AUTOCONHECIMENTO COMO UM CUIDADO DE SI · 2019. 10. 25. · O autoconhecimento pode ser um caminho...

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| 42 GVEXECUTIVO • V 18 • N 5 • SET/OUT 2019 • FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

A | PROJETO DE VIDA • AUTOCONHECIMENTO COMO UM CUIDADO DE SI

AUTOCONHECIMENTO COMO UM CUIDADO DE SI

COMO FOI O MEU COMPORTAMENTO? O QUE EU SENTI? O QUE EU PENSEI? FAZER PERGUNTAS COMO ESSAS DIANTE DOS ACONTECIMENTOS DA VIDA NOS LEVA A DESENVOLVER COMPETÊNCIAS PARA CONDUZIR MELHOR NOSSA TRAJETÓRIA.

| POR ANDRÉ SILVA

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A realidade cotidiana tem força para se impor sobre nós. Logo, ela trata de ensinar que as nossas trajetórias não se bastam na mera rea-lização de vontades individuais. Apesar dessa constatação, arrisco a dizer: a realidade co-tidiana como nos é dada não nos convence.

Sobreviver a ela parece ser muito pouco. Já que estamos aqui, queremos mesmo existir.

Entre o indivíduo e os desafios em sua trajetória, dá-se, então, um embate brutal com a realidade cotidiana. O indi-víduo, ousado que é, ignora as dificuldades que o cercam e projeta na capacidade de trabalhar arduamente a possi-bilidade de fugir à regra e, assim, viver a vida imaginada para si. Sem medos, arregaça as mangas e lança-se à ávida determinação de escrever a própria história. Tanto empe-nho resultará em algum tipo de mudança, a qual geralmente aproxima o indivíduo um pouco mais do que ele havia pre-viamente projetado atingir/superar. Quando essa aproxima-ção finalmente se conclui e a vivência do objetivo desejado se estabelece, por um instante emana no indivíduo a sen-sação de ter “dominado” os rumos de sua própria história.

No alto dessa autossuficiência – e, portanto, num patamar de humana vulnerabilidade –, esse mesmo indivíduo apres-sa-se em idealizar a próxima conquista. E vai para ação. A fórmula já lhe será velha conhecida: trabalhar arduamente para sobrepor o pouco que a realidade lhe oferece. Instaura-se, então, um ciclo compulsivo em que o indivíduo paga para ver se a força da realidade cotidiana o vencerá ou não. Inicia-se o jogo. Pela ânsia de ganhar, o indivíduo não nota que já perdeu essa partida. Isso aconteceu no momento em que ele mesmo transformou os seus desejos pessoais em meros alvos a se atingir. Por vezes, a raiva tornou-se o mo-tivador na busca de ideais. Sem surpresas, quando o objetivo desejado é alcançado, o indivíduo percebe que a conquista obtida não era exatamente o imaginado. E quem chegaria igual após uma empreitada como essa?!

Esse relato hipotético, mas não inócuo em sua real possi-bilidade de existir, reflete como um cotidiano automatiza-do pelo hábito da sobrevivência pode se instalar nas nossas trajetórias. Na vivência de um processo brutal como esse, pode ser muito fácil negligenciarmos a atenção ao nosso autocuidado. Refiro-me à negligência ao autoconhecimento perante os desafios cotidianos e o modo como conduzimos nossas trajetórias individuais.

AUTOCONHECIMENTO NA TRAJETÓRIA INDIVIDUALO autoconhecimento pode ser um caminho para o cuidado

de si, no qual o indivíduo desenvolve competências que o

ajuda a melhor compreender o modo como percebe o mundo e conduz sua própria trajetória. O ato de autoconhecer-se é fruto de um constante processo de reflexão sobre si e sobre o impacto que geramos nas pessoas, bem como o impacto que elas geram em nós. No texto Caminhos para a apren-dizagem inovadora, José Manuel Moran lembra-nos de que o processo de autoconhecimento estimula o indivíduo a se manter em contínuo e profundo contato consigo mesmo.

Ao entendermos o autoconhecimento como um processo, Marianne Bojer, Heiko Roehl, Marianne Knuth e Colleen Magner, no texto Mapeando diálogos: ferramentas essen-ciais para a mudança social, propõem desenvolvermos a tríade pensamento-sentimento-comportamento. Esses pila-res alicerçam-se na prática da auto-observação. Entende-se que todo o comportamento humano é precedido (e motiva-do) por sentimentos decorrentes de nossos pensamentos.

Vale também ressaltar que os comportamentos humanos são construídos por meio da repetição, a qual “ensina” o cérebro quais reações disparar em determinadas situações. Na realidade cotidiana, a prática da auto-observação dá con-dições para que o indivíduo reflita sobre as suas reações e, consequentemente, sobre os sentimentos oriundos desses comportamentos em repetição. Ao perceber e nomear esses sentimentos, o indivíduo tem a chance de alterar a maneira como enxerga uma questão e, assim, pode mudar conscien-temente o seu comportamento diante da situação enfrentada.

No texto Desenvolvimento pessoal e profissional, Rui Moura atenta-se a alguns pontos que, se preservados, ajudam o indivíduo a desenvolver seu autoconhecimento: conversar consigo mesmo; nomear as próprias emoções; não reprimir os sentimentos; identificar quando sente vontade de dizer não, mas não consegue fazê-lo; ser flexível para considerar maneiras alternativas de pensar sobre si, os outros e o mundo

AUTOCONHECER-SE SIGNIFICA IDENTIFICAR QUANDO SENTIR VONTADE DE DIZER

NÃO, MAS NÃO CONSEGUIR FAZÊ-LO; SER FLEXÍVEL PARA CONSIDERAR MANEIRAS ALTERNATIVAS DE PENSAR SOBRE SI, OS

OUTROS E O MUNDO; QUESTIONAR AS CRENÇAS QUE SÃO REPASSADAS COMO

VERDADE ABSOLUTA; TRANSFORMAR AS CULPAS EM RESPONSABILIDADES.

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ANDRÉ SILVA > Professor e pesquisador da FGV EAESP > [email protected]

PARA SABER MAIS:− Marianne Mille Bojer, Heiko Roehl, Marianne Knuth e Colleen Magner. Mapeando Diálogos:

ferramentas essenciais para a mudança social, 2011.− Mariana Rocha. Ausência e silêncio também ensinam. EI! Ensino Inovativo, v.3, 2018.− José Manuel Moran. Caminhos para a aprendizagem inovadora. In: José Manuel Moran,

Marcos T. Masetto, Marilda A. Behrens. Novas tecnologias e mediação pedagógica, 2009.− Rui Moura. Desenvolvimento pessoal e profissional do professor: uma reflexão da e para

a educação de adultos, 2000. Disponível em: members.tripod.com/RMoura/devprof.htm

que o cerca; questionar as crenças que lhes são repassadas como verdade absoluta; aprender a ouvir os próprios dese-jos; e transformar as culpas em responsabilidades. Como todos esses pontos pressupõem respostas situacionais que mudam ao sabor da realidade vivida, o autoconhecimento reforça-se como um processo que, ao ser iniciado, estimu-la o indivíduo a se manter em contínuo e profundo conta-to consigo mesmo. Mostra ainda que o autoconhecimento é um processo vivo que não está dissociado das situações práticas nem contextuais vividas pelos indivíduos.

Fazer um investimento consciente, de recursos, de tempo e, sobretudo, emocional no autoconhecimento é uma forma de praticar o autocuidado na condução da própria trajetó-ria. É também um modo de buscar um equilíbrio mais justo com as demandas práticas da vida, sejam as que compõem a dimensão profissional, as que configuram os arranjos or-ganizacionais nos quais circulamos, as que impactam as relações pessoais que cultivamos e nutrimos, ou todas as outras dimensões que igualmente constituem a experiên-cia do viver. Assim, se o autoconhecimento é um processo vivo que não está dissociado das dimensões objetivas, prá-ticas, pessoais e contextuais, como dar início ao processo de se autoconhecer?

Um caminho possível pode ser o apontado por Marianne Bojer, Heiko Roehl, Marianne Knuth e Colleen Magner, ao afirmarem que o desenvolvimento do autoconhecimento pode ser guiado pelo indivíduo – em sua auto-observação – ao levantar as seguintes perguntas ao vivenciar um acon-tecimento em sua vida: como foi o meu comportamento? O que eu senti? O que eu pensei? De alguma forma, tais questões indicam que o autoconhecimento reside em gerar perguntas que põem o indivíduo à descoberta e à compre-ensão de si ante os acontecimentos da vida. Ultimamente, quais perguntas você tem feito a si mesmo?

AUTOCONHECIMENTO E O DESTINO COLETIVOSabendo um pouco mais sobre o impacto do autoconhe-

cimento no modo como articulamos as nossas trajetórias individuais sobrevivendo à realidade cotidiana, faço-lhe um convite: para que não façamos da própria vida um jogo vazio, voltado a algumas conquistas, talvez precisemos desconstruir idealizações feitas no passado. Nossos planos

e desejos estão, a princípio, susceptíveis a uma nova revi-são, revisão esta que ocorre ao estarmos atentos aos sinais emitidos em nossa trajetória, aos sentimentos que emergem em nós, às reflexões que nos mobilizam e nos inquietam, às questões que promovem autoconhecimento e expansão. É dessa atenção sutil aos detalhes que, muitas vezes, surgem direções até mais interessantes a seguir. Mudamos, então, os nossos rumos e planos. Ainda assim, completamente ali-nhados às nossas convicções.

De certo modo, aproximar-se de um autoconhecimento mais aguçado e cotidianamente praticado pode nos levar a uma vida que dialogue conosco e não apenas se sobreponha a nós com suas infinitas demandas práticas, organizacionais e objetivas do cotidiano. O dia a dia da vida é mediado por muito trabalho. Demanda dedicação e um pouco de sorte, para não sucumbir aos desafios. Resta-nos o autocuidado de não tornar a própria trajetória um jogo incessante que prioriza atingir metas sob o preço de se negligenciar nesse ato. Em vez disso, aproveitemos para nos auto-observarmos. Assim, poderemos modificar a forma como nos percebemos e nos autoconhecemos e teremos a chance de transformar o modo como nos articulamos nesse mundo.

Quem sabe, no investimento de nos autoconhecermos, não percebamos que as situações impostas pela brutal realidade são pontualmente necessárias, pois são elas as circunstâncias que nos convocam a refletir sobre o que estamos fazendo conosco em nossas trajetórias individuais. Na identificação das angústias, pressões, anseios e desejos partilhados nas muitas trajetórias individuais, questionaremos os modos e ritmos de como coletivamente vivemos. Se tivermos essa sorte, entenderemos que o autoconhecimento aproxima as nossas humanidades e, nessa soma humana, partilharemos o mútuo autocuidado que direcionará os rumos do nosso próprio destino coletivo.

PARA QUE NÃO FAÇAMOS DA PRÓPRIA VIDA UM JOGO VAZIO, VOLTADO A ALGUMAS CONQUISTAS, TALVEZ PRECISEMOS DESCONSTRUIR IDEALIZAÇÕES

FEITAS NO PASSADO PARA ABRIR CAMINHO A NOVAS POSSIBILIDADES.