Uso Territorios No Parque Da Luz

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A constituição dos territórios de uso no Parque Jardim da Luz em São Paulo, Brasil. Renan Coradine Meireles, graduando em Geografia pela Universidade de São Paulo. Resumo O Parque Jardim da Luz é um importante espaço público na formação sócio-espacial da região central da cidade de São Paulo. Fundado em 1798 como Horto Botânico, é somente em 1825 que ganha o status de Jardim da Luz. Entretanto, é na segunda metade do século XIX que o lugar começa a ganhar as características que até hoje estão presentes em sua morfologia e usos. Neste artigo busca-se analisar a constituição sócio-espacial do Parque a partir da análise da morfologia e dos usos que se dão no próprio Parque e seu entorno. Objetiva-se também circunscrever os territórios do uso, descrevendo e analisando-os em suas peculiaridades e generalidades. _____________________________________________________________________________ Existem diversas maneiras de iniciar uma investigação sobre um fragmento do espaço urbano. Optou-se em uma aproximação da realidade a partir da observação atenta da morfologia, dos usos do lugar e consequentemente das práticas sócio-espaciais, descrevendo- as. Desta maneira iniciaremos o estudo sobre o Parque Jardim da Luz e seu entorno, na área central da cidade de São Paulo. A morfologia explicita a sobreposição de tempos em cada lugar da cidade (Carlos, 2007b). Desta maneira, a partir da análise da mesma é possível, observar os diferentes momentos históricos de cada lugar, neste caso do Parque Jardim da Luz. Portanto, os diferentes usos que esse lugar teve durante a história podem ser revelados. Em dois momentos Carlos escreve que: “A análise da morfologia da cidade revela uma dimensão que não é apenas espacial, mas também temporal, ao mesmo tempo em que, aponta uma profunda contradição nos processos de apropriação do espaço pela sociedade.” (Carlos, 2007b, pg.55)

Transcript of Uso Territorios No Parque Da Luz

  • A constituio dos territrios de uso no Parque Jardim da Luz em

    So Paulo, Brasil.

    Renan Coradine Meireles, graduando em Geografia pela Universidade de So Paulo.

    Resumo

    O Parque Jardim da Luz um importante espao pblico na formao scio-espacial da

    regio central da cidade de So Paulo. Fundado em 1798 como Horto Botnico, somente

    em 1825 que ganha o status de Jardim da Luz. Entretanto, na segunda metade do sculo

    XIX que o lugar comea a ganhar as caractersticas que at hoje esto presentes em sua

    morfologia e usos.

    Neste artigo busca-se analisar a constituio scio-espacial do Parque a partir da anlise da

    morfologia e dos usos que se do no prprio Parque e seu entorno. Objetiva-se tambm

    circunscrever os territrios do uso, descrevendo e analisando-os em suas peculiaridades e

    generalidades.

    _____________________________________________________________________________

    Existem diversas maneiras de iniciar uma investigao sobre um fragmento do espao

    urbano. Optou-se em uma aproximao da realidade a partir da observao atenta da

    morfologia, dos usos do lugar e consequentemente das prticas scio-espaciais, descrevendo-

    as. Desta maneira iniciaremos o estudo sobre o Parque Jardim da Luz e seu entorno, na rea

    central da cidade de So Paulo.

    A morfologia explicita a sobreposio de tempos em cada lugar da cidade (Carlos,

    2007b). Desta maneira, a partir da anlise da mesma possvel, observar os diferentes

    momentos histricos de cada lugar, neste caso do Parque Jardim da Luz. Portanto, os diferentes

    usos que esse lugar teve durante a histria podem ser revelados. Em dois momentos Carlos

    escreve que:

    A anlise da morfologia da cidade revela uma dimenso que no

    apenas espacial, mas tambm temporal, ao mesmo tempo em que, aponta

    uma profunda contradio nos processos de apropriao do espao pela

    sociedade. (Carlos, 2007b, pg.55)

  • [...] a morfologia urbana, com os traados das ruas, avenidas e

    praas, com suas formas materiais arquitetnicas, guardam um contedo

    social s permitido pela manifestao que vem da prtica espacial entendida

    como modos de usos dos lugares. como uso, isto , atravs do corpo em

    atividade e movimento, que os habitantes usam os lugares e, ao faz-lo,

    identificam-se com eles, posto que so os lugares onde se realizam os atos

    mais banais da vida cotidiana. (Carlos, 2007b, pg. 94)

    A prtica scio-espacial contempla, assim, a dimenso da vida cotidiana, ou seja, os

    diferentes usos do lugar. A anlise desses usos, desta forma, capaz de revelar os contedos

    da prtica scio-espacial.

    O que nos parece importante resgatar para a anlise, o fato de

    que a cidade revela-se concretamente atravs do uso que d sentido a vida,

    revelando o contedo da prtica scio-espacial. pelo uso (como ato e

    atividade) que a vida se realiza e tambm atravs do uso que se constroem

    os rastros que do sentido a ela, construindo os fundamentos que apoiam

    construo da identidade revelada como atividade prtica capaz de sustentar

    a memria. (Carlos, 2007b, pg. 30)

    Desta maneira, o texto a seguir tem como objetivo a anlise do Parque Jardim da Luz a

    partir da observao e descrio da morfologia e dos usos, na busca pelos contedos das

    prticas scio-espaciais. Com isso poderemos delimitar os territrios de uso.

    Um museu, uma praa, um jardim, um coreto, um lago, rvores, pssaros, pessoas.

    Acumulao desigual de tempos, arte a cu aberto, paisagismos, morfologias, flora centenria,

    circulao de pessoas, permanncia de pessoas. Dos caminhos tortuosos que insinuam o

    encontro aos bancos que providenciam a permanncia. Crianas, jovens, adultos e idosos, vem,

    vo, ficam. Caminham, correm, brincam, esto naquele lugar. (Figura 2)

    Indo ao trabalho, vindo da estao, simplesmente caminhando, praticando atividade

    fsica, se divertindo, brincando com as crianas, pulando corda, ouvindo msica, trabalhando das

    mais diversas formas, jogando domin ou cartas. H um movimento incessante.

    A Estao da Luz faz da vizinhana um lugar cheio de pessoas. So milhares que vem e

    vo, entram e saem todos os dias. Grande parte somente passa, rapidamente, est a caminho

    de casa, pouco veem, nada sentem. Outros fixam o olhar, passam devagar, param, sentem a

    cidade, ouvem a vida urbana.

  • Esse o jardim mais charmoso [da cidade] de So Paulo, diz dona Clia. Ao centro um

    coreto e a casa de ch, produtos do incio do sculo XX. (Figura 1) Mesmo restaurados guardam

    um momento da histria. Cortando e completando os gramados verdejantes e os jardins floridos,

    trilhas e espao livres se combinam. Circulao e encontro se estabelecem.

    Figura 1. Coreto e Casa de Ch no incio do sculo XX. Fonte: Ohtake e Dias, 2011.

    s margens, grades nos incomodam, delimitam, separam. Parecem violentar queles

    que passam o dia encostado a ela, sem poder entrar, parecem estar presos. As grades atuais

    so produtos da dcada de 1970, simbolizam as contradies da vida na cidade. O discurso de

    violncia e degradao.

    Esttuas, fontes e monumentos esto espalhados, representam momentos, histrias,

    vidas. Provocam curiosidade, estranhamento, fazem pensar. Formam um conjunto, diferentes

    em cor, data, artista, forma, material: um museu a cu aberto.

    O coreto, os bancos, as esttuas, as fontes, chafarizes, as casas: so pontos fixos,

    imveis, sem vida por si s. Mas h quem os d beleza, cor, sentido e vida. So os que fazem

    deste lugar o tempo de estar, de habitar o tempo.

    So as crianas com as mes e babs no parquinho, que brincam na areia, que jogam

    bola, constroem casinhas enquanto as mes conversam, se divertem. So os corredores e

    caminhantes em busca da vida saudvel. Exercitam-se at cansar, param, contemplam o jardim,

    tomam sorvete, ouvem msica, quase sempre com fone de ouvidos. Em geral somente passam,

    s vezes ficam.

  • Figura 2. Imagens do Parque Jardim da Luz. Fonte: Acervo Renan Coradine Meireles (2012).

    So os que fazem daquele lugar o prprio ganha po. Os jardineiros, sorveteiros,

    pipoqueiros, seguranas, prostitutas. Esses j so parte da paisagem do lugar, esto ali todos os

    dias, faa chuva ou faa sol.

    As prostitutas produzem uma histria prpria. So maioria no jardim. J fazem parte do

    lugar, talvez a mais importante neste momento, constituem a primeira palavra que adjetiva o uso

    do Parque. Esto por todos os lados, caminhando ou paradas parecem se disfarar e ao mesmo

    tempo estar vista de quem as interessa. Entre os anos 30 e 40 do sculo XX, Mario de

    Andrade no conto Primeiro de Maio j cita a presena das prostitutas no Parque: [...] Andou mais

    depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvao, sentou-se. Mas dali

    algum companheiro podia divisar ele e caoar mais, teve raiva. Foi l no fundo do jardim

    campear banco escondido. J passavam negras disponveis por ali [...] (Mario de Andrade, 2012,

    pg.74 ).

    So meninas ou senhoras, com muita ou pouca roupa, carrancudas ou sorridentes,

    falantes ou quietas, olhar calmo ou ansioso, querem ser vistas e ao mesmo tempo esconder-se,

  • vivem na ambiguidade de uma vida marginal. E isso o que acontece. Por uns passam por

    esttuas, mortas, simbolizam sujeira, promiscuidade, vadiagem. Por esses no so vistas, para

    esses querem se esconder. Para outros simbolizam o encontro, a seduo, o sexo, o prazer. Por

    esses so vistas, para esses querem aparecer.

    Mas um parque no se constitui s por ele mesmo. produzido tambm pelo entorno,

    pelas materialidades e relaes que o envolvem. O Parque Jardim da Luz tem uma vizinhana

    que o fez centralidade histrica e na vida cotidiana dos citadinos paulistanos.

    O Parque localiza-se no atual distrito do Bom Retiro, nas imediaes de equipamentos

    culturais como Pinacoteca do Estado, o Museu da Lngua Portuguesa e tambm da primeira

    estao ferroviria da cidade de So Paulo, a Estao da Luz (Mapa 1). Portanto, tal vizinhana

    confere ao parque um papel diferente. Alm dos diversos usos, pela regio circulam milhares de

    pessoas por dia. Lugar histrico e com grande circulao, o jardim da luz torna-se tambm

    centralidade.

    No mapa (1) seguir esto sistematizados os equipamentos pblicos que esto nas

    imediaes do Parque. na segunda metade do sculo XIX que grande parte dos edifcios que

    abrigam hoje a Pinacoteca, o Museu da Lngua Portuguesa, a Escola Prudente de Moraes e

    Estao da Luz foram construdos. Importante citar, tambm, que esses edifcios tiveram

    diferentes usos durante esse tempo. A atual Pinacoteca, por exemplo, foi construda para ser a

    sede do Liceu de Artes e Ofcios de So Paulo.

    Os edifcios so frondosos, chamam a ateno. Todos eles foram restaurados nos

    ltimos anos. A atual Estao da Luz, inaugurada em 1901, traz uma arquitetura nos moldes

    Ingleses, com a tpica estrutura em arcos de ferro. O atual edifcio da Pinacoteca, projetado em

    1896, traz um estilo neorenascentista, tpico das construes oficiais e ligada a tradio da Belas

    Artes Parisiense. O fim do sculo XIX e o incio do XX so de grandes transformaes nessa

    regio da cidade.

    So muitas as caractersticas que colocam o Parque Jardim da Luz como um importante

    lugar na metrpole. Nos dias de semana com caminhantes e corredores, trnsito de pessoas,

    trabalho de prostitutas. Aos fins de semana com crianas no parquinho, idosos nas mesas de

    jogos, contemplando os belos jardins e nas rodas de viola ao lado do coreto, nas sombras das

    rvores centenrias. O entorno mobiliza as pessoas s atrai, o torna centralidade.

  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Geografia Mapa do Parque Jardim da Luz e equipamentos pblicos

    no entorno prximo

    Escala: 1: 16500

    Data: Dezembro/2012

    Organizao: Renan Coradine Meireles

    Elaborao: Renan Coradine Meireles

    Legenda

    Parque Jardim da Luz Pinacoteca

    Escola Pblica Museu da Lngua Portuguesa Estao da Luz

    Projeo Transversa de Mercator Datum Horizontal: SAD 69

    Fuso 23 Fonte: Google Earth

    Mapa 1. Localizao do Parque Jardim da Luz e equipamentos pblicos no entorno prximo.

  • um lugar que contempla o uso das praas, o encontro, o dilogo, a diverso, o trnsito.

    tambm jardim, lugar de observao, contemplao. Tampouco perde seu carter de museu.

    Esttuas, chafarizes e o coreto nos remetem a histria, do prprio lugar, da cidade que o

    contempla. Torna-se resduo no processo de urbanizao que se impe a metrpole, espao no

    homogneo, pouco funcional, contm as marcas e os rastros dos tempos pretritos. Escreve

    Seabra:

    [...] relativamente aos espaos residuais e a partir das

    permanncias que guardam, pode-se indagar sobre as genealogias, sobre as

    coexistncias, sobre as continuidades e as descontinuidades, sobre as

    temporalidades e sobre o devir. Neles, de alguma forma permanece retida a

    histria inteira, vivida e experimentada com sua riqueza e pobreza, com seus

    impasses e contradies, porque eles so acumulao de tempos sociais e

    histricos. (Seabra, 2004, pg. 185 e 186)

    Possuindo uma enorme gama de usos, eles se diferenciam, no tempo e no espao.

    Territorializam-se. A hora do dia ou o dia da semana delimitam certos tipos de atividades no

    Parque. As diferenas comeam pelos frequentadores, que durante a semana so, em geral,

    queles que trabalham ou moram no prprio entorno. Aos finais de semana os mesmos se

    diversificam, so turistas ou pessoas que vem ao Parque para realizar alguma atividade

    relacionada ao cio e ou ao bem-estar.

    Todos esses usos se estabelecem e apropriam um determinado tempo e um

    determinado espao. Constituem territrios do uso. Seja todo o Parque ou apenas um coreto, s

    pela manh ou o dia inteiro, as pessoas, diferenciadas entre si, em atividades, faixa etria ou

    classes sociais, usam e se apropriam daquele lugar.

    Durante os dias teis o ritmo quase sempre o mesmo. Pela manh o Parque local de

    realizao de atividades esportivas, so homens e mulheres, quase nunca jovens, caminhando,

    correndo e fazendo alongamentos. Esse o tempo da atividade fsica no Parque. Em geral, os

    praticantes no ocupam todos os espaos, realizam suas atividades nos caminhos situados ao

    redor do Parque, nas bordas. No fim da manh o uso comea a se diversificar. As prostitutas

    chegam e em pouco tempo tomam conta do lugar. So centenas no comeo da tarde.

    Dominam o espao at o fim do dia. Ocupam todo o Parque, nas bordas, no centro, nos

    caminhos, esto em todos os cantos.

  • Ainda no fim da manh podemos ver dezenas de idosos contemplando a exuberncia

    das rvores, dos monumentos e dos jardins bem cuidados, conversando com os amigos ou

    jogando cartas ou domin. No esto espalhados por todos os lados, localizam-se sempre

    prximos ao coreto e a casa de ch. H ali uma boa sombra, provocada pelas grandes rvores e

    mesas que possibilitam os jogos.

    O som dos pssaros ganha a ateno de alguns frequentadores. Apesar de ao fundo

    ouvirmos os automveis, possvel escutar a cidade de outra maneira. Os sons suaves e

    harmnicos do o tom da vida no Parque.

    A tarde curta, trs ou quatro horas e j temos que ir embora. Os traficantes e usurios

    de drogas chegam em grande nmero, fica muito perigoso, reclamam algumas prostitutas. Os

    usos comeam a mudar. Algumas prostitutas saem, entram usurios de drogas.

    Aos sbados, domingos e feriados o ritmo das atividades no Parque se modifica. O

    nmero de frequentadores maior, principalmente pela manh. O nmero de praticantes de

    atividades fsicas aumenta, principalmente com o nascer e o pr do sol. Durante esses dias, o

    nmero de idosos tambm aumenta bastante, seja na jogatina ou nas rodas de viola. Pais e

    filhos enchem o parquinho durante quase todo o dia.

    Um diferencial nesses dias so os turistas. Em pequenos ou grandes grupos eles visitam

    a regio da Luz (Pinacoteca, Museu da Lngua Portuguesa e Estao da Luz). Entram no Parque

    por alguns instantes, geralmente no caminham muito, ficam dez ou quinze minutos e vo

    embora. Algumas vezes o guia turstico que os acompanha tece alguns comentrios, fala um

    pouco sobre a histria do Parque. Desta forma, inclui-se o Parque Jardim da Luz no circuito

    turstico de So Paulo.

    Em suma, os usurios do Parque so moradores do entorno (Luz, Bom Retiro, Campos

    Elseos e Brs) ou pessoas que por alguma outra atividade passam por ali. Decididamente no

    um espao que, em geral, atrai frequentadores de lugares longnquos da cidade. A Estao da

    Luz, e as regies comerciais das ruas Jos Paulino e Santa Ifignia trazem um grande

    contingente de pessoas para o local todos os dias. A exceo so os turistas, que vem de outros

    estados ou pases e vo ao Parque acompanhados de um guia turstico.

  • O Parque Jardim da Luz estabelece-se, ento, como um lugar composto por uma trama

    justaposta de territrios de usos. Os principais usos (prostituio, atividades esportivas etc)

    fazem daquele um lugar mpar, espao de encontro, flanur, esportes, diverso e trabalho.

    Vista do alto, as imediaes da regio da Luz, na regio central de So Paulo um

    emaranhado de polgonos e linhas, cores e um movimento insistente: edificaes dos mais

    diversos tipos, antigas fbricas, casas, prdios residenciais e comerciais, museus, estaes,

    ruas e caladas, linhas de trem e metr (Anexos 1, 2 e 3). Em meio a isso milhares de pontos e

    linhas circulam de um lado a outro, so carros, nibus, trens e pessoas. As cores so poucas, os

    tons de cinza, do quase branco ao quase preto, do a tonalidade ao lugar, o verde das rvores e

    o marrom dos telhados completa a vista.

    O Bom Retiro o lugar dos contrastes, telhados grandes e pequenos aparecem lado a

    lado. Os grandes galpes fabris ao lado das pequenas casas de operrios. Mas as fbricas no

    esto mais l. Dos operrios pouco restou. As edificaes parecem abandonadas, quase todas.

    No h praas, espaos livres de convivncia. Descrevendo o incio do sculo XX em So Paulo,

    escreve Ab Saber, durante a implantao das primeiras ferrovias foram aproveitados baixos

    terraos fluviais, logo transformados em suporte de grandes indstrias e bairros residenciais

    populares (Brs, Mooca, Gasmetro, Bom Retiro, gua Branca, Lapa de Baixo, So Caetano)

    (AbSaber, 2004, pg. 273).

    Os telhados suscitam uma observao parte. Simbolizam muito, pelo tamanho, pela

    forma, pela cor, so frutos de uma determinada poca, fazem parte da descrio mais

    minuciosa. No Bom Retiro eles so, em sua maioria, estreitos e longos, formam um retngulo,

    so as antigas plantas fabris. So muitos, lado a lado, espremidos, aglomerados, o verde no

    tem espao. A densidade alta, so dezenas por quarteiro. Essas so caractersticas que

    podem deduzir determinadas relaes sociais, podem apontar a contradio capital-trabalho

    (Anexo 1).

    Do outro lado da linha frrea a vista se transforma. A linha e os trens parecem

    estabelecer o limite de mundos diferentes, so poucos metros que separam realidades histricas

    diferentes, concomitantes e contraditrias (Anexo 2). A linha do trem estabelece o fim do Bom

    Retiro e o comeo do Campos Elseos, ou o contrrio. Carlos escreve:

    H, no entanto, continuidades e descontinuidades que se combinam

    como conseqncia do espao/tempo urbanos, traduzindo a diviso do

  • espao urbano nos lugares da metrpole com suas rupturas de ritmo,

    poderes desiguais, estrutura de classes diferenciadas. Movimentos,

    construes, transformaes do tecido urbano; uma histria que do ponto de

    vista espacial torna-se morfologia. (Carlos, 2007b, pg.58)

    O Campos Elseos parece ser o lugar da racionalidade. As ruas so largas e retas, os

    quarteires so polgonos regulares. As construes no parecem fbricas e sim casas,

    grandes, espaosas, no h o adensamento presente do outro lado da linha do trem. As

    extensas ruas esto pintadas, as caladas esto conservadas, o verde aparece, concentrado ou

    espalhado pelos quarteires (Anexo 3).

    Os telhados indicam outra realidade, apontam para uma outra histria. As coberturas

    so menores, so mais quadradas, parecem casas. Podemos observar quadras poliesportivas,

    piscinas, jardins. H praas e espaos livres de convivncia. Descrevendo a regio da Luz nos

    fins do sculo XIX, escreve AbSaber, as elites representativas de uma poderosa burguesia

    urbana, em plena formao, deram preferncia para os bairros do alm-Anhangaba,

    envolvendo os Campos Elseos [...] (Ab Saber,2004, pg. 139).

    Entre esse complexo conjunto de geometrias, aparece imponente o Parque Jardim da

    Luz. O verde surge como resqucio num plano com tons de cinza. tambm um polgono

    regular, um quadrado quase perfeito, planejado, desenhado mo. As arestas que o separam e

    o unem rua so retas, os vrtices quase sempre perfeitos. circundado por ruas, largas e

    finas, pintadas ou no. As ruas do espao a um vai-e-vem incessante, ensurdecedor,

    interminvel. As cores dos carros vo se misturando sobre as linhas escuras da rua. Os nibus

    lotados passam sem parar, os passageiros mal conseguem observar o que se passa a volta. O

    polgono verde torna-se apenas relance. As cores, os sons, o cheiro, nada percebido. A vida

    passa longe, distante, no h significado.

    Perpendiculares s linhas que enlaam o Parque, muitos polgonos aparecem, estaes,

    edifcios e quarteires. Grandes, imponentes sobre a viso. Lugares que do alto no tem vida.

    So formas geomtricas mortas, mas que guardam um passado distante. Esto entre as colinas

    e os terraos fluviais da bacia sedimentar de So Paulo, prximo ao entroncamento de dois rios

    importantes da cidade, o Tiet e o Tamanduate.

    Esta etapa do trabalho contempla uma busca, via observao, descrio e uma anlise

    scio-espacial do lugar, encontrar seus usos. E eles so muitos, diversificados. Cada momento

  • merece uma anlise, cada uso uma explicao, uma resposta. Afinal, o que seria de um lugar

    pblico sem o uso? Sobre a importncia da anlise do lugar Carlos escreve:

    O lugar permite pensar a articulao do local com o espao

    urbano que se manifesta como horizonte. a partir da que se descerra a

    perspectiva da anlise do lugar na medida em que o processo de produo

    do espao tambm um processo de reproduo da vida humana. O lugar

    permitiria entender a produo do espao atual uma vez que aponta a

    perspectiva de se pensar seu processo de mundializao. Ao mesmo

    tempo que o lugar se coloca enquanto parcela do espao, construo

    social. O lugar abre a perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso

    e o consumo, os processos de apropriao do espao. Ao mesmo tempo,

    posto que preenchido por mltiplas coaes, expe as presses que se

    exercem em todos os nveis. (Carlos, 2007a, pg. 14)

    necessrio, portanto, estabelecer um ponto de partida, a entrada. Optou-se pela

    descrio, pela observao das pessoas, das relaes, do entorno. A morfologia do Parque

    exerce uma funo importante, os gramados, os espaos de lazer, as trilhas e os bancos. As

    atividades que do vida ao lugar, as pessoas, seus movimentos, suas atitudes, suas prticas no

    Parque. Alguns somente de passagem, outros tm no Parque seu momento de lazer, de

    diverso, de fuga da agitao da vida urbana. necessrio iniciar pela descrio, da morfologia,

    das prticas. E sobre esse primeiro contato com a realidade a ser estudada, o imediato, Lefebvre

    escreve:

    O fenmeno urbano depende, primeiro, dos mtodos descritivos,

    eles prprios variados. [...] A descrio emprica enfatiza a morfologia; ela

    d conta, com exatido, do que veem e fazem as pessoas num contexto

    urbano, desta ou daquela cidade, de uma megalpolis (cidade que

    explodiu, constituindo, entretanto, um conjunto administrativo e poltico,

    com funes urbanas, mesmo se as antigas formas e estruturas

    desapareceram). (Lefebvre, 2008, pg. 49 e 50 )

    Partimos da descrio da morfologia e dos usos do Parque para estabelecer uma breve

    anlise da prtica soco-espacial ali existe e delimitar os territrios de uso. Pudemos, ento,

    compreender aquele espao como singular na vida urbana do centro da cidade de So Paulo.

    Consideramos, ento, que h uma grande quantidade de usos que se entrelaam e sobrepem,

    formando territrios do uso, sendo a prostituio o mais proeminente deles.

  • Referncias Bibliogrficas

    AB SABER, Aziz Nacib. So Paulo: Ensaios Entreveros. So Paulo. Edusp e Imprensa Oficial, 2004.

    ANDRADE, Mario de. Contos Novos. Saraiva. So Paulo, 2012.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. So Paulo. Edies Labur, 2007a.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espao Urbano: novos escritos sobre a cidade. So Paulo, Edies Labur, 2007b.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Condio Espacial. So Paulo. Contexto, 2011.

    LEFEBVRE, Henri. A Revoluo Urbana. Belo Horizonte.Humanitas/Editora UFMG, 2008.

    OHTAKE, Ricardo e DIAS, Carlos. Um museu a cu aberto. So Paulo, SESC e SENAC editoras, 2011.

    SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Territrios do uso: cotidiano e modo de vida. In: Cidades, revista cientfica/ Grupo de estudos urbanos. Vol.1. n2. Presidente Prudente: Provo, 2004.

  • Anexo 1. Contorno de quadras no Bom Retiro (Entorno do Parque Jardim da Luz)

    Contorno de quadras no Bom Retiro

    Escala: 1: 14400

    Data: Dezembro/2012

    Organizao: Renan Coradine Meireles

    Elaborao: Renan Coradine Meireles

    Bom Retiro

  • Anexo 2. Contorno de quadras no Bom Retiro e Campos Elseos (Entorno do Parque Jardim da Luz)

    Contorno de quadras no Bom Retiro e Campos Elseos

    Escala: 1: 32200

    Data: Dezembro/2012

    Organizao: Renan Coradine Meireles

    Elaborao: Renan Coradine Meireles

    Bom Retiro Campos Elseos

  • Anexo 3. Contorno de quadras no Campos Elseos (Entorno do Parque Jardim da Luz)

    Contorno de quadras no Campos Elseos

    Escala: 1: 14400

    Data: Dezembro/2012

    Organizao: Renan Coradine Meireles

    Elaborao: Renan Coradine Meireles

    Campos Elseos