Premio Territorios Quilombolas Segunda Edicao

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Prmio

LUIZ INCIO LULA DA SILVA Presidente da Repblica GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio MARCELO CARDONA ROCHA Secretrio-Executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ADONIRAN PERACI Secretrio de Agricultura Familiar EUGNIO PEIXOTO Secretrio de Reordenamento Agrrio JOS HUMBERTO OLIVEIRA Secretrio de Desenvolvimento Territorial ANDREA BUTTO Coordenadora-Geral do Programa de Promoo da Igualdade de Gnero, Raa e Etnia CAIO GALVO DE FRANA Coordenador-Geral do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural ADRIANA L. LOPES Coordenadora-Executiva do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

Nead ESPECIAL 5 Copyright 2007 by MDA PROJETO GRFICO, CAPA E DIAGRAMAO Supernova Design REVISO E PREPARAO DE ORIGINAIS Ana Maria Costa MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA) www.mda.gov.br NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO AGRRIO RURAL (Nead) SCN, Quadra 1, Bloco C, Ed. Trade Center, 5 andar, sala 501 Cep: 70.711-902 Braslia/DF Telefone: (61) 3328-8661 www.Nead.org.br PCT MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel

B823p

Brasil, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA). Prmio territrios quilombolas: 2 Edio. Braslia : MDA, 2007. 268 p. ; 21 x 28 cm. -- (Nead Especial ; 5).

I. Ttulo. 1. Concurso monogrco quilombola Brasil. 2. Negro Brasil. 3. Quilombo aspecto histrico Brasil. CDD 305

Prmio

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Sumrio

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Apresentao Autoria Minha misso Entre o quilombo e a cidade: trajetria de uma jovem quilombola Do passado geral ao passado que se presentica. Memria e histria em uma comunidade negra rural Negros do Tapuio: estudo etnogrco de uma comunidade quilombola do semi-rido piauiense Comunidade negra de Itaco: territrio, biodiversidade e organizao social, pilares para o etnodesenvolvimento? Dilogos entre a pesquisa histrica e a memria quilombola: um estudo sobre a comunidade de Manoel Barbosa/RS Os bairros de So Pedro e Galvo/Vale do Ribeira: territrio e parentesco Uso comum, regularizao fundiria e mercado de terras

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Apresentao

Renata Leite1 Paula Melo2

ara resgatar e valorizar as experincias histricas e culturais das comunidades quilombolas, o governo Federal tem reorientando de forma pioneira as polticas pblicas. So consideradas as especicidades e autonomia desses grupos na sua forma de organizao social, respeitando seus valores e aspiraes, bem como seus modos de se relacionarem com a natureza, suas prticas de gesto do territrio e as atividades econmicas que desenvolvem. A busca pela igualdade racial tem integrado o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), por meio do Programa de Igualdade de Gnero, Raa e Etnia (PPIGRE), do Ncleo Estudos Agrrio e Desenvolvimento Rural (Nead) e do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), que promovem o acesso terra, incluso social e econmica das comunidades quilombolas. Nesse sentido, buscando estimular a participao das comunidades e desenvolver o pensamento crtico, de forma a contribuir para a formulao de polticas pblicas, criou-se o Prmio Territrios Quilombolas. Trata-se de uma iniciativa do MDA, por intermdio do NEAD e do PPIGRE, e da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial, numa parceria com o Incra, a Associao Brasileira de Antropologia (ABA) e a Associao Nacional de PsGraduao e Pesquisa em Cincias Sociais (Anpocs).7

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1 Coordenao do Programa de Promoo de Igualdade de Gnero Raa e Etnia do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio 2 Antroploga e assistente tcnica do Programa de Promoo de Igualdade de Gnero Raa e Etnia do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

O prmio visa divulgar a produo de pesquisas e estudos acadmicos nas reas das cincias humanas, sociais, agrrias e ans direcionados aos temas dos territrios quilombolas no Brasil. Em sua segunda edio, no ano de 2006, o prmio tambm valorizou o relato de experincias produzido por pessoas das prprias comunidades. Esta publicao da Srie Nead Especial rene os trabalhos dos premiados na edio 2006, que recebeu quarenta ensaios e narrativas concorrentes nas categorias Ensaio Indito, Graduao, Mestrado, Doutorado e Experincias e Memrias. Foram selecionados nove trabalhos, que esto aqui publicados, alm de duas menes honrosas. Na categoria Experincias e Memrias, voc conhecer a histria de Dona Jovita Furquim de Frana, moradora do quilombo de Galvo, na regio de Vale do Ribeira, estado de So Paulo. Ela relata todo o seu sofrimento, trazendo luz questes recorrentes s comunidades negras rurais e ao meio rural em geral, como a diculdade em manter uma numerosa famlia, a migrao para a cidade e a doao de lhos para familiares com melhor estrutura nanceira. Dona Jovita relata como ela se esforou para aprender a ler e a escrever, em meio a todas as diculdades. Tambm nos conta sobre o enfrentamento aos males fsicos, que lhe acometeram durante grande parte de sua vida. um relato emocionante de uma forte mulher que, apesar de todas as diculdades, insiste em lutar pelos direitos de seu povo. Destaca-se que Dona Jovita tambm personagem do artigo Os bairros de So Pedro e Galvo/Vale do Ribeira: territrio e parentesco, presente nesta coletnea. Na categoria Ensaio Indito, temos o artigo Entre o quilombo e a cidade: trajetria de uma jovem quilombola, que conta a vida de Meire, moradora da Comunidade de So Jos da Serra, Valena/RJ. Esse texto nos coloca uma interessante viso sobre as formas de acomodao entre o individual e o coletivo. Assim, tem o mrito de trazer para discusso a dimenso individual, valor consagrado na modernidade urbana, no contexto de uma comunidade construda com base em memria e em prticas coletivas. Por serem os jovens e as jovens moradoras das reas rurais os mais afetados pelas dinmicas das relaes sociais contemporneas, a autora fala sobre seus desejos e seu interesse pelo urbano, ao mesmo tempo em que fala da importncia de manter os traos culturais de sua comunidade, com destaque para o Jongo, como uma garantia dos direitos territoriais. A partir da, tece uma discusso sobre autenticidade ou pureza da tradio, argumentando que a cultura no esttica e que h um uxo natural de insero de novas prticas na tradio, inspiradas pela modernidade. No artigo Do passado geral ao passado que se presentica: memria e histria em uma comunidade negra rural, o autor se prope a trabalhar a histria da Comunidade Negra Rural de Cambar, Municpio de Cachoeira do Sul/RS, a partir da complementariedade entre as fontes oral e escrita, partindo da memria dessa comunidade e dos documentos disponveis em arquivos histricos. interessante observar que essa comunidade se formou por meio de terras herdadas, complementadas pela compra de terras, por negros ex-escravos. O processo de esbu-

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lho desse territrio ocorreu de diversas formas, dentre elas a ludibriao na venda, aproveitando-se de que a maioria da comunidade era analfabeta. O texto revela um renamento na anlise sobre as relaes de poder que emanam dos documentos consultados e do relatos ouvidos. Suas fontes reforam a manuteno das relaes sociais construdas na escravido, marcadas pela violncia racial, aps a abolio da escravatura no Brasil. Importante notar que o sentido das narrativas, sejam elas orais ou escritas, no est na reconstruo do fato real, porm na forma como os fatos so interpretados pelos agentes sociais. Essa evocao do passado constri o presente. muito rica a forma como o autor empreende um mergulho nos relatos orais e nos documentos histricos, a partir dos quais percebe inmeras reaes das comunidades e pessoas negras dominao empreendida na escravido e no perodo ps-escravido. Em seguida deveramos ter o artigo Uso manejo e conservao de recursos vegetais em uma comunidade quilombola no Estado do Maranho: uma perspectiva etnobiolgica, que aborda a Comunidade Quilombola de Sangrador, Municpio de Presidente Juscelino/MA, sob a perspectiva da etnocincia, entendida como a cincia que busca compreender o conhecimento das diferentes sociedades sobre os processos naturais e a relao desses processos com os sistemas de crena. Esse trabalho muito interessante, trata de concepes sobre a sade, a doena e a cura, de forma a tornar inteligvel os diversos usos dos recursos naturais no Quilombo. O autor realizou um levantamento etnobotnico, relacionando o nome localmente dado planta, a famlia e espcie, a indicao do uso daqueles recurso, a parte usada, o modo de preparo, o hbito de crescimento da espcie e a forma de obteno. A pesquisa que resultou nesse artigo envolve o acesso ao conhecimento tradicional associado, ou seja, a obteno de informao sobre conhecimento ou prtica individual ou coletiva, associada ao patrimnio gentico, de comunidade indgena ou de comunidade local, para ns de pesquisa cientca, desenvolvimento tecnolgico ou bioprospeco, visando sua aplicao industrial ou de outra natureza. (Medida Provisria 2186-16, de 24 de agosto de 2001). Conforme indica legislao afeta ao tema (alm da MP acima referida, a Constituio Federal de 1988 e a Conveno sobre a Diversidade Biolgica), este acesso depende de autorizao do Poder Pblico, mediante anuncia prvia do titular do patrimnio ou do conhecimento. Com objetivo de estabelecer critrios e deliberar sobre o acesso ao conhecimento tradicional associado, criou-se o Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico - CGEN, de carter deliberativo e normativo, composto de representantes de rgos e de entidades da Administrao Pblica Federal que detm competncia sobre as diversas aes de que trata este tema. Considerando que o autor do referido artigo no dispe das exigncias legais acima explicitadas, que deveriam ser providenciadas pela sua instituio de pesquisa, a publicao desse artigo esbarraria na proteo legal dada s comunidades locais, dentre9Apresentao

elas comunidades quilombolas, e assim implicaria em responsabilizao ao autor do trabalho e ao responsvel pela publicao. Nesse sentido, infelizmente o referido texto no consta dessa coletnea. O artigo seguinte,Negros do Tapuio: estudo etnogrco de uma comunidade quilombola do semi-rido piauiense, discorre-se sobre a construo da identidade quilombola da comunidade de Tapuio, Queimada Nova/PI, a partir de sua condio enquanto grupo campons. Por meio do trabalho sobre a memria coletiva das comunidades negras rurais piauienses, o autor reconhece as relaes de poder que se construram na histria do nosso pas e promove a visibilizao de um outro lado da histria, que confere legitimidade ao pleito poltico atual das comunidades remanescentes de quilombos. Trazendo tona a memria coletiva dessa comunidade, ele consegue visibilizar esse processo de ressignicao da histria, conduzindo ao entendimento das relaes de parentesco e da territorialidade da comunidade de Tapuio. Dessa forma, nos permite compreender a dinmica da construo da nacionalidade sob a tica das relaes raciais, fazendo meno ao ideal de clareamento, que resultou na desigualdade racial estrutural de nossa sociedade. No artigo Comunidade Negra de Itaco: territrio, biodiversidade e organizao social, pilares para o etnodesenvolvimento? o autor trabalha com os trs pilares para o etnodesenvolvimento, quais sejam, territrio, manejo da biodiversidade e organizao social. Dentre todas as comunidades cujas histrias esto aqui relatadas, Itaco, localizada no Municpio de Acar, prximo cidade de Belm/PA, a nica que tem seu territrio, de 968 hectares, regularizado. Ainda assim, conforme analisa o autor, h problemas derivados da grande densidade populacional sobre um territrio com extenso relativamente pequena, o que gera limitaes do uso territorial, que trabalhado a partir dos espaos destinados produo e moradia. Um ponto importante aqui argumentado est na compatiblizao entre conservao da diversidade biolgica e a presena de populaes humanas, no caso em estudo, da Comunidade Quilombola de Itaco. Um exemplo disso, demonstrado por meio de estudo etnobotnico, o domnio da comunidade sobre prticas teraputicas com uso de recursos naturais. O autor tece ainda uma anlise interessante quanto monetarizao das atividades produtivas, que traz tona uma reexo sobre as interfaces entre o rural e o urbano, entre atividades tradicionais e inovadoras, sobre a perspetiva da produo e conseqentemente da organizao social. A comunidade Manoel Barbosa, no Municpio de Gravata, Rio Grande do Sul, ser retratada no artigo Dilogos entre a pesquisa histrica e a memria quilombola: um estudo sobre a Comunidade de Manoel Barbosa/RS . Por meio dos documentos e relatos, o autor demonstra que houve escravido no Estado do Rio Grande do Sul, diferentemente do que argumenta a historiograa tradicional, e que ela se deu de forma cruel assim como nas demais regies do Brasil.

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A partir dos documentos histricos e das narrativas da comunidade, o texto retrata as diversas realidades do Rio Grande do Sul, demonstrando a permanncia do trabalho de ex-escravos e seus descendentes, no perodo ps-abolio, junto s mesmas famlias que detinham a propriedade dos escravos e em condies de trabalho similares. Demonstra tambm as formas de resistncia dos negros escravido, em contraposio noo de passividade recorrente na historiograa tradicional. Dentre elas, esto os casos de formao de quilombos, fugas e inssureies; de constituio de famlias e comunidades negras, dando um destaque para as relaes de compadrio; de manuteno e recriao de religiosidades, bem como outras expresses cosmolgicas e culturais e da compra da alforria. O artigo Os bairros de So Pedro e Galvo/Vale do Ribeira: territrio e parentesco, mostra a estruturao dos bairros de Galvo e So Pedro, localizados no Municpio de Eldorado/SP, a partir da descendncia de um ancestral comum. A autora evidencia que, no decorrer da histria dessa regio, vai se conformando uma rede social negra, tecida pelos vnculos de consaguinidade e anidade, que une grande parte das comunidades do Vale do Ribeira. Vale ressaltar que nossa premiada na categoria Experincias e Memrias, Dona Jovita, uma das narradoras da reconstituio desta histria. A regio do Vale do Ribeira tambm retratada no artigo Uso comum, regularizao fundiria e mercado de terras - estudo de caso da comunidade do Cangume, localizada no Municpio de Itaca/SP. Argumenta-se que a construo da territorialidade e a prpria denio dos limites do territrio quilombola passam em grande medida pelos usos da terra, entendidos a partir de seu carter sistmico e integrado, relacionados a espaos de moradia / espaos de produo. No decorrer do texto, o autor demonstra como esse sistema de funcionamento da comunidade de Cangume, construdo com base nas relaes sociais, foi sendo transformado pela ao do Estado e como o processo de transformao das posses em propriedades desrespeitou o uso coletivo da terra, convertendo-a em propriedade privada. Pode-se notar que a diversidade de temas, linhas tericas e reas de conhecimento, mostram como a temtica quilombola vem ganhando visibilidade. O tema do silncio e da memria se faz presente em muitos dos artigos. As histrias dessas comunidades aqui relatadas, nos mostram como o legado do passado da escravido, ainda que mantido sob silncio por perodos variveis, est incrustado na memria coletiva das comunidades e geralmente invocado no processo de reivindicao dos direitos historicamente negados. Esperamos que este conjunto de trabalhos contribua para qualicar a reexo sobre este tema, estimulando ainda mais a produo do conhecimento junto s comunidades quilombolas. Agradecemos aos que participaram desta segunda edio do Prmio Territrios Quilombolas e desejamos a todos uma boa leitura!

Apresentao

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Autoria

Carlos Alexandre Barboza Plnio dos SantosGraduado em cincias sociais habilitao em antropologia, pela Universidade de Braslia (UnB). Licenciatura em estudos sociais, licenciatura plena em geograa, ambos pelo Centro Universitrio de Braslia (UniCeub). Especializao em geograa do Brasil, pelo Centro Universitrio de Braslia (UniCeub). Mestre em antropologia pelo Programa de ps-graduao em antropologia social PPGAS/Departamento de Antropologia, Universidade de Braslia e doutorando em antropologia pelo PPGAS/UnB. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq).

Jos Maurcio ArrutiGraduado em histria pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre e doutor pelo Programa de Ps-graduao em Antropologia Social do Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Pontifcia Universidade Catlica (PUC) do Rio de Janeiro e pesquisador associado do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento Cebrap, So Paulo. Entre 1999 e 2006 coordenou o Programa Egb Territrios Negros, para comunidades negras rurais e quilombolas, de Koinonia, onde continua atuando como editor do Observatrio Quilombola (www.koinonia.org.br/oq).

Jovita Furquim de FranaEscritora autodidata, aprendeu a ler e escrever com uma colega quando era menina e no pde frequentar a escola. J foi presidente e membro do Conselho Fiscal da Associao Quilombola de Galvo, vice-tesoureira da Associao de So Pedro, tesoureira da Associao de Bairro, catequista e coordenadora da Igreja Catlica de Galvo. H 30 anos luta pelo reconhecimento dos direitos de sua comunidade, o Bairro de Galvo, no Vale do Ribeira/SP.12PRMIO TERRITRIOS QUILOMBOLAS 2 EDIO

Marcelo Moura MelloGraduado em cincias sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrando em antropologia social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp).

Maria Celina Pereira de CarvalhoGraduada em histria pela Universidade de So Paulo (USP). Mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq). Doutora em cincias sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp).

Priscila da Cunha BastosGraduada em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense UFF.

Ricardo Scoles CanoGraduado em cincias biolgicas pela Universitat de Barcelona/Espanha. Mestrado prossionalizante em gesto ambiental pelo Instituto de Investigaciones Ecolgicas (IIE), Espanha. Mestre em planejamento do Desenvolvimento no Ncleo de Altos Estudos Amaznicos (NAEA), da Universidade Federal do Par (UFPA) e Doutorando em ecologia tropical pelo Instituto Nacional de Pesquisas de Amaznia (INPA)/Ministrio da Cincia e Tecnologia, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq).

Vinicius Pereira de OliveiraGraduado em histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em histria pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) RS. Atualmente trabalha com ensino e assessoria em pesquisa histrica.

Autoria

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Minha misso1

Jovita Furquim de Frana

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ascida no dia um de fevereiro de 1943, fui vtima na infncia.

Com um ano de vida, enrolada num cobertor, fui ameaada de ser jogada no Rio Ribeira pela minha tia Ana, quando a minha me estava ausente, porque eu estava chorando. Foi a minha irm Orcia que me salvou. Quando eu tinha trs anos, meu pai foi perdendo a sade. Minha me estava grvida, e eu fui mandada para a casa da minha tia Pedrina para ela cuidar de mim at minha me ganhar nen. L comeou o meu sofrimento.

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1 Este relato trata da experincia de uma mulher quilombola, Dona Jovita Furquim de Frana, do bairro Galvo, localizado nos municpios de Eldorado e Iporanga, no Vale do Ribeira/SP. Galvo est s margens do rio Piles e o acesso comunidade se d pela rodovia SP-165 Eldorado/Iporanga, atravessando de balsa o rio Ribeira de Iguape e percorrendo um trecho de cerca de 3,5 quilmetros em estrada de cho. Em Galvo vivem 33 famlias, totalizando 143 pessoas, que tm como atividade bsica a roa de subsistncia, plantando principalmente feijo, arroz, milho e mandioca. Tambm desenvolvem a criao de pequenos animais. Muitos quilombolas trabalham para a prefeitura e governo do estado, alm de realizarem trabalhos dirios em fazendas prximas. Inicialmente Galvo e So Pedro, atualmente bairro vizinho, ocupavam um mesmo territrio tradicional. As duas comunidades formam um nico grupo de parentesco, descendentes de Bernardo Furquim de Frana. O territrio foi fundado em 1833, por escravos fugidos de uma fazenda, sendo Bernardo Furquim a gura principal dessa histria. Desde a origem, as comunidades sobrevivem por meio da agricultura de subsistncia e da criao de pequenos animais. Tambm praticavam a pesca, caa e coleta. No incio do sculo passado, com a venda de algumas pores de terras, fazendeiros passaram a viver no territrio da comunidade, ocupando reas para alm daquelas compradas, criando conitos com os moradores tradicionais, inclusive com ocorrncia de mortes. A Associao dos Remanescentes de Quilombo de Galvo foi criada em 1999, aps separao das comunidades Galvo e So Pedro. Em 2000, o Relatrio Tcnico Cientco para ns de regularizao do territrio de Galvo foi elaborado e a comunidade reconhecida como remanescente de quilombo, em processo conduzido pelo Instituto de Terras de So Paulo (Itesp). O territrio de 2.234,34 hectares, sendo a maior parte de terras devolutas estaduais, est na fase nal do processo de titulao. H 290 hectares pertencentes a particular, incrustados no meio da comunidade.

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No dia 22 de maio de 1948, minha me ganhou nen, o qual chamou-se Renato. Meu pai, muito alegre, olhou para mame e para o nen e disse: Tenho d de vocs, mas no sei o que Deus vai fazer de mim. J perdi a coragem de trabalhar para cuidar de vocs. Ele chamou os seus lhos mais velhos- Joo (15 anos), Orcio (13 anos), Doraci (11 anos)- e disse para eles cuidarem da me deles e de seus irmos mais novos - eu, Raul e Renato, que acabara de nascer- at que Deus decidisse o que seria feito dele. Joo, o mais velho, teve de cuidar da famlia. Enfrentou sol, chuva e frio para comprar comida e remdio. Mame cuidava da casa, mas papai cada vez piorava mais. Aps oito meses, meu pai faleceu. Isto foi no dia 18 de janeiro de 1949. Meu sofrimento s aumentava. Voltei para casa muito alegre e contente por voltar a estar com os meus irmos, mas o meu destino estava traado e nova batalha se iniciou. Minha me estava muito triste, pensando em como fazer para pagar as contas e cuidar de seus 6 lhos. Seis dias aps o falecimento do meu pai, minha tia Joanita, irm de minha me, a qual morava no Castelhano, do outro lado da Ribeira, veio visitar minha me para confortla. Vendo que minha me estava muito triste e abatida, props que minha me entregasse, e que ela cuidasse de mim at que a minha me tivesse condies de me buscar. Minha me concordou, e disse que logo me buscaria. Minha tia, muito esperta, enganou a minha me e no disse que estava de mudana para o centro de Eldorado. Oito dias depois, ela, seu marido, e seus dois lhos, mudaram-se para a cidade de Eldorado, e me levaram, sem autorizao da minha me. Nem deixaram o endereo do meu paradeiro. Quando minha me soube, ela cou triste, mas disfarou, dizendo que minha tia era sua irm, e no iria maltratar a sua lhinha. No entanto, ela se lembrou das ltimas palavras de papai, o qual segurou a mo dela e disse: Isulina, minha esposa, sei que estou na ltima hora da minha vida aqui na terra, e que no tenho nada para deixar, nem aos nossos lhos, que ainda so muitos pequenos. Cuide bem deles, no os maltrate, sei que Deus vai te ajudar a crilos. Ele fechou os olhos e no abriu mais. Enquanto isso, minha tia me levou para outro bairro chamado Meninos. L, eu fui atacada por um boi toureiro, e comecei a car doente. Meu tio trabalhava o dia inteiro, e s chegava em casa tarde. Ento, a minha tia me obrigava a trabalhar at eu no aguentar, e eu at levava chicotadas. De repente, eu comecei a me alimentar de cinzas. Minha tia descobriu, me deu uma surra, e me colocou de castigo.15Minha misso Depoimento

Depois, novamente mudamos para o centro de Eldorado. Minha tia continuava me batendo e me castigando, e no me alimentava direito e nem me dava remdio. Eu continuava comendo cinzas porque o verme me atacava e eu sentia muita tontura. Aos dez anos, eu j tinha completado um ano e seis meses nesse sofrimento. De repente, minha tia Odete, que tambm morava no centro de Eldorado, mas eu no conhecia, recebeu uma carta da me dela pedindo que ela procurasse a lha de Isulina, que deveria estar no centro de Eldorado, na casa de Joanita. Minha me pediu para ser informada pelo tio Guilherme. Ao ler a carta, minha tia Odete cou curiosa, e rapidamente foi me procurar. Logo me encontrou, e perguntou para minha tia de quem eu era lha. Minha tia falou, mas a tia Odete no disse nada, s pediu para que ela me mandasse para a casa do tio Guilherme. Ela me mandou para l, e o meu tio Guilherme quis saber quem eu era. A Tia Odete disse que eu era lha do tio Viturino e desde que ele faleceu, eu estava com a tia Joanita, mas que a minha me, a tia Isulina, nunca mais teve notcia, e pediu para eu fosse procurada no centro de Eldorado, e que se fosse encontrada, que fosse entregue ao tio Guilherme, para que ele pudesse avis-la. Eu estava muito doente, e o meu tio cou chocado ao ver sua sobrinha to maltratada, e tambm por descobrir que eu estava to perto e ele no sabia. Ele disse que no dia seguinte ele estava indo para o stio, e chegando l ele iria informar a minha me. Assim que chegou no stio, ele foi procurar a minha me. Tio Guilherme foi na casa do negociante Antonio Julio da Silva, e perguntou se ele tinha notcias de Isulina, esposa do falecido Viturino. Ele disse que sim, e que naquele mesmo dia ela estaria vindo para acertar um negcio. Tio Guilherme pediu para avis-la urgentemente que sua lha tinha sido encontrada, e estava muito doente. Tio Guilherme tambm disse que estava voltando para o centro de Eldorado para buscar a sua mudana e se ofereceu para buscar a menina, a qual poderia vir na mesma canoa das malas de roupa e dos mveis. O negociante Antonio Julio da Silva transmitiu o recado. Quando a minha me soube, ela cou revoltada. Ela escreveu uma carta para a irm pedindo para que eu fosse entregue ao tio Guilherme. No domingo prximo, tio Guilherme chegou no centro de Eldorado, e entregou a carta para Tia Joanita. Ela me entregou, e meu tio chamou trs vizinhos para testemunharem que eu estava muito mal de sade. Tio Guilherme temia que morresse durante a viagem. No entanto, correu tudo bem. Na quarta-feira, ns chegamos no Nhunguara e, ento, meu tio mandou que minha tia Otvia avisasse a minha me. No sbado, minha me e minha irm foram me buscar. No domingo, j estava na casa de minha me. L, a famlia, os irmos e os vizinhos se uniram para lutar pela

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recuperao da minha sade. Eu tomava todo dia um copo de remdio. Tambm me levaram para o benzedor, mas quase no adiantou. Eu fui piorando at que minha me desanimasse de mim. Depois de quatro meses de luta, eu estava entre a vida e a morte e, ento, apareceu uma visita que disse para minha me que eu estava com amarelo, que um verme que suga todo o sangue da pessoa. Esta visita disse que s a lumbrigueira esquilostomina capaz de acabar com esta verme. Disse que se mame no desse este remdio, eu morreria. Minha me comprou o remdio, e no dia seguinte me deu seis comprimidos s 5 horas da madrugada. s 10 horas, ela me deu laxante. Eu joguei muito verme, e no dia seguinte quei tomando canja de arroz sem sal. No dia seguinte, deram-me mais seis comprimidos no mesmo horrio, e tambm o laxante. Depois, explodiu uma bolsa de ovos de verme, e eu evacuei tudo que tinha no meu intestino. Todos caram admirados com a minha recuperao depois de dois anos de sofrimento. Comecei a trabalhar com 7 anos, e at os 11 anos trabalhei de bab em casa de famlia. Aos onze anos, comecei a trabalhar na roa e quei um ano e seis meses na casa do meu tio Luiz Furquim, irmo de meu pai, onde eu aprendi muitas histrias do passado. Aos 13 anos, eu resolvi enfrentar outro desao - eu no sabia ler nem escrever porque no tinha escola perto para eu estudar, mas eu sonhava com o dia que eu aprenderia a ler e escrever. O pai da minha colega Servina pagava penso para ela morar no Castelhano e assim poder estudar. Ela estudou at a terceira srie, e depois voltou para a casa. Servina falou que poderia me ensinar desde que seu pai deixasse. Ele concordou, desde que fosse noite. Eu e minha irm trabalhvamos o dia todo de segunda sexta-feira para garantir o po. Saamos para o trabalho s 5 horas da manh, e caminhvamos por 40 minutos. S chegvamos em casa l pelas 9 horas da noite. Portanto, eu no tive medo das diculdades que certamente encontraria. Continuei trabalhando fortemente, ganhava dinheiro e separava a metade para o sustento da famlia, e a outra metade para comprar material para estudo como caderno, lpis, borracha, lampio e querosene. Ento, eu comecei a estudar. Estudava das 10 horas da noite at uma hora da manh, e s quatro e meia da manh eu j estava acordada. Seguia para casa rapidamente para no perder o horrio de chegar na casa do patro. Enfrentei chuva, lama, noite escura, madrugada fria, sono, cansao, mas valeu a pena. Rapidamente, eu aprendi. Aos 17 anos, eu fui estudar no colgio das irms em Apia. L, eu aprendi muito mais e, aos 18 anos, fui catequista na comunidade vizinha. Aos 19 anos, eu me casei. Ns dois temos a mesma idade. Casamos no dia 17 de outubro de 1962.17Minha misso Depoimento

Aprendi que o sofrimento faz parte da nossa vida quando a gente sofre por amor em Deus e pelos irmos. Quando o casal se ama, no importa se rico ou se pobre. O que importa ser unido e ter amor. A unio, a pacincia e a f so o suciente para lutar contra o mal, e para viver a vida a dois. Comeamos a nossa vida de casado. No levou muitos dias para eu comear a car doente. Em seguida, sofri cinco abortos. Meu marido comprava muito remdio, mas eu no conseguia segurar a gestao. Todos estavam preocupados com a minha sade, mas um dia o negociante S. Antonio Jlio disse para o meu esposo que ele poderia trazer um vidro de sangue de So Paulo. Ele disse que se eu no me recuperasse, eu poderia estar tuberculosa, mas no acreditei. Depois de oito dias, o remdio chegou de manh, e eu bebi um clice. Eu quei to fraca que dormi por 9 horas. Eu continuei bebendo o remdio. Depois de quinze dias, eu j me sentia uma mulher forte, curada, corajosa. Comecei a trabalhar, sorrir e cantar, e logo engravidei. No dia primeiro de dezembro de 1964, nasceu minha lha Ivone. Em seguida, tive mais trs lhos. Depois, sofri mais dois abortos. Em seguida, tive mais 4 lhos. Eu quei muito doente na gestao do caula. Muita dor e crises todos os dias. Passei nove meses deitada na cama. S levantava para ir ao hospital fazer o pr-natal. Precisava que me levassem carregada at o local do transporte. Todos tinham pena de mim, mas comentavam que eu no sobreviveria. Como eu poderia no aguentar na hora do parto, as parteiras se recusavam a me atender quando eu pedia. Perto da minha casa, morava minha irm Doraci, que era uma boa parteira, junto com meu cunhado Francisco. No dia 4 de outubro de 1986, eu comecei a sentir dores de parto. Meu esposo andou depressa para procurar transporte para me levar no hospital, mas no encontrou. No tinha nenhum meio de comunicao. Ento, minha irm Doraci disse que agora no tinha jeito, e que fosse feito o que Deus quisesse. Ela resolveu cuidar de mim, e fez remdio caseiro- sabedoria da mata. A dor aumentou, mas a criana no nascia. Minha me, meus lhos, e meu cunhado Francisco estavam em desespero. Meu marido e minha irm faziam-se de duros, mas estavam com medo. Eu estava sem fora, com a vista escura, suando frio. A parteira sabia o que estava impedindo a criana de nascer, e disse que eu estava na me de Deus. Naquela hora, meu pensamento correu depressa, meu corao bateu forte, e eu falei no corao de Nossa Senhora Aparecida Protetora da Parteiras e do Glorioso Santo Expedito, o santo das coisas urgentes, para implorarem a Deus por mim e pelo meu lho que est para nascer. Seu fosse para morrer, eu queria levar meu lho comigo.18PRMIO TERRITRIOS QUILOMBOLAS 2 EDIO

Em um segundo, minha irm tirou uma criana de dentro de mim. Eu estava muito fraca e minha vista escureceu. Quatro dias depois, eu vi meu lhinho. Minha irm me explicou o que tinha acontecido: a criana tinha um tumor e tinha um lado da cabea maior que o outro, o que estava impedindo que a criana nascesse. Meu lho cou com a cabea marcada, e apesar da interveno de Nossa Senhora, ele um devoto de Santo Expedito. Ele carrega na carteira a imagem desse santo protetor de sua vida. Eu co admirada dele ser to devoto. Desta forma, eu e o meu marido tivemos 8 lhos, 7 homens e uma mulher. Meus lhos so muito obedientes e educados. Nunca deram uma m resposta para ns, e tratam todo mundo muito bem. Depois de um ano, eu recuperei a minha sade. Sofri muito. Eu j era lder da igreja desde 1987. Fiquei sem fora nas pernas. No cava de p sozinha, mas meus sobrinhos e meu cunhado, Francisco, levavam-me at a igreja, e me traziam de volta. Assim mesmo doente, eu no laguei a minha misso. Meu esposo tratou de mim e de nossos lhos com muita pacincia e carinho. Sofria para ganhar o po. Trabalhava de bia-fria. Meu lho Laudonatel era que lavava toda roupa. Ivone j era casada e morava longe. S vinha de 15 em 15 dias me visitar. Tudo correu bem. Recuperei a sade com a graa de Deus. Esta histria faz com que a famlia viva unida, na sade e na doena, na tristeza e na alegria, e tenha muita paz. Sou uma lutadora pelos direitos humanos, pela igreja, e pelo povo. Desde que meu irmo de criao, Carlos Pereira, foi assassinado por causa de um conito de terra, e seu padrasto Joo, que era meu irmo natural, cou ferido, meu corao nunca parou de chorar. Eu sempre me lembro desta cena. Meu irmo Joo foi para o Pronto-Socorro e Carlos cou 24 horas no mesmo local em que caiu. Desenho-se um caixo de sangue ao redor do seu corpo. A me, a nora, e os netos se banharam de sangue de tanto abraar o corpo dele cado. A esposa de Joo chorava desesperadamente. O povo, em silncio, esperava pela polcia. s quatro horas da tarde, a Polcia chegou. Levaram um dos assassinos para a delegacia de Iporanga. H muitos anos, a me de Carlos e minha enviuvaram. Como a situao nanceira era muito difcil, as duas combinaram de morar juntas, e formar uma famlia s. Para sustentar a famlia, tinham que trabalhar fora e ainda cortar palmito. Eu e as outras crianas fazamos todo o servio da casa, e ainda sobrava tempo para brincar. Pegvamos lenha, cana, banana, gua no rio, e ainda pescvamos e amos19Minha misso Depoimento

para a roa. Fazamos tudo que estava ao nosso alcance. Domingo, brincvamos na oresta o dia inteiro. No brigvamos, e ramos todos unidos como se fossemos lhos de uma me s. Carlos morreu para defender seu povo que desde 1969 vinha sendo ameaado de perder as terras do Tiatan, que pertencia a Dora Machado, uma das mulheres de Bernardo Furquim. Bernardo Furquim foi o fundador da comunidade. Ele teve vrias mulheres em locais diferentes, sendo que teve quatro relacionamentos permanentes. Gerou 24 lhos conhecidos, sendo que o meu av (Graciano Furquim) foi um deles. Esta a minha histria, minha luta e minha misso.

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Entre o quilombo e a cidade: trajetria de uma jovem quilombola

Priscila da Cunha Bastos

om a contnua diluio das fronteiras entre o rural e o urbano, a interpenetrao de diferentes universos culturais torna-se cada vez mais constante. As diculdades socioeconmicas no facilitam a vida dos que dependem da agricultura familiar. Nesse contexto, a juventude rural aparece como a populao mais afetada pelas modicaes sociais decorrentes do processo dinmico de dissoluo de fronteiras e modicao do universo rural. Este trabalho parte integrante de estudo monogrco para concluso de curso de graduao procura, a partir da trajetria de uma jovem moradora de um quilombo, fornecer pistas sobre as dimenses da vida dos jovens rurais hoje. No caso especco da jovem entrevistada, busca-se compreender como ela estabelece relaes entre o mundo globalizado e a sua cultura, que envolve no s uma ruralidade, mas tambm questes relativas a sua afro-descendncia. A jovem pesquisada, Meri, como prefere ser chamada, vive no quilombo So Jos da Serra, prximo ao municpio de Valena/RJ. Apesar das distncias geogrca e simblica existentes entre pesquisadora e pesquisada, o fato de j conhecer a comunidade facilitou o processo de aproximao. No total, foram quatro visitas realizadas para a composio deste trabalho. As trs primeiras, em abril e julho de 2005 e a ltima em fevereiro de 2006. O objeto de pesquisa constitui-se basicamente dos depoimentos de Rosemeri por ocasio das visitas. Ela pertence a uma comunidade de tradies rurais e afro-descendentes na qual a expresso mais caracterstica o jongo, uma dana em roda marcada pelos batuques dos tambores e por versos cantados denominados pontos de jongo. Identicado recentemente como um patrimnio imaterial pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Arts21

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tico Nacional (Iphan),1 o jongo manifestao cultural dos afro-brasileiros do sudeste do pas tem levado a comunidade para a cena social urbana especialmente pelas apresentaes em palcos tradicionais do Rio de Janeiro e aparies na televiso proporcionando o reconhecimento e at o apoio de suas lutas histricas como o direito terra por parte do poder pblico. No desao de conjugar as expectativas da comunidade com seus prprios desejos, Rosimeri encontra na re-signicao dos espaos do campo e da cidade uma alternativa. Contudo, a escassez de recursos, a falta de perspectivas de trabalho e da possibilidade de dar continuidade aos estudos no local onde vive no permite que novas arrumaes se materializem. nesse contexto que o processo de constituio da autonomia dos sujeitos jovens e suas ruralidades vm se construindo.

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A questo quilombola no Brasil

No processo histrico brasileiro, a experincia da liberdade vem acompanhada do empobrecimento dos sujeitos que vem limitadas suas possibilidades de desenvolvimento cultural e subjetivo. A condio quilombola no pas um exemplo disso. Depois de abandonados prpria sorte, com o m2 da escravido, muitos negros ainda continuaram a formar quilombos de diversos tipos como condio de sobrevivncia e alternativa s arbitrariedades que lhes foram impostas. Desde ento, teve incio um processo de expulso ou remoo dos libertos dos lugares que escolheram para viver, mesmo quando a terra havia sido comprada ou herdada de antigos senhores. A apropriao do espao que garantisse a reproduo de sua existncia tornou-se um ato de luta para a maior parte dos afro-descendentes. A Constituio Federal de 1988 foi o primeiro esforo de reconhecimento legal dos direitos quilombolas. O artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) estabelece aos remanescentes de quilombos o direito propriedade de suas terras. Representando o marco legal da questo quilombola, o que se esperava era que a Constituio de 1988 desencadeasse um movimento de elaborao de leis e normas para regulamentar o processo de titulao das terras quilombolas, tanto em nvel federal quanto estadual. Em parte foi o que aconteceu. A iniciativa federal mais recente data de 20 de novembro de 2003, quando o governo estipulou por meio dos decretos1 O registro do jongo foi aprovado como patrimnio cultural brasileiro pelo Conselho Consultivo do Iphan no dia 10 de novembro de 2005. Ver www.iphan.gov.br 2 No podemos deixar de destacar as formas recentes de escravido que se fazem presentes em nosso pas. Ao cerceamento da liberdade e a degradao das condies de vida somam-se as relaes de autoritarismo que resultam em vinculao nanceira e o desrespeito aos direitos humanos . Estima-se, segundo a Comisso Pastoral da Terra (CPT), que existem cerca de 25 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais vivendo em regime anlago ao trabalho escravo.

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4.883, 4.884 e 4.8873 novas normas para a regularizao das terras quilombolas delegando ao Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra) a competncia para a titulao.4 Reivindicando atravs de geraes o direito permanncia e ao reconhecimento legal de posse das terras que ocupam, assim como o livre exerccio de suas prticas culturais, as comunidades remanescentes de quilombos ainda sofrem com constantes ameaas de expropriao e invaso de suas terras.5

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Histria e cultura do quilombo So Jos da Serra

Nasci nAngola Angola que me criou Eu sou neto de Moambique Eu sou negro sim sinh A histria da comunidade quilombola de So Jos da Serra tem incio por volta de 1850 com a chegada de seus antepassados nas terras que hoje ocupam. A agricultura de subsistncia, o sincretismo religioso, o artesanato, as sabedorias medicinais e o jongo so alguns traos culturais que constroem o cotidiano dos moradores. Localizado no municpio de Valena/RJ, em terras ainda pertencentes judicialmente ao proprietrio da Fazenda So Jos, o quilombo possui, em sua maioria, construes formadas de adobe (tijolo de barro), bambu e madeira, cobertas de sap. Algumas casas que sofreram intervenes recentes para ampliao, por conta de casamentos, ou mesmo para restaurao da construo possuem cmodos de alvenaria. Mesmo amparados pela Constituio de 1988, que prev a posse das terras que ocupam para as comunidades remanescentes de quilombos, os moradores de So Jos ainda lutam pela garantia desse direito.

Entre o quilombo e a cidade: trajetria de

3 Os decretos 3.912 e 4.887 esto disponveis em: http://www.cultura.gov.br/legislacao/decretos/ index.php?p=98&more=1&c=1&pb=1, pesquisado em 24 de janeiro de 2006. 4 Em novembro de 2006, no encerramento das atividades da Semana Nacional da Conscincia Negra, o presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, entregou o ttulo de posse a nove comunidades de descendentes de escravos nos estados do Maranho e do Piau. Para informaes sobre o processo de titulao das terras quilombolas, consultar: Comisso pr ndio de So Paulo (www.cpisp.org.br), Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (www.incra.gov.br). 5 Nasci nAngola, jongo de autoria de Jos Maria.

uma jovem quilombola

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No caminho para o quilombo, encontramos duas porteiras anunciando que as terras que se aproximavam eram de propriedade particular, carter conrmado pelas atitudes do atual proprietrio da fazenda que impe restries ao uso da terra, tais como a proibio da criao de animais de porte cavalo, cabra ou porco ou mesmo o livre trnsito de visitantes por parte dos quilombolas que l residem e trabalham. O quilombo So Jos vem se tornando referncia no Estado pela divulgao de sua manifestao cultural mais caracterstica: o jongo tambm conhecido como tambu, tambor e caxambu. O movimento do jongo de sair do terreiro e subir nos palcos mobilizou atenes. A crtica que se coloca refere-se possibilidade desse processo de espetacularizao do jongo acabar diluindo a dimenso histrica dessa manifestao cultural e o que ela representa dentro da cultura afro-brasileira. Como ressaltou Alberto Ikeda,6 As comunidades precisam lembrar que elas podem ser valorizadas no s porque sabem o jongo, que, eventualmente, pode ter um valor artstico. Precisam lembrar que essa uma prtica que revela a vida comunitria, a exteriorizao de um saber guardado por centena de anos, de toda ancestralidade dessas comunidades. O pesquisador lembrou tambm que preciso questionar quais os benefcios que a espetacularizao est trazendo s comunidades jongueiras. O que mudou nessas comunidades, naquilo que se refere ao processo de suas lutas polticas? O certo que as comunidades jongueiras passaram a ter mais visibilidade com os encontros de jongueiros; os prprios jovens do quilombo So Jos reconhecem os ganhos materiais e simblicos para a comunidade com as apresentaes externas e internas ao quilombo. Jongo uma expresso cultural que tem origem com a vinda dos negros da nao banto, trazidos da regio africana do Congo-Angola para o trabalho escravo nas fazendas do Vale do Paraba, no sudeste do Brasil. uma dana em que casais se revezam no centro da roda girando em sentido anti-horrio fazendo meno aos passos de umbigada (simulando um abrao) marcados pelos ritmos dos tambores e pelos versos cantados.7 Estes ltimos, chamados de pontos, retrataram fatos do cotidiano dos escravos, a revolta, a opresso, as brincadeiras, o dia-a-dia na roa, entre outros. Para tanto, seguindo sua origem, a linguagem utilizada metafrica, cifrada e sinttica, o que permitia aos escravos se comunicarem sem que os brancos compreendessem. Os pontos exigem muita experincia para entender os seus signicados. Quando algum jongueiro quer cantar outro ponto, bate no tambor e grita machado. Dessa forma, o ponto anterior interrompido, os tambores se calam e o novo ponto pode ser cantado. Na roda, todos repetem o refro do ponto que o solista puxa.6 Alberto Ikeda do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista participou do I Seminrio Nacional sobre Patrimnio Imaterial do Jongo na mesa de ttulo: Metodologias e prticas de registro da tradio oral do jongo, por ocasio do IX Encontro de Jongueiros em dezembro de 2004. 7 Cada regio onde o jongo aparece guarda especicidades no seu modo de ser praticado. A denio apresentada refere-se s caractersticas comuns encontradas nos diferentes modos de danar jongo.

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Feitiaria, misticismo e traos religiosos tambm compem a cultura do jongo, que como forma de louvao aos antepassados, guarda traos bastante comuns com a prtica das religies afro-brasileiras. Na comunidade, o sincretismo marca as atitudes religiosas. Os moradores do quilombo So Jos freqentam o terreiro de umbanda e a Igreja Catlica. A capela construda na comunidade revela esse entrelaamento; a missa celebrada com tambores. Consolidando tradies e armando identidades, o jongo representa elemento fundamental para a comunidade em termos de integrao e preservao de sua memria. Nesse sentido, as comunidades jongueiras tm desenvolvido alternativas para a preservao de seus saberes e expresses culturais, como no caso do Encontro de jongueiros. Esse evento anual, no qual as comunidades jongueiras do sudeste do pas se juntam, vem garantindo o espao de interlocuo necessrio para que elas compartilhem suas lutas. Outra estratgia de preservao do jongo a entrada de jovens e crianas na roda. Se antes s os mais velhos podiam participar da celebrao, hoje a entrada de jovens representa a garantia de que o o da memria no se perder.

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Territrio e identidade

O que que faz o negro Na fazenda do Senhor O senhor mandou emboraEntre o quilombo e a cidade: trajetria de uma jovem quilombola

Por que que o negro voltou? A idia de quilombo foi cristalizada de tal forma pela histria ocial que se desconsidera a diversidade das relaes entre escravos e a sociedade escravocrata e as diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se da terra. Torna-se importante, assim, atualizar o conceito de quilombo, visto que o reconhecimento cientco das comunidades quilombolas fator primordial na luta pela terra, pois a identicao tnica do grupo segundo a legislao sobre o tema, principalmente o artigo 68 da Constituio brasileira de 1988 que vai justicar seu direito ao territrio reivindicado. A diversidade dos processos de formao dos grupos que hoje so considerados remanescentes de comunidades quilombolas inclui fugas com ocupao de terras livres e geralmente isoladas, mas tambm as heranas, doaes, recebimento de terras como pagamento de

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servios prestados ao Estado, a simples permanncia nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigncia do sistema escravocrata quanto aps sua extino.8 Isto contribui para que o termo quilombo assuma novos signicados e contemple as diferentes situaes e contextos de grupos negros no Brasil. A prpria denio remanescente de quilombo, instituda pela Constituio de 1988, exigiu um esforo de conceituao por parte dos pesquisadores, pois, ao mesmo tempo em que pretendia dar conta de uma diversidade de situaes envolvendo afro-descendentes, acabou tornando-se restritiva por considerar a idia de cultura como algo xo, a noo de remanescente como algo em processo de desaparecimento e a de quilombo como unidade esttica.9 Tentando superar os equvocos sobre o conceito de remanescente de quilombos e de forma a evidenciar o carter dinmico dessa experincia histrica que muito contribuiu para a formao social do Brasil, foi estabelecido pelos cientistas sociais que o termo representa um legado, uma herana cultural e material que lhes confere uma referncia presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo especco.10 Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo no se refere a resduos ou resqucios arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica. Tambm no se trata de grupos isolados ou de uma populao estritamente homognea. Da mesma forma nem sempre foram constitudos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram prticas cotidianas de resistncia na manuteno e reproduo de seus modos de vida caractersticos e na consolidao de um territrio prprio. A identidade desses grupos tambm no se dene pelo tamanho e nmero de seus membros, mas pela experincia vivida e as verses compartilhadas de sua trajetria comum e da continuidade enquanto grupo. Neste sentido, constituem grupos tnicos conceitualmente denidos pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento atravs de normas e meios empregados para indicar aliao ou excluso.118 SHIMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Ceclia M.; CARVALHO, Maria Celina P. A atualizao do conceito de quilombo: identidade e territrio nas denies tericas. Ambiente e sociedade.[online] Ano V, n.10. jan/jun 2002. p. 129-136. Disponvel em: < www.scielo.br >. Acesso em: 9 jul. 2005. 9 O artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) prev: aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade denitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos. Disponvel em : http://www.planalto.gov.br/ccivil/Constituicao/ Constitui%C3%A7ao.htm#adct, pesquisado em 24 de Janeiro de 2004. 10 ODWYER, Eliane Cantarino (Org.) Terra de Quilombos. Rio de Janeiro. ABA Associao Brasileira de Antropologia, julho de1995 (apresentao) apud MATTOS, Hebe Maria e MEIRELES, Ldia C. Meu pai e vov falava: quilombo aqui Memria do Cativeiro, Territrio e Identidade na Comunidade Negra Rural de So Jos da Serra. Relatrio de Identicao de Comunidade Remanescente de Quilombo. Rio de Janeiro: LABHOI Laboratrio de Histria Oral e Imagem UFF, 1997. 11 Id., p. 3.

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A injusta ordem social brasileira, porm, ignora os efeitos da escravido, fazendo com que, at hoje, esta dvida histrica se prolongue deixando que milhares de pessoas sejam alijadas de condies dignas de existncia, material e simblica, tal como no caso da interdio do ttulo da terra para os quilombolas. Estudos antropolgicos demonstram que uma comunidade quilombola se caracteriza pelo compartilhamento de uma identidade social e tnica extremamente ligada terra e pelas prticas de resistncia que eles constroem para garantir a manuteno e reproduo de seus modos de vida caractersticos. De acordo com Shimmitt (2002), a identidade de grupos rurais negros se constri sempre numa correlao profunda com o seu territrio e precisamente esta relao que cria e informa o seu direito terra. Para Ilka Boaventura (2004), o que dene o direito terra essencialmente o sentido de comunidade, a condio do sujeito como membro do grupo. Para esta autora, A terra o que propicia condies de permanncia, de continuidade das referncias simblicas importantes consolidao do imaginrio coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela sua existncia, mas, inclusive no tem com ela uma dependncia exclusiva. Para alm de uma identidade negra colada ao sujeito ou por uma cultura congelada no tempo, que deve ser tombada pelo patrimnio histrico e exposta visitao pblica, a noo de coletividade o que efetivamente conduz ao reconhecimento de um direito que foi desconsiderado, de um esforo sem reconhecimento ou resultado, de um lugar tomado pela fora e pela violncia. Coletividade no sentido de um pleito que comum a todos, que expressa uma luta identicada e denida num desdobrar cotidiano por uma existncia melhor, por respeito e dignidade. a por onde a cidadania deixa de ser uma palavra da moda e passa a produzir efeito no atual quadro de desigualdades sociais no Brasil.12 O territrio, denido por Milton Santos como o espao onde se realiza a vida coletiva, evidencia todos os movimentos da sociedade. O modo como os sujeitos utilizam a terra, como eles se organizam no espao e como do signicado ao lugar, dene a identidade e a territorialidade de uma comunidade, expressos pelo sentimento de pertencimento a um grupo e a uma terra, respectivamente, e denidos sempre em relao aos outros grupos com os quais os sujeitos se confrontam e se relacionam. Estes so elementos que conguram as dimenses do quilombo So Jos. A relao com a terra construda no jogo de poder que dene a relao dos quilombolas com o proprietrio. Por exemplo, os moradores do quilombo So Jos referem-se como fazenda apenas quela parte que utilizada para plantio pelo proprietrio, ou seja, ao local onde vendem sua fora de trabalho. A reviso do conceito de quilombo ganha fora nesta comunidade para contemplar uma situao em que a terra lhes foi doada verbalmente por um dos antigos donos da fazenda. Em 1999 o governo Federal reconheceu ocialmente a comunidade como remanescente de quilombo, o que abriria caminho12 Ibid., p. 8.

Entre o quilombo e a cidade: trajetria de

uma jovem quilombola

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para o processo de titulao das terras. No entanto, como dene Toninho Caneco, lder poltico da comunidade, hoje a principal luta do quilombo So Jos ainda pela posse da terra. O quilombo So Jos da Serra, como o prprio nome indica, localizado numa regio de montanhas no Vale do Paraba, regio sul uminense. A principal atividade produtiva dos quilombolas o cultivo de subsistncia de milho e feijo, plantados nos pequenos espaos que lhes permitido pelo ento proprietrio da Fazenda So Jos; criam tambm, animais de pequeno porte como, galinhas. A cidade mais prxima, Santa Isabel do Rio Preto dista 12 quilmetros de So Jos. Nesta cidade os moradores do quilombo comercializam seus produtos e tambm tm acesso a alguns bens e servios que no dispem na comunidade, como, posto de sade. Dentro do quilombo, o chamado terreiro o espao neutro, onde os moradores recebem os visitantes e realizam suas festas. Neste local esto construdas uma capela e uma escola municipal que atende aos moradores da comunidade So Jos e seu entorno. As casas quilombolas localizam-se em diferentes pedaos do terreno da fazenda, constituindo duas reas principais. A primeira ca prxima ao terreiro, perto da entrada da fazenda. As construes esto numa rea mais plana, de vale. A segunda, um pouco mais longe da entrada e em direo oposta ao terreiro, tem terreno mais acidentado as casas foram construdas subindo a montanha. Mais acima destas encontram-se as plantaes de feijo das famlias da comunidade. Composta por aproximadamente 200 pessoas, cerca de 24 famlias, a comunidade a stima gerao desde os primeiros escravos comprados para trabalhar na Fazenda So Jos. Devido falta de trabalho no campo, as sadas para cidade so constantes, marcadas por idas e vindas tanto de homens quanto de mulheres. A interao entre o rural e o urbano no se d apenas em razo do trabalho, mas tambm nos momentos de festas no quilombo ou na cidade, esta onde os jovens estudam, fazem compras, vo a bailes, produzem novos espaos de lazer e sociabilidade. Dessa forma, h uma ampliao das redes de relaes e das trocas materiais e simblicas com o mundo dito urbano. Contudo, isso no signica necessariamente que o sistema social e cultural de origem desses jovens seja descaracterizado, ao contrrio, Carneiro (1998b), defende que a heterogeneidade social ainda que produza uma situao de tenso, no provoca necessariamente a descaracterizao da cultura local. Quando aceita pela comunidade, a diversidade assegura a identidade do grupo que experimenta uma conscincia de si na relao de alteridade com os de fora.13 Nessa complexidade em que culturas diferentes se interpenetram, ca cada vez mais difcil traar as fronteiras entre o rural e o urbano. Historicizar essa dualidade re13 CARNEIRO, Maria Jos. Ruralidade: novas identidades em construo. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 11, p. 53-75, 1998b. Disponvel em:. Acesso em: 9 jul. 2005.

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conhecer que o sujeito que vive no campo hoje capaz de absorver e de acompanhar a dinmica da sociedade em que se insere e de se adaptar s novas estruturas sem, contudo, abrir mo de valores, viso de mundo e formas de organizao social que lhes so prprias.14 Mas como as prticas cotidianas ultrapassam os limites do controlvel, a relao campo-cidade cria tenses entre os moradores do quilombo e mesmo entre os jovens e seus projetos individuais.

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Os caminhos de Meri na relao campo-cidade

Deixa a moreninha passear Deixa a moreninha passear O terreiro grande15 Quando falamos em juventude rural, sobre quem nos referimos? A prpria diculdade de estabelecer o que o rural, frente ao intenso uxo material e simblico cidadecampo, torna um desao a conceituao do que juventude rural. Deve-se considerar que tal denio carrega uma forte pretenso generalizante que enquadra diferentes sujeitos num mesmo critrio estabelecido geralmente por outrem, quase nunca pelos prprios indivduos que vivem a condio de estar no campo. A heterogeneidade das condies de vida e trabalho dos jovens que moram no campo congura formas de viver diferenciadas, constituindo experincias e identidades coletivas distintas. As diferenas nos processos de socializao dos jovens rurais so marcadas, na maior parte, por condies de gnero e pelos recursos materiais e simblicos que lhes so disponveis. Os jovens e as jovens negociam nesses espaos com as expectativas dos pais em relao ao seu futuro e com os recursos que herdam das geraes anteriores, construindo nesse dilogo geracional suas trajetrias de vida. As incertezas quanto ao prprio futuro se fazem presentes quando confrontam as diversas alternativas de vida que se apresentam com a precariedade da sua insero no mundo do trabalho. O ser jovem varia de acordo com a classe, o gnero, a raa, o local de moradia etc., pois esses recortes sociais interferem nas possibilidades de insero social dos sujeitos. A juventude, como um conceito construdo historicamente, muda no tempo, no espao e de sociedade para sociedade, no podendo, dessa forma, serem estabelecidos limi14 15 Ibid. Deixa a moreninha passear, ponto de jongo de Me Zeferina.

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tes etrios xos para demarcar esse perodo, visto que jovens da mesma idade vo sempre viver juventudes diferentes. (NOVAES, 2003:122) Considerada uma fase da vida e sendo experimentada de diversas maneiras, o que, qual experincia ou processo deniria a passagem para a vida adulta? No caso de Meri, ser me e casada no representa uma ruptura com sua identidade juvenil. Acrscimo de responsabilidades tampouco, pois para ela as responsabilidades sempre existiram. Desde pequena cuidava dos irmos por ser a mais velha, alm de trabalhar na roa com o pai. Torna-se tarefa difcil entender a jovem Meri se nos basearmos no ideal urbano de juventude comumente adotado em algumas pesquisas. A diculdade de se caracterizar a juventude rural tambm existe, como j mencionado, pela diculdade de se estabelecer o que o rural frente s novas possibilidades de interao cidade-campo que se apresentam em sociedades complexas. A intensa mobilidade espacial tem transformado muito o meio rural, principalmente naquilo que se refere juventude. (CARNEIRO, 2005) Ser moradora de um quilombo acrescenta novas peculiaridades ao ser jovem de Meri. Mas ser que a tradio familiar um peso que submete as geraes mais novas e restringe suas possibilidades de escolhas? Pude vericar que na comunidade negra de So Jos da Serra h espaos de negociao. Os jovens esto sendo cada vez mais imbudos da tarefa de levar a comunidade e suas lutas frente, mas encontram brechas para colocar nesta caminhada suas marcas. H no quilombo um reconhecimento daquilo que especco da juventude por parte das geraes mais velhas, o que, de certa forma, atenua os possveis conitos intergeracionais. Tem-se observado que os jovens que vivem no meio rural atualmente se constroem e so construdos como sujeitos numa teia cada vez mais complexa de relaes sociais que ultrapassa o universo domstico/familiar. So jovens que moram no seu lugar de origem, mas trabalham, estudam, fazem compras e se divertem na cidade, e aqueles que permanecem no campo no necessariamente esto na atividade agrcola. Outra caracterstica referente ao universo simblico das jovens que no querem ser apenas mes e esposas, ou quando o so, no caso de Meri, no querem se restringir apenas a esse papel. Rosemeri nasceu no quilombo e foi morar ainda nova no Rio de Janeiro devido ao trabalho do pai. Aos oito anos de idade voltou para morar de vez na comunidade com a famlia. Cresceu cuidando dos irmos mais novos e trabalhando na roa com o pai, por quem demonstra um respeito e uma gratido sem m. Diz que sempre trabalhou por gostar, nunca por obrigao. Trabalhar pra ter o que meu tambm era uma de suas motivaes acreditando que dessa forma possvel dar mais valor ao dinheiro. O fato de ter seis irmos (cinco meninas e um menino) tambm foi lembrado como uma das razes para a valorizao do dinheiro, anal: nem sempre dava para o pai dar tudo a todos.

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A insero de valores relacionados vida na cidade ao cotidiano de Meri no quilombo advm desse curso migratrio do pai. Trabalhar para ter o que meu revela uma postura individualizada e caracterstica da sociedade moderna que valoriza a idia de liberdade e escolha para tornar o sujeito singular. O que poderia causar conito diante de uma comunidade unida por fortes laos de parentesco e memria coletiva que revela uma identidade comum, na verdade, cria novas arrumaes sociais em que o eu, ou seja, a vontade de individuao de cada indivduo16 reconstri o coletivo a partir de novas signicaes. A prpria relao com a terra se modica como uma adaptao situao de restries para o seu uso impostas pelo fazendeiro, mas tambm sofre transformaes como uma forma de acomodar o individual no coletivo e o coletivo no individual. Hoje, cada um tem sua roa e o trabalho feito de forma diferente, numa espcie de troca de servios. Meri explica que esse sistema de trocas mais rpido para todo mundo, j que ningum tem dinheiro para pagar o trabalho do outro. Funciona da seguinte maneira: algumas pessoas da famlia de Meri trabalham na roa de outra famlia e depois o mesmo nmero de pessoas da outra famlia trabalha na roa da famlia de Meri. Acredita que est melhor assim porque no precisa car todo mundo plantando roa que nem um doido. Meri apresenta um quadro comum da vida no meio rural hoje, apesar de achar que as crianas agora so muito preguiosas (...) no sabem nem pegar na enxada direito, diz que no quer ver os lhos passando pelo o que ela passou, ou seja, no deseja um futuro para eles na agricultura. Assim como Tio, seu pai, que a incentivou a continuar os estudos depois que engravidou pela primeira vez, aos 17 anos, revelando a valorizao da educao escolar como um bem necessrio para melhorar a condio de vida. Com algumas interrupes e o apoio do pai ela conseguiu terminar o ensino mdio em Santa Isabel. At 4 srie do ensino fundamental, os moradores estudam na escola do quilombo, depois eles vo para uma escola em Santa Isabel onde estudam noite, desde a 5 srie at o ensino mdio. Uma kombi da prefeitura busca os estudantes do quilombo para lev-los at a escola. A existncia de uma escola que oferea curso mdio noturno nas proximidades do quilombo associada kombi que leva e traz os jovens para a escola todos os dias condio fundamental para a formao deles. Luciano, em 2003, foi o primeiro jovem do quilombo a completar o ensino mdio. Hoje, quase todos os jovens da comunidade em idade escolar esto cursando os ensinos fundamental e mdio. Apesar das diculdades que conguram as trajetrias escolares dos jovens quilombolas, na escola de Santa Isabel os jovens de So Jos tambm zeram quilombo. O deslocamento em grupo dos quilombolas permite que sua identidade coletiva seja evidenciada em diferentes espaos, re-signicando ambientes e lugares. Meri conta que na cidade tinha um bom relacionamento com os outros jovens, isto , aqueles que16 TOURAINE, Alan. A busca de si; dilogo sobre o sujeito. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

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no eram da roa, como ela mesma se refere. Na escola, havia uma espcie de troca de saberes muito apoiada no respeito e valorizao dos moradores do quilombo por parte dos professores. Em algumas aulas os jovens de So Jos eram destacados para contarem sobre a vida no quilombo, sobre o jongo, as plantas medicinais, o artesanato etc., gerando interesse e por vezes, preconceitos. Era comum, por exemplo, associarem os moradores do quilombo a macumbeiros, devido cultura do jongo. Foi bem difcil no comeo, at acostumar foi bem difcil. Porque era diferente, o pessoal da cidade diferente daqui da roa. Ento a gente mais envergonhado. Bem diferente mesmo. Ento no comeo foi difcil... separar por matrias... nossa!17 Algumas identidades so evidenciadas de acordo com o contexto e a relao que nele se estabelece. No caso dos jovens moradores de So Jos, freqentar uma escola na cidade representou um grande desao, no apenas pelos problemas de deslocamento, mas, sobretudo, para a construo de suas identidades. O contato com o diferente aproximava os jovens do quilombo quando a identidade coletiva era enfatizada em momentos especcos, como no recreio em que sentavam todos juntos na mesma mesa para conversarem e s levantavam quando o ltimo terminava de lanchar. Ao mesmo tempo, esse dilogo com outro universo cultural propiciou a apropriao de esquemas simblicos que permitiam o reconhecimento de si como sujeito jovem. A forma de vestir, a linguagem, os bailes funks e outras caractersticas dos diferentes modos de ser jovem passaram a fazer parte do cotidiano dos jovens do quilombo. A escola vista pelos moradores do quilombo como condio para o acesso ao mercado de trabalho, mas tambm representa um grande espao de sociabilidade para os jovens, um lugar de se fazer amigos, onde so ampliadas redes de relaes e imaginrios sociais que passam a adquirir caractersticas urbanas. O contato dos jovens moradores do quilombo com os jovens moradores de Santa Isabel atravs da escola permitiu que a identidade de jovem quilombola fosse fortalecida e ao mesmo tempo representou uma ampliao dos referenciais, do mercado de bens simblicos, que se reetem diretamente na construo das perspectivas de futuro desses jovens. Ter uma prosso apoiada em conhecimentos tcnicos especcos passou a fazer parte dos sonhos dos jovens e das expectativas de seus pais para que os lhos conquistem aquilo que chamam de vida melhor. O ensino mdio passou a representar um ponto de partida e no mais de chegada, j que a maioria vislumbra continuar os estudos numa faculdade, ainda que as condies materiais de vida no quilombo no contribuam para a realizao do desejo de prosseguimento da trajetria escolar: Arrumar servio aqui muito difcil, tem que sair longe pra trabalhar. Tendo um estudo bem mais fcil, continuando o estudo bem mais fcil. (...) No tem como largar tudo e sair pra morar, pra estudar. E pra17 Todos os depoimentos em destaque no corpo do texto so de Rosemeri.

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gente sair, assim, car uns dois dias, tem esse negcio de lugar, comida, nossa, tem muita coisa que impede, assim, sair. Importante destacar que a socializao dos sujeitos jovens do quilombo no ocorre apenas no espao escolar. Como ressalta Brando (1999:147): A socializao do indivduo na sociedade camponesa e, portanto, o seu diferenciado ciclo de momentos de incorporao em culturas, no se realiza somente no interior de agncias e de relaes intencionalmente dirigidas inculcao de habitus, reproduo de uma qualquer modalidade de saber necessrio e de participao em processos de reproduo de identidades e modos de vida. O grupo familiar representa um grande peso na formao das identidades dos jovens que vivem no campo. Os grupos de idade, os grupos de interesses e outras instituies como a igreja e a escola concorrem numa trama complexa onde, por vezes, as intenes de socializao por parte da famlia so transgredidas.

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Entre o ficar e o sair

A pluralidade do real numa sociedade complexa transforma no s a cidade, mas tambm o campo em redes de relaes e prticas que conguram um amplo espectro de fatos sociais educativos com dinmicas culturais prprias de formao de valores, troca de saberes e construo de subjetividades. (CARNEIRO, 2005) Os jovens e as jovens moradoras de reas rurais tm sido os/as mais afetadas pela dinmica das relaes sociais contemporneas que tm diludo as fronteiras entre o campo e a cidade. Por serem vistos na maioria dos estudos apenas sob a tica do trabalho na agricultura familiar, a complexa insero desses jovens num mundo globalizado ainda sofre com vises estereotipadas. Em So Jos, a maior aproximao entre campo e cidade, seja pelas festas, pelos estudos ou mesmo pelas sadas do quilombo que o jongo proporciona, traz novas perspectivas que inuenciam e modicam a relao dos jovens com a comunidade. Meri vive o dilema entre seguir seu projeto individual e o compromisso que tem com a famlia. Dentro dessa ambigidade est em curso a construo de uma nova identidade. Cultuam laos que os prendem ainda cultura de origem e, ao mesmo tempo, vem sua auto-imagem reetidas no espelho da cultura urbana, moderna, que lhes surge como uma referncia

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para a construo de seus projetos para o futuro, geralmente orientados pelo desejo de insero no mundo moderno. Essa insero, no entanto, no implica a negao da cultura de origem, mas supe uma convivncia que resulta na ambigidade de quererem ser, ao mesmo tempo, diferentes e iguais aos da cidade e aos da localidade de origem. (CARNEIRO, 2005) O contato de Meri com jovens ditos urbanos, tanto na escola quanto nas apresentaes do jongo, abre caminhos para aquisio de novos valores e ampliam seu campo de escolhas. Meri parece perceber que isso gera transformaes em sua vida. visvel, tanto em seu discurso, como no seu modo de vestir, a incluso de aspiraes e modos de ser referentes ao estilo de vida das juventudes urbanas. A convivncia com universos culturais distintos cria uma tenso em Meri entre as vontades de estudar fora e ter uma prosso e permanecer no quilombo, prximo famlia. O conito de Meri ainda toma propores maiores pelo fato de ser me de quatro lhos. Ao mesmo tempo em que vive as expectativas de uma vida juvenil preocupa-se em fornecer um ambiente de tranqilidade para seus lhos. A valorizao do estudo e a migrao temporria, como efeito do estreitamento entre o campo e a cidade, rompem com o padro de reproduo anterior por criar novas necessidades que ampliam o campo de possibilidades de realizao de projetos individuais. Com a certeza de que a atividade agrcola no fornece as condies necessrias para o sustento da famlia, o marido de Meri trabalha no Rio de Janeiro como faxineiro de um prdio e Meri, sempre que consegue, trabalha em algum servio temporrio nas redondezas do quilombo. Outras atividades complementam a renda dos moradores do quilombo, como as festas que organizam. A principal delas ocorre por ocasio do dia 13 de maio. A comunidade prepara um grande almoo comunitrio, vende bebidas e outros alimentos alm do artesanato que produz. O ponto alto da festa o jongo. Todos trabalham bastante, antes, durante e depois da festa, mas tm energia de sobra para danar o jongo e a dana do calango18 at de manh. Nas festas, a comunidade recebe pessoas de todas as localidades do Rio de Janeiro e tambm de So Paulo. Alm de ser fonte de renda para o quilombo a festa tambm representa um grande espao de sociabilidade e de divulgao da cultura jongueira. A expectativa de muitos visitantes de terem contato com um quilombo e o jongo cria um embate de expectativas diferenciadas principalmente com os jovens da comunidade. Os visitantes vo em busca da autenticidade, do verdadeiro jongo , mas os jovens do quilombo so como outros da cidade, gostam de ouvir e danar diversos tipos de msica identicadas com as culturas urbanas juvenis, como o funk.18 Calango uma dana encontrada no norte de Minas Gerais e no Rio de Janeiro. danada por pares. O canto improvisado pelo solista e o refro repetido pelo coro. Tambm aparece na forma de desao entre dois cantadores. O instrumento tradicional de acompanhamento a sanfona de oito baixos. Informaes disponveis em: http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_C&nome=Calango.

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preciso dizer que, ainda que os jovens no se sintam totalmente confortveis em representar o tradicional, eles e elas parecem participar deste jogo da autencidade cultural evitando inserir nessas festas de convidados, msicas que possam descaracterizar a imagem de territrio de cultura quilombola tradicional. Interessante notar que na festa que participamos em Santa Isabel,o funk no foi criticado pela liderana (Toninho) uma vez que no havia ningum de fora (alm de nossa equipe de pesquisa e documentrio). As pessoas tambm poderiam procurar entender isso, porque a gente danar o jongo pra eles, no que o jongo... a gente no se diverte s com o jongo, mas a gente tambm tem que gostar de outras coisas, tem que gostar de forr, tem que gostar de funk, tem que gostar de tudo um pouco no deixando de danar o jongo, a gente tem que gostar de tudo, ainda mais jovem! Vem um dia de semana aqui e a gente ta ouvindo um (...) um funk... p, a gente vai car ouvindo 24 horas s o jongo? At mesmo porque a gente vive desde pequena, a gente vive isso muito, ento um dia que eu chegue na casa de algum que ta ouvindo funk; Ah! Nossa! Que espanto No tem nada a ver, a gente normal! Meri demonstra grande preocupao com a manuteno da cultura jongueira. De um lado por certa expectativa dos mais velhos que viram me Zeferina antiga lder espiritual da comunidade , antes de morrer, colocar um ponto para Meri e Luzia (outra jovem do quilombo) a m de que elas dessem continuidade a esta cultura. A produo pelo outro de uma identidade cristalizada da comunidade no leva em considerao a dinmica das relaes sociais que interfere na cultura local. Anal, o que o autntico num mundo em movimento e onde o fazer-se sujeito cultural resultado de relaes cada vez mais complexas? Para Canclini (1998), essas expectativas de autenticidade fazem parte de uma tradio intelectual que via nas ideologias modernizadoras, por buscarem a superao do antigo, o m das formas de produo, das crenas e dos bens tradicionais. Numa viso evolucionista de mundo, acreditavam que os mitos seriam substitudos pelo conhecimento cientco, o artesanato pela expanso da indstria, os livros pelos meios audiovisuais de comunicao.19 O caminho, ento, era preservar as culturas autnticas do avano da industrializao, da massicao urbana e das inuncias estrangeiras, conservando sua unicidade, sua pureza. Dessa forma, separavam-se e delimitavam-se as fronteiras entre o que se considerava tradicional e o que era moderno; o artesanato podia ser visto em feiras populares enquanto as obras de arte iam para os museus.35Entre o quilombo e a cidade: trajetria de uma jovem quilombola

19 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1998. p.22

Com o reconhecimento da existncia de articulaes mais complexas entre tradio e modernidade, viu-se que a industrializao dos bens simblicos no anularia as experincias tradicionais. (...) a modernizao diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simblico, mas no os suprime. Redimensiona a arte e o folclore, o saber acadmico e a cultura industrializada, sob condies relativamente semelhantes. O trabalho do artista e o do arteso se aproxima quando cada um vivencia que a ordem simblica especca em que se nutria redenida pela lgica do mercado. (CANCLINI, 1998: 22) Assim, de acordo com este autor os produtos tradicionais mantm a funo de dar trabalho queles que o produzem e ao mesmo tempo desenvolvem outras funes modernas: atraem turistas e consumidores urbanos que encontram nestes bens, signos de distino, referncias personalizadas que os bens industriais no oferecem (p.22). No quilombo So Jos, o potencial moderno de sua tradio tambm apropriado pela comunidade que teatraliza e celebra o passado para rearmar-se no presente.20 produzindo o espetculo de demonstrao de sua cultura que os quilombolas-jongueiros aumentam a renda de sua associao de moradores,21 ganham visibilidade poltica e aliados na luta pela conquista de seus direitos negados ao longo da histria. A valorizao do campo, produzida pelo prprio meio urbano e muito impulsionada pelos projetos tursticos, pode contribuir para a nfase dessa identidade cristalizada, mas concomitantemente possibilita que o jovem vislumbre um futuro no meio rural no necessariamente organizado em torno da agricultura. A negociao que os jovens estabelecem entre universos culturais distintos tem caminhado para uma re-signicao de ambos os lados. Para Carneiro (1998),PRMIO TERRITRIOS QUILOMBOLAS 2 EDIO

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(...) ao contrrio da referncia exclusiva a um nico sistema cultural atualizado pela organizao social camponesa denidor de uma identidade tradicional, esses jovens estariam vivenciando uma situao complexa, resultante da combinao singular de sistemas simblicos particulares e universos culturais distintos, onde novas identidades estariam sendo elaboradas com interferncia na formulao de projetos e trajetrias individuais. Se, ir para a cidade signicava a possibilidade de romper com os laos da tradio familiar de forma a construir uma individualidade, hoje, o tornar-se sujeito encontra lugar para se fazer no prprio meio de origem. A liberdade de escolha, conquistada20 21 Ibid. p. 30. Associao dos Remanescentes de Quilombo da Comunidade So Jos da Serra.

pelos jovens do meio rural fundamental para esse processo de individuao. Esta liberdade, na prtica, pode signicar poder escolher a prosso que se quer seguir e a pessoa com quem se deseja casar, por exemplo. A construo da autonomia entre a tradio e as possibilidades apresentadas pelo desenvolvimento das foras produtivas da sociedade moderna pode ser angustiante para esses jovens. Mas so eles mesmos que podem produzir os mecanismos de superao desse estado inconstante avaliando as possibilidades de forma a conjugar o que antes parecia antagnico. Dessa forma, papis sociais so redenidos, como o da mulher que no tem apenas a casa e o ambiente domstico como alternativa de vida. Ainda que os projetos individuais tambm sejam redenidos sustentados por outra lgica que no a da oposio campo-cidade, estes no encontram a materialidade necessria para a sua realizao. A falta de condies materiais para realizao de seu projeto individual faz com que Meri no descarte a possibilidade de ir morar no Rio de Janeiro, mesmo achando que na cidade so muitas contas para pagar, como aluguel, e de ter medo de levar as crianas devido violncia. Um de seus argumentos que ela no quer que seus lhos quem trabalhando a vida inteira na roa. Conta que um de seus lhos j cou doente porque ela no tinha tempo de car com ele, pois tinha que ir trabalhar longe. Meri sonha com conquistas, quer oferecer uma vida melhor para seus lhos, no deseja que eles passem pelo que ela passou e diz que vai correr atrs para realizar esse sonho. Eu penso em ter pra mim, mas o que eu puder fazer pra deixar pra eles... eu devo para os meus lhos tudo o que meu pai queria fazer pra gente, mas no conseguiu. (...) devo muito ao meu pai (...) a pior coisa para uma me ver o lho sofrer. Uma relao ambgua se estabelece com a cidade. A projeo de uma vida melhor, da possibilidade de dar continuidade aos estudos encontra como espao ideal a cidade. Contudo, ela deixa de ser to atraente quando vista pela perspectiva do desemprego, da violncia, da falta de oportunidades, ainda mais quando envolve lhos. Mas essa percepo no exclusiva de Rosimeri, as apreenses e incertezas da vida urbana acompanham tambm os prprios moradores da cidade. Para Toninho Caneco, lder poltico da comunidade, ocorreu uma diminuio da expectativa dos jovens do quilombo em migrarem para a cidade, depois que alguns saram do quilombo e voltaram contando suas experincias de insucesso. Conta que quando os primeiros jovens da comunidade terminaram o 2 grau, houve uma fuga do quilombo, mas que agora isso no mais acontece. Ns tivemos uma fuga, rapaz, at grande quando nossos primeiros jovens terminaram o 2 grau. Mas hoje no, hoje eles esto a, o objetivo deles, igual t falando: pode at passar fome, mas vo passar dentro do quilombo, aguardando a oportunidade do ttulo da terra. Eles agora no tm mais aquela ambio de sair. Saram alguns jovens, as notcias que eles trouxeram no foram assim umas notcias muito agradveis,37Entre o quilombo e a cidade: trajetria de uma jovem quilombola

ento isso a serviu de base pros nossos jovens na comunidade. Hoje no, hoje eles to pronto pra luta mesmo, de permanecer no quilombo. O que eles passarem, o que for acontecer vai acontecer dentro do quilombo. Nossos jovens agora no to fugindo mais do quilombo So Jos da Serra no, eles to pronto pra luta, mas dentro do quilombo. Eles viram que a vida l fora muito difcil. Aquilo que a gente vive no quilombo So Jos da Serra com o mnimo de liberdade... ento pra eles que nunca viveram na cidade grande l fora se tornou muito pior ainda. Ento isso a, na volta deles, contaram isso na comunidade. Isso a serviu de resistncia pro nosso jovem e eles passaram a se empenhar muito mais na luta pro ttulo da terra pra que amanh essas nossas crianas tambm tir o sustento deles dentro do quilombo So Jos da Serra e no precise sair dali. (Depoimentos de Toninho Caneco). Meri faz outra leitura das histrias de insucesso dos jovens do quilombo. Em sua opinio, o jovem tem que saber ir para a cidade, sem iluses, deve ter na cabea que essa alternativa pode no dar certo. Arma que a experincia individual de cada um importante por isso no viu seu desejo de ir morar na cidade diminuir por conta das trajetrias difceis descritas pelos jovens que j foram para a cidade. Acho que todo mundo tem o sonho de, principalmente quem mora na roa, tem o sonho de viver numa cidade grande, mesmo que vai, e no deu certo, volta. Mas eu acho que um sonho pelas diculdades que todo mundo passa. A gente que jovem, a gente gosta disso, gosta daquilo... e l na roa... Mas eu acho assim, que a gente tem que experimentar um pouquinho do que viver l fora pra chegar: no, eu sei, aconteceu isso, eu tive experincia prpria. No o tio Toninho chegar e falar: nossa, na cidade grande difcil! No meu pai chegar e falar pra mim: nossa, na cidade grande difcil, vocs vo, vai sair, vai quebrar a cara! No! Eu acho que eles tm que incentivar: no, se voc quer isso, tente, se no der certo voc volta , a gente t aqui pra receber. A gente tem que saber sair tambm. Vai com dinheiro no bolso s da passagem, chega l, no d certo e a gente ca por l e no tem como voltar, eu acho que no. Pra sair tem que ter algum pra levar, e assim, com jeito de que se no der certo eu volto. Como destaca Reguillo (1998), o medo da cidade, construdo por diferentes discursos sociais tem regulado o modo dos indivduos nela viverem. Vista por alguns como locus da imoralidade, da degradao do indivduo e da excluso social, a cidade vem agregando temores provenientes da grande desigualdade produzida pelos mercados capitalistas. Com grande maestria a ideologia de mercado desloca o olhar do medo.

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As diversas expresses da violncia, a falta de empregos formais, a deteriorao ambiental so personicadas nas guras, por exemplo, do imigrante e do jovem pobre para desviar a ateno da populao dos conitos mais profundos da sociedade. Para a autora, o imigrante atualiza o medo do outro, do usurpador, do portador de outros valores; o jovem atualiza o medo do excesso, da desordem, da irrupo do popular nos espaos controlados e restritos da cidade.22 Nesse sentido, a construo social do medo na cidade serve a um sistema de relaes de dominao impulsionado pelo mercado e difundido pelas indstrias culturais. Nesse contexto conturbado, ainda h espaos para construo de alternativas negociadas por distintas signicaes sociais sobre a cidade e atravessadas por mltiplas interpretaes e justicaes dos medos. A superao do caos seja pelo controle, pelo equilbrio ou pela participao social, continua como uma meta a ser conquistada. O certo, pelo menos, que a sociedade ainda no est esgotada de sentidos.

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Rosemeri: jovem-quilombola-jongueira

Para Melucci (2004), falar de identidade seja de um grupo ou de um indivduo, referirse continuidade do sujeito, independente das variaes no tempo e das adaptaes ao ambiente, delimitao desse sujeito em relao aos outros e capacidade de reconhecerse e ser reconhecido. O autor italiano entende a identidade como um processo orientado por diferentes sistemas de relaes e representaes e utiliza a palavra identizao para expressar o carter processual e auto-reexivo da identicao de ns mesmos, um movimento de construo contnua num campo de possibilidades e limites. As diversas experincias vividas pelos indivduos permitem que suas identidades sejam a todo tempo reformuladas. Assim, podemos nos referir a diferentes identidades, como a pessoal, a familiar, a social etc., observando que o que muda so os sistemas de relaes aos quais nos referimos e diante dos quais ocorre nosso reconhecimento. Portanto, evidenciar o processo pelo qual o sujeito se torna sujeito oferece mais elementos para entendermos as diferentes identidades constitutivas do eu do que a simples enumerao delas. O caminho de Meri na construo de sua autonomia passa pelas relaes que estabelece dentro e fora do quilombo, pelas intermediaes entre a cultura que traz de herana e a da sua gerao, pelas escolhas que faz diante da vida, enm, pela sua forma de pensar, sentir, falar e agir no mundo.22 REGUILLO, Rossana. Imaginrios globais, medos locais: a construo social do medo na cidade. Lugar Comum estudos de mdia, cultura e democracia. N.7, pp129-155, set. 1998. p.149.

Entre o quilombo e a cidade: trajetria de

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No quilombo, convivem a tradio e o moderno naquilo que se refere tambm identidade. Aspectos de construo de identidade de uma sociedade tradicional (identidade como essncia) se relacionam com os processos atuais de constituio do sujeito que prev uma auto-reexo. A identidade herdada se mantm para assegurar ao grupo sua continuidade e preservao, ao mesmo tempo em que o prprio grupo e os indivduos entram na dinmica de constituio de identidades menos rgidas, mais exveis e plurais; demanda das sociedades complexas. As escolhas que se fazem ao longo da vida propiciam o desenvolvimento da autonomia individual. A presso dos processos de diferenciao, da variabilidade e do excesso de possibilidade, que caracterizam uma sociedade global, constitui o processo de identizao como algo cada vez mais dinmico denido por possibilidades e limites variveis. O eu mltiplo se dene nas negociaes entre as diversas partes desse eu, fazendo com que todas existam. Nada denitivo, pois so as escolhas pessoais que denem a identidade do sujeito. (MELUCCI, 2004) A multiplicidade de inseres sociais e a enorme quantidade de possibilidades e mensagens que Meri recebe do mundo complexo ampliam o campo de sua experincia. No quilombo, sempre cuidou das irms mais novas, no entanto, ser me jovem e de quatro lhos diferente para ela, so mais preocupaes, privaes e outros afetos. Enfrenta o desao de conciliar o ser me com o ser jovem. No comeo era chato n, porque via todo mundo saindo e eu no podia sair, mas agora j acostumei. Agora tambm j to grande, quando tenho que sair, saio. Um dos lhos de Meri tem bronquite e a diculdade de se chegar a algum hospital j a fez passar por muitos sustos. Quando o lho cou internado ela passou um ano sem estudar para car cuidando dele no hospital. dessa forma que Meri vai negociando com a vida; fazendo escolhas e traando projetos num campo de possibilidades e limites, vai traando caminhos de ampliao de sua autonomia que alargam tambm as fronteiras do territrio quilombola. Eu queria fazer medicina. Eu no gostava, mas de tanto car no hospital com meu lho... e sempre era dia de cirurgia, ento eu me apaixonei por cirurgia, o que eu queria fazer. Eu queria fazer cirurgia de card