Revista Identidades #2

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#2 MARÇO | ABRIL | MAIO | 2014 ENTRUDOS ARTISTAS: DIREITOS DE AUTOR E FINANCIAMENTO NOVO MUSEU DO CAVAQUINHO PROJETOS CULTURAIS

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A revista identidades reflecte o que acontece na fileira da música de raiz em Portugal. Neste segundo número, o entrudo, os direitos de autor e o financiamento de projetos, o novo musei do cavaquinho e os projetos culturais estão em destaque.

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#2 MARÇO | ABRIL | MAIO | 2014

ENTRUDOS

ARTISTAS: DIREITOS DE AUTOR E FINANCIAMENTO

NOVO MUSEU DO CAVAQUINHO

PROJETOS CULTURAIS

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IDENTIDADES

: DIREÇÃOCOLETIVO IDENTIDADES

: PERIODICIDADETRIMESTRAL#2 MARÇO/ABRIL/MAIO 2014

: COORDENAÇÃO EDITORIALFILIPA ESTEVÃO DE CARVALHOVASCO RIBEIRO CASAISPAULO PEREIRAANTÓNIO BEXIGAANTONY FERNANDES

: REVISÃO DE TEXTOSFILIPA ESTEVÃO DE CARVALHO

: REVISÃO DE PARTITURASTIAGO TRIGO

: DESIGN GRÁFICO, PAGINAÇÃO E ILUSTRAÇÃO CRISTINA VIANA

: APOIO À EDIÇÃO DGARTES

: REDAÇÃOANTÓNIO CARNEIRORUI ARIMATEIAANTÓNIO BEXIGAVASCO RIBEIRO CASAISJORGE CARRULOSARA GUIA DE ABREUPAULO PEREIRADANIEL CATARINOJOSÉ LUÍS PINHO (ZEPS)DANIEL PEREIRAJÚLIO PEREIRAANA CORDEIROTIAGO MORAISLUÍS SALGADOANA MARTINSPEDRO PRATAANA CARVALHOMÓNICA MENDESJORGE ALMEIDAINÊS PINTO CARDOSOMARIA JOÃO CASEIROSOPHIE COQUELINFILIPE MARTAMANUEL LEIRIAJOÃO CLETOCELINA DA PIEDADECARLOS CAMPANIÇOANDREIA SPENCERTELMO OLIVEIRA

[email protected]

EDITORIAL

ENTRUDOS

NORTE: O CARNAVAL MAIS GENUÍNO DE PORTUGAL

AS BRINCAS DE ÉVORA EM 2014

FESTIVAL ENTRUDANÇAS - DO ALENTEJO PARA O MUNDO

ENTREVISTA A TÓ-ZÉ BRITO

SPA – DÚVIDAS, MITOS E ESCLARECIMENTOS

FINANCIAMENTO E GESTÃO DE PROJETOS MUSICAIS

BREVE GUIA DE CANDIDATURA A PROGRAMAS

FINANCIADOS

NOTAS SOBRE FINANCIAMENTO DE PROJETOS DE MÚSICA

DE RAIZ E PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL

CAPOTE MÚSICA: EDITORA INDEPENDENTE

INSTRUMENTOS

IDENTIDADES SONORAS E PERFORMATIVAS

ASSOCIAÇÃO MUSEU CAVAQUINHO

PROJETOS CULTURAIS

MIÚDOS CORAJOSOS – CONTRA O EXÍLIO CULTURAL

ESCOLA DE MÚSICA TRADICIONAL – CENTRO CULTURAL

E RECREATIVO DO ALTO DO MOINHO

CONTAR E RECONTAR O CONTO TRADICIONAL: O CONTO

TRADICIONAL - MEMÓRIA, IDENTIDADE, PARTILHA

FILARMÓNICA EXTRAVAGANTE

INTERNACIONALIZAÇÃO DA FILEIRA FOLK PORTUGUESA

CONCERTOS & FESTIVAIS

CONCERTOS

TOQUES DO CARAMULO

RETIMBRAR

PÉ NA TERRA

BICHO DO MATO

STRING FLING

FESTIVAIS

FESTIVAL PASSAGEM D’ANO

FESTIVAL RAIZ D’ALDEIA - TRADBALLS

FESTIVAL RODA A SAIA

EM AUDIÇÃO

OPINIÃO

PROFISSÃO: MÚSICO

EVOLUÇÃO NA TRADIÇÃO

CANCIONEIRO

CORADINHA

BRINCAS DE ENTRUDO

LUAR DA NAMOROSA

CALIMERO E A PÊRA VERDE

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EDITORIALCom o segundo número da revista Identidades, consolidámos a rede de colaboradores e aprofundámos os objetivos estratégicos delineados, inicialmente, pelo coletivo de músicos que imaginou este espaço de liberdade de expressão.

Uma parte significativa dos artigos foram propostos à revista, enquanto que outros foram de iniciativa da equipa editorial, tentando cobrir todos os ângulos da fileira da música de raiz: encetamos a revista com o nosso património imaterial (capítulo sobre os festejos do nosso Entrudo, que deu origem, no Brasil, ao mais conhecido evento do género à escala planetária); continuamos com o esclarecimento de algumas dúvidas relativas aos direitos de autor e com as possibilidades de financiamento de projetos artísticos; no miolo da revista está o excelente projeto do museu do cavaquinho e a divulgação de alguns projetos culturais de relevo; mais para o final, escutam-se alguns CD’s e projetos musicais, fala-se de festivais vivenciados, e opina-se sobre assuntos mais ou menos fraturantes. A revista termina com o imprescindível cancioneiro, desta vez integrando as Brincas de carnaval.

À revista Identidades junta-se agora o seu irmão mais novo, o portal Identidades (www.identidades.net), que tem como arquitetura base ser um portal colaborativo. Qualquer pessoa pode adicionar um projeto artístico (artistas), uma notícia (início), um evento (agenda), uma associação, um construtor, uma sala de espetáculos (recursos), uma partitura, uma aula ou propor um artigo à equipa editorial, bastando para isso registar-se. Pode ainda propor um plano de promoção para o seu projeto, bastando para isso contactar-nos (de futuro este serviço será pago, ajudando assim a sustentabilidade financeira do portal); a 3 dias do lançamento, o portal conta já com 48 artistas registados, 25 eventos, 18 notícias,11 recursos, 4 artigos e uma aula.

Todos estão convidados a colaborar e assim transformar o portal Identidades no ponto de encontro do movimento da música de raiz em Portugal. O portal Identidades é financiado pela dgArtes e conta com a parceria da Associação PédeXumbo.

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NORTE:OCARNAVALMAISGENUÍNO DEPORTUGAL.....................Por António Carneiro- Presidente da Associação Grupo de Caretos de Podence

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Despedem o Inverno e saúdam a Primavera. Para os Caretos, o Carnaval é um ritual entre o pagão e o religioso, tão natural como a passagem do tempo e a renovação das estações. Em Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, todos os anos é assim... Chegado o mês de fevereiro ou março, os homens envergam os trajes coloridos (elaborados com colchas franjadas de lã ou de linho, em teares caseiros), escondem a cabeça entre duas máscaras de lata, prendem uma enfiada de chocalhos à cintura e bandoleiras de campainhas, e despendem toda a energia do mundo para assinalar o calor e os dias maiores que se prestem a chegar. Normalmente, contam com os favores do Sol, magnânimo para quem louva o seu reino com tanto fervor. Religioso também, pois assim se marca, com os últimos estertores da folia, o início da Quaresma, período de calma, reflexão e contenção do calendário religioso.

Os festejos começam no domingo gordo, 2 de março, e prolongam-se até à terça-feira de Carnaval. Volta a ser esperada uma enchente de turistas que aproveitam o fim-de-semana prolongado para presenciarem um dos carnavais mais genuínos de Portugal e se deixarem fascinar pelas máscaras, correrias e muitas chocalhadas dos Caretos de Podence.

A “Noite da Máscara Mágica”, na segunda-feira, é uma noite pensada para os visitantes que são convidados a entrar num grande desfile em que a

sedução e o mistério estarão ao rubro, e a envergar uma máscara e uma tocha acesa. Durante o desfile há muita animação, música e diversão carnavalesca durante a noite dentro.Do programa consta ainda a tradicional “Experiência de Careto”, na segunda-feira, uma oportunidade para experimentar as vestes dos Caretos e desfrutar de uma experiência única, seguindo-se os “Caretos à Solta” que, surgindo aos magotes e armados de chocalhos, palmilham a aldeia em correrias

desenfreadas.

Haverá também muitas outras atividades, passeio pedestre, passeio de BTT, passeios de burros e cavalos, passeio micológico, exposição de pintura, raide fotográfico, mercadinho de produtos regionais, concertos tradicionais e muita animação de rua. Um dos pontos alto está reservado para o cair da noite de segunda-feira com o “Pregão Casamenteiro”, onde os “contratos de casamentos” servem de pretexto para se fazer crítica social, seguido do desfile da “Noite da Máscara Mágica” e da “Queimada” de um grande boneco vestido de branco, símbolo de um casamento carnavalesco.

No dia de Entrudo, terça-feira, 4 de março, a folia continua com os Caretos endiabrados à solta e o desfile das Marafonas. O encerramento termina com a Queima do Entrudo.Esta é uma das tradições ancestrais que continua viva e, de ano para ano, atrai cada vez mais visitantes, tornando-se num dos eventos turísticos de referência do Nordeste Transmontano.

www.caretosdepodence.no.sapo.pt

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AS BRINCASDE ÉVORA EM 2014................................

Por Rui Arimateiacolaboração António Bexiga-Identidades

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As Brincas são das manifestações tradicionais mais representativas do Carnaval de Évora. Consistem numa manifestação cultural tradicional, ainda hoje viva, sendo únicas pela forma e pelo conteúdo, pela originalidade e pela criatividade. São um sub-género da dramatização popular, musicadas e coreografadas, tendo por base um fundamento constituído por um “corpus” de décimas, tão característico do Alentejo, e um dos pilares das oralidades da cultura popular alentejana.

É difícil definir-se historicamente a origem deste tipo de manifestação cultural tradicional. Alguns autores apontam o século XVIII, outros fazem remontar a sua origem à época e aos autos de Gil Vicente, no século XVI, outros ainda há que não arriscam quaisquer datas para a sua origem, devido ao simbolismo subjacente na sua coreografia e à sua estruturação espacial, fazendo-as remontar a tradições mítico-religiosas ancestrais, nomeadamente inseridas em contextos de culturas e vivências de forte conotação agrária.As mensagens da brinca abalam, de facto, as estruturas sociais mais sólidas: a família, a autoridade, a igreja, o poder instituído, a moralidade e os bons costumes.

O tempo do Carnaval era, tradicionalmente, tempo de festa, de jogo, onde a «transgressão», a «loucura», o «imoral» e a «paródia» deveriam ter sido, em eras remotas, os únicos valores aceites de um tempo de renovação, de exaustão do «velho» e do «gasto» para que o «novo» pudesse ressuscitar, germinar com a Primavera. Talvez daí o facto de se chamar, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) a esta época de caos e desordem que antecedia, paradigmaticamente, a génese cíclica da transformação natural e da organização social.

Se o fundamento, na brinca, representa a narração de uma situação normal (normalizada) que caracteriza toda uma ordem quotidiana, a principal figura da brinca, o Palhaço/o Faz-Tudo, personifica a desordem, o caos, o diabo, a loucura, em suma, a ausência de ordem, de lei, de respeito, realizando ele, no decorrer de toda a dramatização, a inversão total dos valores veiculados pelos seus restantes companheiros, que fazem os possíveis e os impossíveis para o ignorar. Para eles, ele não existe...Deste modo, será legítimo afirmar que o Faz-Tudo põe tudo em causa, inclusive a própria brinca e o seu fundamento.

AS BRINCASDE ÉVORA EM 2014................................

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Por Rui Arimateiacolaboração António Bexiga-Identidades

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ELEMENTOS PRINCIPAIS DE UMA BRINCA

É exactamente por este emaranhado de situações, mais ou menos complexas, que só faz verdadeiro sentido encararmos a brinca no contexto mais amplo do próprio Carnaval, inserido no calendário das principais Festas Cíclicas (Agrárias) Anuais. Não o Carnaval domesticado, legitimado, vendido, bem educado, isto é, o Carnaval citadino e urbano, mas sim aquele tempo de festa, de jogo, onde a transgressão, a loucura, o imoral deveriam ter sido, em eras passadas, os únicos valores, ou melhor, anti-valores aceites num tempo e num espaço de renovação, de exaustão do velho e do gasto, para que o novo (ou renovado) pudesse emergir, ressuscitar, germinar com o aparecimento da Primavera. Daí o facto de se denominar, tradicionalmente, desde tempos imemoriais, de Entrudo (Entrada) esta época de caos e desordem que antecedia, paradigmaticamente, a génese da organização natural e humana.

Tradicionalmente, as Brincas eram constituídas somente por homens, travestidos, se necessário, para o desenrolar do fundamento, numa média de quinze a vinte: um mestre, dois ou três palhaços (os faz-tudos), meia dúzia de músicos, onde a bateria (bombo e caixa) e a concertina têm um papel fundamental, um porta-estandarte e os restantes figurantes para a execução/representação do fundamento.Convém clarificar que se denomina brinca o grupo de homens ou rapazes que se organiza anualmente (ciclicamente) para a construção e execução de uma dramatização popular durante a época festiva do Carnaval. No entanto, poderá igualmente entender-se por brinca toda a acção dramatizada (o fundamento), musicada (a contradança, a canção, etc.) e coreografada (as diferentes formações que têm lugar ao longo de toda a acção: as rodas, etc.) que esse grupo assume nas várias representações que realiza.

No que diz respeito ao fundamento, em termos formais é constituído por décimas de versos rimados. É a alma da brinca.O fundamento apresenta um enredo com princípio, meio e fim, podendo este focar diferentes realidades sócio-culturais e históricas. Diversificada poderá ser a temática desse enredo: episódios da Bíblia, da História de Portugal, da realidade social alentejana, da guerra, contos populares tradicionais, do comum quotidiano, entre outros.

Neste ano de 2014 só irá sair para a rua uma Brinca de Carnaval – a do Rancho Folclórico “Flor do Alto Alentejo” (Grupo dos Enganados), e esta irá apresentar-se por diversos locais do concelho de Évora, principalmente nas freguesias rurais e quintas ao redor de Évora. Irá também apresentar-se no Centro Histórico (Praça do Giraldo e Praça de Sertório) e no Hotel Convento do Espinheiro. Irá ainda participar no Festival Entrudanças, em Entradas/Castro Verde, evento cultural organizado pela Associação PédeXumbo.

O FUNDAMENTOFeito em décimas, estrofes de dez versos, é o “texto da peça”, a história da brinca.

O PALHAÇO

A alma da brinca, para quem a representa, é o fundamento; e para quem a presencia são os palhaços, segundo depoimento de Mestre de Brinca.É o Faz-Tudo. Serve de ponto, serve igualmente para tapar os enganos dos companheiros. A sua fala é de improviso. Tem uma função essencialmente desorganizadora e anomista na ordem dramática. É um provocador de situações absurdas, irracionais, cómicas...

O MESTRE

Tradicionalmente, é visto como uma autoridade assumida e reconhecida enquanto tal pelos restantes companheiros. Em princípio, terá recebido o testemunho de um mestre mais antigo.É, regra geral, o ensaiador. A sua função é mandar a música, orientar a brinca, explicar, apresentar e agradecer ao dono do lugar durante a estadia e representação do seu grupo nesse local. É o que responde ao despique em décimas, com outro mestre, se outra brinca se cruzar com a dele, se não chegarem a bom termo as necessárias negociações para esclarecer e definir qual brinca actuará em primeiro lugar em dado local.Possui gestos estereotipados que marcam o ritmo da música, através de movimentos mais os menos bruscos, mas ritmados e cadenciados, das mãos segurando, por vezes, fitas coloridas.Ao som de um apito, manda executar as várias marcações das contradanças e das outras movimentações coreográficas.

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A BANDEIRAA brinca reúne-se, por vezes, em redor de uma bandeira, mastro ou estandarte, às vezes ostentando a bandeira nacional e o nome da brinca, enfeitado artisticamente com armações diversas, papéis coloridos, fitas de seda, etc., dependendo a decoração, em última análise, do gosto e das possibilidades dos elementos constituintes do grupo.A bandeira é um factor de coesão do grupo e emblema da brinca, eixo-força do círculo da dramatização do fundamento.

ORNAMENTOS TRADICIONAIS

Os chapéus possuem uma armação de arame que suporta os ornamentos, que vão das rosas de papel colorido às fitas de seda de várias cores, e que se cruzam sobre o peito dos vários intervenientes da brinca.É claro que os palhaços possuem as vestimentas desregradas costumeiras. Por vezes até com adereços obscenos, que utilizam durante as brincadeiras. Eventualmente poderá a brinca sair com um guarda-roupa completo, de acordo com cada um dos personagens do fundamento.

INSTRUMENTOS MUSICAIS

Os instrumentos tradicionalmente utilizados pelas brincas são o bombo, a caixa, o acordeão e a concertina, a pandeireta, a guitarra, a ronca, os ferrinhos e as castanholas, variando de grupo para grupo, consoante os meios humanos que cada mestre consegue mobilizar para a sua brinca.Papel de grande importância tiveram as Associações com vocações artísticas e musicais, como era o caso da Escola dos Amadores de Música Eborense e da Sociedade Recreativa e Dramática Eborense, que há cinquenta anos atrás estavam sediadas, respectivamente, na Rua do Raimundo e no Pátio de S. Miguel. Estas Associações forneciam aos músicos populares participantes nas brincas instrumentos musicais diversos, mediante o pagamento de pequena taxa de aluguer.

ENSAIO DA CENSURA

É o ensaio geral, o tempo de fazer as correcções necessárias antes da estreia.Antes de sair pela primeira vez, e de acordo com a tradição, representa-se a brinca para os ansiãos que dão, ou não, o seu aval para o grupo se apresentar.Este ensaio, como o nome indica, tinha sobretudo importância em tempos passados. Era o “limar” dos eventuais excessos morais do fundamento.

EXEMPLO DA ESTRUTURA DE UMA BRINCA(Chegada ao local)FormaçãobateriaPedido de autorização ao dono do lugar, pelo MestreI ContradançaRoda com o Mestre ao centroApresentação e breve explicação do fundamentobateriaApresentação dos personagensbateriaDesenvolvimento do FundamentoII Fim do Fundamento

RODA COM O MESTRE AO CENTRODécima de agradecimento aos presentesPeditório de auxílio para as despesas efectuadasBrincadeira dos PalhaçosbateriaIII ValsabateriaDécima à BandeiraCanção em coro (sinopse do Fundamento)Agradecimento de despedidaFormaçãoContradança de despedidaDespedida e agradecimento ao dono do lugar

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OS FUNDAMENTOS DO SENHOR RAIMUNDO JOSÉ LOPES

Natural de Évora, onde nasceu na Travessa do Cavaco a 3 de Março de 1918, trabalhou até aos 22 anos de idade com o pai em tarefas do campo. Foi ainda aprendiz de sapateiro, trabalhou nas pedreiras a partir pedra com um marrão. Finalmente, aos 22 anos, empregou-se como cantoneiro na então J.A.E., onde permaneceu até atingir a idade da reforma.

Era à luz do candeeiro a petróleo que o Mestre Raimundo compunha os seus fundamentos, rabiscando nos seus papéis até altas horas da madrugada, enquanto os rapazes das quintas esperavam o fundamento para começarem os ensaios das suas brincas – há cinquenta anos atrás eram muitas as quintas do termo de Évora que representavam os seus fundamentos durante os dias do Entrudo. Nomes de alguns dos fundamentos passados para o papel pelo Mestre Raimundo, uns totalmente imaginados por ele, outros inspirados em algum livro, conto popular, filme ou peça de teatro:

Branca de Neve e os Sete Anões; O Bocage; A Fugitiva; A Princesa Helena; O Camões; A Princesa Sanguinária; D. Pedro I - O Justiceiro; Os Alcoólicos; A Rosa do Adro; Pedro Cem; O Corsário; O Grupo Sagrado; O Grupo das Aves Reais; João de Calais; O Grupo da Escravidão; As Encantadas; Giraldo Sem Pavor; O Lavrador; A Namoradeira; O Grupo Real; João Soldado; D. Inês de Castro; O Príncipe com Orelhas de Burro; (…).

O Sr. Raimundo tem grande importância para a compreensão e para a história das brincas e de Évora, por um lado pela abundância de material produzido – dezenas e dezenas de fundamentos – por outro, porque a sua intervenção poética veio recaracterizar a própria estrutura das brincas e dos fundamentos, conferindo-lhes um enredo baseado em histórias ou na História, complexificando o conjunto formado também pelas contradanças e pelas canções e décimas de apresentação e de despedida.

Os fundamentos que existiram anteriormente à actividade de escrita e de registo do Sr. Raimundo pertenceram a uma tradição eminentemente oral. Os fundamentos eram muitas vezes compostos e depois memorizados por todos sem recurso à escrita.É importante frisar a importância da tradição oral na produção dos enredos dos fundamentos. O Sr. Raimundo foi muito influenciado pelos contos populares tradicionais, sendo esta uma realidade instalada na sua maneira de ser e na vivência que faz deste mundo do maravilhoso nos poetas populares. Referia ele a certa altura, quando se encontrava a explicar um fundamento: Antigamente, em remotas eras, os reis fadavam os filhos… .

No dia 31 de Dezembro de 2003, na noite em que, tradicionalmente, durante o Baile de Ano Novo, os rapazes combinavam o compromisso de saírem com uma Brincadeira pelo Entrudo, deixou-nos o Mestre Raimundo.

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A MÚSICA DAS BRINCASBrinca do Grupo “Os Enganados”, Rancho Folclórico “Flor do Alto Alentejo”. Évora. 2014

As Brincas têm vários momentos musicais, com dois temas diferentes.- Contradança- Canção à Bandeira

ContradançaA contradança anuncia a brinca e acompanha a coreografia do desfile. Repete-se por diversas vezes durante o fundamento e marca também o final e a saída do grupo.A melodia que aqui se transcreve é tocada pelo Acordeão (possivelmente seria a Concertinadiatónica a tocá-la mas, com a chegada do Acordeão, o primeiro instrumento foi perdendo protagonismo).

Segundo Hugo Carrageta, acordeonista (37 anos), a melodia, aprendida sempre de ouvido com os tocadores mais velhos, “é sempre a mesma desde há muito muito tempo. Já no tempo do meu avô se tocava esta melodia”. Esta afirmação é confirmada pela Sr.ª Henriqueta que anda na casa dos 50’s e participa nas brincas desde menina, pela mão dos seus avós e pais.

Há também a percussão, ou Bateria, que marca o ritmo das coreografias do grupo.

Os instrumentos principais são: Bombo, Caixa, Pandeiro e Pandeireta. Quando existem, também os Pratos são usados*.Há algo de marcial nesta percussão que, por vezes, faz lembrar uma marcha militar, neste caso, comandada pelo mestre da brinca. A coreografia encenada pelo mestre, pé esquerdo sempre no tempo forte e fitas coloridas nas mãos (que fazem as vezes da batuta do maestro), dá o tempo e marca entradas e saídas.

* A utilização de instrumentos musicais depende da disponibilidade dos mesmos no seio do grupo. Referimos apenas os instrumento usados na Brinca “Os Enganados”. Outras Brincas existiram, não há muito tempo, que usavam o triângulo de metal, reco-recos e mesmo sarroncas (de cântaro de barro ou de folha), por exemplo. Ver neste artigo Instrumentos musicais em Elementos principais de uma brinca.

MELODIA DA CONTRADANÇA TOCADA POR HUGO CARRAGETAE ANDRÉ MANSOS EM ACORDEÃO.BRINCA DO RANCHO FOLCLÓRICO “FLOR DO ALTO ALENTEJO”. GRUPO “OS ENGANADOS”. ÉVORA, 2014.

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Melodia

Bateria

Transcrição: António BexigaRevisão da melodia: Celina da PiedadeRevisão da percussão: Luís SalgadoEdição final: Tiago TrigoPartitura completa: ver cancioneiro

Canção à BandeiraTocada e cantada quase no final do fundamento, agora em quadras e não em décimas, a canção à bandeira faz o resumo da história e dos seus personagens.A letra da música é criada pelo grupo e/ou pelo autor do fundamento. No caso da Brinca do Rancho Folclórico “Flor do Alto Alentejo”, que em 2014 assume o nome de “Grupo dos Enganados”, é Carmen Vizinha, autora do fundamento, quem coordena a escrita da canção.A melodia, sempre baseada em temas populares, é criada pelos músicos que todos os anos procuram “algo reconhecível pelo público e que encaixe na letra”, nas palavras de Hugo Carrageta, que acrescenta ainda “este ano misturámos um pouco de Quim Barreiros e do seu ‘mestre da culinária’ (também este baseado num tema popular) com um fado menor, e construímos a melodia a partir daí. Para o ano logo se vê”.

A REVISTA IDENTIDADES AGRADECE A TODOS OS ELEMENTOS DO GRUPO “OS ENGANADOS”, EM ESPECIAL À COORDENADORA E AUTORA DO FUNDAMENTO, CARMEN VIZINHA, AOS MÚSICOS HUGO CARRAGETA E ANDRÉ MANSOS E AO MESTRE JOSÉ MOCHO A DISPONIBILIDADE, E POR NOS DEIXAREM ASSISTIR AO ENSAIO, MESMO ANTES DO “ENSAIO DA CENSURA”.

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Brincas de EntrudoTradicional - Evora

Revista Identidades, nº 2

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Grupo de Brincas do Rancho Folclórico “Flor do Alto Alentejo”Fundamento: “Os Enganados” (autoria de Carmen Vizinha)Sinopse do Fundamento: a acção passa-se numa aldeia do Alentejo em que as relações humanas são caracterizadas por peripécias à volta de coscuvilhice, traições conjugais e dramas de faca e alguidar. “Não cobices o alheio” é a moral subjacente.25 ELEMENTOS (APROX.)

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FESTIVALENTRUDANÇASDO ALENTEJO PARA O MUNDO...........................................

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FESTIVALENTRUDANÇASDO ALENTEJO PARA O MUNDO

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...........................................O Festival Entrudanças nasceu em 2000, em contraposição ao Andanças. Tratava-se, nessa altura, de um festival de Inverno que ia animar o centro histórico de Évora, enquanto as Brincas marcavam a presença do Entrudo nos bairros à volta. Seguiu depois o seu caminho para Entradas, no concelho de Castro Verde, em 2003.

A uma programação que privilegia oficinas de danças do mundo e bailes, junta-se uma série de atividades que destacam a identidade alentejana: cante polifónico, viola campaniça, gastronomia, ou ainda descoberta da fauna e flora local.

No período que precede os dias de Carnaval, iniciam-se projetos em colaboração com os habitantes da vila e do concelho de forma a enraizar este festival na vida cultural local, e a investigar as práticas do Entrudo que decorrem naquela zona. O festival estende-se do Centro Recreativo ao coração da vila, com a criação do espaço Adega, a implantação da feira de artesanato na praça Zeca Afonso, atividades a decorrer na rua, na Biblioteca, na Igreja, ou ainda no recente Museu da Ruralidade, antigo Espaço da Leda.O Entrudanças integra, desta forma, uma das dimensões fundamentais do Entrudo: a circulação. De facto, antes de existirem os desfiles de crianças mascaradas, a circulação já era o mote, com os mastros móveis que permitiam à juventude entradense percorrer os montes, animados com as danças das fitas.

Por Sophie Coquelin-PédeXumbo

Contando com uma parceria forte entre a PédeXumbo, a Câmara Municipal de Castro Verde e a Junta de Freguesia de Entradas e, sobretudo, com uma colaboração intensa dos Entradenses e associações do concelho, o Entrudanças viu nascer, ao longo dos anos, novas formas de partilhar e viver a cultura alentejana. Relembramos as oficinas de danças alentejanas dinamizadas pelas Papoilas do Corvo e Pedro Mestre, os lanches comunitários animados pela Banda Filarmónica 1º de Janeiro ou ainda a Adega, onde ainda hoje o cante e os doces das Senhoras de Entradas encantam os participantes. A chave do sucesso do Entrudanças encontra-se no conjunto das suas atividades, que valorizam tanto as culturas de todo o mundo como a cultura alentejana. É este diálogo que faz nascer momentos espontâneos de cante alentejano ao lado de danças carnavalescas como a Murga... Um carnaval reinventado que mistura os imaginários, à imagem das crianças mascaradas de caretos, de pássaros do Campo Branco ou de entrouxados.

Mais do que falar de desritualização da sociedade contemporânea e do nosso afastamento dos ciclos agrários e/ou religiosos onde se insere o Entrudo, o Entrudanças pode ser encarado como uma nova forma de ritualidade, onde nos transformamos em cidadãos do mundo, numa performance coletiva e partilhada. A subversão aqui é a das fronteiras que se foram construindo nos últimos séculos entre culturas, nações, e até entre gerações.Da mesma forma que uma máscara esconde a identidade da pessoa e a libera, o Entrudanças afirma, confunde e suspende as identidades culturais.

Edição 2014: http://entrudancas2014.pedexumbo.com/pt/

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A Sociedade Portuguesa de autores [SPA] é uma cooperativa de responsabilidade limitada, fundada em 1925 e tem como principal missão a defesa e a gestão dos direitos autorais nas áreas da MÚSICA, LITERATURA, TEATRO, AUDIOVISUAL, ARTES PLÁSTICAS, PUBLICIDADE, ARQUITETURA, INFORMÁTICA, MULTIMÉDIA e JORNALISMO.

DÚVIDASMITOS

ESCLARECIMENTOS

A música é um dos principais eixos de atuação desta cooperativa, quer pelo número de autores e obras registadas, quer pela reprodução massiva das obras presentes no nosso dia-a-dia nas mais diversas situações.São frequentes as dúvidas de músicos e promotores relativamente à atuação da SPA. A Revista Identidades convidou um dos vice-presidentes da cooperativa (área da música) para responder a algumas dessas dúvidas. Fica aqui a conversa com Tó-Zé Brito, administrador da SPA. Identidades - Quais as principais vantagens que um músico, compositor e autor tem em se inscrever na SPA? Tó-Zé Brito - As principais vantagens de um qualquer autor se inscrever na SPA situam-se ao nível do apoio que a cooperativa lhe dá – jurídico, económico, social, etc… Repare-se que, por exemplo, para um autor musical ser-lhe-á impossível, por si só, efectuar as respectivas cobranças quando a sua obra é executada em dezenas ou centenas de sítios ao mesmo tempo. E entenda-se que estes sítios podem ser em Portugal ou no estrangeiro, um pouco por todo o mundo. A SPA, através dos contratos de reciprocidade que tem com as congéneres do mundo inteiro, cobra em Portugal os valores respeitantes às obras dos autores estrangeiros e exige àquelas que cobrem nos respectivos territórios os valores respeitantes às obras dos autores portugueses, que depois lhes entrega. Importa também referir o apoio social

(mutualista): quando um cooperador chega à idade da reforma, a SPA atribui-lhe um subsídio que tem em consideração a média dos melhores 10 anos de produção, que é vitalício e se transfere para o seu cônjuge quando ele morrer. Também atribui subsídio de funeral e apoio de emergência para fazer face a situações de grave e justificada carência económica (infelizmente cada vez mais requerido nos dias de hoje), ou por motivos de saúde. O apoio jurídico é gratuito e consiste na consultadoria, aconselhamento contratual e no acompanhamento de ações judiciais em casos de violação de direitos e no combate à pirataria. Há outro tipo de apoios como, por exemplo, para edições, lançamentos e divulgação de obras – quer nas suas instalações, quer na revista “Autores”, quer na comunicação social, nos vários programas em que a SPA tem espaço de antena, etc... Identidades - E um músico arranjador de temas tradicionais (do domínio público)? Tó-Zé Brito - Um arranjador de temas tradicionais, a partir do momento em que é autor do arranjo, passa a usufruir das mesmas regalias de qualquer outro autor. Identidades - Muitas vezes os autores são intérpretes e produtores. Faz sentido, nesse caso, pagarem direitos à SPA sendo que estão a pagar a si próprios? Tó-Zé Brito - Há que separar as águas: o autor é uma pessoa jurídica, o produtor é

outra. Se a SPA tratasse diferentemente este produtor tinha de o fazer para todos os outros, sob pena de violar as leis da concorrência. Identidades - Neste último caso, os direitos são pagos pela lotação total da sala sendo que, muitas das vezes, as salas não estão cheias. Isso não nos parece muito justo. Há alguma maneira de tornar esta situação viável para produções de autor de menores dimensões? Tó-Zé Brito - Há situações em que as tabelas de execução pública da SPA prevêem que o produtor possa optar por uma percentagem da receita de bilheteira, com um valor mínimo. Identidades - Uma boa parte dos músicos portugueses sobrevive a tocar justamente em salas e eventos de pequena dimensão. No contexto atual do país, considerando efetivamente todo o seu território, e não apenas os “grandes centros urbanos”, acontecem com alguma frequência situações em que é pedido uma declaração de renúncia ao direito de autor. Essa declaração é válida? Pode o autor renunciar dos direitos da sua obra em determinada situação? Tó-Zé Brito - Se o autor for membro da SPA não pode renunciar aos seus direitos, salvo com a concordância da cooperativa. É uma condição estatuária. Se não fosse assim, o autor renunciava naquilo que em determinado momento lhe era mais favorável

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e deixava as situações de grande dificuldade de cobrança para a SPA, como por exemplo, as cobranças de execução pública nos recônditos mais longínquos do país. O autor está na SPA e aceita as regras, ou não aceita e é livre de sair. Quando se inscreve adere livremente às regras que estão nos estatutos e tem de as cumprir. Identidades - Muitas vezes, pequenas produções que organizam eventos onde só se tocam temas tradicionais são obrigadas a pagar direitos de autor à SPA. Faz sentido esse pagamento? Para onde vai esse dinheiro? Tó-Zé Brito - Se os temas são tradicionais e não têm arranjos, ou versões de nenhum autor, não são devidos direitos de autor. Se têm, o dinheiro vai para estes autores. Identidades - Se uma associação, um pequeno bar, quiser organizar um evento em situação completamente legal junto da SPA, quais os passos a seguir? Tó-Zé Brito - Os passos a seguir por quem quer organizar um evento é dirigir-se ao representante local da SPA (todos os concelhos têm um representante; alguns municípios mais pequenos não têm representante, e o mesmo está num concelho vizinho), e solicitar que lhe seja passada uma autorização contra o pagamento dos direitos. A identificação e localização do representante da SPA encontra-se no site. Identidades - Quando um músico compositor e autor tem um vídeo da sua banda no Youtube também recebe direitos por isso? Tó-Zé Brito - Quando um autor tem uma sua obra no YouTube também recebe direitos por isso. A SPA está, correntemente, a negociar o contrato internacional com o YouTube. Identidades - Como é que a SPA sabe que músicas são tocadas em que concerto? E na rádio e televisão? Tó-Zé Brito - As músicas que são tocadas num concerto têm de constar do programa, que é obrigatório ser afixado nos espectáculos de música ao vivo (art.º 122.º do Código do Direito de Autor). Na rádio e na televisão estas fornecem à SPA os respectivos alinhamentos.

Identidades - Na edição de um CD é necessário pagar direitos de reprodução mecânica. No contexto atual em que cada vez mais os músicos são também editores, para além de todas as despesas que têm para gravar a sua música e pagar a edição propriamente dita, o facto de haver mais um pagamento não será uma dificuldade acrescida? Tó-Zé Brito - Esse pagamento destina-se a remunerar os autores das obras que constam dessas edições. Identidades - O mercado editorial tem vindo a mudar: cada vez mais se assiste a edições online, muitas delas caseiras, fruto de uma maior facilidade na aquisição de meios básicos de gravação. Neste caso, como se processa a relação com a SPA? Tó-Zé Brito - A relação com a SPA processa-se como nos outros casos, com a excepção de que não há suporte físico: o autor tem de comunicar/depositar a sua obra na SPA e esta cobra-lhe os direitos sempre que há utilização da mesma. Identidades - Muitos músicos recorrem a outras formas de registo e gestão do direito de autor sobre o seu trabalho, como é o caso da Creative Commons. Como vê a SPA esta situação? É possível o registo, em simultâneo, da mesma obra?

Tó-Zé Brito - O registo nos Creative Commons é incompatível com o registo na SPA, porquanto estes prevêem a utilização gratuita das obras. Qualquer autor, como outro qualquer profissional, é livre de trabalhar gratuitamente, mas esse não é o objecto estatutário da SPA, que existe precisamente para garantir que os autores são remunerados quando há uma qualquer utilização das suas obras. Se o autor registar a sua obra nos dois lados, está num deles a dizer que a sua utilização é gratuita, e no outro a mandar cobrar pela utilização. Isto seria uma incongruência. Identidades - Quais os contactos para esclarecimento de dúvidas da SPA? Tó-Zé Brito - O contacto na SPA para esclarecer quaisquer dúvidas é o departamento jurídico.

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Através deste guia pretendemos ajudar na elaboração e implementação de uma candidatura de uma instituição/associação ou indivíduos isolados aos programas financiados a nível nacional e internacional. Este guia não é exaustivo, salientando apenas pormenores e dicas para uma boa candidatura. TRABALHO PREPARATÓRIO

Antes de preencher um formulário de candidatura ou abrir uma proposta de financiamento é necessário ter em consideração vários aspectos:

1) Fazer um levantamento das necessidades da região/local; 2) Identificar o grupo-alvo de intervenção (crianças, adolescentes, adultos, idosos, formadores, etc.); 3) Saber responder ao seguinte: porquê, para quem, como, com quem, onde, sustentabilidade e avaliação.

Em primeiro lugar deve definir-se a importância do projecto, fazendo uma descrição detalhada das necessidades, ideias e seu contexto, de forma clara e sintética, devendo ter-se em conta o contexto regional, nacional e internacional do mesmo.Neste ponto, alerta-se para a diferença entre os conceitos de finalidade e objectivo.

O primeiro conceito deve ser esclarecido numa frase, de forma simples e clara, descrevendo-se o que se pretende fazer. O segundo, será a meta que se pretende alcançar durante a realização do projecto, que deverá basear-se no modelo internacional SMART (Specific; Measurable; Achievable; Realistic; Timed).

a) Especificidade: identificação da acção a realizar; b) Quantificação: determinação do modo de progressão do projecto; c) Resultado viável: o objectivo possível de alcançar; d) Realista: objectivos realistas, mediante as capacidades da instituição e tempo disponível; e) Tempo: determinação do tempo necessário para alcançar o objectivo;

BREVE GUIA DE CANDIDATURA A PROGRAMAS FINANCIADOS

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POR JORGE CARRULO, PSICÓLOGOCOLABORAÇÃO SARA GUIA DE ABREU, PROFESSORA

Objectivos: estes podem dividir-se entre gerais e específicos, ainda que relacionados entre si.Público-alvo: deve definir-se o directo (quem vai usufruir da implementação do projecto) e o indirecto (quem poderá beneficiar do mesmo).Parceiros: definir os seus perfis e a necessidade dos mesmos para o projecto, atentando para o facto de que podem complementar o projecto, com a sua experiência, conhecimento, como mais-valia nas áreas de intervenção propostas.Local: definir as vantagens da localização para a entidade financiadora.Resultados: compreendem os objectivos gerais e consistem nas mudanças que o projecto pretende estimular e seu impacto no público-alvo: produtos produzidos, concretos e tangíveis como, por exemplo, acções de formação, relatórios, manuais, livros, filmes, álbuns, etc.Sustentabilidade do projecto: definição de formas de continuação e disseminação do projecto, incluindo formas de auto financiamento.Avaliação: Interna – definição da monitorização do projecto; Externa – parceria com instituição de qualidade reconhecida e de carácter idóneo, que definirá a sua própria avaliação.Projecção: deve ter-se em conta o projecto no futuro e sua multidisciplinaridade (e.g. Formação em Danças Europeias: promove a inclusão social e a transmissão do património imaterial), salientando igualmente o carácter inovador deste projecto, por comparação ao que já existe.Comunicação: bem definida para cada alvo.

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Alerta-se para a importância de o projecto e seus objectivos estarem relacionados com as seguintes prioridades transversais (nível nacional e europeu): Desenvolvimento Sustentável (dimensão Ambiental); Igualdade de Género; Emprego; Integração de pessoas com deficiência e; Ano Europeu (a União Europeia define para cada ano uma área de intervenção: e.g. 2012 “Ano Europeu do Envelhecimento Activo e da Solidariedade entre Gerações”, 2013 “Ano Europeu dos Cidadãos” e 2014 “Ano Europeu para a conciliação da vida profissional e vida familiar” - proposta).

ENTIDADE PROMOTORA OU PARCEIRO PRINCIPAL (MAIN PARTNER OU MAIN BENEFICIARY OU COORDENATOR, SEGUNDO A UNIÃO EUROPEIA)

É a entidade que tem como obrigação compreender previamente se possui recursos humanos e financeiros para implementar o projecto. Para cada projecto deve haver um coordenador que possui toda a responsabilidade legal, inclusivamente dos parceiros do projecto. Este coordenador deve ser uma pessoa idónea que possua competências de liderança e de gestão. Deve manter uma articulação muito próxima e continuada com os parceiros. Deve possuir uma boa capacidade de administração e de redacção de relatórios, documentos e informações solicitadas. Deve ter boas capacidades de diálogo/comunicação formal e informal, pois é o único que tem contacto com a entidade financiadora e com os parceiros. Na candidatura deve constar em anexo o seu Curriculum Vitae (segundo o modelo de Europass) e todos os dados profissionais devem constar nos campos dos formulários.Uma das tarefas do coordenador é garantir que se aplique as Regras de Informação e Publicidade exigidas pela UE, ex.: na colocação dos logótipos (do Programa, se existir, e da UE), nos documentos produzidos.

Convém ainda seleccionar as entidades parceiras antes de avançar com a candidatura do projecto ou com a sua divulgação. É necessário obter informações detalhadas (quem são os responsáveis, a sua área de intervenção, credibilidade, etc.). Os parceiros devem ser escolhidos segundo os seguintes critérios: competências de comunicação, isto é, capacidade de saber utilizar uma das línguas europeias; competências técnicas: possuir os recursos humanos necessários para colaborar a nível técnico no projecto; saber gerir projectos internacionais; possuir motivação e envolvimento a nível organizacional; identificar o interlocutor regular em cada parceiro, com o qual a entidade promotora possa contactar; explicar os papéis e funções da entidade promotora/líder de cada parceiro e o papel do coordenador.

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VÀs entidades que têm interesse e motivação em participar é necessário enviar uma apresentação do projecto propondo o que se pretende e qual o seu perfil. Os parceiros podem ser identificados e seleccionados da seguinte forma: 1) Procurar através da ferramenta “Procura de Parceiros” nas bases de dados nacionais ou europeias disponibilizadas; 2) Consultar a Base de Dados de Entidades com projectos co-financiados (em suporte pdf) e que estão disponíveis em alguns Programas de Acção Comunitária; 3) Consultar Information Days (Dias de Informação dos Programas) da Comissão Europeia, que tem como objectivo apresentar os programas e planos de trabalho do corrente ano; 4) Consultar as Redes Europeias de Empresas e as Agências Nacionais dos Programas; 5) Contactar outras Redes Europeias; 6) Consultar Redes nacionais (públicas ou privadas) como, por exemplo, a Fundação Calouste Gulbenkian ou Fundação Aga Khan.

Depois de seleccionar e contactar os parceiros que mais se adequam ao projecto é necessário preparar vários tipos de documentos que possuam informação sobre a gestão financeira e administrativa, de forma a evitar futuras dificuldades na gestão do projecto. 1) Carta de intenções: que deve incluir informações legais sobre a entidade parceira; autorização para que o interlocutor seja a entidade coordenadora/promotora; assinatura legal da instituição parceira; 2) Carta de compromisso de parcerias: que deve incluir a relação entre instituição parceira e entidade coordenadora (assinada pelos representantes legais); definição clara e precisa relativamente à contribuição financeira de cada instituição parceira; designação de como devem ser efectuados os eventuais pagamentos; identificação de algumas entidades regionais ou nacionais que poderão participar com cedência de espaços, de alocação de técnicos, empréstimo de equipamentos; salvaguardar os Direitos de Propriedade Intelectual;

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PREENCHIMENTO DOS FORMULÁRIOS

Ao preencher todos os formulários deve ter em mente um conjunto de aspectos importantes:

1) todas as questões/campos devem ser preenchidos; 2) ser breve e não escrever mais do que as linhas ou caracteres permitidos; 3) não acrescentar informação desnecessária; usar as fontes correctas; preencher o formulário na língua pedida; 4) a escrita e as ideias têm que ser claras e não ambíguas; 5) usar frases curtas, com uma estrutura simples e clara; 6) no final o projecto tem que ser lido por duas pessoas com bons conhecimentos de português ou na língua solicitada; 7) mencionar que o projecto engloba sempre a escala da UE (devem mencionar e justificar que o projecto é de enorme importância no contexto europeu); 8) escrever em nome dos parceiros e evitar falar em nome da entidade coordenadora;

ORÇAMENTO

Deve-se ter em consideração a sua coerência, se está de acordo com abertura do concurso, se está pronto a executar (abrir uma conta bancária para o projecto). Importa ter em atenção as despesas e custos elegíveis (estas estão definidas nos guiões dos formulários e dos programas), ter rigor na aplicação da estrutura de orçamento definida no formulário, haver coerência nos cálculos das despesas e dos custos directos (recursos humanos, viagens e ajudas de custo, equipamentos, disseminação da informação/promoção dos resultados, serviços e sub contratação, auditorias, abertura da conta bancária para o projecto, etc.) e indirectos (deve aplicar-se uma percentagem para a electricidade e telefone, material de desgaste rápido, etc.). Atenção: para os custos e despesas directas é necessário reter os comprovativos e facturas.

ORGANIZAÇÃO DO PROJECTO

A primeira coisa a ter em atenção é que as acções ou tarefas propostas têm que estar relacionadas com os objectivos e devem ser concretizáveis, possuir fundamento prático-científico (determinando a estratégia de intervenção utilizada que foi comprovada empiricamente e que se revelou eficaz na população-alvo), apresentar a duração da acção, quem é a população-alvo, em que ocasião vai decorrer e quais os recursos financeiros, humanos e equipamentos que vão ser precisos. Em certas acções são os parceiros que vão realizá-la. É necessário clarificar qual a responsabilidade do parceiro.Algumas acções ou tarefas envolvem a produção de materiais, elaboração de manuais, realização de eventos públicos, artigos e conferências de imprensa, newsletters, filmes, vídeos, exposições, formações de técnicos, apoio à divulgação, etc., etc.

Na formalização da candidatura devem constar um conjunto de documentos importantes, tais como, formulário da candidatura e formulário do orçamento, situação financeira da entidade coordenadora (certificada pelo banco), estatutos e relatórios financeiros, cartas de intenção e de compromisso dos parceiros, declaração de co-financiamento, e CV (Modelo Europass) de todos os técnicos que vão trabalhar em cada acção-chave, bem como do coordenador da entidade, director do projecto e outros técnicos.

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INFORMAÇÕES IMPORTANTES NAS ABERTURAS DE CANDIDATURAS

É necessário ter em consideração um conjunto de informações que estejam disponíveis na abertura de concurso, que podem ser efectuadas através de uma simples check-list:

População-alvo (directa e indirecta). Quem, quantos.

Acções (elegíveis), quantas e quais.

Financiamento disponível

Montante global e percentagem de financiamento

Cronologia (prazos de entrega do projecto; duração do projecto)

Procedimentos para a apresentação e entrega do projecto (por net, correio, etc.)

Pontos de contacto nacionais e regionais, agências nacionais, helpdesk de cadaprograma (telefone, email, correio, fax, etc.

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AVALIAÇÃO GERAL DO PROJECTO

Por último, aconselhamos que o projecto final seja avaliado por 3 indivíduos cegos a este (que não conheçam o projecto). Estes indivíduos devem ser de reconhecida capacidade na área de intervenção proposta, devem dominar a língua utilizada (podem escrever em português, pedir avaliação do projecto e depois traduzir para a língua solicitada), e devem possuir uma capacidade de análise acutilante. Sugere-se que, ao pedir a avaliação do projecto por estes indivíduos, estes preencham um exemplo de um formulário:

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Os objectivos são claros e estão relacionados com os objectivos do programa As acções estão relacionados com os objectivos A população-alvo está identificada

Os recursos (técnicos, financeiros e equipamentos) estão identificados e estão relacionadas com as acções Os parceiros estão identificados, bem como o seu perfil,o seu papel, a sua contribuição, etc.

Os requisitos relativos à transnacionalidade do projectoestão presentes

Qualidade da intervenção e inovação É uma mais-valia a UE e contribui para as políticas da UE É um projecto sustentável

A metodologia de avaliação está definida A equipa técnica está identificada e possuem ascompetências pretendidas

Existe viabilidade financeira (justificação)

Estão identificados os resultados esperados

Identificação do cronograma de actividades e acções

BIBLIOGRAFIA E SÍTIOS DA INTERNET CONSULTADOS Fundação Ciência e Tecnologia (2013).Guião para elaboração e submissão de propostas de projetos de IC&DT;

Enikö Patkós (2008). A Short Guide to EU Grants for Science Communication. CAPjournal,nº. 2;European Commission Directorate-General Home Affairs (s.d.). European Return Fund 2008-20131: community actions guide for applicants. European Union: Office for Official Publications of the European Communities (2012). Beginners’ Guide to EU Funding. Overview of the financial rules and funding opportunities 2007–13.

Pontosfracos

Pontosfortes

Sugestões para maximizar os pontos fracos

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https://www.salto-youth.net/tools/otlas-partner-finding/http://ec.europa.eu/agriculture/rur/leader2/rural-pt/euro/p9-9.htmhttp://www.gepac.gov.pt/menu-principal/procura-de-parceiros.aspxhttp://europa.eu/legislation_summaries/education_training_youth/cooperation_with_third_countries/index_pt.htmhttps://webgate.ec.europa.eu/fmi/scic/INFODAYS2013/start.phphttp://ec.europa.eu/research/industrial_technologies/ppp-in-research_en.htmlhttp://ec.europa.eu/enterprise/dg/network/index_pt.htmhttp://www.proalv.pt/wordpress/http://www.welcomeurope.com/http://www.esn-eu.org/home/index.html

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NOTAS SOBRE FINANCIAMENTO DE PROJETOS DE MÚSICA DE RAIZ E

PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIALPOR PAULO PEREIRA, MÚSICO E BIÓLOGO

Estas notas não pretendem ser exaustivas, mas apenas aflorar um pouco as diferentes possibilidades de financiar projetos culturais e artísticos. Os projetos culturais podem ser financiados pelos mais diversos organismos e programas, podendo ter financiadores tanto à escala continental, como à escala local. Da Europa, uma parte dos fundos tem como destinatários os agentes culturais, como é o caso da Europa Criativa, do Programa Cultura (com projetos na área da música de raiz e património imaterial como o Oralidades, o Ocarina e o FolkMus, previamente apresentados no Identidades #1); mais indiretamente, o pacote destinado a apoiar o mundo rural - PRODER -, continha a Medida 3.2 (concretamente a ação Conservação e Valorização do Património Rural) e a Medida 3.5 (sendo de realçar a sua componente de animação), que oferecia algumas das possibilidades de financiamento mais interessantes para a valorização do nosso património cultural imaterial; é previsível a continuidade destes apoios no próximo quadro comunitário de apoio. À escala nacional, a dgArtes é a entidade que atribui regularmente financiamento aos agentes culturais, através dos apoios pontuais, bianuais, quadrianuais, tripartidos, apoio à internacionalização, e o programa mais recente, pegada cultural.

Entre as entidades apoiadas, encontram-se a D’Orfeu, a PédeXumbo e o Coletivo Identidades.

Regionalmente, o QREN é a ferramenta que pode financiar projetos culturais, nomeadamente através do seu “programa operacional temático valorização do território” onde, por exemplo, a PédeXumbo conseguiu financiamento para o renovado Festival Andanças em Castelo de Vide. Localmente os municípios são os grandes financiadores dos agentes culturais, através de apoios concedidos em espécies e em género, e de uma programação regular que culmina nas festas municipais. As fundações, com destaque para a Fundação Calouste Gulbenkian, são também importantes financiadoras de projetos culturais, abrindo concursos regularmente para a atribuição de apoios. Ainda na esfera da iniciativa privada, as empresas e associações são os principais agentes responsáveis pelos festivais que acontecem um pouco por todo o país. Neste caso, as empresas podem ser mecenas ou dinamizadoras dos eventos. Finalmente, sendo um fenómeno recente, temos o crowdfunding que, traduzido à letra, significa financiamento coletivo.

O crowdfunding é uma forma de financiamento de projetos de interesse coletivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral, pessoas interessadas na iniciativa. A PPL, Massive Mov e a Redebiz são exemplos de plataformas de crowdfunding portuguesas, com projetos na área da cultura apoiados com sucesso, como o CD dos POP e dos Blasted Mechanism, assim como projetos de inovação na construção de instrumentos, como o Didgeridoo (Rodrigo Viterbo) e gaita de fole eletrónica (Trino). Na área da música, esta ferramenta é muito interessante porque corresponde ao financiamento adiantado para a edição de CD’s ou construção de instrumentos, sendo estes as recompensas, por excelência, dos investidores. Assim, da escala continental à individual, todas as prestações são importantes, e são elas que permitem inovar e sustentar as indústrias criativas emergentes, como é o caso da nossa música de raiz nas suas múltiplas manifestações.

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POR DANIEL CATARINO, CABEÇÃO - CAPOTE MÚSICA

A ideia de começar uma editora está longe de ser uma proeza heróica, muito menos quando é um artista a criá-la para editar o seu próprio trabalho. Inicialmente pode até ser mau sinal, tanto para o artista como para o panorama editorial. Para o artista significa que o seu trabalho não mereceu atenção por parte das editoras (o cenário mais habitual), ou então que não lhe foi reconhecido valor de mercado suficiente para um investimento. Para o panorama editorial significa que não há abertura nem disponibilidade suficientes para abranger novos artistas e novas perspectivas musicais.Para o artista persistente que acredita na qualidade do seu trabalho, a ausência de respostas ou a rejeição não representam mais que uma de inúmeras barreiras a ultrapassar neste percurso difícil, e a criação da sua própria editora é um passo óbvio e natural. Até porque a história da música está repleta de episódios que relatam como artistas rejeitados pelo mercado criaram novos modelos de edição, que acabam por ultrapassar os estabelecidos tanto em vendas como em impacto popular e mediático, abrindo portas a outros artistas que seriam também enjeitados.

A Capote Música foi criada com o mínimo indispensável – um conceito forte: uma enorme crença na

qualidade do produto, aliada a bons meios humanos e escassos recursos monetários. A primeira edição acontece no início de 2012, com o single de apresentação do Bicho do Mato. Cem fotocópias a preto e branco, recortadas e coladas, com os discos gravados nas casas dos membros da banda. Vendidos a baixo preço, rapidamente se esgotaram duas edições de cem discos, e tanto a Capote Música como o Bicho do Mato davam o pontapé inicial nas suas carreiras. Em 2013, o trabalho da editora dá novos passos com a edição do meu EP “Ao Vivo”, bem como do EP “Menina Vitória” dos Uaninauei, e abrimos as portas a artistas fora do núcleo organizacional da editora com o disco “Howling Grace”, dos portuenses Gesso, num processo que continuará muito em breve com “O Amor e Outros Azares”, o segundo disco dos Prana.Uma editora independente tem de ser uma casa, um espaço onde os artistas sintam que pertencem e onde o seu trabalho é prezado. Tem de ser um ponto de união em que o protagonismo, a dedicação e o trabalho são partilhados e, acima de tudo, tem de provar continuamente a sua relevância e a sua frescura de ideias. À medida que o trabalho e os seus frutos vão alcançando novos horizontes e quebrando barreiras, a frustração inicial desaparece, os enjeitados passam a ser aceites, e a vontade que fica não é

provar o erro de quem nos rejeitou, mas sim superar o nosso próprio trabalho a cada novo passo. É nesse caminho que uma editora consegue provar a sua viabilidade, encontrar a sua subsistência e abrir portas a outros artistas de valor que, de outra forma, ficariam isolados na sala de ensaios ou espalhados em inúmeras edições de autor, mais facilmente sujeitas a perderem-se no éter desta era de rapidez e falta de oportunidade.

Com a edição no final de 2013 de “Songs From The Attic Window”, do meu projecto Oceansea, a Capote Música fecha um ano em que os artistas do nosso catálogo têm rotação nas rádios nacionais e locais, com alguns dos nossos discos a figurarem nos tops de melhores álbuns nacionais e inúmeras participações em eventos de alta qualidade: a concretização do sonho de qualquer editora que começa do zero, apenas munida da pretensão de que há sempre espaço para a qualidade, mesmo em tempos difíceis. Em 2014 esperam-se muitas outras edições, a começar com os Prana e continuando com os Uaninauei, sempre com os ouvidos abertos a novas possibilidades, e a batalha para provar que a Capote Música merece a sua independência como editora.

www.facebook.com/capotemusica

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CAPOTE MÚSICA:EDITORA INDEPENDENTE

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I D E N T I D A D E S S O N O R A S E P E R F O R M A T I V A S P O R Z E P SO QUE TOCAM OS MÚSICOS?PORQUE QUEREMOS SABER COMO FAZEM AO VIVO, A PARTIR DE AGORA, A REVISTA IDENTIDADES IRÁ PERGUNTAR AOS MÚSICOS QUE INSTRUMENTOS TOCAM, COMO OS AFINAM, COMO OS AMPLIFICAM E QUE MÁQUINAS UTILIZAM PARA CHEGAREM À SUA MARCA DE IDENTIDADE: “O SEU SOM”.

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BANDA UXU KALHUSTOUR EXTRAVAGANTE

2012/2013

André Lourenço: Teclado, Melódica, Coros Teclado Nord Stage revision b 76Melódica (de momento uma Hohner Student)Ligação ao PA: 2 Di Boxes1 mic: SM 58

António Bexiga: Guitarras, Viola Campaniça, Coros Guitarra eléctrica Fender Stratocaster Mac Book c/ Guitar RigRig Kontrol 3Ligação ao PA: 2 DI Boxes Guitarra semi-acústica Taylor 314ce Pedais: Boss TU II, Jim Dunlop Cry Baby e MXR ZW-44Amp: Roland AC 30Ligação ao PA: 2x XLR directos do amp. L + R Viola Campaniça JP com pickup Fishman Prefix ProBlend (afinação dó: 1ª ré, 2.ª si, 3.ª sol, 4.ª dó, 5.ª sol)Ligação ao PA: 1 DI Box

Joana Margaça: Voz, Loops TC Helicon Voice Live Touch 2Shure 87a

Eddy Slap: Baixo Eléctrico, Coros Le Fay Basses (5 strings headless Herr Schwarz Model)JP Custom Basses (4 strings headless Eddy Slap Model)Steinberger Basses (5 Strings headless Sinapse Model)Pedais: Boss GT-10BAmp: Warwick CCL 250W 1st sériesLigação ao PA: 1 DI Box

Luís Salgado: Bateria e percussão Bateria, Pearl Masterworks Timbalões: 8, 10 e 14Tarola: 14Bombo: 22Pratos: sabian, Zildjan e AnatolianDarabukablocos Paulo Pereira: Flauta transversal, Flauta Barroca, Travesso de cana, Flauta de 3 furos, Rauschpfeifen, Coros Ligação ao PA: mics AT 350 para flauta transversal e RauschpfeifenSM 58 para flauta barroca, travesso de cana e flauta de 3 furos

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André Lourenço - Bem, não sei se tenho um “som”. Se o tenho, apareceu com a gravação do último álbum da banda: “Extravagante”. Foi a primeira ocasião que tive para gravar com calma utilizando o Nord, que só não tira cafés… Com o teclado como ponto de partida e a maior parte das ideias musicais definidas, foi só andar à procura (com a companhia indispensável do Marco Jung, nosso produtor) do som ideal.Desde aí, tenho explorado aos poucos algumas das outras potencialidades do teclado, ao mesmo tempo que tento sempre ouvir coisas novas e incorporá-las nas pequenas coisas (tanto a nível de estilo, como a nível sonoro, por exemplo, através do uso de diferentes efeitos ou sobreposição de várias camadas de sons).

António Bexiga - Acho que nunca vou chegar a um som fixo. Passo a vida a tentar novas combinações e a ser surpreendido por elas.Para a guitarra eléctrica, depois de muitos anos a carregar amplificadores (que não me davam o “meu” som, também por inexperiência minha, possivelmente), com a gravação de “Extravagante” e na eminência de não conseguir adquirir um amplificador, testámos em estúdio o Guitar Rig e ficámos satisfeitos com o resultado. Com a ajuda preciosa do Marco Jung, construímos os sons base que usamos ao vivo. O Software tem a vantagem de possibilitar muitas combinações diferentes e de podermos fazer uso de inúmeros pedais virtuais com um som muito aproximado do real, mas por um preço bem mais económico. Tem ainda a vantagem de ocupar menos espaço nas carrinhas e pesar menos. A desvantagem é basicamente a de nunca saberes como vai soar, a menos que tenhas umas colunas ou amplificador fixo, porque os PA’s são diferentes, as monições são diferentes. Tens de fazer pequenos ajustes em cada concerto. Agora quero voltar aos amplificadores porque tenho saudades...Para a guitarra folk, por um lado passou pela escolha da guitarra e isso é uma questão de gosto - eu gosto do som da Taylor. Comprei a que (não) podia na altura e fui acrescentando pedais, com a ajuda do Zeps, que já tinha experiência na utilização destas guitarras. A combinação com o amplificador, embora não seja a ideal, é bastante satisfatória e em conta. A Viola Campaniça semi-acústica foi a opção que me pareceu mais adequada ao contexto de grandes palcos. Tive alguma dificuldade em encontrar uma viola campaniça que soasse bem cromaticamente, com afinação minimamente segura, e esta foi a melhor opção. O pickup dá algum trabalho para fazer soar, mas é muito fiável quando percebes a combinação certa para ti. Em palcos mais pequenos uso uma outra campaniça, também JP, modelo Ria Formosa #1, com pickup ou mic, dependendo do PA.

Joana Margaça - Não consigo dizer que cheguei definitivamente ao meu “som”, ando em constante procura de novas possibilidades e novas maneiras de interpretação e claro, evoluir em termos técnicos. Passei por um longo período de conhecimento do meu timbre e de o aceitar enquanto sendo o meu (semelhantes perceberão do que falo).O processador que uso auxilia-me nessa procura; é um bom veículo de experimentação, por agora. Veremos no futuro o que se seguirá!

Eddy Slap - O meu som deriva da combinação da técnica que fui desenvolvendo ao longo dos anos com as adaptações que faço aos meus instrumentos no que respeita às medidas das cordas que uso e a alterações nos pickups. Uso cordas mais finas do que as medidas ditas standard do baixista comum. Em relação aos pickups altero sempre a secção dos fios que os ligam ao circuito electrónico, aumentando-a e conseguindo desta forma uma instabilidade de frequências devido ao excesso de captação de cada pickup. Os dois pickups que uso passam então a ter conflitos de magnetismo criando inversões de fase que acabam por criar um efeito de CORUS natural. Tudo isto, mas principalmente a maneira como “ataco” as cordas com os meus dedos fizeram do meu som a minha identidade musical.

Luís Salgado - A configuração do meu set está baseada na procura do som ideal para Uxu Kalhus, que tem como ponto chave o equilíbrio entre o som encorpado e a versatilidade.Com esta configuração consigo alcançar exactamente o pretendido: tenho no bombo de 22 e no timbalão de 14 o som encorpado que preciso, e no restante set a versatilidade necessária para toda a mescla de influências musicais que Uxu Kalhus usam.

Paulo Pereira - O meu som começou a delinear-se na Igreja dos Olivais Sul, com 13 anos de idade. A acústica natural da nave da Igreja ficou para sempre associada ao meu ideal sonoro, onde não é necessário nem monição, nem microfones, nem efeitos. Depois, demorei cerca de 20 anos a obter a técnica suficiente de respiração e articulação para ter um som acústico que me agradasse. No caso de necessitar de amplificação, a coisa requer ainda de mais uns acessórios. As flautas são instrumentos que furam bem pelo que, quando passamos à amplificação convencional, basta termos microfones simples: um SM58 para as flautas de bisel, que permite jogar com as dinâmicas e assim conseguir afinar nos agudos (afasto-me neste caso do micro), um ATM à saída da embocadura para a transversal, que privilegia a mobilidade. O instrumento de palheta dupla que toco (rauschpfeife), carinhosamente chamado de pato, é amplificado com um atm de pinça na saída da campânula, alinhando o micro com a coluna de som acima dos orifícios dos dedos. Uso na totalidade 3 linhas, normalmente com um cheirinho de efeito e com monição pouco potente, para ter o tal ambiente de catedral que me dá um certo conforto. A afinação é feita muito de ouvido, ajustando o diafragma (pressão do ar) e o comprimento do tubo às condições ambientes (os meus instrumentos são bastante sensíveis à temperatura e à humidade). Em caso de emergência tenho um condicionador micro-climatológico pessoal (vulgar secador de cabelo) que permite alterar as condições atmosféricas na região dos instrumentos.

COMO CHEGASTE AO TEU SOM?

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BANDACHARANGA

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Francisco Gedeão (Rui Aires):Pandeireta, Pandeiro quadrado de Peñaparda, Tamboril galego, Sintetizador, Controladores Midi para Looper Ableton LiveControladores Midi para controlar efeitos Ligação ao PA: Sempre que possível caixa e pandeiro com micro condensador de pinça (tipo AKG C-518 M) para o percussionista ter o máximo de mobilidade. Não sendo possível, um micro dinâmico tipo SM57 faz um bom trabalho. Alberto Baltazar (André Neto):Violino com cordas de viola (Dó abaixo do dó central, em vez de Sol abaixo do dó central), Controladores Midi para disparar samples e Looper Ableton Live Ligação ao PA: O violino tem um pickup piezzo (de contacto) ligado a uma entrada da placa de som, com pré-amplificador de instrumento. Quim Ezequiel (João Cleto):Gaita galega em DóM, Gaita transmontana em Sibm, Sintetizador Ligação ao PA: Normalmente as Gaitas com micro dinâmico no ponteiro e micro condensador (de pinça) no ronco para permitir mais mobilidade ao gaiteiro.

Cadeia de efeitos: Os sinais do pandeiro e violino e voz principal antes de irem à mesa FOH passam pelo nosso sistema digital: placa de som externa com pré amplificadores. Daí passam por um software - Ableton LIVE - onde são processados com efeitos de vários tipos todos eles virtuais (não usamos efeitos de hardware): - A voz passa por um looper onde se fazem camadas sucessivas + filtros de frequências + distorção + beat repeater - O pandeiro passa por um looper para fazer camadas sucessivas e libertar o percussionista para tocar outras percussões em simultâneo- O violino passa por um EQ, compressor, distorção + looper para fazer pequenas “orquestras”- Da placa de som saem, por vias separadas, todos estes instrumentos juntamente com os loops, samples e sintetizadores que estão a ser lançados pelos músicos através de controladores MIDI- Na mesa FOH deixamos ao critério do nosso técnico as quantidades de reverb e delay adequadas ao local

Voz: fazendo muitas experiências com diferentes distorções virtuais disponíveis no programa que usamos, e também com filtros de frequências que podem ser manipulados ao vivo.Os instrumentos de percussão que tocamos são escolhidos à partida pelo som característico que têm, sendo determinantes para o conjunto do nosso som final, assim como as gaitas e o violino. Violino: A abordagem é trabalhar com o que existe. Como o pickup tem sérias limitações aproveitam-se os recursos de forma a não procurar o impossível. O que se tenta é um som natural, tanto com o arco como em pizzicato. Procura-se, também, que o som natural seja a melhor matéria prima possível para virar o som do avesso, como no caso em que se tenta transformar o violino na stratocaster do Hendrix. Gaitas: Parte do reportório e articulação está marcadamente relacionada com uso corrente do instrumento e inspiração de ornamentação baseada em estilos de gaiteiros mais antigos. As melodias, ornamentos e articulação são também adaptadas tendo em conta a “cama eletrónica” e as harmonizações existentes em cada canção procurando um todo consistente. O som geral da Charanga é muito intuitivo e tem que ver com a história do grupo… que começou por ser fundado por pessoas muito ligadas às sonoridades da electrónica experimental e de “dança” (em particular do breakbeat e suas ramificações) introduzindo sonoridades, melodias e recursos mais comummente associados aos instrumentos acústicos e ambiente da música ibérica. A investigação e recursos existentes sobre música portuguesa são também essenciais; de destacar os trabalhos de notáveis músicos, historiadores e investigadores, como Michel Giacometti, José Alberto Sardinha, Fernando Lopes Graça, Jorge Freitas Branco, Ernesto Veiga de Oliveira, entre outros. Depois fomos afinando e equilibrando o som para que os instrumentos acústicos se integrassem bem com as programações digitais…

COMO CHEGASTE AO TEU SOM?

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PORDANIELPEREIRAEJÚL IOPEREIRA

. . .ETU?JÁÉSSÓCIO?

A S S O C I A Ç Ã O M U S E U C A V A Q U I N H O

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O historiador João Luís Oliva escreve a seguinte introdução, no recém-lançado CD-livro “Cavaquinho.pt” de Júlio Pereira: “Que razões para um ancestral, pequeno e singelo – quase rudimentar – instrumento tradicional de quatro cordas ser hoje, numa escala global, personagem relevante de expressões artísticas contemporâneas? É que, de facto, num mundo de músicas e de músicas do mundo, a força que têm o Brasil ou Cabo-Verde é inseparável da presença acústica do cavaquinho; e o americano ukulele do Havai, neto migrante do tetracórdio português (…), é actual protagonista de um poderoso movimento musical no Mundo, sem que o seu vetusto e sempre cantante avô, o cavaquinho minhoto, deixe de ser tocado no noroeste português de forma única, irrepetível em qualquer outro instrumento de corda. O que aqui se escreve pretende, através de um conjunto de notas e referências, lançar um olhar sobre esta singularidade, percorrendo e comentando as voltas históricas, geográficas, sociais e estéticas do cavaquinho. Uma resposta à questão que relaciona a tradição com a contemporaneidade, confrontando o antigo com o moderno, falando de diálogos e incomunicabilidades, de convergências e conflitos. Lance-se, então, um olhar às andanças do cavaquinho, com a certeza de que, mesmo quando se fala do passado, é o presente que nos interessa e mobiliza”.

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A Associação Cultural e Museu Cavaquinho foi constituída no dia 26 de Julho de 2013 e tem como fim documentar, preservar e promover a história e a prática do cavaquinho. Acima de tudo, o seu objectivo é criar melhores instrumentos, melhores músicos e fazer com que este nosso pequeno grande instrumento, que insiste em resistir ao longo de séculos, tenha o tratamento e o lugar que, quanto a nós, merece e lhe é devido.Esta associação recém-criada pretende recolher todo o tipo de documentos, publicações, relatos, partituras, iconografia e recolhas audiovisuais, inventariar e promover os construtores portugueses de Cavaquinhos e Braguinhas, bem como os músicos, grupos, orquestras e associações ligadas a este instrumento. Fundamental será também a construção de um acervo documental com o objectivo do estudo e prática do ensino do Cavaquinho nas escolas e conservatórios, assim como a articulação com Associações e Escolas do país, com vista a melhorar ou reformular o ensino do Cavaquinho existente. A Associação tem ainda como objectivo a promoção de estudos, ensaios e teses relacionados com o cavaquinho, o desenvolvimento de acções didácticas e lúdicas, a edição de vídeos documentais e de livros didácticos sobre a prática deste instrumento.

A criação de protocolos com a comunidade científica (nos domínios da Etnomusicologia, Antropologia, Sociologia e Psicologia), no sentido da sua própria intervenção, será também fundamental para, por fim, promover todas as acções necessárias para o reconhecimento, pela UNESCO, do Cavaquinho como Património Imaterial da Humanidade.O Site do Cavaquinho www.cavaquinhos.pt, é o único que reúne o Cavaquinho de Portugal Continental e as suas metamorfoses espalhadas pelo mundo: com o Braguinha da Ilha da Madeira, o Cavaquinho Brasileiro, o Cavaquinho de Cabo Verde, o Ukulele no Havai e Continente Norte-Americano, e o Keroncong na Indonésia. Aqui poderá ser conhecida a História, os Instrumentos, os Construtores, os Manuais, os endereços dos Sites e os Músicos e, mais importante ainda, a música de todos os “cavaquinhos” no mundo! Numa comunidade que ascende aos 200 milhões de pessoas, o Site propõe uma viagem transcontinental, iniciada há 500 anos. Ao “calcorrear” o mundo, levámos e semeámos afectos; e é esta viagem, com o Cavaquinho como protagonista, que é relatada neste Site.

Terminamos parafraseando novamente João Luís Oliva: “(…) contemporaneidade e tradição não têm tempo nem lugar, porque estão em todos os tempos e lugares – a contemporaneidade, dos que lhe são, foram ou serão coevos; a tradição dos que dela se lembrarem, sendo que o elemento mediador entre “antigo” e “moderno”, (…), é sempre a memória; quer dizer, só é vivo e actuante aquilo de que nos recordamos. Ora a lembrança de umas coisas implica o esquecimento de outras, e essa memória só se cria com a constante renovação e tradução criativa do que é antigo, na realidade de quem a vive; (…). De facto as tradições não existem sem contemporaneidade que as façam viver, enraizadas num quotidiano social e geográfico, que integram e com que partilham o sentido; mas de forma não homogénea e massificada. Antes mestiça e plural como o Universo.”

E tu já experimentaste tocar cavaquinho? Queres embarcar nesta viagem connosco? Faz-te sócio em www.cavaquinhos.pt Links:www.cavaquinhos.ptwww.cavaquinhos.pt/pt/CAVAQUINHO/ACORDES/Acordes-Afinacoes.htmwww.cavaquinhos.pt/pt/Associados.htmwww.juliopereira.ptwww.facebook.com/juliopereiramusicawww.facebook.com/danielpereiracristo

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miúdosCORAJOSOScontra o exílio culturalPor Ana Cordeiro, Brave Kids, Wroclaw (Polónia)

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Procuramos crianças corajosas que partilhem de um amor pelas suas tradições e cultura e que estejam abertas a partilhar as suas competências com crianças de diferentes partes do mundo, durante três semanas de oficinas artísticas, na Polónia.

O Brave Kids é uma iniciativa da Associação Teatral Polaca “A Canção da Cabra” que tem vindo, desde 2009, a desenvolver o alcance e impacto da sua ação. Desde a sua criação, os participantes do Brave Kids cresceram de 15 em 2009, para mais de 100 envolvidos na edição de 2013. Até hoje, a iniciativa reuniu grupos do Uganda, Polónia, Nepal, República Checa, Roménia, Geórgia, China, Zimbábue, Israel, Irão, Quirguistão, Índia, Laos, e muitos outros países.O objetivo é apoiar crianças dos 6 aos 14 anos, provenientes de todo o mundo, através de experiências artísticas. Estas inspirarão os participantes a imaginar um futuro melhor para si e para as suas comunidades, e fornecer-lhes-ão ferramentas para realizar as suas ambições.Durante um período de três semanas, o Brave Kids reúne jovens de países afetados por questões humanitárias (tais como desastres naturais, conflitos políticos e pobreza), e jovens provenientes de contextos mais estáveis para, em conjunto, participar em oficinas artísticas no sentido da criação de uma performance.O processo criativo do Brave Kids proporciona aos jovens participantes a oportunidade de se expressar e de dar a conhecer a sua cultura. Aqui as crianças são as protagonistas de todo o processo. Baseamo-nos na filosofia “miúdos ensinam miúdos” – “kids teach kids”, na qual as crianças ensinam umas às outras as suas competências artísticas somente sob a orientação de monitores experientes. Com o apoio destes, os jovens participantes aprenderão a ensinar e a liderar outros, e a partilhar ideias, habilidades e abordagens.Os participantes são incentivados a descobrir o seu próprio potencial e valor únicos, aumentando a sua autoconfiança e convicção nos seus objetivos. Ao colaborar com outros jovens de diversas origens em torno de um projeto comum, os participantes desenvolvem a sua capacidade de comunicar, aprender a compreender a diferença, e celebrar experiências comuns. Este valioso e emocionante processo artístico alimenta o desenvolvimento emocional e social dos seus jovens participantes, ajudando-os a dar passos no sentido de uma transformação positiva nas suas vidas e nas suas comunidades, a longo prazo.As oficinas culminam na criação de uma performance conjunta que é apresentada a uma ampla audiência no concerto final do Festival Brave. Esta é uma colagem de diferentes culturas e traz consigo uma mensagem de tolerância e cooperação além-fronteiras, bem como a importância da arte como forma de diálogo intercultural.O projeto foi convidado, em 2012, a apresentar o seu espetáculo final na sede da UNESCO em Paris, e continua a atrair a consciência pública para os povos e comunidades que apoia, contando com o patrocínio recente da Comissão Europeia.

Se gostaria que os seus alunos partilhassem a sua cultura, conhecimentos e tradições, e também aprendessem com outros, por favor contacte-nos para mais detalhes sobre como participar: Ana Cordeiro, Brave Kids – [email protected] Tlf.: +48 533 623 722 | www.bravekids.eu

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Performance final do Brave Kids, 2013

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ESCOLA DE MÚSICA TRADICIONAL CENTRO CULTURAL E RECREATIVO DO ALTO DO MOINHOPor Tiago Morais, Coordenador EMT

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Localizada a sul do Tejo, na freguesia de Corroios, concelho do Seixal, a Escola de Música Tradicional do CCRAM funciona, atualmente, nas instalações do Pavilhão Municipal do Alto do Moinho, através do Centro Cultural e Recreativo do Alto do Moinho. Esta representa um projeto idealizado por músicos de formação distinta na área da música, e começou a sua atividade no ano de 2012.A Escola de Música Tradicional do CCRAM tem como principal objetivo colmatar a falta de um ensino académico nos instrumentos de cariz

tradicional na região, oferecendo assim uma forte componente teórica através da disciplina de formação musical que abrange diversas matérias, tais como o estudo de harmonia e instrumentação.A escola funciona como uma plataforma de ensino sólida e de referência na música tradicional em Portugal, através do ensino académico de instrumentos de raiz tradicional, uniformizando o seu ensino com uma aproximação aos planos curriculares dos conservatórios de música nacionais e escolas de jazz. A médio e longo prazo será criado um grupo no seio da escola que representará a mesma. Nesse sentido, apostamos fortemente na aula prática de combo, onde os alunos dos diversos instrumentos existentes no nosso plano curricular, devidamente orientados pelos seus professores, poderão trabalhar e interpretar temas do nosso cancioneiro tradicional, nunca descurando arranjos mais contemporâneos. A par deste grupo existe também um coro que conta, neste momento, com cerca de 18 elementos, e que é orientado pela professora Sofia Portugal. As aulas funcionam nas vertentes de grupo (Curso Geral) e particular (Curso Livre), sendo que estas englobam a disciplina de formação musical que desenvolve matérias como teoria musical, solfejo, treino auditivo, instrumentação, acústica e harmonia popular, assim como aulas complementares de outros instrumentos (ex.: o aluno de gaita de fole tem como complemento a percussão).

Os instrumentos lecionados são:Gaita de fole, Sanfona, Acordeão e Concertina, percussões tradicionais portuguesas, cordofones tradicionais portugueses, canto, coro, etc. Outro dos grandes objetivos da escola é promover o encontro de tocadores, assim como criar condições para que palestras, conferências e outro tipo de atividades decorram no seio da escola, tendo sempre por matriz a música tradicional portuguesa. Nesse sentido, pretendemos que seja um polo congregador dos agentes da música tradicional no nosso país (músicos, investigadores, construtores), estando aberta a solicitações para eventos variados nas suas instalações.

Corpo Docente:Fernando Branquinho - Formação Musical (Coordenação Pedagógica)Tiago Morais - Gaita de fole (Coordenação Pedagógica)André Ventura - Gaita de FoleMarlon Valente - Acordeão e ConcertinaSofia Portugal - Canto Tradicional/CoroSebastião Antunes - Canto Beirão e AdufeRita Nóvoa - Percussão Tradicional PortuguesaLuís Peixoto - Sanfona, Bandolim, Cavaquinho, BouzukiGonçalo Almeida - Cordofones Tradicionais PortuguesesCarlos Sanches - Guitarra PortuguesaHugo Mariani - Viola Clássica “Tradiescolar” - Tradição ao serviço da juventude

Platão disse uma vez que a música é “um instrumento educacional mais potente do que qualquer outro”.É partindo deste princípio que pretendemos dar a conhecer um projeto que visa levar aos mais jovens o ensino musical, assim como o conhecimento e o contacto com as raízes tradicionais portuguesas. É nossa intenção que, a médio longo prazo, o cancioneiro tradicional português seja dado a conhecer às gerações mais jovens, de uma forma descontraída e informal. Para isso propomos, numa fase inicial, marcar apresentações nas escolas públicas. Desta forma poderemos dar a conhecer um pouco da nossa intenção e estabelecer um contacto direto com os reais interessados, diretores de escola, professores e alunos. Estas apresentações serão feitas pelos professores da EMT que são responsáveis pelo seu próprio material e deverão estar disponíveis para apresentação, contextualização, responde a questões, etc.

Para mais informações:www.ccram.pt;[email protected]; Tlm. 968966405

Existem apenas dois legados permanentes que podemos esperar

dar às nossas crianças. Um delessão as raízes, o outro, asas…

Hooding Carter

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CONTAR E RECONTARO CONTO TRADICIONAL:

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O CONTO TRADICIONAL - MEMÓRIA, IDENTIDADE, PARTILHAPor Rui Arimateia, Centro de Recursos da Tradição Oral e do Património Imaterial. CME/DCHPCT

[email protected]

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Deus inventou o homem para o ouvir contar contos.

ditado popular

O conto tradicional, que chegou até nós hoje, é a forma sobrevivente da narração oral no decorrer da sua mais ou menos longa vida, transmitido de boca a ouvido.Tal como afirma Italo Calvino, “quem faz o conto é o ouvinte”, na medida em que o transmite, lhe confere existência e continuidade.

A temática do conto tradicional, do conto de encantar, do conto do maravilhoso, poderá ser enquadrada por muitas perspectivas e enfoques científicos. Uns de natureza mais antropológica e sociológica, outros focando mais a psicologia e a psicanálise, outros ainda podendo ser abordados através do ponto de vista global da filosofia ou, mais concretamente, da filosofia da educação.

A problemática do conto tradicional agora abordada insere-se numa área em que todas as perspectivas acima referidas são tocadas de um modo integrado.Este conjunto de eventos agora proposto servirá para, a curto prazo, enquadrar um conjunto de inquéritos–recolha sobre contos tradicionais no concelho de Évora, ao longo de toda a área geográfica do concelho, rural e urbano. Pensamos assim que nos permitirão compreender a complexidade do contar e do recontar contos tradicionais, pelos diferentes actores sociais que hoje habitam este concelho.

Tradicionalmente, se o conto não for ouvido nem contado é esquecido, morre, desaparece. Se o processo contar/ouvir/contar… for interrompido, esse processo circular de comunicação tradicional e secular, o conto, resultado e veículo da Tradição, desaparece das nossas memórias. Para o erudito Professor José Leite de Vasconcelos, os contos tradicionais assemelhavam-se aos “calhaus rolados”, uma vez que os contos têm de ser contados, têm de ser muito “rolados” para se tornarem perfeitos na sua narração e sobrevivência enquanto tradição oral.Nos nossos dias atrevamo-nos a pesquisar o seguinte, sobre o conto tradicional:

- quem o conta? - como conta? - quando conta? - porque conta? - a quem conta?

A Tradição Oral – um pacto através da palavra – ou a importância sublime do contar e do escutar… é o desafio que nos propomos a nós próprios descobrir.

Encontramo-nos hoje a redescobrir os Contos de Encantar. Apesar de tudo, teremos ainda em primeiro lugar de readquirir, de reaprender o conhecimento e a vivência espirituais imanentes no acto de contar um conto, sem complicações conceptuais, nem preocupações didácticas... O acto de contar um conto, o acto de ouvir um conto, à noite, seja junto à lareira, ao redor de um aquecedor eléctrico, a olhar as estrelas... contém em si próprio qualquer coisa de ritual, de místico, de totalizante... Senão, experimentemos, contemos um conto – de fadas, de gigantes e de anões, de bruxas e lobisomens, de bichos falantes e encantamentos, de varinhas de condão e de cavalos voadores, etc. – a uma criança e tomemos, ao mesmo tempo, atenção ao que se passa nessa relação, observemos a criança: ela está a viver no seu interior o que escuta exteriormente, absorve as imagens que se desenrolam perante ela – ela lembra-se, ela sente, ela entrega-se totalmente à acção e às imagens psíquicas que se formam na sua pequena cabeça.

E conseguiremos reviver o estádio de infância que, qual Mito do Paraíso Perdido, se encontra à espera de um estímulo nosso para que desperte e, de certo modo, nos guie na nossa enfadonha caminhada de adultos, procurando a verdade absoluta, e passando ao lado das muitas pequenas verdades que constituem a vida real do dia-a-dia? Tal como diz o Poeta:

não se gastou nem se perdeu a infância a nossa infância

ficou junto escondida em qualquer canto da vida sem mudança igual a ser

como a vida que mora por dentro do viver.1

Importante é também esta pequena reflexão sobre a infância em nós, adultos, por Franz Hellen2:

A infância não é coisa que morra em nós, que seque uma vez cumprido o seu ciclo. Ela não é uma recordação. É o tesouro mais vivo, tesouro que continua a enriquecer-se à nossa custa... Infeliz aquele que não consegue recordar a sua infância! Voltar a captá-la em si como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: esse terá morrido quando ela o deixou.

Goethe, um dos grandes poetas da humanidade e que cantou na sua obra poética muitos temas da Tradição Oral Popular, dizia dever o seu talento ao facto de ter tido uma infância rica em fantasia. É, de resto, conhecido um depoimento de sua mãe; afirmava ela:

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O ar, o fogo, a água e a terra, apresentava-lhos eu como lindas princesas e toda a natureza tomava um sentido mais profundo. Inventávamos estradas entre as estrelas e as grandes cabeças que encontrávamos. Ele devorava-me com os olhos. E se o destino de qualquer um dos seus favoritos não era o que ele desejava, eu via isso logo na sua cara ou nos seus esforços para conter as lágrimas. Uma vez ou outra interrompia dizendo: – “Mãe, a princesa não casará com esse miserável alfaiate, mesmo que ele mate o gigante”. Aqui, eu parava e adiava a catástrofe até à noite seguinte. Assim, a minha imaginação era frequentemente substituída pela dele; e quando, na manhã seguinte, eu arranjava o destino em conformidade com as suas sugestões, dizendo “Tu adivinhaste, foi assim o que aconteceu”, ele ficava todo emocionado e podia-se ouvir o bater do seu coração.3

Segundo Bruno Bettelheim:

Os contos de fadas, para além de uma deliciosa forma de entretenimento, têm um papel fundamental a desempenhar na estruturação da personalidade. São uma obra de arte elaborada ao longo dos séculos; uma dádiva de amor a que todas as crianças têm direito.

E é ainda Bettelheim quem afirma:

A história de fadas é essa dádiva de amor a ser partilhada por pais e filhos. É o presente que a humanidade lega às suas crianças e que ninguém tem o direito de impedir que sejam as crianças a desembrulhá-lo com felicidade!

Também a conhecida escritora de contos e histórias para a infância, Alice Vieira, refere:

Pode haver coisa mais bonita do que ouvir uma estória ao colo da mãe, do pai ou da avó? É como se as crianças pensassem: – “Há bruxas e papões mas eu estou segura, tenho quem olhe por mim”. É isto que eu chamo de “medo necessário”, um sentimento positivo que só faz bem à criança. O mal não é existirem bruxas nas histórias. É, sim, o de poucas mães ou avós terem tempo de as contar.

Percorramos todos aqueles velhos contos que nos foram tão generosamente legados pela tradição dos séculos e, por toda a parte, se conseguirmos reter em nós o olhar, perspicaz e inofensivo, pleno de confiança da criança, descobriremos os Sentidos da Vida, descobriremos a Palavra Perdida...O homem de hoje, tal como o homem de ontem, busca qualquer coisa – chamemos-lhe Realidade, Verdade, Deus, Felicidade, Sentido para a Vida… –, e tem-na procurado desde as mais remotas idades e em todas as Civilizações e Culturas. Aquela Palavra Perdida que a Humanidade incansavelmente procura deverá encontrar-se, sem dúvida, incluída em todos os mitos, em todas as fábulas, em todos os contos de encantar que a própria humanidade murmura para si mesma, há incontáveis séculos, senão milénios, tal como uma avozinha a contar histórias maravilhosas aos seus netos.E a criança aqui é um elemento-chave fundamental pois, tradicionalmente, considera-se ser preciso possuir o espírito de uma criança para conceber e para conhecer a Verdade encerrada em todos esses mitos.

Fazemos hoje ressurgir os contos de encantar, compilamo-los, reeditamo-los, estudamo-los e discutimo-los de novo. E, contudo, eles são tão antigos quanto o próprio ser humano. Não terá este ressurgimento, este renascimento cultural, que ver com todo um complexo aparelho psicológico de defesa do ser humano? Não estará a nossa sociedade, tal como a concebemos, a desestruturar-se nas suas fundações? Não estará um futuro desenraizado a desenhar-se à nossa frente? Não estarão as diferentes linguagens modernas – qual enorme nova Torre de Babel – incapacitadas para darem resposta aos novos desafios, que constantemente surgem diante dos homens, e incapacitadas para responderem aos anseios mais interiores e perenes da humanidade?

É muito possível que uma das respostas nos seja dada, mais ou menos indirectamente pelos contos, mais concretamente pelo acto de contar um conto, através da RELAÇÃO verdadeiramente humana que se estabelece nesse momento entre os seres envolvidos na acção. Uma relação onde impera principalmente a afeição, a partilha de um mistério, o amor.A relação que tradicionalmente se estabelece entre o contador de contos e os ouvintes – crianças, quase sempre – não poderá ser provocada, forçada, com objectivos artificiais; terá que fluir sem escolhos de qualquer espécie, terá de acontecer naturalmente, terá que brotar espontaneamente, de dentro para fora, e ir ao encontro do OUTRO. E porque o sentimento dominante é a afeição, o estar e o ser traduzem-se pela disponibilidade de contar e de escutar, daqui resultando um ganho interior em sensibilidade.

O acto de contar um conto nos tempos remotos das nossas memórias acontecia naturalmente, tanto quanto o desabrochar de uma flor ou o colher de um fruto maduro... Acontecia e era um momento vivido como se fosse uma verdadeira dádiva dos deuses... quaisquer que eles fossem.A importância de um Sentido para a Vida era nesse acto transmitido e apreendido cabalmente.A dimensão universal das histórias de encantar tem uma correspondência directa com a verdade universal da nossa natureza humana enquanto legado comum. Em comum possuem aquela dinâmica universal resultante da eterna luta entre o bem e o mal, a guerra e a paz, a vida e a morte, a tolerância e a crueldade, a honestidade e a corrupção, a verdade e a mentira, a luz e a sombra....

Ao atentarmos à actual sociedade moderna onde nos inserimos, poderemos ver que ela gera elementos desestruturantes, no sentido de não permitir a disponibilidade necessária para os homens, as mulheres e as crianças viverem, enquanto indivíduos, a Unidade de Vida veiculada por aquela mensagem arquetípica dos contos de encantar. Não esqueçamos, contudo, que em muitas histórias sobre a Criação e sobre Cosmogonias, a origem de tudo é descrita como um estado de Unicidade ou de Unidade, do qual emergem – e para o qual voltarão – os incontáveis seres e coisas deste mundo fenoménico manifestado. Essa Unicidade é também o coração de tudo; é o nosso SER mais profundo...

Assim, o homem moderno terá de encontrar uma perspectiva diferente sobre os contos de encantar tradicionais, ou com o maravilhoso que é parte integrante de nós e nos rodeia permanentemente. Mas perdemos a pureza do olhar e do gesto, e não conseguimos vê-lo. Contudo, há o outro lado

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do espelho, e há que descobrir o segredo da passagem e conseguir viver aquém e além da fronteira do espelho, símbolo do símbolo.

Recordemos Victor Hugo quando afirma que:

É no interior de nós próprios que é preciso olhar o exterior. O profundo espelho sombrio encontra-se dentro do homem. É lá que está o claro-escuro terrível... [sem sombra] Ao debruçar-nos sobre este poço, nós aí apercebemos a uma distância abismal, num círculo estreito, o mundo imenso… . Não será o poço aqui referido o próprio ser humano? Não obstante, no conto de fadas, o poço representar a abertura de acesso ao mundo subterrâneo, onde se encontram as águas purificadoras das profundezas, onde está oculta a Pedra Filosofal dos antigos Alquimistas…

E termino a contar um conto de encantar, recriado admiravelmente por Fernando Pessoa, que o denominou EROS E PSIQUE :

Conta a lenda que dormiaUma Princesa encantada,A quem só despertariaUm Infante, que viriaDe além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,Antes que, já libertado,Deixasse o caminho erradoPor o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,Se espera, dormindo espera.Sonha em morte a sua vida,E orna-lhe a fronte esquecida,Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,Sem saber que intuito tem,Rompe o caminho fadado.Ele dela é ignorado.Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino–Ela dormindo encantada,Ele buscando-a sem tinoPelo processo divinoQue faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuroTudo pela estrada fora,E falso, ele vem seguro,E, vencendo estrada e muro,Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,À cabeça, em maresia,Ergue a mão, e encontra heraE vê que ele mesmo eraA Princesa que dormia.4

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1 BRANCO,Beatriz Serpa -A Face e as Sombras, Évora,1969 (p.29). 2 Cit. por DURANT, Gilbert - a imaginação simbólica, Lisboa, 1979 (p. 85 - ‘Nota’ 45).

3 Cit. por BETTELHEIM, Bruno - Psicanálise dos Contos de Fadas, Lisboa, 1984 (p. 195). 4 PESSOA, Fernando - Poesias , Colecção ‘Poesia’, Lisboa, 1942 (pp.239-241).

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Manter vivo o que é nosso!

Filarmónica EXTRAVAGANTE é um projecto de adaptação do repertório português de identidade para banda filarmónica, num contexto de liberdade de criação e recriação do nosso património musical.Às músicas de raiz, juntam-se os temas do folk progressivo e camaleónico dos UXU KALHUS, num espectáculo único, com a pureza acústica e o poder eléctrico. As filarmónicas são a maior rede nacional de música ao vivo, ensino de música descentralizado e uma referência incontornável na música portuguesa. A necessidade de produção de repertório novo e inovador é constante, como é a dificuldade de o obter. Com esta Filarmónica EXTRAVAGANTE, Uxu Kalhus quiseram reinventar-se em formação alargada e, ao mesmo tempo, contribuir para o enriquecimento das bibliotecas filarmónicas com música portuguesa. Extravagante é o ponto de partida para este espectáculo que junta, no mesmo palco, Uxu Kalhus e a Banda da S.F.U Assaforense, dirigida pelo maestro Délio Gonçalves, também maestro primeiro-tenente músico da Banda da Armada.

O concerto terá ainda vários temas dos 3 discos dos Uxu Kalhus, todos com arranjos para filarmónica dos compositores Aurélien Vieira Lino, Hélder Bettencourt e Lino Guerreiro. É possível reinventar sempre! Imaginem um trombone a tocar uma melodia que tradicionalmente associamos à gaita de foles ou um bombardino na pele de uma flauta de tamborileiro. Um saxofone que se disfarça de viola de arame, mesmo que não seja carnaval. Imaginem agora uma banda inteirinha a tocar a Saia da Carolina, a Erva Cidreira ou o Malhão. As bandas filarmónicas trazem uma riqueza imensurável à música de identidade, ajudam-na a virar-se do avesso para a descobrirmos outra vez. Para a manter viva. Para nos descobrirmos outra vez. Uxu Kalhus e a Banda da SFU Assafora convidam-no(a) a celebrar a música portuguesa, no dia 12 de Abril no Centro Cultural Olga Cadaval, e aconselham roupa confortável, no caso de querer levantar-se da cadeira e não perder o pé que dança.

FILARMÓNICAEXTRAVAGANTE POR ANTÓNIO BEXIGA E LUÍS SALGADO, UXU KALHUS

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Ao longo dos anos, a PédeXumbo realizou uma série de iniciativas de forma a promover a música e a dança de raiz tradicional. Estas passam pela programação de festivais, pela sensibilização e também pela captação de públicos. Em simultâneo, a PédeXumbo estimula a profissionalização dos músicos e bailarinos, com a oferta de formações e apoio à edição de CD’s.

Numa perspetiva sustentável, é necessário fomentar as condições para que os profissionais possam criar e viver do seu trabalho artístico. Assim, em 2013, a PédeXumbo iniciou uma nova etapa no sentido de contribuir para a internacionalização da fileira folk portuguesa, investindo na difusão em feiras internacionais dedicadas às músicas do mundo.

Em articulação com os objetivos do Festival Andanças, procedeu-se à edição de um catálogo dos grupos musicais portugueses que participaram na edição 2013, e convidou-se duas bandas para estarem presentes com a PédeXumbo na Womex.

Depois dos resultados positivos da participação na Womex’13, uma nova viagem foi agendada. Em Março, a PédeXumbo representará a fileira com o catálogo Andanças’13 em Marselha, no âmbito da Babel Med Music. Mais informações: [email protected] / www.andancas.netLink catálogo Artistas Andanças’13 http://andancas.net/2013/catalogo_online/bands.htmlWomex - www.womex.comBabel Med Music - www.babelmedmusic.com

INTERNACIONALIZAÇÃO DA FILEIRA FOLK PORTUGUESA POR ANA MARTINS E SOPHIE COQUELIN, PÉDEXUMBO

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CONCERTOS & FESTIVAISNESTE CANTINHO DA REVISTA, O PÚBLICO, PARTICIPANTES E INTERVENIENTES DE CONCERTOS E FESTIVAIS SÃO CONVIDADOS A PARTILHAR AS SUAS EXPERIÊNCIAS. OS CONTEÚDOS SÃO DA INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES, QUE NA SUA DIVERSIDADE E ENTUSIASMO CONSTITUEM A PEDRA ÂNGULAR DO EDIFÍCIO QUE SE COMEÇA AGORA A VISLUMBRAR..............................................CONCERTOS

TOQUESDO CARAMULOPOR INÊS PINTO CARDOSOENTREPENEUR/PSICÓLOGA, PORTO

Versava o ano de 2009 e, tradicionalmente, lá estava eu no Andanças. Esse andanças foi marcado por um concerto dos Toques de Caramulo, banda com a qual eu simpatizava por ter ouvido algumas músicas, mas que ainda não me estava completamente entranhada na alma (por desconhecimento). Mas esse concerto mudou o rumo das coisas… A energia deles entrou ao som de músicas como a “Trigueirinha”, “Dobadoira” e “Ai que riso”… E que riso, e que alegria, e que energia contagiante têm os Toques em Palco! O toque deles é tão forte que não toca, mas REDUNDA E RESSOA! Não é um toque, é mesmo uma paulada de energia contagiante que, no final do concerto, fez a todos bater bem as palmas e sacudir pernas e pés no chão, para não os deixar ir embora (pelo menos 3 x)…Mas o melhor desse concerto foi que ganhei o cd deles ao vivo… Foi um momento histórico para mim! Tudo ali à molhada e fé em Deus! Todos os que assistiam aglomeravam-se para apanhar o CD que o Luís Fernandes (um autêntico animal de palco) ia atirar dentro de momentos; pareciam as desesperadas solteiras que se juntam para apanhar um bouquet de noiva (como se isso fosse a única réstia de esperança para desencalharem ou serem pedidas, finalmente…). Digamos que eu nem aprecio muito estes empurrões e aglomerados mas, depois daquele retumbante concerto, eu queria aquele CD (como se este objeto representasse a única esperança de levar aquela energia tão positiva para casa). Virei-me para o meu namorado (André Carvalhosa, também grande apreciador de Toques), e disse: “vou-me meter ali e ganhar aquele CD, vais ver!”. Ele sorriu com olhar de aprovação, mas não acreditou muito que fosse possível. Chegou o momento… Lá estavam as cotoveladas e os empurrões para cada pessoa melhor se localizar para agarrar o objecto valioso e não é que… Ele foi agarrado por mim e por outra colega minha destas (an)danças, disputamos por segundos o objecto, mas eu acabei por arrancá-lo das mãos dela… Este rasgo de determinação” animalesca” veio com certeza do poder da música e do vigor deles ao Vivo. E lá fui embora toda feliz a trautear oh ti oh tirititi e a saltitar como uma criança que acaba de receber o

maior presente do mundo… E por tudo isto é que Toques é “ao Vivo”.

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PÉNA TERRAPOR JORGE ALMEIDAENGENHEIRO ELECTROTÉCNICO, PORTO

RETIMBRARPOR MÓNICA MENDESEDUCADORA DE INFÂNCIA, PORTO

Ao ouvir a música que este grupo nos oferece, é inegável estarmos na presença de música tradicional portuguesa. Mas não só, algo mais os define. Se por um lado os sons que produzem através de uma mescla de instrumentos tradicionais, desde as percussões, à gaita de foles, guitarras tradicionais e ao acordeão, nos transportam o imaginário para tempos de outrora vividos algures, por exemplo, numa aldeia em qualquer ponto do nosso país, por outro a presença de outras referências musicais como o rock, faz-se sentir através de uma forte energia, o que resulta num som bem vivo e actual. Esta energia e lapidação que fazem da nossa música agrada não só a saudosos amantes do popular e da nossa cultura musical, como a apreciadores de estilos musicais, à partida, mais afastados da raiz tradicional. Bastará assistir a um concerto deles, de preferência no cenário perfeito de uma noite verão, num dos muitos festivais em que participam.Com dois discos editados e muitos palcos pisados, os Pé na Terra têm já um lugar de destaque no mundo da música folk. Venham por isso daí mais concertos e mais discos... nós que os ouvimos agradecemos.

Assistir a um concerto de Retimbrar, mais do que um momento “apenas” musical, é usufruir de um bom momento de diversão e partilha.Para este grupo do Porto, tudo começa com o respeito e investigação dos ritmos e sons Tradicionais Portugueses. No entanto, vão mais além... Exploram toda a riqueza tradicional integrada no contexto actual, não deixando que esta envelheça.Tomando como exemplo o concerto no festival Arredas Folk 2013, conseguimos facilmente perceber que para os Retimbrar o importante é criar um espaço onde todos possam participar. É num ambiente descontraído que a música se faz e se partilha com um público que não é meramente espectador. A interacção é grande e ninguém consegue ficar indiferente! Ensinam-se músicas e danças, enquanto os próprios músicos se tornam o público do espectáculo que se passa fora do palco. Depois, descem todos do palco e músicos e público tornam-se num só! Desta forma há uma aproximação das pessoas ao que é Tradicional, incentivando não só o seu conhecimento, mas também o gosto e a criação de novas sonoridades. Cria-se música de todos e para todos! E só assim faz sentido!!Há uma grande riqueza de sons e ritmos, quer pela variedade de instrumentos utilizados, quer pela forma inovadora com que se interpretam as músicas. É arrepiante o frenesim que provocam dentro e fora de nós. Se fecharmos os olhos, conseguimos escutar um sussurrar de vozes que se levantam para viver e “cantar” o que é nosso!Após a sua passagem nada fica igual, apenas a nossas raízes permanecem e se tornam mais fortes!Retimbrar, mais do que um grupo musical, é uma verdadeira Revolução!

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BICHODO MATOPOR PEDRO PRATAMÚSICO, LISBOA

Uma das razões que me fez ir à festa de lançamento da revista Identidades no dia da sua primeira edição foi, precisamente, ver mais uma vez um concerto dos Bicho do Mato. Desta vez equipados com bem mais decibéis, deram um show de rock acústico desgarrado que encheu, e bem, o salão do teatro da Luz.O primeiro tema do repertório foi a 48 e não largaram a garra por hora e meia, com uma set list sempre bem-disposta e animada, passando pela Ratoeira – canção que mais ficou no ouvido (por alguma razão lhe chamaram single).Entre ukuleles, bandolins e guitarras acústicas de Zé Peps, aperaltadas de slides e distorções, destacaram-se os coros, a voz de Daniel Catarino muito expressiva e ao encontro com os temas cantados, a bateria de Daniel Meliço, sempre a puxar o dinamismo de cada música que tendia sempre a crescer, chegando ao êxtase de Tó-Zé Bexiga, a tocar com o jack da sua viola campaniça enfiado no ouvido. Hilariante.O salão do teatro da Luz nos seus habituais tons dourados e avermelhados foi composto com cerca de 90 pessoas – público meio tímido que optou ficar maioritariamente pela zona da regie. Não obstante, esteve sempre um bom ambiente, descontraído e animado.Um dos momentos altos da noite foi a Vaca Sagrada (tema que pode chegar a ter 50 minutos), onde os Bicho do Mato vaguearam interminavelmente por momentos tanto calmos e tranquilos, como cheios de um frenesim de efeitos, num som pesado e arrastado.Fiquei, sem dúvida, rendido à bicharada. Um concerto a repetir.

STRINGFLINGUMA SIMBIOSE PERFEITAPOR ANA CARVALHOTRADUTORA, SETÚBAL

Quem esteve presente no Andanças 2013 sentiu seguramente a alegria, o amor pela música e o gosto por ver o público dançar que este duo transmite sempre que toca para nós. Cada um dos três concertos foi diferente e mostrou-nos uma determinada faceta dos String Fling: mais animada no primeiro, não obstante algum nervosismo pela estreia no mítico festival Andanças; mais descontraída no segundo, em que até trocaram as habituais calças de ganga rasgadas nos joelhos e camisas pretas por algo mais… informal; e mais intimista no terceiro, em que, envergando românticas camisas vermelhas, nos propuseram inúmeras mazurkas cheias de surpresas – de olhos vendados, dançadas costas com costas, sentados no chão...Um baile «tradicional» de String Fling inclui um pouco das três facetas, pois, na verdade, é essa variedade que os caracteriza. Há, porém, um elemento comum sempre que eles tocam. Seja em danças portuguesas, francesas ou bascas, em pares ou em grupo, em melodias emprestadas ou nalgum dos magníficos temas originais, conseguimos sentir a emoção dedilhada na música. Uma emoção que se alastra do palco e das cordas ao chão e aos pés. E que se torna etérea naquele momento de partilha.Quem já presenciou concordará seguramente que se trata de uma simbiose perfeita entre música e dança e entre músicos e bailadores, de tal forma que nos sentimos sempre – e eles fazem questão de o reforçar – «o melhor público do mundo».

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FESTIVAIS

FESTIVALPASSAGEM D’ANOCOIMBRACONCERTOS, DANÇAS E SORRISOSPOR MARIA JOÃO CASEIROENFERMEIRA, LISBOA/AVEIRO

Penso que não há ninguém que não associe a Coimbra, pelo menos, um episódio aí passado: ou porque foi a sua residência de estudante, ou porque num dia de chuva, em plena tradicional subida, teve de trocar um pneu do carro, ou porque foi a cidade que viu nascer borboletas numa barriga apaixonada… Enfim! Da Quinta das Lágrimas ao Centro Norton de Matos haverá certamente todo um livro de histórias para recordar. A Tradballs, com o apoio da Rodobalho e do Centro Norton de Matos, nesta edição 2013 do Festival da Passagem d’Ano, proporcionou ao seu público diversos workshops de danças e de música, concertos e bailes variados (de bandas nacionais e estrangeiras) e outras dinâmicas, das quais gostaria de sublinhar “Conexão e Escuta no Baile”, por Catarina Ascensão, e Reportório Osório, primeiro pela sua qualidade, e segundo pela importância da variedade na programação de um festival.Parece que, quando estamos prestes a voltar a um sítio que nos é querido e que alberga tantas memórias boas, há um nervosinho que se apodera de todas as células do nosso corpo… mas que logo se dissipa ao som das primeiras notas, dos primeiros passos de dança, que logo se esvai no encontro daquele abraço amigo que só vemos de quando em vez.Não desfazendo, em altura alguma, a qualidade das bandas, mais recentes ou mais experientes, que nos proporcionaram bailes tão ricos, estes foram dias que provaram que quem faz um festival são, de facto, as pessoas.Quem do lado de fora da janela olhou para o interior daquele ginásio, à luz das nossas jams tardias, com certeza pôs em causa a sanidade daqueles humanos em ebulição. Mas o que essa pessoa não soube é que testemunhou a felicidade num estado tão puro quanto ser certo estar a chover. Todos nós transportámos nas mãos a bagagem pesada do 2013 e numa trouxa ao ombro a vontade de cumprimentar um promissor 2014. O que se deu dentro daquelas quatro paredes, numa extravasação colectiva, foi nada mais nada menos que o escape dos demónios do ano de cada um, na boleia daquele tsunami de alegria tão espontaneamente libertadora.Com direito a serpentes de Gavottes de l’Aven algo contemporêneas, crowdsurfing e passos mais clássicos tivemos, neste Inverno, um festival quente, marcado por bons concertos e muitas danças, sorrisos bonitos, gargalhadas sinceras, abraços-a-repetir, convívios cheios, e almas bem mais leves, ansiosas por histórias de novos capítulos.

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Bem na raiz de uma Aldeia de Xisto, num local onde estas (as raízes e as aldeias) crescem serra adentro, banhadas e alimentadas pelo caudal do Zêzere, acontece, uma vez por ano, um “Festival de arte & cultura tradicional” – eu chamar-lhe-ia antes um “encontro de amigos, em tom informal e familiar, com música e dança a acompanhar” (ok, talvez esta fosse uma descrição demasiado longa).Para mim, mais do que um festival, este evento de sentidos e sabores é um óptimo pretexto para passar um fim-de-semana longe do barulho da cidade e bem mais perto da natureza.E que sentidos? E que sabores?Ahhh... Que bem que me sabe sentir a água de uma cascata, improvisada por uma pequena barragem, a cair-me na pele e a refrescar-me o espírito, e que bem que me sinto ao saborear uma cereja acompanhando-a com uma bela conversa (ou duas... ou três... ou não fossem as conversas como as cerejas)!Uma vez que ainda falta algum tempo, a minha sugestão, para já, prende-se com fechar os olhos e, durante uns minutos, deixar fluir a imaginação juntando os seguintes ingredientes: sol, água, natureza, música, dança, cumplicidade traduzida em sorrisos, cerejas e muito boa disposição. Depois, é só reservar um fim-de-semana de Junho para ir passar a Janeiro (de Cima) e vivenciar na primeira pessoa o “Raiz d’Aldeia”.

FESTIVALRODA A SAIA11-13 DE ABRIL 2014, CASTELO DE LEIRIA

POR MANUEL LEIRIAJORNALISTA, LEIRIA

BREVEMENTE!!!

FESTIVALRAIZ D’ALDEIATRADBALLS

POR FILIPE MARTAEDITOR DE VÍDEO, BARREIRO

D. Dinis e D. Isabel andaram por ali. Agora é a nossa vez. Ele escrevia poesia e espalhava charme junto das donzelas, ela fez o milagre das rosas. O Roda a Saia promete fazer o mesmo que a Rainha Santa, transformando a presença de todos em sorrisos, e também quer duplicar, em divertimento, a herança do Rei Trovador. À segunda edição, o festival de Leiria sobe ao Castelo com muitas novidades: desde logo o espaço, o mais nobre da cidade, com múltiplos recantos por explorar e mil anos de encantos para oferecer. Depois, há todas as bandas. Como alguém escreveu, Roda a Saia “é Paulo Bastos, o Noiserv do trad; é B’rbicacho, a girls band do trad; é String Fling, os Pink Floyd do trad; é 2 ao Quadrado, a banda desenhada do trad”. E é também uma surpresa de última hora: uma das melhores bandas do trad europeu, os belgas Bogus (em versão duo). Esta bela combinação vai animar três dias que incluem ainda sessões de conversa sobre música e baile, várias oficinas de dança e de instrumentos (sopro, percussão e cordofones) e actividades para os mais novos. Em 2014, o Roda a Saia convida todos, mas mesmo todos, a dançar: os bailes e workshops apresentarão cuidados especiais, a pensar em quem tem dificuldades de visão e de audição, e uma das oficinas é mesmo sobre a percepção da própria dança. E porque este festival não se chama Roda à Saia à toa, em Leiria até se vão ensinar técnicas de dar voltas!

https://www.facebook.com/rodaasaia

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EM AUDIÇÃO

FADO MORSE | 2012POR JOÃO CLETO, ENGENHEIRO DO AMBIENTE/GAITEIRO, ALMADA

“Desculpe, tem algum álbum que soe a banda sonora de intervenção, com uma pitada de som ao estilo de Primitive Reason e Mão Morta, uma boa dose de teatralização e inspiração à la John Zorn, mas também músicas épicas e um cheirinho do melhor jazz português?”. O pedido pode parecer estranho, mas é possível encontrar tudo isto e muito mais no último álbum dos Fadomorse, que não é só um álbum de um grande projecto, mas três álbuns em um. O que, diga-se de passagem, é uma pechincha. Não tanto pela quantidade, mas pela diversidade e qualidade das composições, ideias e músicos.Tudo isto nos chega pela mão de Hugo Correia: compositor, autor, produtor, multinstrumentista que criou o conceito Fadomorse há 15 anos, por onde já passaram cerca de 50 músicos. Talvez por aqui se explique a diversidade com que somos presenteados mas também, quem sabe, o relativo anonimato a que esta obra se encontra votada (a que também não é alheia a opção de se manter com produção livre e independente). A designação do álbum, Fadomorse Magala Invisível, é um nome pouco inocente como se torna óbvio pelo acrónimo FMI, e onde cada um dos 3 CDs está associado a uma das palavras que compõem o título.O primeiro, Fadomorse, leva-nos à canção na sua estrutura mais “purista”, pontilhada sempre pelos recursos associados à música portuguesa onde se destacam a gaita de foles, as vozes e as estruturas harmónicas e rítmicas. São contínuas as referências a grandes nomes como Mário Viegas, José Mário Branco, Almada Negreiros e até Marco Paulo e Mónica Sintra, sem esquecer a história do pop/rock português que parece aqui condensada em poucos actos e que ainda conta com a participação de Rui Veloso.Em Magala, a missão de soldados da música toma nova dimensão, e somos surpreendidos por um enorme álbum de jazz a nu, onde grandes nomes do jazz português se juntam à recruta.Já em Invisível somos transportados para uma longa-metragem da música com o sugestivo título de Matraquilho dos Pobres: uma epopeia musical de 58 minutos, sob a batuta da Orquestra Sinfónica Transmontana Virtual. E se já é difícil e injusto descrever todo o álbum sob a forma de texto (como aqui foi feito da forma possível dadas as limitações do autor e de espaço), para Invisível torna-se impossível. É ouvir e deixar-se surpreender. Fadomorse Magala Invisível (2012, Ethereal Sound Works)www.etherealsoundworks.comwww.facebook.com/fadomorse

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CANTIGAS DO BAÚ | 2013POR ANDREIA SPENCER, ASSISTENTE SOCIAL, BEJA

A primeira vez que assisti a um concerto ao vivo das Cantigas do Baú, tive o privilégio que esta experiência acontecesse num ambiente intimista e quase familiar, num cenário de divina e transcendente tranquilidade onde, à medida que cada música surgia, a paz interior, a harmonia e a memórias se insurgiam em cada um dos presentes. A entrega e a paixão de cada elemento dá expressão à sua musicalidade, que é transmitida através de uma perfeita melodia e nos transporta para outra dimensão. Este quarteto consegue encher um palco como se de uma orquestra se tratasse, pois a complementaridade entre instrumentos e a melodia da voz constituem a singularidade deste grupo.Ouvir as Cantigas do Baú é uma experiência inesquecível e enriquecedora, que não nos deixa indiferentes.O seu primeiro disco “Cantigas do Baú” inclui onze músicas, todas elas com arranjos magníficos e inebriantes, que nos remetem para a nossa infância… Um tempo recheado de momentos de afeto e carinho, transmitidos pelas vozes das nossas avós que nos enchiam a alma e nos transmitiam a tradição, a história e a cultura do nosso povo.Cantigas do Baú é Chillout Alentejano...

CELINA, EM CASA | 2012POR TELMO OLIVEIRA, ESPECIALISTA DE MEDICINA TRADICIONAL CHINESA, AMADORA

POP | 2012POR CELINA DA PIEDADE, MÚSICO, PALMELA

“Pop” não é pop. Mas o título ajuda a perceber a vontade de quebrar barreiras musicais. Pode enganar, mas não é uma provocação. É antes uma evidência da permeabilidade musical que caracteriza os dois responsáveis por este disco. Numa aventura transfronteiriça, o português Luís Peixoto e o galego Fernando Barroso já antes tinham mostrado cartas com o projecto “Assembly Point”, juntamente com o irlandês Eoghan Jeff, num disco homónimo. Ambos praticantes do bem tocar a tradição mostram, neste trabalho, sem preocupações, que a sua visão da mesma é aberta, contemporânea, maleável, e está ao serviço do presente. Este é um disco cheio de composições orelhudas, mas com algumas melodias de malhas intrincadas, filigranas de mestre sobre bases harmónicas muito sólidas e apelativas. Bandolins e máquinas, bouzoukis e midis, revelam-se num casamento natural, nada forçado, antes cheio de instinto e força!Um sinal dos tempos, da profusão de linguagens com que aprendemos a comunicar todos os dias, das novas tecnologias, e da nossa capacidade de absorção e incorporação das mesmas nos nossos próprios universos, tão singulares, às vezes tão próximos das raízes, como é o caso destes dois músicos. A própria internet desempenhou um papel basilar na concretização do projecto: a edição foi toda patrocinada por crowdfunding onde, em troca do apoio, houve uma compensação que variou entre receber o disco em casa depois de feito – com o nome de todos os contribuidores impresso na capa do mesmo – a um concerto privado, consoante a contribuição. Um exemplo de dinamismo a todos os níveis!

É num ambiente “caseiro” que Celina da Piedade, sempre acompanhada com a sua “caixinha mágica”, percorre diversas sonoridades da música Portuguesa, espreitando além-fronteiras. Como exemplo desta comunhão surge a “Pera Verde” que, ao longo do tempo, vem amadurecendo principalmente na boca de bailadores, tornando-se este single num sucesso incontornável deste álbum.O êxito deste álbum levou-o para longe da “Rua da Amargura”, onde uma das palavras-chave é a diversidade. Conta com a participação de vários músicos, apresentando sonoridades ímpares e instrumentos fora do comum, como é exemplo o cravo ou até mesmo o serrote.A vasta experiência de Celina da Piedade dota-a de um carisma que lhe permite tornar inconfundíveis as suas músicas logo desde os primeiros acordes, pelo vibrar quer das palhetas do acordeão, quer das suas cordas vocais.É um excelente álbum pronto a ser apreciado em qualquer estação.

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Sobre o projecto Moda Mãe pode dizer-se muita coisa: que é um nome feliz; que é um hino ao cante alentejano; que tanto agrada aos puristas como aos demais; que é de uma enorme ventura o encontro destes intérpretes; que do grafismo do CD aos arranjos das modas há um bom gosto metido em tudo. Uma seriedade de fazer inveja!Começamos pelo princípio, que é por aí que devem começar todos os textos.O nome Moda Mãe é um veio de poesia dito em duas palavras. Eram já dois vocábulos com grande peso afectivo, que dispensam quaisquer outras observações, mas acasalados assim, para definir um projecto de amor ao cante alentejano, é uma ideia rara e ditosa.Depois vem a música.Há neste projecto algo da alma de Michel Giacometti, recolhendo as mais ancestrais modas alentejanas, preservando-as para a posteridade, não deixando que o tempo novo as engula sem retorno.Há uma inegável qualidade artística na interpretação dessas modas. As vozes de António e Luís Caixeiro são de um timbre excepcional, apoiadas por outra grande voz, a de José Emídio. A execução da viola campaniça, instrumento alentejano como toda a alma deste projecto, a cargo do mesmo José Emídio, é já a de um mestre. Os arranjos originais não são menos. O trinado castrense passou a ter, também ele, uma outra interpretação.Contudo, o que mais me apraz neste projecto é que, tal como o perfeito cante alentejano, a centralidade está nas vozes, na tradição fervida das gargantas. Da beleza do ponto, da excelência do alto, da harmonia e força do cheio se exalta, sem perdas, a tradição alentejana. Posteriormente à gravação do primeiro CD, outras duas vozes, Bernardo Espinho e Bernardo Emídio, vieram trazer a possibilidade de outras harmonias vocálicas e aproximar-se ainda mais do tradicional cante alentejano.Tenho em mim que foi preciso coragem para fugir àquilo a que chamo de “fenómeno Trigo Limpo”. O sucesso alcançado por esse grupo, no início dos anos 80, fez com que houvesse um comportamento de mimese, fortemente multiplicado, aparecendo os auto-intitulados grupos de “música tradicional alentejana”. Discordo desta denominação. Não devia ir além da designação “música de inspiração alentejana”. Passados mais de três décadas, ainda hoje nascem agrupamentos assentes no bombo e no acordeão, alguns acrescentando-lhes viola baixo eléctrica, com ritmos e melodias desviados. Conheço alguns que não têm uma só voz da qual nos possamos orgulhar! Como poderá fazer-se tributo ao cante alentejano secundarizando as suas vozes? De nada disto enferma a Moda Mãe. Antes pelo contrário.Apesar da Moda Mãe preservar na íntegra o cante alentejano, quanto a mim, abre um outro caminho para se chegar ao mesmo sítio. Dito de outra maneira, o preceito do cante fica ileso, mas a este acrescenta-se a melodia da viola campaniça, afecta ao despique e ao baldão mas que, nas mãos de José Emídio, ganha outra dimensão. Diria mesmo que é tradição alentejana somada a tradição alentejana. Era uma solução fácil, pensarão alguns. É um caminho bonito, direi eu.Em suma, Moda Mãe é um projecto musical de grande qualidade artística, quer nos refiramos ao contexto do cante alentejano, quer num espectro mais alargado, conceptualmente chamado Músicas do Mundo. Este projecto tem todas as condições para apaixonar os palcos por onde passam fadistas ou flamencistas, por exemplo: tem a beleza da originalidade intacta, tem a força e a excelência qualitativa que o mundo pós-moderno exige.

Bem-hajam!

A MODA MÃEEDIÇÃO DE AUTOR, 2013POR CARLOS CAMPANIÇOESCRITOR

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Quando me perguntam o que faço e respondo que sou músico a reacção é sempre: “Só música? E para além da música?”. O que me pergunto sempre é o porquê da profissão de músico ser tão mal vista e desprezada. No geral, todos gostam de ir a concertos e festivais de música. Fica sempre bem ir assistir a um recital ou um concerto na Gulbenkian. Os pais também acham bem que os seus meninos aprendam música na escola, mas se estes decidem fazer da música a sua vida, então é que o caso muda de figura: – “Tens é de ser advogado ou engenheiro que com a música não ganhas nada; isso não é vida para ninguém.”Pois é, eu sou músico a tempo inteiro, estudei música clássica (viola dedilhada), antes já tocava guitarra eléctrica e depois

aventurei-me por vários instrumentos até chegar à conclusão que é impossível dominar todos. Sim, por que isto de ser músico exige que se estude diariamente várias horas (tipo atleta) para apenas manter a forma porque, se se quiser atingir um nível de excelência, são muitos anos de trabalho disciplinado (tipo atleta ou médico). No meu caso escolhi alguns instrumentos que me permitem expressar a minha criatividade e tento mantê-los a um nível aceitável. Para além de intérprete sou também compositor, produtor, manager, agente, técnico de som, designer, distribuo panfletos, etc.. Desdobro-me em mil ofícios para poder sonhar, projectar, materializar e fazer chegar a minha música a quem a ouve.A razão deste texto prende-se com as questões monetárias desta arte. Quando alguém vai ao supermercado nunca pensa em levar as suas compras sem pagar. Ou quando alguém vai a um restaurante também não come a sua refeição e vai-se embora sem pagar… a isso chama-se roubar. Todas as profissões são ou deviam ser remuneradas. Se o médico, o advogado, o arquitecto, o pedreiro, a senhora da limpeza, todos trabalham para receber o seu salário, porque é que o músico deve trabalhar de graça? Está muito na moda pedir a músicos ou bandas para tocarem de graça, estão na moda os festivais voluntários em que os artistas

trabalham de graça e o público paga bilhete. Está na moda pedir borlas aos artistas e justificar a coisa com o “é uma maneira de divulgarem o vosso trabalho”. Mas há sempre algumas profissões que não são voluntárias num festival: a produção,

a equipa técnica, a equipa de limpeza. Claro que parte da responsabilidade de isto estar a acontecer

também é dos próprios músicos, ou de alguns meios-músicos que têm o seu salário fixo e fazem música como passatempo, e que se disponibilizam para tocar nesse tipo de festivais e eventos.

Há um grande desconhecimento de todo o processo e de todo o trabalho que dá montar um espectáculo, seja um recital de música clássica ou um concerto de rock. Horas e horas de ensaio, investimentos brutais em instrumentos e materiais (um instrumento decente não custa menos de 2000€, alguns são bem mais caros). Como ainda não se encontrou maneira de uma pessoa se materializar em vários locais ao mesmo tempo, quando um músico se encontra focado em preparar um espectáculo não consegue estar a fazer outro trabalho. E, como toda a gente, tem as suas despesas. A maior fonte de rendimento de um músico são os espectáculos, logo o músico deve ser pago pelos concertos que dá.

Moral da história, aqui não há grandes voltas a dar. Simplesmente falo que é necessário ganhar consciência e respeito pelo trabalho dos outros, mesmo quando o não compreendemos, principalmente por parte de profissionais (ou não) da mesma área. Felizmente, e como em tudo, aos poucos as coisas vão mudando e evoluindo. No que respeita à música, o público está cada vez mais educado e exige espectáculos de qualidade, e a qualidade paga-se.

OPINIÃO : VASCO RIBEIRO CASAIS

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PROFISSÃO:MÚSICO

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Embora seja um rapaz do campo, a minha escola musical foi sobretudo anglo-saxónica, muito devido à força do Grunge nos anos 90 e a algum espírito reacionário contra o crime estético da pop nos anos 80. Em 1994, com 11 anos, entro para a Orquestra Ligeira da Câmara Municipal de Mora, guiada pelos enormes Abel e Fernando Costa, onde começo a tocar temas populares, clássicos do rock, versões adulteradas de música pop nacional, tudo com grande abertura de mente e espírito descomprometido. Viver no campo trazia vantagens

EVOLUÇÃO TRADIÇÃONA

OPINIÃO : DANIEL CATARINO

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e desvantagens que muitas vezes se entrelaçavam, como a falta de acesso a música, instrumentos e entretenimento em geral, bem como um desconhecimento total de movimentos culturais em voga nos centros urbanos. Não sonhava que metaleiros e ‘betinhos’ se davam mal, que o pessoal do skate e o dos patins não se podiam ver, enfim. Só quando fui estudar para a cidade tive percepção deste tipo de questões e, felizmente, já era tarde para lhes dar algum tipo de importância.

O curioso é que este fenómeno, este choque com uma cultura em ebulição, volta a repetir-se na minha vida em 2011, ao formar a banda Bicho do Mato com alguns amigos mais entranhados na “cena folk” nacional. Obviamente que tinha conhecimento de um sector cultural que se ocupava de manter, restaurar e propagar as tradições musicais, mas sinceramente desconhecia a sua magnitude – o que me surpreendeu pela positiva – e as suas quezílias internas – que naturalmente me desiludiram.Com os primeiros concertos, surgiram as primeiras críticas, sempre positivas em relação às canções, mas muitas vezes negativas em relação à sua apresentação, porque “a campaniça não é para tocar com distorção”, “uma chamarrita não se dança assim”, ou “as vossas letras são demasiado actuais”.

Com estas e outras situações que nem me diziam respeito, fui-me apercebendo da existência de algum

fanatismo tradicionalista à volta da música folk. Custa-me compreender este fenómeno, porque se é verdade que

uma tradição morre quando se perde, quando estagna fica em coma, e a música, a meus olhos, tem de ser uma Arte que recria constantemente a tradição, não o inverso.A recuperação da antiguidade, por mais necessária que seja e por mais méritos que tenha, não pode ser uma viagem no tempo em permanente retrocesso. Não pode ser uma religião presa às suas escrituras sagradas, que recusa qualquer tipo de evolução pelo receio de desaparecer no ateísmo. Parece-me que o mais importante é o cliché: tem de haver espaço para tudo.

Precisamos de gente que mantenha as tradições seculares, o purismo histórico e a graciosidade de um produto intacto, mas é igualmente necessária a intervenção de artistas que trabalhem com esse pano de fundo na construção de um novo cenário, feito de matéria-prima de qualidade, que sirva de ponte entre o passado, o presente e o futuro. Não é difícil imaginar um universo musical em que todas estas vertentes coexistem pacificamente. Talvez o mercado seja pequeno e a competitividade cegue os conservadores, talvez falte educação no sentido de valorizar as raízes e as tradições na construção do sujeito, talvez falte educação que nos permita desenvolver um espírito empreendedor, de rejeição do facilitismo dogmático que é recordar o passado como forma única de abraçar o futuro. Talvez baste olhar para o futuro como uma obra na qual temos de meter as mãos, sujar a pele e magoar a carne. Na arte, nada é sagrado ou inquestionável. É essa a mãe de todas as tradições.

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CANCIONEIRO

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CORADINHATRADICIONAL - ALENTEJO *** TRANSC.: GABRIEL COSTA

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BRINCAS DE ENTRUDOTRADICIONAL - ÉVORA

*CONTRADANÇA*

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LUAR DA NAMOROSAPOPULAR *** CANTIGAS DO BAÚ

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CALIMERO E A PÊRA VERDELETRA: TRADICIONAL

MÚSICA: CELINA DA PIEDADE, TOON VAN MIERLO, PASCAL RUBENSARRANJO: CELINA DA PIEDADE

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