A Etica Do Cuidado de Si Como Pártica Da Liberdade

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O CUIDADO DE SI COMO PRÁTICA DA LIBERDADE: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA DISCUSSÃO SOBRE A ÉTICA EM MICHEL FOUCAULT Cristine Monteiro Mattar 1 Heliana de Barros Conde Rodrigues 2 Meu papel – mas este é um termo muito pomposo – é mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiros, por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída. O papel de um intelectual é mudar alguma coisa no pensamento das pessoas (Foucault, 2004a, p. 295). O presente artigo analisa a noção de cuidado de si, à qual Foucault deu especial ênfase nos cursos, entrevistas e livros habitualmente caracterizados como pertencentes ao terceiro momento de sua trajetória intelectual. Nosso objetivo é apresentar o modo como a ética antiga foi revisitada por Foucault, não no sentido de oferecer uma solução a ser aplicada aos problemas contemporâneos, mas como uma forma de mostrar aos contemporâneos que já houve configurações outras da relação entre o sujeito e os jogos de verdade. Entre os antigos, essa relação assumia a forma de exercícios espirituais, de modo que a filosofia, longe de ser apenas conhecimento, era primordialmente arte de viver logos a ser meditado e assimilado, de início somente pelos que estavam destinados a governar e, posteriormente, por 1 Professora Assistente da Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 2 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. 1

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O CUIDADO DE SI COMO PRÁTICA DA LIBERDADE: CONTRIBUIÇÕES

PARA UMA DISCUSSÃO SOBRE A ÉTICA EM MICHEL FOUCAULT

Cristine Monteiro Mattar1

Heliana de Barros Conde Rodrigues2

Meu papel – mas este é um termo muito pomposo – é mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiros, por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída. O papel de um intelectual é mudar alguma coisa no pensamento das pessoas (Foucault, 2004a, p. 295).

O presente artigo analisa a noção de cuidado de si, à qual Foucault deu especial

ênfase nos cursos, entrevistas e livros habitualmente caracterizados como pertencentes

ao terceiro momento de sua trajetória intelectual. Nosso objetivo é apresentar o modo

como a ética antiga foi revisitada por Foucault, não no sentido de oferecer uma solução

a ser aplicada aos problemas contemporâneos, mas como uma forma de mostrar aos

contemporâneos que já houve configurações outras da relação entre o sujeito e os jogos

de verdade.

Entre os antigos, essa relação assumia a forma de exercícios espirituais, de modo

que a filosofia, longe de ser apenas conhecimento, era primordialmente arte de viver –

logos a ser meditado e assimilado, de início somente pelos que estavam destinados a

governar e, posteriormente, por todos. A filosofia era então uma preparação para a vida,

um modo refletido de exercer a liberdade, ou seja, uma ética. Não havia, entretanto,

preocupação com o estabelecimento de prescrições morais que ordenassem e

regulassem a vida de qualquer pessoa. Através da prática (facultativa) dos exercícios

espirituais, o sujeito se auto-constituía e auto-governava, o que não significava, cumpre

ressaltar, fazer tudo o que lhe aprouvesse. Ser livre era cuidar de si, conquistar o

domínio de si, particularmente dos apetites e inquietações passíveis de escravizar o

sujeito.

Conforme já assinalamos, Foucault não propõe que a noção de cuidado de si seja

atualizada em contraposição ao pensamento moderno. Não a vê como a chave de tudo e

jamais pensaria em termos de um fundamento filosófico esquecido a ser redescoberto. A

1 Professora Assistente da Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 2 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo.

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esse respeito, em uma entrevista datada de janeiro de 1984, à qual muitas vezes

regressaremos, afirma:

Acredito que todas essas formas de análise, quer assumam uma forma radical, dizendo que, desde o seu ponto de partida, a filosofia foi esquecida, quer assumam uma forma muito mais histórica dizendo: “Veja, em tal filosofia, alguma coisa foi esquecida”, não são muito interessantes, não se pode deduzir delas muita coisa. O que, entretanto, não significa que o contato com esta ou aquela filosofia não possa produzir alguma coisa, mas seria preciso então enfatizar que essa coisa é nova (Foucault, 2004b, p. 280).

Podemos dizer algo parecido, pois, mediante o contato com cursos e entrevistas

de Foucault, buscamos produzir algo novo e convidar o leitor a que o faça também.

O recobrimento do cuidado de si

No curso A Hermenêutica do Sujeito, ministrado no Collège de France em 1982,

Foucault retoma a concepção de verdade dos antigos. Desenvolve uma história do

cuidado de si desde Platão até os epicuristas e estóicos dos dois primeiros séculos de

nossa era, contrapondo-o ao conhecimento de si, privilegiado pela tradição filosófica. O

cuidado de si correlaciona-se ao saber de espiritualidade que, embora prestigiado no

final da Antiguidade, foi sendo pouco a pouco limitado, recoberto, quase apagado por

outro modo de saber, o saber de conhecimento. Foucault chega a datar o ápice dessa

mutação:

Sem dúvida, foi nos séculos XVI-XVII que o saber de conhecimento finalmente recobriu por inteiro o saber de espiritualidade, não sem ter dele retomado alguns elementos. É certo que, no que concerne ao que se passou no século XVII em Descartes, Pascal, Espinosa, etc., poderíamos encontrar esta conversão do saber de espiritualidade em saber de conhecimento (Foucault, 2006, p. 374).

Se em 1981, no curso Subjetividade e Verdade, Foucault promovera uma

reflexão histórica sobre a experiência dos prazeres (aphrodísia) na antiguidade greco-

latina, em 1982 (A Hermenêutica do sujeito) irá extrair os termos mais gerais do

problema das relações entre sujeito e verdade. Já na primeira aula delimita essa

problematização: “[...] em que forma de história foram tramadas, no Ocidente, as

relações, que não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica habitual, entre

estes dois elementos, o ‘sujeito’ e a ‘verdade’” (Foucault, 2006, p. 4). Para desenvolvê-

la, como é habitual, Foucault surpreende.

Enquanto tudo indica que, na história da filosofia ocidental, o “conhece-te a ti

mesmo” (gnôthi seautón) seria a fórmula fundadora das relações entre sujeito e verdade,

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Foucault toma como ponto de partida o “cuidado de si mesmo”, tradução da epiméleia

heautoû grega – noção aparentemente marginal que percorre o pensamento grego sem

que lhe tenha sido atribuído um status particular.

Em seguida, Foucault parece aderir à tradição quando afirma que o gnôthi

seautón emerge no pensamento filosófico em torno do personagem de Sócrates.

Adverte, no entanto, que esse preceito délfico surge por vezes atrelado ao “cuida de ti

mesmo”, ou mesmo a ele subordinado; melhor dizendo, como uma aplicação da

seguinte regra geral: “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti

mesmo, que tenhas cuidado contigo mesmo” (idem, p.7).

No texto platônico A apologia de Sócrates, vê-se que alguém deve lembrar aos

homens, incessantemente, que necessitam cuidar de si mesmos, tarefa confiada pelos

deuses a Sócrates: ele desempenha, quanto aos concidadãos, o papel daquele que

desperta. Em nova passagem do texto de Platão, o cuidado de si é dito um aguilhão que

deve ser implantado na carne dos homens, em sua existência, como um princípio de

agitação, de movimento, de inquietude no curso da existência. Sócrates é então

comparado ao tavão, um inseto que persegue os animais, pica-os e os faz correr e agitar-

se. Sócrates é, pois, o homem do cuidado de si, o que leva Foucault a reafirmar que a

epiméleia heautoû deve ser distinguida do gnôthi seautón, preceito cujo prestígio fez

recuar a importância da primeira.

A despeito disso, o cuidado de si manteve-se como princípio fundamental da

atitude filosófica durante quase toda a cultura grega, helenística e romana, a ponto de

extrapolar, inclusive, a vida filosófica em sentido estrito: fez-se diretriz de toda forma

de vida ativa que pretendesse obedecer ao princípio de racionalidade moral. Observa

Foucault quanto a isso: “A incitação a ocupar-se consigo mesmo alcançou, durante o

longo brilho do pensamento helenístico e romano, uma extensão tão grande que se

tornou, creio, um verdadeiro fenômeno cultural de conjunto” (idem, p.13).

Nesse aspecto, Foucault mais uma vez se distancia radicalmente das formas

tradicionais de história das idéias filosóficas. Afirma que o desafio colocado a uma

história do pensamento está em apreender aqueles momentos decisivos em que certos

fenômenos culturais se tornam um acontecimento no pensamento. É o que percebe,

justamente, na epiméleia heautoû:

...com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas de subjetividade (idem, p. 15).

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Em uma síntese que apenas sobrevoa o minucioso desenvolvimento do curso A

Hermenêutica do sujeito, pode-se dizer que a noção de epiméleia heautoû remete a uma

atitude para consigo, para com os outros e para com o mundo; a uma forma de conduzir

o olhar do exterior para si mesmo; ou ainda, e talvez primordialmente, a certas ações

exercidas de si para consigo, pelas quais “nos assumimos, nos modificamos, nos

purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos” (idem, p.15), sob a forma de

técnicas de meditação, de memorização do passado, de exame da consciência etc.

Foucault levanta algumas hipóteses sobre o motivo de a noção de cuidado de si

ter sido desconsiderada no modo como a filosofia ocidental refez sua própria história,

passando a privilegiar o “conhece-te a ti mesmo”. Em primeiro lugar, parece haver, para

nós, algo de perturbador no princípio do cuidado de si. Mas o que seria perturbador? O

princípio do cuidado de si foi convertido nas fórmulas “ocupar-se consigo”, “ter

cuidados consigo mesmo”, “retirar-se em si mesmo”, “sentir prazer em si mesmo”,

“buscar deleite somente em si”, “ser amigo de si mesmo”, “respeitar-se”, “prestar culto

a si mesmo” etc. E uma certa tradição (ou várias) nega valor positivo a tais formulações,

de modo que elas passaram a soar aos nossos ouvidos “como uma espécie de desafio e

de bravata, uma vontade de ruptura ética, uma espécie de dandismo moral, afirmação-

desafio de um estádio estético e individual intransponível” (idem, p. 16); ou mesmo,

eventualmente, como a expressão melancólica de uma volta do indivíduo sobre si, visto

que, incapaz de sustentar uma moral coletiva, só lhe restaria ocupar-se consigo. Para o

pensamento antigo, todavia, ocupar-se consigo tinha invariavelmente um sentido

positivo e, além disso, constituíram-se a partir desse preceito as morais mais austeras e

restritivas do Ocidente – a estóica, a epicurista e a cínica, e não a cristã (como gostamos

de pensar...quando alheios a Foucault).

Nesta linha, o que para nós significa, com conotação negativa, egoísmo ou volta

sobre si foi, na verdade, um princípio matricial positivo de morais extremamente

rigorosas. Tal rigor será futuramente retomado, porém em um clima diferente, ou

melhor, transferido para o contexto de uma ética geral do não-egoísmo, “seja sob a

forma cristã de uma obrigação de renunciar a si, seja sob a forma ‘moderna’ de uma

obrigação para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a

pátria etc. [...]” (idem, p. 17).

Para Foucault, contudo, não foram esses paradoxos da história da moral a

principal razão para a desconsideração, por parte dos historiadores da filosofia, do tema

do cuidado de si. O motivo principal residiria nas vicissitudes da história da verdade, 4

mais especificamente no que ele chamou de “momento cartesiano”. Nas Meditações, ao

instaurar a evidência, conforme se dá à consciência – evidência apodítica, da qual não é

possível duvidar –, no ponto de partida do procedimento filosófico, é ao conhecimento

de si que Descartes se refere. Pois se a evidência da existência própria do sujeito é

colocada no princípio de acesso ao ser, este conhecimento de si mesmo, sob a forma da

indubitabilidade de minha existência como sujeito, acaba fazendo do conhece-te a ti

mesmo “um acesso fundamental à verdade” (idem, p. 8-19). Quanto a esse ponto,

Foucault conclui:

Entre o gnôthi seautón socrático e o procedimento cartesiano há grande distância. A partir deste procedimento o princípio do conhece-te a ti mesmo como fundador do procedimento filosófico pôde ser aceito desde o século XVII em certas práticas ou procedimentos filosóficos. Ao mesmo tempo em que o requalificou, desqualificou o princípio do cuidado de si, excluindo-o do campo do pensamento filosófico moderno (idem, p. 19).

A partir dessas considerações, Foucault nos convida a denominar “filosofia” a

forma de pensamento que se interroga sobre o que faz com que haja verdadeiro e falso,

o que nos torna possível separar verdadeiro e falso; que se interroga, em suma, sobre o

que permite ao sujeito ter acesso à verdade, que tenta determinar as condições e os

limites do acesso do sujeito à verdade. E se é isto a filosofia, a “espiritualidade” remete,

por sua parte, ao conjunto de buscas, práticas e experiências, tais como as asceses e

modificações da existência, que constituem “não para o conhecimento, mas para o

sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade” (idem,

p.19).

Neste sentido, prossegue Foucault, à espiritualidade – ao menos ocidental –

podem ser atribuídas três características. Primeiramente, a necessidade de que o sujeito

se transforme, se modifique para ter acesso à verdade, pois esta não lhe é dada por um

simples ato de conhecimento: “A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em

jogo o ser mesmo do sujeito. Pois, tal como ele é, não é capaz de verdade” (idem, p. 19-

20).

Sendo necessária uma conversão do sujeito para que haja verdade, a segunda

característica da espiritualidade reside nas diferentes formas que ela pode asumir: um

movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua condição atual – Foucault o

chama de éros (amor) –; e um trabalho de si para consigo, elaboração de si para

consigo, transformação progressiva em que se é o próprio responsável por um longo

labor – trata-se então da àskesis (ascese).

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Por fim, a terceira característica da espiritualidade é a postulação de que o

acesso à verdade produz efeitos que, se por um lado são conseqüência do procedimento

espiritual realizado para atingi-la, por outro são algo mais: aquilo que Foucault

denomina “retorno” da verdade sobre o sujeito.

Para a espiritualidade, a verdade não é simplesmente o que é dado ao sujeito a fim de recompensá-lo, de algum modo, pelo ato de conhecimento e a fim de preencher este ato de conhecimento. A verdade é o que ilumina o sujeito; a verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá tranqüilidade de alma. Em suma, na verdade e no acesso à verdade, há alguma coisa que completa o próprio sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o transfigura (idem, p. 20-21).

Concisamente, a diferença entre a espiritualidade e a filosofia – inaugurada esta,

como vimos, pelo “momento cartesiano” – é que, na primeira, o acesso à verdade é

inconcebível por um mero ato de conhecimento. Na Antiguidade, a questão filosófica do

acesso à verdade e a prática da espiritualidade como transformação necessária do sujeito

– “não do indivíduo, mas do próprio sujeito em seu ser de sujeito” (idem, p. 21) – eram

inseparáveis.

Para Foucault, a história da verdade entra em seu período moderno – o que ainda

somos...ou já não somos mais? – justamente quando admitimos que o que dá acesso à

verdade é tão somente o conhecimento, ou melhor, “no momento em que o filósofo (ou

o sábio, ou simplesmente aquele que busca a verdade), (...) sem que seu ser de sujeito

deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de

conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso (idem, p. 22).

Ninguém ignora, vale dizer, que nesse período moderno também existem

condições (e quantas!) para aceder à verdade. Foucault não as desconhece. Porém

preocupa-se em mostrar que elas não mais concernem à espiritualidade. Por um lado,

temos as condições do ato de conhecimento e as regras a serem por este obedecidas:

“condições formais, condições objetivas, regras formais do método, estruturas do objeto

a conhecer” (idem, p. 22). É fácil perceber que essas condições de acesso à verdade são

definidas do interior do próprio conhecimento: não mais a transformação do sujeito,

mas a aplicação de um método para o acesso à verdade; não mais uma verdade que afeta

o próprio ser do sujeito, mas uma verdade que pode ser conhecida, de forma neutra, por

todos, sem exigir modificação alguma. A verdade não precisa mais ser vivida, apenas

investigada e teorizada. Por outro lado, há também condições extrínsecas de acesso do

sujeito à verdade: não ser louco, ter realizado estudos, estar inscrito em algum consenso

científico, esforçar-se, ajustar os interesses financeiros, de carreira ou de status às

normas de pesquisa desinteressada etc. Tampouco essas condições (jurídicas, culturais, 6

morais) concernem ao sujeito na sua estrutura de sujeito, apenas ao indivíduo em sua

existência concreta. E quando se afirma que, tal qual é, o sujeito é capaz de verdade,

inaugura-se, ao ver de Foucault, “outra era da história das relações entre subjetividade e

verdade” (idem, p. 23). Nessa era, que é (ainda?) a nossa, o acesso à verdade, tendo por

condição somente o conhecimento, “nada mais encontrará no conhecimento, como

recompensa e completude, do que o caminho indefinido do conhecimento” (idem, p.

23).

Embevecidos com os incensados progressos do conhecimento, a ponto de

eventualmente nada mais nos parecer possível ou desejável, como diretriz de conduta no

presente, senão a respeitosa submissão aos cânones epistemológico-morais que

condicionam a busca incessante da verdade, frequentemente nos esquecemos que, com a

era moderna,

Não se pode mais pensar que, como coroamento ou recompensa, é no sujeito que o acesso à verdade consumará o trabalho ou o sacrifício, o preço pago para alcançá-la. (...) Tal como doravante ela é, a verdade não será capaz de salvar o sujeito (idem, p. 23-24).

A arte de viver: a ética do cuidado de si como prática da liberdade

Em resposta à questão “Então, que tipo de ética podemos construir hoje em dia,

quando sabemos que entre a ética e as outras estruturas há apenas coagulações históricas

e não uma relação necessária?”, que lhe foi dirigida em abril de 1983 por Dreyfus e

Rabinow (1995, p. 261), Foucault declara:

O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas aos objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feita por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida? (Foucault, 1995a, p. 261).

Esse tema, tão atual e perturbador, foi retomado em nova entrevista, A ética do

cuidado de si como prática da liberdade, concedida em janeiro de 1984 a Becker,

Fornet-Betancourt e Gomez-Müller, que, por sinal, haviam acompanhado o curso A

Hermenêutica do sujeito.

Ao longo desse encontro, Foucault reafirma o interesse pelas relações do sujeito

com os jogos de verdade, embora se recuse a acatar a sugestão dos entrevistadores de

que tal problema constitua uma descontinuidade radical em sua trajetória filosófica.

Segundo Foucault, ao contrário, esse sempre fora o seu problema, analisado, até certo

momento, a partir das práticas coercitivas, como a psiquiatria e o sistema penitenciário,

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ou dos jogos teóricos ou científicos, como a análise das riquezas, da linguagem e do ser

vivo. Nos cursos do Collège de France, por sua vez, ele passou a ser considerado

através das práticas de autoformação do sujeito. Pois as práticas de si, tão importantes

nas civilizações grega e romana, eram práticas ascéticas, no sentido “de um exercício de

si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um

certo modo de ser” (Foucault, 2004b, p. 265).

Em diálogo de início tenso com seus interlocutores, Foucault reivindica, para as

práticas de autoconstituição, um estatuto distinto do de uma liberação, tema que, a seu

ver, geralmente pressupõe a existência de uma essência humana, submetida a

mecanismos de repressão que precisariam ser rompidos com vistas a uma reconciliação

do homem consigo mesmo. Sem descartar a existência de situações específicas de

opressão ou repressão (econômica, social, institucional, sexual etc.) – que, por sinal,

prefere chamar de estados de dominação –, Foucault não vê na liberação correspondente

qualquer garantia de instauração de práticas de liberdade. Em suas palavras, a liberação

quanto a uma dominação não assegura que os indivíduos e a sociedade “possam definir

para eles mesmos formas aceitáveis e satisfatórias da sua existência ou da sociedade

política” (idem, p. 266). Sendo assim, insiste mais nas práticas de liberdade do que nos

processos de liberação, embora admita que práticas de liberdade possam eventualmente

ter por condição um certo grau de liberação – quando, por exemplo, as relações de

poder se encontram de tal modo cristalizadas, que os movimentos de transformação e/ou

reversão acham-se extremamente restringidos.

No decorrer da entrevista, Foucault define a ética como “a forma refletida

assumida pela liberdade”, e a liberdade como “condição ontológica da ética” (idem, p.

267). No mundo greco-romano, para praticar a liberdade de forma refletida, portanto

ética, era imperioso cuidar de si; já em nossas sociedades, a partir de um momento

difícil de precisar, o cuidado de si passou a estar sob suspeita, a ser denunciado como

uma forma de egoísmo, em contradição com o interesse que se deveria ter pelos outros

ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Foucault acrescenta que tudo isso ocorreu

durante o cristianismo, embora se recuse a dizê-lo mero fruto do cristianismo. Lembra

que buscar a salvação, por exemplo, constitui uma forma de cuidar de si, por mais que

implique, paradoxalmente, uma renúncia a si.

Reativando a argumentação presente em A Hermenêutica do sujeito, Foucault

frisa que, entre os gregos e romanos, o cuidado de si não tinha qualquer conotação

egoísta; ao contrário, era necessário àquele que quisesse se conduzir bem, praticar de

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forma adequada a liberdade. Ocupar-se de si mesmo era uma condição para se conhecer,

bem como “para se formar, superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que

poderiam arrebatá-lo” (idem, p. 268).

Embora não faça do cuidado de si um sinônimo de ética, Foucault considera que,

na Antiguidade, a ética girava em torno desse imperativo. Para cuidar de si era preciso

então atender a duas condições: conhecer a si mesmo e assimilar os logoi, princípios

que são, ao mesmo tempo, verdades e prescrições: “Cuidar de si é se munir dessas

verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade” (idem, p. 269).

Para os gregos, a liberdade do indivíduo era um problema imediatamente ético,

sendo o êthos entendido como maneira de ser, de se conduzir – modo de ser e fazer do

sujeito, visível para os outros, traduzido “por seus hábitos, por seu porte, por sua

maneira de caminhar, pela calma com que responde a todos os acontecimentos etc.”

(idem, p. 270). Por conseguinte, não era necessária qualquer conversão para que a

liberdade – concreta, em atos – fosse pensada como êthos. Todavia, acrescenta

Foucault, “para que essa prática da liberdade tome forma em um êthos que seja bom,

belo, honroso, respeitável, memorável e que possa servir de exemplo, é preciso todo um

trabalho de si sobre si mesmo” (idem, p. 270).

Contrapondo-se a possíveis mal-entendidos, tendentes a separar ética e política

entre os gregos, Foucault lança mão de dois argumentos. Primeiramente, distingue o

modo como era então entendida a liberdade da forma como nós a entendemos hoje.

Para os gregos, “liberdade significa não-escravidão” e constitui, portanto, um problema

imediatamente político: “um escravo não tem ética” (idem, p. 270). Condição para a

ética, a política também lhe oferece o modelo: ser livre significa não ser escravo de si

mesmo e implica domínio, controle, comando de si, poder sobre si mesmo.

Tantas expressões de caráter reflexivo demandam nova articulação entre ética e

política, que traga os outros à cena. Entre os gregos, enfatiza Foucault, o cuidado de si é

ético em si mesmo, e não por ser cuidado dos outros. Nem por isso este último é

desconsiderado: “O cuidado de si implica relações complexas com os outros” (idem, p.

270). Tais relações remetem seja à arte de governar – a mulher, os filhos, a casa –, seja

ao ato de ocupar, na cidade, na comunidade e nas relações interindividuais, o lugar

conveniente – ao exercer uma magistratura, manter relações de amizade etc. Não menos

importante é a relação com um outro particular: “para cuidar bem de si, é preciso ouvir

as lições de um mestre (...), de um conselheiro, de um amigo, de alguém que lhe diga a

verdade” (idem, p. 271).

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Os argumentos anteriores são reunidos por Foucault no que tange à vida na

cidade grega: “Uma cidade na qual todo mundo cuidasse de si adequadamente

funcionaria bem e encontraria nisso o princípio ético de sua permanência” (idem, p.

271). Isto porque o cuidado de si seria uma conversão do poder, uma maneira de

controlá-lo e limitá-lo, evitando aquele perigo que parece ser o inverso da escravidão: o

abuso de poder, quer na figura do tirano, quer na do homem rico e poderoso que

ultrapassam o exercício legítimo do poder e impõem aos demais seus apetites e desejos.

Homens como esses, dizem os filósofos gregos, seriam escravos dos próprios apetites:

ao não exercerem poder sobre si mesmos, não podem regular o poder sobre os outros.

De acordo com Foucault, diferentemente do risco de absolutização do poder que virá,

mais tarde, a ser associado ao cuidado de si, no pensamento grego “o risco de dominar

os outros e de exercer sobre eles um poder tirânico decorre precisamente do fato de não

ter cuidado de si mesmo e de ter se tornado escravo dos seus desejos” (idem, p. 272).

Conclusão

Um dos meus objetivos é mostrar às pessoas que um bom número de coisas que fazem parte de sua paisagem familiar – que elas consideram universais – são o produto de certas transformações históricas bem precisas. Todas as minhas análises se contrapõem à idéia de necessidades universais na existência humana. Elas acentuam o caráter arbitrário das instituições e nos mostram de que espaço de liberdade ainda dispomos, quais são as mudanças que podem ainda se efetuar (Foucault, 2004a, p. 296).

Apesar da renitência de Foucault em afirmar que o sujeito, em suas relações com

os jogos de verdade, teria sido sempre o problema que orientara suas pesquisas e

reflexões, a inegável ênfase por ele posta, nos trabalhos tardios, em um sujeito ética e

politicamente ativo não cessa de surpreender e de conduzir a mal-entendidos. Pois não

teria sido justamente Foucault aquele que nos impedira de falar, pomposa e

tranquilamente, do sujeito? Pois não seriam o louco, o doente e o criminoso seres

inteiramente passivos, ou seja, sujeitados tanto aos ditames de discursos com pretensões

científicas quanto a práticas institucionais de docilização-controle-despolitização?

Os interlocutores de Foucault na entrevista que vimos acompanhando não estão

imunes a essas indagações, o que nos auxilia no intuito de conferir-lhes potência.

Indagado acerca de uma pretensa “virada subjetiva” de percurso, mediante a qual a

sujeição-objetivação se teria transmutado em subjetivação-liberdade, Foucault descarta,

como de hábito, a adoção da perspectiva de um sujeito constituinte, originalmente livre,

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inventor solitário ou temporo-espiritual de sua própria história. Quanto a isso, vale a

pena dar especial atenção ao trecho seguinte:

[...] se agora me interesso de fato pela maneira com a qual o sujeito se constitui de uma maneira ativa, através das práticas de si, essas práticas não são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social (Foucault, 2004b, p. 276).

Cuidadoso com as práticas de si, e notadamente com o cuidado de si, Foucault

não nos convida, evidentemente, a qualquer espécie de resgate do sujeito-substância, do

sujeito-natureza, mas, talvez, a uma exterioridade radical, a olhar à volta para apreender

modos múltiplos de subjetivação, alguns (tantos?) desejosos de normas, outros (quiçá

poucos, que importa?) eventualmente marcados pela singularidade – todos eles, porém,

formas históricas, dificilmente idênticas a si mesmas, de relação consigo (e com os

outros), nunca verdades universais do sujeito, independentes dos jogos discursivos e

institucionais em exercício.

Foucault nos fala de esquemas “disponíveis”, ou mesmo “impostos”, o que não o

impede de afirmar a presença de práticas de liberdade. Quiçá no mesmo sentido ele

tenha começado a evitar, a partir de certo momento, a palavra poder, passando a utilizar

quase exclusivamente a expressão “relações de poder” ou, alternativamente, “governo

das condutas” e “condução de condutas”, entendidas como “ações sobre as ações de

outrem” (Foucault, 1995b). Tal mudança é bem mais que terminológica, pois procura

fazer ver que, ao focalizar o poder, referimo-nos a relações, sendo estas, enquanto

relações, necessariamente móveis, instáveis e reversíveis, possíveis apenas quando os

envolvidos são livres. As relações de poder, por conseguinte, pressupõem a

possibilidade de resistência, de não ter sua conduta governada – se não de modo

absoluto, o que talvez reintroduzisse subrepticiamente uma liberdade subjetiva

essencial, ao menos pelos preceitos e dispositivos envolvidos em circunstâncias ou

conjunturas determinadas.

Foucault não defende, portanto, a onipotência do poder, como lhe é imputado

com freqüência. Sua ênfase recai, ao contrário, exatamente sobre a possibilidade de

resistência ao que parece natural, à presumida realidade com a qual nossos olhos já se

habituaram. Assim o expõe na entrevista focalizada:

[...] recuso-me a responder à questão que às vezes me propõem: “Ora, se o poder está por todo lado, então não há liberdade”. Respondo: se há relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado (Foucault, 2004b, p. 277).

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Apesar disso, no mesmo momento, Foucault repudia a vertente profética dos

jogos de verdade. Reconhecendo que toda a cultura ocidental passou a girar em torno de

uma obrigação de verdade – sintetizável, talvez, na pergunta “quem é você?”, por mais

que historicamente tenha assumido diferentes formas –, não se propõe a oferecer

garantias de que seja possível construir uma estratégia fora dessa obrigação. O que é,

sim, possível, segundo ele, é se deslocar “algumas vezes contra os efeitos de dominação

que podem estar ligados às estruturas de verdade ou às instituições encarregadas da

verdade” (idem, p. 280).

Neste ponto, consideramos fundamental pontuar que, entre os agentes ‘psi’

brasileiros, as pesquisas foucaultianas ditas “genealógicas” mobilizaram inumeráveis

reflexões e críticas (principalmente autocríticas). Porém se tem a impressão, pelo

volume e estilo da produção mais recente, que o tema das “práticas de si” ou das “artes

da existência” tomou inteiramente o lugar desses estudos, à maneira de uma “esperança

equilibrista” supostamente apta a eliminar do horizonte do pensável a inevitável tensão

ligada a nosso lugar de peritos nas redes sociais de exercício (disciplinar-normatizador)

do poder. O presente artigo, se algum intuito teve além da inicialmente mencionada (e

provavelmente superestimada) “produção de uma coisa nova”, voltou-se a tentar

arrancar expressões como “práticas de si” e “cuidado de si” de um eventual (e perigoso)

“paraíso psi do sujeito-origem”, a fim de relançá-las no terreno agonístico das relações

de saber-poder em que estamos inevitavelmente envolvidos.

Para tanto, chegando ao seu final, retorna às palavras de Foucault. Pois, de

acordo com ele,

Trata-se precisamente de ver que as relações de poder não são alguma coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar; acredito que não pode haver sociedade sem relações de poder, se elas forem entendidas como estratégias através das quais os indivíduos tentam conduzir, determinar a conduta dos outros. O problema não é, portanto, tentar dissolvê-las na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o êthos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação (idem, p. 284).

O cuidado de si como prática da liberdade situa-se, portanto, no coração da

problemática das relações de poder. Como uma arte de viver, associa-se a

procedimento, método, artifício. Desejamos privilegiar o último termo: artifício

significa ardil, estratagema, cilada, emboscada, armadilha, arapuca. O cuidado de si – e

eis a “coisa nova” que nos foi sugerida por Foucault no trecho com que encerramos

nossa introdução –, como prática refletida da liberdade, pode ser visto como uma

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“arapuca” para aquelas relações de poder em que jogos de verdade passaram a ocupar o

lugar da liberdade, e quase nos fizeram não mais perceber...que ela, situada, intransitiva-

intransigente, se exerce ao nosso lado, sempre.

Referências

DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, M. Sobre a genealogia da ética. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995a.

______________. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995b.

______________. Verdade, Poder e Si Mesmo. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004a.

______________. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b.

______________. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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