guerrear e nunca ter medo e para muito amar, sem o gozo do amor» (ibid., p. 8), de modo que a personagem parece estar estruturada sobre o modelo de Palas Atena, protetora de Odisseu.

O jogo verdade – ilusão, associado à paixão reprimida de Riobaldo, assume também o aspecto de um confronto do herói consigo mesmo, com suas tenebrosas paixões: amor impossível, violência crua. E também confronto com a verdade, entendida como superação das ilusões a respeito de si mesmo, subordinação do mal à inclinação para o bem. A travessia do sertão, a busca do bandido para livrar a terra do assassino cruel é também a progressiva aquisição das potências da consciência e do poder daí decorrente. Tem o caráter, diz Antonio Cândido, de uma «iniciação às avessas, de assimilar (...) o opressivo terror, parte, aliás, de muitos ritos de passagem» (ibid., p. 13).

A transformação interior daí resultante torna Riobaldo capaz de assumir o comando do grupo e levar a bom termo o feito heróico: a supressão do mal, expresso na conduta do bandido. O texto de Antonio Cândido mostra também

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sugestivas analogias entre Grande sertão e as novelas de cavalaria, que narram a transformação do homem comum em paladino (ibid., p. 14). Mostra ainda a valorização da liberdade, o viver instaurando uma ética adequada à rudeza da vida. Os feitos de Riobaldo repercutem, culminando no prêmio da instauração de uma ordem mais justa. Diz Antonio Cândido: «Nesta grande obra combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional», devolvendo-nos «mais claros a nós mesmos» (ibid., p. 18).

Por sua vez, Milton Vargas mostra que Grande sertão representa a travessia do tempo e da vida, que conduz «à sabedoria e ao domínio dos poderes obscuros, através da dor e do sofrimento»397.

Mas o texto mais interessante é o de Dora Ferreira da Silva: «O demoníaco em Grande sertão: veredas». Abordando o tema do confronto com o mal, Dora desdobra os vários sentidos do demoníaco e do mal no romance. O mal ora é «os avessos» do homem, algo que se acha no seu interior; ora está presente na deformidade física: nos bichos, pedras, plantas; ora é o angustiante inesperado, o vazio e a falta destruidora. Lembra a poetisa que a designação indireta, por muitos nomes, do mal, mostra sua ambiguidade essencial: é personificado pelo demônio; a dúvida sobre sua efectiva existência perpassa toda a trajetória do herói. As noções de privação do ser, de não- substancialidade do mal, servem de pano de fundo, de algo subjacente e implícito, que ecoa a partir da antiga tradição filosófica, expressa no neo-platonismo e em Santo Agostinho. Nessa inquietação do personagem, o mal aparece ainda como a vontade submetida ao involuntário, à paixão e à vio-lência, o «ruim-querer», como diz Rosa398, citado por Dora. A ambivalência do herói consiste na busca de um poder, que ele crê ser alcançável através do pacto com o demônio e que o leva a invocá-lo no deserto e na noite, na solidão mais profunda, a fim de submetê-lo à própria vontade. O pacto é confronto com o mal, invocado para ser submetido, para que esse poder seja assumido pelo herói e assim possibilite a realização do que aspira. O confronto produz a mutação on-tológica necessária a Riobaldo, para que assuma a chefia dos justiceiros. Riobaldo, o herói, invoca o demônio sem obter resposta; traz em si uma força que impede o demônio de subjugá-lo. Esta força é representada pela Virgem, pelo amor, pela oração de outros em seu favor: «(...) entre o impulso do mal e a vontade do bem é estabelecida uma dialética», análoga à da teologia cristã, diz a poetisa (ibid., p. 32). Diz ela ainda: «No final do livro (...) o demoníaco seria [visto] como um dos aspectos do homem, seu avesso perverso (...)» (ibid., p. 33).

A viagem, travessia do sertão, é metáfora, para Dora, da «travessia do humano, que significa não apenas um encontro com o elemento suave e diurno da existência 397 VARGAS, M., «Visão e descrição: uma interpretação de Grande sertão: veredas», in Diálogo, São Paulo, n. 8, 1957, p. 27.398 GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1965, p. 356; FERREIRA DA SILVA, D. «O demoníaco...», in Diálogo, São Paulo, n. 8, 1957, p. 30.

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(...) mas que se assemelha às vezes a uma catábase, a uma descida aos infernos, ao encontro com o Mal». A trajetória de Riobaldo expressaria, para Dora, a tensão entre o lado diurno, solar, do homem e seu lado noturno. A oscilação entre os dois pólos «se resolve no trajeto de uma vida rica e profunda, vazada no modelo e na protoforma [do] mito (...) tema universal e imemorial» (ibid., p. 33).

É nesse horizonte de reflexões que se inscreve também a contribuição de Dalila Pereira da Costa, amiga portuguesa de Dora. Seu amplo estudo sobre o proble-ma do mal no Grande sertão30399 aproxima o romance também, como Antônio Cândido e Antônio Quadros, da tradição trovadoresca medieval e da obra de Suassuna, A pedra do reino.

Diz Dalila: «Grande sertão poder-se-á ler como uma aventura espiritual (...) [que] revelará a trama de valores existenciais que constituem a especificidade do homem brasileiro». Grande sertão é ainda uma busca da sabedoria, «feita de humildade»; é «uma meditação sobre a vida (...) sempre em vias de se fazer»; é proposta de criação de um mundo de paz, amor, liberdade; é luta contra o caos e a loucura, triunfo da graça e da ascese. O percurso no espaço é metáfora do per-curso na vida, cuja finalidade é a destruição do mal: «É a autenticidade do amor (...) o que ressaltará no Grande sertão: veredas: aqui se descreve uma aventura espiritual (...) na história (...) do seu herói; mas que (...) a transcende». E será um novo humanismo, «o que o Brasil (...), pela voz do jagunço Riobaldo, proporá ao mundo atual» (ibid., p. 143).

Numa perspectiva análoga, parcialmente inspirada por Dalila, Maria Helena Varela400 aborda a filosofia de Guimarães Rosa; examina a meditação sobre a lin-guagem em Flusser e Rosa, assim como em Pessoa e Rosa, estabelecendo pontos de aproximação e de oposição entre os autores. Também para Maria Helena, o sertão é o mundo, o universo; está em nós e fora de nós e equivale «ao mar sem fim português (...) indecifrável mistério» (ibid., p. 171). Com Benedito Nunes401, reconhece essa ambivalência do sertão: é o mundo material, mas também o mundo ético e o mundo religioso. No «sertão espiritual», dá-se «a luta entre o bem e o mal»; nele «o não-sentido surge-nos (...) como a via meta-lógica para o impossível e o infinito». Sua travessia é «comunhão cósmica, religiosidade palpitante»402, mas também descoberta da linguagem da liberdade, do poder decorrente do reco-nhecer a si mesmo, «meditando sobre a palavra» e assim repetindo «o processo de criação» (ibid., p. 174).

Vida e arte se inter-relacionam, diz Maria Helena, na travessia da existência, no fluir do que Rosa chamou de terceira margem. A obra de Rosa está pontilhada 399 PEREIRA DA COSTA, D., Duas epopeias das Américas: Moby Dick e Grande sertão: veredas (ou O problema do mal). Porto: Lello & Irmão, 1974, p. 137 e segs.400 VARELA, M. H., Conjunções filosóficas luso-brasileiras. Lisboa: Fundação Lusíada, 2002, pp. 171-214.401 NUNES, «A Rosa o que é de Rosa», O Estado de São Paulo, 22 de março, 1969.402 VARELA, Conjunções filosóficas luso-brasileiras…, p. 173.

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de referências a Dante, Ruysbroeck, Unamuno, Rilke, à tradição neoplatônica. Como seus companheiros de viagem, Rosa apresenta-se como poeta da alma, da solidão metafisica, da magia da linguagem que leva a ler a vida no seu aspecto mais alto, integrando um sentir-pensar que resulta numa sabedoria do coração. A ambiguidade permanente do sentir-pensar é meta-lógica que confina com o ilógico, sintetizando os contrários. Diz Maria Helena: «Este modo conjuntivo de ser e estar no mundo fará do Brasil uma sociedade (...) onde (...) o espaço entre, a travessia será (...) o espaço brasileiro por excelência, um terceiro lugar que inclui os opostos (...), relacionando-os» (ibid., p. 177).

A ambiguidade fundamental reaparece no personagem andrógino, «Diado-rim, mulher travestida (...) ‘neblina’ de Riobaldo e, simultaneamente, elemento mediador na travessia de um sertão originário, interior e exterior ao homem». Rosa, homem da metamorfose permanente do ser, estabelece pela palavra o significado do mundo, fundindo os contrários. Nela se expõe uma lógica não bivalente, um pensar-sentir que leva à superação do mal. Sua obra expõe a magia da vida criadora.

Análoga à tarefa de Rosa, a aventura marítima portuguesa, diz Maria Helena «faz do espaço entre o seu império (...) mais simbólico do que real, mais espiri-tual (...) que material (...)». Os portugueses navegam «para existir», são os que partem sempre, porque não sabem «viver senão partindo (...) na distância, no movimento ou na ficção» (ibid., p. 181). Aqui também Maria Helena converge com a perspectiva de Dalila a propósito do autor brasileiro, quando esta estabe-lece analogias entre a aventura marítima lusa e a celebração do aventurar-se num amplo e perigoso território.

Para Maria Helena, Rosa faz da língua «uma porta para o infinito». O escri-tor é «o médico da língua», como o filósofo, na tradição antiga, é o médico da cidade (ibid., p. 182). Escrever é, então, «uma travessia em que a língua e a vida se fundem», recuperando o sentido originário do todo existir e todo dizer. Rosa, conhecedor profundo da língua, cria neologismos, visando recuperar a expressi-vidade originária da palavra. A linguagem é, para ele, diz Maria Helena, «uma ars combinatória», que aglutina elementos aparentemente opostos: português arcaico, tupi, expressões coloquiais. Por isso, diz ela, a língua, para Rosa, «é simultanea-mente língua da Origem, e do Futuro, poética» (ibid., pp. 183-184).

Maria Helena faz, no texto sobre Flusser e Rosa (ibid., pp. 187-199), várias consideração sobre o tema-chave do Grande Sertão e de outros escritos de Rosa, a travessia: «No mar de territórios que é o Brasil, na terra sem fim, o rio (...) é o sucedâneo salvífico do mar sem fim português, uma terceira margem onde a conjunctio oppositorum lusíada ganha sentido, como fluxo de mestiçagens e metamorfoses» (ibid., p. 190). Maria Helena assinala paralelismos entre a obra de Rosa e as poéticas de Fernando Pessoa, Viera, Agostinho Silva e os ensaios de

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Dalila Pereira da Costa. A língua é o fio condutor da travessia, «lugar de errân-cia», «pátria em pátrias repartidas» (ibid., p. 191), entretecendo as experiências portuguesas e brasileira da poesia. A nosso ver, a arquetipologia da viagem como travessia do tempo e do espaço, travessia da alma, é mais antiga e mais ampla, prendendo-se à viagem, para nós paradigmática, de Odisseia, como bem sabia Guimarães Rosa.

O texto da poetisa e pensadora é esplêndido: aproxima Rosa de Heidegger, mostrando que, no percurso da língua, os poetas são tradutores «de uma língua que ainda não existe, na promessa de uma língua por vir (...); [são] tradutores do intraduzível». O poeta, para ela, é o que se põe à escuta «do acontecer poético», do mistério e «milagre da multiplicação e migração da língua dentro da própria língua» (ibid., p. 198).

Utilizando o conceito que forjou em sua tese de doutorado403, o de heterologos, designa o pensar-sentir que no paradoxo, na união dos opostos, encontra sua forma de expressão; estabelece a partir daí laços entre Mensagem e Grande sertão404.

A nosso ver, Grande sertão: veredas expõe uma metafísica fragmentária que, através de narrativa, mostra uma iniciação, um rito de passagem cujo resultado é a expansão da consciência, correlativo do caminho do homem em direção ao Ser.

O que Rosa pretende é, na nossa opinião, fazer a narrativa da condição huma-na. Nessa narrativa está presente a consciência de finitude e da precariedade do existir, sempre ameaçado pele possibilidade da morte e do não-sentido, expostos como exílio e errância num mundo inóspito. É também representada como cons-ciência do mal, através do símbolo do demônio, substantivado como outro, como um poder sombrio, que não é possível vencer diretamente, mas o qual é preciso confrontar e com o qual é preciso até mesmo pactuar (integrar). O confronto con-duz à superação, pelo herói, dos próprios fantasmas, da própria sombra e leva ao reconhecimento da não-substancialidade, da não existência efetiva do demônio. Como na tradição agostiniana e tomista, o mal é falta, privação do ser, ausência de qualidade que deveria estar expressa. Diz Riobaldo, o personagem-herói: «O diabo não há! É o que digo»405.

A travessia infinita, sempre inconclusa, é cumprimento da tarefa de cada um; é afirmação da existência de Deus, razão do viver «para o prazer e para ser feliz», «saber tudo, formar alma, na consciência». A finalidade do existir é conhecer, ampliar a consciência, saber mais, compreender «que Deus é alegria e coragem» (ibid., p. 237), superar o temor de viver.

Daí Rosa dizer: «O correr da vida embrulha tudo (...). O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e

403 VARELA, O heterologos em língua portuguesa. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo Ltda, 1995.404 VARELA, Conjunções filosóficas luso-brasileiras…, pp. 201-214.405 GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas…, p. 460.

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mais (...) e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim (...) de propósito – por coragem» (ibid., p. 242).

Coragem e amizade: força, possível perante o inóspito; força entendida como liberdade (ibid., p. 243), agir em vista da realização de uma finalidade compre-endida – intuída, de um significado a ser impresso na finitude. Nosso escritor afirma: «existe uma receita, a norma de um caminho certo, estreito, de cada pessoa viver (...) Tem que ter (...) E (...) para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente consegue ser a certa (...) [segundo uma] lei escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver» (ibid., p. 366).

Grande sertão: veredas é o romance da ambiguidade fundamental do homem e do mundo: inóspito, terrível, mas também beleza e liberdade, tarefa de dar sentido, infinita, recriada em cada vida.

Romance do desvendamento da verdade, entendida como superação do engano, ilusão e sofrimento; desvelamento da verdade em relação a si e ao outro, quer essa alteridade seja íntima, representada pelo demônio, os «avessos», o ruim-querer; quer essa alteridade seja a do outro ser humano e do mundo.

O tema da ascese que conduz à sabedoria aparece em diversos textos de Rosa, como uma incessante retomada da meditação que o poeta-filósofo propõe. A viagem interior, contrapartida das perdas e da errância é, em todos os escritos, a cifra da busca da própria alma, do próprio centro; travessia do espaço, travessia do tempo, travessia da língua – recriando, pela poesia, sua capacidade de dizer o mistério da vida e da morte, do Deus que se mostra e se esconde, na pluralidade do mundo.

Em resumo: os estudiosos convergem ao entender como metáfora-chave do Grande sertão a travessia da existência; o sertão é o análogo do mar na Odisseia, em Lusíadas, no Mensagem; a vida é lugar do desvelamento da verdade a respeito de si e do outro; é descoberta do significado do viver; dado que a saga do herói é a mesma do homem, na busca da progressiva ampliação da consciência; é realização da areté, da superioridade moral; é cumprimento de um destino individual, mas paradigmático, proposto a todos os homens, como tarefa essencial.

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a viagem como peregrinação e redenção em Dalila Pereira da Costa

Na obra de Dalila Pereira da Costa, o tema da viagem aparece como travessia do mundo e metáfora da viagem interior, travessia da alma, em diversos textos.

Destacamos os escritos entre 1974 e 1999, uma vez que o tema é retomado, neles, sob diversas perspectivas.

Publicado em São Paulo, em 1979, um artigo resume a tese central: “A ‘Pe-regrinação’: uma ascese portuguesa”406, descreve a aventura de Fernão Mendes Pinto, numa acidentada viagem ao Extremo Oriente, realizada no século XVI. Expõe a viagem como peregrinação e sacrifício. O testemunho de Fernão Men-des Pinto mostra a face do homem religioso que, após sucessivos naufrágios e perda total de riquezas devido a ataques de piratas ao longo de sua viagem ao Oriente, conseguiu regressar a Portugal, decorridos vinte e um anos. Retornou pobre, mas dando graças a Deus por ter conseguido voltar à pátria; considerava a experiência negativa como “remissão dos pecados”, aquisição de “riqueza ultra-terrena”, “salvação” (ibid., p. 86). O sacrifício pessoal, a perda de bens materiais, foi considerada como experiência do desapego, de não-tesaurização, de doação de bens acumulados, “oferta ao sagrado”, para, em troca, “receber o dom da gra-ça”, a salvação da alma (ibid., p. 88).

No Peregrinação, o que está em jogo é o louvor e a prece, como expressões da relação com Deus. A religião aí aparece como confiança e amor, de modo que qualquer resultado a que a vida encaminhe o homem, dá-se graças. A mensagem do Cristianismo é enfatizada como a de uma religião de redenção, que justifica o sofrimento pela aliança com o sagrado, purificação da alma; considera a evan-gelização como tarefa de doação de si e fraternidade. No texto em questão, o narrador diz que, tendo encontrado, na China, portugueses lá perdidos, que já falavam pouco a língua materna, um dos participantes da expedição escreveu, em chinês, num caderno, para eles, “o pater noster, a Ave Maria, o credo, o salve regina, os mandamentos e (...) outras muitas orações boas” (ibid., p. 99). Recebi-dos pelos aldeões da terra a que chegaram, rezaram com eles as orações da sua fé. Daí Dalila dizer: “O reconhecimento, identificação e união fraterna entre os por-tugueses, através do vasto mundo”, faz-se mediante a fé e o caráter missionário

406 PEREIRA DA COSTA, D., “A ‘Peregrinação’: uma ascese portuguesa”. Cavalo Azul, S. P., nº 8, Maio-Junho 1979.

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das viagens marítimas (ibid., p. 101). Sabedoria, santidade, caritas: valores que orientam a realização da igreja, “como missão sem cessar se fazendo no tempo e no espaço (...) realização (...) do corpo místico de Cristo – pela reunião, em seu nome, de alguns portugueses” em vários cantos do mundo (ibid., p. 103).

Evidentemente, a leitura de Dalila não é ingênua. A busca do lucro, caracteri-zou também, para alguns, a procura das riquezas e a violência da conquista. Mas o projeto original, que norteia as navegações, teve um sentido mais amplo, de evangelização e conversão do mundo à vida do espírito. Sofisticadamente prepa-radas pela Escola de Sagres, as viagens implicavam sólido conhecimento cientí-fico e, ao mesmo tempo, submissão a um desígnio maior: o da peregrinação em busca da conversão pessoal e despojamento, em vista da salvação da alma.

O tema da viagem como travessia do espaço e travessia da alma já aparecia em dois textos anteriores de Dalila: Duas Epopéias das Américas, de 1974 e A Nova Atlântida de 1977.

Em Duas Epopéias das Américas, Dalila aborda, em parte do livro, a obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. O romance do autor brasileiro estabe-lece uma analogia entre travessia do sertão e a aventura da alma, a progressiva expansão da consciência do personagem principal, o jagunço Riobaldo, que o leva a assumir a trajetória do herói, na medida mesma em que seus feitos o con-duzem ao um confronto consigo mesmo. Dalila propõe uma analogia entre a travessia do sertão e a travessia do mar, assinalada também por Elizabeth Hazin, especialista brasileira em Guimarães Rosa, que encontrou no acervo de Guima-rães Rosa, na Universidade de São Paulo, textos da Odisséia anotados por Rosa, na época em que preparava o seu romance, e estabelecendo analogias entre via-gem de Riobaldo e a viagem marítima de Odisseu.

No texto de 1977, A Nova Atlântida, dedicado à poetisa paulista Dora Fer-reira da Silva – editora da revista Cavalo Azul, no qual foi publicado o artigo “A Peregrinação” – Dalila estabeleceu uma analogia entre a ação civilizadora dos gregos antigos e a de Portugal, na modernidade. Nos primórdios da civilização ocidental, os gregos buscavam a verdade, tesouro supremo; na modernidade, “os navegantes ibéricos seriam os continuadores de Ulisses”407, estabelecendo laços entre a busca da verdade e a viagem marítima. Primeiro, os cretenses e venezia-nos, no Mediterrâneo; depois, no Atlântico, os ibéricos. Na viagem, metafórica-mente se realiza, entre os gregos, o milagre da razão liberta do mito, o percurso do mito ao logos; na península ibérica, dá-se a redescoberta do valor do mito, iluminado pela razão, que desdobra seu significado simbólico. Em Portugal, D. Henrique teria tido um papel análogo ao de Odisseu, entre os gregos: fazer nas-cer um cosmos do caos. Diz Dalila: “Aqui na Península, o Oriente e o Ocidente, a pré-história e a história, o mito e a razão (...) se unirão no exacto ponto e mo-mento de 1500” (ibid., p. 19). 407 Id., A Nova Atlântida. Porto: Lello & Irmão. Ed., 1977, p. 14.

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Um capítulo especialmente interessante, no livro, é o intitulado: “Os Lusíadas ou a procura da totalidade”, no qual, a partir de Camões, Dalila revê o significa-do e o papel de Portugal na história, no início da modernidade: unir Ocidente e Oriente, “pela descoberta do caminho marítimo para a Índia” (ibid., p. 109), estabelecendo, assim, uma compreensão una do mundo, pela complementarida-de entre os opostos. A pensadora aponta, uma vez mais, analogias entre a saga da viagem marítima portuguesa e as viagens descritas na Odisséia e na Eneida. Representando seus respectivos povos, o grego e o romano, Odisseu e Enéias têm, nos poemas, papel análogo ao que Camões atribuiu a Vasco da Gama: a viagem não é só um percurso no espaço mas também ascese, iniciação, exposta através das figuras exemplares dos heróis e da travessia do tempo, dos naufrágios e da morte.

Para os portugueses, a terra sagrada que buscavam, espaço do tesouro mate-rial e espiritual, é a Índia. Chegar até lá supõe a travessia do mar, prova e con-fronto com o monstruoso, o terrível, assimilado, depois, ao sagrado abissal, mis-tério tremendo que é preciso investigar, para ter acesso ao conhecimento.

Conhecimento do caminho das Índias; mas também conhecimento que im-plica uma abolição do tempo e do espaço, o encontro entre eternidade e tem-po. A finalidade da aventura é conhecer a verdade; unir os opostos – Oriente e Ocidente; o serviço a Deus, a difusão da fé; o encontro do próprio centro, pelo cumprimento de um destino espiritual. Na viagem, a Índia é a metáfora da trans-cendência, do espaço sagrado e paradisíaco. E a missão dos portugueses é “abrir e possuir o mar, e salvar a terra dos homens” (ibid., p. 120).

O percurso no espaço, através do mar, é metáfora do sacrifício e ascese, tarefa do herói que vai até o outro mundo – representado metaforicamente pela via-gem ao Oriente e o retorno à pátria. Dois paraísos movem a busca: Portugal, no Ocidente, como pátria à qual regressar; a Índia, no Oriente, como terra sagrada, repleta de ouro e especiarias – metáforas das riquezas espirituais. Um duplo per-curso: no espaço e na alma, é oferecido ao herói, Vasco da Gama; seu objetivo é a realização de uma obra universal, que cabe a Portugal e seu povo. O mar, físico, é caminho e perigo; o mar simbólico é encontro com o mistério cosmogônico, com o sagrado em seu aspecto primordial. A Índia, o caminho da Índia, é tam-bém a tarefa “de reduzir as trevas à luz (...) o desconhecido ao conhecido (...) um caos a um cosmos” (ibid., p. 125). É ainda caminho em direção a si mesmo, busca da sabedoria, rememoração e profecia do homem vindouro (ibid., p. 133 e segs).

Em um texto mais recente, de 1999, Dos mundos contíguos, a estudiosa por-tuguesa oferece uma síntese, a nosso ver, de sua hermenêutica e dos símbolos da viagem. Desdobra, uma vez mais, o significado da viagem, reiterando que o objetivo dos navegadores era busca de saber e de riquezas materiais, mas sobre-

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tudo de conhecimento de si mesmos, despojamento perante as perdas e naufrá-gios, auto-superação e obediência a uma missão de caráter religioso: difundir o cristianismo, evangelizar os povos, unir o mundo sob a égide do espírito, da generosidade e do amor.

Alargamento da consciência, procura do paraíso, ressonância de experiências místicas narradas por poetas e santos: as que possibilitam a aproximação entre eternidade e tempo, entendida como regeneração, redenção da queda e do exílio – metáforas da condição humana precária e mortal408.

Na tradição portuguesa, herdeira dos mitos celtas e do sufismo, das tradições medievais – a procura do paraíso é tema constante, entendida como viagem às ilhas sem males, extra-temporais. Esses mitos são retomados por Camões em Os Lusíadas, de modo que a viagem portuguesa aparece como caminho em direção à Índia, ao Oriente, mas também como metáfora da busca da terra paradisía-ca, da riqueza espiritual. O poema de Camões, sublinha Dalila, termina com a entrada dos nautas na terra divina, da juventude eterna, da imortalidade: as Ilhas Afortunadas. A viagem se faz com um duplo escopo: temporal, descoberta e caminho através do mar; simbólico, de redenção e imortalidade, superação do tempo.

Essa temática: de unificação do mundo, estabelecendo laços entre o Oriente e o Ocidente; de unificação do homem, que alcança a sabedoria, o conhecimento que leva ao mundo suprasensível, à liberdade e ao amor, está presente, diz Dalila, no projeto de Santo Agostinho e de Paulo Orósio; o de construção, no tempo, de uma via para o Absoluto. E se expressa na vida de Portugal, na poesia de Camões, “na profecia de Bandarra, Vieira e Pessoa, no sebastianismo e Quinto Império”409, como busca do encontro entre eternidade e tempo, superação da morte, vivida na experiência extática, como a descreveram Santa Tereza, São Francisco e os místicos sufis (ibid., pp. 25 e 27; 122 e segs).

A viagem aparece, na tradição e lendas portuguesas, como busca desse esta-do de consciência alargada, análogo ao êxtase ou ao sonho, que diversos mitos assinalam. Dalila aponta similaridades entre lendas medievais, celtas, mitos su-merianos e o entrelaçamento, em Portugal, de mito e história, na figura de D. Sebastião.

O mar, o sono e o sonho, a morte, são metáforas das vias de acesso ao além do tempo, à eternidade. O estado alterado de consciência, que representa o reco-nhecimento da passagem entre tempo e eternidade, é expresso pelo herói Vasco da Gama, nos Descobrimentos e por poetas e profetas, nos tempos ulteriores. Dalila estabelece uma analogia entre o tempo vivido pelos heróis na Ilha dos Amores, descrito por Camões, e a experiência iniciática dos Mistérios, na Gré-

408 Cf. RICOEUR, P., La symbolique du mal. Paris:Aubier/Montaigne, 1960, passim.409 PEREIRA DA COSTA, D., Dos Mundos Contíguos. Porto: Lello Ed., 1999, p. 18.

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cia, que implicava o confronto com a morte. Orfeu, poeta e músico, era conside-rado o fundador dos Mistérios; era um mestre espiritual que conhecia o poder da música “de purgar e elevar o homem” (ibid., p. 105). É também aquele que enfrenta a morte, desce ao mundo dos mortos e de lá retorna. .

Na poesia, na música, a inspiração estabelece o laço entre o homem e o sa-grado, o encontro com o real absoluto. Poesia e música, poesia e ascese, poesia e filosofia, são etapas da ascensão do homem na busca da verdade. Na obra de Dionísio Areopagita, na música de Bach, Mozart, Beethoven, cumpre-se, “do lado humano [a] subida à fonte da vida” (ibid., p. 96), análoga à viagem metafó-rica da alma (ibid., p. 91 e segs).

A aventura marítima aparece, para Dalila, como uma aventura soteriológica, busca do mundo arquetípico, que une o passado e futuro. A viagem dos nautas é uma das metáforas que mostram, no tempo e no espaço, a busca do sagrado, do absoluto. É obediência a um mandato do céu, de criação de uma comunida-de espiritual; é desindividualização, santificação pessoal, santificação do mundo, levada a cabo por um povo e seus governantes. A ascese que este esforço impli-cou expõe uma tradição religiosa que inspirou reis e o messianismo português ulterior, de Bandarra a Vieira, até “os poetas e filósofos de A Águia, Pascoaes, Leonardo Coimbra e seus discípulos, Álvaro Ribeiro, José Marinho (...)” (ibid., p. 162).

O percurso dessa tradição está marcado pela aventura de partir e regressar a uma pátria; ao cumprimento da vida como ascese e redenção, à compreensão do tempo do ponto de vista do eterno, como o Regresso ao Paraíso, de Pascoaes, expressaria (ibid., p. 170), bem como a atuação dos mestres da Renascença Por-tuguesa. Nessa perspectiva, a esperança da unificação do mundo sob a égide do amor, expõe-se contemporaneamente como unidade do mundo de língua por-tuguesa, como realização do V Império mítico através do Atlântico e da união das raças lusíada, índia e negra, tendo o Brasil, nessa renovação do mundo, papel importante: o de expressar o amor, a sabedoria do coração, a alegria, a liberdade. O projeto é “de instaurar sobre a terra a Cidade de Deus” (ibid., p. 177), “con-sumação da história, na paz e harmonia universal” (ibid., p. 178), realizando “a única e vera revolução sobre a terra: a espiritual” (ibid., p. 181).

Para Dalila, a missão espiritual que parece ter ido assinalada ao povo por-tuguês é a realização da unidade do mundo sob a égide do espírito, metafórica e historicamente representada pelo diálogo Ocidente–Oriente, de que as nave-gações seriam um dos marcos, assim como o desbravamento do território do Brasil. Na opinião da pensadora, essa missão foi retomada contemporâneamente pelos pensadores e filósofos de A Águia e da Renascença Portuguesa.

A partir das afirmações da estudiosa portuguesa, podemos dizer que, em pe-ríodo mais recente, a vinda ao Brasil a partir da década de 50, no século XX, da

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chamada Missão Portuguesa, importante grupo de intelectuais portugueses que tiveram atuação marcante na vida cultural brasileira, atuando na Universidade de São Paulo; na Universidade de Brasília – da qual alguns foram fundadores, como Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva; na Universidade Federal da Bahia, para citar apenas algumas das universidades beneficiadas com a presença desses mestres – parece traduzir uma nova etapa do projeto de unificação do mundo sob a égide do espírito.

O porte dessa atuação, no Brasil, ainda não foi completamente apreciado. Estudos sobre a Missão Portuguesa vêm sendo feitos na Universidade Estadual Paulista410, na qual foram editadas as primeiras publicações destinadas a consi-derar o impacto dessa presença.

A própria Dalila, entre 1959 – 1965, viveu no Brasil e seus escritos, publica-dos na revista Cavalo Azul, assim como a dedicatória do livro A Nova Atlântida à Dora Ferreira da Silva, mostrou laços estreitos com o Grupo de São Paulo411, cujo impacto na vida cultural do país e no estabelecimento de laços com Portugal vem sendo examinados. Certo paralelismo de temáticas e fontes pode ser entrevisto nos escritos de Dalila e Dora Ferreira da Silva e mereceria ser aprofundado.

Em resumo, podemos dizer que, partindo de estudos sobre a viagem dos na-vegadores, entendida no seu duplo escopo: o de unificar o mundo, estabelecendo um diálogo entre o Ocidente e o Oriente, mediante a difusão do Cristianismo; o de salvar a alma, realizando missão de cunho religioso, a viagem é progressi-vamente vista por Dalila como metáfora da missão permanente do povo portu-guês, representante emblemático da humanidade em busca de conhecimento e mudança qualitativa de consciência, possibilitando a união entre um saber reli-gioso e a sabedoria do coração.

Examinando, de modo análogo ao procedimento de Eliade, no estudo com-parado dos mitos de diferentes povos a expressão e o significado do sagrado, Dalila considera os mitos que narram as viagens iniciáticas dos gregos, dos cel-tas, dos místicos cristãos e sufis, à luz de tradição neo-platônica de Agostinho e Dionísio Areopagita, quando tratam da construção, no tempo, da Cidade de Deus, entendida como tarefa de cada um e de todos os homens. A mudança qualitativa da consciência individual e coletiva é a via da salvação. A pensadora desdobra, assim, os significados simbólicos da viagem como peregrinação no mundo e ascese.

410 LEITE, R. M. e LEMOS, F. (orgs.), A Missão Portuguesa. EDUSC/UNESP, 2003.411 MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM, 2000.

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a Celebração dos Deuses: vicente ferreira da silva e Dora ferreira da silva

Nas obras de Vicente e Dora Ferreira da Silva – poesia, Dora (1918-2006); fi-losofia, Vicente (1916-1963) – há um jorro excepcional de criatividade e um tom de festa, de celebração do sagrado, cujo avizinhar-se do mundo eles sinalizam e pressentem. Na reflexão de Vicente, herdeira do romantismo alemão e de Heide-gger, a proposição de uma filosofia da mitologia e da religião foi formulada nas obras tardias que precederam sua morte, em 1963. São vários artigos, escritos entre 1954-1962, publicados na Revista Brasileira de Filosofia e na Diálogo; desta última foi o editor, tendo como redatores Dora, sua esposa e Milton Vargas, seu amigo.

Na sua reflexão, Vicente aborda os seguintes tópicos: o conceito de Deus ou deuses; as noções de mito e mitologia; o conceito de mundo; o significado da po-esia e da linguagem, na constituição de uma nova concepção do mundo, homem e Deus.

Considera a dimensão corpórea do homem como algo que é desvelado, ofe-recido, objetivado por uma transcendência. A “abertura projetiva” da realidade é identificada pelo filósofo como Poder Pulsional, Fascinação, deuses.

Que são os deuses, para Vicente? São “ocorrências trópicas (...) suscitação de marés passionais (...) potência passional”412, de que o homem seria o reverso, o receptor. Os deuses não são representações imaginativas do homem; mas o homem é que é posto pelas potências teogônicas, que criam a consciência. Com Kerényi, Ferreira da Silva afirma que os deuses são origens de todos os valores e da totalidade do real (ibid., p. 379), são “um poder transcendental constitutivo”, são transcendência absoluta em relação ao manifestado.

A experiência do divino nos povos arcaicos que vivem o mito como forma de compreensão da realidade, inscrevia o homem no âmbito do sagrado, do religio-so; o mundo era visto como processo “dramático da vida cósmica” (ibid., p. 303), lugar onde se sucedem “cenas passionais (...) abertura de mundos fantásticos (...) hierofanias” (ibid., pp. 305-306). Daí nosso filósofo afirmar: os homens do mito viviam “o arrebatamento de um modo de ser excelso e numinoso”, onde o trans-bordamento vital do mundo circundante aparece como o modo de manifestação do sagrado (ibid., pp. 307-308). O mundo era, para eles, sucessão de imagens, poesia corpórea, epifanias da transcendência. 412 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas. SP: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. I, 1964, p. 302.

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O pensador brasileiro vê os entes como projeção do Ser e afirma que devemos nos libertar da centração no homem, para podermos compreender isso: “o mun-do é o ‘prius’ de todo o ente, de toda realidade intramundana” (ibid., p. 312). Sua contemplação vela e desvela uma realidade meta-humana, como também Heide-gger o assinalou. Trata-se, para Ferreira da Silva, de constituir um tipo de pensar que possibilite uma nova compreensão do Ser, como Sugestor da realidade. A re-alidade não provém “do ente ou das coisas [mas] as próprias coisas [são] imagens prototípicas”, expõem “o domínio projetante do Ser” (ibid., pp. 314-315).

O Ser é liberdade instauradora, que faz irromper um campo projetivo, no qual os entes se encontram; é Fascinação, fulguração de uma Poesia em si, tra-duzida pelas figuras dos deuses – compreendidas como instaurações de modos paradigmáticos do existir e expressão imagética da transcendência.

O apelo do sagrado originário – do qual todos os deuses, na sua sucessão nas diferentes culturas são figurações – mostra-se como Fascinação que conduz à busca de uma plenitude e instaura o sentido da vida, do mundo e do homem. Não se trata, para Ferreira da Silva, de propor um neo-paganismo. Mas de mos-trar, na celebração dos deuses – de todos os deuses – na sucessão das culturas e dos tempos, o modo pelo qual o Sagrado originário se mostra ao homem. E de compreender, no mundo contemporâneo, caracterizado pela planetarização da técnica e pela dessacralização, os sinais do esgotamento da forma de expressão do sagrado centrado na figura do homem, bem como de falar sobre o advento de uma nova compreensão de Deus, em cujo limiar nos encontraríamos.

Para o filósofo, a mitologia representa “a abertura de um regime de fascina-ção”; não é uma criação imaginativa do homem, nem projeção do inconsciente da espécie; não é pura criação literária. Mito e rito, em cada época histórica, expõem um cenário e uma presença das imagens do sagrado. Remetem-nos ao extra-humano como “documento memorizador e revelação histórica” (ibid., p. 319), que imprime uma certa orientação a cada época mundial.

A mitologia representa o universo prototípico; abarca, como o universo que representa, o passado, o presente e o futuro, possibilitando novas decifrações infinitamente, diz nosso autor, citando Schelling413. Assim, não é o homem quem institui as possibilidades de sua própria existência. As possibilidades do existir, em cada época, são governadas por uma matriz mítica, que constela o sugerido pelo Imutável e Divino, que não tem uma forma fixa, mas que se torna presente, em cada época, como desvelamento de um mundo.

O mundo contemporâneo se caracteriza, diz nosso filósofo, pela máxima ex-pressão do homem e pelo domínio técnico da natureza, obscurecendo seu vín-culo com o transcendente. Caracteriza-se ainda pela mudança, que estaria se iniciando, no projetar do mundo, por parte do Ser. Invocando Hölderlin e vendo nosso presente como um “tempo de carência”, de “noite dos deuses”, afirma e

413 Id., ibid., p. 380, apud SCHELLING, F. W. J., Filosofia del arte, B. Aires: Ed. Nova, 1949, p. 61.

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necessidade do homem novamente submergir “em sua matriz transcendente” (ibid., p. 321), sacrificando o ente que atualmente é, para abrir-se a novas possi-bilidades de compreensão de seu laço com o divino. Assim, a valorização da mi-tologia é, para o filósofo, abertura de uma nova compreensão do próprio homem, “a partir das potências míticas”. Essa nova compreensão consiste em considerar o ser humano como uma alternativa, uma possibilidade do vir-a-ser da divindade, conduzindo o pensar para lançar-se “além do homem” (...) a fim de “dançar em consonância com o movimento teogônico universal” (ibid., p. 322).

Para Ferreira da Silva, estaríamos no limiar de uma nova expressão da al-teridade absoluta, na medida em que, desapegando-nos do mundo dos entes, pensamos nossa própria realidade referida a um Sugestor, uma Origem, uma força da qual a consciência é tributária. A tarefa reflexiva consiste em libertar-nos da ocultação do sagrado e retornarmos ao princípio que se desvela como trans-humano. Tal princípio deve ser celebrado por um novo tipo de pensar, um poetar-pensante. Diz o filósofo: “O ‘fora’ que examinamos é, no fundo, um ‘den-tro’; a objetividade com a qual concordam os enunciados do nosso conhecimen-to representa uma esfera previamente ‘aberta’ pela luz do mito” (ibid., p. 336).

O novo ciclo de manifestação do sagrado que se anuncia é, para nosso pen-sador, a superação da história centrada no sujeito humano. Diz ele:” Somos uma possibilidade emergente de um tema que não foi proposto por nós (...) o impulso (...) que instigou o pensamento atual [centrado no homem como sujeito] (...) levou-nos (...) a este saber [da Origem], que se manifesta como o nada humano” (ibid., p. 343). O mito aparece, para Vicente, como meta-filosofia, proposição do pensável. Cabe ao filósofo pensar o mitologema que condiciona a cultura; bus-car, sob o real manifesto, a Origem na qual todo o pensável está contido, como fonte prototípica. O mito é exposição de um saber não humano, contendo em si virtualidades que, ao se desdobrarem, possibilitam o surgimento do sentido do mundo e do homem em cada época histórica. O pensamento deve retornar à origem, pôr-se à espera das fulgurações do sagrado, abandonando a adesão ao mundo dos entes. O desmantelamento cultural, espiritual, que caracteriza a crise da sociedade contemporânea, decorre do progressivo abandono da figura humana como lugar de expressão do sagrado. Um novo mito deve surgir; para Ferreira da Silva, é a rememoração dos deuses antigos, modelos prototípicos de um “plus” de que o homem é convidado a se aproximar. O mito expressa um pensamento simbólico, uma lógica imagística que se manifesta de forma poética ou dramática. A característica desse pensamento é “uma síntese (...) do parti-cular e do geral, da imagem e do conceito, do singular e do universal” (ibid., p. 369). Exemplifica essa característica do pensamento simbólico através da consi-deração interpretativa da figura mítica de Afrodite, na qual estaria contido todo o conhecimento fantástico- simbólico do amor: “Afrodite encarnaria enquanto símbolo (...) a própria revelação do mundo enquanto amor”.

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O símbolo possibilita, na forma em que se expressa, transcender o tempo e o espaço e alcançar a universalidade da experiência. É, para Vicente, tautegoria, tradução de uma linguagem em outra que alude a uma totalidade, em cada as-pecto abordado, descritivo ou mítico. Uma imagem se torna “símbolo quando nos dá (...) o conteúdo de uma protoforma divina (...). As metamorfoses dos símbolos constituem a força inerente à Imaginatio Divina” (ibid., p. 373).

Assim, a linguagem simbólica é revelação, epifania; o símbolo é encontro “com uma força plasmadora que nos oferece uma experiência de saber inesgotá-vel”. Dioniso, por exemplo, diz nosso filósofo, é a uva, o vinho, mas também está presente no séquito das bacantes, no coro trágico, “no sentimento que celebra o êxtase da existência”. Compreender o mito, desdobrar seu significado simbólico, desvendar seu valor de verdade, é a tarefa do filósofo.

O mundo não tem um significado fixo; ele é o conjunto dos seres, a totalidade das coisas que encontramos e que constitui uma unidade de significação. Desve-lar seu significado é aceder à concepção de Deus que preside a cada concepção do mundo. A cultura tem origem religiosa, pois o sagrado é poesia em si, “inau-gura poeticamente um mundo” (ibid., p. 381). Mundo não é o conjunto de obje-tos circundantes; é o significado aberto pelo Ser, Deus ou deuses (ibid., p. 383).

O pensamento simbólico plasma o caminho em direção a um aperfeiçoamen-to do homem e das coisas. É uma via poética, mediante a qual o homem se iden-tifica com “uma transcendência, um desenhar prototípico (...) que abre o campo (...) da história e da face dos entes no seu conjunto” (ibid., p. 388). É na linguagem que se expressa a existência humana; sua essência é a poesia, que “nomeia as coi-sas naquilo que são”, como afirma Heidegger, citado pelo filósofo brasileiro.

A palavra simbólica ordena o real a partir da poesia originária; os mitos, can-tos e rituais rememoram a palavra da Origem, que condiciona a totalidade dos entes. Na medida em que o homem se orienta em direção “a um campo fascinan-te divino”, atualiza formas de realização, segundo “os valores [propostos numa] diacosmese” (ibid., p. 395). Celebrar um deus é orientar-se na direção do trans-cender que o mito vinculado a esse deus propõe: “a relação entre o efêmero (...) e o (...) eterno no homem” alteram-se de acordo com a perfeição proposta pela inspiração de um deus”, através do mito que o narra (ibid., p. 396).

No horizonte dessa visão que se apresenta como uma decifração do significa-do da religião entre os povos arcaicos e como reflexão filosófica, interpretação do presente à luz das possibilidades abertas em relação ao futuro pelo mito vigente, destaca-se um texto, escrito por Ferreira da Silva em 1962: o Diálogo do Mar, no qual os personagens: Mário, George, Diana, Paulo, são amigos que conversam sobre a possibilidade do surgimento “de um novo universo prototípico”, “de uma nova mitologia”, pela qual se revelaria uma nova face do Divino.

Em outro texto, de 1953, Sobre a Poesia e o Poeta, escrito em colaboração com sua esposa, Dora, o filósofo põe à luz o significado e o papel da obra de arte: o

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de desvelar os antigos mistérios, o de celebrar os deuses vindouros, através da linguagem simbólica. Compreendendo “a arte como Encontro e Anunciação, e o poeta como mediador entre os deuses e os homens”, Vicente e Dora pretendem devolver “à arte sua veracidade e necessidade” (ibid., vol. 2, pp. 384-385). O po-eta é, como afirmava Hölderlin, como assinalava Rilke, o “homem sacral”, que celebra os deuses. Seu dizer é mitologia, festa, culto, “epifania do Deus”; “não é magia humana, mas magia divina” (ibid., p. 386).

Como Vicente, Dora também recusa a dessacralização atual, o empobreci-mento da vida na sociedade técnica, a vulgarização do homem aderido às coisas. Como Vicente, Dora procura a reaproximação à esfera do sagrado. No que po-deria parecer um neo-paganismo, reside a força da linguagem poético-simbólica da artista que, ao modo de Hölderlin, lê nos mitos a presença viva dos deuses. Se na primeira etapa da sua poesia a divindade se mostra a partir de uma plu-ralidade de deuses, vivos e presentes nos seus versos, é porque Dora busca a re-descoberta do sagrado, do numinoso, sob o forte impacto das leituras que fez no âmbito de fenomenologia da religião, da poesia romântica e de Heidegger. Como Hölderlin, a poetisa se expõe à catadupa de imagens, à aspiração e celebração de um novo sabor da vida, desdobrando, nos seus versos, os diferentes aspectos dos mitologemas. Assim, expõe o significado, para o homem contemporâneo, do apelo à Transcendência e à plenitude da vida, por esta representada.

Partindo de fontes análogas às de Vicente: a fenomenologia da religião, Hei-degger, Rilke – a poesia de Dora Ferreira da Silva se caracteriza pela celebração dos deuses arcáicos, da matriz grega; e de Cristo, da mística cristã, num segundo momento414.

Tendo raízes ancestrais na Grécia, no Épiro, como seu livro Retratos da Ori-gem mostra, sua poesia é evocação dos deuses, buscando a recuperação da pro-ximidade com o sagrado pelo mergulho no mito arcáico. A vivência profunda, a partir das imagens arquetípicas, do que chama de proximidade e atenção ao di-vino, propicia à poetisa uma riquíssima leitura da imagética dos mitos gregos. A experiência de Dora é a da exposição a uma alteridade que inspira e entusiasma, fazendo a artista viver num estado da consciência que se caracteriza pelo jorro criativo da obra literária. A tarefa do poeta não é só escrever, mas viver poeti-camente, encarnando na própria existência, no tempo e espaço quotidianos, a mediação entre o ser humano e o Absoluto. Como Hölderlin, como Rilke – seus irmãos em poesia – Dora invoca os deuses, invoca o Anjo.

O caráter sacral da arte, consistindo na mediação entre “terra e céu, deuses e mortais”, como dizia Heidegger415, cuja obra Dora conhecia bem, é posto em relevo em seus escritos. Diálogo entre os mortais e a divindade, possessão pelos deuses da consciência da poeta; abertura de um ver, através de beleza, o signifi-414 FERREIRA DA SILVA, D., Retratos da Origem. SP: Roswitha Kempf Ed., 1988. 415 HEIDEGGER, M., Essais et Conférences. Paris: Gallimard, 1954, pp. 170-193.

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cado essencial do mundo e do homem; mediação entre a vida e a morte, trânsito entre o sonho e a vigília, inspiração, premonição, taumaturgia: essa a tarefa do poeta, essa é a poesia de Dora. Por ela, os deuses se aproximam de nós; por ela, o mistério e o não-ainda-dito se avizinham; por ela aprendemos a contemplar, no jardim e na noite, na montanha e no mar, a cintilação de um deus vindouro; a ouvir o anúncio de uma nova época; a constatar o giro da roda do tempo sinali-zando uma mudança civilizacional profunda, da qual somos testemunhas.

Nas obras iniciais, o apelo aos deuses gregos já está presente. A volta ao pas-sado originário, em Dora, é também retomada de suas próprias raízes ancestrais: seus antepassados foram da Albânia à Grécia – Kérkyra – e de lá para a Calábria, a Magna Grécia, vindo depois radicar-se no Brasil. Mas sua poesia é também, para todos nós, a celebração da Grécia metafórica, pátria imaginada, vida do espírito, inspiração.

Se a filosofia é “fazer ver com as palavras”416 do discurso racional, a poesia pode ser considerada um fazer ver com imagens, com a linguagem metafórica e simbólica. Cabe ao filósofo desdobrar significações, cabe ao poeta fazer ver de modo novo, pela linguagem imagética.

Dora põe à luz o sagrado, invocando os deuses, descrevendo aspectos dos mitos arcáicos. Torna viva a presença dos deuses, faz ver a totalidade do visível como a outra face de um transcendente invisível. Os mitos a que constantemente se refere, na primeira fase da sua poesia, desde o livro Andanças417, que reúne poemas escritos entre 1948 e 1970, são: Koré, Diana; mas já existe um texto de prosa-poética, dedicado ao Cristo-Sol.

Entre 1973 e 1988, em Uma via de ver as coisas (1973)418 a referência aos deuses gregos e aos espaços sagrados da Grécia arcáica se amplia: Mnemósina, Selene, Apo-lo, Orfeu, Kuros, Athena, Afrodite, Castália, Cabo Sunion; mas também compare-cem os poemas dedicados aos espaços sagrados cristãos: Chartres, Roma, Assis.

Jardins (esconderijos), de 1978419, dedicado a Agostinho da Silva, abandona a reiterada menção aos deuses antigos. O que emerge, como expressão do laço com o sagrado é a figura de São Francisco; e a celebração de Vicente, dos amigos poetas ou inspiradores, evocados no belíssimo poema: Inscrição para os vivos: Cecília [Meireles], Clarice [Lispector], Guimarães Rosa, Eliot, Fernando Pessoa, Rilke, Jung, Cannabrava.

Retratos da Origem (1988)420 mostra a trajetória da sua família, da Albânia à Grécia, ao Épiro, a Kérkyra, à Calábria e enfim ao Brasil. Inclui também o longo 416 LEFORT, C., Préface, in MERLEAU-PONTY, M., L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1967, p. VII. Lefort estabelece, no seu prefácio ao livro de Merleau-Ponty, uma analogia entre o ver do pintor e o ver do filósofo. O pintor faz ver com as cores; o filósofo, com a palavra, o discurso racional. 417 FERREIRA DA SILVA, D., Andanças, 1970 (edição da autora).418 Id., Uma via de ver as coisas. S. P.: Duas Cidades, 1973.419 Id., Jardins (esconderijos). SP: 1979 (edição da autora).420 Id., Retratos da Origem. S. P.: Roswitha Kempf, 1988.

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poema Cantares do Itatiaia, montanha mágica onde Dora viveu numa comu-nidade alternativa, com Vicente e amigos e onde construiu depois uma de suas casas e uma capela, aí se retirando, de tempos em tempos, para escrever e con-templar a natureza, vivenciar o silêncio.

Talhamar, de 1982421, retoma a temática grega, a partir de figura do mer-gulhador, pintura mural encontrada em Paestum, Magna Grécia, em 1958. Um cartão reproduzindo a pintura serviu de imagem indutora da imaginação poéti-ca, tornando presente e viva a melancolia perante a beleza: do mar, do amor, das amigas, do jovem que busca no mar profundo a amada, das flores que lembram o amor e a morte. A sucessão de nomes femininos ditos nos versos: Dion, Dodo-na, Larissa, Trikalla, evocam as cidades sagradas de mesmo nome, e Delfos, e o Épiro mítico. A elas, sucede a menção aos deuses: Ártemis, Afrodite e a Dioniso. Outros poemas anunciam a vinda de um novo deus, de um novo tempo.

Apenas esboçada, nos versos sobre o mergulhador, a meditação sobre a mor-te vai se aprofundando, através dos poemas tematizando Nakt, figura imaginária da escrava egípcia que desce o rio na barca dos mortos. A sequência do livro traz uma série de poemas intitulados Tendas, que descrevem, como em uma viagem, o encontro com os amados mortos – que vivem a “vida ígnea”, pois atravessaram a fronteira que separa a vida da morte, mas se avizinham no silêncio de noite, trazendo o ensinamento-chave: “vida e morte, um mesmo canto”422.

O tema do mar reaparece nos Sete poemas de Ubatuba e em Albamar, se-quência de versos que evocam o mar, a morte, a casa na floresta, a identificação com Rilke e a visita de um pássaro, metáfora da poesia e da transcendência rei-teradamente escolhida por Dora.

Meditação sobre a morte, sobre a unidade entre a vida e a morte, de que a poesia de Rilke é, para Dora, o emblema, Talhamar encerra, provisoriamente, um ciclo centrado principalmente na temática grega. Contudo, essa permanece sempre como fio condutor, que se torna cada vez mais evidente, como substrato, fundamento, do poetar de Dora.

No Poemas da Estrangeira (1995)423, menções breves à Grécia, a Delfos e às deusas e personagens míticas: Diana, Koré, Cassandra, Perséfone, Deméter, Ha-des, Orfeu, Apolo, Dioniso, sinalizam a continuidade, mas também a mudança de ênfase na temática dos poemas de Dora, que tem como focos de atenção novos espaços sagrados: a montanha mágica do Itatiaia, Alcobaça, Ravena; e não mais apenas a referência a deuses, mas à Trindade, a São Francisco e à festa de Corpus Christi. É tematização das referências cristãs, que já brevemente se anunciara, em 1962, no prefácio ao livro de Hilda Hilst, Sete Cantos do poeta para o Anjo424, 421 Id., Talhamar. SP: Massao Ohno/Roswitha Kempf (eds.), 1982. 422 Id., ibid., Tendas, VII. 423 Id., Poemas da Estrangeira. SP: T. A. Queiroz, 1995.424 Id., “Duas experiências do Angélico”, in HILST, H., Sete Cantos do poeta para o Anjo. SP: Massao

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nas traduções: das Elegias de Duino – edição crítica dos poemas de Rilke425; na edição de textos de Angelus Silesius426, em colaboração com Hubert Lepargneur; nos estudos sobre a poesia de San Juan de la Cruz427; no estudo comparado de Tauler e Jung, em colaboração com Hubert Lepargneur428.

No último livro publicado em vida por Dora, Hídrias, mitos gregos e hiero-fanias se apossam novamente dos versos de Dora, como bem assinalou Luiz Al-berto Cabral, no prefácio429. Como Andanças e Poemas da Estrangeira, também Hídrias recebeu o importante prêmio nacional de poesia, Prêmio Jabuti.

No Hídrias, é significativo que o poema de abertura seja A Sibila. Assumindo a voz da advinha, Dora fala aos poetas, lamentando o mundo que contempla, do qual os deuses se ausentaram. Só os poetas mantêm viva, diz a sacerdotisa, a pa-lavra profética de Apolo, a celebração de Orfeu430. Dora retoma, em esplendidos poemas curtos, os temas da genealogia e características dos deuses. Celebra – isto é, presentífica, faz com que se aproximem os deuses e os mortais, desdobran-do aspectos dos mitos referentes a Leto, Ártemis, Apolo, Narciso, Hyacinthos, Dioniso Dendrites, Poseidon, a Grande Mãe, Koré, Perséfone, Hades, Hécate, Afrodite; evoca Delfos, espaço sagrado por excelência. Cria também “uma nova personagem mítica, a esquiva Tálida”, como assinala Luiz Alberto Cabral431, que também ressalta, a propósito dos poemas que encerram o livro, o “profundo conhecimento de tradição mítica grega, inclusive de lendas pouco conhecidas e obscuras, como a das Hélias (...) e dos Telquines (...)”, assim como a que se refere às jovens de Rodes, Macelo e Dexítea (ibid., pp. 22-23). Aspectos essenciais dos mitos são narrados, na sucessão de poemas de uma “sonoridade encantatória”, que promove “uma transferência direta para o âmago” do mito grego, conforme diz Cabral (ibid., p. 19), desvelando “a motivação profunda que subjaz no mito (...) sua lógica imanente” (ibid., pp.18-19), construindo “imagens míticas insóli-tas [e mostrando], simultâneamente, a correspondência com todos os elementos tradicionais do mito”, vivenciando “sua primordialidade”.

A presença da poetisa, a precisão de sua linguagem, marcada até mesmo no quotidiano “pelo ritmo da dicção poética”, mostram-se a Cabral como o apare-cer, no mundo concreto, de uma musa grega (ibid., p. 24) – tal a força com que o viver poéticamente de Dora se impunha a quem a encontrava. Carlos Drum-

Ohno, 1962. 425 RILKE, R. M., Elegias de Duino. P. Alegre: Ed. Globo, 1972, id., A vida de Maria. Petrópolis: Vozes, 1994. 426 ANGELUS SILESIUS. S. P.: T. A. Queiroz, 1986. 427 FERREIRA DA SILVA, D., A poesia-mística de San Juan de la Cruz. S. P.: Cultrix, 1982. 428 LEPARGNEUR, H. e FERREIRA DA SILVA, D., Tauler e Jung: o caminho para o centro. S. P: Paulus, 1997. 429 CABRAL, L. A. M., “Mito e hierofania na poesia de Dora Ferreira da Silva”, in FERREIRA DA SILVA, D. Hídrias. São Paulo: Odysseus Ed., 2004, pp. 9-24.430 FERREIRA DA SILVA, D., Hídrias, p. 27 e segs. 431 CABRAL, L. A. M., Mito e Hierofania... In FERREIRA DA SILVA, D., Hídrias, p. 22.

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mond de Andrade, em um poema a ela dedicado, descreve a poesia de Dora “ como o traço de ouro /que fixará o sonho acordado “, provocando o reconheci-mento, pelo poeta, de “uma convergência extasiada” entre ambos432. E José Paulo Paes, na apresentação do mesmo livro, refere-se à “poesia órfica” de Dora, que se caracteriza pela “presença do sagrado”433.

A celebração do sagrado fazia da casa de Dora – oficiante de um rito – e do espaço em que se movia, a entrada em “um mundo inesgotável (...) sem tempo (...) miscelânea de tempos sobrepostos (...) clareira densa de vida e linguagem”434, diz o poeta Rodrigo Petronio, no texto que apresentou a 3 de Abril de 2007, no Centro Cultural São Paulo, em homenagem a Dora.

Em Abril de 2006, Donizete Galvão publica quatro poemas em homenagem à Dora; e em 1º. de Julho de 2006, dia em que ela completaria 88 anos, os poetas Ale-xandre Bonfim, Donizete Galvão, Ruy Proença, Carlos Machado, Eric Ponty cele-braram a escritora, lendo versos escritos em sua homenagem, na Casa das Rosas, em São Paulo. Nesses poemas ela é a “Irmã das epifanias” (Alexandre Bonafim); Diotima (“Solilóquios da estrangeira”, Donizete Galvão); um diamante (“Dora Dia-mante”, Ruy Proença; “Diamante”, Carlos Machado). Em Junho de 2006, Rodrigo Petronio publica um longo poema em homenagem a ela, intitulado “Astarté”.

Identificada com os mitos que tematizava em seus poemas, imortalizada nos seus versos e na voz de outros poetas, consuma-se a celebração dos deuses na obra e na pessoa da poeta: “A vida é o ponto escolhido para o triunfo célere de um deus (...) vela e desvela uma face (...) divina”435.

Vilém Flusser, seu amigo e tradutor de seus escritos para o alemão436, a des-creve como aquela que vê “o pulsar do belo como o pathos religioso”; como a que reconquista “a kallokagathia”. A sua poesia é, assinala Flusser, “elaborada sofisti-cadamente, tanto a nível linguístico quanto ‘simbólico’ (...)”; sua escrita resulta de “dura disciplina” (ibid., pp. 152-153). Para ela, o símbolo é “mediação e sujeito e o transcendente”. No seu verso,

“o Cristo enquanto logos é não apenas o símbolo máximo (a mediação par excellence) mas também o símbolo-chave que permite (...) a descober-

432 DRUMMOND DE ANDRADE, C., poema, datado de 5 de Maio de 1982, publicado na contra-capa de Poemas da Estrangeira.433 PAES, J. P., “A presença do sagrado numa obra sensível e plena”, in FERREIRA DA SILVA, D., Poesia Reunida. RJ: TOPBOOKS, 1999, pp. 410-413. A edição que contempla a obra poética de Dora até 1999, traz na fortuna crítica que encerra o livro, depoimentos e estudos de poetas, pen-sadores e críticos literários como: José Paulo Paes, Cassiano Ricardo, José Augusto Seabra, Ivan Junqueira, Vilém Flusser, Euryalo Cannabrava, Gilberto de Melo Kujawski, Nogueira Moutinho, Agostinho da Silva e dois textos meus. A apresentação do livro foi feita pelo poeta Gerardo de Melo Mourão.434 PETRONIO, R.,“ A ave, o mergulho e o fogo”, in rodrigopetronio.blogspot.com/2009/11/ ave-o-mergulho-e-o-fogo/html.435 FERREIRA DA SILVA, D., “A novilha” in id., Talhamar. SP: Massao Ohno/ Roswitha Kempf, 1982.436 FLUSSER, V., Bodenlos. SP: Annablume, 2007, p. 161.

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ta de todos os significados (…); o símbolo é ambivalente(....)ponteiro da coisa concreta e do transcendente(....) [porque ] para ela, fazer poesia é mergulhar em prece “ (ibid., pp. 156-157).

O fascínio que a obra de Rilke exerceu sobre Dora é explicado, diz Flusser, pela “capacidade rilkeana de fazer da língua ‘ordinária’ (...) um veículo (...) para o significado transcendente” (ibid., p. 159). A observação de Flusser, o encanta-mento que a poesia de Dora desencadeia sobre o pensador da linguagem mostra uma característica da obra da poetisa. Dora, como Rilke, parte do aparente banal – mulher, pássaro, jardim – ou da descrição de um aspecto pouco conhecido de um mito, para desencadear o surpreendente voo em direção ao Absoluto.

Para Vicente, a celebração dos deuses está ligada à hermenêutica do mito e da linguagem simbólica, à crítica de nossa época – tempo de crise, de obscure-cimento do mundo, da técnica triunfante, da perda de sentido do humano. Seu pensamento é busca de uma ontologia na qual o homem e o mundo aparecem como interligados e dependentes de uma realidade originária, entendida como uma divindade, acima de qualquer representação e que se mostra na sucessão de figuras dos deuses, nas diferentes épocas históricas. É busca de uma raciona-lidade aberta ao intuitivo, ao onírico, ao mítico, assinalando o valor de verdade presente na linguagem simbólica. Tal razão hermenêutica, que decifra para com-preender, faz da filosofia um poetar-pensante, voltado para o caminho que vai do ente ao Ser, ao abismo da Origem.

A metodologia dessa hermenêutica é a procura sistemática de perspectivas convergentes, procedendo de diferentes campos do saber contemporâneo: feno-menologia da religião, ontologia, poesia, como Vicente assinalou, no editorial do primeiro número da revista Diálogo. A convergência e a concordância expres-sariam o surgimento de um novo tipo de pensar, onde “O pensador diz o Ser. O poeta nomeia o sagrado”437; e onde “Cantar a pensar são os troncos/vizinhos do poetar”438, como já indicara o mestre da Floresta Negra.

Em uma carta enviada à Dora, intitulada O verdadeiro pacto439, Vicente fala da vocação de indagar sobre a condição humana, da tarefa de realizar a liberdade, apesar da angústia que isso implica. Exercício de coragem, a filosofia é o esforço de libertar o homem da prisão da subjetividade, abrindo-o novamente às suas possibilidades criadoras. É esse o compromisso, o pacto que Vicente propõe à Dora: viver para realizar as possibilidades mais altas do existir. E essa realização passa pela complementaridade entre o poetar e o pensar que ambos efetivaram, de modos diversos, num matrimônio alquímico.

437 HEIDEGGER, M., Que é Metafísica? SP: Duas Cidades,1969, p. 57. 438 Id., Da Experiência do pensar. P. Alegre: Globo, 1968, p. 49. 439 A carta foi-me cedida por Dora. Acha-se, como anexo, em minha tese de livre-docência, defen-dida em 1980 na PUC de Campinas: Vicente Ferreira da Silva. Trajetória intelectual e contribuição filosófica (digitada).

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Dora ferreira da silva: caminhos em direcção ao sagrado

IntroduçãoDora Ferreira da Silva nasceu em 1918 em Conchas, cidade do interior do Es-

tado de São Paulo e faleceu na cidade de São Paulo em 2006. Casou-se muito jo-vem com Vicente Ferreira da Silva, que foi um dos introdutores do pensamento de Heidegger no Brasil e um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia, com Miguel Reale. Dora também pertenceu ao Instituto.

A obra poética de Dora é profundamente marcada pelo diálogo constante com seu marido e com pensadores que frequentavam a casa de ambos, entre as décadas de 1940 e 1960 e que constituíram o chamado Grupo de São Paulo, Escola de São Paulo, por Antonio Braz Teixeira e Antonio Paim440 e de Círculo Vicente Ferreira da Silva, por Gilberto de Mello Kujawski441. O Círculo, diz Kuja-wski, “ constituía-se em duplo nível. Primeiro o dos amigos que o procuravam [ a Vicente ] em sua casa (...)Segundo, o dos colaboradores da revista Diálogo, que fundou e da qual era diretor [Vicente], cujo primeiro número saiu em Setembro de 1955”. E ainda: “ Compunham o Círculo residencial, em primeiro lugar, sua mulher, Dora Ferreira da Silva” (ibid., p. 241), sua cunhada, Diva Toledo Piza, Milton Vargas, Heraldo Barbuy, Belkiss Barbuy, Eudoro de Sousa, Vilém Flusser, Renato Cirell Czerna, dentre outros (ibid., pp. 242-243); e os colaboradores da revista, que foi publicada durante nove anos, perfazendo dezesseis números e dentre os quais Kujawski destaca, além dele próprio e dos já citados no primeiro círculo, Agostinho da Silva, Antonio Cândido, Mário Chamie, Theon Spanudis (ibid., p. 243). A menção a Dora enquanto participante da Escola de São Paulo, é feita ainda por Braz Teixeira no estudo ‘Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?442. O que parece ser importante, para situar a contribuição de Dora, é a perspectiva proposta por Braz Teixeira, que a Escola de São Paulo – grupo de pensadores que abarcaria o Círculo Vicente Ferreira da Silva, mencionado por Kujawski, e o Grupo de São Paulo, mencionado por Paim e pelo próprio Braz Teixeira – se caracterizaria pelo “interesse especulativo pelo sagrado e pela religiosidade, a 440 PAIM, A., Das Filosofias Nacionais. Lisboa: Universidade Nova, 1991, pp. 72-73; BRAZ TEI-XEIRA, A., op. cit., p. 72-73; MARCONDES CÉSAR, C., O Grupo de São Paulo. Lisboa: INCM, 2000, passim.441 KUJAWSKI, G. De M., “O Círculo Vicente Ferreira da Silva”, in MARCONDES CÉSAR, C., op. cit., pp. 239-248.442 BRAZ TEIXEIRA, A., «Haverá uma “Escola de São Paulo”?», in MARCONDES CÉSAR, C., op. cit., pp. 245-248.

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reflexão sobre a cultura, seu conceito e origem e sua relação com o mito e com os valores, o problema do homem e da sua constitutiva historicidade, a considera-ção filosófica da arte e da técnica” (ibid., p. 247).

O diálogo Vicente-Dora tem um exemplo importante no texto do filósofo, “Sobre a Poesia e o Poeta”443, que a própria poetisa assinalava como um marco desse convívio. Aqui encontramos a caracterização do poeta como mediador entre os deuses e os homens, tema que perpassa as fontes diversas a que Dora recorreu.

A obra de Dora apresenta uma tríplice expressão: a poesia, o ensaio, a tra-dução. Nessa triplicidade, a busca apaixonada do sagrado aparece como um denominador comum. As fontes de seus escritos, no horizonte da poesia, são: o romantismo alemão, especialmente Hölderlin e Novalis; a filosofia de Heide-gger, no que diz respeito à significação do poeta, à concepção do significado da obra poética; a fenomenologia da religião, particularmente em Kerényi e Walter Otto; a história das religiões de Eliade; a poesia de Rilke, autor do qual traduziu, de modo incomparável, as Elegias e A vida de Maria; Saint-John Perse, Elliot, Lawrence. E a psicologia analítica de Jung, autor que traduziu, participando da equipe da Editora Vozes, no Brasil e sobre a qual deu cursos em sua casa.

o itinerário de Dora ferreira da silvaNuma primeira etapa do seu itinerário, a poeta retoma os mitos gregos e

procura, na perspectiva de um neo-paganismo, a celebração do sagrado, o mito vivo, a proximidade com Deus através da pluralidade dos deuses. É na tradição arcáica, pré-cristã, dos deuses gregos, que a poeta reencontra, num tempo de crise e secularização, a poderosa presença do sagrado.

Desde Andanças, poemas escritos entre 1948 e 1970444, a referência aos mitos de Koré/Perséfone, Orfeu, Diana, Dioniso, Eros e Psiqué, já aparecem445. Tam-bém são assinalados como modelos paradigmáticos e diálogo privilegiado, o poeta Hölderlin e Guimarães Rosa446, o grande romancista brasileiro contem-porâneo.

Essa referência se intensifica em Uma via de ver as coisas447, onde a linha tem-poral, desdobrada em presente (“Aqui”) e passado (“Antes”), dialoga com o sem tempo determinado e a eternidade (“Quando”, “Sempre”).

A referência aos mitos de Orfeu, Apolo, Mnemósina, Poseidon, Atenas, apa-rece na dimensão do passado, que é trazido com toda sua intensidade e força, 443 FERREIRA DA SILVA, V., Obras Completas, vol. II, São Paulo, IBF, 1966, pp. 381-386.444 FERREIRA DA SILVA, D., Andanças, edição da autora, SP, 1970.445 Id., ibid., “Koré”, pp. 13-17; “Dionisio”, p. 45; “Orfeueurídice”, p. 47; “Diana nua”, pp. 90-91; “Eros e Psiqué”, p. 71.446 Id., ibid., “Hölderlin”, p. 112; “A Guimarães Rosa”, pp. 106-107.447 Id., Uma via de ver as coisas, S. P., Duas Cidades, 1973.

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no percurso de Delfos, Atenas e Cabo Sounion. Provavelmente, resultante da visita da poetisa à Grécia, a série de poemas encontra a sacralidade arcáica, viva: a poeta se identifica com Orfeu, modelo paradigmático do poeta, uma vez mais: “Canto canções / para os que morreram / (...) sob as folhas vivas / sustento na mão a lira... / É isso a solidão” (op. cit., “Orfeu”, p. 64). E no belíssimo “A Apolo”, a celebração do deus é invocação e diálogo com a divindade: “E tu, perfeito, / estás onde és, / no ar da safira incrustado / em teus olhos (...) és o fiel, / o que perdura” (ibid., “A Apolo”, p. 63).

É preciso dizer que se há uma nota dominante, na evocação da sacralidade arcaica, tornando os deuses presentes e vivos, o que sugere um neo-paganismo, Dora, já em Andanças anuncia um certo vínculo cm o cristianismo, que será retomado de modo a ser conciliada a sua mensagem com a dos deuses arcaicos. Poderíamos dizer que na busca do sagrado Dora faz um itinerário que se carac-teriza pela busca do mito vivo, da sacralidade arcáica, e dialoga ulteriormente com o cristianismo, em duas etapas: na primeira, como alguém já tivesse vivido no tempo-limite, na transição da religiosidade arcáica para o cristianismo. Em Andanças, isso aparece no texto sobre o “Cristo-Sol”448.

No poema “Recado”, falando de um mundo sem esperança, a poeta anun-cia um deus vindouro, possível renovação da idéia do sagrado; trata-se de uma nova revelação, análoga à experimentada pelos que viveram a transição entre a Antigüidade e o surgimento do Cristianismo: “De altos patamares / desce em rutilância o recado do Arcanjo / (...) no arco-íris aproxima-se a Criança” (ibid., “Recado”, p. 93).

O diálogo entre o passado e a busca cristã da eternidade é visto como um di-álogo entre o paganismo e a religiosidade apoiada na mística medieval. “Sempre” é um conjunto de poemas que tem como prefácio um texto de Tauler, discípulo de Mestre Eckart. É pela mística cristã, nos píncaros dessa meditação sobre o silêncio, na vida monástica, que Dora começa a recuperar o cristianismo como fonte de inspiração em sua busca pelo sagrado. O poema de abertura dessa parte da obra Uma via de ver as coisas pode exemplificar a trajetória: é dedicado a Chartres, a catedral cristã magnífica, construída sobre as ruínas de um templo de Diana, e que conta com um subsolo, no qual se celebram missas aos mortos, invocando a Nossa Senhora do mundo subterrâneo. Chartres é, concretamente, a edificação que faz a síntese entre o paganismo e o cristianismo, e a poeta intui essa possibilidade, celebrando a catedral como o lugar onde se realiza o encontro com a eternidade: “Ave, nave, alvíssima, asas voando / no altíssimo Dia”449.

O valor místico do silêncio, abertura para a transcendência e a eternidade, aí está presente: “O silêncio tem uma porta/ que se abre / para um silêncio maior: / antecâmara do último, / que anuncia outro / depois” (ibid., “O silêncio”, p. 110).448 Id., Andanças, “Cristo-Sol”, p. 84. Lembramos que Apolo é identificado, nos mitos, ao sol, inclu-sive do mundo subterrâneo.449 Id., Uma via de ver as coisas, “Chartres”, p. 87.

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Em Jardins (esconderijos), de 1979, o tema de Grande Mãe aparece brevemen-te no poema “Gritos”450. E o cristianismo vem à luz no tema do Anjo, símbolo “do eterno [que] tomba no instante” (ibid., “Anjo”, p. 32); assim como na referên-cia a São Francisco, modelo na busca da sacralização da existência, indicando a valorização do amor, do silêncio e da vida monástica, temas que aparecem também em Agostinho da Silva, pensador luso-brasileiro com o qual manteve diálogo importante e ao qual é dedicado o livro. Na epígrafe de Agostinho da Silva, estão resumidas as trajetórias do pensador e da poeta. Diz a epígrafe: “des-pojamento completo da vontade (...) e a vigorosa ascensão e fusão com o mito, caleidoscópio do nada que é tudo”.

Vejamos o poema “Ícone de São Francisco”: “Peregrino / que nada guardou de si / no alforje do destino / e no corpo tatuado / levou o Amado: / nas mãos dois cravos os pés trespassados” (ibid., “Ícone de São Francisco”, p. 105).

Talhamar451 de 1982, abre-se também com uma epígrafe de Agostinho da Sil-va, provavelmente carta a Dora, comentando o ciclo de poemas que principia o livro: “Ânforas”: a Grécia arcaica é invocada, assim como os mitos egípcios, fonte dos poemas que inauguram o ciclo seguinte, intitulados Nakt. Seu tema é a barca que conduz mortos.

Diz Agostinho: “Dora (...) voga (...) [e o] Atlântico de África e Brasil se trans-formará na Barca Divina dos mais antigos que os gregos (...) no único tempo que verdadeiramente importa: o que é contemporâneo do eterno”452.

Novamente, nesse livro, marco de maturidade da poeta, a própria capa da primeira edição sugere o mergulho no mar da eternidade e o trânsito perma-nente entre a vida e a morte. Trata-se da reprodução de pintura mural grega descoberta em 1958 no Túmulo do Mergulhador, em Paestum, Magna Grécia, e escolhida pela autora como capa de seu livro. Nos poemas, Dora celebra os lugares sagrados: Joanina, Dodona, Trikalla, Delfos; e os deuses: Ártemis, Mne-mósyne, Afrodite, Dionisos, pois “cada pedra, cada homem ou árvore / vela e desvela uma face rápida e divina”453.

Celebra ainda, um deus vindouro, um “novo tempo” de plenitude e felicida-de: “beberemos o vinho saboroso, o trigo terá sabor / de trigo e o deus vestirá de amor os corpos nus” (op. cit., “O Deus que vem”). O poeta é identificado ao sacerdote, aberto ao “antiquíssimo Som” (op. cit, “Albamar IV”).

Em Retratos da Origem454, Dora canta o itinerário da família, da Albânia à Grécia, da Grécia à Itália e da Itália ao Brasil: “O Épiro é longe, mas é irmão de Conchas” (ibid., “Conchas I”, p. 68). É o espaço sagrado de Joanina, Kérkyra, da 450 Id., Jardins (esconderijos), S. P., ed. da autora, 1979, “Gritos”, pp. 61-63.451 Id., Talhamar, S. P.: Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1982.452 SILVA, A., “Sobre Ânforas”, Lisboa, 1978, in FERREIRA DA SILVA, D., Talhamar, epígrafe.453 Id., Talhamar, “A novilha”.454 Id., Retratos da Origem, S. P., Roswitha Kempf, 1988.

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Calábria; é também o laço entre paganismo e cristianismo, num outro nível: “Na Calábria / acariciada por um vento brando / Cristo dança com toda a Natureza” (ibid., “Bodas Místicas”, p. 64). É a abertura ao sagrado, ao indizível, já presen-te nas meditações e ensaios inspirados em Rilke, de que dois textos podem ser exemplo: o prefácio que escreveu para os poemas de Hílda Hilst, Sete cantos do poeta para o Anjo, intitulado: “Duas experiências do Angélico”455; e o artigo “O duplo reino da vida e da morte”, publicado na Diálogo número 15456, revista edi-tada por Dora e por seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva.

Em 1972, a poeta fez uma importante tradução comentada das Elegias de Duino457, onde reaparece o tema do Anjo; e em 1995, traduziu, também de Rilke, A vida de Maria458.

A referência a Rilke é uma constante nos poemas de Dora. A poeta o invoca, dialoga com ele, assume seu olhar, para dizer o sagrado numa tonalidade inspi-rada no cristianismo. Assim, “Cantares do Itatiaia”, último ciclo de poemas que encerra Retratos da Origem, tem como epígrafe um verso de Rilke: “Com todos os olhos a criatura vê o Aberto”. Nessa seqüência de poemas, Dora celebra o Itatiaia, a casa na montanha “cheia de deuses”, onde a poeta está exposta ao céu noturno, às clareiras, à terra e a água, “ ao delírio de ser toda a floresta / sem arrefecer / findo o delírio”459.

A “casa na floresta”, refúgio na montanha do Itatiaia onde a poeta retirou-se muitas vezes, para contemplar e escrever, já aparece em Talhamar, no ciclo de poemas “Albamar”. É a casa habitada por “milênios (...) o entrante / e os que se foram”, é a montanha onde “em silêncio [a poeta] ouviu a terra”460. A montanha, símbolo da transcendência, reaparece em Poemas da Estrangeira461 nos escritos intitulados “Ciclo da Montanha”; e a temática grega, em “Heládica”, ciclo de poe-mas seguinte do mesmo livro, invoca Apolo, Dioniso, Hades. Aqui, novamente a temática cristã aparece enlaçada com a grega, como dois registros da experiência do sagrado: os poemas dedicados aos ícones (ibid., “Fim e começo”, “Ícone”, p. 230) do monte Athos marcaram a transição da religiosidade arcáica à cristã, assim como os dedicados a São Francisco (ibid., “Il poverello”, p. 232), à festa de Corpus Christi (ibid., “Corpus Christi”, p. 236), à Trindade (ibid., “Trindade”, p. 237).

Novamente, a epígrafe deste ciclo de poemas, “Fim e começo”, que encerra Poemas da Estrangeira, é um texto de Agostinho da Silva, cuja obra é signifi-455 Id., prefácio cit., in HILST, H., Sete cantos do poeta para o Anjo, SP, Massaho Ohno, 1962.456 Id., “O duplol reino da vida e da morte”, Diálogo, SP, 1964, pp. 53-74.457 RILKE, R. M., Elegias de Duino, P. Alegre, Globo, 1972.458 Id., A vida de Maria, Petrópolis, Vozes, 1995. A apresentação da obra foi feita por Dora, pp. 7-9.459 FERREIRA DA SILVA, D., Retratos da Origem, “Cantos do Itatiaia”, “Canto II”, p. 87.460 Id., Talhamar, “Casa na floresta”, “O banco sob a árvore”.461 Id., Poemas da Estrangeira. S. P., T. A. Queiroz, 1995, “Ciclo da Montanha”, pp. 65-98; “Heládi-ca”, pp. 999-112.

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cativamente associada ao fransciscanismo, à experiência da vida monástica, a Joaquim de Flora. Diz a epígrafe: “Viste agora, Amiga / nascer outra mandala – e as / amamos nós, às suas folhas / e elas vão ser a plena liberdade do homem / e a imaginação imperando / no mundo e o Paraíso enfim reconquistado / e tão absoluto Amor que / todas as filosofias / lhe são apenas achas de / fogo e nele, por Deus, nos consumiremos” (ibid., p. 221).

Em Cartografias do Imaginário462, de 2003, a referência aos deuses antigos persiste: Perséfone, no poema “Flores” e no “Dá-me de beber” (ibid., p. 12; p. 29, respectivamente); Vênus, nos poemas “Vênus em flor” e “Vênus pensativa” (ibid., p. 75 e 76, respectivamente); a celebração dos espaços sagrados, no poema “Epidauro” (ibid., pp. 67-69), o grande centro curativo, no qual Dora encontra a “cura” para os males do homem contemporâneo: a certeza de que “o que governa o universo / não é a mente, é o coração. / Em Epidauro (...) ouvimos bater o co-ração do mundo. / E então sabemos qual é a cura: (...) / render-se para que nossos pequenos corações batam em uníssono / com o grande coração do mundo” (ibid., p. 69), E o cristianismo reaparece na referência a Patmos, onde “Fim e começo sorriem, / dançando a mesma dança” (ibid., “Patmos”, p. 97); e no poema, verda-deira prece, “A Deus” (ibid., “A Deus”, pp. 14-15), que podia ser qualquer deus, no qual a poeta diz: “a vida que vivi sempre te continha / como a um coração” (ibid., p. 14).

No último livro publicado, em 2005, Hídrias, a temática grega reaparece intensamente em “Órfica”, “Leto”, “Ártemis”, “Apolo”, “Narciso”, “Hyacinthos”, Dionisos Dendrites”, “Posseidon”, “A Grande Mãe”, “Koré”, “Perséfone”, “Hades”, “Hécate”463. E a transição para o surgimento de novos deuses, significativamente emerge no longo poema “A Sibila” (ibid., pp. 27-29), no qual a poeta assume o papel da profetiza, que lamenta a ausência dos deuses antigos e pressente os vindouros.

a redescoberta do cristianismo, através da místicaA trajetória da poetisa, do neo-paganismo ao cristianismo, recuperado atra-

vés da mística cristã é feita através do encontro com a temática do Anjo na obra de Rilke, dos poemas de San Juan de la Cruz464, de Angelus Silesius, da obra de Tauler.

Em estreita colaboração com o Pe. Hubert Lepargneur, traduziu Angelus, Silesius em 1986, enfatizando dísticos do Peregrino Querubínico referentes aos 462 Id., Cartografias do Imaginário, S. P., T. A. Queiróz, 2003.463 Id., Hidrias, S. P., Odysseus, 2005, pp. 30, 31, 32, 36, 38-39, 40-41, 42, 48, 49, 50-53, 54, 55, 56, respectivamente.464 FERREIRA DA SILVA, D., A poesia mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984. Edição bilíngue, precedida de estudo do Pe. Hubert Lepargneur: “San Juan de la Cruz, místico”; e de estudo de Dora: “Mística e poesia”.

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temas do “Deus imanente, da quietude, da entrega amorosa ao único (...), da Trindade (...), da voz do silêncio”465. Assinalemos mais um paralelismo entre Agostinho da Silva e Dora: Agostinho conhecia bem os místicos espanhóis e Angelus Silesius.

Desde 1995, a poeta participou da equipe de tradução das obras de Jung para o português, publicados pela editora Vozes. Assim, traduziu: Memórias, Sonhos, Reflexões, 1975; O eu e o inconsciente 1978; Psicologia e Alquimia (1991); O segre-do da flor de ouro e Aurora Consurgens (1997); Estudos Alquímicos e Os arquéti-pos do inconsciente coletivo (2002).

O encontro com a obra de Jung foi profundamente marcante para a poetisa, assim como o fora para seu marido, Vicente Ferreira da Silva, o qual, na apresen-tação do primeiro número da revista Diálogo assinala a obra de Jung como um dos marcos que indicam o surgimento de um novo modo de pensar a relação do homem com o sagrado. A tradução e a convivência com a obra de Jung represen-tou um mergulho profundo da poetisa na própria alma. Esse mergulho e a des-coberta, paralelamente, da mística cristã, levou Dora a escrever um importante ensaio, em colaboração com o Pe. Hubert Lepargneur: Tauler e Jung:O caminho para o centro, em 1997466. Ressaltamos que a publicação do ensaio corresponde ao mesmo ano de publicação da tradução de textos de Jung:O segredo da flor de ouro e Aurora Consurgens e estabelece uma analogia entre o Deus buscado por Tauler e o si-mesmo jungiano. Prefaciado pelo Pe. Ivo Storniolo, que destaca a relação entre psicologia e mística, e a busca da imago Dei, na tradição cristã, o livro é dividido em duas partes. Na primeira, o Pe. Lepargneur aborda o tema “Do Eu a Deus pelo Nada”, relacionando Tauler e Jung; e Dora, na segunda parte, trata “Do inconsciente ao sagrado”. Aborda o abandono místico, a trajetória do eu ao si-mesmo, o confronto com a sombra, a união dos opostos. Na bibliografia utilizada, vemos a referência a Mestre Eckhart, a Eliade. É pois através da mística de inspiração neoplatônica que Dora recupera a tradição cristã. O Deus assim alcançado é absolutamente transcendente, está para além de todos os nomes, de todos os credos; é encontrado no ápice da alma, como unidade primordial do sagrado e do mundo.

É citando Tauler, no fim do texto, que a poeta reconhece um paralelismo “da psicologia profunda, da mística e da poesia”, como temas de reflexão, mas, prin-cipalmente como “vivências de espíritos que se aprofundam em regiões abissais (...) nas culminâncias ou profundezas da experiência humana do amor e do di-vino e também do conhecimento, essas confluências ocorrem e nossa atitude afinal só poderá ser de gratidão, reverência”467.465 FERREIRA DA SILVA, D. e LEPARGNEUR, H., Angelus Silesius, S. P., T. A. Queiroz, 1986, p. 67.466 FERREIRA DA SILVA, D. e LEPARGNEUR, H., Tauler e Jung. O caminho para o centro, S. P., Paulus, 1997.467 FERREIRA DA SILVA, D., “Do inconsciente ao sagrado”, in FERREIRA DA SILVA, D. e H.

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O percurso de Dora, em direção ao sagrado, foi o encontro com a morte e com a proximidade dos deuses; foi o confronto com a sombra e o demoníaco, bem como a superação dos obstáculos no caminho. Foi a celebração da vida, da paixão e do entusiasmo, da alegria de reconhecer, no mais elementar da nature-za circundante, a secreta e silenciosa harmonia que perpassa tudo o que vive, a totalidade do existente.

É no horizonte de todas essas confluências, da tradição grega, da mística cris-tã, das ordens monásticas, da psicologia profunda; é no ápice de uma reflexão de fundo neo-platônico e da ontologia hermenêutica de Heidegger, que Dora redescobre o sagrado.

Sua trajetória, no âmbito da poesia, do ensaio, da tradução, tem analogias profundas com a trajetória intelectual de seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva. Essa busca análoga está indicada na obra de Vicente pelos recursos a fontes semelhantes: Heidegger, Kérenyi, Novalis, Hölderlin, Schelling, dentre outros autores; na formulação de uma filosofia da mitologia, de suas contribui-ções mais importantes.

Dora falava de “famílias espirituais” para indicar a similaridade da busca pelo sentido da vida, do mundo e do homem, da Transcendência, entre autores di-versos.

o diálogo Dora – tradição portuguesa e brasileiraÉ de uma família espiritual que podemos falar, abordando a relação entre

Vicente e Dora: uma profunda convergência de vida e obra os integra. E nessa família, podemos inscrever os seus diferentes amigos, com os quais mantiveram fecundo diálogo. Dentre esses amigos, avulta a figura de Agostinho da Silva, cuja trajetória é análoga, sob certos aspectos, à de Dora: também ele, pela formação intelectual, tem na riqueza do mito grego seu ponto de partida; também ele re-encontra o cristianismo, pela via de um franciscanismo inspirado em Joaquim de Flora. Mas assim como em Dora, não existe nele uma pura e simples reto-mada da religiosidade cristã. O cristianismo é, em Agostinho, um dos muitos caminhos que conduzem a um Deus que está para além de toda a linguagem, de todo nome, de toda forma. É à linguagem cristã, mais próxima de seu horizonte cultural, que Agostinho recorre, mas para ir além do cristianismo e de todas as formulações institucionais da busca do sagrado.

Em Vicente, Dora, Agostinho, há espera, expectativa, de uma nova forma de apreensão do sagrado, do surgimento de uma nova época do mundo; pode-mos ver isso nos diálogos de Vicente – Diálogo do mar, Diálogo da Montanha, Diálogo do Espanto – nos quais os personagens George, Diana468 reconhecem LEPARGNEUR, op. cit., p. 155.468 FERREIRA DA SILVA, V., O. C., vol. 2, “Diálogo do mar”, pp. 493-507; “Diálogo da Montanha”,

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que são “seres do limiar (...) [que pressentem] a sombra das coisas por vir”469, a emergência de um novo sentido do sagrado. Os personagens dos diálogos são, no dizer de Braz Teixeira, que recorre às posições filosóficas que assumiam em seus escritos,para identificar com o próprio Vicente, o personagem Mário;com Dora, a personagem Diana;com Agostinho, o personagem George;com Eudoro, o personagem Paulo470

Sobre a importância do diálogo de Dora, Vicente e os pensadores portugue-ses, Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, destacamos os comentários de Anto-nio Braz Teixeira a respeito do convívio intelectual que mantiveram; acrescenta-mos também o nome de Delfim Santos, que embora não tenha vivido no Brasil, manteve, com Dora e Vicente, Miguel Reale e outros pensadores da Escola, sig-nificativa troca de cartas, como recente publicação de seu filho, Filipe Delfim Santos, permite conhecer471. Diz Braz Teixeira472:

“(...) no verbete sobre ‘Filosofia Luso-brasileira ‘ que Antonio Paim e eu (...) redigimos para o volume III da enciclopédia filosófica Logos, foi fei-ta especial referência ao grupo filosófico que, na década de 50, reuniu, em São Paulo, durante alguns anos, Vicente Ferreira da Silva e os portugueses Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa.”

Uma última observação: dessa família espiritual fez parte Guimarães Rosa, que não por acaso recorre a autores neo-platônicos nas epígrafes de Manuelzão e Miguilim e de Corpo de Baile. Sobre Rosa, Dora escreveu um importante en-saio, “O demoníaco em Grande Sertão: Veredas”, publicado em 1957 na revista Diálogo número 8, dedicado ao mestre da literatura, que também participou da revista em três ocasiões.473

Dora, Vicente, Guimarães Rosa, Agostinho: membros de uma família espi-ritual que entrelaça seus itinerários individuais sobre um fundo neoplatônico, fazendo convergir diferentes registros dessa grande tradição.pp. 509-522; “Diálogo do Espanto”, pp. 523-533.469 Id., ibid., p. 507. Lembramos que Agostinho se chamava George Agostinho. E que Dora se identificava com Ártemis (Diana), a que busca o secreto inviolável da floresta para aí habitar. O inviolável mistério do ser , na metáfora da floresta intocada, lembra a casa do Itatiaia, propriedade do casal, a casa da floresta na qual Dora frequentemente se refugiou para contemplar e criar.470 BRAZ TEIXEIRA, A., «Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?», in MARCONDES CÉSAR, op. cit., p. 245-246.471 CARVALHO, J. M. de e SANTOS, F. D., Delfim Santos e o Brasil. Lisboa: Arquivo Delfim Santos, 2011.472 BRAZ TEIXEIRA, A., «Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?», in MARCONDES CÉSAR, op. cit., pp. 245-246. Ver ainda do mesmo autor O essencial sobre a filosofia portuguesa (sécs. XIX e XX). Lisboa: INCM, 2008. Ver também: LÓIA, L., O essencial sobre Eudoro de Sousa. Lisboa: INCM, 2007; PINHO, R. V., O essencial sobre Agostinho da Silva. Lisboa: INCM, 2006; SIRGADO GA-NHO, M. de L., O essencial sobre Delfim Santos. Lisboa: INCM, 2002.473 Sobre Guimarães Rosa, ver COSTA, A. L. M. e GALVÃO, W. N. (cons.), Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 20-21 (2006), edição especial João Guimarães Rosa. Dora participa, fazendo um depomento.

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Sobre o significado do convívio intelectual e a relevância da obra de Dora e dos membros do grupo, a autobiografia do filósofo tcheco, Vilém Flusser, que viveu durante trinta anos no Brasil, pode atestar474.

Outra poetisa brasileira, nascida também no interior de São Paulo, Hilda Hilst, frequentou brevemente o círculo e a casa. Sua obra se caracteriza pela busca da transcendência475 e teve marcante influência de Rilke, dentre outros autores. Seu livro, Sete Cantos do Poeta, para o Anjo476foi prefaciado por Dora.Não nos deteremos aqui a estudar os pontos possíveis de aproximação entre as duas poetisas paulistas; mas assinalamos o tema como questão em aberto, para futuras investigações, que julgamos relevantes, dada a repercussão nacional e internacional das obras de ambas.

Dora (1918-2006) e Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) foram con-temporâneas, mas ao que parece não se conheceram. Não há qualquer menção de uma à outra em seus escritos. Entretanto, suas trajetórias poéticas e temáticas apresentam analogias surpreendentes. A possibilidade da analogia foi assinalada em conversa informal com Antonio Braz Teixeira, por ocasião da minha des-coberta e encantamento imediato pela poesia de Sofia de Mello. E examinada, ulteriormente, por um poeta, Alexandre Bonafim. Alexandre é um dos jovens poetas – dentre os quais Rodrigo Petronio, Claudio Willer, Donizete Galvão – que participaram do Centro de Estudos Cavalo Azul criado por Dora em sua casa a partir de 2003; com ela, promoviam grupos de estudos de mitologia, de poesia, de psicologia centrados na leitura da obra de Jung477.

Dora e Sofia478 têm em comum a busca do sagrado e a tematização dos mitos gregos, a releitura da tradição cristã, exposta na obra de Dora como aproximação à mística e na de Sofia como a experiência da compaixão pelo sofrimento, como aparece no longo poema O Cristo Cigano479. Estudiosa de Filologia Clássica, na Faculdade de Letras de Lisboa, Sofia traduziu Eurípides, Dante, Shakespeare; 474 FLUSSER, V., Bodenlos. São Paulo: Annablume, 2007. Sobre Dora, pp. 151 -162.475 MARCONDES CÉSAR, C., “Poesia e transcendência em Hilda Hilst”, infra.476 HILST, H., Sete cantos do Poeta, para o Anjo. São Paulo: Massao Ohno Editora, 1962.477 Veja-se, a propósito da trajetória de Dora, a entrevista que concedeu a Donizete Galvão, publi-cada em São Paulo na revista CULT, em Maio de 1999, pp. 4-11, pondo em relevo sua tematização dos mitos gregos e da tradição cristã.478 ANDRESEN, S. De M. B., Obra Poética. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, 14 vols; id. Poemas Escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Sobre ela ver também o número especial da revista Colóquio Letras. Lisboa: Fundação Gulbenkian, n.176 (2011), Janeiro/Abril. E o catálogo da exposição “Sofia de Mello Breyner Andresen: uma vida de poeta”, realizada na Biblioteca Nacional de Portugal de 26 de Janeiro de 2011 a 30 de Abril de 2011. O catálogo foi organizado por AMA-DO, T. e MOURÃO, P. e editado pela Editorial Caminho, 2010.479 Na nota que aparece na edição do Editorial Caminho, publicada em 2005 (4ª. edição) é repro-duzida parcialmente a entrevista concedida pela poetisa ao Jornal de Letras e Artes, a 24 de Janeiro de 1962, na qual afirma que o tema surgiu a partir de uma lenda contada a ela pelo poeta João Cabral de Melo. O “tema é o encontro com Cristo” (op. cit., p. 34).

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pertenceu à geração dos poetas que sofrerarm o impacto das obras de Hölderlin e Rilke, Pascoaes, Pessoa, Cesário Verde, Camões, Antero; conheceu a poesia brasileira de Cecília Meireles, Murilo Mendes, João Cabral; leu Homero, Whit-man, Lorca, Éluard, Ezra Pound, Proust.

Sofia publica seu livro de estreia em 1940. Dora só tardiamente, em 1970 pu-blica seu primeiro livro de poemas, que enfeixam os escritos entre 1948 e 1970. Mas na revista Diálogo, dirigida por seu marido, traduções e ensaios de Dora são divulgados. Ulteriormente, a partir de 1965, dois anos após a morte de Vicente, à qual se seguiu a suspensão de publicação da revista, Dora funda, com apoio de Vilém Flusser e Anatol Rosenfeld, uma nova revista, a Cavalo Azul, que terá doze números editados e cujo nome será depois também atribuído ao centro de estudos que criou em sua casa.

Sofia e Dora não se conheceram. Mas trabalharam temas comuns: encaram o mundo contemporâneo como um mundo que se caracteriza pela ausência de Deus e da beleza. Para ambas a Grécia representa o espaço sagrado por exce-lência e a viagem que separadamente e em momentos diversos para lá fizeram expressa o encontro com o mito vivo, a peregrinação aos antigos santuários, no-meados nos poemas.

Em Dora, atestam o que dissemos os poemas Castália I e II (fonte do templo de Apolo); Cap Sounion (templo de Poseidon), em Uma via de ver as coisas; Del-fos (templo de Apolo), em Poemas da Estrangeira; no poema Epidauro (templo de Asclépio) publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras.

Em Sofia, o percurso no espaço mítico e sagrado aparece nos poemas: O Mi-notauro, Os Gregos, No templo de Athena Aphaia do livro Dual; e No Golfo de Corinto e em Epidauro, poemas do livro Geografia.

As duas poetisas invocam os deuses arcaicos ou se identificam com perso-nagens míticos. Assinalaremos apenas alguns poemas, em que coincidem até mesmo na temática ou na escolha do espaço sagrado e dos deuses e personagens invocados. Sinalizaremos apenas alguns poemas em que a escolha recai sobre os mesmos deuses e personagens míticos.

Em Dora, essa temática emerge em diversas obras e exponencialmente no livro Hydrias: são poemas sobre a Koré, Dioniso e Apolo.

Em Sofia, os poemas Ariadne em Naxos, Délphica (I a IV), do livro Dual, en-trelaçam Dioniso e Apolo; Koré, do livro Ilhas, expressa também essa vertente.

O paralelismo temático dos poemas de Dora e Sofia não se esgota nessa reati-vação dos mitos arcaicos, visando traduzir a proximidade com o sagrado. Outros aspectos, como a celebração do sensível, do jardim como lugar de apreensão da beleza, bem assinalados por Alexandre Bonafim em sua tese de doutorado, apro-ximam as duas poetisas.

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ConclusãoAbordamos brevemente a tematização do sagrado em Dora Ferreira da Silva.

A aproximação que fizemos pretendeu oferecer um painel de sua obra, enfa-tizando nela a presença constante da inquietação a respeito do sagrado, nota dominante das indagações que caracterizaram a Escola de São Paulo, como bem assinalou Antonio Braz Teixeira, conforme já apontamos. Através da pequena introdução à obra de Dora, procuramos esboçar campos de investigação possí-veis que levem a estudar analogias e diferenças entre representantes da Escola a que ela pertenceu. Deixamos em aberto várias questões. Acreditamos que o sig-nificado e a importância da obra de Dora, assim como dos escritos e da atuação cultural de seu círculo de amigos e colaboradores – pintores, poetas, escritores, filósofos – apenas começaram a ser abordados.

Um estudo sistemático, levado a efeito por vários pesquisadores que coorde-nassem seus trabalhos, propiciaria, a nosso ver, um fértil terreno de investigação para os que procuram compreender a cultura contemporânea e os problemas de uma sociedade plural, onde convivem, de um lado, uma acentuada secularização e de outro, diferentes tentativas de compreensão da religião e do sagrado, geran-do múltiplos conflitos.

A inspiração e o entusiasmo, que caracterizaram a presença e a poesia de Dora, como testemunham seus amigos – pode ser uma via de acesso a uma reno-vada compreensão da vida humana e da construção do reino do espírito.

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talhamar480

Talhamar é o nome de um pássaro que risca a su perfície do mar em busca de alimentos. Na poética de Dora Ferreira da Silva, talhamar é o poeta, enquanto mergulha no mais fundo de si mesmo, indagando a “melodia das origens ou uma imagem do originário” (Kerényi, citado como epígrafe da primeira parte do livro). Talhamar é, pois, o homem enquanto se interroga metafisicamente, tentando ver além do mundo físi co ou, melhor, querendo perceber o mundo concreto como um véu do mundo de significados.

A citação de Kerényi na epígrafe da primeira parte do livro, intitulada Ân-foras, é esclarecedora, pois evidencia a perspectiva adotada por Dora: o poema deve mostrar a presen ça do sagrado, falar dos deuses através dos mitos vividos como narrativas da verdade do ser.

O poeta simboliza o homem metafísico, que é pos suído pelo mistério do ser e atua como porta-voz de presenças, de realidades supra-humanas, a um tempo benéficas e temíveis; o “misterium tremendum” de que falava R. Otto.

O poeta, como o homem, é a máscara através da qual falam os deuses. A con-cepção do homem é, pois, em Dora, essencialmente trágica.

O fio condutor é a tematização do mar, que aparece desde os dois primeiros grupos de poemas, intitulados Ânforas e Nakt, perpassa Tendas e é retomado em Sete Poemas de Ubatuba e Albamar, que fecham o livro.

Que é esse mar de que Dora nos fala? E como vem tematizado nesses ver-sos?

A poesia é uma linguagem simbólica na qual a refe rência ao concreto vela e desvela uma outra dimensão; busca dizer o indizível. O mar, para Dora, tem as-sim múltiplos senti dos: expressa a vida maior, a presença, no concreto, do sagra-do; a unidade entre os homens e os deuses. A poesia é vista como o resultado da possessão da consciência pela divindade:

480 SILVA, Dora Ferreira da (1982), Talhamar, Massao Ohno, Roswitha Kempf, São Paulo, S. P. Tradutora de Rilke (Elegias de Duino, Primeira Edição, 1986; Segunda Edição, 1972), Dora Fer-reira da Silva recebeu em 1970 o Prêmio pelo livro Andanças, que reúne poemas escritos (Prêmio Jabuti) entre 1948 e 1970, publicando, sucessivamente, em 1973 Uma Via de as Coisas (Livraria Duas Cidades); em 1976, Menina seu mundo (Massao Ohno); e, em 1979, Jardins (esconderijos). Participou da equipe de tradução para o português da obra de Jung. Foi membro do Conselho de redação da Revista Diálogo e dirigiu a Revista Cavalo Azul. Em 1983, rece beu menção honrosa do prêmio “José Ermírio de Morais” de poesia, que lhe foi conferido pelo Pen Club de São Paulo.

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“Mar de corais antigosem ti adormeçoenquanto bardos murmuram em meu ouvido uma história de sangue e papoulas:deuses desferem arcos de pratano ar de violetas...”

(Ânforas, Fragmento 1).

O mesmo tema reaparece em outros poemas:

“Em teu olhar iniciou-se meu vivere à flor de teus dedos me descobri mortal”

(Ânforas).Ou:

“Nasce teu nome de uma flauta,pois deram-te os deuses tranças macias e túnica de linho; deram-te os deuses...”

(Ânforas).

O mar significa, ainda, a unidade entre a vida e a morte, a ambigüidade do ser. Esse enfoque traduz-se em diver sos poemas de Ânforas e Nakt, tais como os que têm por assun to os deuses que representam essa unidade: Dionisos (“O Deus que vem”, “A Novilha”); “Mnemosyne”, a memória primordial; “Ártemis”, deusa que personifica o sagrado não-manifesto, o fundo intocado do ser; “Afro-dite”, a ambigüidade do amor e da morte:

“o murmúrio do mar as praias inundava e a embriaguez vizinha da morteameaçava os amantes...”

(Ânforas).

Em Nakt, os versos tratam da barca diurna do sol, das lendas ordinárias de Osíris, deus da vida e da morte; da barca dos mortos, sob sua proteção:

“Entre papirosdesliza a Barca pelo rioOsíris a conduzpela obscura região.Os dedos de Naktentrelaçados aos divinos dedos não sentem frio.”

(Nakt).

O mar representa também a unidade entre o passa do, o presente e o futuro.Isso é perceptível:

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Quando nossa poetisa celebra os deuses originá rios, como “Mnemosy-a) ne”;Nos poemas de Ubatuba e do Itatiaia, que abor dam o presente:b)

“O mar em suas vagaso mesmo sal de sempre.”

(Ubatuba, I).

ou, através do presente, a totalidade do tempo:

“Por ser o mar, porém,pede-te a vida- não o pairar de agora -mas toda a tua vida”.

(Ubatuba, V). No poema “O Deus que vem”- pois Dionisos, o deus antigo, representa c) o futuro, a renovação da vida, para os gregos:

“O Novo Tempo vem (...)…………………………..(...) beberemos o vinho saboroso, o trigo terá sabor de trigo (...)”

No poema “Casa na Floresta”, onde Dora escreve: d)

“Nas cinzas de ontem, a alba acende o lume”. (Albamar).

O mar, como se vê, é, a um tempo, a referência à memória primordial (“Mne-mosyne”); à presença do presente -o mar de agora, o mar de Ubatuba visitado pela autora; ao futu ro, anunciado pelo antigo deus marítimo e pelo alvorecer que reaviva a cinza de ontem, na casa da floresta, em Itatiaia. A aproximação entre o mar e a montanha será retomada adiante.

Ânforas e Nakt, os dois primeiros grupos de poe mas de Talhamar, de certo modo sintetizam a temática do livro. Neles aparece o mar, como dissemos, sim-bolizando a unidade entre os deuses e os homens, a vida e a morte, o passado, o presente, e o futuro.

Tendas é o terceiro momento do livro. A tenda é o corpo, é o homo viator que habita a vida e advinha a morte. O grupo de poemas enfatiza a unidade entre a vida e a morte, mediante a invocação ou percepção da presença dos mortos:

“Não que vos chame. Ardem nomes no lume da alta noite.Chegam sem ruído. Sinto que o ar se ocupa de presenças.”

(Tendas, III).ou com eles dialogando:

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“Minha tenda disputais e sua penumbra?………………………………………….Mas nem anjos sois, só os que se foram e voltam numa flama.”

(Tendas, V).

A morte, aqui, não é vista como destruição; o poeta é aquele que habita o duplo domínio da vida e da morte, a vida maior que implica a ruptura da estreita fronteira entre uma e outra. Diz a autora:

“Vozes calaram.Ah, mortos amores de silenciosa vida.……………………………………….Morta vos pareço em vossa vida ígnea?”

(Tendas, I).

A “vida ígnea” é a dos mortos. Vida mais plena que a dos vivos? E ainda:

“A partilha para os temerários na fronteira.”(Tendas, II).

Os “temerários” são os poetas, que ousam aventu rar-se na “fronteira”, fazer da

“Vida e morte, um mesmo canto.” (Tendas, VII).

Escritos no Itatiaia, esses versos mostram que, para Dora, o mar e a mon-tanha não são opostos absolutos, mas, sim, duas cifras com as quais a poetisa medita sobre o entrelaçamen to entre a vida e a morte (Tendas, V).

Como o mar e a montanha, a morte simboliza a transcendência.A quarta parte do livro, Sete Poemas em Ubatuba, traz como epígrafe versos

de Celso Luiz Paulini, indicando que a poetisa se encontra diante de um limite. Na banalidade do concreto, a poetisa instaura a transcendência:

“Aqui me tense o canto:pássaro da noite.”

(Ubatuba, I).

E ainda:

“Árvores somose os nosso frutos não são os pomos das Herpérides mas os de um pomar qualquerpersistindo entre espinheiros.E do ar, aprendizado:não fugir ao mundo

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mas a ele não ceder outra almaque não a nossa.”

(Ubatuba, II).Cidade marítima, Ubatuba é, para Dora, sinal da tarefa do poeta: o vôo sobre

o mar, confronto com a transcendência:

“Sem que me pedissesdeu-te o mar de rependeo cortejo de escuras aves de peito lampejante.”

(Ubatuba, V).

Albamar é o grupo de poemas que serve de fecho do livro. Neles, os temas de Ânforas: unidade entre a vida e a morte, unidade entre o divino e o humano, unidade entre passa do, presente e futuro são recuperados. O poeta é o mediador entre os deuses e os homens que fala o “antiqüíssimo Som”, a palavra originária, a palavra do ser:

“Mar eis o oficiantecego e sapiente: o poetae suas relíquias. No peitoralde cascalhos, pedras e coraisas novas sílabas – o antiqüíssimo Som.”

(Albamar, IV).a palavra que nega a morte.Em Albamar, o poema central é o dedicado a Rainer Maria Rilke e aborda a

identificação da autora com esse poeta:

“Minha tua pele pálidae as pálpebras de entumescidas pétalas.……………………………………..Abismo, abismo de tua pupila azul!Nelas tudo vejo do que viste em Firenze, Rússia e Toledo.”

Que é ser Rilke, para Dora? É meditar sobre a mor te, sobre a unidade entre os deuses e os homens, pois Rilke é o poeta da transcendência, entrevista na imanência, nas coisas mais singelas. Disso, os poemas “O Banco sob a árvore”, onde a poetisa

“Em silêncio, ouviu a terra”,

ou o “Mulher e Pássaro”, em que

“Voltamos ao jardimao banco lavado pela chuva.……………………………..

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Respiramos o puro abandono:um pássaro alveja o azul (sem par) ultrapassa o muro do possível e assim damos um ao outro a súbita presençado Céu”

são exemplos, assim como “Morte e Medo” e “Alba de Fina dos” – este, último poema do livro, em que a autora indaga:

“Que querem os mortos com nossas flores?”

Albamar fecha o livro; e nele “Alba de Finados” indica, ao mesmo tempo, em seu título, as idéias complementa res de morte e ressurreição: é o dia dos mortos, mas também um alvorecer, no grande mar da vida inconsciente a que a morte nos conduz, o “tenebroso Mar”, onde

“Borbulha o abissal; deuses se forjam e o tempo,………………………………….Nome não tem e a tudo nomeianas entrançadas raízes das coisas por narcer.”

(Ânforas, “A Novilha”).

Albamar encontra, dessa forma, a temática de Ânforas.

Para Dora, o poeta é, como dissemos, a máscara através da qual falam os deuses, os mortos; é o porta-voz da consciência que abarca, numa totalidade, o sujeito individual, os deuses e os mortos.

Talhamar recorda a tarefa do poeta: dizer, no imanente, a transcendência; reativa os mitos, mostrando que os deuses vivem em nós; faz-nos experimentar miticamente nosso tempo e sua unicidade com o passado arcaico de que somos tributários: Egito, Grécia; evoca, pela invocação dos deuses antigos, o conteúdo não esgotado dos mitos, o seu conteúdo vivo e não traduzido inteiramente no âmbito da razão lógica.

Talhamar fala do sagrado que se pressente, do Deus vindouro (Ânforas, “O Deus que vem”). Como os antigos gre gos, estamos no limiar de uma nova con-cepção de deus, espera mos uma plenitude, em nosso tempo de carência (Alba-mar, “A Rainer Maria Rilke”). Como o pássaro, o poeta risca nosso mar interior, traçando caminhos para buscar o sagrado, presentifica- lo. Tematiza a unidade do Ser, na pluralidade da experiência:

“Trigo do mesmo pãouvas pisadas no lagarnada disperso em mim:tudo corre como se fora um rio dentro do mar.”

(Albamar, III).

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a dança, a música e a poesia em Dora ferreira da silva

A dança, a música e a poesia foram ocupações constantes da artista Dora Ferreira da Silva. Essa temática aparece nos últimos poemas que escreveu, pouco antes da sua morte.

A dança, que em Dora esteve associada ao prazer do movimento e à euritmia, ao equilíbrio alcançado pelas danças sagradas, foi objeto de poemas curtos, in-titulados O leque, que oferecem a leveza da música, do movimento gracioso, do teatro iluminado que expressa “enigma e clareza (...) inefável melodia da grande poesia”481, diz De Franceschi, seu amigo, na apresentação da edição póstuma. Nesses versos, aparece claramente uma característica de poesia de Dora: partir de um detalhe, uma referência indireta, para sugerir o clima de sedução, de um “calado dizer” – o movimento do leque, que acompanha a música, “desvela o perfil da beleza” (Leque II). A magia do teatro e da dança são desveladas aos pou-cos, na sucessão de poemas, sempre centrados no leque e no que este representa: o acesso à música, à beleza, à sedução do movimento, que daria, a quem pudesse apreender o momento, uma “trêmula pérola /junto a um coração. / A aragem [brisa desencadeada pelo leque] me levaria [diz a poeta] a Mozart engastado a Mozart / nessa emoção.” (Leque VIII).

No aparentemente banal, dá-se a apreensão da poesia do instante, do deslizar leve e harmonioso que conjuga movimento, música e poesia.

Escritos ao mesmo tempo, num grande caderno, os poemas inspirados pela música de Beethoven, Appassionata – que Dora ouvia todo o tempo, do acordar até o adormecer – emergiram num jorro criativo. No verso do caderno, outra série, que ela chama de Transpoemas, são poemas sobre a poesia e a faina do po-eta. Os dois textos foram publicados em dois pequenos volumes separadamente, pelo Instituto Moreira Salles482.

Appassionata, nome da música de Beethooven que inspira os versos, tornou-se na publicação póstuma, nome do livro que os abarcava. No prefácio, escrito por Inês, filha da poeta, o depoimento483 afirma que em conversas telefônicas 481 DE FRANCHESCHI, A. F., “Apresentação”. In FERREIRA DA SILVA, D., O leque. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007. 482 FERREIRA DA SILVA, D., Appassionata. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007; id., Transpo-emas. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009. 483 BIANCHI, I. F. da S., “A poesia da dança, a poesia da música, a poesia da poesia, in FERREIRA DA SILVA, D., Appassionata, s/ indicação do número da página.

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com a mãe, esta falava sobre o ofício e a vocação do poeta, sobre a solidão cria-dora do artista. Appassionata era, para Dora, afirma Inês, “seu trabalho mais importante”, “nascido de um mergulho incondicional na Sonata n. 23 de Be-ethoven, e o que ela queria era que as palavras se tornassem música”. Não só as palavras: Dora tornou-se, ela própria, música, ao integrar vida e morte num “mesmo canto”, conforme já sinalizara, em poema anterior, do livro Talhamar, que prefigurou a expressão máxima.

Ivan Junqueira, no prefácio ao livro, caracteriza a poesia de Dora como a que “sempre se moveu sob o signo da paixão (...) a daqueles que se entregaram à ver-tigem do infinito e permaneceram fiéis à perenidade da beleza”, expressando o que ele chama de “lirismo meditativo”, que busca a proximidade com o sagrado. Poesia e música, na sequência do Appassionata, formam uma unidade, de modo que ao ouvir e ler os versos, somos arrebatados pela música da linguagem.

A própria Dora gostava de pedir aos amigos que a visitavam e que tinham o privilégio de ler em primeira mão os poemas que compunha, que os falassem em voz alta. Para ela, poder ouvir, dito por outros, a sonoridade do que escrevera, era significativo. Associando a poesia à música e à dança – artes que também conhecia – Dora descobre o milagre, o inesperado, no mais banal e quotidiano. O deslumbramento súbito de um ver que abarca o invisível, resulta na serena ter-nura que suaviza e transfigura a extrema solidão daquela que contempla a noite, a madrugada e experimenta a proximidade com o próprio coração: “O tempo findando / e agora tão próximos / corpo e alma / num limiar agônico (Appassio-nata I). A vida inteira se resume no fluir que nada retém, mas diz “sim ao céu, à terra, às criaturas distraídas” (Appassionata II).

A poeta deixa-se se levar pela música, que faz com que o sangue se elevasse “em cascatas de luz” (Appassionata III), dançando além do fluir, da paisagem, das flores: rosas, jasmins – flores do seu jardim – dizem “uma oração de primavera” (Appassionata IV), embriagando o coração, a palavra, o silêncio e a vida.

A música, cíclica, “esplendor de sol e de chuva”, não termina: recomeça sem-pre, desencadeando a visão extasiada da poeta (Appassionata V). É preciso di-zer que ela ouvia contínua, repetidamente, ao longo do dia, a sonata indutora do estado de consciência que desencadeava a inspiração. Acordava e adormecia ouvindo o som, “vinho [que] embriga / e tudo transformava em algo aéreo” (...) “Mas até mesmo o ouvido adormecide /preserva-te a beleza” (Appassionata VI). Experiência de liberdade, de encantamento, de mergulho na vida poética e cria-dora, é “sublime altura” (Appassionata VII).

Dialogando com um hipotético Beethoven, aquele ao qual tem acesso pela música deslumbrante, entrega-se a “escalas fulgurantes” (Appassionata VIII), submergindo em um “universo de sons”, que diz “o âmago, a essência” das coisas e dos seres, que é um “amálgama / de soluços, sussurros, solilóquios / cósmi-

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cas ressonâncias” arrebatando-nos em direção a uma “visão suprema” da vida (Appassionata IX).

Appassionata representa, na obra de Dora, uma passagem: a que conduz, como a música a conduziu, ao ponto de encontro entre o tempo e a eternidade, à fusão de horizontes que produz o trânsito do perecível ao imortal. É esse en-contro e essa passagem que Dora descreve. É a extrema solidão contemplativa, meditativa, que conduz a um estado de embriaguez e de unidade com a natureza “salvífica, mãe da vida” (Appassionata IX), metáfora do infinito e da renovação permanente, do fluir para além de todo o finito, plenitude inocente (Appassio-nata X).

Appassionata é o legado maior de Dora. Levanta o véu que separa a vida da morte, celebra uma continuidade e renovação permanentes, representada pela cascata de sons, imensa, profunda, que repercute no pulsar do coração. Inscrita no coração do eterno, Dora se imortaliza pela beleza desses versos que falam de uma plenitude tecendo “todas as coisas num amor que ilimita” (Appassionata IX) e pelo qual foi arrebatada.

É a celebração espantosa, comovida, do próprio trânsito entre a vida e a mor-te. Testemunho que oferece, não o temor ou a tristeza, mas uma serena escuta, a liberdade do pássaro e o brilho de uma pletora de vida na qual passou a habitar. É o legado de uma grande poesia.

Dora ao mesmo tempo escreveu sobre essa experiência espantosa, crucial, escreveu, também, os Transpoemas. No mesmo jorro criativo, anotou à mão o Appassionata num caderno e no verso deste, os poemas sobre a poesia, reunidos sob o nome de Transpoemas.

Donizete Galvão, na apresentação do livro, mostra que Dora se interrogava sobre o escrever, apesar de estar em idade avançada. E reconhecia que escrever era, para ela, o modo de continuar viva. Diz o jovem poeta: “(...) Carlos Drum-mond de Andrade a chamava de Dora Poesia. Nada mais apropriado, porque Dora vivia imersa na poesia, que transbordava para sua fala, sua maneira de ver as coisas e sua casa”. Transpoemas é uma meditação sobre a poesia, sobre o papel do poeta. No livro, o poema é o pássaro que visita o poeta. E a poesia é “mistério e dádiva”, nunca “ofício ou artesanato”, diz Galvão.

A metáfora do pássaro – liberdade e inspiração, vôo em direção ao absoluto, aparece frequentemente na obra de Dora. Mas é em Transpoemas que se torna o tema central. O “poema não é quimera (...). É música, é coração (...) /milagre das coisas / nunca vistas / que o olhar distante súbito avista” (Poema III); é um ver, dádiva repentina, que põe a artista perante o mistério, o sagrado. É a eternidade aprendida no instante (Poema IV). A poeta celebra a invenção, o momento, o rit-mo. Esculpi-los é vida, porque “nasceram fugitivos / poemas”, “canção de sempre e agora” (Poema XII).

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Lembro-me dos primeiros versos que pude ler no caderno de Dora, falando em voz alta, a seu pedido. Ficou-me na memória o primeiro poema, os primei-ros versos (o livro ainda não estava pronto, eram as primícias que me oferecia, privilégio de encontro com a vida criadora transbordante que neles repercutia): “Poema pássaro predileto” (...).

Contraponto do espantoso Appassionata, o vôo do pássaro, sua aproximação, metaforizavam o exercício da disponibilidade ao que nos ultrapassa, a atenção ao chamado do absoluto, que possibilita fazer coincidir eternidade e tempo. É esse o caminho que Dora nos ensinou, com aguda sensibilidade e delicadeza: viver no tempo a fulguração do eterno. Só desse modo vale a pena o viver. Todas as outras inquietações são menores. Só desse modo podemos nos salvar, só desse modo a existência adquire significação. Só desse modo os deuses estão presentes e vida e morte se tornam “um mesmo canto”, como ela disse.

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Poesia e transcendência em Hilda Hilst

A poetisa brasileira Hilda Almeida Prado Hilst nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, aos 21 de Abril de 1930 e faleceu em Campinas aos 24 de Fevereiro de 2004. Após o nascimento de Hilda sua mãe separou-se do marido, mudando para Santos, no litoral de São Paulo. Esquizofrênico, o pai de Hilda foi repetidamente internado em um sanatório em Campinas, também no interior de São Paulo. Hilda só o reencontrou aos 16 anos, ao visitá-lo na fazenda de propriedade da família. Poeta, sua arte e sua doença tiveram grande impacto na vida e obra da filha.

Hilda estudou interna em um colégio de freiras em São Paulo; o colegial foi feito no Mackenzie, instituição de ensino presbiteriana de prestígio; em 1948 entrou no curso de Direito do Largo de São Francisco, faculdade vinculada atualmente à Universidade de São Paulo e uma das primeiras instituições de ensino superior do país. Pela faculdade, sempre estreitamente ligada ao Direito e à literatura, passaram grandes nomes da poesia brasileira, destacando-se os poetas do romantismo. Em 1949, representando seus colegas, fez uma saudação à escritora Lygia Fagundes Telles, que então lançava um de seus livros; torna-se amiga de Lygia, amizade que perdurará a vida toda.

Mulher bonita, de comportamento livre e pouco convencional para a época, viveu grandes amores, despertou paixões. A experiência amorosa se expressa através de uma refinada poesia lírica, que marca a primeira fase de sua obra. Lançou seu primeiro livro de poemas, Presságio, em 1950.

A poesia lírica é gradualmente substituída pela busca inquieta da transcen-dência, sob o impacto da descoberta da obra de Rilke. Na segunda fase de seus escritos a figura emblemática do Anjo evoca o sagrado e convoca ao mais alto, a expressão da tarefa e dom de poetar. Desta fase, Sete Cantos do poeta para o Anjo, de 1962, é a contribuição inicial mais significativa. O livro recebe o prêmio do Pen Club de São Paulo; é prefaciado por Dora Ferreira da Silva. Hilda freqüenta brevemente o círculo de amigos de Vicente e Dora, durante o período de publi-cação da revista Diálogo, que editavam.

Leitora infatigável, dona de uma sólida cultura humanista e literária, Hilda foi alguém que viveu intensamente o encontro e a descoberta dos grandes mestres, numa busca permanente de respostas à inquietação existencial. É marco desta vivência de intensas indagações, de meditação sobre o sagrado, a mudança radical que se espelha na decisão de ir morar numa fazenda de propriedade da família, próxima a Campinas. A leitura de Carta a Greco, de Nikos Kazantzakis a conduz

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a abandonar a vida social e mundana que levava em São Paulo e a se dedicar exclusivamente à literatura. Na fazenda, construiu sua casa, que chamou de Casa do Sol. Aí permaneceu até o final de sua vida, em 2004. Casou-se em 1966 com Dante Casarini; no mesmo ano, morreu seu pai.

Entre 1967 e 1969, escreve peças de teatro que conheceram várias encenações, no Brasil e no exterior; uma delas, O Verdugo, recebe o Prêmio Anchieta. Entre 1970 até 1992, escreve uma série de obras em prosa, dentre as quais se destaca Rútilo Nada, que recebeu em 1993 o Prêmio Jabuti, o mais importante prêmio literário do Brasil. Em 1977, recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo livro Ficções. Em 1981 recebeu novamente o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, agora pelo conjunto da obra. É convidada, a partir de 1982, a fazer parte do programa Artista residente, da Universidade Estadual de Campinas, que promovia o encontro e diálogo de artistas consagrados com jovens estudantes.

É também em Campinas que escreve e publica até o final da vida importante obra poética, da qual destacamos: Júbilo, Memória e Noviciado da paixão (1974); Poesia (1959-1979); Da morte. Odes mínimas (1980); Cantares de perda e predileção (1983 – Prêmio Jabuti e Prêmio Cassiano Ricardo); Sobre a Tua Grande Face (1986); Cantares do sem nome e de partidas (1995 – musicados pelo compositor José Anto-nio de Almeida Prado, seu primo, a composição musical obteve o primeiro prêmio no IX Concurso de Composição Francesco Civil em Girona, na Espanha).

Em 1995 Hilda sofreu uma isquemia cerebral. A partir de 1997, sua obra al-cança repercussão internacional: seus poemas são lidos num recital no Canadá; Da morte. Odes mínimas é publicado numa edição bilingüe português-francês;e. a partir de 2000, espetáculos, exposições, leituras dramáticas de seus textos acon-tecem em diferentes pontos do país. Em 2002 recebe o Prêmio Moinho Santista da Fundação Bunge e uma vez mais, o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte pelo conjunto da obra.

Apesar da repercussão de seus trabalhos e do reconhecimento, atestado pelos diversos prêmios que lhe foram atribuídos, Hilda queixava-se constantemente de ser ignorada pelo público e por editores. Visando a repercussão junto a um público mais amplo e também, com uma ponta de escárnio, provocar escândalo, escreve, a partir de 1990, textos em prosa e poemas pornográficos, traduzidos para o italiano e o francês. Grande escritora, ainda aqui o exercício da literatura e a perfeição da escrita são bem sucedidos. Diz, a propósito desta fase, a amiga Lygia Fagundes Telles, importante romancista brasileira contemporânea: “Inconformada com a pouca repercussão prática de sua extensa obra, Hilda – pour épater – enveredou pela aventura pornô-erótica (...) Pessoalmente, acho que mesmo dentro dessa proposta, ela fez literatura de alto nível”484.484 TELLES, L. F., “Depoimento”, in Cadernos de Literatura Brasileira: Hilda Hilst. São Paulo: Insti-tutto Moreira Salles, 1999, p. 17.

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Hilda prosseguiu, paralelamente, até sua morte, em 2004, a escrever esplên-didos poemas, distinguidos por vários prêmios literários. A poesia é, a nosso ver, o eixo e fundamento de sua obra. A artista é, antes de mais nada, poeta. Seus escritos estão centrados em torno dos temas do amor, da beleza e da morte, e na problemática de Deus, do sagrado.

Da lírica, o Trovas de muito amor para um amado senhor (1960) são um exem-plo, assim como o tardio Júbilo, memória e noviciado da paixão (1974). Nos dois livros, a busca do amor aparece como celebração do amado e do dom da poesia. No Trovas... a celebração se dá ao modo das cantigas de amor e de amigo: “ Amo e conheçe / Eis porque sou amante / E vos mereço.” E ainda “Deu-me o amor este dom: /O de dizer em poesia”485. No Júbilo..., o lirismo atinge níveis excepcionais, onde a contemplação da beleza das coisas reflete a memória do amor ausente: “Se for possível, manda-me dizer: / – É lua cheia. A casa está vazia –/ Manda-me dizer, e o paraíse / Há de ficar mais perto (...) / E se te lembras do brilho das marés / (...) manda-me dizer: – É lua nova –/ E revestida de luz te volto a ver”486.

No mesmo livro, a relação entre o amor e a morte aparece no pedido à morte que demore a chegar, para que a poetisa possa viver o amor: “ Morte, minha irmã/ Que se faça mais tarde a tua visita. / (...) Esquece o poeta. Porque o amor de Túlie / O vermelho da vida, pela primeira vez / Secreto, se avizinha” (ibid., s /n. de página).

Hilda estava com 44 anos; a vivência de um amor tardio refulge, como se houvesse, para a poetisa, a descoberta de um novo olhar que desencadeia a trans-cendência do imediato, o encontro inaugural com a poesia e a transfiguração do mundo

A meditação sobre o tema ocorre de forma exponencial no Da morte. Odes mínimas487, 50 poemas que mostram as diferentes faces da morte, apresentando-a como inevitável, enigmática, libertadora alteridade à qual a poetisa se dirige.

É o inevitável, o que acompanha a vida, onipresença expressando a finitude e precariedade do homem: “Pertencente te carrego: / Dorso mutante, morte” (ibid., III). E ainda: “Funda, no mais profundo do osso (...)/ Em tudo és e estás” (ibid., XIII); é o enigmático, o mistério que a poesia sonda e que a artista tenta desvendar: “ Se sussurrares /Teu nome secreto / (...) Te prometo, morte, / A vida de um poeta. A minha:/ Palavras vivas, fogo, fonte. / Se me tocares / Amantíssima, branda (...)/ Ao invés de Morte / Te chamo Poesia / Fogo, Fonte, Palavra viva / Sorte” (ibid., XIX); E ainda: “Por que me fiz poeta? / Porque tu, morte, minha irmã/ No instante, no centre / De tudo o que vejo” (ibid., XXXII). O laço estreito entre a meditação sobre a morte e a poesia, palavra que diz o indizível, aparece nos versos: “Teu nome é Nada (...) Morte, teu nome” (ibid., XX).485 HILST, H., “Trovas de muito amor para um amado senhor”, in Poesia 1959/1967. São Paulo: Livraria Sal, s/d, p. 47 e p.63.486 Id., Júbilo, memória , noviciado da paixão. São Paulo: Massao Ohno, 1974, s/n. de página.487 Id., Da morte. Odes Mínimas. São Paulo: Massao Ohno/Roswita Kempf (Eds.), 1980.

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A morte é libertação da brutalidade da existência, do conflito e da perda, da ignorância do essencial: “Porque conheço dos humanos / Cara, Crueza, / te ba-tizo Ventura / (...) Morte-Ventura /Quando é que vem? /Porque viver na Terra / É sangrar sem conhecer/Te batizo Prisma, Púrpura /Rosto de ninguém” (ibid., XXIII).

A funda ligação entre o tempo e a morte, a angústia pela precariedade exis-tencial e a busca da transcendência, entendida como procura do que é Nada para o quotidiano vinculado ao trato com as coisas e o mundo, expõe as leituras da mística tanto oriental como ocidental que perpassam a trajetória de Hilda. Uma imensa busca, “caça de um Nada”, para quem tem consciência do “ Tempo-Morte” (ibid., XLI, Tempo-Morte IV), imbricado consigo desde o início da vida.

Outro grande tema da vasta obra de nossa artista é a meditação sobre a bele-za, apreendida pelo olhar do poeta, “olhar inaugural” sobre o mundo e as coisas, como ela o compreendia, e também dom, dádiva, “o mais perigoso dos bens”, como afirmava Hölderlin488, seu “irmão de sangue (de poesia)”489. A beleza é via de superação da morte assim como busca de ir além do já alcançado, ascese constante em direção ao divino. Diz a artista: “Não é nosso o destine / De amar e perecer. / Antes vertiginosos / Tateamos na sombra / A lage dos abismos. / E uma vez lacerados / Queremos a montanha. / Seu arco-íris. Seu lago (...)”490. E ainda: “Um pouco do divino estava em nós” (ibid., p. 100); “ Dou testemunho apenas da certeza / De uma visão suprema, luz e prata” (ibid., p. 101).

Em 1962, sob o impacto da obra de Rilke, marcante na concepção de sua poesia, Hilda escreve Sete cantos do poeta para o Anjo, obra na qual reitera a idéia de que o poeta é inspirado, conduzido por algo que o ultrapassa e que dita procurar ver a transcendência: “E por que me escolheste? / Em direções meno-res me plasmei. / (...) E entendia / Que era preciso falar de uma ciência / Uma estranha alquimia: / O homem é só. Mas constelar na essência. / Seu sangue em ouro se transmuta. / Na pedra ressuscita. / No mercúrio se eleva. / E sua verdade é póstuma e secreta”491.

O encontro com o Anjo, metáfora da transcendência e da poesia, é também descoberta da perfeição do amar. Amor, poesia e superação estão fundidos nos belíssimos versos do Canto Quinto: “E de súbito me tomas e me ordenas / A so-lidão mais funda: / Estes cantos agora, alguns poemas / Um amor tão perfeito e indizível/ Porque não é tumulto nem tormento” (ibid., Canto Quinto). Uma solidão anunciada no poema que se concretizou com a retirada de Hilda da vida mundana e elegante de São Paulo, para a Casa do Sol, que construiu na fazenda da família. 488 HÖLDERLIN, F., apud HEIDEGGER, M., “Hölderlin und das Wesen der Dichtung in Erlauter-ungen zu Hölderlins Dichtung”. Frankfurt: Klostermann, 1951.489 HILST, H., Sete cantos do poeta para o Anjo, Canto Primeiro.490 Id., Ode Fragmentária (1961), in Poesia 1959-1967, p. 99.491 Id., Sete cantos do poeta para o Anjo, Canto Quarto.

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Uma retirada para o campo, a partir de 1963 e um jorrar de esplêndidos poemas e obras, até sua morte. Encontra, no silêncio da casa nos arredores de Campinas, o florescimento da poesia e a ainda mais radical busca de Deus.

Ainda em 1962, são do Sete Cantos... os versos: “Anjo, asa, / Mão poderosa sobre a minha mãe / (...) Prisma solarizade / Transcendência primeira / Dulcís-sima presença: / Alta noite / O que foi treva em mim / Em ti resplandecia” (ibid., Canto Sétimo). É preciso lembrar que Sete Cantos... tem como epígrafe os versos de Jorge de Lima que dizem, rememorando a antropogonia órfica: “Nunca fui senão uma coisa híbrida / Metade céu, metade terra”; e recordar que o livro de Hilda foi, como dissemos, prefaciado pela poetisa Dora Ferreira da Silva, cuja obra é também significativamente inspirada por Rilke, de quem foi tradutora, e pela mitologia grega.

Entre 1963-1967 Hilda escreve Trajetória poética do ser, dedicado à memória de Nikos Kazantzakis, no qual o tema de Deus reaparece com toda sua intensidade. Aí, o sagrado é apreendido não mais como “dulcíssima presença”, mas como “ um Todo inalterável, mude / (...) Porque não é missão da divindade / Testemunhar o pranto e o regozijo. Que esperais de um Deus? / Êle espera dos homens que O mantenham vivo”492.

Impossível não reconhecer aqui os temas da divindade ausente, da vida como viagem, da exigência de permanente auto-superação, da aceitação da vida sem queixas, como indica o Ascese, de Kazantzakis.

A poetisa diz: “Estou no centro escuro de todas as coisas. /Mas a visão é larga / Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar” (ibid., p. 163).

A contínua busca do sagrado aparece nos poemas que fecham o livro, intitula-dos Exercício para uma idéia: “Se permitires /Traço nesta lousa / O que em mim se faz / E não repousa: / Uma idéia de Deus”. Os poemas se expressam através da linguagem das matemáticas e da física, talvez em função da convivência da artista com amigos da Universidade Estadual de Campinas, centro de excelência nessas áreas, e com o físico Mário Schemberg. Mostram também o esmerado burilar da palavra para tentar dizer o indizível, a realidade para além de todas as categorias e formas conhecidas: o Deus da mística, através dos tempos.

Em 1986, Hilda publica Sobre Tua Grande Face493; a impossibilidade de expli-citar o significado do Transcendente, leva a artista a invocá-Lo por aproximações: é o Sem Nome, o Desejado, Cara Escura, Obscuro, Sutilíssimo Amado, Soturno, procurado no despojamento absoluto de si e da ilusão do existir. Dizem os versos: “De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a ilusão. / (...) Me vem a fantasia de que Existo e Sou. / Quando sou nada: égua fantasmagórica / Sorvendo a lua n’água”.

492 Id., Poesia 1959-1967, p. 124.493 Id., Sobre a Tua Grande Face. São Paulo: Massao Ohno, 1986.

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Sua vida é, para a poeta, um “neblinar contínuo” em busca do “Sutilíssimo amado, relincho do infinito”, uma procura dilacerante e ao mesmo tempo de plenitude, pois o encontro precário, se emudece o dizer comum, tinge “o espaço. De luzes. De sangue. De escarlate”. Ainda assim, Hilda afirma que prosseguirá sua trajetória, através do tempo, pois esta é a tarefa do poeta. Em resumo, podemos dizer que a caminhada espiritual e existencial de Hilda Hilst é um viver arrebatado pelo Absoluto, quer se apresente sob a máscara do amor, da beleza ou da morte. Marcada pela consciência da precariedade e finitude do homem face ao sagrado, é ânsia da plenitude, sempre adiada, no tempo mortal.

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ariano suassuna: o Romance d’A Pedra do Reino

Nascido em João Pessoa, em 1927, no Palácio da Redenção, Ariano era filho do governador do Estado, João Suassuana. Em 1928, findo o mandato do pai, a família se retirou para a sua fazenda, no sertão da Paraíba.

Em 1930, seu pai, deputado federal na ocasião, foi morto a tiros no Rio de Janeiro por um assassino de aluguel, a mando de inimigos políticos. O assassino foi preso, e pouco tempo depois solto; novamente preso, condenado a quatro anos de prisão, foi liberto dois anos depois.

A família de Ariano, após o assassinato do pai, desloca-se constantemente, para fugir da sanha de inimigos políticos. Em 1932, uma seca intensa se abateu sobre a região em que tinha a fazenda e a família perdeu quase todo o gado. Em 1933, perseguidos, mudaram para Taperoá, no Cariri, passando temporadas lon-gas na fazenda dos tios maternos. A fazenda que tinham acabou sendo vendida, em razão de dificuldades econômicas. E Ariano foi estudar, interno, no Colégio Americano Batista de Recife. Finalmente, em 1942, a família toda muda-se para o Recife. Ariano ampliava suas leituras de clássicos e da literatura de cordel. Lê Euclides da Cunha, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, José Lins do Rego. Em 1943, ingressou no Ginásio de Pernambuco, concluindo aí o curso clássico – es-tudos intermediários entre o Ginásio e a Universidade. Estuda música erudita e pintura. Em 1945, ainda cursando o colegial, publicou seu primeiro poema no Jornal do Comércio.

Em 1946, ingressou no curso de Direito de Recife e conheceu um grupo de escritores, autores de teatro, atores, artistas plásticos, participando da criação do Teatro do Estudante de Pernambuco. Descobre a obra de Lorca e, sob sua inspira-ção, publicou na revista Estudantes, da Faculdade de Direito, poemas que temati-zavam a tradição popular nordestina. Pretendia, no Brasil, realizar projeto análogo ao de Lorca em seus poemas: estabelecer laços entre o erudito e o popular.

Em 1947, escreveu Uma mulher vestida de sol, sua primeira peça de teatro. Conheceu Zélia de Lima, que dez anos depois tornou-se sua esposa. Em 1950, seu Auto de São João da Cruz recebeu prêmio da Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco. Sucedem-se peças de teatros e prêmios: no IV Centenário de São Paulo, em 1954; em 1956, dois prêmios: o da Associação Brasileira de Criticos Teatrais e, em São Paulo, o Prêmio Vânia Santos de Carvalho.No mesmo ano, tornou-se professor de estética da Universidade Federal de Pernambuco e escreveu uma Iniciação à Estética, para seus alunos.

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Em 1958, começa a redação do Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Publicado em 1971, obtém, em 1972, o Prêmio Nacional do Instituto Nacional do Livro.

Em 1966, visita a Pedra do Reino, conjunto de grandes rochas que servem de cenário e tema do romance, no sertão entre Pernambuco e Paraíba. Paralelamente às atividades no Conselho Federal de Cultura, órgão do qual foi membro funda-dor, assumiu a direção do Departamento de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco, e articulou o Movimento Armorial ao qual se vincularam diversos artistas: poetas, romancistas, artistas plásticos, músicos, teatrólogos.

O Romance d’A Pedra do Reino é o primeiro volume de uma trilogia, intitulada A maravilhosa desaventura de Quaderna, o Decifrador. O segundo volume, Histó-ria do rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da Onça Caetana, iniciado em 1974, saiu em folhetins semanais no Diário de Pernambuco, até o ano seguinte; foi publicado em livro em 1977. De 1976 a 1977 foi preparado o terceiro volume: As infâncias de Quaderna.

Entre 1981 e 1988, sua obra teatral foi adaptada para cinema, vídeo, televisão, além de ter sido várias vezes encenada no Rio de Janeiro, Recife, São Paulo. Sua poesia foi editada em CD, com o próprio poeta recitando seus versos. Em 1989, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras; em 1995, foi Secretário de Estado da Cultura em Pernambuco. E em 2000, foi eleito membro da Academia Paraibana de Letras.

Em 2014, faleceu em Recife.Um dos melhores depoimentos sobre a sua obra é o de Marcos Vilaça, também

seu confrade, na Academia Brasileira de Letras. Nesse depoimento, Vilaça assinala a importância da contribuição de Suassuna: “posicionar a cultura popular em ambientes cultos”, projeto análogo ao de outros intelectuais nordestinos, como o do artista plástico seu amigo, Francisco Brennand; de Maximiano Campos, romancista; de Guerra Peixe, músico; de Marcus Accioly, poeta.494

Na entrevista concedida em 2000 aos editores dos Cadernos de Literatura Brasileira, rende homenagem a Guimarães Rosa, referindo-se ao Grande Ser-tão como “obra extraordinária (...) Guimarães Rosa fez (...) a mesma coisa que Cervantes [em D. Quixote]: Através do homem mineiro, ele tratou do problema do ser humano em qualquer lugar.”495. O romancista mineiro teria realizado, em Grande Sertão, projeto análogo ao de Suassuna em relação à literatura de cordel e à arte popular do Nordeste.

Indagado pelos entrevistadores a respeito de Tobias Barreto e da Escola do Recife, importante movimento de ideias do século XIX, sublinhou a influência 494 VILAÇA, M. V. Rodrigues, “Cantigas d’Amigos”, in Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000, p. 16-19.495 SUASSUNA, A., “Entrevista”, in Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000, pp. 35 -37.

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de Silvio Romero, mas também de Euclides da Cunha e de Gilberto Freyre em sua obra (ibid., p. 37).

Definindo-se, ao longo do tempo, como um “monarquista de esquerda” – po-sição que superou – Suassuna pensava em Canudos, em Quilombo dos Palmares – movimentos que contestaram o Brasil escravocrata e/ou citadino. Associava a monarquia à figura do rei sábio, e o socialismo à antiga tradição da Igreja Católica: a comunidade dos apóstolos.

Tardiamente, dá-se conta de que a luta no Brasil, era entre os privilegiados da cidade e os privilegiados do campo; não uma luta a favor de maior justiça. Isso o levou a abandonar a preferência pela monarquia e a aceitar o governo republicano, a favorecer a Igreja. Qual Igreja? A de “São Francisco de Assis, São João da Cruz, Santa Tereza.” (ibid. p. 40).

A arte, para ele, representa uma possibilidade de salvação, de superação da precariedade do existir. Entende que há uma estreita “ligação entre religião e arte: ambas têm caráter de absolvição” (ibid. p. 41). O papel da arte é recriar o real, magnificar a realidade: é “um acerto de contas com a realidade” (ibid. p. 43), é a criação de algo “puramente belo” (ibid. p. 42), que possibilite superar a destruição representada pelo fluir inexorável do tempo. Um exemplo disso, no âmbito do diálogo com a arte popular, é a proposta de Antônio Nóbrega, cantor, musicista, dançarino, compositor, que “faz a recriação dos nossos espetáculos populares.”.

O que Suassuna busca é a síntese da razão e da paixão (ibid. p. 47), do erudito e do popular, a fidelidade ao que nós, brasileiros, intrinsecamente somos: próximos de Portugal, do Norte da África, da Ásia: “isso é o que somos de verdade, é isso que devemos procurar”, diz ele (ibid. p. 48). Fazer ver quem somos: é o papel do artista. Em cada país, a cada povo, cabe ao artista mostrar a sua verdade essencial: “enquanto existir o Quixote, a gente sabe o que é a Espanha verdadeira. Com Os Sertões [de Euclides da Cunha] é assim também” (ibid. p. 51). Na sua Aula Mag-na496, Suassuna diz: “Ao se ver diante do povo (...) do sertão [Euclides da Cunha] tomou de repente seu lado (...). Seu grande livro resultou, portanto de um choque, da conversão de Euclides da Cunha diante daquele Brasil brutal, mas real, que ele via pela primeira vez em Canudos” (ibid. p. 98-99).

A arte de Suassuna é fundada numa estética da recriação, apoiada na transtex-tualidade: a literatura que cria “mantém relação com a literatura oral e popular”, apresentando analogias com as propostas de Gil Vicente, Calderón de la Barca, Cervantes, Lorca, José de Alencar, Euclides da Cunha, como assinala a estudiosa Idelette Muzart.497 E o fulcro dessa recriação, no Romance d’A Pedra do Reino é o modo de vida de Canudos, símbolo da busca de uma sociedade mais justa, sob 496 Id, Aula Magna. João Pessoa: Ed. Univ. /UFPB, 1994, p. 46-47, apud SANTOS, I. M. F. dos, “O decifrador de brasilidades”. In Cadernos de Literatura Brasileira, nº 10, Novembro de 2000, p. 95.497 SANTOS, I. M. F. dos, “O decifrador de brasilidades”. In Cadernos de Literatura Brasileira. Aria-no Suassuna, pp. 98-99.

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a bandeira do Divino Espírito Santo. A Pedra do Reino procura fundir, na obra, romance, teatro, poesia, gravura, segundo o próprio autor498. Nela, utilizando da técnica de picaresco aparece, o tom satírico com que Suassuna aborda os costumes sociais, literários, religiosos do país. Mas é também um romance da vida pública brasileira das décadas de 1920 e 1930, na região do Nordeste. O pano de fundo são os anos “que prepararam a revolução de 1930” e os antagonismos políticos e sociais da época499.

A trama do romance narra à história “ao mesmo tempo simbólica e milenarista, conectada aos episódios tenebrosos da Pedra Bonita, ocorridos um século antes e expõe o contraponto entre as ideias de Oliveira Viana e o pensamento marxista, as duas grandes correntes ideológicas em que se dividiram os intelectuais brasi-leiros na década de trinta (...), o grande debate brasileiro travava-se entre Direita e Esquerda, tendo no centro a figura emblemática do bem chamado Cavaleiro da Esperança” (ibid. p. 122), Luís Carlos Prestes.

A Pedra do Reino não é apenas uma narrativa, mas “um romance de idéias” (ibid. p. 123), no dizer de Wilson Martins. Projetado como um romance, uma novela épica, é dividido em três partes, das quais A Pedra do Reino é a primeira parte, constituindo “uma espécie de rapsódia introdutória dos temas”; a segunda parte, intitulada O rei degolado é “mais épico, trágico e sertanejo-terrestre, como a Guerra do Sertão Paraibano narrada através de seus três episódios principais – 1912, 1926 e 1930.”500 A epopéia de Suassuna estende “o conceito de herói e das famílias trágicas (...) à aristocracia do Povo (...) à ‘Aristocracia do Couro’, do Sertão, para chegar ao povo simples, sintetizando assim o trágico e o pícaro”.

Carlos Newton Júnior, referindo-se à obra poética de Suassuna, nela distingue uma visão trágica do mundo, uma visão trágica da vida, que mostra o homem consciente “da sua mortalidade e da impossibilidade de decifração do Enigma da ‘máquina do mundo’ (...)”; como alguém que “deseja unir-se ao divino”, mas percebe sua condição de finitude, sua precariedade existencial” 501.

Newton Jr. distingue três temas dominantes na poesia de Suassuna: a morte, a partir do evento dramático do assassinato do pai de Ariano, quando este tinha apenas três anos de idade, acentuado pela perseguição política, e dificuldades que se sucederam a elas. O segundo tema é o sentimento de exílio existencial: o mundo é “visto como um lugar de sofrimento, privação, dificuldades de toda ordem” (ibid. p. 138-139). O terceiro tema é a redenção, a salvação, em um futuro reino de 498 SUASSUNA, A., Entrevista a Jussara Salazar. Suplemento Literário de Minas Gerais, nº 61, julho, 2000, p. 12.499 MARTINS, W., “O Romanceiro da pedra e do sonho”, In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna, pp. 117-118.500 SUASSUNA, A. “Nota do Autor”, in id., História do Rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da Onça Caetana. RJ: José Olympio, 1977, p. 16, apud MARTINS, W., ibid., p. 127. 501 NEWTON JR., C., “O pasto iluminado”. In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna, p. 136.

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paz e harmonia, de justiça, identificado com os reinos mencionados nos folhetos de cordel, recriados poeticamente, onde “os fazendeiros são reis (...), suas filhas são princesas, e os vaqueiros e cangaceiros são (...) os cavaleiros (...) vestidos de armaduras de couro” (ibid., p. 40).

Assinalamos essas temáticas porque elas nos parecem fulcrais, não apenas nos poemas, mas também no Romance d’A Pedra do Reino, como veremos.

Um dos mais importantes estudos sobre a obra de Suassuna, assim como so-bre o elenco dos eventos aos quais Suassuna se reporta, Pedra Bonita, Canudos, associados ao sebastianismo brasileiro, encontra-se em Antonio Quadros502. Associado à pregação de Vieira e aos seus textos: Esperanças de Portugal, História do Futuro e Clavis Prophetarum, “ base doutrinária do sebastianismo seiscentis-ta”, e também às doutrinas de Joaquim de Flora e ao “ideário medieval de São Bernardo, do Templo/Ordem de Cristo” (ibid. p. 198), difundiu-se no Maranhão e no Nordeste, mas teve ainda ressonâncias recentes em Minas e no Rio (ibid., p. 201). Movimentos messiânicos se multiplicaram no Brasil, tendo como “ful-cro um indivíduo que se acredita possuir atributos sobrenaturais e que vaticina catástrofes de que só se salvarão seus adeptos; estes buscam ou desencantar um reino ou fundar uma cidade santa (...), lugar onde não se adoece (...) onde se é plenamente feliz” (ibid., p. 205).

Antonio Quadros vincula diretamente ao mito sebástico os movimentos associados a “Silvestre José dos Santos, o ‘execrável’ João Ferreira e o ‘santo’ An-tonio Conselheiro”, seguindo as indicações de Maria Izaura Pereira de Queiroz.503 Elenca, a partir de Gilberto Freyre no Brasil, Brasis, Brasília 504; de Oliveira Torres, no História das Idéias Religiosas no Brasil505 e de Maria Izaura Pereira Queiroz, os movimentos rebeldes, de contestação da República, que se difundiram no Nor-deste do Brasil, a partir do “profeta” sebastianista Silvestre José dos Santos que, na Serra do Rodeador, em Pernambuco, em 1810, “ pregou a ressurreição próxima do Encoberto e a instauração de seu reino no Brasil”506.

Esse movimento, também referido por Suassuna, no Romance d’A Pedra Reino, servirá de base para a estruturação do romance, assim como os outros movimentos a ele associados: o de João Antonio dos Santos, mameluco de Pedra Talhada que em 1836, “também anunciou o regresso de D. Sebastião” 507. Ainda no sertão de Pernambuco, em 1836, na Serra Formosa, João Ferreira, outro “profeta” sebastia-nista, reuniu em torno da Pedra Bonita, “enorme menir natural” de forma bizarra 502 QUADROS, A. “O Sebastianismo brasileiro”, in id., Poesia e filosofia do mito sebastianista. Lis-boa: Guimarães Ed. 1982, pp. 197-270.503 QUEIROZ, M. I. P. de, O messianismo no Brasil e no mundo, apud QUADROS, A., op. cit., p. 205.504 FREYRE, G., Brasil, Brasis, Brasília. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d, apud QUADROS, A., op. cit., pp. 208 e segs.505 OLIVEIRA TORRES, J. C. de, op. cit., SP: Grijalbo, 1968, apud QUADROS, A., op. cit., p. 204.506 QUADROS, A., op. cit., pp. 204-205.507 SUASSUANA, A., op. cit., apud QUADROS, A., op. cit., pp. 208-209.

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– considerado espaço sagrado – adeptos que acreditavam que o rei D. Sebastião e seu exército estariam encantados dentro da pedra. E que somente um banho de sangue, realizado através de rituais primitivos, propiciatórios, envolvendo sacrifícios humanos, poderia quebrar o encantamento508.

O impacto desses movimentos repercutiu também em outros autores, como José Lins do Rego, no seu romance Pedra Bonita (1938), em Joaquim Cardoso na peça O Coronel de Macambira (1963), além das obras de Suassuna, já citadas.

O último evento relacionado à crença sebástica de uma cidade santa, reino de justiça, e mencionado por Antônio Quadros, Suassuna, Eça de Queiróz e mais recentemente por Vargas Llosa, no A Guerra do Fim do Mundo, é o episódio de Canudos, centrado da figura de Antônio Conselheiro.

Antonio Conselheiro fundou, no sertão, uma cidade que se contrapôs à ordem estabelecida, à república oficial do Brasil. Nela, cidade santa, o que vale é a lei de Deus, a autoridade moral do santo que a comanda.

O episódio teve repercussões intensas nas obras literárias ulteriores, assim como a retomada da problemática do sebastianismo na literatura brasileira, destacando-se a poesia de Jorge de Lima e a de Santiago Naud. A poética do an-tigo cancioneiro popular português encontrou ainda ecos em Guimarães Rosa, em Cecília Meireles, em João Cabral de Melo Neto, em razão do seu conteúdo simbólico, assinala Antonio Quadros 509.

Suassuna, no A Pedra do Reino, combina as vertentes da criação literária e os mitos e a poesia populares. Realiza trabalho análogo ao que Villa-Lobos realizou no campo da música, Brennand no campo das artes plásticas.

A Pedra do Reino sintetiza história, meditação filosófico-religiosa, autobiogra-fia, criação literária. Escritos sob a forma de folhetos, seus capítulos estão encade-ados como um grande romance. Narra o depoimento de Pedro Diniz Quaderna, alter-ego mitopoético de Suassuna, ao juiz corregedor, personagem que investiga, para reprimi-las, tentativas de insurreição contra o governo republicano vigente no Brasil do começo do século XX.

O romance tem uma estrutura circular. Sua abertura conta, no primeiro folheto intitulado “Pequeno contar acadêmico a modo de Introdução”, através da voz de um prisioneiro, o que ele vê através da janela da prisão. E o que vê é uma cidade sertaneja, “terra agreste (...) e pedregosa”, terra ardente sob um sol característico do Nordeste brasileiro, cuja incidência é intensa. O narrador, que ainda não se sabe quem é e que ao longo do romance, narrado em primeira pessoa, vai se mostrar como sendo um personagem – Pedro Quaderna – descreve o que vê. E o que vê é o sopro ardente, metafórico, de gerações de “cangaceiros [justiceiros], de rudes Beatos e Profetas, assassinados (...) entre essas pedras selvagens”, na terra – cha-508 QUADROS, A., op. cit., p. 211.509 QUADROS, A., Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, vol. 1, pp. 249-250.

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mada de Onça-Parda pelo narrador – sobre a qual se espraia o sopro ardente da divindade, identificada como a Onça-Malhada “que há milênios acicata a nossa raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.”510.

O sertão é visto como uma enorme cadeia, que sintetiza uma tríplice face: é Paraíso, Purgatório e Inferno, a um só tempo; é prisão onde se aguardam as decisões da justiça, que pode se expressar como destruição e morte, ataque da “Onça-Malhada do Divino.” (ibid., p. 4).

O que o personagem descreve é a condição humana. Descobrimos, em segui-da, que o prisioneiro é auto-intitulado rei D. Pedro Diniz Quaderna, alter-ego de Suassuna. E que o romance é uma narrativa de sua história, feita nos moldes do Compêndio Narrativo do Pegregrino da América, de Nuno Marques Pereira, publicado em 1728.

O tempo da narrativa é o que decorre entre 1935 e 1938. O rei-personagem se autointitula “rei do Quinto Império” – alusão ao Quinto Império de J. de Flora, de Bandarra e de Vieira – e também “profeta da Igreja Católico- Sertaneja” e, “pretendente ao trono do Império do Brasil” (ibid., p. 5), apesar de já ter sido proclamada, no século anterior, a República do Brasil.

A condição humana é exílio e sofrimento, prisão no mundo concreto, áspero e ardente; mas é também apelo de um sagrado feroz que exige do homem uma ascensão, uma auto-superação constante.

O texto d’A Pedra do Reino é apresentado como “um memorial dirigido à Na-ção Brasileira, à guisa de defesa e de apelo”, mas também “à Academia Brasileira, esse supremo Tribunal das Letras” (ibid., pp. 5-6), celebrando os reis brasileiros, “os Reis castanhos [mestiços] e cabras da Pedra do Reino do Sertão” (ibid., p. 5), que entre 1835 e 1838 proclamaram o Império do Brasil: mestiço, violento, mas também santo.

A circularidade do romance – entendemos por circularidade o ponto inicial do romance ser composto por referências a eventos que só se tornarão claros no final da obra, o que nos convida a retornar aos capítulos iniciais, já não enigmáticos, por apreendê-los sob nova luz; a circularidade, dizíamos, prossegue nos folhetos seguintes do II ao IV, que descrevem, no II, uma estranha cavalgada, com um jovem vestido de branco à frente e precedido por duas bandeiras: uma, do Divino Espírito Santo; e outra, representando onças: uma onça pintada, uma parda e uma negra (ibid., p. 7). Já sabemos que a onça parda representa o mundo; a pintada, o Divino; e a negra, a noite, perigo e mistério511. O significado da chegada do jovem de branco só será esclarecido no fim do livro.

Ainda no folheto II, encontramos a referência ao poeta como um visionário: o que vê profundamente, o que prediz o futuro. As fontes dessa afirmação feita 510 SUASSUNA, A., A Pedra do Reino, pp. 3-4.511 CARRERO, R. e SUASSUANA, A., Romance do Bordado e da Pantera Negra. São Paulo: Ilumi-nuras, 2014, p. 35 e p. 61.

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através do personagem Samuel Wandernes – através de quem fala Suassuna – são próprio Samuel, mas também Gonçalves Dias, em um poema noqual se refere a uma cavalgada, análoga à descrita no Romance de Suassuna, no qual há menção “ao Donzel errante”, “o Alumioso”, que serão também os nomes com Suassuna se refere ao príncipe salvador, que libertará o sertão.

Existe ainda a menção no texto de nosso autor, ao artigo do acadêmico parai-bano, Carlos Dias Fernandes, que descreve os cantadores populares nordestinos como “trovadores do chapéu de couro”512.

O Romance narra a história de Pedro Quaderna, misto de “herói/anti-herói (...) proprietário de uma certa taverna suspeita a que chama de Estalagem da Távola Redonda (...).”. Ele organiza torneios, veste-se nas festas à moda dos cangaceiros. Seus amigos eruditos representam a contraposição entre a esquerda e a direita na vida política: São Clemente e Samuel, que, com Pedro, fundam a Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba513.

A primeira menção a Quaderna, explicitando quem é, ocorre no fascículo III d’A Pedra do Reino. Aí o personagem narra a rebelião de 1930, capitaneada por José Lima Pereira, contra o governo constituído. Proclama a independência do município de Princesa, “subvertendo o sertão da Paraíba com 2000 homens”514. João Ferreira Quaderna, bisavô do narrador, falava de um encantamento, que, para ser quebrado, exigia um banho de sangue. O sacrifício sangrento libertaria D. Sebastião e seu exército, afirmava João Ferreira, instaurando um reino que asseguraria felicidade, riqueza, beleza, poder, imortalidade a todos os adeptos.

O folheto IV narra a história do fazendeiro degolado e o desaparecimento de seu filho mais novo, Sinésio, “rapaz alumioso, que concentrava em si as esperanças dos sertanejos” em um reino de glória e de justiça, plenitude e felicidade para todos” (ibid., p. 29). Nesse folheto aparece, pela primeira vez no romance, a menção a Tobias Barreto que considerava impossível a narração, no Brasil, de um romance genial. Ora, a pretensão do narrador é escrever um romance genial, histórico e épico, “com cavaleiros armados (...) degolações e combates sangrentos” (ibid., pp. 30-32), narrando a história da família de reis à qual pertencia (ibid., p. 33).

Podemos considerar os quatro primeiros folhetos como introdutórios para a história de Quaderna.

O folheto V narra as fontes histórico-arqueológicas dos eventos associados à Pedra Bonita, onde, sob a inspiração de um sebastianismo distorcido – D. Sebastião ressuscitaria ali, com todas as crianças que fossem aí degoladas para desencantar o reino, mediante a oferenda propiciatória de seu sangue.

Os folhetos seguintes sucedem-se, descrevendo cinco impérios. Os impérios são, na verdade, os movimentos revolucionários e antirrepublicanos, monarquistas 512 SUASSUNA, A., A Pedra do Reino, p. 14.513 QUADROS, A., Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Vol. 1, pp. 255-256.514 SUASSUNA, A., A Pedra do Reino, p. 25.

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de então. A menção a cinco reinos que se sucedem, lembra as teses de Vieira sobre o Quinto Império. Fundem-se, aqui, história e ficção: o primeiro Império, era o fundado por Silvestre José dos Santos, na Serra do Rodeador; pregava a “ressur-reição de D. Sebastião”, previa a “degola dos poderosos”, instaurando um novo Reino, com o povo no poder. Descreve também o envio das tropas governistas, matando todos os correligionários de Silvestre.

O segundo Império, instaurou-se na Serra Talhada, nas terras dos Pereiras. Foi proposto por José Antonio dos Santos que se auto-intitulava “profeta” do novo Reino, que seria governado por D. Sebastião, cuja vinda próxima anuncia-va. Conseguiu arrecadar grandes somas, contribuições dos fazendeiros da região do Cariri, prometendo-lhes devolvê-las em dobro, logo que se desencantasse o Reino. Missionários católicos informaram ao governo brasileiro o que sucedia e o “imperador” acabou se retirando da região.

O terceiro Império iniciou-se com João Antonio II, em Pajeú, associado a matanças de partidários de D. João I.

No quarto Império, surgem “os cavaleiros sertanejos”, comandados por Manoel Pereira, Senhor de Pajeú, que organizou uma expedição contra os “reis” e “profetas” da Pedra do Reino. Prendeu muitos, matou vários, levou embora as mulheres e crianças, filhos de adeptos da Pedra Bonita. No seu Romance, Suassuna mescla realidade histórica e ficção: uma dessas crianças era D. Pedro Diniz Quaderna, avô do narrador-personagem. Educado por um padre católico, este ocultou na cidade que Pedro Quaderna era filho de João Ferreira Quaderna. Batizou-o e quando o menino se tornou adulto, casou-o com sua filha bastarda, Bruna Wanderley, de conhecida beleza. Deste casamento nasceu Pedro Justino Quaderna (Pedro III), o qual se casou com Maria Garcia-Barreto; são eles os pais de D. Pedro Diniz, o narrador d’A Pedra do Reino.

Estabelecendo uma genealogia, a partir da “nobreza sertaneja”, Suassuna faz nascer, num alusivo Quinto Império, o rei-narrador. Na tessitura da história desse rei – que ocupa todos os restantes folhetos da Pedra do Reino, contando suas vicissitudes e formação, surge afinal o reino ao qual Pedro Diniz, alter-ego ficcional de Suassuna, como já assinalamos, vai pretender: é o Reino da Poesia (Folheto XII). Pedro Diniz aprende com os cantadores a música e a poesia; admira os cangaceiros pela coragem frente à morte. Descobre as narrativas de cordel e as cantorias sobre Carlos Magno e os Doze Pares de França: fala de romances em versos e rimados (poesia) e em prosa.

É isso que qualifica o Romance d’A Pedra do Reino: romance em prosa e verso, grande painel de uma concepção de vida, de sonho e de busca espiritual, mas também das guerras, das lutas por justiça, por afirmação de vitórias e ressurreição que marcaram o período histórico em pauta.

As lutas entre cristãos e mouros – que foram guardadas na memória do povo e nas festas populares que as recordavam a cada ano – são celebradas nos folhetos

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e nas cantorias. Pedro Diniz intui que, tornando-se cantador (poeta), “ poderia reerguer na pedra do verso, o Castelo de [seu] Reino” (ibid., p. 68). O Quinto Império seria literário; não poria a vida em risco, mas “poderoso e sertanejo [seria] um marco, uma obra (...) um Reino varrido (...) pelo sopro sangrento do infortúnio, dos amores desventurados (...), pelo riso violento” (ibid., p. 75). Esse é o Império de Suassuna.

Um aspecto importante, na obra do escritor merece ser recordado: ele inclui sem-pre, ao longo do romance, discussões políticas, filosóficas, estéticas, históricas.

Assim,por exemplo, no folheto XXIV, aparece uma referência explícita à Es-cola do Recife, e novamente a Tobias Barreto; e também à acolhida, na Escola do Recife, do laço entre filosofia e literatura, presente nas obras de Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Franklin Távora, Martins Júnior, Artur Orlando (ibid., p. 117), mesclando aos personagens históricos efetivamente existentes, os personagens emblemáticos de seu romance: Samuel e Clemente. Este último, irreverente, com maneiras e opiniões novas. O modelo foi Sílvio Romero? Os estudiosos mencio-nam dois tios de Ariano, com características análogas. Talvez seus personagens sintetizem os dois: um era de esquerda, comunista; o outro, tradicionalista, de-fensor da fé católica.

No romance, a partir dos seus personagens, perpassa menção satírica às Academias brasileiras; e uma discussão sobre estética, sobre o papel da arte, no Brasil. Recusados pelas Academias oficiais do Brasil de então, os três personagens: Diniz, Samuel e Clemente criam a própria Academia, da qual são os fundadores e únicos sócios: a Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba. Pretendendo reinar, no plano da literatura, Diniz se propõe a construir uma obra que o leve a ser declarado Gênio da Raça Brasileira, “de modo oficial e selado pelo governo.” (ibid., p. 137 e segs).

A proposta d’A Pedra do Reino, de sintetizar poesia e prosa e incluir também as contribuições das artes plásticas, aparece no debate do folheto XXXI, intitula-do o Romance do Castelo (literário). Busca expressar a fusão de raças que o povo brasileiro representa, as lutas políticas e, fundamentalmente, busca a união dos opostos, na transcendência das oposições.

Destacamos apenas alguns aspectos dessa obra monumental. Nela tudo se cruza: história, mito, poesia, gravura, filosofia, política, indagação agônica sobre o segredo.

É um grande poema, da prisão e exílio no mundo, de confronto com a mor-te, da arte entendida como possibilidade de salvação, de resgate do perecível e trágico do existir.

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ProvenIÊnCIa Dos teXtos

Pessoa, Liberdade e Direitos dos Índios em Antonio Vieira | Congresso dos 400 anos do Nascimento de António Vieira, Lisboa, UCP/ FLUL, Novembro de 2008.

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