A natureza jurídica do preâmbulo constitucional

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A natureza jurídica do preâmbulo constitucional por José Carrazzoni Jr Recebido em janeiro de 2009. O preâmbulo constitucional é a parte introdutória da Constituição, ou dito de outra forma, é o texto antecedente, que anuncia os postulados ínsitos no corpo da Carta. Vincula-se à integralidade do texto, de forma exemplificativa. De acordo com o que preconiza PAULO DOURADO DE GUSMÃO apud NASCIMENTO SILVA “tradicionalmente, as constituições têm uma parte introdutória: ‘preâmbulo’, estabelecedora das idéias políticas, jurídicas, econômicas e culturais, que deverão orientar o legislador ordinário em sua tarefa legiferante e inspirar o intérprete na apuração do sentido do sistema constitucional .” [1] Como ensina ALEXANDRE DE MORAES “o preâmbulo deve sintetizar sumariamente os grandes fins da Constituição, servindo de fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo para a atividade política do governo.” [2] Na visão de ALVES JR.: “No Preâmbulo, assim como nos demais dispositivos constitucionais, vê-se claramente a manifestação do ‘querer‘ normativo-constitucional e os desafios que a realidade impõe inexoravelmente. Os Preâmbulos, como todas as normas, são ‘catálogos de expectativas’ que podem causar enormes frustrações ou imensa felicidade. Isso porque, além das condutas humanas, há fatores externos que independem da vontade (ou do agir) humana, ou que exigem mais do que simples boa vontade. Além de bondade, é preciso viabilidade material para concretizar todas as promessas exaladas no texto constitucional .” [3] A doutrina não encontra um lugar comum na definição da natureza jurídica do Preâmbulo. Sendo considerado, por alguns doutrinadores, como tendo “o mesmo valor que a Constituição, estando acima das normas infraconstitucionais, pois revela a intenção do legislador constituinte originário.” [4] O STF na ADI n.º 2.076-AC, firmou entendimento pelo voto do Ministro CARLOS VELLOSO, considerando o “preâmbulo, segundo Jorge Miranda, ‘proclamação mais ou menos solene, mais ou menos significante, anteposta ao articulado constitucional não é componente necessário de qualquer Constituição, mas tão somente um elemento natural de Constituições feitas em momentos de ruptura histórica ou de grande transformação político- social.’(Jorge Miranda, ‘Estudos sobre a Constituição’, pág. 17) .” Sobre o tema, a ementa da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, trouxe a seguinte definição: “não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa.” [5] O enfrentamento da ADI n.º 2.076-AC foi vinculado no Informativo STF nº 277, de 12 a 16 de agosto de 2002, nos seguintes termos:

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A natureza jurídica do preâmbulo constitucional

por José Carrazzoni Jr

Recebido em janeiro de 2009.

O preâmbulo constitucional é a parte introdutória da Constituição, ou dito de outra forma, é o texto antecedente, que anuncia os postulados ínsitos no corpo da Carta. Vincula-se à integralidade do texto, de forma exemplificativa. De acordo com o que preconiza PAULO DOURADO DE GUSMÃO apud NASCIMENTO SILVA “tradicionalmente, as constituições têm uma parte introdutória: ‘preâmbulo’, estabelecedora das idéias políticas, jurídicas, econômicas e culturais, que deverão orientar o legislador ordinário em sua tarefa legiferante e inspirar o intérprete na apuração do sentido do sistema constitucional.”[1]

Como ensina ALEXANDRE DE MORAES “o preâmbulo deve sintetizar sumariamente os grandes fins da Constituição, servindo de fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo para a atividade política do governo.”[2]

Na visão de ALVES JR.: “No Preâmbulo, assim como nos demais dispositivos constitucionais, vê-se claramente a manifestação do ‘querer‘ normativo-constitucional e os desafios que a realidade impõe inexoravelmente. Os Preâmbulos, como todas as normas, são ‘catálogos de expectativas’ que podem causar enormes frustrações ou imensa felicidade. Isso porque, além das condutas humanas, há fatores externos que independem da vontade (ou do agir) humana, ou que exigem mais do que simples boa vontade. Além de bondade, é preciso viabilidade material para concretizar todas as promessas exaladas no texto constitucional.”[3]

A doutrina não encontra um lugar comum na definição da natureza jurídica do Preâmbulo. Sendo considerado, por alguns doutrinadores, como tendo “o mesmo valor que a Constituição, estando acima das normas infraconstitucionais, pois revela a intenção do legislador constituinte originário.”[4]

O STF na ADI n.º 2.076-AC, firmou entendimento pelo voto do Ministro CARLOS VELLOSO, considerando o “preâmbulo, segundo Jorge Miranda, ‘proclamação mais ou menos solene, mais ou menos significante, anteposta ao articulado constitucional não é componente necessário de qualquer Constituição, mas tão somente um elemento natural de Constituições feitas em momentos de ruptura histórica ou de grande transformação político-social.’(Jorge Miranda, ‘Estudos sobre a Constituição’, pág. 17).”

Sobre o tema, a ementa da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, trouxe a seguinte definição: “não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa.”[5]

O enfrentamento da ADI n.º 2.076-AC foi vinculado no Informativo STF nº 277, de 12 a 16 de agosto de 2002, nos seguintes termos:

O Tribunal julgou improcedente o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Partido Social Liberal - PSL contra o preâmbulo da Constituição do Estado do Acre, em que se alegava a inconstitucionalidade por omissão da expressão "sob a proteção de Deus", constante do preâmbulo da CF/88. Considerou-se que a invocação da proteção de Deus no preâmbulo da Constituição não tem força normativa, afastando-se a alegação de que a expressão em causa seria norma de reprodução obrigatória pelos Estados-membros. ADI 2.076-AC, rel. Min. Carlos Velloso, 15.8.2002.(ADI-2076).

Acerca da “proteção de Deus”, importante são as ponderações trazidas por PEDRO LENZA quando afirma que “desde o advento da República (Dec. N. 119-A, de 07.01.1890), existe separação entre Estado e Igreja, sendo o Brasil um país leigo, laico ou não confessional, não existindo, portanto, qualquer religião oficial da República Federativa do Brasil[6].” Entretanto,

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embora não haja obrigatoriedade da invocação divina, mesmo assim, a “proteção de Deus” restou consignada na Constituição Federal de 1988. Convém salientar, que o legislador ao consignar no acordo constitucional a “proteção de Deus”, não procedeu em inovação legislativa, considerando que todas as demais Constituições brasileiras faziam tal registro, com exceção das Constituições de 1891[7] e 1937[8]. Contudo, na precitada ADI n.º 2.076-AC, o STF definiu o embate uma vez que “além de estabelecer e declarar a irrelevância jurídica do preâmbulo, assinalou que a invocação da ‘proteção de Deus’ não é norma de reprodução obrigatória[9]”.

À guisa conclusiva, cumpre destacar que o preâmbulo não usufrui da condição de normal central de reprodução obrigatória, afastando-se do Direito e adentrando na esfera política.[10] Na mesma linha, tomando-se por base a doutrina contemporânea, o preâmbulo não se eleva à condição normativa jurídica, servindo, à toda evidência, como mero intróito dos postulados constitucionais. Pode-se dizer, ainda, que cumpre importante função orientadora da interpretação e integração do texto constitucional, porém sem força coercitiva de sua sujeição. Ademais, por meio de outros indicadores, tais como a ampla afirmação de princípios, em busca de um ideal, e a ausência de obrigatoriedade (normatividade), é possível visualizar-se como nítido o caráter informador do preâmbulo.

Neste viés, e acerca da natureza jurídica, a posição mais acertada, ao que parece, é a defendida por ALEXANDRE DE MORAES, quando refere que o preâmbulo, portanto, por não ser norma constitucional, não poderá prevalecer contra texto expresso da Constituição Federal, e tampouco poderá ser paradigma comparativo para declaração de inconstitucionalidade, porém, por traçar as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, será uma de suas linhas mestras interpretativas.[11]

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] NASCIMENTO SILVA, Luciano. O poder normativo do preâmbulo da Constituição (ensaio acerca da natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais). Revista Jus Vigilantibus, Terça-feira, 16 de março de 2004. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/1686>. Acesso em: 25 nov. 2008.

[2] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 51.

[3] ALVES JR., Luís Carlos Martins. O preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1649, 6 jan. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823>. Acesso em: 25 nov. 2008.

[4] No mesmo sentido: Bidart Campos, Tupinambá Nascimento, Roger Pinto, entre outros. ALVES JR., Luís Carlos Martins. Op. Cit.

[5] EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 2076, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2002, DJ 08-08-2003 PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218).

[6] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 76.

[7] “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte.”

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[8] “Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o Pais”.

[9] LENZA, Pedro. Op. Cit.

[10] Consideradas estas como as “As normas dos direitos e garantias fundamentais, as normas de repartição de competências, as normas dos Direitos Políticos, as normas de pré-ordenação dos poderes do Estado- membro, as normas dos princípios constitucionais enumerados (...).” HORTA, Raul Machado. Normas centrais da Constituição Federal. Revista de Informação Legislativa, 135/175. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_135/r135-19.pdf >

[11] MORAES, Alexandre de. Op Cit.

Revista Jus Vigilantibus, Sabado, 13 de junho de 2009

Preâmbulo

 

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

 

 

“Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que ‘O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo

 

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desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico’ (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.” (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008.)

 "Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa." (ADI 2.076, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-8-2002, Plenário, DJ de 8-8-2003.) No mesmo sentido: ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 12-4-2012, Plenário, Informativo 661 .