FLUSSER, Vilém - A dúvida
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COLEO COMUNICAESDireo: Norval Baitello junior
VILM FLUSSER
A Coleo Comunicaes pretende mostrar o amplo e sedutor leque de horizontes e perspectivas crticas que se abre para uma jovem cincia que no apenas cincia social, mas que tambm se nutre e transita nas cincias da cultura bem como nas cincias da vida. Afinal, apenas sobrevivemos, como indivduo e como espcie, se compartilhamos tarefas, funes e fruies, vale dizer, se desenvolvemos uma eficiente comunicao que nos vincule a outras pessoas, a outros espaos, a outros tempos, e at a outras dimenses de nossa prpria subjetividade.
Ttulos Publicados:
Lngua e realidade, de Vilm Flusser A fico ctica, de Gustavo Berna.rdo Mimese na cultura, de Gnter Geba.uer e Christoph Wlf A histria do diabo, de Vilm Flusser Arqueologia da mdia, de Siegfried Zielinski
A dvida
Bodenlos, de Vilm Flusser
O universo das imagens tcnicas, Vilm FlusserA escrita, de Vilm Flusser A poca brasileira de Vilm Flusser, de Eva Batlickova Pensar entre lnguas, de Rainer Guldin Homem
& Mulher,
uma comunicao
impossvel?, de Ciro Marcondes Filho
Mediosfera,
de Malena Segura Contrera
Filosofia da caixa preta, de Vilm Flusser
A sair:
Par e mpar: assimetria do crebro e dos sistemas de signos, de V. V. Ivanov NaturaLmente, Ps-histria,
de Vilm Flusser de Vilm Flusserinfernalis, de Vilm Flusser e Louis Bec
Vampyroteuthis
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Informao e Tesauro
FIusser, ViJm (1920 - 1991).A dvida.! Vilm Flusser. Apresentao de Gustava Bernardo. - So Paulo:
Sumrio
Annablume, 2011. (Coleo Comuoicaes.) 122p.; 14x21 C111. Edio autorizada por Edith }1uS,fer. ISBN 978-85391-0211-2
1. Filosofia. 2. Teoria do Conhecimento. IIl, Bernardo, Gustava.
3. Dvida. I. Ttulo. lI. Srie.
CDU 165 CDD121 Catalogao elaborada por Wanda Lucia Schmidt - CRB81922
A dvida
Coordenao deproduo: Diagramao:Reviso:
Capa: Finalizao:
Ivan Antunes Vincius Viana Ivan Antunes Cados Clmen Vincius Viana
Apresentao de Gustavo Bernardo Introduo 1. Do intelecto2. Da frase 3.
7 213S 49 71 91109
Conselho Editorial Eduardo Pefiuela Canizal Norval Baitello juniar Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de AzevedoGustava Bernardo Krause
Do nome
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Pedro Roberto JacobiLucrcia D'Alessio Ferrara
4. Da proximidade S. Do sacrifcio
1" edio: fevereiro de 20lI Edith FIusser ANNABLUME editora. comunicao Rua M.M.D.C., 217. Bm.m 05510-021. So Paulo. SP. Brasil Tel. e Fax.(O
lI) 3812-6764 - Televendas 3031-1754 www.annablume.com.br
Dois menos um pedacinho
" Este22 de ttulo do de 1966, n'O Estado Vilm Flusser "em era o outubro artigo publicado por de So Paulo: apenas o sinal de interrogao. Ao pesquisar o significado do signo "?", Vilm descobre que ele no objeto, conceito ou relao, mas sim um clima: o clima da interrogao, da dvida, da procura. ~ando contemplamos a imagem de "?", sentimos um clima que contrasta com o clima conclusivo do signo"." e com o clima imperativo do signo "!". O signo "?", assim como os outros dois, no podem ser pronunciados, no podem ser falados em si, isolados torna-se difcil at l-Ios porque sequer a leitura silenciosa possveL S podemos traduzi-Ios como "pontos": ponto de interrogao, ponto final, ponto de exclamao. Os trs signos-pontos no apenas definem o sentido como o clima das frases; logo, so signos existenciais. Mas, dentre todos, Flusser prefere o signo da interrogao:
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Devo confessar que entre todos os signos existenciais o "?" aquele que mais significativamente articula, a meu ver, a situao na qual estamos. Creio que pode ser elevado a smbolo da nossa poca com justificao maior que qualquer outro. Maior inclusive que a cruz, a foice e o martelo, e a rocha da esttua da liberdade. Mas elevado assim a smbolo deixa de ser, obviamente, o "?" um signo que ocorre em sentenas com sentido. Sofre o destino de todos os smbolos extrassentenciais: equvoco e nebuloso. Contentemo-nos pois com o "?" como signo que ocorre em sentenas, mas saibamos manter fidelidade ao seu significado. No ser este o papel mais nobre da nossa poesia? Formular sentenas com sentido novo que tenham um significado que lhe conferido pelo "?" pelo qual acabam? Formulando este tipo de sentenas, rasgar a poesia novas aberturas para um discurso que ameaa acabar em ponto finaL J no artigo "Ensino", publicado na Folha de So
em breve por mquinas de ensino programado.
Mas os
professores podem tambm engajar-se nos modelos que transmitem, quando tm de enfrentar as dvidas do presente, propondo, por exemplo, "ame teu pai e tua me, mas no edipicamente" ou "dois mais dois so quatro no sistema decimal, mas desde que zero seja nmero e que todo sucessor de nmero seja nmero". Em tal caso, emerge no professor o conflito: com que direito transmitir modelos aceitos pelo prprio professor j com graves reservas? No seria melhor transmitir as dvidas no lugar dos modelos? Para a resposta a esta dvida, no tenho qualquer dvida: melhor transmitir as dvidas no lugar dos modelos. Apenas dessa maneira no digo o que pensar, mas sim instigo cada um a pensar por sua prpria cabea - em ltima instncia, a filosofar. preciso duvidar. Para comear, preciso duvidar da dvida cartesiana porque, mesmo hiperblica, ela se impe um limite inaceitvel. Descartes diz que no pode duvidar de que duvida no instante mesmo em que duvida, para dessa maneira afirmar o "ergo sum" e defender o seu aterrorizante objetivo final: acabar com todas as dvidas! A dvida no um estado porque j um no poder estar. Descartes erra porque confunde a dvida com a negao erra porque no volta a duvidar de si mesmo. A dvida precisa supor que um mundo inventado seja melhor do que o mundo recebido, suposio que obviamente se calca na conscincia de que todo o pensamento um fingimento. Esse fingimento nos leva ao livro-sntese de toda a obra de Vilm Flusser, A dvida, provavelmente escrito
Paulo de 19 de fevereiro de 1972, Flusser diz que os professores podem ser meros canais transmissores inertes, comunicando modelos de comportamento tipo "ame teu pai e tua me" ou modelos de conhecimento do tipo "dois mais dois so quatro", mas sem se engajarem em tais modelos. Nesse caso, os professores seriam substitudos
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no final dos anos 50 e incio dos 60. Nele, Flusser define seu mais espinhoso tema: A dvida um estado de esprito polivalente. Pode significar o fim de uma f, ou pode significar o comeo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, instituir-se como "ceticismo", isto , como uma espcie de f invertida. Em dose moderada estimula o pensamento, mas em dose excessivaparalisa toda atividade mental. A dvida como exerccio intelectual proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experincia moral ela uma tortura. A dvida, aliada curiosidade, o bero da pesquisa, portanto, de todo conhecimento sistemtico - mas em estado destilado mata toda curiosidade e o fim de todo conhecimento. Para haver a dvida, preciso haver pelo menos duas perspectivas - tambm em alemo duvidar se diz "zweifeln", de "zwei", que significa "dois". Curiosamente, o signo "?" parece ter sido desenhado primeiro como um "2" do qual se tirou apenas um pedacinho ... Antecedendo s duas perspectivas, devidamente dubitativas, preciso que antes tenha havido uma f, condio do movimento de procura da verdade que leva a encruzilhadas e bifurcaes. Logo, o ponto de partida da dvida sempre uma f, que por sua vez gera pelo menos uma bifurcao. O estado primordial do esprito e tem
de ser a crena; o estado intelectual do esprito e tem de ser a dvida. No princpio, o esprito cr: ele tem boa f. A dvida desfaz a ingenuidade e, embora possa produzir uma f nova e melhor, no pode mais vivenci-Ia como boa. A dvida cria uma nova f, que deve ser reconhecida como f e no certeza, para se tornar melhor do que a f primitiva. As certezas originais abaladas pela dvida so substitudas por quase certezas - mais refinadas e sofisticadas do que as originais, certo, mas nem originais nem autnticas, se da em diante exibem "a marca da dvida que lhes serviu de parteira". O ltimo passo do mtodo cartesiano, o passo que nem Descartes nem Husserl se atreveram a dar, no entanto um passo para trs: implica proteger a dvida. A proteo da dvida aceita, como axiomtica, a formulao de Schlegel: "a filosofia sempre comea no meio, como a poesia pica". A filosofia no pode comear do incio, que no h, nem chegar ao fim, que tambm no h, assim como no podemos jamais ter a experincia quer do nascimento, de que no podemos lembrar, quer da morte, quando j somos para lembrar. A experincia da vida assim como a sua filosofia, sua"Lebensphilosophie", s se podem dar in media res. Vilm Flusser arrisca aquele passo para trs percebendo a dvida cartesiana como "uma procura de certeza que comea por destruir a certeza autntica para produzir a certeza inautntica". Para Descartes e para o pensamento moderno, a dvida metdica uma espcie de truque homeoptico que, no limite, deseja acabar com a dvida para chegar certeza final, assim como
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na poltica, mais tarde, se pensou a srio na guerra (e na bomba) que terminaria com todas as guerras. A filosofia flusseriana, entretanto, suspeita do recurso, enxergando inautenticidade na certeza a que ele nos conduz. Sem a dvida no h pensamento, cincia ou filosofia - dubito ergo sum -, embora com a dvida viva-se o perigo da esquizofrenia. Dividimo-nos procura da unidade, mas no fim do caminho encontramo-nos to-somente divididos. Se as nossas certezas j no so autnticas, as dvidas o sero, ou escondem um teatro intelectual? Descartes, e com ele o pensamento moderno, aceita a dvida como indubitvel, tomando-a paradoxalmente por certeza que o conduz s certezas que no fim deseja. A paradoxal f na dvida caracteriza ento a Idade que ousou se chamar Moderna para melhor denegar o tempo e o futuro, tentando frear o tempo pelo conhecimento, vale dizer, pela transformao de tudo e de todos em objeto. Duvida-se, sim, na filosofia como na cincia e na pedagogia, mas apenas para que nunca mais se duvide. Pergunta-se, mas no se quer perguntas: apenas as respostas "certas". Desta forma, duvida-se, no limite, da prpria dvida, produzindo com o tempo um conhecimento de fato espetacular que, todavia, tambm loucura, como o comprovam a bomba atmica - a espcie tornando-se to poderosa que pode exterminar a si mesma vinte vezes - e o campo de concentrao - a espcie tornando-se to absurda que nega a si mesma enevezes. A dvida que se quer certeza ao final bloqueia a emergncia da dvida ingnua, da dvida primria, aquela que transforma nomes prprios e renomeia poeticamente
as coisas. A dvida que se quer certeza ao final duvida, compreensivelmente, do espanto, e por isso mergulha a conversao ocidental na repetio tediosa. A dvida que se quer certeza ao final , em resumo, a antipoesia: "no se precipita sobre, mas dentro do inarticulado. Emudece. Este mutismo o abismo que se abriu nossa frente". H, no entanto,. uma sada - potica: A sada dessa situao , ao meu ver, no a reconquista da f na dvida, mas a transformao da dvida em f no nome prprio como fonte de dvida. Em outras palavras: a aceitao da limitao do intelecto como a maneira par excellence de chocarmo-nos contra o inarticulvel. Esta aceitao seria a superao tanto do intelectualismo como do antiintelecrualismo, e possibilitaria a continuao da conversaoocidental, embora em um clima mais humilde. Possibilitaria a continuao do tecer da teia maravilhosa que a conversao ocidental, embora sem esperana de captar dentro dessateia a rocha do inarticulvel. Seria o reconhecimento da funo dessa teia: no captar a rocha, mas revestir a rocha. Seria o reconhecimento de que o intelecto no um instrumento para dominar o caos, mas um canto de louvor ao nunca dominvel. Alienamo-nos da coisa, e portanto de todo o resto,
quando duvidamos para no mais duvidar, e para no
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mais duvidar principalmente de ns mesmos: "dizer que ns somos ns dizer que essa alienao est se dando"; dizer "eu penso ergo sou" implica supor-se causasui do pensamento ..Menos arrogante seria afirmar: "pensamentos me ocorrem". ~ando somos honestos, sabemos que nossos pensamentos nos controlam, e no o contrrio. Sentindo consumir-se pelos prprios pensamentos, o sujeito precisa sair do centro da razo utilitarista para recuperar, por paradoxal que parea, a f, que no deixa de se constituir em um horizonte de dvida. Se sou porque penso, ento o que penso? Penso uma corrente de pensamentos: um pensamento se segue sempre a outro, e, por isso, sou. Mas por que um pensamento sempre se segue a outro? Ora, o primeiro pensamento no se basta, exigindo outro pensamento para certificarse de si mesmo. Um no basta, ele exige sempre o dois, que por sua vez constitui de volta a dvida. Ou, buscando uma frmula: 1 > 2 < ? Um pensamento segue a outro porque o segundo pensamento duvida do primeiro, uma vez que o primeiro j duvidava de si prprio. Logo, um pensamento segue a outro pelo trilho da dvida, tornando-me uma corrente de pensamentos que duvidam: s o sou enquanto essa corrente escoa e no estanca. Pensamentos so processos em dois sentidos: primeiro, porque correm em busca de sua prpria completao, esteticamente, atrs de uma aura vivencial de satisfao vulgarmente chamada de "significado", como lembra Flusser; segundo, porque ininterruptamente geram
novos pensamentos, autorreproduzindo-se e, portanto, nunca efetivamente se completando. A corrente de pensamentos transforma-se, entretanto, em um redemoinho se me pergunto: por que duvido? Ora, porque sou, se s sou quando duvido; se duvidar desta dvida, terminarei por duvidar de que eu seja. Parece jogo ftil de palavras ou exerccio de lgica abissal, mas o pensamento contemporneo reconhece vivencialmente o dilema sem conseguir estabelecer com o mnimo de clareza insofismvel o limite da dvida. No h limite, mas a dvida sempre vai e volta, como a lemniscata, o conhecido smbolo do infinito: 00. A problematizao e o esvaziamento do conceito "realidade" acompanham o progresso, nessa medida perigoso, da dvida. Duvida-se como numa competio, para ver quem vai conseguir acabar primeiro com a dvida. A dvida da dvida a intelectualizao do intelecto que reRui sobre si mesmo a ponto de duvidar de todos os outros, mas nunca de si mesmo. Confirma o absurdo o suicdio do intelecto: no campo da cincia manipula-se a realidade produzindo instrumentos destinados a destruirem a humanidade e seus instrumentos; no campo da arte produz-se uma arte que se significa a si mesma, portanto uma arte sem significado; no campo da razo prtica grassam o oportunismo e o imediatismo, espcie de carpe diem. Confirmam o absurdo, ainda, as prprias reaes desesperadas contra o absurdo: na filosofia pululam os neos - neokantismo, neo-hegelianismo, neotomismo; na arte pululam os neo-neo-neo-(ufa)-realismos; na cincia
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