Cultura Global e Identidades Locais

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 XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 26 A 29 DE JULHO – CURITIBA/PR GRUPO DE TRABALHO: CULTURA GLOBAL E IDENTI DADES LOCAIS: conf litos culturais na interface da globalização LI-CHANG SHUEN CRISTINA SILVA SOUSA DOUTORANDA DO CENTRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO SOBRE AS AM ÉR IC AS DA UNIVER SI DADE DE BRA LIA. PROFESSORA ASSISTENTE DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

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XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

26 A 29 DE JULHO – CURITIBA/PR

GRUPO DE TRABALHO:

CULTURA GLOBAL E IDENTIDADES LOCAIS: conflitos culturais na

interface da globalização

LI-CHANG SHUEN CRISTINA SILVA SOUSA

DOUTORANDA DO CENTRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO SOBRE

AS AMÉRICAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. PROFESSORA

ASSISTENTE DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL

DO MARANHÃO

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CULTURA GLOBAL E IDENTIDADES LOCAIS: conflitos culturais na

interface da globalização

Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa

Resumo: A proposta deste trabalho é discutir o problema da cultura na era daglobalização e da formação de uma suposta cultura global, que perpassa asculturas locais e se relaciona com elas de forma assimétrica. Sustentamos queos fluxos globais de informação e entretenimento não são capazes de impor uma cultura global capaz de suplantar as culturas locais fortementeestabelecidas e que a força cultural de determinadas comunidades interferediretamente no processo de assimilação. Introduzimos a noção de transregião

como o local de intersecção de vários locais culturais onde os fluxos da culturaglobal se diluem mais facilmente na realidade local, produzindo assim taisfluxos uma interferência mais difusa e menos determinista nos processosculturais já regionalmente estabelecidos. O artigo discute ainda o próprioconceito de globalização, assim como os de cultura e cultura global, discussãoessa assentada na interface entre perspectivas teóricas derivadas daEconomia, das Ciências Sociais e dos Estudos Culturais.

Palavras-chaves: Globalização – Cultura – Conflitos culturais – Cultura global

Introdução

Quinta-feira, 16 de julho de 2009. É noite. Pessoas estão

confortavelmente sentadas na calçada de um bar, conversando, bebendo,

ouvindo a música ambiente ou simplesmente vendo o tempo passar. O bar é

também um restaurante e serve comida oriental. Sushi  e Yakisoba são os

principais atrativos do menu. De repente, um jovem com traços indígenas

aparece vestido e maquiado como Michael Jackson e logo repete no meio da

rua os passos que fizeram a fama do cantor morto recentemente e chama para

si todas as atenções.

A cena aconteceu em Imperatriz, uma cidade do interior do

Maranhão, mas poderia acontecer em qualquer cidade do mundo. Certamente

cenas parecidas estavam acontecendo em locais tão diversos quanto grandes

centros urbanos e cidades pequenas e médias em todos os continentes. A

comoção global pela morte de um ídolo internacional era mais do que

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esperada. Na era da globalização, a um indígena brasileiro, tanto quanto a um

  jovem asiático ou hindu, a despeito das diferenças econômicas, sociais e

inclusive étnicas, é lícito se apropriar da imagem de um personagem que só foi

possível existir em tal escala justamente por causa da globalização.

Em tempos de globalização não há surpresa em tais cenas. Há,

contudo, dúvidas se as culturas regionais e locais irão sobreviver à hegemonia

de fluxos culturais globais que podem estar em vias de se transformar em uma

cultura global. A dúvida torna-se preocupação quando se coloca na equação a

probabilidade dessa cultura global submeter as manifestações locais a um

processo de estandardização e homogeneização a tal ponto de já não se

reconhecerem as culturas tradicionais, em um futuro onde elas poderiam ser 

completamente suplantadas pelo global.

Alguns questionamentos surgem da observação da paisagem cultural

ao redor de qualquer cidadão de um mundo cada vez mais econômica e

tecnologicamente integrado. Um deles é a própria possibilidade de estarmos

diante da constituição de uma cultura global. Discutimos essa possibilidade no

segundo tópico deste trabalho, após um exercício de problematização e

questionamento do conceito – ou conceitos – de globalização oferecido por 

perspectivas teóricas derivadas da Economia, das Ciências Sociais e dos

Estudos Culturais. De antemão é possível afirmar que, assim como não há

consenso sobre a natureza da globalização, não há consenso sequer sobre o

termo a ser usado para designar o processo de uniformização e encolhimento

do mundo que estamos presenciando, muito menos sobre o conceito em si.

Ao lado das preocupações econômicas, tecnológicas e sociais

levantadas por este processo, existe a discussão sobre o que a globalização

faz com a cultura quando leva às mais diferentes comunidades fragmentos de

outras culturas e, mais ainda, blocos inteiros de produções culturais midiáticas,

homogêneas e, à primeira vista, conflitantes com aquilo que é identificado

como o mais representativo de uma comunidade: as suas tradições históricas

ou em construção. Neste trabalho problematizamos o conceito de cultura,

analisamos o papel das identidades locais para que haja ou não

permeabilidade do local ao global e introduzimos o conceito de transregião na

discussão sobre as estratégias e alternativas de resistência a uma supostadominação do global em relação ao local.

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Levantamos, ainda, o questionamento a respeito da inevitabilidade

de conflitos entre o local e o global na arena das manifestações culturais. Não

há consenso sobre se essa interpenetração é maléfica ou benéfica a um dos

lados da relação: as comunidades locais. Recentemente, entrou em vigor a

Convenção sobre a Proteção da Diversidade Cultural, negociada no âmbito da

Organização das Nações Unidas, com o objetivo de estreitar os vínculos entre

desenvolvimento sustentável e o respeito às culturas por meio do diálogo1.

Enquanto ativistas pela preservação de culturas ameaçadas pela globalização

vêem no texto da convenção pelo menos uma intenção de deter o que

consideram como avanço predatório da globalização e da cultura-mercadoria,

outros, como o filósofo naturalizado norte-americano Kwame Anthony Appiah,

vêem contradição no patrocínio da ONU a tal iniciativa2.

Sobre a globalização

Harvey (2005) define a globalização como um eufemismo para o

novo imperialismo, que é norte-americano. O imperialismo americano

(globalização) está centrado na lógica do capital, que precisa se expandir para

se reproduzir. Assim, ao exportar seu modelo de consumo e de democracia, os

Estados Unidos exportam os movimentos do capital que dão sustentação ao

estado. Para os países importadores desse modelo, não haveria escolha. O

autor identifica o poder americano como uma hegemonia lastreada no

consentimento, na força e na combinação entre consentimento e coerção e

destaca o papel da liderança moral e intelectual para o exercício da hegemonia

americana na era do capitalismo global.

A produção cultural dos Estados Unidos seria, na perspectiva de

Harvey, uma ferramenta para a consolidação e manutenção da liderança do

1 A convenção entrou em vigor em 18 de março de 2007. Mais de 50 países haviam ratificado o texto até aquela data,entre eles o Brasil e a União Européia. A convenção prevê ainda a criação de um fundo para a preservação dadiversidade cultural e exorta os países a adotar políticas de preservação do patrimônio cultural. Fonte:www.unesco.org2 Appiah afirma que “a convenção baseia-se no temor de que a cultura de massa ocidental ocupe o espaço dasdiferentes formas culturais de outras partes do globo. Esse é o argumento para que os países defendam suasexpressões artísticas e costumes nacionais ou locais. É, no mínimo, uma contradição. A própria ONU defende a livrecirculação de idéias, a liberdade de pensamento e de expressão e os direitos humanos. A convenção para proteçãocultural pode ser usada para desrespeitar esses valores. O que, aliás, já vem acontecendo. Na China, o governo utilizaa convenção da ONU como justificativa para impedir que a população tenha livre acesso à internet. Os burocrataschineses estão preocupados em preservar a cultura local? Claro que não. Apenas querem impedir os cidadãos de ter contato com idéias e informações que os levem a desafiar o governo” (entrevista à Revista Veja, 8 de março de2006).

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país nos processos de redefinição do sistema mundial contemporâneo. A

indústria do cinema de Hollywood, as grandes gravadoras, as redes de

televisão com alcance global que exportam não apenas modelo de ficção, mas

também de tratamento da realidade por meio do jornalismo, são elos de uma

cadeia inseparável da política e da economia.

Ao lado disso, há o importante papel das instituições globais para a

sustentação da hegemonia americana: ONU, FMI, OMC (que exerceria o papel

de legitimador do novo imperialismo ao tentar impor a liberalização dos fluxos

comerciais globais que, via de regra, são desiguais em favor das economias

mais fortes). De acordo com essa perspectiva oferecida por Harvey, a inclusão

de temas relacionados à propriedade intelectual e livre fluxo de mercadorias

culturais está consoante com os propósitos do novo imperialismo de manter a

produção simbólica que o sustenta sob seu domínio e vigilância, inclusive

quando feita por outros países-atores do sistema.

Mander e Goldsmith (1997) partem de uma postura militante contra a

globalização para analisá-la e propor alternativas a ela. A globalização,

enquanto processo, é caracterizada como o maior redimensionamento da

arquitetura política e econômica do mundo desde a Revolução Industrial. O fato

de que as descrições ou explicações midiáticas sobre o processo serem feitas

por agentes da globalização faz com que o discurso dominante seja o que de

trata-se de um processo inevitável e benéfico para todos.

Porém, todos aqui deve ser entendido como as parcelas de

população, políticos e empresários do primeiro mundo que se beneficiam dela.

É apenas uma pequena parte da população mundial. Para a grande maioria,

globalização significa a destruição dos modos de vida tradicionais, da auto-

suficiência alimentar de comunidades até então protegidas do fantasma da

fome, das culturas locais e, principalmente, da autonomia político-econômica.

Para essa maioria, globalização é subordinação a um modo de vida que não foi

escolhido: foi imposto.

Os autores argumentam que mesmo quando a mídia noticia algum

problema da globalização, não são feitas análises sobre as conexões entre as

crises eventualmente descritas e a raiz da causa dessas crises. Mais: a mídia

rotula aqueles que são contrários à globalização em curso colocando todos emuma mesma categoria discursiva. Os termos usados para caracterizar essas

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pessoas ou grupos assumem conotações pejorativas, como protecionistas,

nacionalistas e ambientalistas.

Além disso, a mídia não ajuda ninguém a compreender as questões

que envolvem o processo de globalização, porque ela não explica o que está

acontecendo, apenas relata. A principal falha da globalização em curso é o

distanciamento dos cidadãos dos processos decisórios. Eles estão virtualmente

excluídos da discussão sobre o que vai atingir diretamente sua vida cotidiana.

Logo, as pessoas que sofrem as conseqüências da globalização não

escolheram os caminhos que estão sendo obrigadas a seguir.

Canclini (2003), a partir de uma abordagem culturalista, chega a uma

crítica semelhante sobre o encurtamento e a homogeneização do mundo em

que vivemos. Ele escreve que

curioso é que essa disputa de todos contra todos, em que fábricasvão falindo, empregos são destruídos e explodem as migrações emmassa e os conflitos étnicos e regionais, receba o nome deglobalização. Chama a atenção o fato de que empresários e políticosinterpretam a globalização como a convergência da humanidaderumo a um futuro solidário, e que até muitos críticos do processoentendam essa devastação como o processo por meio do qual todosacabaremos homogeneizados.

O autor chama a atenção, porém, a um fato paradoxal que deve ser percebido mesmo pelo mais consciente e convicto crítico da globalização: por 

mais que seus efeitos sejam devastadores para a maior parte das economias e

modos de vida tradicionais, nem os pobres nem os marginalizados podem

prescindir dos fluxos globais. A circulação de mercadorias, tecnologias e idéias

pode ser algo benéfico se bem conduzido. Devido a esse caráter contraditório

do processo, Canclini classifica a globalização como “objeto cultural não

identificado”, querendo dizer com isso que qualquer definição seria imprecisa

pela imensa dificuldade em se dimensionar em um conceito todos os aspectos

que devem ser levados em consideração ao se analisar o que vem a ser a tal

globalização. Nesse sentido, ele afirma:

muito do que se diz sobre a globalização é falso. Por exemplo, queela uniformiza todo o mundo. Ela nem sequer conseguiu estabelecer um consenso quanto ao que significa ‘globalizar-se’, nem quanto aomomento histórico em que seu processo começou, nem quanto asua capacidade de reorganizar ou decompor a ordem social. ( ibdem:p.41)

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Mesmo sabendo da dificuldade em oferecer um conceito

incontroverso, Canclini (ibdem: 42-42) arrisca uma definição que tenta incluir 

dois dos mais contraditórios aspectos do processo: “o que se costuma chamar 

de ‘globalização’ apresenta-se como um conjunto de processos de

homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação articulada do mundo

que reordenam as diferenças e desigualdades sem suprimi-las.”  Por ser a

globalização algo tão controverso e de difícil conceituação, Robertson (1990:

p.17-18) evita, inclusive, usar o termo corrente para designar o processo atual

e prefere chamar a globalização de processo de transformação das realidades

nacionais e regionais em mundo-como-um-todo. Ele afirma que “any attempt to

theorize the general field of globalization must lay the grounds for relatively 

 patterned discussion of the politics of the global-human condition, by attempting 

to indicate the structure of any viable discourse about the shape and the

‘meaning’ of the world-as-a-whole.” 

Outro autor que prefere não usar o termo globalização é Mato (2005,

mimeo), que prefere usar ‘processos de globalização’, como uma relação que

se estabelece a partir de “significativas interrelaciones e interdependencias

entre actores sociales a niveles tendencialmente planetarios” . Ele chama

atenção para o fato de que a maior parte das abordagens são deficientes em

oferecer uma visão mais acurada a respeito do que está acontecendo sem as

amarras da militância pró ou anti-globalização:

en estos días se habla y escribe demasiado sobre algo que se da enllamar “globalización”. Pero en general se lo hace de maneras pocoprecisas, reduccionistas y fetichizadoras, que no sirven de muchopara orientar las acciones de los actores sociales. Dependiendo dequién habla o escribe, resulta que eso que nombran “globalización”es señalado como causa de todos nuestros males o,alternativamente, como la panacea que resolverá todos nuestros

problemas. (ibdem:p.1 )

A fetichização de que fala Mato tem a ver com o fato de que a

maioria, tanto de seus críticos quanto de seus detratores, parece esquecer que

a globalização não é algo supra-humano. Pelo contrário: ela é um construto

humano tanto quanto o é a tecnologia que a possibilita ou a economia que se

sustenta e fortalece por meio dela. Assim como qualquer obra humana, é

passível de falhas e acertos. O autor (idbem: p.4) sugere que devemos evitar 

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fetichizar a idéia de “globalização” e uma das maneiras de fazê-lo é, conforme

suas palavras,

no hablar de “globalización” en singular y casi como si se tratara deun nombre propio (en este caso presumiblemente de una suerte dedemiurgo), y hablar en cambio de procesos de globalización, así enplural. La expresión procesos de globalización nos sirve paradesignar de manera genérica a los numerosos procesos que resultande las interrelaciones que establecen entre sí actores sociales a loancho y largo del globo y que producen globalización, es decir,interrelaciones complejas de alcance crecientemente planetario. Esteconjunto de interrelaciones es resultado de muy diversos tipos deprocesos sociales en los que intervienen en la actualidad, y hanvenido interviniendo históricamente, incontables actores sociales enlos más variados ámbitos de la experiencia humana, desde los másvariados rincones del globo.

Ao incluir na problemática a discussão sobre o papel dos atoressociais, Mato conduz a nossa análise para um aspecto sem dúvida alguma

relevante em todo o processo: os encaminhamentos globais que levam ao

encurtamento das distâncias e à compressão do tempo também nos

direcionam a um novo espectro cultural, espectro esse onde os atores sociais

sentem com mais força, ao lado do campo econômico, o peso da globalização

em curso: a cultura.

Sobre a cultura, identidades locais e a cultura global 

Uma crítica comum à globalização é a suposta capacidade que ela

tem em suplantar as manifestações culturais locais, substituindo tradições e

criando novas demandas culturais ao mudar o gosto das pessoas ao redor do

mundo, gosto este que se deslocaria do tradicional, identificado com a vida

cotidiana palpável, vivida em um determinado espaço-tempo, para um em que

as formas culturais preferidas seriam, a partir de então, aquelas desenraizadas

e produzidas em larga escala sem identificação alguma com qualquer 

comunidade. Surge então a preocupação com uma nova forma de cultura que

estaria destinada a tomar o lugar daquela que conhecemos e com a qual nos

reconhecemos. Uma possível cultura global seria a próxima fronteira da

humanidade.

Antes, contudo, de analisar a possibilidade de a globalização

efetivamente forjar algo parecido a uma cultura global, cabe discutir, em linhas

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gerais, o que entendemos por cultura em uma era de redefinições e incertezas

conceituais. Wallerstein (1991: 184) resume toda a problemática que se

esconde por trás de um termo tão corrente e tão internalizado (e externalizado)

em nosso discurso cotidiano. Para ele,

the very concept of ‘culture’ poses us with a gigantic paradox. On theone hand, culture is by definition particularistic. Culture is the set of values or practices of some part smaller than some whole. This istrue whether one is using culture in the anthropological sense tomean the values and/or the practices of one group at the same levelof discourse (French vs. Italian culture, proletarian vs. bourgeoisculture, Christian vs. Islamic culture), or whether one is using culturein the belles-lettres sense to mean the ‘higher’ rather than the ‘basis’values and/or practices within any group, a meaning which generallyencompasses culture as representation, culture as the production of art-forms. In either usage, culture (or a culture) is what some personsfeel or do, unlike others that do not feel or do the same thing.

Anthony Smith (1990: 171) trabalha no mesmo nível de análise de

Wallerstein ao se questionar a existência de uma cultura global quando nem ao

menos sabemos o que vem a ser cultura tal como a conhecemos hoje. Nas

palavras do autor:

can we speak of ‘culture’ in the singular? If by ‘culture’ is meant acollective mode of life, or a repertoire of beliefs, styles, values andsymbols, then we can only speak of cultures, never just culture; for acollective mode of life, or a repertoire of beliefs, etc., presupposes

different modes and repertoires in a universe of modes andrepertoires. Hence, the idea of a ‘global culture’ is a practicalimpossibility, except in interplanetary terms. Even if the concept ispredicated of  homo sapiens , as opposed to other species, thedifferences between segments of humanity in terms of lifestyle andbelief repertoire are too great, and the common elements toogeneralized, to permit us to even conceive of a globalized culture.

Posto nestes termos, o problema da cultura no mundo globalizado é,

com efeito, o problema da cultura em si. Ela não pode ser completamente

absolutizada – não existe uma cultura universal  per se –, nem completamente

relativizada – cultura, ou suas manifestações, não é algo que pertence, de

determinadas formas e sob perspectivas circunscritas, a apenas uma

comunidade humana, sem a existência de intercâmbios e bases comuns

identificáveis. Ribeiro (2007: 6), problematiza a questão em termos

antropológicos, afirmando que

a noção antropológica de “cultura” significa atributos universaiscompartilhados por todos os seres humanos. O termo “culturas”refere-se às variações concretas de tais atributos em incontáveis

contextos históricos e geográficos. Cultura, no singular, tambémpode ser usada na descrição de uma forma única da experiênciahumana, como na expressão “cultura Yanomami”. Assim, o mesmo

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substantivo pode expressar um universal e os seus particulares,aspectos comuns a todos os seres humanos, assim comoexperiências vivenciadas por apenas uma parte da humanidade. Sobo guarda-chuva de um único atributo humano (cultura), as diferentesculturas precisam ser compreendidas em sua pluralidade e em suacapacidade de comunicar-se entre si. Cultura existe apenas através

de culturas. Cultura(s) pode(m), portanto, ser associada(s) aentidades universais, particulares ou mistas.

Ribeiro trabalha com a noção de particularismos e universalismos

para problematizar a noção de diversidade cultural – tributária da noção de

cultura – como forma de chegar a uma explicação do que seria hoje o mais

próximo de uma cultura global, ou seja, fluxos culturais atravessados por e que

atravessam diversas culturas em um processo de construção mais do que de

imposição cultural. O imperialismo cultural norte-americano, para o qual aalguns a palavra globalização é um mero eufemismo, é um particularismo local

universalizado através de efeitos de poder. Tais efeitos são conseguidos por 

meio da hegemonia da indústria cultural norte-americana, aliada ao alcance de

sua hegemonia política, econômica e militar.

A globalização da cultura norte-americana seria a forma mais perfeita

de soft power de que falam os teóricos da Teoria das Relações Internacionais.

Ao mesmo tempo, apresenta-se como um paradoxo, especialmente seenquadramos a cultura estadunidense no conceito de particularismo local de

que nos fala Ribeiro (ibdem:8):

Particularismos locais são o conjunto de práticas e discursosmantidos por certas pessoas em uma dada localidade, de talmaneira que eles parecem ser social e espacialmente delimitados.Em virtude de seu forte apego à originalidade e à autenticidade, osparticularismos locais parecem ser idiossincráticos. Tal tipo departicularismo é relevante especialmente quando se associa àcrença de que se refere a expressões e modos de vida únicos a umcerto povo. Assim, ele é imediatamente relacionado a diferenças e

diversidades culturais. Oferece um forte sentido de coesão, deunidade e de identidade, sendo uma poderosa fonte para aconstrução de coletividades.

As “expressões e modos de vida únicos” ao povo norte-americano

acabaram por transformar-se, pelo menos essa parece ser a lógica da

globalização a partir da perspectiva da cultura, em expressões e modos de vida

quase universalmente adotados. Das formas de alimentação (fast food ),

passando pela forma de vestir (street wear ), passando pela forma de expressar sentimentos e concepções estéticas (formas musicais como rock, blues, jazz,

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country ) e modos de vida (cinema), aspectos particulares da vida norte-

americana deixaram de ser particulares e tornaram-se amplamente difundidos.

Podem não ser universais – já que imensas regiões do globo resistem a elas –

mas estão mais próximas disso do que qualquer outro particularismo local. O

próprio Ribeiro (ibdem) condensa esse aparente paradoxo:

Ainda que os particularismos locais sejam meios simbólicos àdisposição das populações locais, também podem disseminar-separa outras pessoas. Isso é especialmente verdade em uma era deglobalização caracterizada pela existência de diversos fluxosdesterritorializados de bens, informações e pessoas. Porém, nemtodos os particularismos fluem com a mesma intensidade evisibilidade.

Ou seja, apenas os particularismos que têm a seu dispor uma rede

de comunicações tecnologicamente avançada, ao lado de um poder político,

econômico e militar capaz de dar sustentação – ao mesmo tempo em que o

particularismo sustenta de volta tal poder – às investidas em direção à

universalização de tais particularismos. É o que a globalização estaria

permitindo hoje em quase todos os aspectos da vida cotidiana3.

Mato (2005) oferece uma visão integrada de cultura, na qual põe em

relevo os aspectos simbólicos de todas as práticas humanas. Essas práticasacabam por criar identidades que se fragmentam em muitas e sedimentam-se

como próprias a determinadas comunidades. O mal estar da globalização é a

falta de identificação dos sujeitos – tanto os produtores quanto os

consumidores – com comunidades identitárias identificáveis e delimitadas. No

caso dos produtores culturais, Canclini (2003:25) escreve:

Na época do imperialismo, podia-se experimentar a síndrome de

Davi ante Golias, mesmo sabendo que o Golias político estava, emparte, na capital do próprio país e, em parte, em Washington ou emLondres; o Golias da comunicação em Hollywood, e assim por diante. Hoje, cada um desses gigantes se desdobra em trintacenários, com ágil flexibilidade para se mover de um país para ooutro, de uma cultura a muitas, pelas redes de um mercadopolimorfo.

3 Ribeiro trabalha ainda a noção de particularismos translocais – aqueles que se proliferam por meio dos fluxos deinformação, de pessoas e de serviços – e os particularismos cosmopolitas, capazes de sintetizar os particularismosanteriores em uma arena na qual a tolerância e a convivência formam o cadinho no qual uma cultura permeada aomesmo tempo por muitas outras se desenvolve.

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Essas redes enfraquecem as identidades locais ao ponto de novas

identidades serem forjadas tendo como base as anteriores que, ao mesmo

tempo, tornam-se irreconhecíveis quando reelaboradas por meio dos

processos globais. Em tempos de globalização, as identidades podem ser 

construídas por meio de percursos tão distintos quanto inusitados. Canclini

(1989) propõe pensar tais percursos por meio do conceito de hibridização. O

autor (1997: 111), defendendo-se das críticas recebidas, afirma que o conceito

de culturas híbridas tem maior capacidade de

abarcar diversas mezclas interculturales que con el de mestizage,limitado a las que ocurren entre razas, o sincretismo, fórmula referidacasi siempre a funciones religiosas o de movimientos simbólicostradicionales. Pensé que necesitábamos uma palabra más versátilpara dar cuenta tanto de esas mezclas ‘clásicas” como de losentrelazamientos entre lo tradicional y lo moderno, y entre lo culto, lopopular y lo masivo. Una característica de nuestro siglo, quecomplica la búsqueda de un concepto más incluyente, es que todasesas clases de fusión multicultural se entremezclan y se potencianentre si.

O que Canclini comenta põe em relevo a dificuldade em sair do

conceito de cultura ao de identidade em uma era de aceleradas mudanças e

crescentes incertezas que influenciam diretamente na percepção que as

comunidades – sejam elas locais, regionais, nacionais ou transnacionais – têmem estabelecer um parâmetro minimamente aceitável e incontroverso a

respeito de suas marcas identitárias para além daquilo que dá sentido de

unidade e pertencimento a um povo, conforme Castells (2000). Daniel Mato

(1994) caminha na direção de conceituar identidade cultural como

representações socialmente construídas, construção esta operada por diversos

atores que se situam nos planos local, nacional e mesmo global.

Como produtos de ações sociais e não de fenômenos sociais, as

identidades são construídas a partir de lutas travadas entre diversos atores

sociais e por isso sustenta que não pode existir nem identidade única nem

homogeneidade mesmo dentro de uma sociedade geográfica e culturalmente

delimitada. Daí a dificuldade em afirmar que existe, por conseqüência, tanto

uma cultura quanto uma identidade globais no atual estágio da globalização.

Talvez atingi-las seja uma impossibilidade prática por mais que a tecnologia

sugira que isso seria possível.

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Smith (1990:178) retoma a discussão sobre a possibilidade de uma

cultura e de uma identidade globais como uma invenção feita possível apenas

no plano discursivo. O autor sustenta que

there can in practice be no such thing as ‘culture’, only specific,historical cultures possessing strong emotional connotations for thosewho share in the particular culture. It is, of course, possible to ‘invent’,even manufacture, traditions as commodities to serve particular classor ethnic interests. But they will only survive and flourish as part of the repertoire of national culture, if they can be made continuous witha much longer past that members of that community presume toconstitute their ‘heritage’. In other words, ‘grafting’ extraneouselements must always be a delicate operation; the new traditionsmust evoke a popular if they are to survive, and that means tovernacular motifs and styles.

É possível argumentar, então, que a cultura global é essa ‘invenção’possível, na verdade fabricada, produzida como a mercadoria que realmente é,

com as características de toda mercadoria tecnológica no mundo moderno:

instantaneidade, tendência à rápida obsolescência e conseqüente substituição

por outra de acordo com as conveniências do “fabricante”. Para que elementos

dessa mercadoria sejam incorporados às culturas locais, é preciso haver um

processo de hibridização e ressignificação operado por meio do discurso de

forma a fazer com que as comunidades locais encontrem elos entre o global,

que é novo e estranho às suas realidades, e a cultura local, nem sempre

permeável a novidades que vêm de fora.

A força da “cultura global” reside no fato de que existe todo um

aparato midiático-discursivo capaz de penetrar nas mais resistentes

comunidades e infiltrar novos elementos de forma massiva e repetitiva no

cotidiano das pessoas até o ponto em que o global pareça tão natural a essas

pessoas quanto o local. Isso não significa, porém, que o global substitua por completo o local, ou o torne totalmente obsoleto a ponto de as pessoas

desejarem substituí-lo pela novidade global, elaborando uma nova identidade

cultural.

Smith (idbem: 179) esclarece o que ele tem em mente quando fala

em identidade:

the concept of ‘identity’ is here used, not of a common denominator of patterns of life and activity, much less some average, but rather of the subjective feelings and valuations of any population which

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possesses common experiences and one or more shared culturalcharacteristics (usually customs, language and religion). Thesefeelings and values refer to three components of their sharedexperiences: 1) a sense of continuity between the experiences of succeeding generations of the unity of population; 2) sharedmemories of specific events and personages which have been

turning-points of a collective history; and 3) a sense of commondestiny on the part of collectivity sharing those experiences

O autor afirma ainda que a cultura global é uma cultura sem

memória, que não se relaciona com qualquer identidade histórica. Por isso, a

cultura global é “painfully put together, artificially, out of the many existing folk 

and national identities into which humanity has been so long divided. There are

no ‘world memories’ that can be used to unite humanity; the most global 

experience to date – colonialism and World Wars – can only serve to remind us

of our historic cleavages” (Ibdem: p.180).

O local e o global como arenas de conflito na era da cultura globalizada

As tensões entre culturas e identidades locais e globais constituem

hoje um notável ponto de conflito permeando as relações entre as diversas

sociedades. O principal ponto de alimentação desse conflito é ahomogeneização que impõe a substituição de manifestações locais por 

manifestações culturais globais. Canclini (2003:22) coloca o problema nos

seguintes termos:

A globalização, que acirra a concorrência internacional edesestrutura a produção cultural endógena, favorece a expansão deindústrias culturais com capacidade de homogeneizar e ao mesmotempo contemplar de forma articulada as diversidades setoriais eregionais. Destrói ou enfraquece os produtores pouco eficientes econcede às culturas periféricas a possibilidade de se encapsularem

em suas tradições locais. Em uns poucos casos, dá a essas culturasa possibilidade de estilizar-se e difundir sua música, suas festas esua gastronomia por meio de empresas transnacionais.

Podemos citar como exemplo desse processo de difusão dentro dos

parâmetros permitidos pelos processos de industrialização cultural global o que

acontece com a música árabe, a qual, a partir dos anos 90, foi estilizada e

reelaborada pela indústria fonográfica e ganhou as pistas de dança do mundo

inteiro, com a criação de uma música híbrida: cantada em árabe, com temas

universais como o amor, com sonoridade básica identificada com as músicas

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tradicionais árabes, mas com a junção de elementos sonoros ocidentais como

a batida do hip-hop e de outros ritmos dançantes que dominam as boates do

mundo.

Na esfera da gastronomia, o exotismo de cozinhas orientais foi

matizado para que o paladar ocidental se acostumasse a iguarias tailandesas,

por exemplo, tendo a comida popular chinesa chegado ao ponto de constituir-

se em um novo padrão de fast-food  com pratos universalmente consumidos

como o yakisoba, o shop suei  e os rolinhos primavera. Assim, o local se

beneficia do global especialmente quando consegue produzir uma troca que

apara as arestas mais excludentes de suas características para que possa

haver uma adequação bidirecional: do local em direção ao global e do global

em direção ao local.

Mesmo com essa possibilidade, conflitos são verificados com

freqüência. Barnet e Cavanagh (1997) afirmam que os satélites, a música, o

cinema e outras formas de difusão da cultura dominante são como as “artérias”

através das quais os conglomerados da indústria do entretenimento

homogeneízam os gostos para a formação de uma cultura global. Eles

sustentam que o impacto dessa homogeneização nas até então ricas culturas

locais tem sido imenso e as conseqüências disso começam a emergir na forma

de conflitos culturais que se refletem nos nacionalismos culturais e nas políticas

de valorização do local: “musicians, social critics, and politicians in poor 

countries of Asia, Africa, and Latin America worry that the massive penetration

of transnational sound will not only foreclose employment opportunities for local 

artists but will doom the traditional music for their local culture” (ibdem: p.74 ).

Indubitavelmente, a música  pop penetra em praticamente todas as

comunidades do mundo, mesmo as mais isoladas. Não é possível afirmar,

porém, que apenas a música local sofre a influência da música  pop – e de

forma negativa – já que para ser aceita, uma expressão cultural alheia a um

determinado grupo deve conter elementos que possibilitem uma identificação

por mínima que seja. Assim, a música  pop, assim como a cultura  pop em si

(cultura da globalização) deve constantemente reelaborar-se, incorporando

elementos locais e transformando-se em algo menos “alheio” às tais

audiências.

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Da mesma forma, artistas locais reelaboram o global de acordo com

as suas perspectivas e as de seu público mais próximo. É o que acontece, por 

exemplo, com o vasto mercado das “versões”, muitas vezes estilizadas em

ritmos como forró, folk, polca, tango, samba, etc. Nesses casos, muda-se a

letra, altera-se o ritmo, e mantém-se apenas uma semelhança com a melodia

original que circula ao redor do mundo. Quando ouvidas por estrangeiros de

passagem por essas comunidades, tais melodias são imediatamente

reconhecidas e as diferenças incorporadas localmente são objeto não apenas

de curiosidade mas de genuíno interesse comercial para esses viajantes, que

adquirem cópias e as levam para outros lugares.

Militantes anti-globalização sugerem que a única forma de reverter a

globalização e seus efeitos, inclusive no campo da cultura, seria um retorno ao

local, à valorização das formas tradicionais de economia e expressões

culturais. Eles não indicam, porém, como esse retorno deveria ser feito. Essa é,

aliás, uma das maiores falhas das críticas à globalização: indica-se o que se

deve fazer, mas não como fazer. De qualquer forma, o retorno ao local não

garante imunização contra a fragmentação cultural.

Existem comunidades locais, por exemplo, que são criadas

artificialmente, como as cidades planejadas construídas a partir do zero e

povoadas com deslocamento de diferentes populações originárias de diferentes

lugares. Como, nesses casos, a cultura local é criada e consolidada?

Possivelmente é a história comum o elemento de ligação entre povo e cultura,

conforme (1990) sugere, e esse elemento não se constrói e solidifica em um

curto lapso de tempo.

Outro problema com relação ao local é saber o que, exatamente,

queremos dizer com “local”. Devemos lembrar que os limites geográficos são

arbitrários e os mapas são artificialidades de conveniência. Populações

inseridas dentro de uma área geográfica, como um estado federado dentro de

uma república nos moldes da brasileira, podem ser consideradas “locais”,

dotadas assim de uma cultura “local” para efeitos de cartografia, mas que no

fundo a única coisa que as une é uma linha traçada sobre um papel e que se

traduz em uma realidade política, não necessariamente cultural. Nesses casos,

a fragilidade do elo “local” não pode ser explicada pela influência maléfica daglobalização, como querem seus críticos.

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Acreditamos que não seja apenas a cultura globalizada o que

enfraquece a cultura local, mas a interação entre várias culturas locais que se

entrecruzam em uma transregião e dão origem a culturas mais ou menos

fortes, mais ou menos permeáveis aos fluxos globais. Transregião aqui é

entendida como o lugar de intersecção entre vários locais, onde elementos

culturais desses vários locais transitam com mais facilidade e velocidade do

que a própria cultura global. As trocas são mais fluidas por ser um local de

fronteira. Esses pontos em que se articulam diversos “locais” produzem

elementos culturais que se diluem mais facilmente nos fluxos que chegam até

eles. A fronteira é ponto de constante reelaboração e por isso a cultura dita

local não consegue, no curto prazo, se estabelecer ao ponto de fazer emergir 

conflitos com outras formas de cultura, mesmo a globalizada.

Na transregião os fluxos da cultura globalizada se diluem mais

facilmente na realidade imediata do que no “local”, entendido como lugar de

comunidades tradicionais e consolidadas. A transregião é, assim, o lugar 

formado por fluxos migratórios e culturais em constante transformação. As

múltiplas influências que incidem sobre ela em curtos espaços de tempo

deixam a sensação de que se trata de um lugar sempre em expansão, inclusive

cultural, por isso mesmo aberto a influências até mesmo contraditórias mas que

se encaixam de alguma forma na realidade das pessoas a tal ponto que as

contradições não são percebidas. Contradições do tipo em que um

descendente indígena, ou um filho de aborígenes australianos ou mesmo

camponês nos confins da Ásia encarnam a figura de Michael Jackson com a

naturalidade que encarnariam os personagens e mitos de suas comunidades

de origem.

Nas comunidades “locais” ou tradicionais, o sentido de identidade

cultural é mais perceptível. Nelas, o risco da globalização está nos dois

sentidos: do local para o global e do global para o local. Tanto um pode

influenciar quanto ser influenciado pelo outro. E, de fato, muito das culturas

locais, embora reelaborado e muitas vezes fetichizado, acaba por ser absorvido

pela indústria do entretenimento globalizada e também se globaliza, como a

comida chinesa e a música árabe citadas anteriormente. Na transregião, a

aceitação do global muitas vezes é uma via de mão única por não se encontrar 

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ali, suficientemente desenvolvida, algum tipo de manifestação cultural que

ofereça resistência ao que vem de fora.

Acreditamos que é a resistência da tradição o que faz com que não

haja algo parecido com uma cultura global, universalizada, homogênea e

suficientemente forte para suplantar as culturas locais. O que existe são

símbolos globais, reconhecidos em qualquer parte, mas que ainda não

substituem os locais. Para que a completa substituição das culturas por uma

cultura global ocorra seria necessário o local, em toda parte, transformar-se em

transregional. Neste caso, estaríamos entrando em uma hipotética e

improvável era de migração total, de reconfiguração total do espaço por meio

do deslocamento completo de seus ocupantes para outros espaços, em uma

espiral sempre em movimento. Produzir-se-ia, desta forma, um espaço global

em constante criação em cada mínimo ambiente, dos bairros aos estados-

nação.

O que se vê, ao contrário, é a construção e a manutenção de

comunidades culturais cada vez mais fortemente ancorada na história comum,

que tem impedido ou dificultado a criação de transregiões totalmente novas e

desenraizadas de comunidades locais. Em suma, o local está se reforçando

cada vez mais. Mesmo os lugares de intersecção, permeáveis às

manifestações culturais globais em maior grau do que as comunidades

tradicionais, tendem a se consolidar como um “local” algum dia. Se é a história,

a tradição que dá coesão a uma cultura, nada impede que as transregiões

adquiram estabilidade suficiente para, algum dia, reconhecerem-se como

portadoras de uma história e, conseqüentemente, uma identidade que as

caracterize em contraposição ao outro positiva e não negativamente (no

sentido de que só se definem em relação ao outro negando serem igual ao

outro em questão).

Quando isso acontecer, e a transregião transformar-se em um “local”,

pode acontecer de essa nova cultura local ser tão identificada com o global que

não haja conflito nos moldes dos vivenciados pelos atuais locais. Pode ser 

também que os conflitos se instalem da mesma forma, com a mesma

intensidade e com as mesmas características dos atuais. Então, mais uma vez,

não seria possível falar em cultura global.

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Considerações finais

Apesar da penetração da cultura espalhada pela globalização, ainda

não é possível falar em uma cultura global. O fato de, em uma cidade no

interior de um estado nordestino haver um clone de Michael Jackson atesta,

principalmente, o fato de que a cultura local é permeável ao global, mas não

que o global esteja em vias de substituir o local. Concordamos com Smith

(1990: p.188), para quem

we are still far from even mapping out the kind of global culture andcosmopolitan ideal that can truly supersede a world of nations, eachcultivating its distinctive historical character and rediscovering itsnational myths, memories and symbols in past golden ages andsacred landscapes. A world of competing cultures, see to improvetheir comparative status rans and enlarge their cultural resources,affords little basis for global projects, despite the technical andlinguist infrastructural possibilities

Apesar da base tecnológica, da rapidez das trocas comerciais e da

fluidez com que elementos da cultura hegemônica cruzam o globo, o local

ainda resiste tanto em aspectos econômicos quanto culturais. Conforme

discutimos neste trabalho, o que chamamos de globalização é um movimento

que atinge parcelas, não toda a população mundial. Mesmo em países onde tal

processo é mais forte e difuso, apenas partes dos territórios estão integrados

aos fluxos globais. As outras partes tomam conhecimento deles, mas não se

pautam por eles. Diferentemente do que ocorre em lugares como São Paulo,

Ciudad de México, Buenos Aires ou Santiago.

Em pequenas comunidades tradicionais, e mesmo nas periferias das

grandes metrópoles cosmopolitas, a cultura local se impõe por ser tangível, por 

estar diretamente relacionada e identificada com as práticas cotidianas. O

global coloca-se como mais uma forma de cultura à disposição das pessoas,

não como a forma de cultura, a única disponível porque suplantou as tradições

locais como se erradicasse todas as influências ancestrais.

A própria cultura da era da globalização não deve ser 

encarada como algo a ser simplesmente combatido, de forma absoluta,

porque, como vimos, há um movimento de mão dupla nas relações

culturais. É isso o que pressupõe o termo “troca”. Nas trocas culturais,global e local influenciam-se mutuamente. Isso vale para a esfera da

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cultura, mas também para a da economia, especialmente porque a

economia, muitas vezes, é culturalmente determinada. Não é à toa que a

rede de fastfood Mc Donalds vende hamburguer vegetariano na Índia e

inclui salmão naquele vendido no Chile, assim como churrasco no

comercializado nos países platinos.

Conforme procuramos mostrar, a própria globalização é algo

controverso: das origens ao conceito. Os autores com os quais

trabalhamos são enfáticos ao afirmar que o processo de encolhimento e

homogeneização do mundo é criação humana, portanto, deve ser 

desfetichizado para que possa ser analisado sob a perspectiva de

criação humana e, como tal, passível de falhas e de acertos. Mostramos

ainda que um dos maiores problemas das críticas feitas a tal processo é

que se indica o que deve ser feito para parar e mesmo reverter a

globalização – o retorno ao local – mas não se indica o caminho que

deve ser percorrido para que tal retorno aconteça. Identifica-se o ponto

de chegada sem se oferecer um mapa.

De qualquer forma, nada garante que o retorno ao local faça

com que os efeitos da globalização sejam revertidos, nem que se deseja

que todos esses efeitos sejam revertidos. Por ser uma via de mão dupla,

como já dito, é possível que os dois lados dessa troca global-local se

beneficiem dela e que as comunidades de alguma forma atingidas pela

globalização sintam-se mais beneficiadas do que prejudicadas por ela.

Em outras palavras, além de desfetichizar, é preciso matizar a natureza

da globalização e de seus efeitos. Nem é a globalização algo

completamente bom, como querem nos fazer crer seus defensores, nem

completamente mau, como afirmam seus detratores, porque assim é a

natureza própria de seu agente: o homem.

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