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ANA PAULA PEREIRA MARQUES UNIÃO HOMOAFETIVA E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA: Um “novo” modelo de Família. BELÉM/ Pa. 2005

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ANA PAULA PEREIRA MARQUES

UNIÃO HOMOAFETIVA E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA: Um “novo” modelo de Família.

BELÉM/ Pa.

2005

UNIÃO HOMOAFETIVA E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA:: Um “novo” modelo de família.

Ana Paula Pereira Marques – DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

2ANA PAULA PEREIRA MARQUES

UNIÃO HOMOAFETIVA E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA: Um “novo” modelo de Família.

BELÉM / Pa. 2005

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade da Amazônia, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, com área de concentração em Direito do Estado e linha de pesquisa nos Direitos Humanos e no Direito Constitucional, orientada pela professora Dra. Pastora do Socorro Teixeira Leal.

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Ana Paula Pereira Marques – DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

3ANA PAULA PEREIRA MARQUES

UNIÃO HOMOAFETIVA E SUA PROTEÇÃO JURÍDICA: Um “novo” modelo de Família.

Banca Examinadora: _______________________________________ Profª. Drª. Pastora Leal (UNAMA – orientadora) ________________________________________ Prof. _________________________________________ Prof. Data: ____/____/________

BELÉM /Pa. 2005

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4 Dedico este trabalho: Aos meus pais Roberto e Dinair, exemplos de afeto na vida familiar, pelo amor, carinho e apoio que recebi, durante a trajetória acadêmica e, em todos os anos da minha vida. A minha irmã Tutuca (Ercília), pelo companheirismo e amizade. A minha sobrinha e afilhada Beatriz, pela felicidade proporcionada no sorriso de criança. A todos os homossexuais, assumidos ou não, que, diariamente, têm sua honra e dignidade espezinhadas.

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5 Agradeço pela realização deste trabalho: A minha orientadora, professora Pastora, pelo auxílio proporcionado. Ao meu namorado, Andrey, pela colaboração na concretização deste ideal.

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6 “Quanta espera por este momento especial Acontecer em nossas vidas. O destino sorriu para ambos os pombinhos Apaixonados. Quem diria eu e você nos entregando aos Encantos da paixão. Agora estamos juntos na mesma estrada, Pelo amor um mesmo objetivo: chegar à Felicidade plena. Quanto orgulho estou sentindo de você. Você que ousava desafiar o seu próprio coração, Que se fechava aos sentimentos nobres e sublimes, Como por exemplo, o carinho, o afeto, o amor... Você também fez-me próprio ter orgulho ao Desafiar as dificuldades que haviam em seus Caminhos para qual conquistar você. Mas agora O que pensamos, há algo em comum, nossos sorrisos Bonitos, como diz o verso de uma canção: Estamos Rindo a toa. Nossos passos têm sentidos, nossas palavras, não, São em vão, nossos olhares têm o horizonte, e em Nossas vidas, temos o amor”. (Momento Especial de Eduardo Santos). "Triste época: Mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito!”. (Albert Einstein). “A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos”. (Montesquieu).

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7RESUMO

A dissertação teve o escopo de analisar as uniões homoafetivas, no contexto do Direito de Família. Verificaram-se as conseqüências jurídicas atribuídas a esses vínculos, após sua dissolução. Para a pesquisa, utilizou-se o método descritivo-qualitativo, sendo os dados obtidos por meio de obras literárias, periódicos, artigos de Internet e decisões judiciais. Observou-se que a recusa em considerar as uniões homoafetivas, como família, é produto de uma cultura conservadora, e de concepções farisaicas acerca da homossexualidade. Analisou-se a necessidade de observância aos princípios constitucionais, para a concessão de efeitos jurídicos. Concluiu-se que a inércia do Estado, em regulamentar a matéria, viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, assim como também, impossibilita a concretização dos objetivos constitucionais. Inferiu-se que a discriminação por orientação sexual é grave violação aos Direitos Humanos. PALAVRAS-CHAVE: União Homoafetiva, Família, Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

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8ABSTRACT

This paper aims at analyzing the homoaffective unions, in the view of the Family Code. We discussed the legal effects of such liaisons after its dissolution. For the purposes of the research, we used the descriptive-qualitative method, and the data were obtained from literary pieces, newsletters, Internet writings, and legal verdicts. We could observe that the refusal to accept the homoaffective unions, as a family cell, is a consequence of a conservative culture and pharisaic concepts on homosexuality. We observed the need to follow the Constitutional Principles for the concession of legal effects. We concluded that the inefficacy of the Authority to pass a legal act violates the principle of human dignity and equality, as well as it hinders the accomplishment of constitutional aims. We could infer that discrimination due to sexual orientation is a major violation to Human Rights. KEY-WORDS: Homoaffective union, Family, Principle of Human Dignity.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................12 I – HISTÓRICO DA FAMÍLIA..................................................................................................15 1 – Gênese da Família: uma sucinta análise – dos povos selvagens ao início da civilização.......................................................................................................................................15 2 – O Contexto da Família sob o Enfoque Contemporâneo...........................................................29 3 – Acepções do Termo Família....................................................................................................38 3.1 – Casamento e União: algumas diferenças...............................................................................42 4 – Conceito de Família: nosso posicionamento............................................................................43 II - A UNIÃO HOMOAFETIVA NA ÓRBITA DOS DIREITOS HUMANOS E DO DIREITO CONSTITUCIONAL.........................................................................................................................45 1 – Direitos Humanos e Proteção à Orientação Sexual........................................................................46 2 – A União Homoafetiva sob a Égide do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana...........................................................................................................................................60 III – UNIÃO HOMOAFETIVA NO CONTEXTO DO DIREITO DE FAMÍLIA.................72 1- Formas de constituição da entidade familiar..............................................................................72 1.1 – União Homoafetiva e Casamento..........................................................................................74 1.2 – União Homoafetiva e União Estável.....................................................................................77 1.3 – União Homoafetiva e Família Monoparental........................................................................79 1.4 – União Homoafetiva: uma breve noção..................................................................................80 2 – Óbices ao Reconhecimento da União Homoafetiva.................................................................82 3 – Enquadramento Legal da União Homoafetiva: Direito Obrigacional ou Direito de Família?..........................................................................................................................................88 IV – UNIÃO HOMOAFETIVA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS.........................92 1 – Identidade Sexual e Nome Civil...............................................................................................92 2 – Efeitos Jurídicos no Âmbito do Direito de Família..................................................................95 2.1 – Competências das Varas de Família......................................................................................98 2.2 – Partilha de Bens...................................................................................................................100 2.2.1 – Regime da Comunhão Parcial..........................................................................................103 2.2.2 – Regime da Comunhão Universal......................................................................................105 2.2.3 – Regime de Participação Final nos Aqüestos.....................................................................105 2.2.4 – Regime de Separação de Bens..........................................................................................107 2.2.5 – Partilha de Bens na União Homoafetiva...........................................................................107 2.3 – Alimentos.............................................................................................................................110 2.3.1 – Alimentos na União Homoafetiva....................................................................................112 2.4– Bem de Família.....................................................................................................................115 2.4.1- Bem de Família Legal e Bem de Família Convencional: algumas diferenças......................................................................................................................................116 2.4.2 - Bem de Família na União Homoafetiva............................................................................118 2.5 – Adoção.................................................................................................................................119 2.5.1- A Polêmica da Adoção na União Homoafetiva.................................................................123 2.6 – Sucessão...............................................................................................................................126

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102.6.1 – Sucessão na União Homoafetiva......................................................................................129 3 – Direito Previdenciário.............................................................................................................131 4 - Direito Eleitoral.......................................................................................................................132 V - UNIÃO HOMOAFETIVA NO DIREITO ESTRANGEIRO...........................................137 1 – Países de Extrema Repressão.................................................................................................137 2 – Países Intermediários..............................................................................................................137 3 – Países Expandidos..................................................................................................................140 4- Comentários Gerais..................................................................................................................141 VI – CONTEXTUALIZAÇÃO LEGAL DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL.......................................................................................................................................145 1- Proposta de Emenda à Constituição nº 139, de 1995 (Reapresentação na PEC nº 67-A/, de 1999)............................................................................................................................................149 2 - Proposta de Emenda à Constituição nº 66, de 2003................................................................152 3 - Projeto de Lei 1.151 de 1995..................................................................................................153 3.1- Pontos Positivos....................................................................................................................153 3.2 - Pontos Negativos.................................................................................................................154 3.3 – Aspectos Gerais..................................................................................................................156 4- Substitutivo ao Projeto de Lei 1.151, de 1995.........................................................................158 5 - Projeto de Lei 5.252, de 2001.................................................................................................161 CONCLUSÃO.............................................................................................................................165 ANEXOS......................................................................................................................................169 I – LEGISLAÇÃO........................................................................................................................170 1 - Emenda Constitucional nº 20, de 17 de junho de 2003. (Constituição do Estado do Pará)..............................................................................................................................................170 2 - Proposta de Emenda à Constituição nº 67-A de 1999.............................................................171 3 - Proposta de Emenda à Constituição nº 66, de 2003................................................................174 4 - Projeto de Lei nº 1.151, de 1995.............................................................................................175 5 - Substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.151, de 1995....................................................................178 6 - Projeto de Lei nº 1.904, de 1999.............................................................................................179 7 - Projeto de Lei nº 2.367 de 2000..............................................................................................180 8 - Projeto de Lei nº 5.003, de 2001.............................................................................................181 9 - Projeto de Lei nº 5.252, de 2001.............................................................................................182 10 - Projeto de Lei nº 6.186, de 2002...........................................................................................184 11 - Projeto de Lei nº 5 de 2003...................................................................................................185 12 - Projeto de Lei nº 379, de 2003..............................................................................................186 13 - Projeto de Lei nº 2.177, de 2003...........................................................................................187 14 - Projeto de Lei nº 2.279, de 2003...........................................................................................189 15 - Projeto de Lei nº 2.383, de 2003...........................................................................................190 16 - Projeto de Lei nº 3.817, de 2004...........................................................................................191 17 - Projeto de Lei nº 4.243 de 2004............................................................................................192 18 - Instrução Normativa nº 25, de 7 de junho de 2000...............................................................192 II – JURISPRUDÊNCIA..............................................................................................................194 1 – Competência...........................................................................................................................194 2 - Partilha de Bens.......................................................................................................................198

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113 - Alimentos................................................................................................................................214 4 - Adoção....................................................................................................................................214 5 - Sucessão..................................................................................................................................216 BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................241

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12INTRODUÇÃO:

A união homoafetiva é uma realidade, como tal, não se pode negá-la. É crescente

o número de uniões homossexuais que se constituem com o escopo de formar a família. A nossa

pretensão é reconhecer esses relacionamentos, no campo do Direito de Família.

Os argumentos utilizados têm respaldo nos Direitos Humanos e no Direito

Constitucional. É inviável analisarmos a ciência jurídica sem esses dois pilares. Por essa razão, ambos,

possuem fundamental importância no Direito de Família, principalmente, em matéria de união

homoafetiva.

A união homossexual será denominada união homoafetiva, porque seu

enquadramento jurídico, far-se-á no Direito de Família, tal qual, o casamento e a união estável.

Antes de adentramos nas conseqüências jurídicas da união homoafetiva, far-se-á

uma breve análise acerca da família. Nesse ponto, apresentaremos a antiga e a moderna acepção de

entidade familiar. Além disso, apontar-se-ão os óbices existentes para o reconhecimento da união

homoafetiva.

Observar-se-á que o não reconhecimento de conseqüências jurídicas, aos casais

que vivem em união homoafetiva, representa tratamento discriminatório em razão da orientação sexual

das pessoas envolvidas nesta união. Não atribuir efeitos jurídicos é injusto. Ninguém opta ser

homossexual. A homossexualidade não é mera escolha / opção pessoal, mas, sim, é uma manifestação

da orientação sexual. Essa, é uma espécie do gênero sexualidade humana, como tal, pode se expressar

na homossexualidade, na heterossexualidade ou na bissexualidade.

A sexualidade humana é composta por: sexo biológico (características

anatômicas da genitália - masculina ou feminina); orientação sexual (indica a atração sexual e/ou

afetiva, por pessoa do mesmo sexo – homossexualidade, do sexo oposto - heterossexualidade, de ambos

os sexos - bissexualidade, ou por nenhum dos sexos -abstinência sexual); identidade de gênero (sentido

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13psicológico de se considerar macho ou fêmea – ocorrência nos transexuais); papel sexual-social (adesão

a normas culturais de comportamento masculino ou feminino).

Vários ramos das ciências tentam justificar a homossexualidade, todavia, até o

momento, não chegaram a uma conclusão. O assunto é bastante discutido na Medicina, na Genética, na

Psicologia e na Psicanálise. Apesar das divergências, quanto à matéria, todos reconhecem que a

homossexualidade não é uma doença. Na verdade, a homossexualidade ainda é um enigma para a

ciência.

A união homoafetiva refere-se às relações entre pessoas do mesmo sexo, onde se

verifica o propósito familiar. Destarte, aplica-se aos homossexuais. O homossexual não se confunde com

o transexual, com o travesti, nem com o hermafrodita.

O homossexual, apesar de ser uma pessoa satisfeita com seu sexo biológico,

manifesta libido por alguém do mesmo sexo. Esse indivíduo não sofre um distúrbio psicológico, tal qual,

se verifica com o transexual. Nesse, observa-se uma necessidade de adaptação do sexo biológico ao

sexo psicológico. O transexual, para sentir-se realizado enquanto pessoa, precisa realizar a cirurgia de

ablação. Isso não ocorre na homossexualidade.

O fato de a pessoa ser homossexual, não representa a utilização de indumentárias

do sexo oposto. A necessidade de trajar-se com roupas e acessórios comuns ao outro sexo, verifica-se no

travesti. Essa, simples conduta, o satisfaz. Diferente do transexual, ele não manifesta vontade, em mudar

o sexo biológico. O travestismo pode se verificar tanto entre os homossexuais, quanto entre os

heterossexuais.

O homossexual não apresenta um distúrbio biológico, com a conseqüente má-

formação dos órgãos genitais. Esse fenômeno observa-se no hermafrodita (intersexual). Aí, ocorre uma

incerteza quanto à sexualidade biológica (macho, ou, fêmea).

A homossexualidade não é um fenômeno recente, ao contrário, sua ocorrência é

bastante antiga. Na sociedade grega, era uma prática comum. Acreditava-se então, que a relação

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14homossexual entre um adolescente (efebo) e um homem mais velho (erastes), fazia-se imprescindível

para o início à vida sexual do primeiro.

A homossexualidade se manifestou em Roma, da mesma forma que na Grécia

antiga. A diferença encontrava-se, apenas, com relação aos partícipes do ato sexual. Em Roma, no lugar

do efebo (adolescente), encontrava-se o mancebo (escravo)

A pessoa não escolhe ser homossexual, mas, sim, descobre-se homossexual. Em

razão disso, devemos respeitá-la, como tal, reconhecendo-lhe direitos. Ao longo da dissertação, far-se-á

referência à dignidade da pessoa humana. O reconhecimento da união homoafetiva, no âmbito do

Direito de Família, requer a aplicação de princípios constitucionais, entre esses, o principal, é a

dignidade humana.

Apesar das mudanças na concepção de família, é comum a não-admissibilidade

da união homoafetiva nesse quadro. A justificativa apresentada, geralmente, refere-se à inexistência de

norma sobre a matéria. Daí porque, é fundamental a utilização do princípio da dignidade da pessoa

humana, para analisarmos o assunto.

Considerar a união homoafetiva no contexto do Direito de Família, requer que se

estabeleça uma distinção entre família de fato (uniões livres – hetero ou homossexual) e família de

direito (matrimônio).

Constantemente, estabelecer-se-á um paralelo entre a união homoafetiva, o

casamento e a união estável, para que assim, possamos atribuir, àquela, todas as conseqüências jurídicas

desses modelos.

Para melhor compreendermos o assunto, estabelecer-se-á um breve panorama,

acerca do reconhecimento jurídico das uniões homossexuais, no Direito Estrangeiro. Aí, o Brasil

encontra-se no grupo dos intermediários. Nesses países, ao mesmo tempo em que não se incrimina a

prática da homossexualidade, também, não se adotam medidas para sua efetiva aceitação.

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15O enquadramento da união homoafetiva no Direito de Família, requer uma

análise minuciosa, acerca dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade,

assim como também, faz-se mister observarmos o que preceituam os objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do

bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação.

A resistência ao reconhecimento da união homoafetiva, como família, foi a razão

para concretizarmos o presente trabalho. Verificou-se a necessidade que os homossexuais têm de serem

observados, enquanto pessoa. Isso merece maior diligência, quando se discute a atribuição de efeitos

jurídicos decorrentes da entidade familiar.

Estabelecer-se-á a contextualização legal da homossexualidade, no Brasil. Nesse

tópico, faremos breves comentários acerca das propostas de emenda à Constituição, e dos Projetos de

Lei, ambos, com referência à matéria de orientação sexual.

A complementação do trabalho poderá ser realizada com a leitura dos anexos.

Aí, são apresentadas algumas decisões judiciais, e projetos de lei sobre o assunto.

Ressalte-se, que para reconhecermos a união homoafetiva, como família, é

necessário despirmo-nos de concepções farisaicas acerca da homossexualidade. Destarte, convidamos o

leitor a iniciar o estudo.

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16I – HISTÓRICO DA FAMÍLIA:

O presente capítulo estabelecerá uma breve análise acerca do histórico da

instituição social família. Dessa forma, apresentaremos-na desde sua remota origem às modernas

concepções. Observar-se-á que a família sofrerá grandes transformações ao longo do desenvolvimento

da civilização.

1 – Gênese da Família: uma sucinta análise - dos povos selvagens ao início da civilização. 1

A presente análise estabelece um paralelo entre o desenvolvimento da família e o

progresso da cultura humana. Até 1860, admitia-se somente o modelo patriarcal, esse, apresentava

bastante traços semelhantes à família burguesa. A partir de 1861, inaugura-se a história da família, a

qual, é explanada na obra Direito Materno de Bachofen.

Entre os povos primitivos, a instituição social da família era desconhecida. Antes

de sua ocorrência, viveu-se num estágio bastante rudimentar, onde homens e mulheres pertenciam-se

mutuamente, e praticavam relações sexuais entre si. Nessa época, o ciúme era um sentimento

desconhecido.

Nos estudos sobre o desenvolvimento da família, geralmente, ignora-se a

ocorrência da promiscuidade sexual (heterismo - vocábulo atribuído por Bachofen) e do direito materno.

A analise centraliza-se, apenas, na família patriarcal, desconsiderando as instituições anteriores,

tratando-as como se nunca tivessem existido. É inegável porém a precedência da promiscuidade sexual,

à instituição da família.2

Paralelamente à monogamia, ocorreram a poligamia (Oriente) e a poliandria

(Tibete e Índia). As duas últimas não eram reconhecidas. 3 Por razões morais, tolera-se, tão-somente, a

família patriarcal (monogamia).

1 A análise histórica da família, desde os tempos primitivos, até a civilização, far-se-á com base na obra: ENGELS, Friedrich. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. – 14 ed.- Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2 Considerações de Friedrich Engels, acerca do estudo de Bachofen sobre a Origem da Família. In: ENGELS, op. cit. 3 ENGELS, op. cit. p. 6.

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17Os estágios pré-históricos de cultura se desenvolveram em três fases: estado

selvagem, barbárie e civilização. Os dois primeiros subdividiam-se em: fase inferior, média e superior.

A ocorrência de cada etapa é analisada, conforme o grau de progresso nos meios de produção. A família

se manifesta, paralelamente, a essas mudanças. 4

No estado selvagem, não havia a ocorrência da instituição família. Nessa época,

verificava-se a promiscuidade sexual. Na fase inferior, os homens eram bastante rudimentares, vivendo

em árvores e se alimentando de raízes. O principal progresso foi o surgimento da linguagem articulada.

No período médio, os animais aquáticos são descobertos como nova fonte de alimentação. Aí,

simultaneamente, surge o fogo. Mais tarde, descobre-se a antropofagia. No estágio superior criam-se o

arco e a flecha, e são estabelecidas residências fixas em aldeias.

Na fase inferior da barbárie, surge a cerâmica, a domesticação de animais e o

cultivo de plantas. Nessa época, nascem as diferenças entre o Ocidente e o Oriente. No período médio, a

antropofagia é eliminada paulatinamente. Na etapa superior, realiza-se a fundição do ferro, a qual,

desenvolveu-se até a civilização. A partir daí, nasce a escrita alfabética. Além disso, observa-se a

expansão da agricultura.

Os estágios pré-históricos de cultura podem ser sintetizados no seguinte: estado

selvagem (homem apropria-se de bens da natureza), barbárie (criação de gado e agricultura, onde o

trabalho humano incrementa a produção da natureza) e civilização (indústria e arte). A partir desse

quadro sinótico, verificar-se-á que os primeiros indícios de família ocorrem na barbárie.

Nesse período, entre os iroqueses (índios norte-americanos), os vínculos

familiares não correspondiam, exatamente, ao sistema de consangüinidade. Em relação à figura

masculina, assumia-se a qualidade de pai, quanto a sua prole, e também, quanto à descendência dos

irmãos, entretanto, os filhos da irmã eram considerados sobrinhos. No que se refere à mulher, ela é mãe

4 ENGELS, op. cit.

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18de seus descendentes e da prole de suas irmãs, todavia, quanto aos filhos de seus irmãos, são eles

considerados sobrinhos.

As denominações de pai, mãe e filhos expressavam verdadeiras relações de

parentesco e, como tal, implicavam deveres recíprocos.5 Observando o sistema de parentesco dos

iroqueses, percebemos que há uma considerável diferença, em relação ao modelo atual. Aí, as figuras de

pai (mãe) / tio (a), filhos e sobrinhos, não correspondem à acepção moderna dos termos. Hodiernamente,

filho é a própria descendência, assim como também, aquele proveniente do vínculo de adoção. Os

sobrinhos correspondem à prole dos irmãos e das irmãs.

Ao analisarmos a família sob este prisma, faz-se mister ressaltarmos, desde já,

sua diferença em relação ao parentesco. A família é dinâmica, ativa e acompanha o desenvolvimento da

sociedade, ao passo que, o parentesco é estático, por isso, caminha em sentido contrário às mudanças

sociais. Na primeira, o progresso se verifica de forma mais célere. No segundo, sua ocorrência é bastante

gradual.

Para os povos selvagens, onde o instituto da família ainda não se verificava,

todavia, a promiscuidade sexual (heterismo) se encontrava vigente, as relações sexuais entre pais e filhos

eram vistas com naturalidade, não representando qualquer afronta à moral. A figura do incesto, como

conduta abjeta, é produto da evolução da família. Esse fenômeno, paulatinamente, iniciou um processo

de “seleção natural”.

O primeiro modelo de família é o matrimônio por grupos. Aí, grupos inteiros de

homens e mulheres pertenciam-se mutuamente. Nessa época, o ciúme era uma figura desconhecida. A

ocorrência dessa família verificou-se em tempos bastante remotos. Sua manifestação apresenta grandes

semelhanças ao heterismo. A partir do estágio primitivo de promiscuidade, são estabelecidas algumas

formas de família, as quais, vão evoluindo, gradativamente, até assumirem nova feição.6

5 Análise de Morgan citada in: ENGELS, op.cit. 6 Ibidem.

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19A família consangüínea representa a primeira etapa de desenvolvimento da

comunidade familiar. Nesse modelo, os grupos conjugais são estabelecidos por gerações, de modo que:

todos os avôs e avós, nos limites da família, são marido e mulher entre si. O mesmo se verifica para seus

filhos (pais e mães), e também para os netos e bisnetos. Os dois últimos correspondem, respectivamente,

ao terceiro e quarto ciclo de cônjuges comuns.

Na família consangüínea, apesar de vedado o casamento entre ascendentes e

descendentes (pais e filhos), admite-se o matrimônio entre irmãos e irmãs, primos e primas. Esses

últimos eram considerados irmãos. Aqui, verifica-se um certo grau de evolução, visto que, pela primeira

vez, é reprovado o vínculo conjugal entre pais e filhos, entretanto, ainda são admitidas as uniões

fraternas. Nesse modelo, a relação sexual entre germanos é considerada normal.

A família punaluana representa a segunda fase de progresso do grupo familiar.

A partir daí, extingue-se o matrimônio entre irmãos. Primeiramente, exclui-se o casamento entre irmãos

uterinos, depois, paulatinamente, extingue-se o vínculo conjugal entre os irmãos colaterais (primos).

O fim do matrimônio entre irmãos (uterinos e colaterais) representa o processo

de seleção natural verificado na família. Isso pode ser observado na diferença, quanto ao grau de

desenvolvimento entre as tribos. Naquelas onde o casamento consangüíneo fora abolido, com maior

brevidade, ocorreu um progresso mais célere e completo, contrariamente sucedeu, em relação às tribos

que continuavam praticando-o.

Face à necessidade se atenderem às perspectivas de desenvolvimento, fez-se

mister uma cisão entre as tribos primitivas. A família punaluana origina-se da família consangüínea, por

conseguinte, representa o grau mais elevado dessa.

A família adaptou-se à evolução humana, conseqüência do progresso nos meios

de produção. A melhor representatividade desse fenômeno foi a extinção do casamento consangüíneo, o

que significa o processo de seleção natural, experimentado na família.

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20Na família punaluana, houve a seguinte organização: as irmãs (consangüíneas,

ou colaterais) eram mulheres comuns de seus maridos comuns, exceto seus próprios irmãos. Os

“maridos comuns”, reciprocamente, denominavam-se punalua, o que significa: “companheiro íntimo” /

“associado” (dividem a mesma mulher); de igual modo, ocorreu com os irmãos (uterinos, ou colaterais),

maridos comuns de mulheres comuns, salvo, as irmãs. As mulheres comuns chamavam, entre si,

punalua.7

A denominação punaluana significa “comunidade recíproca de maridos e

mulheres”. Assim, família punaluana é aquela, onde vários homens e várias mulheres são cônjuges entre

si, excluindo-se do vínculo matrimonial, apenas, os irmãos.

Comentou-se alhures, a configuração do sistema americano de parentesco

(iroqueses). Nesse grupo, surge, pela primeira vez, a figura dos “primos”. O quadro era o seguinte:

alguns continuavam sendo irmãos (os filhos da irmã da mãe e os filhos do irmão do pai – “irmãos

colaterais”), enquanto outros, se tornaram primos (os filhos da irmã do pai, e os filhos do irmão da mãe).

Esse processo deu origem a duas novas categorias: a dos sobrinhos (as) e, a dos primos (as). Isso não se

verificava na família consangüínea, haja vista que todos eram considerados irmãos.

A gens, o grupo fechado de parentes consangüíneos por linha materna que não

podem casar entre si, surge com a família punaluana. Esse modelo representa um grau superior do

matrimônio por grupos. Nas gens fazia-se impossível estabelecer a linhagem paterna, por isso, a filiação

materna era singular.

No estado selvagem e na fase inferior da barbárie, épocas em que ocorreu o

matrimônio por grupos, a única certeza era quanto à maternidade. A paternidade era, absolutamente,

cepticista. Por essa razão, a mulher assume relevante apreço na comunidade familiar. Isso produziu a

instauração do direito materno.

7 ENGELS, op.cit.

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21Haja vista a unicidade da filiação materna, somente era admissível a

transferência hereditária de bens, segundo as normas do direito materno. Desse modo, apenas os

descendentes da genitora herdavam. Desconhecia-se o direito sucessório entre pai e filho. Isso mostra

que antes do direito patriarcal, desenvolveu-se o matriarcado.

A gens apresentava como “tronco comum” a mãe. Os descendentes dessa,

encontravam-se ligados entre si, e pertenciam a uma mesma comunidade. Aí, é vedado o matrimônio

entre irmãos maternos. A prole das filhas pertence a gens, todavia, contrariamente ocorre com a

descendência dos filhos (singularidade da filiação materna). Uma vez que a tendência era abolir o

matrimônio consangüíneo, as gens, apesar de se reunirem em uma só tribo, se diferenciavam.

Paulatinamente, o matrimônio por grupos assumia nova feição. Surge, assim, o

“rapto de mulheres”, que consistia na retirada da noiva de sua tribo de origem. Essa conduta podia se

praticar de duas maneiras: a moça era arrancada à força, ou, por sedução. O “roubo” da mulher tinha a

ajuda dos amigos do noivo, por isso, todos tinham direito de copular com a vítima, desde que o fizesse

antes do futuro marido. A ocorrência do casamento por rapto, talvez possa ser explicada por duas

razões: primeiro, poder-se-ia falar no costume, entre os povos selvagens, de matar recém-nascido do

sexo feminino; em segundo, é possível que o surgimento do “novo matrimônio” estivesse relacionado à

proibição do casamento entre irmãos. Diante disso, fazia-se mister a busca de mulheres em outras tribos.

A retirada da mulher da tribo de origem, sempre ocorria de forma violenta, pois era comum, no estado

selvagem, o clima de guerra entre as tribos.

A partir do rapto de mulheres, é possível encontrarem-se alguns vestígios de

monogamia. Isso verificou-se com a ocorrência de relações exclusivistas, num período mais ou menos

duradouro, entre um homem e uma mulher (preliminares da família sindiásmica). Destarte, observa-se a

convivência paralela entre o matrimônio por grupos, as “relações exclusivistas” e a poligamia. Surge,

assim, uma fase parcialmente evoluída na família.

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22A família sindiásmica surge num grau mais avançado de desenvolvimento.

Nesse modelo, os “vínculos conjugais” apresentam certa durabilidade, surgindo a figura do marido, e da

mulher “principal”. A qualidade de “esposa primeira” não significava que fosse a favorita entre as várias

mulheres que o homem possuía, mas, sim, representava aquela que se destacava no círculo.

A família sindiásmica é uma conseqüência da proibição do casamento entre

consangüíneos, o que levou à inviabilidade do matrimônio por grupos. Esse, fora substituído por aquela.

Pode-se verificar que, gradativamente, a família adquiria novos caracteres. Primeiro, extingue-se as

uniões conjugais entre parentes; em seguida, buscam-se noivas em outras tribos; depois, são

estabelecidos vínculos matrimoniais exclusivos, mais ou menos, prolongados. O contexto de então,

distingue-se, consideravelmente, do cenário existente no estado selvagem (promiscuidade sexual).

Na família sindiásmica, a união entre um homem e uma mulher de forma

“exclusivista” e duradoura, permitia ao marido a prática da poligamia; à mulher, exigia-se fidelidade. A

exclusividade da relação não se aplicava ao casal, mas, sim, à figura feminina, que devia obediência ao

seu cônjuge.

O vínculo conjugal sindiásmico poder-se-ia dissolver sem maiores empecilhos,

sendo do homem, ou da mulher, o direito de fazê-lo. Com o fim do matrimônio, os filhos pertenciam,

exclusivamente, à mãe.

A família sindiásmica consistiu no matrimônio entre membros de gens não-

consangüíneas. Essa união permitiu uma evolução na espécie humana – “seleção natural” - tanto nos

caracteres físicos, quanto nos traços mentais.

Na família sindiásmica, o matrimônio ocorria de duas maneiras: por meio do

rapto, ou da compra de mulheres. Isso era uma conseqüência da escassez de membros do sexo feminino.

O modelo sindiásmico trouxe alguns vestígios da família monogâmica. A origem da monogamia não

está relacionada ao “amor sexual individual”, acepção moderna do vocábulo, mas sim, é

preliminarmente, produto da vedação do matrimônio por grupos.

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23No casamento por compra a sua decisão não cabia à noiva, era a mãe, quem o

fazia. Nesse matrimônio o noivo deveria “pagar um preço” para a aquisição da futura esposa. Isso

verificava-se com a entrega de presentes aos parentes gentílicos (maternos) da mulher. O fim da união

conjugal poderia ser requerido por qualquer um dos consortes.

A passagem da promiscuidade sexual, à monogamia, foi produto dos anseios

femininos (eliminar a obrigatoriedade da pertença simultânea a vários homens). Não obstante a “vitória”

das mulheres, a monogamia colocou-as numa posição bastante inferiorizada.

A família sindiásmica representou o limite entre o estado selvagem e a barbárie.

Nos povos selvagens, assim como também, na barbárie, em suas fases inferior,

média e, algumas vezes, superior, a mulher assumiu importante posição. Ela gozava de grande apreço

dentro e fora da família. Era a mulher quem mandava no lar, aos filhos e ao marido, cabia o dever de

obediência. Mesmo com o sustento do grupo pelo homem, esse, poderia a qualquer momento ser

expulso de casa e reduzido à condição de simples guerreiro, caso contrariasse as decisões femininas.

A divisão sexual do trabalho, no estado selvagem e, nas fases inferior e média da

barbárie, não tinham qualquer relação com a posição social da mulher. Face ao elevado apreço que a

mulher possuía, o direito materno vigeu durante longos períodos, sendo anterior à família patriarcal.

O desenvolvimento nos meios de produção foi um golpe ao direito matriarcal.

Com o aumento no rebanho de gados e a expansão da agricultura, a produção progredia mais

rapidamente do que a família. O homem, responsável por esse crescimento, paulatinamente, vai

ganhando poder social e, em conseqüência, retirando o prestígio da mulher. Esse contexto eliminou as

gens fundadas no matriarcado, e a família sindiásmica.

A nova fase, representada pelo poder masculino, onde o homem é o único

responsável pelo sustento familiar, tendo a propriedade sobre todos os instrumentos de trabalho,

inclusive sobre os escravos, o torna súpero no lar conjugal. A mulher transforma-se em “serva” do

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24marido, devendo-lhe obediência e fidelidade. Esse quadro mostra um novo modelo de família que viria

se instaurar, era a monogamia, produto de interesses, tão-só, econômicos.

Apesar do novo contexto, no desenvolvimento da produção e no progresso da

família, fazia-se mister mudar algo de fundamental importância: o direito hereditário, que não era

concedido à descendência paterna. A alteração das regras fazia-se necessária, para permitir à linhagem

masculina a sucessão. O escopo, nesse caso, era preservar a riqueza no grupo familiar.

A adoção do direito de herança paterno extingue, definitivamente, o direito

materno. Esse quadro origina a família patriarcal. Agora, todos os indivíduos, livres ou não, submetem-

se ao poder do “chefe” (homem).

As características principais da família patriarcal são: a incorporação dos

escravos, e o domínio paterno. O melhor exemplo verificou-se entre os romanos.

Na família patriarcal, o vocábulo originário de “família” não relacionava-se às

manifestações sentimentais entre indivíduos. Tampouco, referia-se aos cônjuges e à prole. Nessa época,

família significava o conjunto de escravos domésticos (famulus).8

Na família patriarcal romana, o “chefe” tinha poder de vida e morte sobre seus

membros (mulher, filhos e escravos). Nesse contexto, a “instituição social” da família reduziu-se ao

poder de mando sobre o grupo.

Como estágio mais elevado de desenvolvimento da família, destaca-se a família

monogâmica. Essa, apresenta as seguintes características: a) a chefia da “sociedade conjugal” pertence

ao marido; b) o objetivo do casal é a constituição da prole. Diferentemente do estado selvagem e da

barbárie, a paternidade é indiscutível, os filhos são herdeiros. Aí, o homem tem a intenção de preservar a

riqueza na própria família; c) solidez do laço conjugal. A ruptura do matrimônio tornou-se bastante

difícil, sendo direito, apenas, do marido fazê-lo; d) é permitido ao homem manter relacionamentos

extraconjugais; à mulher cabe o dever de fidelidade.

8 Conceituação romana trazida na obra: ENGELS, op. cit.

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25A monogamia traz consigo duas contradições: primeiro, tem-se a promiscuidade

sexual, permitida aos homens; segundo, verifica-se o adultério entre as mulheres, uma inevitabilidade

que se manifesta em decorrência da posição e do tratamento assumido pela figura feminina no lar

conjugal (inferior ao marido).

Na Grécia, a monogamia foi bastante severa com as mulheres, que reduziram-se

à condição de “serva” (“governanta do lar”). Apesar do menosprezo às gregas, é possível verificarmos

uma diferença de tratamento em Esparta e Atenas. Naquela, a mulher tinha um pouco mais de liberdade,

gozando de maior respeito para com seu marido. Nessa, a esposa era extremamente vigiada, fazendo-se

acompanhar, sempre, de outras mulheres (escravas – espiãs). Aí, ela estava excluída de qualquer

decisão, diferentemente ocorria em Esparta.

A monogamia instaurou o primeiro “antagonismo de classes”: homem x mulher,

da mesma forma, instituiu a primeira “opressão de classes”: a opressão do sexo feminino pelo

masculino. A família monogâmica, ao mesmo tempo em que representou um progresso histórico

(civilização), trouxe um retrocesso, verificado na exploração de uns (escravos e mulheres) pelos outros

(homens). A família monógama é considerada a “forma celular de sociedade civilizada”.9

Conforme falamos alhures, não foram interesses sentimentais e afetivos que

ocasionaram o surgimento da monogamia, mas, sim, pretensões econômicas. Essas, manifestaram-se na

intenção que o homem tinha de preservar a riqueza no próprio grupo familiar, o que seria inviável no

direito materno (herdava somente a descendência da mãe).

A vil posição atribuída à mulher tornou inevitável o adultério. Em razão disso, a

“certeza” quanto à paternidade precisou basear-se em convenções morais, pois seria impossível

determinar sua veracidade in absoluto. Os preceitos morais albergaram-se no Código de Napoleão, que

prescrevia o seguinte: “filho concebido no matrimônio, tem por pai o marido”.

9 Análise de Marx e Engels, explanada in: ENGELS, op. cit.

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26Entre os germanos, verificou-se um modelo mais evoluído de monogamia. Para

esse povo, o matrimônio era um “ato santificado”, i.e., os maridos contentavam-se com suas esposas. As

mulheres participavam dos assuntos públicos. Tal contexto era totalmente diferente do que ocorria entre

os gregos, principalmente, em Atenas.

O amor sexual individual, como fundamento da monogamia, surge com os

germanos. Apesar do amor entre os cônjuges, o casamento não se funda, apenas, nesse interesse. Por

isso, ainda na monogamia moderna, encontra-se o adultério, todavia, em um número menor.

O casamento burguês era o modelo de família monogâmica. Tanto nos países

católicos, quanto nos países protestantes, o matrimônio se constituía por razões sociais, ou seja, os

noivos deviam pertencer a uma mesma classe, e o vínculo conjugal seria uma forma de se aumentarem

as posses das famílias. Na verdade, eram estabelecidos “casamentos de conveniência”, onde a decisão

quanto à pessoas do (a) noivo (a) cabia aos pais.

No matrimônio burguês, a mulher submete-se a mais abjeta das prostituições,

que se verificará durante toda a sua vida: a submissão, de corpo e alma, a um homem desconhecido, tão-

somente, pelos interesses políticos e econômicos de seus genitores.

Entre os países católicos e protestantes, há uma pequena diferença na figura do

casamento burguês. Nos primeiros, os noivos não têm qualquer poder de decisão sobre o futuro cônjuge,

por isso, o vínculo matrimonial é considerado extremamente patrimonialista. O casal não apresenta

qualquer relação de afeto. Desse modo, a prostituição (buscada pelos homens) e o adultério (praticado

pelas mulheres), fazem-se inevitáveis.

Nos países protestantes, os noivos têm maior liberdade para contrair o

matrimônio, desde que, o façam com alguém de sua classe. Aí, é possível verificar, mesmo

milimetricamente, a presença de afeto entre o casal. Em razão do grau de liberdade atribuído aos noivos,

a prostituição e o adultério se manifestaram de modo mais controlado.

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27O casamento burguês se diferencia bastante do matrimônio proletário. Naquele,

a união se dava por mera conveniência e pelo interesse em aumentar as riquezas da família. Isso fez

ausente o afeto conjugal. O casamento da classe proletária assume um outro contexto. Aqui, o enlace

não se funda em pretensões materialistas, mas sim, afetivas. Os cônjuges partilham uma vida em

comum, onde ambos assumem importante papel. Nesse modelo, a mulher não estava reduzida à

condição de “serva” do marido, ao contrário, tem igual importância que ele, pois da mesma forma que o

companheiro, ela participa da indústria social. Qualquer um dos cônjuges podia pedir a dissolução do

casamento, bastando que entre eles não existisse mais o interesse em permanecerem juntos.

No matrimônio proletário, como se valoriza a figura do afeto, a ocorrência da

prostituição e do adultério se verifica de forma bastante reduzida, se compararmos ao modelo burguês.

O casamento proletário é monogâmico no sentido etimológico da palavra, e, não, em sua acepção

histórica.10

Se fizermos uma análise entre o matrimônio proletário e o matrimônio burguês,

poder-se-á observar que o primeiro se identifica mais à concepção hodierna de família. Os cônjuges têm

maior liberdade, assumem obrigações recíprocas, o vínculo não é eterno, podendo ser dissolvido por

qualquer um deles, inclusive, a perda do interesse pela vida comum pode ser razão para o término do

casamento. Os interesses que unem os casais não se restringem ao campo patrimonial, ganhando

considerável apreço a questão sentimental.

No modelo monogâmico, onde vigora o matrimônio burguês, somente será

possível à mulher alcançar a “liberdade”, no momento em que ingressasse na indústria social,

participando da produção, tal qual, o homem. Isso produziria, por conseguinte, a supressão da família

individual, enquanto “unidade econômica da sociedade”. Somente, desse modo, poder-se-ia falar em

igualdade efetiva entre os cônjuges. Isso já se verificava entre a classe proletária.

10 ENGELS, op.cit.

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28O desenvolvimento da família fenômeno associado à evolução humana, com a

extinção do matrimônio por grupos, representou, para a mulher, a perda de sua liberdade sexual. Aos

homens, continuava assegurado o relacionamento grupal.

As bases econômicas que justificaram o surgimento da monogamia, instauraram

um modelo de família alicerçado, tão-só, em interesses patrimonialistas. Aí, a mulher não tinha qualquer

valor para o marido. Com o desaparecimento das razões econômicas que deram origem à monogamia,

essa tornou-se uma realidade também para os homens. Assim, ambos os consortes assumiam posição de

igualdade.

Observou-se que no matrimônio proletário, ao contrário do casamento burguês,

a união estava alicerçada no amor sexual individual. Naquele, o amor era a base da união, ao passo que

nesse, era apenas complemento.

A presença do afeto, como sustentáculo do vínculo conjugal, manifesta-se no

matrimônio proletário. No amor sexual individual há reciprocidade de carinho e companheirismo entre

o casal. O casamento não é mais um laço de conveniência.

O matrimônio burguês era considerado um contrato, ou seja, um negócio

jurídico, uma questão de Direito. Se compararmos esse modelo, ao atual, verificaremos que ambos

apresentam semelhanças e diferenças quanto ao modo de sua realização. Tanto no casamento burguês,

quanto na moderna união matrimonial, faz-se necessário, para sua concretização, que os nubentes

pronunciem o “sim” perante a autoridade que preside o ato. Nesse ponto, devemos destacar o seguinte:

antigamente não se exigia que a “manifestação de vontade” dos nubentes fosse livre, até mesmo porque,

não o era, pois cabia aos pais a escolha do futuro (a) noivo (a) da (o) filha (o). Hoje, o “sim” deve ser

declarado em voz alta, cabendo às partes fazê-lo livremente, sem vícios de vontade.

O casamento burguês era o mais importante entre todos negócios jurídicos,

porque dispunha, eternamente, do corpo e da alma de dois seres humanos, os quais, muitas vezes, nem

se conheciam.

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292 – O Contexto da Família sob o enfoque contemporâneo:

A manifestação da família, na Idade Contemporânea, sofreu grande influência do

Código Civil Francês de 1804. Esse foi considerado o “paradigma” do Direito de Família, na maioria

dos países ocidentais, onde vigora o sistema da civil law.11

A introdução do divórcio, com a Emenda Constitucional nº 9, de 28/6/77,

regulamentado na Lei nº 6.515 de 26 de dezembro 1977, provocou um novo contexto no Direito de

Família. A partir daí, extingue-se a indissolubilidade do matrimônio.

A constitucionalização da família verificou-se com a Carta Magna de 1988. Esse

documento reconheceu, expressamente, o casamento, a união estável e a família monoparental. Desse

modo, a acepção de “entidade familiar” tornou-se mais flexível.

Apesar da evolução normativa, no Direito de Família, faz-se mister o

reconhecimento de outras entidades que, apesar de existirem, ainda não são regulamentadas. Aqui,

encontram-se as famílias sociológicas. Entre essas, podemos destacar a união homoafetiva. A omissão

legal é conseqüência de um modelo patriarcal, concebido no Código Civil de 1916, influenciado pelo

Código Civil Francês de 1804.

O Código Civil de 2002, ao reconhecer a união estável como entidade familiar,

exteriorizou um importante “processo de evolução”. Não obstante o avanço, devemos ressaltar que o

instituto ficou numa posição de inferioridade, em relação ao casamento, pois, alguns direitos sucessórios

são concedidos apenas ao cônjuge. Esse, tornou-se herdeiro necessário, ao passo que o companheiro,

além de ser herdeiro facultativo, somente terá direito de “herança” sobre os bens adquiridos,

onerosamente, na constância da união estável.

É indubitável que a nova disposição do Código Civil (2002), em matéria

sucessória, retirou dos companheiros direitos que lhes foram concedidos por meio da Lei 8.971/94.

11 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito de família brasileiro: Introdução – abordagem sob a perspectiva civil-constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001. p. 4.

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30Nessa, os parceiros ocupavam uma posição similar a do cônjuge, ficando no terceiro lugar da ordem de

vocação hereditária. Assim, na falta de descendentes e ascendentes, herdava-se a totalidade da herança,

excluindo-se os parentes colaterais.

Com a redação do Código Civil de 2002, o companheiro é preterido pelos

parentes colaterais (até o quatro grau). Assim, a “totalidade” da herança ser-lhe-á de direito, apenas, na

ausência desses. De modo, totalmente diferente, ocorre com o cônjuge, o qual, é considerado herdeiro

necessário, deixando os colaterais, à margem da sucessão. A circunstância é ainda mais grave para os

companheiros, uma vez que, o direito sucessório incidirá, tão-só, quanto aos bens adquiridos

onerosamente, na vigência da união estável. Ora, é impossível não asseverarmos que o legislador

cometeu um erro crasso, pois confundiu meação, ou seja, partilha de bens entre cônjuges /

companheiros, com sucessão, i.e., aquisição patrimonial, decorrente do falecimento de um dos parceiros.

Ambos os institutos são, completamente, distintos.

A Constituição da República, de 1988, em seu Título VIII, Capítulo VII, art.

226, parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º, prescreveu os modelos de família reconhecidos pelo Estado. Desde então,

extingue-se a singularidade do matrimônio.

O artigo 226, § 1º, refere-se à família proveniente do casamento civil, único

matrimônio admitido, a partir do surgimento da República (1890). Além desse, é reconhecido o

casamento religioso (art. 226, § 2º), desde que, acompanhado de efeitos civis. A união estável foi

classificada, como entidade familiar (art. 226, § 3º). Assim, as uniões livres receberam tratamento

similar, àquele conferido aos vínculos conjugais. Alude-se também, à família monoparental, ou seja,

aquela constituída por um dos pais e sua prole (art. 226, § 4º).

Entre os modelos constitucionais de família, o Código Civil de 2002

regulamenta o matrimônio e a união estável, todavia, é omisso em relação à família monoparental. O

primeiro vinha estabelecido, desde o Código Civil de 1916, recordemos, aqui, a adoção do modelo

burguês (casamento monogâmico). Entretanto, a união livre não teve a mesma sorte que os vínculos

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31conjugais, recebendo regulamentação, em lei especial, apenas, a partir de 1994, com as Leis nº 8.971/94

e nº 9.278/96. A entidade monoparental, até o momento, não dispõe de qualquer norma, estando

indicada, tão-somente, na Constituição da República de 1988.

A Constituição da República de 1988, não reconheceu, expressamente, a relação

homoafetiva. A redação do artigo 226, § 3º, restringe a união estável, ao vínculo heterossexual. Em

razão disso, a maioria dos doutrinadores entende que a união homoafetiva não é família. Entretanto, o

pensamento em sentido contrário ganha notável relevância. Nesse grupo, podemos destacar as lições dos

juristas: Maria Berenice Dias, Luiz Edson Fachin e Zeno Veloso. Somando-se a esses, há um

significativo número de decisões judiciais, principalmente no Estado do Rio Grande do Sul, que

concebem aqueles vínculos, enquanto família. Para essa corrente, a união homoafetiva é uma “sociedade

de afeto” e, não, “sociedade de fato”.

A legislação é omissa no que diz respeito às uniões homoafetivas, todavia,

tramita – na verdade encontra-se arquivado por falta de interesse - na Câmara dos Deputados, o

Substitutivo do PL nº 1.151/95, realizado pelo deputado Roberto Jefferson, relator do Projeto de Lei

original (autoria da ex-deputada federal Marta Suplicy). Ambos (Substitutivo e PL 1.151/95)

estabelecem direitos aos homossexuais. Não obstante o avanço quanto à matéria, esses instrumentos

normativos não têm o escopo de atribuir o status de família, às relações homoafetivas. Entretanto, não

podemos deixar de reconhecer que a pretendença significa um grande avanço.

As relações homoafetivas, apesar de serem um fato notório, continuam à

margem da lei. Por isso, no caso de dissolução, os partícipes ficam ao bel-prazer do juiz, para

atribuírem-se, ou não, efeitos jurídicos próprios do Direito de Família. A inércia estatal fere a dignidade

da pessoa humana, por conseguinte, afetam-se os direitos personalíssimos.

Independentemente do seu modo de constituição, a comunidade familiar merece

guarida do Estado. Apesar de suprimida a unicidade do matrimônio, esse, tornou-se conhecido como a

maneira mais “adequada” de formação da família.

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32O enfoque jurídico da família recebe novas conotações. Almeja-se uma real

isonomia entre os membros. O “chefe de família”, produto do matrimônio burguês (modelo patriarcal),

paulatinamente, vê-se excluído. As decisões familiares tendem a um “processo de paridade”, cabendo

tanto aos cônjuges / companheiros, quanto aos filhos, escolher o que é melhor para o grupo. Segundo

Gama, a família contemporânea fundamenta-se nos seguintes valores: pluralismo, solidarismo,

democracia, igualdade, liberdade e humanismo. 12 Por essas razões, poder-se-á lecionar que o direito de

constituir família está relacionado ao direito de ser feliz.

A família é o primeiro grupo social ao qual pertencemos. Por isso, atua enquanto

veículo de ingresso para as demais comunidades. À vista desses argumentos, o Estado tem a

incumbência de implantar políticas públicas que objetivem a sua preservação.

A família é o lócus, onde as pessoas buscam cuidado e proteção. No interior da

comunidade familiar, propicia-se o desenvolvimento psíquico-social do indivíduo. Isso é conseqüência

da reciprocidade de afeto entre seus membros. No contexto do novo Direito de Família, a finalidade

principal é propiciar qualidade de vida a seus partícipes.13

A família deve ser analisada em consonância aos novos fatos sociais. Sua

característica é delineada, conforme a época e local em que se constitua. Não há um modelo universal de

família, mas, sim “modelos”. A comunidade familiar vai além do vínculo heterossexual, estendendo-se à

união homossexual.

Propende-se abandonar o caráter hierarquizado, vigente na família tradicional.

Agora, o escopo é o delineamento de uma nova postura, onde as responsabilidades domésticas

pertençam a todos os membros. O enfoque moderno valoriza a relação de afeto, de respeito e de

colaboração. Repugna-se a visão unicamente patrimonial (concepção antiga – limiares da monogamia).

Na presente acepção, é imprescindível que se faça presente o propósito da comunhão de vida.

12 GAMA op. cit., p. 5. 13 CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. O lugar da família na política social. In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (org.). A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003. p. 15.

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33O alijamento dos papeis preestabelecidos (hierarquia paterna) foi conseqüência

das novas concepções conferidas à família. Esse fenômeno deu a origem a um outro: a paridade entre os

membros do clã familiar.14

A nova contextualização da família apresenta duas significativas ocorrências: o

aumento no número de divórcios, e o crescimento pela escolha da “união livre”. É possível que essas

manifestações sejam produtos da Constituição da República, de 1988, a qual, concedeu amparo jurídico,

não apenas ao matrimônio, mas também, à união estável. Para alguns, esse quadro representa a crise

experimentada pela família contemporânea.15

A família moderna apresenta-se da seguinte forma: a) grande ingerência do

Estado; b) substituição da família patriarcal (modelo amplo) pela família nuclear (modelo mais restrito,

envolvendo pai, mãe e filhos menores); c) menor importância aos aspectos patrimoniais

(despatrimonialização); d) democratização, ou seja, a sociedade familiar se transforma num grupo de

iguais; e) maior valoração ao elemento afetivo, ao invés do elemento biológico; f) dessacralização do

casamento, com a facilidade para a desconstituição do vínculo conjugal (separação e divórcio), somado,

ao reconhecimento das uniões informais (companheirismo). 16

Agora, valoriza-se o escopo da comunhão plena de vida almejada pelo casal. O

moderno sustentáculo da família é o afeto que envolve seus membros. Todavia, não podemos olvidar os

aspectos patrimoniais, que, de modo não tão significativo como antes, ainda se fazem presentes. Esse

fenômeno se verifica porque a formação do grupo familiar, indispensavelmente, traz consigo a reunião

de interesses sentimentais e materiais. No presente contexto, os primeiros têm maior importância do que

os segundos.

A partir da Constituição de 1988, a dignidade da pessoa humana fora

reconhecida, como “princípio mor” da família. Em razão disso, o clã familiar não se limita aos aspectos

14 SARTI, Cynthia A. Família e individualidade: um problema moderno. In: CARVALHO, op.cit. p. 43. 15BILAC, Elisabete Dória. Família: algumas inquietações. In: CARVALHO op. cit., pág.34. 16 Sobre o assunto consultar a argumentação apresentada por Heloísa Helena Barboza. In: GAMA op. cit., p. 9.

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34patrimoniais, mas também, e, sobretudo, valorizam-se os elementos afetivos. Esses, podem ser

observados no direito de ser feliz. 17

A família não é constituída, unicamente, pelos modelos prescritos na

Constituição. É possível que ele a se verifique de outras maneiras. Entre essas, podemos referir: a

família nuclear própria (é a relação entre pais e filhos), a família composta por várias famílias

nucleares (são as famílias que habitam juntas em nome da sobrevivência) e a família que inclui parentes

de parentes e compadres, inexistindo laços consangüíneos entre os membros.18

A Constituição da República de 1988 leciona, em seu artigo 226, que a família é

a “base da sociedade”, tendo especial proteção do Estado. O dispositivo foi um pouco amplo, pois não

estabeleceu o conceito de família. Desse modo, é possível a inclusão de outros modelos, além daqueles

narrados. Assim, adotamos a proposta de acolhimento da relação homoafetiva, no rol das comunidades

familiares. Entre essas, podemos destacar: o matrimônio (civil e religioso com efeitos civis), a união

livre (estável e homoafetiva), a família monoparental etc.

A “nova família” é bastante heterogênea, podendo constituir-se de modo solene,

ou, não. Desapareceu a obrigatoriedade do matrimônio, como único meio de formação do clã familiar.

A família pode ter sua gênese tanto no casamento (modelo tradicional), quanto na união livre (união

estável e relação homoafetiva). Não obstante a mudança de concepção, ainda é comum a preferência

pelo vínculo matrimonial.

A família nuclear (modelo tradicional) apresenta as seguintes características:

estrutura hierarquizada, onde o homem (marido/ pai) exerce autoridade sobre a esposa e os filhos;

divisão sexual do trabalho, bastante rígida (há tarefas masculinas e femininas); vínculo afetivo entre os

cônjuges e entre, esses, e a prole (geralmente, a mãe tem maior ligação com os filhos); controle da

17 Aqui, partilhamos do pensamento de Gama, in: GAMA, op. cit. p. 6. A nova doutrina atribui maior importância ao elemento afetivo. Diferentemente do que ocorria nas antigas obras de Direito de Família, as atuais, principalmente aquelas em que seus autores pertencem ao IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), constantemente, referem- se ao afeto, como sustentáculo da comunidade familiar. 18 MELO, Sylvia Leser. Família: perspectiva teórica e observação factual. In: CARVALHO op. cit., p. 54.

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35sexualidade feminina e dupla moral sexual.19 Devemos ressaltar que essa estruturação não é absoluta,

pois amolda-se, conforme os costumes de cada grupo.

Com o ingresso da mulher e dos filhos, no mercado de trabalho, e a conseqüente

divisão das despesas domésticas, a hierarquia paterna, paulatinamente, vem desaparecendo. Por

conseguinte, os membros da comunidade familiar ficam numa posição de igualdade. Desse modo, a

antiga figura do “chefe de família” tende ao fracasso.

A nova contextualização da família estabelece uma concepção, bastante,

diferente daquela verificada no surgimento da monogamia. Aí, o “casamento burguês” era a única

referência (acepção patriarcal, hierarquizada e patrimonialializada da família). Agora, não há que se

falar em tal singularidade, pois, admitem-se outros modelos.

A hierarquia paterna pode ser manifestada de duas maneiras distintas: pela

autoridade, ou, pelo poder. Vejamos como se expressa cada uma delas.

Autoridade advém de uma relação de hierarquia, onde se estabelece comando e

obediência, sem a necessidade de meios externos de coerção. Seu exercício é aceito pelo indivíduo.

Nesse caso, presume-se uma legitimidade que todos conhecem.20

Poder significa imposição da vontade de alguém, mesmo com a resistência do

outro. Nessa hipótese, admite-se o uso de violência (física ou psicológica).21

Não obstante autoridade e poder se refiram a relações de comando e obediência,

seus modos de expressão são diferentes. A primeira diz respeito às experiências comuns, vividas no

passado. Seu objetivo é a preservação de posições hierárquicas, anteriormente, estabelecidas. Essas,

compõe a tradição de comando do interior de um grupo. Ao passo que, o poder, manifesta-se no

confronto com o instituído.22

19 ROMANELLI, Geraldo. Autoridade e poder na família. In: CARVALHO op.cit., p. 74 e 75. 20 Ibidem. P. 79 e 80. 21 Ibidem. 22 ROMANELLI, Geraldo. Autoridade e poder na família. In: CARVALHO, op.cit. p. 80.

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36A hierarquia familiar não se restringe ao marido, podendo ser verificada

também, com relação à figura feminina. A diferença, entre ambas, encontra-se na forma de seu

exercício.

A hierarquia materna relaciona-se às “coisas do lar”. O vínculo afetivo, entre

mãe e filho, proporciona à mulher uma autoridade, que não se manifesta em uma relação de ordem, tal

qual, se verifica na figura paterna. A hierarquia feminina apresenta-se de forma camuflada, por isso, é

mais “delicada”. A mãe utiliza-se do aspecto emocional, para fazer cumprir sua pretensão (ordem).

Haja vista a diferença de expressão, entre a hierarquia materna e a paterna, a

primeira, assume maior relevância do que a segunda. Às vezes, a família sofre profundas crises,

chegando à beira do colapso. Nesses casos, geralmente é a mulher (mãe e esposa) quem mantém a união

do grupo. Aí, podemos verificar o quão ela é importante na preservação da família.

A simultaneidade, na relação de autoridade e afeto, que a mãe exerce sobre os

filhos, explica-se sob o enfoque religioso e científico. Para alguns, a relação afetiva entre mãe e prole faz

parte de um processo natural. 23

A família não se forma apenas por vínculos consangüíneos, nela, incluem-se

também, os laços de afetividade. Essa é a interpretação da moderna doutrina. Segundo Rodrigo da

Cunha Pereira e Maria Berenice Dias:

A legislação vigente regula a família do início do século passado, constituída unicamente pelo casamento, verdadeira instituição, matrimonializada, patrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual, ao passo que o moderno enfoque dado à família se volta muito mais à identificação dos vínculos afetivos que – enlaçando os que integram – consolidam a sua formação. 24

O Direito de Família sofreu considerável evolução legislativa e sociológica.

Apesar do progresso tecnológico, e da mudança de concepção quanto aos sentimentos humanos, a

família continua sendo o modo de agrupamento preferido do homem. É no clã familiar que o indivíduo

23 Ibidem. p. 84. 24 DIAS, Maria Berenice e PEREIRA, Rodrigo da Cunha Direito de Família e o Novo Código Civil. p. IX.

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37conjuga esforços para seu crescimento pessoal e intelectual. Por essa razão, a família, sempre, será

considerada a célula mater da sociedade.

Segundo Euclides Oliveira e Giselda Fernandes Hironaka: “Apenas uma coisa é

certa e parece não mudar jamais: as pessoas não abandonam a preferência pela vida em família, seja de

que molde ou tipo se constitua seu núcleo familiar”.25

A formação da família deve levar em consideração a comunhão plena de vida

almejada pelo casal. Pouco importa se o par é homo, ou, heterossexual. A comunhão de vida deve ser

observada sob três aspectos: físico – o dever conjugal; econômico – a busca em conjunto de

prosperidade, e espacial – habitação no lar conjugal. 26.

No que se refere às várias formas de constituição da família, podemos, desde já,

trazer a lume a discussão em torno da união homoafetiva. No momento em que a dignidade da pessoa

humana foi erigida à posição de princípio constitucional, com aplicação no Direito de Família, faz-se

mister que sejam reconhecidas, não apenas, as entidades familiares dispostas expressamente na

Constituição, mas também, outros modelos. Entre esses, deve habitar a relação homoafetiva.

3 – Acepções do termo Família:

Durante anos, o homem buscou constituir-se no seio familiar. A família é o

espaço em que o indivíduo reúne esforços materiais e espirituais, de modo a contribuir para o

desenvolvimento social de seus membros.

A família é base da sociedade e, como tal, é o agrupamento que garante a sua

sobrevivência. Por essa razão, o Estado tem a incumbência de lhe proporcionar guarida, independente,

do seu modo de manifestação.

25 Maria Berenice e PEREIRA, Rodrigo da Cunha Direito de Família e o Novo Código Civil. p. 7. 26 Ressalte-se que ao fazermos referencia à comunhão de vida, adotou-se a concepção de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, in: GAMA op.cit., p. 33. Todavia, ao afirmarmos que a comunhão de vida deve ser observada pelo casal, quer hetero, quer homossexual, esse, não foi o pensamento do autor, mas, sim, a nossa concepção.

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38A tertúlia é produto de um comportamento natural do indivíduo. O agrupamento

é essencial para o desenvolvimento do ser humano, enquanto pessoa. É nesse sentido, que podemos

considerar a família, uma projeção do Direito Natural.

A família não se manifesta, apenas, no vínculo matrimonial, ao contrário, as

“uniões livres” sempre foram uma realidade. Entretanto, a grande influência do catolicismo (religião

oficial do Brasil, na época do Império - art. 5º da Constituição de 1824), introduziu uma concepção

singular de família, a qual, deveria formar-se, tão-só, pelo casamento. Durante o Império, somente o

matrimônio religioso era reconhecido. A ocorrência da República, em 1890, deu origem ao casamento

civil (criado pelo Decreto 181 de 24 de janeiro de 1890), que tornou-se, à época, o modelo exclusivo de

família.

A singularidade do matrimônio civil, enquanto clã familiar, não fora aceita

eternamente. A Constituição de 1988 reconheceu vários modelos de família. Isso afastou a acepção

restrita, ao vínculo matrimonial. Contemporaneamente, poder-se-á conceber família, tanto a união

estabelecida de forma solene (casamento), quanto a união informal (união estável).

A forte influência da Igreja Católica sobre o Estado, enobreceu o matrimônio

religioso, em detrimento das demais entidades familiares. Esse processo surgiu com o Cristianismo, que

passou a pregar, entre seus cânones, a figura do casamento religioso, o qual, era considerado um

sacramento, por isso, inviável sua dissolução. Gama, citando Eduardo de Oliveira Leite, assevera que o

Movimento Luterano e a Revolução Francesa tiveram grande influência na adoção do casamento civil.

A resistência ao reconhecimento das uniões livres, enquanto família, ocorreu em

razão da grande interferência que a Igreja Católica exerceu sobre o Estado. Apesar do extenso lapso

temporal decorrido, desde a implantação da República, até o presente, ainda é possível verificarmos uma

considerável relação entre o catolicismo e o Estado.

Durante anos, a união more uxorio foi considerada uma ofensa, à família

legítima, à moral e aos bons costumes. Esse contexto contribuiu para o serôdio reconhecimento legal das

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39famílias informais. As uniões livres têm gênese no Direito Romano, onde ocorriam normalmente,

recebendo o nome de concubinatus. Nessa relação, o homem e a mulher, apesar de serem solteiros e

“livres”, ostentavam uma convivência estável, vivendo como se casados fossem.

A partir da República, o Brasil tornou-se um Estado laico, isto é, sem religião

oficial. Entretanto, apesar da separação entre Estado e Igreja Católica, a influência dessa, sobre aquele,

ainda se verifica. O fenômeno pode ser observado nos parlamentos brasileiros, onde há um grande

número de deputados católicos, os quais, ainda se deixam influenciar por preceitos religiosos. Esse

contexto inviabiliza a modelação de entidades familiares, diferentes do modelo tradicional (união

heterossexual com a formação da prole). A situação é ainda mais delicada, quando o assunto envolve o

reconhecimento legal da união homoafetiva.

A aceitação única do vínculo heterossexual, como entidade familiar, decorre, em

grande parte, da ala conservadora da Igreja Católica. Essa, introduziu na cultura pátria, a acepção de

família, como a união constituída entre um homem e uma mulher, sendo sua finalidade principal a

formação da prole.

A moderna acepção de família, não se restringe ao modelo nucelar, isto é, ao

vínculo constituído entre pai, mãe e filhos. Diferente da época em que se instaurou a monogamia, a

família é tratada sob uma concepção mais ampla. Agora, as relações são estabelecidas por laços

consangüíneos e / ou afetivos. Desse modo, podemos considerar entidade familiar os liames formados

entre: pais, filhos e irmãos; cônjuges/ companheiros (hetero, ou homossexuais); tios e sobrinhos; primos;

avós e netos; padrinhos / madrinhas e afilhados; amigos (esse modelo pode ser verificado, quando dois

ou mais amigos reúnem-se num mesmo lar, dividindo as obrigações domésticas. Aí, não se fala em

pretensão sexual).

Segundo os moldes estabelecidos pela sociedade, a união homoafetiva é uma

entidade familiar diferente dos “padrões normais”. A identidade de sexo entre os companheiros é o que

caracteriza essa distinção e, por conseguinte, obsta seu reconhecimento. A adoção da monogamia,

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40fundamentada por interesses patrimoniais, fez-se acompanhar da instituição do “casamento burguês”,

isto é, o vínculo matrimonial constituído entre um homem e uma mulher, onde um de seus escopos é a

formação da prole. Apesar da acepção burguesa de família ter se instaurado na cultura brasileira,

fenômeno influenciado pelo Código Civil francês de 1804, essa idéia, vem, paulatinamente, se

afastando. Não obstante o processo de mudança, ainda é comum associar a comunidade familiar, aos

vínculos constituídos entre heterossexuais, ignorando-se, assim, as uniões homoafetivas.

Na acepção atual de família, é possível a verificação dessa, mesmo sem a ocorrência da

prole. Explicar o instituto, sob o enfoque hodierno, significa estabelecer um liame entre o afeto e a

comunhão plena de vida almejada pelo casal. A partir daí, devemos indagar por que ainda há tanto óbice

à aceitabilidade da união homoafetiva, enquanto entidade familiar? Primeiramente, podemos asseverar

que a sociedade ainda é bastante antiquada no que se refere à conceituação de família, do mesmo modo,

acontece com relação à sexualidade humana. Tem-se, ainda, a relevante influência da Igreja Católica

sobre o Estado, apresentando-se como um estorvo à legalização desses relacionamentos.

O enaltecimento do matrimônio tornou-se costume em nossa sociedade. Isso o

fez conhecido como, a melhor e mais adequada, forma de se constituir a família. Entretanto, não

podemos olvidar que as constantes mudanças de concepção, quanto à comunidade familiar,

paulatinamente, mudam esse quadro.

A união homoafetiva é um fato, como tal, o Estado não pode ignorá-la. Faz-se

mister o desligamento da concepção conservadora de família. Assim, viabilizasse o reconhecimento dos

vínculos homossexuais.

3.1 – Casamento e União: algumas diferenças.

Haja vista que ao longo do trabalho estabelecer-se-á um paralelo entre o

casamento e as uniões livres (estável e homoafetiva), verificou-se a importância de trazer a lume os

ensinamentos da Antropologia, quanto a diferença entre casamento e à união.

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41Segundo a Antropologia, o casamento é uma instituição social determinada pela

cultura27. HOEBEL e FROST conceituam o instituto da seguinte maneira:

O casamento é o complexo das normas sociais que definem e controlam as relações de um par unido um com o outro, com seus parentes, com sua prole e com a sociedade em geral. Ele define todos os direitos institucionais, deveres, privilégios, e imunidades do par como marido e mulher. Ele determina a forma e atividades da associação conhecida como a família.28

Para os antropólogos, é possível a ocorrência da união sem a verificação do

casamento, e vice-versa. Aquela está mais relacionada ao aspecto psicofísico, onde prevalece a natureza

instintiva do ser humano. Segundo conceituação trazida na obra de HOEBEL e FROST 29, união “é o

ajuntamento de indivíduos do sexo oposto sob a influência do impulso sexual”. Apesar da união

consistir na junção entre pessoas de sexos diferentes, ela não se refere, apenas, à relação sexual, sendo

determinada pelos padrões culturais que regem uma sociedade. 30

Ao utilizarmos o vocábulo “união”, nossa finalidade é mostrá-la enquanto

formação do vínculo familiar, quer seja entre duas pessoas do mesmo sexo (relação homoafetiva), quer

seja entre duas pessoas de sexos diferentes (casamento e união estável). O conceito de união,

apresentado pela Antropologia fundamenta a sua ocorrência, consoante a cultura de um povo.

As relações homoafetivas, mesmo sendo um fato notório, ainda são repugnadas

no sistema brasileiro. Esse contexto, via de regra, apresenta-se como um óbice à atribuição de efeitos

jurídicos, próprios do Direito de Família.

4 - Conceito de Família: nosso posicionamento.

O vocábulo “família” originou-se do termo famulus (= escravo doméstico),

palavra criada pelos romanos para designar o organismo social surgido entre as tribos latinas que

ingressaram na agricultura e na escravidão legal. Esse grupo social caracterizava-se pela existência de

27A cultura de uma sociedade não é produto das características biológicas do indivíduo. Sua origem decorre de padrões de comportamento estabelecidos, em um determinado local e época, os quais, tornam-se um aprendizado para as presentes e futuras gerações. Desse modo, podemos conceber cultura, como: “o comportamento das pessoas pertencentes a uma determinada sociedade”. Sobre o assunto, vide: Antropologia: o estudo da humanidade, in: HOEBEL,Adamson E. e FROST, L. Everett. Trad.: Euclides Carneiro da Silva. Antropologia cultural e social. São Paulo: Ed. Cultrix. p. 4. 28 Ibidem. p. 176. 29 Ibidem. p. 175. 30 Ibidem.. p.176.

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42um “chefe” (marido). A partir daí, a expressão “família” adotou uma conotação de instituição /

agrupamento social.31

Família é o agrupamento de pessoas que se reúnem por vínculos consangüíneos

e/ou afetivos, conjugando seus esforços no propósito de concretizarem seus objetivos materiais e

espirituais. A família sempre foi considerada a célula mater da sociedade, uma vez que permite a

sobrevivência do Estado. A nova contextualização da comunidade familiar não permite sua restrição às

uniões heterossexuais.

Face ao exposto, podemos conceituar família da seguinte forma: é o

agrupamento de pessoas ligadas por vínculos consangüíneos e/ ou afetivos, que reúnem seus objetivos

materiais (patrimoniais) e espirituais (afetivos) com a intenção de atingirem o desenvolvimento físico,

psíquico e social. A comunidade familiar engloba tanto as uniões matrimoniais, quanto as uniões livres.

Nessas, encontram-se a união estável (heterossexual) e a união homoafetiva. O reconhecimento da

família deve levar em consideração o escopo que seus membros têm de estabelecer uma comunhão de

vida.

31Ressalva às considerações de Engels, realizada por BILAC, Elisabete Dória. Família: algumas inquietações. In: CARVALHO op.cit., p.31.

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43II – A UNIÃO HOMOAFETIVA NA ÓRBITA DOS DIREITOS HUMANOS E DO DIREITO

CONSTITUCIOANAL.

Analisar a união homoafetiva no cenário do Direito de Família requer amparo

nos Direitos Humanos e no Direito Constitucional. A fundamentação para tal enquadramento está

centrada na proteção à pessoa humana.

A relação homoafetiva é uma ocorrência da orientação sexual, por isso, seu

estudo deve ser realizado sob a visão humanista do Direito. Assim, será possível atribuírmo-lhes os

efeitos jurídicos do Direito de Família.

Os direitos personalíssimos, próprios da pessoa humana, encontram assento nos

Direitos Humanos e no Direito Constitucional. O reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas,

como Família, tem sustentáculo na “razão de ser do Direito”, isto é, o indivíduo enquanto pessoa.

Os direitos da personalidade são substanciais na presente análise, pois se

encontram relacionados aos aspectos mais íntimos da pessoa. Esses direitos se verificam pelo simples

fato da pessoa ter vida, isto é, surgem com o nascimento e desaparecem com a morte de seu titular.

Os “direitos da personalidade” são universais, invioláveis, absolutos e

inalienáveis. Assim, relacionam-se à vida, à liberdade e à boa reputação da pessoa. Por isso, se regem

por valores imateriais. 32

O direito à honra e à boa reputação são manifestações da personalidade. Por

essa razão, encontram-se acima dos demais, merecendo tutela estatal e o respeito de todos. Entretanto,

no que diz respeito aos homossexuais, poder-se-á observar que tais direitos são constantemente violados.

O tratamento infamante à honra e à reputação dos homossexuais, muitas vezes,

provoca seu alijamento de determinados “grupos”. A conduta agressiva viola a dignidade dessas

pessoas, que vêem desrespeitada sua orientação sexual. A Constituição da República, de 1988, foi clara

em seu artigo 3º, inciso IV, ao preceituar que seu objetivo é a promoção do bem de todos sem qualquer

32 RIO, José Manuel Lete Del. Derecho de la persona. Madrid: Ed. Tecnos, 1986. p. 172.

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44discriminação. O espezinhamento sofrido pelos homossexuais é gravíssima violação a preceito

constitucional, configurando-se em agressão à personalidade do indivíduo. Isso autoriza o requerimento

de tutela estatal, e a conseqüente reparação dos danos.33

É inválida a alegação de que a Carta Constitucional de 1988 não reconheceu a

união homoafetiva, como entidade familiar. Ela não o fez de modo expresso, entretanto, em razão do

fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, que consagra a “pessoa” ao mais alto grau,

devemos compreender que a vínculo homoafetivo foi admitido pela Constituição.

Para reconhecermos a união homoafetiva, como família, faz-se mister a

utilização de três fundamentos: os princípios constitucionais, os princípios gerais do direito e a

hermenêutica jurídica. Desse modo, tornar-se-á possível a “humanização do Direito” e, por conseguinte,

a valoração dos homossexuais, enquanto pessoa - titular de direitos.

A nossa proposta, a partir de então, é mostrar que existem fortes argumentos que

permitam enquadrar a união homoafetiva no contexto do Direito de Família.

1 – Direitos Humanos e Proteção à Orientação Sexual.

Os direitos humanos são direitos da pessoa humana, desse modo, existem pelo

simples fato do homem ter vida. Esses direitos, para se consagrarem como tal, atravessaram uma grande

trajetória histórica. O marco inicial foi a revolta contra governos absolutistas, que não respeitavam o

homem enquanto pessoa. Assim, nascem os primeiros movimentos, em busca do respeito e proteção aos

direitos inatos do Homem.

Os direitos humanos, também denominados direitos fundamentais da pessoa

humana, visam à preservação do homem, protegendo-lhe a individualidade. Por essa razão, assumem

notável importância no que se refere às uniões homoafetivas. Isso é possível verificar-se, porque a

33 Nessa hipótese, os homossexuais poderão solicitar uma indenização por danos morais.O Código Civil de 2002 permite a reparação do dano, ainda que exclusivamente moral. O artigo 186 do Código Civil preceitua: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

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45orientação sexual está associada ao direito fundamental à intimidade (artigo 5º da Constituição da

República).

Segundo Lindgren Alves, os direitos humanos traçaram a seguinte trajetória:

origem na Revolução Parlamentar Inglesa; concretização com a Independência Americana e

internacionalização com a Revolução Francesa. 34

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, foi o primeiro

documento internacional que regulamentou os direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana.

Seu início ocorreu a partir da Carta das Nações Unidas, de 1945, onde o objetivo era respeitar os direitos

humanos e as liberdades fundamentais da pessoa, sem quaisquer espécies de discriminação. Desde

então, os homossexuais têm assegurado o direito humano fundamental de orientação sexual, sendo

obrigatória sua observância.

Para as Nações Unidas, os direitos humanos classificam-se em dois grupos:

direitos civis e políticos; direitos econômicos, sociais e culturais. Todavia, para Jack Donnelly, a divisão

é a seguinte: direitos pessoais, direitos judiciais, liberdades civis, direitos de subsistência, direitos

econômicos, direitos sociais e culturais; e direitos políticos. 35

No que se refere à união homoafetiva, podemos verificar que o seu

reconhecimento e proteção militam no âmbito das seguintes categorias, conforme classificação de Jack

Donnelly, baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos: é um direito pessoal, uma vez que se

busca a não-discriminação sexual (artigos II, 1 e VII); é um direito judicial, pois visa a não

interferência na família, no lar e na reputação (art. XII), é um direito de subsistência, porque almeja-se o

bem-estar da família, tal qual, é assegurado às demais entidades familiares (art. XXV).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, fez necessária a

elaboração de dois Pactos Internacionais: o de direitos econômicos, sociais e culturais; o de direitos

34 ALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva; Brasília, DF: Fundação Alexandre Gusmão, 1994. pág. 103. 35 Ibidem. pág. 46 e 47.

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46civis e políticos. Ambos foram adotados em dezembro de 1966, entretanto, a entrada em vigência foi um

pouco retardada. O primeiro passou a vigorar, a partir de 3 de janeiro de 1976, o segundo; a partir de 23

de março de 1976.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos proclama, no artigo 26, que

todas as pessoas são iguais perante a lei, devendo ser protegidas de quaisquer formas de discriminação.

As pessoas não podem sofrer constrangimentos em razão de sexo, cor, religião, raça, opinião política, ou

de qualquer outra natureza. As uniões homoafetivas podem ser enquadradas no tópico referente ao

“sexo”, assim como também, no que se refere à discriminação de “qualquer outra natureza”. Observa-se,

aqui, a preocupação em proteger àquelas pessoas que manifestam orientação sexual diferente da

maioria.

As constantes ofensas e humilhações sofridas pelos homossexuais ferem sua

honra e dignidade. A exclusão dos “meios sociais”, tão-só, em razão da orientação sexual, incide em

violação ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, que proíbe discriminações por sexo, e outras de qualquer

natureza.

O espezinhamento dos homossexuais incide em grave afronta à dignidade

humana. Essa, além de ser princípio fundamental da Constituição da República de 1988, é também

reconhecida nos preâmbulos do Pacto de Direitos Civis e Políticos, e da Declaração Universal dos

Direitos do Homem. A última preceitua que a dignidade é fundamento da liberdade, da justiça e da paz,

no mundo.

No plano internacional, temos ainda, a Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, também denominada, Pacto São José da Costa Rica. Esse documento tem a finalidade de

preservar a pessoa humana. Para isso, impõe, aos Estados americanos e à sociedade, o dever de serem

respeitados os direitos do homem. Entre esses, poder-se-á enquadrar a união homoafetiva, uma vez que,

a orientação sexual é um direito humano fundamental.

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47A Convenção Americana sobre Direitos Humanos preceitua, em seu artigo 5º, o

direito à integridade pessoal, dispondo no § 1º: “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua

integridade física, psíquica e moral”. Preservar a integridade psíquica e moral do ser humano significa

respeitar o seu modo de vida e escolhas pessoais, ou seja, não excluí-lo do grupo social, pelo simples

fato de adotar orientação sexual diferente, daquela considerada pela maioria “normal”.

O homossexual não pode ser objeto de discriminação em razão de sua identidade

sexual. Essa, não se manifesta, tão-só, pela simples vontade da pessoa, pois, é uma expressão da

orientação sexual. Desse modo, cabe ao Estado e à sociedade o dever de respeitá-la e preservá-la.

Algumas vezes, os homossexuais encontram certos obstáculos para o

relacionamento em sociedade. Isso ocorre devido à revelação de sua verdadeira identidade sexual. Essa,

enquanto manifestação da orientação sexual homossexual, provoca reações de desprezo àquelas pessoas,

as quais, geralmente, têm sua honra e moral feridas. Observa-se que logo são estabelecidas alcunhas e

brincadeiras depreciativas. Desse modo, a saúde psíquica do ser humano é afetada sobremaneira,

causando-lhe incômodo e mal-estar. Esse quadro retrata uma violação à integridade pessoal direito

previsto no Pacto São José da Costa Rica.

A “razão de ser” dos direitos humanos é a preservação da pessoa em sua

plenitude. Assim, faz-se mister a garantia de bem-estar a todos os indivíduos, independente de sua

orientação sexual. Desse modo, sua observância cabe, não apenas, ao Estado, mas também, à

sociedade. A Declaração de Viena, de 1993, assumiu considerável importância, no que se refere aos

direitos humanos. Seu preâmbulo preceitua que:

Os direitos humanos são produtos da dignidade e do valor inerente à pessoa humana, a qual é sujeito central desses direitos e das liberdades fundamentais. Em razão disso, a pessoa humana deve ser a principal beneficiária desses direitos e liberdades, devendo participar de forma ativa na sua realização. Observamos acima, mais um documento internacional que reconhece o homem,

como sujeito central do Direito. Assim, é necessário que a Ciência Jurídica atue em compasso à

preservação da dignidade da pessoa humana. Partindo-se dessa análise, poder-se-á compreender que os

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48homossexuais têm o direito de ver preservada a sua identidade sexual. Desse modo, viabiliza-se a

concretização dos direitos personalíssimos e, conseqüentemente, é preservada a integridade moral, a

honra e a reputação dos “companheiros homoafetivos”.

Conforme se pode verificar, a pessoa humana é o norte dos direitos humanos,

razão pela qual, deve, sempre, ter preservada a sua dignidade. Os homossexuais são vítimas de violação

aos direitos humanos, quando têm sua dignidade espezinhada pelos outros indivíduos e, algumas vezes,

até mesmo pelo Estado. É obrigação desse, a promoção e o respeito aos direitos humanos e liberdades

fundamentais, missão que deve ser realizada sem distinção de raça, sexo, idioma, religião, ou qualquer

outro critério.

Durante a ditadura militar, verificou-se, no Brasil, uma supressão dos direitos

humanos. Entretanto, a promulgação da Constituição da República, de 1988, permitiu a consagração

desses direitos, em nível nacional. Assim, vários dispositivos do Texto Constitucional estabelecem

direitos fundamentais, que podem ser encontrados, em maior número, no artigo 5º.

O encaminhamento dos Pactos Internacionais, de Direitos Civis e Políticos, e de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao Congresso Nacional, em 1986, e também, da Convenção

Americana sobre Direitos Humanos, foram de considerável importância para o reconhecimento e

proteção dos direitos humanos a nível nacional.36 Esse acontecimento foi conseqüência do processo de

redemocratização experimentado pelo Brasil, em 1985. A partir de então, o Estado brasileiro estaria

proibido de impor qualquer medida que acarretasse em violação aos direitos da pessoa humana.

A partir do processo de redemocratização, os direitos humanos ganham relevo

no cenário brasileiro. Assim, a elaboração da Constituição da República, de 1988, faz o reconhecimento

legal desses direitos, em seu Título II. Então são instituídos os direitos fundamentais, também

denominados, direitos humanos constitucionalizados.

36 ALVES op.cit., p. 94.

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49O Título II, da Constituição da República de 1988, ao estabelecer,

simultaneamente, direitos e garantias fundamentais, trouxe disposições declaratórias e assecuratórias

de direitos, as quais, diferenciam-se da seguinte maneira: aquelas instituem direitos, ao passo que, essas,

estabelecem garantias, ou seja, visam a proteção dos direitos instituídos.37

As garantias têm o escopo de limitar a ação do Poder Público com vistas a

assegurar a promoção e o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. São elas quem

viabilizam o reconhecimento e a proteção constitucional dos direitos e liberdades fundamentais. É

obrigação do Estado promover e garantir esses direitos da pessoa humana.

Os homossexuais têm a garantia constitucional de respeito à sua orientação

sexual. Apesar de tal disposição, normalmente, esse direito não se concretiza. É comum verificarmos o

espezinhamento dessas pessoas, o que se “justifica”, pelo fato de manifestarem atração sexual e /ou

afetiva por alguém do mesmo sexo.

O artigo 5º, § 1º, da Constituição da República de 1988, preceitua que os

direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Segundo Flávia Piovesan, o texto

constitucional estabeleceu esse dispositivo com o fito de reforçar aquelas regras. A autora, comungando

do mesmo raciocínio que Lindegren Alves, considera inadmissível a inércia estatal para a concretização

de tais direitos, pois, a ação do Estado se faz necessária à efetivação dos direitos fundamentais.38 Nesse

sentido, podemos fazer alusão à inércia do Estado em regulamentar a união entre pessoas do mesmo

sexo, contribuindo, assim, para a violação da dignidade humana dos homossexuais e,

conseqüentemente, dos direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Os direitos fundamentais não são absolutos, por isso, podem sofrer restrições,

desde que, essas, venham previstas em lei, e não sejam estabelecidas de modo arbitrário. As limitações

aos direitos fundamentais ocorrerão em razão de um outro direito fundamental. Nesses casos, faz-se 37 Argumentação de Rui Barbosa utilizada in: BARCELLOS, Fernando. Teoria geral dos direitos humanos. Porto Alegre: Fabris Editor, 1996. 38 PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos humanos no sistema constitucional brasileiro. Revista dos Tribunais (direito constitucional) nº 45, out / dez – 2003. p. 222.

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50mister estabelecer um sopesamento entre os princípios constitucionais em conflito. Assim, poder-se-á

verificar qual o melhor princípio a ser aplicado.

No quadro dos direitos humanos inexiste hierarquia. Por isso, em havendo

conflito entre dois, ou, mais direitos humanos, é necessário analisar, diante do caso concreto, qual deles

deve prevalecer. Nessa hipótese, devemos levar em consideração, sempre, que os direitos relacionados à

pessoa humana e à sua dignidade têm prevalência sobre os demais.

Os direitos humanos objetivam a preservação do homem enquanto pessoa, de

modo a permitir a sua realização pessoal, conforme a opção de vida “escolhida”. É por intermédio dos

direitos humanos que se faz possível a concretização da dignidade da pessoa humana. Não podemos

falar em dignidade se não houver liberdade. Essa, é manifestação daquela, pois, visa o respeito, por

parte dos demais, quanto ao modo de vida de cada pessoa. Assim, como seria viável falar em dignidade

humana aos homossexuais, se eles não podem manifestar sua orientação sexual sem sofrer qualquer

ofensa? Não se está, nesse caso, permitindo uma afronta a ditame constitucional?

Dentro do Estado há conflitos entre os interesses públicos e privados. De um

lado, o direito público tem o interesse de associação entre os indivíduos, uma vez que almeja a

realização do interesse público. Assim, trata-se do direito à vida pública. De outro lado, temos o direito

privado que está relacionado à pessoa na sua singularidade, desse modo, sua finalidade é atender aos

interesses particulares, preservando-se a intimidade. Esse direito corresponde ao direito de estar só, ou

seja, o direito à vida privada.

No que se refere às uniões homoafetivas, temos um enfoque tanto de direito

público, quanto de direito privado. Entretanto, é bem verdade que essas relações estão mais ligadas à

intimidade e à vida privada das pessoas, por isso, têm maiores conotações no campo da individualidade

e, conseqüentemente, no Direito Privado.

A intimidade e a vida privada são direitos humanos fundamentais, consagrados

no artigo 5º da Constituição da República. A primeira está inserida entre as liberdades públicas, antes,

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51denominada direitos individuais39. Assim, entendemos que a união homoafetiva pode ser analisada sob o

enfoque do artigo 5º da Constituição da República, uma vez que, a sua ocorrência é uma manifestação

daqueles direitos, principalmente, do primeiro (intimidade). Desse modo, o Estado não pode ignorá-la.

O direito à intimidade e a não-discriminação por orientação sexual possuem um

nexo entre si. A intimidade corresponde às particularidades de cada pessoa, o que a faz merecedora de

respeito, quanto ao seu modo de vida. A orientação sexual diz respeito ao desejo de sentir-se atraído

sexual e/ou afetivamente por alguém, não importa que seja do mesmo sexo, ou não. Assim, a

discriminação à pessoa, em razão de sua orientação sexual homossexual, viola o direito fundamental à

intimidade.

Segundo BARCELLOS, o direito à intimidade pode ser denominado por

princípio da exclusividade. A intimidade está relacionada a vários outros direitos, como por exemplo, a

inviolabilidade do domicílio, o sigilo de correspondência, o segredo profissional, o direito à honra e

reputação, o direito à integridade moral do ser humano etc. 40 A intimidade é substancial para o Direito,

uma vez que, encontra-se entre os direitos fundamentais da pessoa humana.

O liame entre orientação sexual e direito à intimidade se verifica, porque a

violação dessa, atinge a integridade moral da pessoa. Da mesma forma, os constantes desrespeitos e

humilhações sofridos pelos homossexuais afetam, sobremaneira, sua honra e reputação.

O direito à intimidade, por se tratar de um direito fundamental individual, tem

como titular o indivíduo enquanto pessoa. No pólo passivo, encontra-se o Estado e a coletividade, pois, é

obrigação de todos respeitar a intimidade da pessoa humana.

O Estado, por meio de uma sanção, pode evitar que o particular viole um direito

fundamental de outro particular. Por isso, sua presença é substancial para a garantia dos direitos

39 FILHO FERREIRA, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 5º ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 28. 40 BARCELLOS op.cit., p. 240.

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52fundamentais. A assistência estatal se verifica com maior relevo, quando temos em discussão o

reconhecimento de união homoafetiva.

O direito à intimidade tem aplicabilidade imediata, haja vista que, é um direito

humano fundamental (artigo 5º, §1º, da Constituição da República de 1988). Assim, não seria necessária

a existência de uma lei para sua regulamentação. A união homoafetiva está, intrinsecamente, ligada ao

direito à intimidade, razão pela qual, precisa ser protegida e reconhecida pelo Estado e pela sociedade.

Ora, se a intimidade e a vida privada são direitos humanos fundamentais, e a

união homoafetiva se enquadra em ambas, o reconhecimento dessa, em havendo conflito de interesses,

deveria ter aplicabilidade imediata com a atribuição dos efeitos jurídicos. Isso não ocorre, visto que o

texto constitucional não a reconheceu expressamente. Então, esse “novo modelo” de família fica à

margem de proteção legal, porque, ainda vige em nossa cultura, uma tradicional concepção de família.

O Convênio Europeu para a proteção dos Direitos Humanos (CEDH)

reconheceu, em seu artigo 8º, que: “Toda pessoa tem direito ao respeito de sua vida privada e familiar

(...)”.41 Segundo o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), a vida privada inclui a vida sexual.

Assim, podemos inferir que a vida sexual é um direito humano.

Trazendo a análise do TEDH, para o âmbito da união homoafetiva, verificar-se-á

que o indivíduo não tem respeitado um direito que lhe é inerente enquanto pessoa, isto é, o direito

humano à vida sexual. A orientação sexual está relacionada ao aspecto mais íntimo da pessoa, por isso,

deve ser respeitada por todos não podendo ser objeto de ofensas e humilhações.

O TEDH vai mais além, quando reconhece que a vida privada inclui a

integridade psíquica e moral da pessoa, abarcando, assim, sua vida sexual.42 Conforme comentado

41 CEDH, art. 8º: “Toda persona tiene derecho al respeto de su vida privada y familiar (...)”. Sobre o assunto, consultar: MIGUEL, Carlos Ruiz. El derecho a la protección de la vida privada em la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos. Madrid: Ed. Civitas, 1994. p. 33. 42 Ibidem. p. 35.

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53alhures, as constantes humilhações a que os homossexuais são submetidos, causam grave ofensa à sua

dignidade e, conseqüentemente, afetam sua saúde psíquica e moral.

Cabe então, aos direitos humanos a proteção e garantia da dignidade da pessoa

humana, assim, atuam como “instrumento de realização” do indivíduo enquanto pessoa. Essa não pode

ser humilhada, nem sofrer ofensas morais. O aviltamento à pessoa humana, em razão de sua orientação

sexual, configura grave violação aos direitos humanos.

A verdade é que muito fora criado em relação ao reconhecimento dos direitos

humanos, porém, pouco se concretizou. Não basta a existência de documentos reconhecendo direitos,

faz-se mister a efetivação desses direitos no seio da sociedade.

A aplicação dos direitos humanos é imprescindível, em qualquer demanda

judicial, principalmente, naquelas que versam sobre o reconhecimento de união homoafetiva. Nessa

hipótese, a questão ganha maior relevo, porque inexiste lei regulamentando a matéria. Destarte, cabe ao

juiz, diante do caso concreto, verificar a existência, ou não, da “comunidade familiar”. Para tanto, faz-se

mister que o julgador não ignore a realidade.

Segundo Alexandre de Moraes:

(...) direitos humanos fundamentais são o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.43 Os direitos fundamentais são a “peça-chave” do Estado de Direito. Entre ambos,

verifica-se uma relação de interdependência. Não podemos falar em constitucionalismo se não levarmos

em consideração os direitos fundamentais, que são figuras essenciais no Estado Democrático de Direito.

Esse, tem como primado, o “valor” e a “proteção” da pessoa humana.

43 MORAES, Alexandre de. Direito ao silêncio e comissões parlamentares de inquérito. pág. 14. Disponível em: www.altavista.com.br, acesso em: 5 de dezembro de 2002.

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54Cabe aqui explicitar que Estado de Direito é aquele, onde as leis são soberanas,

enquanto expressão das exigências de racionalidade e liberdade. Neste caso, o exercício do poder não se

manifesta de forma arbitrária. 44

A liberdade é um dos valores que compõe o Estado de Direito. Assim, o Estado

constitucionalista é aquele no qual o indivíduo se realiza plenamente, enquanto pessoa. Aí, se enquadra

a livre manifestação da orientação sexual. Não obstante essa permissão, observa-se um menosprezo à

liberdade de orientação sexual, principalmente, quando essa se verifica no campo da homossexualidade.

A sociedade democrática se encontra fundada em três preceitos: 1º) direitos e

liberdades da pessoa humana; 2º) efetividade dos direitos e liberdades; 3º) Estado de Direito. O artigo 1º

da Constituição estabelece que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito,

tendo como um de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III).

Observa-se no exposto que uma das acepções do vocábulo democracia está indiscutivelmente, associado

ao valor liberdade, desse modo, indaga-se: o Estado Democrático de Direito foi, efetivamente

implantado, no Brasil, no que tange ao campo da “liberdade de orientação sexual”? Tem-se aqui então,

um questionamento que merece reflexão cautelosa.

O artigo 1º, inciso III da Constituição da República de 1988, traz o princípio

basilar de todo o Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana, considerada princípio

fundamental da República Federativa do Brasil. A Carta Magna preceitua, também, os objetivos

fundamentais do Estado Brasileiro, assim, no artigo 3º, inciso IV, estabelece: “a busca pela promoção do

bem de todos, sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação”.

No que se refere aos dispositivos acima (art. 1º, inc. III e art. 3º, inc. IV), faz-se

mister trazer a lume que a efetivação da liberdade da pessoa humana, no âmbito da orientação sexual,

muito pouco foi efetivada. É patente a discriminação sofrida, por aqueles que mantêm união

44 Estado de Direito “(...) es aquel en el que son soberanas las leyes, em cuanto constituyen la manifestación externa de las exigências de racionalidad y libertad, y no la arbitraria voluntad de quienes detan el poder”. Conceito elaborado por Kant, trazido in: LUÑO, Antonio E. Perez. Los derechos fundamentales. Septima edicion. Madrid: Ed. Tecnos, 1998. p.32.

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55homoafetiva. Esse quadro pode ser verificado, diariamente, no trabalho, na Igreja que freqüentam, nos

clubes de lazer onde são associados, e, até mesmo, na própria família. Em todos os “meios sociais”,

sempre, observar-se-á uma resistência à aceitabilidade do “padrão diferenciado” de identidade sexual

assumido pelos que se enquadram nessa união. Assim, o direito de ser feliz, ainda não foi concretizado,

naquilo que diz respeito ao direito fundamental de liberdade sexual.

A Constituição da República, ao preceituar a dignidade da pessoa humana,

como princípio fundamental (art. 1º, III), e ao estabelecer a promoção do bem de todos, sem preconceito

de sexo ou quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), teve por objetivo eliminar todo e

qualquer tipo de preconceito. Assim, a pessoa humana consagrou-se, enquanto fundamento da sociedade

democrática. Desse modo, podemos inferir que a discriminação, em razão de orientação sexual, é,

veementemente, proibida pela Carta Magna.

Não podemos falar em Estado Democrático de Direito se as pessoas não podem

se realizar plenamente. Não há como falar em liberdade se, nem todos podem se expressar do modo

como gostariam. Como falarmos em igualdade, se os indivíduos têm tratamentos discriminatórios, em

razão de sua orientação sexual diferente da maioria?

No que se refere às uniões homoafetivas, é de grande importância que

verifiquemos o que preceitua a Declaração do Bom Povo da Virgínia de 1776, a qual determina que “a

busca da felicidade” é um direito da pessoa. Esse direito é universal, absoluto, inviolável e

imprescritível.

A partir da Declaração do Bom Povo da Virgínia (1776), entendemos que o não

reconhecimento, pelo Estado, das uniões homoafetivas, como entidade familiar, viola o direito de ser

feliz e, conseqüentemente, a dignidade humana das partes envolvidas. Negar proteção jurídica aos

casais homossexuais, que constituem uma relação de família, é ignorar a realidade, desconsiderando-se

um fato social de notória importância.

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56O Estado Democrático de Direito visa a preservação da pessoa. Entre seus

objetivos temos a realização pessoal. Essa deve se verificar em todos os aspectos, v.g., profissional,

social, sentimental, sexual, familiar etc. Assim, faz-se mister que as expectativas pessoais sejam

atendidas, independente da orientação sexual. Desse modo, estar-se-á concretizando a dignidade da

pessoa humana, como princípio constitucional fundamental.

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572 – A União Homoafetiva sob a Égide do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa

Humana.

A concepção de pessoa, como ente titular de direitos subjetivos e fundamentais,

possuidora de dignidade, surgiu com o Cristianismo.

Flávio Augusto Monteiro de Barros enquadra a pessoa entre os sujeitos de

direito, conceituando-os da seguinte forma: “ente referido pela norma jurídica como sendo o titular ou

então o possível titular de direitos e obrigações”.45 Nesse sentido, podemos verificar que pessoa é uma

espécie do gênero sujeito de direito. Para o autor nem todo sujeito de direito é pessoa, apesar da maioria

da doutrina entender de forma contrária.

Segundo Maria Helena Diniz, pessoa é o ente físico ou coletivo suscetível de

direitos e obrigações, assim, é sinônimo de sujeito de direito, esse, entendido como: “aquele que é

sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer,

através de uma ação, o não-cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de intervir na produção

da decisão judicial”. 46

Observa-se, então, que pessoa é o sujeito, ou melhor, é o titular de direitos e

obrigações. Como titular de direitos, a pessoa merece total proteção do Estado. No Direito brasileiro a

personalidade é adquirida no nascimento com vida, assim dispõe o artigo 2º do Código Civil: “A

personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a

concepção, os direitos do nascituro”.

Para Lafer, a pessoa humana é o valor-fonte da vida em sociedade.47 Dessa

afirmação, pode-se inferir que todo ser humano precisa ser respeitado enquanto pessoa. Essa, jamais,

45 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Apostila de Direito Civil – 2004. IELF/ SP: Instituto de Ensino Jurídico Professor Luís Flávio Gomes. 46 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v 1. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 97. 47 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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58pode ser reprimida em suas liberdades individuais. Em razão disso, veda-se ao Estado, a adoção de

políticas arbitrárias.

Haja vista o valor que a pessoa humana representa para o Direito, sua orientação

sexual não pode ser objeto de escárnios. Para tanto, faz-se mister que o Estado ofereça-lhe proteção, a

qual deve se verificar não apenas no plano axiológico, mas também, no âmbito legal. Assim, advogamos

a necessidade de regulamentação normativa aos relacionamentos homoafetivos.

Para o individualismo, os direitos da pessoa humana são inatos ao homem, e

antecedem ao Estado. Assim, aqueles, funcionam como um “instrumento de limitação” desse. Em

matéria de orientação sexual - direito humano fundamental - o Estado assume dupla função: primeiro,

porque fica vedada a adoção de medidas que obstem a livre manifestação de orientação sexual; segundo,

é necessária a assunção de uma posição ativa, que viabilize, genuinamente, a concretização da liberdade

de identificação sexual. A omissão do Estado, em regulamentar a união homoafetiva, transgride o

direito humano fundamental à orientação sexual.

O vocábulo “dignidade” advém do latim dignitas e significa tudo aquilo que

merece respeito, consideração, mérito, ou estima.48 O respeito à dignidade humana está,

indubitavelmente, associado à orientação sexual da pessoa.

A dignidade da pessoa humana parte do pressuposto de que Homem, pela sua

própria natureza, possui direitos que lhes são inatos. Assim, merece respeito e proteção do Estado e da

sociedade. A tutela dos direitos fundamentais viabiliza a realização do Estado Democrático de Direito.

Face ao caractere de atributo inato à pessoa, a dignidade humana não pode ser

esbulhada. Toda pessoa possui dignidade, que é irrenunciável e inalienável. Dessa forma, qualquer

violação, ou, tentativa de transgressão à dignidade humana, merece reprimenda jurídica.

48 LEAL, Larissa Maria de Moraes. A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Disponível em: http://www.sces.br/direito/revista_fadica/dignidade_humana_2.pdf, acesso em: 18 de abril de 2004.

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59A dignidade da pessoa humana é o princípio constitucional que possibilita a

“plena realização” do bem-estar individual. O tratamento discriminatório aos homossexuais, justificado

pela sua orientação sexual, estremece a saúde psíquica dessas pessoas, conseqüentemente, inviabiliza-se

a “satisfação plena”.

SARLET, citando o Tribunal Constitucional da Espanha, expõe que a dignidade

é um valor espiritual e moral inato à pessoa, que se manifesta pela autodeterminação consciente e

responsável da própria vida, exigindo respeito por parte dos demais. 49 Segundo o autor, dignidade da

pessoa humana é:

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. 50 Ter dignidade significa possuir igualdade e liberdade para agir, para viver, e

para se expressar enquanto pessoa. A dignidade humana deve ser um instrumento de “satisfação plena

do estado de espírito”. Isso significa: eu, como pessoa, titular de direitos e obrigações, devo ter

preservada a minha integridade física e psíquica, ambas possibilitam “viver bem e bem viver”. Dessa

forma, a sociedade deve respeitar minha “opção de vida”, no sentido de escolher com quem viver, ou,

viver só.

O texto constitucional da Espanha (1978) estabelece, em seu artigo 14, a

igualdade dos espanhóis perante a lei, determinando que não pode haver discriminação em razão de

nascimento, raça, sexo, religião, opinião, ou, qualquer outra condição ou circunstância pessoal, ou

social. No mesmo sentido, prescreve a Constituição brasileira (1988), em seu artigo 3º, inciso IV,

quando coloca entre seus objetivos a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo,

cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nesse ponto, podemos asseverar que as duas

49 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 43. 50 Ibidem. p. 60.

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60Constituições se identificam, pois não permitem a discriminação à pessoa em razão de sexo, ou, outra

forma de discriminação.

Segundo disposições constitucionais, verificamos que o preconceito à união

homoafetiva ocorre em razão do sexo, ou melhor, da orientação sexual. Nesse caso, o discrímen incide,

tão-somente, na conduta sexual da pessoa de sentir-se atraída por alguém do mesmo sexo. Haja vista a

existência de uma Constituição, que assegura a igualdade de tratamento, dever-se-á repugnar toda

conduta segregatória aos homossexuais. Assim, permite-se a concretização da dignidade humana,

enquanto princípio fundamental da República Democrática Brasileira.

À dignidade humana, associa-se a saúde mental do indivíduo. Assim, a pessoa,

como titular de dignidade, merece a preservação de sua identidade pessoal e sexual. Além dessas, fala-

se também no respeito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem.

A pessoa humana e o princípio da dignidade são valores absolutos, por isso, hão

de prevalecer sobre qualquer outro valor, ou princípio.51

A dignidade, por ser considerada essência da pessoa, deve receber guarida

constitucional. Todo o Estado que se afirme Democrático de Direito tem que, necessariamente, obedecer

ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mesmo quando tal preceito, não venha consagrado em

seu texto constitucional.

A dignidade da pessoa humana encontra-se atrelada aos direitos fundamentais,

por essa razão, sua observância se obriga a todos os “órgãos” estatais (Executivo, Legislativo e

Judiciário). Além desses, cabe à sociedade a sua observância. No caso de sua violação, o Judiciário

deve ser provocado. Desse modo, possibilitar-se-á a concretização dos princípios constitucionais.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) foi um marco para o

reconhecimento constitucional da dignidade da pessoa humana. Mesmo nos Estados, em que esse

51 SARLET op.cit.

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61princípio não se encontra, na Constituição, sua observância é obrigatória. A ausência de prescrição legal

não autoriza sua violação.

Da dignidade da pessoa humana revelam-se mais dois princípios: o da

Igualdade e o da Liberdade. A dignidade possui o mesmo valor para qualquer indivíduo, por isso, são

vedados tratamentos discriminatórios, vexatórios e humilhantes à pessoa humana. Todos possuem

dignidade, não importa sua condição (biológica, social, racial, psicológica, sexual etc). O enfermo em

estágio terminal, o doente mental, o preso, a prostituta, o indigente e as demais pessoas, têm direito de

ver respeitada a sua dignidade.52

É vedado o tratamento diferenciado, entre as pessoas, justificado nas suas

particularidades, e.g, raça, sexo, cor, orientação sexual. Destarte, consagra o art. 1º da Declaração

Universal dos Direitos do Homem, de 1948: “Todos os homens nascem iguais em dignidade e direitos”.

O preâmbulo da Declaração estabelece, como alicerces, os direitos fundamentais do homem, a

dignidade, o valor da pessoa humana.

O princípio da dignidade da pessoa humana delineia as regras básicas a serem

observadas dentro de um Estado de Direito. Assim, podemos inferir que esse princípio é o ponto

norteador das tarefas estatais.

52 Podemos dizer que dentro desse grupo o indigente é o que mais sofre violação na sua dignidade. Esse indivíduo, pelo simples fato de ser pessoa, possui dignidade humana. Entretanto, as condições miseráveis de vida a que é submetido, nos leva à impressão de que o Estado, em momento algum, cumpriu com sua obrigação, ou seja, não assegurou-lhe o respeito à dignidade. São milhares de pessoas que parecem desprovidas de qualquer dignidade, pois se submetem a condições subumanas, esses indivíduos não têm moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, enfim, não possuem as condições mínimas de sobrevivência. Aqueles que possuem um teto para dormir, na maioria das vezes, não têm sequer uma estrutura de saneamento básico, vivendo em áreas sujeitas a alagamentos e suscetíveis a todos os tipos de doenças. Nesse grupo, há inúmeras crianças morrendo por inanição, outras, por simples moléstias. O constituinte de 1988 consagrou a Dignidade da Pessoa Humana, como princípio fundamental, isto é, trata-se de um alicerce do sistema jurídico, todavia, muitas vezes é espezinhado pelo próprio Estado que se responsabilizou por seu cumprimento. A dignidade da pessoa humana tem que ser observada sob o seu vasto campo de atuação, vedando-se o seu reconhecimento para “este” ou “aquele” indivíduo. Por essa razão, a prostituta, por mais vulgar que seja, possui honra, que é produto de sua dignidade. Desse modo, inferimos que as humilhações e vexames, constantemente sofridos, afetam a sua moral, ferindo-lhe a dignidade. Igualmente se verifica em relação ao homossexual, que ao expressar sua orientação sexual “diferente” do “normal”, vê-se submetido a importunos tratamentos jocosos e humilhantes.

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62A dignidade humana deve ser, concretamente, assegurada pelo Estado. Não

basta, tão-somente, consagrar o princípio em um texto de lei, faz-se mister sua efetivação. Desse modo,

cada vez mais, se faz patente a necessidade do Legislativo elaborar norma, reconhecendo a união

homoafetiva.

Enquanto a regulamentação legal não vem, é incumbência do juiz reconhecer, ou

não, a comunidade familiar. Para isso, faz-se necessário uma integração, do julgador, aos novos fatos

sociais.

O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece, não apenas, direitos e

garantias fundamentais, mas também, deveres. Por isso, assume dupla função: uma positiva, outra,

negativa. Quanto à primeira, o Estado está obrigado a reconhecer a dignidade humana, como princípio

fundamental. No que se refere à segunda, cabe ao ente estatal proteger o princípio, impedindo sua

violação.

Em relação às uniões homoafetivas, o Estado brasileiro já efetivou a primeira

função. O texto constitucional reconheceu a dignidade da pessoa humana, em seu artigo 1º, inciso III.

Todavia, no que diz respeito à segunda, ainda não houve uma real concretização, pois, o não-

reconhecimento da união homoafetiva, viola a dignidade de seus partícipes.

A dignidade humana está relacionada ao bem estar do indivíduo, configurando-

se como o direito que a pessoa tem de ver preservada suas integridades física e mental. Assim, qualquer

tratamento que venha causar prejuízos à saúde psíquica e física do ser humano, incide em violação ao

princípio constitucional. Portanto, as humilhações e vexames direcionados a atingir o ego da pessoa,

fazendo-na se sentir menosprezada perante os demais, é uma infringência à dignidade humana.

O Tribunal Constitucional da Espanha reconheceu que a falta de apreço às

uniões livres incide em violação à dignidade da pessoa humana, assim como também, obstaculiza o

livre desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido é a sentença da referida Corte (STC 184/1990, FJ

2º):

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63El libre desarrollo de la personalidad podría resultar afectado (...) si los poderes públicos tratam de impedir o de reprimir la convivência more uxório o de imponer el estabelecimiento del vínculo matrimonial, de manera que aquel tipo de convivencia no formalizada se viera expuesta a uma gravosa y penosa suerte o a suportar sanciones legales de cualquier índole.53 Nas considerações da STC 184/1990, FJ 2º 54, a conduta estatal, em impedir, ou,

reprimir o reconhecimento das uniões extramatrimoniais, viola o direito ao livre desenvolvimento da

personalidade. Desse modo, o Estado impõe, ainda que maneira indireta, o casamento, como o único

modelo digno a merecer proteção. A não regulamentação dos vínculos more uxório causa instabilidade

aos companheiros. Isso se verifica, porque, cabe apenas ao juiz, reconhecer, ou não, a existência da

entidade familiar.

O texto constitucional é o arquétipo do sistema jurídico brasileiro, porque elevou

a dignidade da pessoa humana, a princípio fundamental do Estado de Direito. Assim, a Constituição de

1988 consagrou a dignidade da pessoa humana em seu Título I, artigo 1º, inciso III, como princípio

fundamental da República Federativa Brasileira. Podemos considerá-lo então, o sustentáculo do sistema

constitucional e, conseqüentemente, de todo o ordenamento jurídico. Além desse dispositivo, é possível

encontrarmos, tal princípio, em outros artigos, como por exemplo, o art. 170, caput, prescreve que “a

ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos existência digna”; o art. 226, § 7º, assevera que

“o planejamento familiar é fundado no princípio da dignidade da pessoa humana”; o art. 227, caput,

preceitua que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o

direito à dignidade”; o art. 230, estabelece que “é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar

a dignidade do idoso”; o art. 34, VII, b, preceitua que “a União não intervirá nos Estados nem no

Distrito Federal, salvo, para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana (princípio

constitucional); o art. 5º, incisos, XLII e XLIII, respectivamente, prelecionam que “a prática de racismo

e tortura, são crimes inafiançáveis”; o inciso XLIX, ensina que “o preso merece ter respeitada a sua

integridade física e moral”.

53 Sobre o assunto, consultar: “Libre desarrollo de la personalidad”. In: LLORENT, Francisco Rubio. Derechos fundamentales y principios constitucionales (doctrina jurisprudencial). Barcelona: Ed. Ariel, 1995. p. 74.

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64Além dos dispositivos narrados acima, existem outros artigos, ao longo do texto

constitucional que, fazem referência à dignidade humana. Nesse caso, se reforça a afirmativa de que a

dignidade da pessoa humana é princípio absoluto, isto é, sustentáculo do sistema jurídico. Por essa

razão, quando o Direito for aplicado ao caso concreto, é imprescindível sua observância. Isso se verifica

com maior relevo nas demandas que versam sobre união homoafetiva, haja vista a omissão legal.

O artigo 1º, inciso III, da Constituição, que consagra a dignidade da pessoa

humana, como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, estabelece dois preceitos.

Concomitantemente, é uma declaração de conteúdo ético e moral, e uma norma jurídica positivada.

Essa, é dotada de eficácia e considera-se, o valor jurídico fundamental da comunidade.55

Enquanto norma jurídica positivada, a dignidade da pessoa humana é a “viga

mestra” do sistema jurídico (constitucional e infraconstitucional). A argumentação de que a união

homoafetiva não é uma entidade familiar, porque a Constituição não a reconheceu expressamente, não

merece apreço. Caso adotemos essa concepção, estaremos estabelecendo tratamento diferenciado a

pessoas que se encontram em situações semelhantes: no caso, a união livre heterossexual (união estável),

e a união homossexual (união homoafetiva). A primeira é reconhecida, ao passo que, a segunda, não

dispõe de regulamentação normativa.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor absoluto e fundamental

– guia – do sistema jurídico, devendo ser utilizado, obrigatoriamente, na atividade de interpretação,

integração e aplicação do Direito. Em matéria de união homoafetiva, esse princípio já vem sendo

aplicado pela jurisprudência. Vários são os julgados que se fundamentam na dignidade da pessoa

humana para o reconhecimento do “novo modelo de família”. 56

55 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 56 EMENTA: UNIAO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMONIO. MEACAO PARADIGMA. NAO SE PERMITE MAIS O FARISAISMO DE DESCONHECER A EXISTENCIA DE UNIOES ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E A PRODUCAO DE EFEITOS JURIDICOS DERIVADOS DESSAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS. EMBORA PERMEADAS DE PRECONCEITOS, SAO REALIDADES QUE O JUDICIARIO NAO PODE IGNORAR, MESMO EM SUA NATURAL ATIVIDADE RETARDATARIA. NELAS REMANESCEM CONSEQUENCIAS SEMELHANTES AS QUE VIGORAM NAS RELACOES DE AFETO, BUSCANDO-SE SEMPRE A APLICACAO DA ANALOGIA E DOS PRINCIPIOS GERAIS DO DIREITO, RELEVADO SEMPRE OS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA

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65Os princípios funcionam como guia do sistema jurídico. Assim, são

considerados mandados de otimização, obrigando o intérprete a utilizá-los, sempre que defrontar com o

caso concreto. Essa exigência se faz imprescindível, quando a questão versa sobre união homoafetiva.

Haja vista a inexistência de lei para aplicar-se à hipótese, é encargo do juiz utilizar os princípios e a

analogia, para a solução do caso in concreto.

Fernando Ferreira dos Santos entende os princípios como:

Os princípios são, pois, as normas-chaves de todo o sistema jurídico, o que significa a demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal, mas, sobretudo material, e apenas passível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder. 57 Segundo o artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, os princípios gerais

do direito apresentam um caráter subsidiário: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo

com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.58 Assim, não há como o juiz se isentar

de julgar, sob a alegação de que inexiste lei para o assunto. Nesse contexto, enquadram-se as uniões

homoafetivas, uma vez que inexiste norma regulamentando-a, todavia, há princípios que permitem o seu

reconhecimento.

Os princípios constitucionais encontram-se previstos na Constituição. Por isso,

são considerados normas positivadas e, como tais, orientam a tarefa interpretativa. Assim, a dignidade

da pessoa humana, enquanto princípio constitucional e fundamento do Estado Democrático de Direito

(art. 1º, III), sempre, deve ser observada nas demandas relacionadas à existência de união homoafetiva.

Segundo Alexandre de Moraes:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao

DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. DESTA FORMA, O PATRIMONIO HAVIDO NA CONSTANCIA DO RELACIONAMENTO DEVE SER PARTILHADO COMO NA UNIAO ESTAVEL, PARADIGMA SUPLETIVO ONDE SE DEBRUCA A MELHOR HERMENEUTICA. APELACAO PROVIDA, EM PARTE, POR MAIORIA, PARA ASSEGURAR A DIVISAO DO ACERVO ENTRE OS PARCEIROS. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70001388982, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, JULGADO EM 14/03/2001). 57 Idem. p. 87. 58 A Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) não se aplica, tão-somente, ao código civil, mas, a todas as leis existentes no ordenamento jurídico. Assim, a LICC funciona como preceito orientador das demais leis. A LICC prescreve, como fontes do direito: as leis, a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.

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66respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.59 A dignidade da pessoa humana exige que o Estado propicie ao indivíduo muito

mais que o direito à liberdade, mas também, qualidade e dignidade de vida. Isso significa oferecer, a

cada pessoa, condições mínimas de sobrevivência. Desse modo, poder-se-á concretizar a dignidade

humana, enquanto princípio fundamental da República Federativa Brasileira.

Sabe-se o quão difícil, ou, até mesmo impossível, é, ao legislador, prever todas

as hipóteses que possam vir a ocorrer. Por isso, o papel do juiz é fundamental ao analisar o caso

concreto, cabendo-lhe, diante da inexistência legal, solucionar a demanda por meio de outros

instrumentos. Nessa tarefa interpretativa, não se pode ignorar a conjuntura atual e social do Direito. Essa

necessidade se verifica com maior realce nos litígios decorrentes da dissolução de união homoafetiva,

pois, além de não haver lei sobre o assunto, existe uma certa resistência em reconhecer-se a orientação

sexual homossexual.

A análise da Constituição deve ser realizada de forma ampla, estando proibida a

interpretação isolada de seus dispositivos. Aqui, devemos atentar para o que ocorre nos artigos 1º, inciso

III; 5º, caput e 226, § 3º. O primeiro preceitua a dignidade da pessoa humana, como princípio

fundamental do Estado do Brasil; o segundo leciona que todos são iguais perante a lei; o terceiro

assevera que a união estável se verifica, apenas, entre um homem e uma mulher. Ora, entendemos que o

artigo 226, § 3º, é incompatível com o art. 1º, inciso III, e também, com o art. 5º, caput, pois, ao

restringir a união estável aos heterossexuais, violou os princípios da dignidade da pessoa humana e da

igualdade. Por isso, compreendemos ser inadmissível a leitura isolada do artigo 226, § 3º. Destarte,

admitimos a ocorrência da união estável entre os homossexuais.

É possível o reconhecimento da união homoafetiva, mesmo que não se faça uma

equiparação aos vínculos heterossexuais (união estável). O texto constitucional, ao reconhecer a

59 Alexandre de Moraes. Direito constitucional. 5º ed. revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 1999. p. 47.

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67dignidade da pessoa humana e a igualdade, e estabelecer a proibição de tratamento discriminatório, em

razão do sexo (art. 3º, inc. IV), permite o enquadramento daquela, como família.

A Constituição forma um “todo unitário”, assim, precisa ser interpretada na sua

íntegra. Desse modo, faz-se mister a harmonização entre os dispositivos constitucionais, como forma de

solucionar as possíveis controvérsias. A atividade interpretativa tem que levar em consideração os

princípios fundamentais, pois, são eles que orientam o sistema constitucional.

A dignidade da pessoa humana é o alicerce do sistema jurídico brasileiro. Desse

modo, funciona como norte na interpretação e aplicação do Direito. Em razão disso, é fundamental sua

utilização para o reconhecimento dos vínculos homoafetivos.

A negação de direitos às relações homoafetivas, sob o argumento de que não há

lei sobre a matéria, é produto de uma visão “estreita” do Direito. Numa concepção mais ampla, onde se

utilizem os princípios constitucionais, far-se-á possível a titulação de família às uniões constituídas entre

duas pessoas do mesmo sexo.

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68III – UNIÃO HOMOAFETIVA NO CONTEXTO DO DIREITO DE FAMÍLIA.

Reconhecer a união homossexual, no âmbito do Direito de Família, quando

revestida dos requisitos da união estável, é a nossa pretensão. A proposta é considerar as uniões

homoafetivas, como entidade familiar, tal qual são reconhecidos o casamento, a união estável e a

monoparentalidade.

A proteção estatal às famílias constituídas entre pessoas do mesmo sexo, é uma

forma de concretização dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Os companheiros de união homoafetiva devem receber o mesmo tratamento

legal daqueles que vivem em união estável. Ambas, se constituem de modo semelhante, além de

possuírem os mesmos caracteres, salvo, a diversidade de sexo.

1- Formas de constituição da entidade familiar.

Diante da presente análise, é importante estabelecermos algumas considerações,

sobre a formação da comunidade familiar.

A constituição da entidade familiar ocorre de duas maneiras: de modo solene, ou,

livremente. No primeiro caso, faz-se mister o cumprimento de determinadas formalidades legais. Quanto

à segunda forma, o vínculo familiar se origina, independente da verificação de qualquer critério formal.

Desse modo, ter-se-á, respectivamente: família de direito e família de fato.

Família de Direito é aquela constituída pelo matrimônio civil. Nessa espécie, a

formação da entidade familiar exige o cumprimento de formalidades legais. Quanto a família de direito

é produto da sociedade patriarcal, experimentada pelo Brasil, durante longos anos. Nesse tipo, é

indispensável o registro civil. Esse, funciona como prova sua existência.

Família de fato é aquela que se origina sem a observância de formalidades

legais. Nesse caso, seus membros manifestam o animus de constituir a entidade familiar, sem a

existência de prova documental específica.

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69Para a doutrina, a família de fato formar-se-á, predominantemente, por meio da

união entre um homem e uma mulher. Essa concepção é bastante restrita, uma vez que, desconsidera os

vínculos homossexuais. Sabe-se que tal entendimento é inviável, pois a união homoafetiva é uma

realidade, cada vez mais, presente.

A família, conforme vimos alhures, surge da necessidade que o homem tem de

se estabelecer em comunidade. O propósito de constituir o vínculo familiar, independente do

cumprimento de formalidades, dá ensejo à formação da família de fato.

Diariamente, é comum verificar-se a constituição de famílias de fato. Primeiro,

as pessoas vivem uma “fase de experimentação”, ou, “processo de adaptação”. Nesse, os enamorados

passam a habitar a mesma residência, antes da união “definitiva”. Então, inicia-se a divisão das

obrigações domésticas. Algumas vezes, os “testes” são seguidos pelo matrimônio, originando-se uma

família de direito, outras; os casais dão continuidade à família em união livre, i.e., à família de fato.

Tendo em vista que esta união é uma realidade, faz-se mister a proteção do Estado, para colocá-la a

salvo de qualquer injustiça.

A família de fato e a família de direito, apesar de parecerem diferentes,

apresentam bastantes pontos em comum. Ambas, se originam de um processo natural: a necessidade de

constituição do clã familiar. O desejo de estabelecer a comunhão plena de vida verifica-se tanto em

uma, quanto em outra. O vínculo de afeto se manifesta nas duas, independente da diversidade de sexo

entre os companheiros.

Nesse tópico, faz-se importante estabelecer uma breve comparação entre os tipos

de entidade familiar, apontando suas semelhanças e diferenças.

1.1 – União Homoafetiva e Casamento.

A principal diferença entre a união homoafetiva e o casamento encontra-se na

diversidade de sexo. No Brasil, somente é admitido o matrimônio heterossexual. Essa não é a previsão,

expressa, dos Códigos Civis de 2002 e de 1916, nem, da Constituição da República, de 1988. Presume-

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70se a obrigatoriedade do vínculo heterossexual, porque tais normas, quando se referem ao casamento,

sempre fazem menção às figuras masculina e feminina. Outra importante diferença encontra-se na

formação de cada um dos institutos. O casamento é uma família de direito, a união homoafetiva,

constitui uma família de fato.

O casamento é produto de uma convenção social dos povos, assinalando-se pelo

caráter cerimonial. Esse, caracteriza-se pelas “pompas matrimoniais”, v.g., vestido de noiva, véu e

grinalda, pajem e dama, recepção dos convidados etc. O “grande luxo”, até hoje utilizado, é produto da

valorização atribuída ao matrimônio, antigamente.

O casamento civil submete-se ao cumprimento de inúmeros requisitos. Esses

desenvolvem-se, desde o processo de habilitação, até a ocorrência da cerimônia. O casamento religioso,

igualmente, atende às mesmas exigências, desde que, requeridos os efeitos civis.

Zeno Veloso conceitua casamento com a seguinte lição:

O casamento é um contrato resultante da autonomia de vontade, do sentimento e da livre decisão dos interessados. Mas não é um contrato equivalente aos contratos de Direito das Obrigações – como a compra e venda, o empréstimo, a locação, etc – nos quais predomina o interesse patrimonial. O casamento é um contrato de índole especial, um contrato de Direito de Família, que gera uma relação jurídica submetida às normas de ordem pública. Há liberdade para celebrar casamento, mas os noivos têm de submeter-se aos efeitos essenciais do ato, previstos em lei e que não podem ser afastados pela vontade dos particulares. 60 Apesar das mudanças verificadas quanto à concepção de família, o casamento

civil continua destacando-se, como exemplo de entidade familiar. Mesmo diante desse contexto,

observa-se uma considerável expansão das uniões livres (homo ou heterossexual).

O casamento civil requer prévia habilitação. Nessa, analisam-se a capacidade dos

nubentes, e a existência de algum impedimento legal.

60 VELOSO, Zeno. O que você deve saber antes de se casar. In: LEONEL, Carla (coord). Casamento, Separação e Viuvez: seus direitos, seus deveres, p. 23.

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71O artigo 1.525 do Código Civil de 2002, determina que o requerimento para

habilitar-se ao casamento deve ser feito por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, por procurador,

devendo conter os seguintes documentos: certidão de nascimento, ou documento equivalente;

autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra;

declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir

impedimento que os iniba de casar; declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos

contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; certidão de óbito do cônjuge falecido, da sentença

declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença

de divórcio.61

O Código Civil, de 2002, trouxe uma inovação, ao preceituar a necessidade de

homologação judicial do processo de habilitação (artigo 1.526).

Após a exibição dos documentos, é realizado o proclama. Trata-se do edital de

casamento, que será fixado, durante 15 (quinze) dias, nas circunscrições do Registro Civil de ambos os

nubentes e, obrigatoriamente, se publicará na imprensa local, se houver. Esse ato é para tornar pública a

pretensão dos noivos. Assim, permite-se que todos tenham conhecimento do futuro matrimônio,

podendo alegar qualquer impedimento do qual tenham ciência. O casamento deve ser realizado num

período de 90 (noventa) dias, após a emissão do certificado de habilitação. O prazo é decadencial.

Os impedimentos matrimoniais encontram-se dispostos nos artigos 1.517, 1.521,

1.523 e 1.550 do Código Civil de 2002. O casamento exige ato público, solene e formal. Por essa razão,

o art. 1.534 CC/02, determina a forma de sua realização: “A solenidade realizar-se-á na sede do cartório

com toda a publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos duas testemunhas, parentes ou não dos

contraentes, ou, querendo as partes, e consentindo a autoridade celebrante, noutro edifício público ou

particular”.62

61 Consultar artigo 1.525 e incisos do código civil de 2002. 62 Consultar artigo 1.534 do Código Civil de 2002.

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72Conforme fora observado, a solenidade tem que ser realizada de portas abertas.

Isso é uma exigência da lei. O sim, proclamado pelos nubentes, tem que ser feito em voz alta. É

imprescindível à constituição do matrimônio que os noivos declarem, espontaneamente, que desejam se

casar. Assim, não se admitem vícios no consentimento dos contraentes.

Zeno Veloso, relata o seguinte:

Além da hipótese de ser apresentado algum impedimento, a celebração do casamento será imediatamente suspensa, se algum dos noivos recusar a solene afirmação da sua vontade, ou declarar que esta não é livre e espontânea, ou manifestar-se arrependido. O contraente que por algum desses fatos der causa à suspensão do ato, não poderá retratar-se no mesmo dia, quer dizer, por mais que retire o que afirmara antes, e garanta que deseja mesmo se casar, o celebrante não poderá prosseguir com a cerimônia, tendo de adiá-la.63 Face ao exposto, observa-se que a união homoafetiva, diferentemente do

casamento, não exige qualquer formalidade para ser constituída. Ao contrário, ela origina-se, livremente,

desde que, verificada a existência do vínculo de afeto entre os companheiros, e o animus de constituir a

entidade familiar.

63 VELOSO op.cit., p. 36.

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731.2 – União Homoafetiva e União Estável.

Tanto a união homoafetiva, quanto a união estável, são modelos de família de

fato. Ambas, apresentam as mesmas características, salvo, a identidade de sexo, na primeira, e a

diversidade, na segunda.

O instituto da união estável é bastante antigo. Anteriormente, denominava-se

concubinato. A nova acepção de família não permite mais o emprego desse vocábulo. Agora, as uniões

concubinárias são reconhecidas, enquanto sociedade de fato, e, não, como entidade familiar. Se, entre os

concubinos houver aquisição patrimonial, poder-se-á estabelecer uma partilha de bens, segundo as

regras do Direito Obrigacional, desde que, provado o esforço comum. Assim, evita-se o locupletamento

ilícito.

Antes do reconhecimento da união estável, estabelecia-se uma diferença entre

concubinato puro e impuro. Agora, basta utilizar o termo concubinato. Esse, corresponde ao antigo

concubinato impuro. O vocábulo união estável refere-se ao concubinato puro.

União estável é o vínculo entre um homem e uma mulher, que se desenvolve de

forma duradoura, pública e contínua, independente de lapso temporal. O principal objetivo dos

companheiros é a constituição da família.

Para se verificar a existência da união estável, faz-se mister o dever de lealdade

entre os companheiros. Além disso, exige-se, ainda, uma reciprocidade nos aspectos patrimoniais e

sentimentais.

O animus de constituir família é requisito imprescindível na união estável.

Assim, faz-se necessário que os companheiros tenham a intenção, isto é, o desejo maior de constituir um

lar em comum. Isso não significa a obrigatoriedade da vida sob o mesmo teto, mas, sim, a vontade de

constituir uma família. É, nesse sentido, a previsão da Súmula, nº 382, do STF.64 Inclusive no

64 Súmula 382 do STF: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”. Ressalve-se que o termo “concubinato” fora utilizado no sentido de união estável, uma vez que, antigamente, aquela era a denominação do instituto.

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74matrimônio, verifica-se a não exigência de morada em comum. Várias razões podem explicar tal

fenômeno, e.g., profissão, estudos, ou, opção das partes. Esse comportamento é uma tendência atual.

Nas lições de Zeno Veloso, união estável é:

Convivência duradoura, o que pressupõe uma relação estável, que se tenha prolongado por algum tempo. Não se prevê, mais um prazo certo, um período mínimo de vida em comum. É claro que estão afastadas da hipótese legal as relações passageiras, fugazes. Em caso de dúvida, decidirá o juiz, conforme as circunstâncias. Uma convivência que dura dois anos, por exemplo, pode ser considerada união estável, e um relacionamento que dura cinco anos não ser.65

Antes de seu reconhecimento, como família, a união estável fora bastante

discriminada. O instituto representava uma afronta à moral e aos bons costumes, assim como também,

era considerado um malefício ao matrimônio. Infelizmente, ainda, se verificam alguns vestígios desse

infortúnio. Isso não compromete a evolução ocorrida do Direito de Família, onde as uniões livres

sofreram um considerável avanço.

A proteção jurídica às relações homoafetivas complementarão o “processo

evolutivo” verificado no Direito de Família. Desse modo, resguardar-se-ia, sob a tutela estatal, não

apenas, a união livre heterossexual, mas também, a homossexual.

Agora, a união estável é reconhecida e protegida juridicamente. Sua previsão

legal encontra-se na Constituição da República de 1988, no Código Civil de 2002, e nas legislações

específicas – Lei nº 8.971/94 e Lei nº 9.278/96. Com exceção do texto constitucional, os direitos e

deveres entre os companheiros, vêm previstos nas demais normas.

A origem da união estável é muito antiga. Difundiu-se, bastante, numa fase em

que o Estado vedava a dissolução do matrimônio. A proibição do divórcio incentivou a formação de

famílias à margem da lei. Isso ocorreu, porque os casais separavam-se de fato, entretanto, permaneciam

65 VELOSO, Zeno. União Estável: Doutrina, Legislação, Direito Comparado e Jurisprudência. Belém: Ministério Público do Estado do Pará: Cejup, 1997. p. 69

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75casados legalmente. Desse modo, um deles, ou ambos, se uniam a outro (a) parceiro (a), para

constituírem novo vínculo familiar. Surgia, aí, uma família formada na união livre.

A figura do divórcio somente foi concebida, no Brasil, por meio da Emenda

Constitucional nº 9, de 28/6/77. A Lei nº 6.515, de 26 de dezembro 1977, regulamentou-o. Até então, os

cônjuges separados de fato constituíam nova família sem qualquer proteção legal. A atribuição de

efeitos jurídicos aplicava-se, apenas, aos consortes, isto é, àqueles casados legalmente. Assim, era

comum que o “novo” companheiro ficasse desprovido de proteção jurídica, mesmo, após anos de

convivência. Aos companheiros de união livre, atribuía-se a designação de mancebo, ou, amasiado.

Esses termos eram pejorativos, como tais, depreciavam a figura do companheiro, em relação ao cônjuge.

Para o reconhecimento da união homoafetiva, os homossexuais estão trilhando

um árduo caminho, antes, experimentado pelos companheiros de união estável. A batalha é bastante

difícil, pois infelizmente, reluta-se em reconhecer a realidade. O juiz é peça fundamental nessa luta. Por

meio de suas inovadoras decisões, pode o julgador, afastar o farisaísmo de concepções discriminatórias,

acerca da homossexualidade. No caso de omissão legal, o juiz deve se amparar nos princípios gerais do

Direito e na analogia, para concessão da tutela estatal. Desse modo, a integração entre julgador e fato

social é fundamental.

1.3 – União Homoafetiva e Família Monoparental.

A família monoparental, diferentemente da união homoafetiva, foi reconhecida,

de modo expresso, pela Constituição da República de 1988. Podemos considerá-la família de direito,

porque a identificação entre os pais e seus descendentes far-se-á, de modo solene, por meio do Registro

Civil de Nascimento. Ao mesmo tempo, também, pode ser verificada, enquanto família de fato, pois, a

ocorrência da moradia do (a) pai (mãe) com sua prole, não requer o cumprimento de formalidades

legais.

Família monoparental é a entidade familiar constituída por um dos pais e sua

prole, sendo reconhecida pela Constituição da República de 1988, em seu artigo 226, § 4º. Com o

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76estabelecimento da paridade de direitos e deveres entre o homem e a mulher, essa família pode ser

chefiada pela mãe, ou, pelo pai.

A família monoparental, apesar de se encontrar consagrada na Constituição de

1988, não foi recepcionada pelo Código Civil de 2002. Essa entidade familiar possui grande importância

no contexto social. Por isso, sua regulamentação, em lei especial, é necessária.

Segundo Ricardo Fiúza: “As famílias monoparentais, previstas no § 4º do art.

226 da Constituição Federal, assim conceituadas para fins de proteção do Estado, representam,

indubitavelmente, fenômeno social a ser considerado pelo legislador infraconstitucional”.66

1.4 – União Homoafetiva: uma breve noção67.

É a união estabelecida entre pessoas do mesmo sexo, onde o objetivo é a

constituição da entidade familiar. Esse “modelo de família” não é reconhecido pelo Direito. O fato tem

provocado inúmeras divergências, entre os juristas do Direito de Família.

Para o Direito brasileiro a união homoafetiva não pode ser considerada família,

haja vista que, as leis pátrias não regulamentam a matéria.

O Código Civil de 2002, assim como, o de 1916, determinam a diversidade de

sexo para a contração do matrimônio. A Constituição da República, ao reconhecer a união estável, como

entidade familiar, faz a mesma exigência.

Em relação, à disposição constitucional da união estável, há uma controvérsia,

para a inclusão, ou não, dos vínculos homoafetivos. Àqueles que compreendem a união homoafetiva,

como entidade familiar, a Constituição da República de 1988, no art. 226, § 3º, viola os princípios

66 ALVES, Jones Figueiredo e DELGADO, Mário Luiz. Novo Código Civil confrontado com o Código Civil de 1916. p. 75. 67 O termo União Homoafetiva é uma inovação da jurista Maria Berenice Dias (Desembargadora no Estado do Rio Grande do Sul). Optamos por utilizá-lo, ao invés de “União Homossexual”, pois é mais adequado para referir-se às relações familiares concebidas entre pessoas do mesmo sexo. Esse, o entendimento, uma vez que a nova acepção de família encontra-se fundada no vínculo afetivo, diferente daquela antiga concepção que vigorava à época do surgimento da monogamia. O vocábulo União Homoafetiva é a melhor terminologia, até então, para indicar os vínculos homossexuais, onde se estabelece uma verdadeira relação familiar. Nobilitamos a significativa atuação da Des. Maria Berenice, sobre a matéria.

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77constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e da igualdade (art.5º). Além disso,

consideram que as leis nº. 8.971/94 e 9.278/96 são inconstitucionais.

No que se refere ao aspecto normativo, existe apenas um Projeto de Lei, nº

1.151, de 1995, autoria da ex-deputada federal Marta Suplicy. Agora, o PL é representado por seu

Substitutivo, realizado pelo Relator do Projeto original – deputado Roberto Jefferson -. A proposta de

lei, regulamentando a união constituída entre pessoas do mesmo sexo, encontra-se tramitando na

Câmara dos Deputados - na verdade está arquivada por falta de interesse –. Deve-se ressaltar que o

Projeto de Lei não reconhece a união homoafetiva (união civil – denominação do PL), como entidade

familiar, mas, sim, como “parceria civil”. Apesar disso, sabemos que uma lei, desse porte, já seria um

grande início para o acolhimento do “novo modelo” de família.

Na união homoafetiva, da mesma forma que na união estável, verifica-se a

conjugação de esforços entre o casal, para a aquisição do patrimônio comum. Por isso, a omissão legal

pode causar prejuízo a um dos partícipes, face a locupletação ilícita do outro.

A legislação brasileira não reconhece ao companheiro do mesmo sexo o direito à

partilha de bens, tampouco, o direito à sucessão. Assim, verifica-se a necessidade, de serem formuladas

normas, às uniões homossexuais, principalmente, aquelas referentes ao Direito de Família, como, e.g., o

direito a alimentos, e a guarda de menor criado por casal homossexual.

A união homoafetiva é uma realidade, por isso, sua regulamentação legal, é

necessária. Desse modo, estar-se-á preservando a integridade física e psíquica do ser humano. A

evolução no Direito de Família precisa ser verificada, em relação às uniões homoafetivas. Para isso, é

imprescindível que nossos parlamentares retirem a venda do preconceito que os cega em relação à

homossexualidade.

2 – Óbices ao reconhecimento da união homoafetiva.

Infelizmente, ainda, se observa um considerável espezinhamento aos

homossexuais. O comportamento homofóbico é produto de uma cultura arcaica.

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78No Direito brasileiro, a tradicional concepção de família, revela uma instituição

formada pelo vínculo entre um homem e uma mulher. Neste caso, a formação da prole é indispensável.

O novo enfoque do Direito de Família adota uma visão bastante diferente. Agora, fala-se em união

hetero ou homossexual, e a procriação, não é imprescindível.

A Constituição da República, de 1988, reconheceu, expressamente, três

entidades familiares: o casamento, a união estável e a família monoparental. O texto constitucional foi

omisso em relação às uniões constituídas entre pessoas do mesmo sexo. Igualmente, ocorreu, no Código

Civil de 2002 – Lei 10.406/02.

Partindo-se de uma análise, precipitada e literal, do artigo 226, § 3º, da

Constituição da República, entender-se-á, como família, somente, a união livre heterossexual. Essa

interpretação inviabiliza o reconhecimento da união homoafetiva. Assim, as relações homoafetivas

ficam desprovidas de proteção legal.

O único instrumento legal que reconhece direitos aos vínculos homoafetivos é a

Instrução Normativa 25/2000 do INSS. Essa, prevê benefício previdenciário ao (à) companheiro (a)

homossexual. Sobre ela, dissertaremos mais à frente.

O artigo 226, § 3º, da Constituição, ao estatuir que a união estável é entidade

formada entre um homem e uma mulher, encontra-se em descompasso com alguns princípios

constitucionais. Entre esses, podemos destacar: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), a

igualdade (art. 5º), a liberdade (art. 5º). Há, também, uma incompatibilidade com relação a alguns

objetivos fundamentais, e.g.: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I); a

promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas

de discriminação (art. 3º, inc. IV). No mesmo dispositivo, transgride-se o direito à inviolabilidade da

intimidade, da vida privada, e honra da pessoa (art. 5º, inc. X).

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79Diante das incompatibilidades, acima apresentadas, podemos inferir que o

desconhecimento da união estável, aos vínculos homoafetivos, representa uma inconstitucionalidade

dentro da própria Constituição.

São apresentados inúmeros argumentos, para que as uniões homoafetivas não

sejam reconhecidas, enquanto entidade familiar. A principal justificativa, contrária à equiparação da

união homoafetiva à união estável, é a omissão constitucional. Até o momento, as uniões homoafetivas

consideram-se, apenas, como família sociológica.68 A Constituição limitou a união estável ao vínculo

heterossexual (artigo 226, § 3º). Desse modo, a nesciência da comunidade familiar homossexual ocorre,

tão-somente, em razão da identidade de sexo entre os companheiros.69

Contrariamente àqueles que não admitem a equiparação da união estável à

relação homoafetiva, há um grupo de doutrinadores e juristas que defende a semelhança dos dois

institutos. Para esses, se a união homossexual preencher todos os requisitos e características da união

estável, salvo, é claro, a diversidade de sexo, podemos considerá-la união homoafetiva. Desse modo,

ser-lhe-ão atribuídos os mesmos efeitos jurídicos da união estável.

União homoafetiva é aquela que se verifica de forma contínua, estável e

duradoura, entre duas pessoas do mesmo sexo. É fundamental que os companheiros tenham a finalidade

de constituir uma vida em comum. A comunhão de vida estabelece uma reciprocidade nas obrigações

domésticas. Quando a união homossexual se encontrar revestida desses caracteres, é inegável o

propósito familiar. Assim, faz-se mister a proteção no Direito de Família.

68 Outro exemplo de família sociológica é o “vínculo conjugal” estabelecido entre ascedentes e descendentes (família incestuosa). Vide: GAMA op.cit., p. 32. 69 Segundo Gama, a não-admissibilidade da união homoafetiva decorre de uma impossibilidade jurídica – igualdade de sexos -, pois o casamento (modelo de família) exige a heterossexualidade. Para ele, o reconhecimento da união estável, na Constituição da República, não abriu qualquer precedente para as relações homoafetivas, haja vista, a inexistência de condição sine qua non - diversidade de sexo – entre os companheiros. O autor, apesar de engendrar tais considerações, admite que a tendência atual é no sentido de medirem-se esforços, para que o Estado não marginalize o “novo modelo” de família.

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80Analisar a união homossexual, sob a ótica do Direito de Família, requer que se

leve em consideração a existência do vínculo de afeto entre os companheiros. É inconteste que os

objetivos patrimoniais se façam presentes, todavia, não são eles o sustentáculo do grupo familiar. A

“revolução social” ocorrida na família, trouxe-lhe uma nova acepção: “comunidade de afeto”.

Face à omissão legal acerca da união homoafetiva, é o princípio da dignidade

humana quem viabiliza o seu reconhecimento, como família. Nessa hipótese, o afeto é figura

imprescindível, pois, sua observância representa a preservação da dignidade. Essa acepção permite que

tais relações não fiquem restritas à simples “sociedade de fato”.

O afeto se verifica na união homoafetiva, no casamento e na união estável. Em

relação à primeira, observa-se uma certa resistência em reconhecê-lo. Isso provoca a desconsideração do

vínculo homossexual, como entidade familiar, equiparando-os, às sociedades mercantis.

Aplicar o Direito Obrigacional às relações homoafetivas, sob o argumento de

que não é família, porque não há lei considerando-a como tal, é inobservar a comunhão de vida

estabelecida entre os companheiros. Da mesma forma, essa conduta viola a dignidade humana daquelas

pessoas que possuem orientação sexual homossexual.

A negativa de conseqüências jurídicas do Direito de Família, às relações

homoafetivas, justificada, apenas, na identidade de sexo entre os parceiros, incide em grave violação aos

princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Assim, o não reconhecimento de

direitos incorre em discriminação por orientação sexual e, por conseguinte, quanto ao sexo. Isso ocorre,

porque a atribuição de tratamento diferenciado, se verifica, tão-somente, em razão do sexo da pessoa

escolhida, em relação, ao sexo da pessoa que a escolheu.

A discriminação por orientação sexual é uma hipótese de discriminação em

razão do sexo. Nesse caso, negam-se direitos à união homoafetiva, porque a pessoa manifesta sua libido

por alguém do mesmo sexo. Caso o desejo sexual e os sentimentos de afeto fossem dirigidos a alguém

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81do sexo oposto, a união seria reconhecida como família (união estável). Aí, atribuem-se, aos

companheiros, direitos e deveres, próprios da relação familiar. 70

O enfoque da união homoafetiva, no contexto do Direito de Família, requer que

se estabeleça um sopesamento entre o vínculo de afeto, e os objetivos patrimoniais que envolvem os

companheiros.

Interessante e, ao mesmo tempo, incongruente, é a lição de que o afeto, o amor, o

companheirismo e o animus de estabelecer uma comunhão plena de vida aplica-se, singularmente à

família heterossexual. O argumento, para tal restrição, é o de que a sistemática jurídica impõe o

princípio da monogamia. Desse modo, fica impossibilitado, às uniões homoafetivas, o seu

reconhecimento como entidade familiar.71

A “repersonalização das entidades familiares” pode ser observada na valorização

do afeto, do amor, da solidariedade, da união, do respeito, da confiança e do projeto de vida comum.

Esses elementos caracterizam a existência da família. Dessa maneira, são eles, as chaves para o pleno

desenvolvimento pessoal e social da pessoa.72

O “fenômeno de repersonalização” não tem aplicação restrita aos vínculos

formais e heterossexuais. Podemos observá-lo também, nas uniões informais e homossexuais.73

70 Sobre o assunto é interessante um estudo da obra: RIOS op.cit. 71 Gama, ao justificar seu posicionamento, alega que a Constituição, de 1988, estabeleceu, intencionalmente, uma distinção entre o matrimônio e a união estável, preferindo àquele. Aduz ainda, que inexistindo o propósito (do legislador constitucional) em equiparar os dois institutos, menor interesse haveria, para reconhecer a relação homoafetiva. É importante trazermos a lume a lição de Luiz Edson Fachin, para quem, é possível estabelecer-se uma analogia entre a união homoafetiva e a união estável, haja vista a lacuna da lei para regulamentar àquela. (nota de rodapé, nº 129, da obra abaixo indicada). Sobre o assunto, vide: GAMA op.cit., p. 60. 72 GAMA op.cit., p. 11. 73 Compreendemos que limitar a “repersonalização das entidades familiares” aos enlaces heterossexuais, como faz Gama, significa espezinhar a dignidade da pessoa humana - “princípio-sustentáculo” do Estado Democrático de Direito – e, a hermenêutica jurídica, que, se utilizadas, permitem-nos equiparar a união homoafetiva à união estável. O autor, apesar de não admitir as relações homoafetivas, reconhece que a orientação sexual é um atributo da personalidade, por isso, merece proteção do Estado.

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82Alguns doutrinadores entendem que a união estável homossexual, somente será

admitida, quando se permitir o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. O argumento, para tal

fundamentação, centra-se no fato de que o casamento é o modelo para as uniões informais (união estável

- heterossexual).74

Atribuir à união homoafetiva o caráter de entidade familiar, requer a observância

do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Isso ocorre, porque não há lei sobre a

matéria. Todos os “modelos” de família devem ser observados de forma isonômica, uma vez que, a

importância de cada um é a mesma para a sociedade. Por essa razão, são inadmissíveis tratamentos

discrepantes. 75

A união homoafetiva é um fato, como tal, o Estado não pode negar-lhe proteção.

Sua regulamentação normativa representa a concretização do princípio constitucional da dignidade da

pessoa humana. Isso não significa a imediata aceitabilidade do “novo modelo” de família, todavia, já

representa um considerável avanço, nesse sentido.

(...) é indispensável a normatização dessas famílias fundadas na informalidade, como forma de garantir o mínimo existencial, necessário para preservar a dignidade daqueles que mantiveram relações duradouras, contínuas, sólidas, baseadas no afeto, gerando uma autêntica família. 76

Criticamos a inadmissibilidade dos enlaces homossexuais, como família. Entendemos que a aplicação da dignidade humana, de forma restrita, ao companheirismo estabelecido entre um homem e uma mulher, não possui qualquer valia, pois, assim, estar-se-á violando princípio constitucional. Desse modo, aduzimos que o artigo 226, § 3º é inconstitucional, pois, encontra-se em descompasso com o artigo 1º, inciso III. 74 GAMA op.cit., p. 192. 75 Ressalte-se que não podemos limitar a atuação do Estado à união estável, conforme faz Guilherme Calmon Nogueira da Gama, mas, sim, devemos estendê-la a todos os tipos de família, caso contrário, estar-se-á violando a dignidade humana – princípio constitucional. 76 Sobre o assunto, consultar: Constitucionalidade da regulamentação do companheirismo. In: GAMA op.cit., p. 46 – 55. Aí, o autor leciona a importância do afeto e da intenção de se estabelecer uma comunhão de vida (física, econômica e espacial), para a formação da família. Além disso, verifica-se também que a interferência do Estado, na relação familiar, atua como um instrumento de precaução à parte mais fraca, evitando-se, posteriormente, o locupletamento ilícito.

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83A união homoafetiva é um fato notório, por essa razão, necessita ser observada

sob o enfoque jurídico e, não, apenas, sociológico. Negar-lhe direitos, próprios da família , significa

ignorar a realidade. Além disso, afeta-se a saúde psíquica de seus partícipes.

Os óbices para o reconhecimento da união homoafetiva são conseqüências de

uma visão, bastante positivista e conservadora de alguns juristas. Esses, na tarefa de julgar, afastam-se

da realidade, ignorando um fato notório: “a comunidade familiar homoafetiva”.

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843 – Enquadramento legal da união homoafetiva: Direito Obrigacional ou Direito de Família?

Conforme vimos alhures, não há um consenso quanto ao reconhecimento das

uniões homoafetivas. Para alguns, quando se encontrarem revestidas das características da união estável,

poderão ser consideradas, como tal. Entretanto, para outros é absolutamente, impossível atribuir-lhe o

caráter de família. Segundo essa corrente, a omissão legal, tanto da Constituição de 1988, quanto do

Código Civil de 2002, não autoriza a equiparação daquela à união estável.

Para a corrente que nega a existência de uma família, na união homoafetiva,

essa, deve ser analisada no âmbito do Direito Obrigacional. Assim, trata-se, apenas, de uma “sociedade

de fato”. Desse modo, para evitar o locupletamento ilícito de uma das partes, faz-se mister a divisão

igual do patrimônio, desde que, comprovado o esforço comum.

No caso de reconhecimento da união homoafetiva, como “sociedade de fato”,

sua análise normativa far-se-á nos termos do Direito Obrigacional. Assim, utilizam-se as seguintes

regras: o artigo 981 do Código Civil de 2002 (art. 1.363 do CC/1916). Esse dispositivo estabelece a

formação de uma “sociedade”; e a súmula 380 do STF. Essa aplicou-se bastante na dissolução de “união

estável”, anteriormente, denominada concubinato.

A Súmula 380 do STF surgiu em 1963, muito antes, da constitucionalização da

união estável. Sua finalidade principal era proteger as mulheres que, geralmente, ficavam desamparadas,

após o término da relação. A desproteção à união livre, antes chamada concubinato, é produto da

resistência legislativa.

Equiparar a união homoafetiva à “sociedade de fato”, é mercanciar a família, aí

existente. Tal conduta configura desrespeito aos seus partícipes, pois, os sentimentos de afeto são

preteridos, tão-só por valores patrimoniais. A ignorância da união homoafetiva suprime importantes

direitos dos homossexuais.

Se a relação homossexual possuir todos os requisitos da união estável, somados

ao animus do casal em constituir família, ter-se-á uma união homoafetiva. Assim, a convivência entre os

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85companheiros deverá ser: contínua, pública e duradoura. Para a corrente que advoga essa tese, é

imprescindível a existência do vínculo de afeto.

O propósito da vida em comum, com a divisão de tarefas domésticas, e

conseqüentemente, o compartilhamento de tristezas e alegrias, não se restringe às uniões heterossexuais.

O enquadramento da união homoafetiva, no contexto do Direito de Família,

confere-lhe conseqüências jurídicas, próprias desse ramo. Entre essas, podemos destacar: a meação, os

alimentos, e a sucessão.

Caso a união homoafetiva seja compreendida, enquanto “sociedade de fato”, a

competência para o julgamento de suas demandas será da Vara Cível. Entretanto, se o relacionamento

for considerado entidade familiar, essa competência, é da Vara de Família.

O Tribunal de Justiça, do Estado do Rio Grande do Sul, foi pioneiro no

reconhecimento da competência das Varas de Família, para o julgamento de demandas oriundas da

dissolução de união homoafetiva. A Oitava Câmara Cível entendeu que a diversidade de sexo, estatuída

pelo artigo 226, § 3º, da Constituição da República, não é admissível. Compreende-se, dessa forma,

porque a Carta Magna veda a discriminação por orientação sexual. Essa decisão foi significativa, pois,

elevou as uniões homoafetivas ao status de família.77

Alguns juízes não atribuem quaisquer efeitos jurídicos aos companheiros de

união homoafetiva. Esses, ao depararem com uma lide sobre a matéria, decidem pela “impossibilidade

jurídica do pedido” e, conseqüente arquivamento da demanda. A conduta é, bastante, radical. De modo

diferente àqueles que concebem a união homoafetiva, como “sociedade de fato”, essa corrente, não

reconhece sequer o pedido pleiteado pelo autor. Por essa razão, entendemos que, nestes casos, sempre,

haverá o locupletamento ilícito de uma das partes.

77 DIAS op.cit., p. 147.

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86O enquadramento da união homoafetiva, como “sociedade de fato”, apesar de

admitir a partilha dos bens adquiridos, pelo esforço comum dos companheiros, não atende às exigências

de justiça. Os partícipes da relação recebem tratamento diferenciado, tão-somente, em razão de sua

orientação sexual. Isso afeta, sobremaneira, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa

humana, da igualdade e da liberdade.

As divergências oriundas da dissolução de vínculo homoafetivo devem ser

solucionadas, conforme as regras de Direito de Família. Isso será possível, desde que, a união possua os

mesmos requisitos da união estável. Assim, é inviável a apreciação da lide, no juízo cível, com a

aplicação de normas do Direito das Obrigações.

É descabida a análise da união homoafetiva, como “sociedade de fato”. Desse

modo, estar-se-á reduzindo a família a uma “relação mercantil”. Hoje, a família funda-se no afeto. A

concepção patrimonial, aplicada à época do surgimento da monogamia, sendo o fundamento dessa,

agora, não se verifica com tamanha importância.

A comunidade familiar origina-se, fundamentalmente, sob dois pilares: o vínculo

de afeto e o animus de constituir família, estabelecendo-se uma comunhão plena de vida. Além desses,

não podemos deixar de ressaltar o escopo patrimonial, todavia, com menor intensidade do que aquela

verificada no surgimento da monogamia.

Aplicar às uniões homoafetivas, as regras do Direito de Família, é um meio de

concretização dos princípios da dignidade humana, da igualdade e da liberdade. Assim, estar-se-ão

atribuindo as mesmas conseqüências jurídicas, ao casamento, à união estável e à união homoafetiva.

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87IV – UNIÃO HOMOAFETIVA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS:

A constituição de união homoafetiva enseja a produção de algumas

conseqüências jurídicas. Essas, se verificam no âmbito do Direito de Família, do Direito Previdenciário

e do Direito Eleitoral, todavia, é em relação ao primeiro que assumem maior importância.

Antes de atribuirmos quaisquer conseqüências jurídicas aos vínculos

homoafetivos, faz-se mister, preliminarmente, observarmos o direito à identidade sexual homossexual, e

o nome civil. É fundamental o reconhecimento do direito à identidade sexual. A partir desse,

estabelecer-se-ão os demais.

1 – Identidade Sexual e Nome Civil:

A identidade sexual está associada à orientação sexual. Assim, a pessoa pode

sentir atração afetiva e/ou sexual por alguém do mesmo sexo, do sexo oposto, ou por ambos os sexos.

Conforme se manifeste essa atração, o indivíduo identificar-se-á homossexual, heterossexual e

bissexual, respectivamente.

A identificação sexual e o nome são direitos da personalidade. Por essa razão,

merecem proteção legal, assim como também, o respeito por parte dos demais. No caso de violação de

tais direitos, é incumbência do Estado proteger à pessoa.

A polêmica da identidade sexual e da troca do nome civil nota-se, com maior

freqüência, em relação aos transexuais. Esses, possuem um desajustamento entre o sexo biológico e o

sexo psicológico. Assim, no caso de mudança do sexo, faz-se mister a modificação do nome civil, para

uma adaptação à nova identidade.

A incompatibilidade entre a identidade sexual e o nome civil não é uma

ocorrência restrita aos transexuais, podendo se verificar, também, em relação aos homossexuais. Isso

ocorrerá, quando a pessoa sentir-se ofendida, em razão da desconformidade entre a sua identidade

sexual homossexual e o nome civil, que lhe foi atribuído à época do nascimento.

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88A incongruência entre a identidade sexual homossexual e o nome civil, ocorrerá,

principalmente, no caso de “travesti homossexual”. O travesti, diferentemente do transexual, não tem a

necessidade de alterar o sexo biológico para adaptá-lo ao psicológico. Esse indivíduo satisfaz-se, tão-

somente, com a utilização de indumentárias do sexo oposto. Em muitos casos o travestismo não se

restringe aos homossexuais, ao contrário, pode ser verificado, também nos heterossexuais. A presente

análise far-se-á na primeira hipótese, i.e., travesti homossexual.

Imaginemos a seguinte situação: um travesti homossexual traja-se, tal qual, uma

pessoa do sexo oposto, usando indumentárias que são comuns a esse sexo. Vejamos o exemplo a seguir:

um homem que se traja de mulher, usando vestido, saia, maquiagem, unhas pintadas, cabelos

modelados, objetos arredondados na direção das mamas, para indicar seios robustos. Somando-se a esses

fatores, é utilizado um cognome feminino, pelo qual, o sujeito deseja ser chamado. Suponha-se a

hipótese: essa pessoa (travesti homossexual), ao estabelecer sua vida em sociedade e, assim,

apresentando-se ao público, revela uma falsa imagem de seu sexo biológico – é um homem com

aparência de mulher. Esse indivíduo não quer mudar a anatomia de sua genitália, pois vive,

perfeitamente com ela, na forma de um pênis. Pergunta-se: “poderia o homem, em análise, alterar seu

prenome para adequá-lo a sua identidade sexual?” A resposta é objeto de grande controvérsia.

Vige, no Brasil, o princípio da inalterabilidade do nome. Assim, conclui-se que

o nome é imodificável. Ocorre, que esse princípio não é absoluto, permitindo-se, então, a alteração do

nome, desde que prevista em lei. A Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/73 – admite a mudança do

nome, quando expuser seu portador ao ridículo. Desse modo, poderíamos pensar, ser possível então,

àquele homem – do exemplo, solicitar a retificação de seu nome. Acontece, que a situação não é, tão

simples, como se supõe.

Os transexuais, após vencida a batalha para a realização da cirurgia de ablação,

enfrentam outra peleja, ao tentar adaptar o seu nome ao “novo” sexo. A única permissão para a mudança

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89do nome, ocorrerá quando, esse, submeter seu titular à exposição grotesca. A Lei de Registros Públicos

não estabeleceu uma previsão específica para o caso.

Tanto na hipótese dos transexuais, depois da mudança de sexo, quanto no

exemplo acima – homossexual que se traveste de mulher -, a solução deve ser fundamentada no

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Neste caso pode-se então dizer que o direito à

identidade sexual, e ao nome, são subespécies do direito à integridade moral, que é uma espécie de

direito da personalidade.78

Os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa, os quais, lhe

permitem a defesa de sua identidade, honra e reputação. Ora, a exposição da pessoa ao ridículo, em

razão da incongruência entre o seu nome civil e sua aparência externa, por si, viola os direitos da

personalidade e, conseqüentemente, afronta os direitos humanos.

Os direitos da personalidade, onde se inclui o direito à identidade sexual e ao

nome, são absolutos, imprescritíveis, indisponíveis, intransmissíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis,

por isso, precisam ser respeitados e protegidos pelo Estado. A recusa à mudança do nome, para adaptá-lo

à identidade sexual da pessoa, transgride princípios constitucionais. Entre esses, podemos destacar: a) a

dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), que é fundamento do Estado Democrático de Direito e,

como tal, deveria assegurar as liberdades individuais; b) a promoção do bem de todos sem quaisquer

formas de discriminação (art. 3º, inc. IV, parte final), que não se verifica na hipótese, haja vista, a

vedação à mudança do nome. A proibição ocorre, tão-somente, em razão da orientação sexual da

pessoa, acarretando-lhe um mal-estar psíquico; c) a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inc. II), os

quais, são preteridos por razões morais e conservadoras, impróprias à contemporaneidade; d) a

igualdade (art. 5º, caput), uma vez que, não se verifica a isonomia de tratamento entre as pessoas. Isso

ocorre, porque a vedação ao ajustamento da identidade sexual, ao nome, desrespeita a integridade física

e moral da pessoa, em relação às demais.

78 Classificação de Limongi França, citado por Maria Helena Diniz. In: DINIZ, op. cit., p. 99-101.

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90Face ao exposto, infere-se que nenhuma razão pode justificar afronta à dignidade

da pessoa humana, principalmente, quando essa violação incide no direito ao nome. É o nome quem nos

identifica, enquanto pessoa na vida em sociedade. Destarte, faz-se mister uma semelhança entre a

identificação sexual e o nome civil.

Se o direito à identidade sexual é direito humano fundamental, necessariamente

também o é o direito à identidade homossexual. 79

2 – Efeitos Jurídicos no Âmbito do Direito de Família:

O estabelecimento da entidade familiar enseja a produção de alguns efeitos

jurídicos. Entre esses, podemos destacar: a Competência das Varas de Família; o direito de meação; o

direito a alimentos; o direito de herança; a adoção, o Bem de Família etc.

A Constituição da República, de 1988, reconheceu, expressamente, três

entidades familiares: o casamento (art. 226, § § 1º e 2º), a união estável (art. 226, § 3º) e a família

monoparental (art. 226, § 4º). Em relação à união homoafetiva, o texto constitucional fora omisso.

A omissão legal da união homoafetiva não lhe retira o caráter de entidade

familiar. Portanto, mesmo inexistente a regulamentação constitucional, é possível seu enquadramento no

Direito de Família. Por conseguinte, ser-lhe-ão aplicados todos os efeitos jurídicos, próprios da

“comunidade familiar”.

O constituinte de 1988 traçou um considerável avanço, no que se refere ao

instituto da família. Aí, verificou-se, não apenas, o reconhecimento do casamento, mas também,

admitiu-se a união livre, constituída entre um homem e uma mulher (união estável). Essa, durante anos,

esteve desamparada. O legislador resistia em reconhecer a entidade familiar, que não obstante despida

de formalidades, encontrava-se fundada no vínculo de afeto. A omissão legal foi responsável pelo

caráter espúrio atribuído à união livre.

79 DIAS, op.cit. , p. 75.

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91Além do casamento e da união estável, a Constituição da República, de 1988,

reconheceu a família monoparental. A conduta foi bastante louvável, uma vez que, a habitação entre um

dos pais e sua prole, é um fenômeno que, paulatinamente, vem se expandindo. Nesse modelo, o pai e a

mãe assumem, ao mesmo tempo, as figuras masculina e feminina.

Observa-se que tanto a união estável, quanto a família monoparental, tiveram

seu reconhecimento retardado. A partir da Constituição de 1988, esse contexto se modificou. O

“fenômeno evolucionista” não se verificou de forma absoluta, todavia, representou um grande progresso

em matéria de família. A primeira, além de possuir duas legislações específicas (Leis nº 8.971/94 e nº

9.278/96), é tutelada pelo Código Civil de 2002. À segunda, ainda falta interesse do legislador em

regulamentá-la. Sua única referência normativa é o texto constitucional.

A união homoafetiva é uma realidade, por isso, merece tutela estatal. A omissão

normativa contribui, apenas para incentivar o tratamento discriminatório aos homossexuais, assim como

também, colabora para a afetação da saúde psíquica dessas pessoas, uma vez que, suas honra e

integridade moral são esfaceladas.

O homossexual não quer ter “dignidade” restrita, apenas, ao cumprimento de

suas obrigações perante o Estado, mas, sim, quer dignidade humana em sua plenitude. Isso significa:

cumprir seus deveres e, em contrapartida, receber do Estado ações positivas. Essas, devem permitir-lhes

ser tratado, enquanto pessoa, em todas as esferas, principalmente, naquela referente à orientação sexual.

Inserir a união homoafetiva, no campo do Direito Obrigacional, é depreciar o

vínculo de afeto que envolve os companheiros. Assim, valoram-se, tão-somente, os aspectos

patrimoniais da relação. Ambos, relação afetiva e interesse patrimonial, se fazem presentes na

comunidade familiar, todavia, a primeira assume maior importância que o segundo. Ora, se duas pessoas

se unem e partilham uma vida em comum, dividindo as alegrias e tristezas da relação, pergunta-se:

“estão elas imbuídas, apenas, por valores materiais? Será que inexiste qualquer vínculo de afeto? Até

que ponto, pode chegar a relação familiar despida de afeto?”.

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92As indagações apresentadas têm a finalidade de despertar o leitor para a relação

afetiva, a qual, deve funcionar como um norte na comunidade familiar. É claro que tal acepção, não

retira a concepção patrimonial de família, todavia, essa não pode sobrelevar-se àquela.

Aos que não aceitam o enquadramento da união homoafetiva, no contexto do

Direito de Família, alegando a omissão do texto constitucional e o fundamento de que, apenas, o afeto

não é suficiente para a formação da família, pergunta-se: “O que tem mais valor no grupo familiar: a

ambição de se adquirir um patrimônio, ou, a expressão irrefutável de afeto? Até que ponto estar-se-á

atendendo aos anseios sociais, quando limitamos a família ao modelo heterossexual? Por que razões, as

pessoas que têm orientação sexual homossexual podem ser excluídas do abrigo estatal? Será digno

atribuir-lhes, tão-somente, efeitos patrimoniais, como se houvesse uma relação de mercancia, quando, de

fato, houve um vínculo de amor? Será que os iguais não podem se apaixonar?”.

Visto que consideramos a união homoafetiva, como entidade familiar, uma vez

assinalada pelos caracteres da publicidade, continuidade, durabilidade e, principalmente, pela intenção

de constituir família, tal qual, a união estável prevista na Constituição da República, de 1988, far-se-á

uma análise de seus efeitos jurídicos, consoante as regra do Direito de Família.

2.1 – Competências das Varas de Família:

Face ao exposto, advogamos que as demandas decorrentes da dissolução de

união homoafetiva devem ser apreciadas nas Varas de Família. Mesmo porque a união homoafetiva,

assim como, a união estável e o matrimônio, deve ser considerada entidade familiar. Naquela, da mesma

forma que nesses institutos, há a intenção de se estabelecer uma comunhão plena de vida. Pena que

muitos legisladores não compreendam dessa maneira!

As Varas de Família são especializadas em solucionar questões próprias da

dissolução do vínculo familiar. Assim, assumem significativa importância, no contexto da família. Findo

um relacionamento, as partes, geralmente, estão magoadas, insatisfeitas, derrotadas, por não mais

conseguirem manter “a relação”, permeada de sonhos e esperanças. Esse descontentamento deve ser

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93analisado com cautela pelo julgador. Daí porque, se faz importante que sua verificação ocorra nas Varas

de Família, onde há especialistas sobre a matéria.

O término do relacionamento entre os cônjuges / companheiros, mesmo quando

realizado de forma amigável, representa um fracasso dos sonhos construídos a dois, à época do namoro.

Em virtude de toda esta peculiaridade que reveste as relações familiares, não seria adequado que se

discutísse o seu fim em outros juízos. Os membros das Varas de Família – juízes, promotores,

advogados e serventuários de justiça – estão mais preparados e treinados para atender aos seus atores –

casais fracassados, filhos deprimidos. Esses (atores), são, cautelosamente, observados por aqueles. A

audiência parece uma “terapia com o psicólogo”: de um lado, encontra-se o paciente (litigantes); de

outro, o conciliador (juiz e demais agentes).

As Varas de Família, à primeira vista, parecem um “consultório de análise”.

Nelas, as partes relatam suas angústias, numa expressão de “desabafo”. Não há como solucionar tais

infortúnios. Compreende-se apenas, que o afeto e o desejo de uma vida em comum chegaram ao seu fim.

Assim, perante o término do relacionamento, faz-se imprescindível a atribuição de conseqüências

jurídicas.

Não admitir a competência das Varas de Família, para solucionar as lides

decorrentes da dissolução de união homoafetiva, é recusar, aos seus partícipes, a aplicação do princípio

da igualdade. Isso ocorre, porque, apesar do vínculo homoafetivo se apresentar nos moldes da união

estável, deixa de receber os efeitos jurídicos dessa, tão-somente, em razão da identidade de sexo entre os

companheiros.

Os magistrados que trabalham com o mais humano de todos os direitos têm consciência de que o Direito de Família trata mais das questões do coração do que da razão, e nas demandas se discutem mais sentimentos do que leis e se dividem mais ressentimentos do que patrimônio.80 O Estado do Rio Grande do Sul foi pioneiro no reconhecimento da competência

das Varas de Família, para julgar demandas oriundas da dissolução de união homoafetiva. Uma vez

80 DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a justiça!: as pioneiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecem direitos às uniões homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 18.

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94estabelecida a competência das Varas de Família, todos os autos de processos, que havia nos juízos

cíveis, forma remetidos aos juízos especializados. Igualmente ocorreu com os recursos, que foram

enviados às câmaras especiais.81

A decisão que reconheceu a competência das Varas de Família, para apreciar

questões relativas à união homoafetiva, foi dada em sede de liminar, e pertence à Oitava Câmara Cível

do Tribunal de Justiça. Nela, invocou-se o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, sob

o argumento de que a diversidade de sexo, estabelecida no artigo 226, § 3º da Constituição, não impede

que se reconheça a relação homoafetiva, como união estável. Com essa decisão, o Tribunal de Justiça do

Rio Grande do Sul elevou as uniões homoafetivas, à categoria de entidade familiar, tal qual, são

reconhecidos o casamento e a união estável.82

2.2 – Partilha de Bens:

A partilha de bens corresponde ao direito de meação, ou seja, é a divisão do

patrimônio auferido, durante a vida em comum, no casamento, ela verifica-se após a dissolução da

sociedade conjugal – no caso de separação, ou do vínculo matrimonial – se houver divórcio. Da mesma

forma, se verifica com o término da união estável.

A constituição da comunidade familiar quer pelo casamento, quer pela união

estável, institui entre os sócios – cônjuges / companheiros – obrigações patrimoniais. A partir de então,

as expensas domésticas devem ser encargo do casal. Esse fenômeno adquiriu maior relevo, com o

estabelecimento da isonomia, entre o homem e a mulher, e a paridade de direitos e deveres entre os

cônjuges. Ambas, foram trazias pelo texto constitucional, de 1988 (art. 5º, I; art. 226, § 5º). Desse modo,

verifica-se uma responsabilidade solidária entre marido e mulher, companheiro e companheira.

A constituição do patrimônio comum, na entidade familiar, é possibilitada pela

união afetiva que envolve os consortes, ou, companheiros. A composição da massa de bens é produto da

81 No Rio Grande do Sul, da mesma forma que os juízes de primeiro grau, a instância recursal também é especializada. 82 Segue em anexo (p. 194), ao final do trabalho, o texto da decisão. Fonte original: DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. 2º ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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95conjugação de esforços materiais e espirituais do casal. O conteúdo patrimonial representa o crescimento

econômico da sociedade de afeto.83

O afeto é imprescindível na formação da entidade familiar, assumindo tal

importância, inclusive, para o estabelecimento dos interesses patrimoniais. Considerar a união

homoafetiva, como família, tal qual, ocorre com o casamento e com a união estável, é reconhecer a

“comunidade de afeto” que envolve o casal homossexual. Por conseguinte, possibilitar-se-á a atribuição

de efeitos jurídicos, próprios do Direito de Família.

Agora, os interesses patrimoniais não representam o fundamento para a

constituição da família, ao contrário, são uma conseqüência do vínculo de afeto. Assim, torna-se

impróprio restringirmos a entidade familiar ao animus patrimonial, conforme era verificado nos

primórdios da civilização.

Diante do “novo contexto do Direito de Família”, observa-se que o interesse

material, como alicerce para a constituição da entidade familiar, não se verifica mais. Esse quadro fora

observado, à época do surgimento da monogamia. Nesse período, os matrimônios não eram produto do

vínculo de afeto entre os noivos. Observava-se, tão-somente, a vontade dos pais, a qual, formar-se-ia,

conforme a disposição patrimonial de cada um dos nubentes.

Verificada a dissolução da affectio societatis, extingue-se a responsabilidade

solidária entre o casal, conseqüentemente, desaparece o regime de bens. No matrimônio, não importa

que se verifique apenas, a separação de fato, pois, é o afeto quem possibilita a formação da massa

patrimonial.84

O Código Civil de 2002, estabelece quatro regimes de bens: comunhão parcial;

comunhão universal; participação final nos aqüestos e separação. O regime legal é o da comunhão

83 MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS, Maria Berenice e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o novo Código Civil. p. 156. 84 Esse é o entendimento que vem sendo aplicado pela jurisprudência. Para Rolf Madaleno, é inviável falar-se em comunhão de bens, quando ausente o ânimo socioafetivo, pois, é esse, o real motivo da comunicação patrimonial. Sobre o assunto, vide: MADALENO, op. cit.

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96parcial, que será aplicado na ausência de pacto antenupcial. Ao lado do regime legal de bens, há o

regime da separação obrigatória, que ocorrerá nas hipóteses do artigo 1.641 do Código Civil de 2002. Os

nubentes, assim como, os companheiros, são livres para adotarem o regime de bens que melhor lhes

aprouver. O regime de bens tem início com a concretização do casamento, ou, união estável.

A novidade trazida pelo Código Civil, em matéria de regime de bens no

matrimônio, é a possibilidade de sua alteração. Isso será realizado, mediante autorização judicial, em

pedido motivado de ambos os cônjuges (art. 1.639, § 2º). Para a união estável, não há disposição nesse

sentido. Tal fato, não inviabiliza a modificação do contrato escrito firmado entre os companheiros,

entretanto, aí, diferentemente do casamento, não é necessária a outorga judicial.

O pacto antenupcial permite, não apenas, a instituição de um regime de bens

diverso da previsão legal, mas também, é por meio dele que se possibilita a adoção, simultânea, de dois

ou mais regimes de bens. Assim, para determinadas obrigações, os cônjuges podem estipular o regime

da comunhão parcial, enquanto para outras; o da comunhão universal, ou então, o da separação absoluta.

Nesse caso, não há, necessariamente, um critério a ser seguido.

Na união estável, é ausente a figura do “pacto antenupcial”, que é próprio do

casamento. Naquele modelo, vigora o “contrato escrito”, o qual, poderá dispor sobre o regime de bens

dos companheiros. No caso de ausência de contrato escrito, o regime legal de bens do matrimônio,

também, será válido para a união estável. O “contrato escrito”, tal qual, o pacto antenupcial, poderá

dispor sobre a ocorrência de dois, ou mais, regime de bens.

O Código Civil de 2002, ao dispor sobre o regime legal da comunhão parcial de

bens, atribuiu a mesma regulamentação para o casamento e para a união estável. Assim, no caso de

ausência do pacto antenupcial (matrimônio), ou de contrato escrito (união estável), vigora o regime da

comunhão parcial, conforme disciplinam os artigos 1.640 e 1.725, respectivamente.

O pacto antenupcial e o contrato escrito têm a mesma finalidade, todavia, sua

aplicação ocorre em institutos diferenciados. O primeiro, verifica-se no casamento, ao passo que o

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97segundo; na união estável. Apesar da semelhança, entre ambos, é possível apontarmos algumas

diferenças. Vejamos:

A constituição do pacto antenupcial deve ser realizada por meio de escritura

pública (art. 1.653, CC/ 2002). Para a formação do contrato escrito, não se faz necessário o cumprimento

de tal formalidade. Desse modo, admite-se o contrato particular firmado pelos companheiros. Todavia,

tanto no primeiro, quanto no segundo, para que se verifique a validade contra terceiros, é imprescindível

o Registro no Cartório de Imóveis (vide art. 1.657, do CC/ 2002 – pacto antenupcial). A eficácia do

pacto antenupcial e do contrato escrito, condiciona-se à ocorrência do casamento e da união estável,

respectivamente.

Para melhor compreensão da matéria, é interessante que façamos algumas,

breves, considerações acerca de cada um dos regimes de bens.

2.2.1 – Regime da Comunhão Parcial:

A comunhão parcial de bens é o regime legal. É comum a sua ocorrência, no

casamento, e na união estável. Dificilmente, os noivos estabelecem um pacto antenupcial, instituindo

regime diverso.

No regime da comunhão parcial, comunicam-se os bens adquiridos na

constância da entidade familiar (casamento / união estável), salvo, algumas exceções (art. 1.659, CC/

2002). Entre essas, podemos destacar: os bens anteriores ao casamento, os bens adquiridos por doação

ou herança e os sub-rogados em seu lugar; as obrigações anteriores ao casamento; os proventos do

trabalho pessoal de cada cônjuge etc.

Todos os bens que ingressam, onerosamente, no acervo patrimonial da família,

ainda que em nome de apenas um dos cônjuges / companheiros, pertencem ao casal. A administração do

patrimônio comum caberá a qualquer dos consortes.

No regime da comunhão parcial, verificam-se três “massas de bens”: os bens do

marido, os bens da mulher e os bens comuns (casal). Os bens particulares dos cônjuges são aqueles

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98existentes antes do casamento, assim como também, os bens excluídos da comunhão (art. 1.659, CC/

2002).

No regime da comunhão parcial, presume-se que os bens adquiridos, na

constância da entidade familiar – casamento /união estável -, são produtos da colaboração mútua entre

os parceiros.

A reciprocidade para a formação do acervo patrimonial, não se limita à ajuda

financeira. É possível, que o outro consorte não exerça atividade remunerada, responsabilizando-se, tão-

somente, pelos trabalhos domésticos. Mesmo aí, haverá colaboração mútua na formação dos bens

comuns. Desse modo, o cônjuge /companheiro “do lar” fará jus à partilha de bens.

A possibilidade do direito de meação ao consorte / companheiro que se ocupa

apenas das “tarefas domésticas”, representa a valorização do afeto existente na entidade familiar. Para a

construção do “patrimônio familiar”, o auxílio imaterial é, tão importante, quanto à colaboração

material.

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992.2.2 – Regime da Comunhão Universal:

Até o advento da Lei do Divórcio (Lei nº 6.515, de 1977), o regime legal era o

da comunhão universal de bens. Assim, no caso de inexistência de pacto antenupcial, aplicava-se tal

regime. Nessa modalidade, todos os bens, presentes e futuros dos cônjuges, e suas dívidas passivas, se

comunicam.

Apesar da comunicação total entre os bens particulares de cada um dos

consortes, formando-se a “massa comum”, há hipóteses de incomunicabilidade. Essas, vêm previstas no

artigo 1.668 do Código Civil de 2002. Não obstante a incomunicabilidade dos bens prescritos no artigo

1.668 do CC/ 2002, se houver frutos, na vigência do matrimônio, esses, comunicar-se-ão ao outro

cônjuge. Da mesma forma que na comunhão parcial, o patrimônio comum será administrado por ambos

os consortes.

A partir de 26 de dezembro, de 1977, data de publicação da Lei do Divórcio, a

adoção do regime da comunhão universal de bens, requer a previsão em pacto antenupcial. Esse, para ter

eficácia, precisa atender às formalidades, previstas nos artigos 1.653 ao 1.657, do Código Civil de 2002.

Aos matrimônios realizados antes daquela data, automaticamente, aplicava-se a comunhão total de bens.

2.2.3 – Regime de Participação Final nos Aqüestos:

O regime de participação final nos aqüestos é uma figura nova, no Direito

Brasileiro. Sua introdução ocorreu com o Código Civil de 2002. Essa modalidade, substitui o regime

dotal previsto no Código de 1916.

A participação final nos aqüestos é um regime híbrido, onde se verifica o regime

da separação de bens e o regime da comunhão parcial. Em razão de sua peculiaridade, e também, por

ser um fenômeno novo, pouco se encontra na doutrina, comentários à matéria.

No regime de participação final nos aqüestos, as ocorrências do regime da

separação de bens e da comunhão parcial, observam-se em momentos diferenciados. Durante a

vigência do casamento, vige o primeiro, ao passo que, na sua dissolução, verifica-se o segundo.

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100Nesse regime de bens, cada cônjuge tem patrimônio próprio, cabendo-lhe, à

época da dissolução do matrimônio, o direito de meação quanto aos bens adquiridos, onerosamente, pelo

casal, na vigência do casamento.85

Integram o patrimônio particular do cônjuge, os bens que cada um possuía, antes

do matrimônio, e os adquiridos na constância da sociedade conjugal, a qualquer título. Nesse último

caso, observa-se o regime da separação de bens. Em razão disso, cabe ao consorte proprietário a

administração exclusiva dos bens, podendo alienar os móveis. No que se refere à alienação de bens

imóveis, apesar da particularidade patrimonial, é necessária a outorga do outro cônjuge. Aqui, podemos

apontar a ocorrência do regime da comunhão parcial de bens.

A divisão dos aqüestos ocorre com a separação judicial, ou, com o divórcio. No

direito de meação, somente irão ingressar os bens adquiridos a título oneroso, e na vigência da sociedade

conjugal. Com o término do matrimônio, o cônjuge não-proprietário terá direito sobre os bens alheios.86

Para Rolf Madaleno, o regime de participação final nos aqüestos é,

verdadeiramente, um regime de separação de bens, onde cada consorte pode administrar, livremente o

seu patrimônio particular, podendo dispor dele, se for móvel, e necessitando da outorga do cônjuge, se

imóvel.87

85 Vide artigo 1.672 do Código Civil de 2002. 86 MADALENO, op. cit. p. 172. 87 MADALENO, op. cit. p. 171.

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1012.2.4 – Regime de Separação de Bens:

No regime da separação de bens, cada cônjuge possui seu próprio patrimônio,

sendo incomunicáveis os bens presentes e futuros. Nesse caso, tem-se um patrimônio particular do

marido, e um patrimônio particular da mulher. A administração dos bens é exclusiva do proprietário, que

poderá, sem a outorga do outro cônjuge, aliená-los ou gravá-los de ônus real.

Apesar da particularidade sobre os bens, cabe a ambos os cônjuges a

responsabilidade pelas expensas domésticas, todavia, é possível que os nubentes estipulem,

diversamente, em pacto antenupcial. A aplicação do regime da separação de bens requer o

estabelecimento de pacto antenupcial, onde fique ressalvada a separação “total” de bens.

O Código Civil de 2002, no artigo 1.641, estabelece as hipóteses, onde o regime

da separação é obrigatório. Essa matéria é objeto de bastantes controvérsias, entre elas, a principal

encontra-se prevista no inciso II. Aí, impõe-se ao maior de 60 (sessenta) anos a adoção do regime de

separação de bens. A polêmica é grande, porque, nesse caso, presume-se a “incapacidade” da pessoa,

tão-só, em razão de sua idade. Desse modo, viola-se o princípio constitucional da dignidade da pessoa

humana (art. 1º, inc. III).

2.2.5 – Partilha de Bens na União Homoafetiva:

Conforme se verificou alhures, a partilha de bens corresponde ao direito de

meação que o cônjuge / companheiro faz jus, em razão da vida em comum. Os bens adquiridos, durante

a existência da entidade familiar, submetem-se à regulamentação normativa. Essa, visa proteger o

patrimônio conquistado pelo esforço comum.

A constituição da entidade familiar encontra assento na affectio societatis. Essa

comunidade objetiva a formação de um patrimônio comum, onde ambas as partes (casal) prestem

colaboração. A cooperação não está restrita à ajuda financeira, podendo verificar-se de outras maneiras,

e.g., na execução exclusiva, dos trabalhos domésticos. Hoje é crescente o número de homens (marido/

pai) que realiza os trabalhos do lar. Essa função, durante anos foi executada, tão-só, pela mulher.

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102O auxílio imaterial é tão importante quanto à colaboração financeira (material),

pois a entidade familiar, para se manter viva, necessita que uma das partes – marido ou mulher -, ou

ambas, funcionem, como o “arrimo” do grupo. Aqui, entenda-se o “arrimo” no aspecto emocional.

Os parceiros homossexuais, da mesma forma que os cônjuges e os

companheiros, partilham tristezas e alegrias, assim como também, conjugam esforços para a formação

do patrimônio comum. É inegável a existência da affectio societatis nos vínculos homoafetivos. Rejeitá-

los, recusá-los, marginalizá-los, tão-somente, em razão da orientação sexual de seus partícipes, é repelir

a dignidade humana a que todos têm direito. O direito à dignidade humana verifica-se pelo simples fato

do indivíduo ser pessoa, devendo ser tratado, como tal, em todas as suas relações.

Para a realização de um Estado Democrático de Direito, conforme estabelecido

no artigo 1º, caput, da Constituição da República, não basta, a prescrição de princípios, como a

dignidade da pessoa humana e a igualdade, faz-se mister sua concretização. Isso, somente será possível,

quando o Estado reconhecer, sem quaisquer restrições, os mesmos direitos às pessoas que se encontram

em situações análogas. A observância desses princípios deve verificar-se, principalmente, em matéria de

orientação sexual, que é um direito humano fundamental.

Não há razão que justifique a inadmissibilidade do direito de meação, aos pares

homossexuais que constituem uma entidade familiar. Argumentar que o texto constitucional não lhes

deu guarida, porque se exige a diversidade de sexo para a formação da união estável, é renegar

princípios basilares do Estado de Direito. Além disso, tal atitude, representa uma postura positivista e

conservadora, com a observância, tão-só, literal do texto de lei.

Face ao exposto, entendemos que em havendo união homoafetiva, é cabível o

regime da comunhão parcial de bens, quando os companheiros não dispuserem, de modo diverso, em

contrato escrito. Assim, estar-se-á aplicando o mesmo efeito jurídico do casamento e da união estável,

aos vínculos homoafetivos.

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103O contrato escrito estabelecido na união homoafetiva, para disciplinar o regime

de bens, é o mesmo que se verifica na união estável (art. 1.725, CC/ 2002). Portanto, equipara-se ao

pacto antenupcial do matrimônio (arts. 1.653 a 1.957, CC/ 2002).

Mais uma vez, a justiça gaúcha foi pioneira numa decisão, em que se elevou a

união homoafetiva ao status de família. Nessa, reconheceu-se aos companheiros homossexuais o direito

à partilha dos bens, havidos durante a vida em comum. O julgamento foi de uma apelação, realizado

pela Sétima Câmara Cível, tendo como relator, o Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis.

O relator, inteligentemente, argumentou a necessidade de observarmos a união

homoafetiva, como verdadeira entidade familiar, sendo descabido e inconcebível negar-lhe direitos, em

razão de hipócritas valores morais. 88

Quando o vínculo homoafetivo preencher os requisitos da união estável, poder-

se-lhe-ão aplicar os regimes de bens do Código Civil, desde que, observadas as exigências legais.

Assim, se os companheiros optarem por regime diverso da comunhão parcial, é necessária a elaboração

de contrato, dispondo sobre a relação e prescrevendo o regime de bens. Desse modo, ficar-se-á, a salvo

de qualquer injustiça.

2.3 – Alimentos:

O direito a alimentos, também denominado pensão alimentícia, é o auxílio

prestado ao ex-cônjuge / ex-companheiro, e /ou à prole, em decorrência da dissolução da entidade

familiar. O direito a alimentos decorre da relação de parentesco ou afinidade, entre o alimentante e o

alimentado, são devidos os alimentos do pai, em relação ao filho, e vice-versa, e também, do ex-cônjuge

/ ex-companheiro, em relação ao outro, sempre que, se verificar a necessidade alimentar.

O direito a alimentos não compreende, apenas, os alimentos, propriamente ditos,

mas também, engloba outras necessidades. Entre essas, podemos apontar: educação, saúde, transporte,

88 Segue em anexo (p. 198), ao final do trabalho, o texto da decisão. Fonte original: DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. 2º ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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104vestuário, lazer etc. Conforme leciona Francisco José Cahali, “os alimentos podem ser identificados

como tudo aquilo que é destinado estritamente à sobrevivência da outra pessoa, à manutenção de sua

vida, compreendendo a alimentação, saúde, vestuário, habitação, nos limites necessários à sobrevivência

(necessarium vitae). Assim, são os chamados alimentos naturais ou alimentos necessários”. O jurista

ressalta, ainda, que os alimentos podem ser empregados em outras necessidades, e.g., recreação,

desenvolvimento intelectual, bem-estar, assim como também, em recursos econômicos diversos. Nesse

caso, a pensão alimentícia verificar-se-á em razão da posição social dos cônjuges. Aí, os alimentos serão

denominados civis ou côngruos.89

A determinação das despesas a serem cobertas pela pensão alimentícia, é

bastante variável, adaptando-se à condição social de cada família. Assim, o credor pode perceber

alimentos para atender, tão-somente, as suas necessidades primitivas, são os chamados alimentos

necessários. Aí, incluem-se os grupos familiares de baixo poder aquisitivo. Além dessas, é possível que

a pensão alimentícia cubra outras expensas. Aqui, visa-se a manutenção do padrão de vida do credor (o

mesmo que possuía na vigência da entidade familiar). Desse modo, os alimentos destinam-se a assegurar

os seguintes costumes: viagens constantemente realizadas em família; a freqüência a cursos de língua,

academia de ginástica, clubes desportivos, salões de beleza, restaurantes etc.

A manutenção do padrão de vida do ex-cônjuge / ex-companheiro e dos filhos,

deve observar os limites da razoabilidade. Para isso, é necessário reconhecer-se que a separação do

casal, indubitavelmente, reduz o padrão de vida de ambas as partes. A partir dela, assume-se a mantença

de dois lares, o que é extremamente oneroso. Destarte, somente será viável a manutenção do “estilo de

vida”, se a obrigação alimentar não comprometer a sobrevivência do alimentante.

A pensão alimentícia, sempre, deve ser representada por pecúnia, ainda que as

partes estabeleçam acordo noutro sentido. Isso não significa que uma parcela dos alimentos não possa

ser paga, por meio da quitação de determinadas despesas do alimentando. Assim, é possível que o

89 CAHALI, Francisco José. A pensão alimentícia entre os cônjuges. In: LEONEL, op. cit., p. 205 e 206.

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105devedor fique responsável pelo pagamento do IPTU (imóvel residencial do credor); pelas mensalidades

escolares dos filhos; pela manutenção do plano de saúde etc. Mesmo com a responsabilidade por tais

expensas, o alimentante fica obrigado a entregar certa quantia em dinheiro.

O direito à percepção de alimentos será possível, sempre que, o alimentado não

puder prover, pelo seu trabalho, a própria mantença. Todavia, deve haver uma proporção entre a

necessidade do credor, e a possibilidade financeira do devedor, obedecendo-se ao mínimo existencial

para a sobrevivência desse.

Aos alimentos, não fazem jus, apenas os filhos em relação aos pais, e vice-versa.

A obrigação alimentícia se estende, infinitamente, entre os parentes em linha reta, sendo que os mais

próximos, terão preferência aos mais remotos. Nesse caso, a ordem de vocação hereditária deve, sempre,

ser obedecida.90

O Código Civil de 2002 reconheceu o direito a alimentos, aos cônjuges e aos

companheiros. Todavia, no que se refere à união estável, o legislador não regulamentou, devidamente, a

matéria. Em razão disso, devemos compreender que os dispositivos referentes à pensão alimentícia dos

companheiros, devem ser interpretados, tal qual, o direito a alimentos dos cônjuges, quando findo o

matrimônio. Assim, a obrigação alimentar decorrente da dissolução de união estável, deve ser analisada

à luz dos artigos 1.702 e 1.704 do Código Civil de 2002.91

2.3.1 – Alimentos na União Homoafetiva:

O direito a alimentos pode ocorrer da dissolução da entidade familiar, ou do

vínculo de parentesco. Cabe-nos aqui, tratar da primeira hipótese, quando dissolvida a união

homoafetiva. Para isso, da mesma forma que na partilha de bens, far-se-á um paralelo entre a união

homoafetiva e os institutos do casamento e da união estável.

90 CAHALI, Francisco José. Dos alimentos. In: DIAS e PEREIRA, op. cit., p. 182 e 183. 91 Ibidem. p. 190 e 191.

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106A separação dos cônjuges, assim como também, o desfazimento da união

estável, autorizam a concessão de alimentos, desde que, verificada a necessidade. Outorgar pensão

alimentícia ao ex-consorte / ex-companheiro, auxilia na reestruturação da vida dessas pessoas, após a

dissolução da família. Cabe aqui explicitar que os alimentos não devem ser concedidos, com vistas a

incentivar a vadiagem e a ociosidade de quem os percebe. Não foi essa a intenção do legislador.

Reconhecer o direito de pensão alimentícia, àquela pessoa que sempre esteve ao

lado, partilhando os momentos mais difíceis da vida em comum, significa valorizar o afeto existente na

entidade familiar. Às vezes, somente uma das partes exerce atividade remunerada, enquanto a outra, se

ocupa dos afazeres domésticos. Esse quadro causa grande dependência financeira, e também

psicológica, do cônjuge / companheiro encarregado dos “serviços domésticos”. No momento em que

chega a hora da separação, o sofrimento do “sustentado” é maior, pois, além de ver seus sonhos

esfacelados, amarga a insegurança da estabilidade financeira.

A concessão de alimentos, em favor do ex-cônjuge / ex-companheiro, tem o

cunho protetivo de garantir o mínimo existencial à sobrevivência. Assim, estamos perante um direito

que visa resguardar a dignidade da pessoa humana.

Ora, se o direito à pensão alimentícia tem a finalidade de amparar quem dela

necessite, garantindo a saúde física e mental da pessoa, e conseqüentemente, preservando sua dignidade

humana, faz-se mister outorgá-la não apenas ao ex-cônjuge / ex-companheiro (união estável), mas

também, ao parceiro homossexual que partilhou uma vida em comum.

Negar alimentos ao ex-companheiro homossexual, sob a alegação de que

inexiste lei regulamentando a matéria, é tratar com farisaísmo as uniões homoafetivas, que são uma

realidade. Além disso, tal negativa, fere a dignidade humana e inviabiliza a concretização do princípio

da igualdade. Haja vista o fato de enquadrarmos a união homoafetiva, no contexto do Direito de

Família, entendemos que o parceiro homossexual faz jus aos alimentos, da mesma forma que o

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107companheiro de união estável. Destarte, aplicam-se os artigos 1.702 e 1.704 do Código Civil de 2002,

conforme explicado alhures.92

O direito a alimentos se extingue, a partir do momento em que o credor contrai

novas núpcias, ou passa a viver em união estável (art. 1.708, CC/ 2002). Essa última hipótese, não tem

correspondência no Código Civil de 1916. A extinção da obrigação alimentar era prevista no art. 29, da

Lei do Divórcio (Lei 6.515/ 77), o qual, preceitua: “o novo casamento do cônjuge credor da pensão

extinguirá a obrigação do cônjuge devedor”.

Apesar da previsão legal, à época, ser restrita à constituição de novo matrimônio,

inúmeras demandas surgiram, pleiteando o fim da prestação alimentícia, em virtude do alimentado

constituir nova união estável. A jurisprudência, paulatinamente, deferia os pedidos. Isso mostra que os

juízes atuaram em compasso à nova contextualização da família, pois, solucionavam as lides, mesmo

diante da omissão normativa.

Ora, se o credor de alimentos perde esse direito com a constituição de novo

matrimônio, ou união estável, a obrigação alimentar também deve se extinguir, se o alimentando passa a

viver em união homoafetiva. Com esse entendimento, estar-se-á, analisando a família, sob sua nova

acepção. É dessa forma que a jurisprudência deve se manifestar, haja vista, a ausência de lei sobre a

matéria. Assim, ficam reconhecidos aos companheiros homossexuais, não apenas os direitos, mas

também, os deveres, decorrentes da relação familiar.

A obrigação alimentícia, na união homoafetiva, é algo tão polêmico que, até

então, a única notícia sobre a matéria, da qual temos conhecimento, foi de uma demanda ocorrida no Rio

Grande do Sul. Aí, a companheira homossexual pleiteou o direito a alimentos, após uma vida em

92 Francisco José Cahali entende que a regulamentação dos alimentos devidos na união estável, deve seguir as mesmas regras da pensão alimentícia verificada no matrimônio, uma vez que, o legislador fora omisso sobre a matéria. Estendemos essa interpretação aos vínculos homoafetivos, pois, compreendemo-los enquanto família., tal qual, o casamento e a união estável. Assim, negar pensão alimentícia aos companheiros homossexuais, é estabelecer tratamento diferenciado a pessoas que se encontram em situação análoga (união estável e união homoafetiva). Sobre o assunto, consultar: CAHALI, Francisco José. Dos alimentos. In: DIAS e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o Novo Código Civil. 1º ed. 2º tir. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

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108comum, durante 8 (oito) anos, com uma parceira do mesmo sexo. O pedido liminar de alimentos

provisórios foi rejeitado sob a argumentação de que o relacionamento homoafetivo não encontra

respaldo em nenhuma das leis que regulamentam o direito a alimentos. A negativa se deu, tão-somente,

pela identidade de sexo entre as companheiras. Se o caso fosse de união estável, aplicar-se-ia o direito a

alimentos. 93

2.4– Bem de Família.94

O “bem de família” é a propriedade que garante a sobrevivência da entidade

familiar. É o local, onde os membros do clã conjugam seus esforços com vistas ao crescimento pessoal e

econômico. É o patrimônio mínimo do grupo familiar, pois, além de garantir sua sobrevivência,

resguardá-o das perturbações externas. Portanto como tal é regulamentado pelo Código Civil de 2002,

em seus artigos 1.711 a 1.722, e também, por lei especial, nº 8.009/90 (Lei do Bem de Família).

A Lei 8.009/90 estabelece, em seu artigo 1º, que o “bem de família” é o imóvel

próprio do casal, ou da entidade familiar, determinando a sua impenhorabilidade. O Código Civil de

2002, no artigo 1.711, preceitua, como “bem de família”, o patrimônio indicado pelos cônjuges, ou pela

entidade familiar.

Se observarmos o Código Civil de 2002 e a Lei 8.009/90, perceber-se-á que a

regulamentação do bem de família apresenta algumas diferenças. Apesar da existência dessas, a

finalidade de ambas as normas é a mesma, i.e., a conservação do mínimo existencial no clã familiar.

Assim, a garantia do “bem de família” representa a preservação da dignidade humana. 95

Tanto o Código Civil de 2002, quanto a Lei 8.009/90, estabelecem que o “bem

de família” é o patrimônio pertencente aos cônjuges, ou à entidade familiar. Sabe-se que esse

patrimônio é imprescindível à sobrevivência da família. Pergunta-se: A expressão “entidade familiar”

93 DIAS, op. cit., p. 168. OBS: Segue em anexo (p. 214), ao final do trabalho, a ementa do agravo de instrumento. 94 Sobre o assunto registramos ser de grande valia a leitura do artigo: Bem de Família, autoria de Álvaro Villaça Azevedo. In: DIAS e PEREIRA op.cit., p. 193 – 205. Aí, o autor discute a matéria de forma brilhante. 95 Luiz Edson Fachin, concebe o “bem de família”, segundo a Teoria do Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, que é o garantidor do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

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109refere-se, tão-só, aos modelos reconhecidos, expressamente, pelo texto constitucional (casamento, união

estável e família monoparental), ou, é possível aplicá-la em outras manifestações da família, ainda que,

não prescritas na Constituição? Para respondermos à indagação devemos, primeiramente, estabelecer

qual é a acepção de família.

Restringir o conceito de entidade familiar, aos modelos prescritos no texto

constitucional é impróprio. Desse modo, estar-se-á marginalizando outras manifestações de família, pelo

simples fato, de não se encontrarem expressas na Constituição.

A interpretação literal da Constituição da República (1988), do Código Civil

(2002) e da Lei 8.009/90, em matéria de família e bem de família, viola o princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana. Em razão disso, não podemos admití-la, na presente análise. Então,

considera-se que: o “bem de família”, por ser o patrimônio mínimo do grupo familiar, não pode se

limitar aos modelos prescritos, na Constituição.

O STJ reconheceu, majoritariamente, que o imóvel onde reside pessoa solteira é

“bem de família”. Além desse julgamento, há decisões em que o Tribunal Superior reconhece outros

vínculos, como entidade familiar. Apesar do avanço na matéria, ainda não há decisão reconhecendo a

existência de “bem de família”, no caso de união homoafetiva. Entendemos ser possível fazê-lo, uma

vez que, o próprio STJ não se limitou aos modelos expressos na Constituição.96

2.4.1- Bem de Família Legal e Bem de Família Convencional: algumas diferenças.

Bem de família legal é o instituído, por meio da Lei 8.009/90, ao passo que, o

convencional, é uma novidade do Código Civil de 2002.

O bem de família convencional precisa ser estabelecido em escritura pública, ou,

testamento, pois, trata-se de ato voluntário. Aí, há necessidade de registro no Registro de Imóveis. O

96 Em relação às decisões do STJ, quando provocado para se manifestar sobre o “conceito” de entidade familiar e conseqüente proteção ao bem de família, é interessante que o leitor consulte os anexos: Anexos II– Jurisprudência, nº 5 – Sucessão (p. 220), voto do Des. José Carlos Teixeira Giorgis, nos Embargos Infringentes nº 70003967676.

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110bem de família legal, não depende da vontade das partes, pois, a lei o resguarda. Nessa modalidade, há

uma norma de ordem pública.

No bem de família legal, a impenhorabilidade recai sobre o imóvel urbano, ou,

rural, desde que, utilizado para residência permanente da família. A proteção, também se aplica, aos

móveis quitados, que guarnecem a residência. Essa última hipótese, verifica-se, no caso de imóvel

locado.

As exceções à impenhorabilidade do bem de família legal encontram-se

previstas, no artigo 3º, da Lei 8.009/90. Entre essas, temos: os créditos trabalhistas domésticos, e as

respectivas contribuições previdenciárias; dívidas relativas a impostos, predial e territorial, bem como,

as taxas e contribuições, em razão do imóvel familiar; dívida decorrente de financiamento para a

aquisição do imóvel; etc.

No bem de família convencional, além da impenhorabilidade, verifica-se a

inalienabilidade. Aí, a determinação do bem de família não pode exceder de 1/3 (um terço) do

patrimônio líquido de seu instituidor. A novidade trazida pelo Código Civil, de 2002, é que o bem de

família convencional pode ser instituído por terceiro, por meio de testamento ou doação.

Da mesma forma que no bem de família legal, o bem de família convencional

incide sobre imóvel urbano, ou, rural, desde que destinado ao domicílio familiar. Aí, também, se

incluem os acessórios e os objetos que guarnecem o imóvel.

Para finalizar a presente análise, é interessante estabelecermos um quadro

sinótico:

BEM DE FAMÍLIA97

Código Civil / 2002 Lei 8.009/ 90 Convencional. Legal. Ato voluntário (a entidade familiar escolhe). Proteção automática (o Estado determina). Reserva de 1/3 (um terço) do patrimônio Dois ou mais imóveis = impenhorabilidade do

97 O quadro comparativo foi apresentado na aula de Direito Civil, ministrada pelo professor Flávio Tartuce, no IELF – Instituto de Ensino Jurídico Professor Luís Flavio Gomes, no dia 5 de abril de 2004.

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111que tem menor valor (art. 5º, caput e parágrafo único).

Impenhorabilidade e Inalienabilidade. Impenhorabilidade. Exceção à impenhorabilidade: tributos do prédio (ex: IPTU) e despesas de condomínio = art. 1.715.

Exceções à impenhorabilidade: art. 3º.

2.4.2 - Bem de Família na União Homoafetiva.

O “bem de família” foi instituído para proteger o grupo familiar dos infortúnios externos. A

preocupação do legislador foi preservar a família da aventura de um dos cônjuges / companheiros, e

também, protegê-la de um estado de necessidade, que leve o casal a comprometer o seu mais insigne

patrimônio.

A referência legislativa ao bem de família, como o patrimônio pertencente aos

cônjuges, ou, à entidade familiar, revela que a finalidade do legislador foi amparar, não apenas, as

pessoas unidas pelo matrimônio, mas também, os indivíduos que constituem união livre.

Apesar da Constituição da República, de 1988, referir-se, expressamente, ao

casamento, à união estável e à família monoparental, entendemos ser possível a inclusão do vínculo

homoafetivo, como entidade familiar. Acreditamos que, essa, é a interpretação mais correta, porque o

texto constitucional reconheceu, como princípios, a dignidade da pessoa humana e a igualdade. Além

disso, prescreveu que a família é a base da sociedade, merecendo especial proteção do Estado.

Diante dos dispositivos constitucionais, é inegável o caráter de família das

uniões homoafetivas. Ao contrário, devemos reconhecê-la, tal qual, a união estável e, conseqüentemente,

aplicar-lhes os mesmos efeitos jurídicos dessa. Destarte, a proteção jurídica ao “bem de família”, deve

estender-se às uniões homoafetivas.

2.5 – Adoção:

A adoção é um instituto bastante formalista. Para sua verificação, é necessária a observância de inúmeros procedimentos. Sua finalidade é encontrar uma família para uma criança. Diferente da antiga acepção, a adoção não se destina a atender ao propósito de famílias que querem encontrar uma criança, mas, sim, aplica-se no sentido inverso.

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112A adoção é um instituto que tem, como norte, o melhor interesse do menor. Por

essa razão, não pode ser utilizada, tão-somente, para satisfazer o desejo, de algumas pessoas, em possuir

filhos. No vínculo homoafetivo, é inviável a procriação. Desse modo, seus partícipes manifestam o

propósito de adotar.

O instituto da adoção não é o único meio viável, para que casais homossexuais

constituam a prole. É possível a utilização de métodos genéticos, como por exemplo, a inseminação

artificial; o uso da barriga de aluguel, ou, a própria gravidez, que pode decorrer de uma aventura sexual,

com o exclusivo objetivo da gestação.

Apesar dos vários métodos ofertados pela medicina, e pela genética, a

inviabilidade de sua utilização é uma realidade para inúmeros casais. Isso se verifica, em razão dos

elevados custos financeiros. Desse modo, a adoção apresenta-se, como a melhor solução para a

constituição da prole.

Entre os requisitos da adoção, têm-se: a) pessoa maior de 18 (dezoito) anos; b) diferença de 16

(dezesseis) anos de idade entre o adotante e o adotando; c) consentimento dos pais, ou dos

representantes legais do menor, e concordância deste, se contar mais de 12 (doze) anos de idade.

Nessa última hipótese, faz-se desnecessário o preenchimento do requisito, se os pais do adotante

forem desconhecidos, ou, tiverem sido destituídos do poder familiar.

Desde que atendidos os requisitos acima, qualquer pessoa pode se habilitar em

processo de adoção. Dois são os instrumentos normativos que regulamentam a matéria: o Estatuto da

Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), e o Código Civil de 2002 (arts. 1.618 a 1.629.). O ato da

adoção é praticado individualmente, todavia, em ambas as legislações, admite-se a adoção conjunta,

desde que, realizada por cônjuges, ou, companheiros.

Em matéria de adoção, é imprescindível a observância da Constituição da

República de 1988 (artigo 227), ao lado do ECA, e do Código Civil de 2002. Segundo o texto

constitucional, a criança tem o direito fundamental à convivência familiar, cabendo ao Estado e, à

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113sociedade o seu cumprimento. Em vista disso, a Carta Magna é essencial para a análise deste instituto

legal.

A adoção é uma das “famílias substitutas” prescritas pelo ECA. O escopo do

instituto é proporcionar uma família, a crianças e adolescentes, abandonados por seus pais biológicos.

Destarte, seu primordial objetivo é atender aos interesses do menor.

Anteriormente, a adoção tinha um outro enfoque, pois, destinava-se tão-somente,

a atender aos interesses de adultos que não podiam ter filhos. Agora, esse quadro mudou. Levam-se em

consideração, os interesses do menor. Assim, permite-se à criança, ou adolescente, a sua convivência em

uma comunidade familiar, viabilizando-se, de tal forma, o seu desenvolvimento, enquanto pessoa.

Em matéria de filiação, a Constituição da República, de 1988, celebrou um

notável avanço. Todos os filhos foram equiparados, eliminando-se a classificação entre filhos legítimos

e ilegítimos (espúrios). Da mesma forma, verificou-se, entre os filhos provenientes do vínculo civil

(adoção), e os filhos biológicos.

A adoção é irrevogável e constituí-se, somente, por sentença judicial.

A partir da adoção, o adotado desliga-se de todos os vínculos com seus pais

biológicos, salvo, os impedimentos matrimoniais. O instituto da adoção concede ao menor, os mesmos

direitos dos filhos naturais, sendo vedada disposição em sentido contrário.

A Constituição da República, de 1988, elevou a criança e o adolescente, à

condição de sujeitos principais do Estado brasileiro. Inúmeros direitos fundamentais foram reconhecidos

aos menores. Entre esses, podemos destacar: o direito à convivência familiar. Além disso, foi-lhes

assegurado, também, a proteção contra todo o tipo de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão.98

O instituto da adoção é um meio de concretização, do direito fundamental da

criança e do adolescente, à convivência familiar. Qualquer pessoa pode adotar, desde que, seja maior de

98 Vide artigo 227 da Constituição da República de 1988.

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11418 (dezoito) anos e a sua diferença de idade, em relação ao adotando, seja de no mínimo 16 (dezesseis)

anos.

Tanto os cônjuges, quanto os companheiros podem adotar conjuntamente.99 Se a

adoção for realizada por pessoas que vivem em união estável, para tanto, faz-se mister comprovar a

estabilidade econômica e psicológica da família.

No caso de adoção conjunta (cônjuges / companheiros), o requisito da idade mínima de 18 (dezoito)

anos verifica-se atendido, se apenas um dos membros cumpri-lo. Todavia, em relação à diferença de

idade de 16 (dezesseis) anos, entre o adotante e o adotando, é necessária sua observância pelo casal.

A adoção conjunta pode ocorrer, também, para os divorciados e os separados judicialmente. Nesse

caso, é necessário um acordo sobre a guarda e o regime de visitas, assim como também, faz-se mister

que o estágio de convivência tenha se iniciado, na constância da sociedade conjugal.

O instituto da adoção tem, como regra, o princípio do melhor interesse do

menor. É esse, quem permite, algumas vezes, a flexibilização dos rígidos critérios do instituto. Em razão

de tal princípio, é importante a colocação da criança, ou adolescente, sob o amparo de uma família, que

lhe proporcione o mesmo tratamento ofertado entre seus membros biológicos.

Segundo preceitua o artigo 43 do ECA, “a adoção será deferida quando

apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”. Esse dispositivo revela a

preocupação do legislador em amparar o menor. Assim, nenhuma razão pode justificar a negativa de se

conceder uma família, às crianças e adolescentes rejeitados por seus pais biológicos, salvo, se a adoção

contrariar seus interesses.

As “reais vantagens” do menor, somente poderão ser verificadas diante do caso

concreto. Isso será possível, a partir de uma análise psicossocial do adotando e do adotante. Os “motivos

99 O grifo é nosso e foi colocado para chamar a atenção, quando tratarmos da adoção por casais homossexuais que vivem em união homoafetiva.

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115legítimos” da adoção, também irão ser observados no caso concreto. Esses motivos têm a finalidade de

expressar o “verdadeiro interesse” que o adotante tem, de ser pai, ou mãe.

À adoção, deve preceder-se um estágio de convivência, entre adotante e

adotando. O prazo de convívio será fixado pelo juiz, conforme a peculiaridade de cada caso. Esse

período pode ser suprimido, se a criança tiver menos de 1 (um) ano de idade, ou, se o menor já viver em

companhia do adotante, por um certo período.

As disposições sobre o instituto da adoção, no Estatuto da Criança e do

Adolescente, e no Código Civil de 2002, se complementam, salvo, a seguinte observação: a idade de

21(vinte e um) anos, indicada na Lei 8.069/90, não se aplica. Agora, lê-se 18 (dezoito) anos, haja vista a

maioridade civil instituída pelo novo Código.

2.5.1- A Polêmica da Adoção na União Homoafetiva.

Não há dúvida que a adoção conjunta, por casal homossexual, é objeto de grande

polêmica. Inclusive, nos países que reconhecem a união civil entre pessoas do mesmo sexo, há uma

certa resistência em admiti-la. A recusa se verifica, até mesmo, na adoção singular, por pessoa

homossexual.

No que diz respeito à adoção por homossexuais devemos estabelecer dois

enfoques: adoção realizada individualmente por homossexual, e adoção conjunta por casal

homossexual.

Quanto à primeira hipótese, podemos afirmar que é possível sua realização,

desde que, o adotante preencha todos os requisitos legais, assim como também, tenha recebido um

parecer favorável, após o estágio de convivência.

O parecer favorável à adoção, realizada por uma equipe técnica especializada,

não pode ser ignorado, pelo juiz, por razões, tão-só, preconceituosas. Esse argumento discriminatório

pode se verificar, em razão da identidade sexual homossexual do adotante. Caso isso ocorra, estar-se-á

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116afrontando, tanto a dignidade humana do menor, que tem a garantia à convivência familiar, quanto a do

adotante, que tem o direito de não sofrer discriminação em razão de sua orientação sexual.100

A adoção conjunta, na união homoafetiva, é matéria bastante complexa, uma vez

que, nem o Código Civil de 2002, nem a Lei 8.069/90, regulamentam o assunto. Nessas legislações,

observa-se a referência, tão-só, à adoção conjunta, no casamento e na união estável.

A hipótese de adoção conjunta por casal homossexual, exige maior diligência,

pois as acepções hipócritas acerca da homossexualidade, ganham maior relevo nessa questão.

Concepções farisaicas, sobre a adoção por casais que vivem em união

homoafetiva, têm a função exclusiva de violar o direito fundamental à convivência familiar da criança e

do adolescente. Devemos reconhecer que essa postura é imprudente, quando se vive num país, onde

milhares de menores são abandonados por seus pais biológicos, sendo lançados no mundo, à própria

sorte da vida.

Roger Raupp Rios, em sua obra, A homossexualidade no Direito, leciona que na

adoção por homossexuais, ter-se-á dois princípios em jogo: de um lado, a proteção integral da criança, a

qual, desdobra-se no melhor interesse do menor; de outro lado, a proibição da discriminação por

orientação sexual.101

A adoção por casal homossexual deve ser analisada com bastante cautela. Aí, a

observância do melhor interesse do menor tem que ser realizada com certa peculiaridade. Destarte,

veda-se ao magistrado partir de concepções pré-elaboradas acerca da personalidade dos adotantes e,

conseqüentemente, negar-lhes a adoção.

É totalmente descabida a conclusão antecipada de que a união homoafetiva dos

adotantes produzirá sérios gravames ao menor. Para se evitarem tais constrangimentos, uma vez

concedida a adoção, pais e filhos devem realizar tratamento psicoterápico. Esse, permitirá a melhor

100 Análise feita por Roger Raupp Rios, em sua obra: A homossexualidade no Direito. 101 Indicamos ao leitor uma consulta sobre o assunto, in: RIOS op.cit., p. 129 a 143, onde o autor, brilhantemente discute a matéria.

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117integração da família na sociedade. Tal procedimento deve ser realizado, tendo sempre em vista a

proteção integral da criança.

Várias são as justificativas apresentadas, por aqueles, contrários à adoção por

homossexuais. Entre essas, é bastante freqüente a alegação de que ao se colocar o menor em uma família

homoafetiva, estar-se-á, causando dificuldades para a sua inserção social. Isso porque, a criança, ou,

adolescente, será objeto de chacotas, principalmente, na escola. Advogamos que o argumento é bastante

discriminatório. Conforme observa Rios, idéias desse tipo já foram utilizadas para impedir casamento

entre pessoas de raças diferentes, para justificar segregação em escolas de brancos e de negros, para

impedir a criação e adoção de crianças de raça, cor, ou etnia diferente da dos adotantes. 102

Também se verifica um outro argumento discriminatório, o de que, “a criação

dentro de um lar, onde há uma união homoafetiva, irá produzir conseqüências na orientação sexual do

menor”. A justificativa é, totalmente, descabida. Estudos comprovam que filhos de pais homossexuais

não têm maiores chances de se tornar homossexual, do que, filhos de pais heterossexuais.103

Na adoção por homossexuais, principalmente, a adoção conjunta, devemos

observar: ao mesmo tempo em que a lei foi omissa sobre a matéria, também, não proibiu a adoção.

Destarte, inclinamo-nos por sua viabilidade, desde que, atendido o melhor interesse do menor.

Inferimos que reconhecida a proteção integral da criança, com o atendimento

dos melhores interesses do menor, a adoção deve ser concedida ao casal homossexual. Portanto, é

incabível a recusa fundada, tão-só, na orientação sexual dos adotantes. Desse modo, estar-se-á

garantindo dois direitos humanos fundamentais: a identidade sexual (do adotante) e, a convivência

familiar (do adotado).

Decisões inusitadas se revelaram, a favor da adoção por homossexuais. Entre

essas, podemos destacar duas, do magistrado Siro Darlan de Oliveira, da Primeira Vara da Infância e da

102 RIOS op.cit., p. 143. 103 Vide: Homossexualidade e adoção. In: RIOS, op. cit.

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118Juventude do Rio de Janeiro. Aí, concedeu-se adoção, a uma homossexual, de um bebê que lhe fora

entregue com sérios problemas de saúde. Nesse caso, o juiz determinou acompanhamento psicoterápico

à adotante e sua companheira.

O mesmo magistrado concedeu a adoção de um menor, com 12 anos de idade, a

um homossexual masculino. Nesse caso, o Ministério Público recorreu da decisão, por entender, sem

qualquer fundamentação louvável, que o pedido exordial não atendia ao “melhor interesse do menor”.

104

2.6– Sucessão.

O Direito de Sucessão, também denominado, Direito de Herança será analisado,

em relação ao casamento e à união estável, estabelecendo-se um paralelo com a união homoafetiva.

Uma vez ocorrida a sucessão – com a morte do de cujus - a titularidade de

direitos e obrigações do falecido, são transferidas para seus herdeiros. Tanto no casamento, quanto na

união estável, o direito de herança se verifica, entretanto, sua manifestação ocorre de modo bastante

diferente. Aos cônjuges, asseguram-se mais direitos do que aos companheiros. A visão protetiva do

casamento, em relação à união estável, foi bastante evidenciada pelo Código Civil de 2002.

Com o advento do Código Civil de 2002, o cônjuge foi elevado à categoria de

herdeiro necessário, ao passo que, o companheiro, não. Esse, diferentemente daquele, assumiu posição

inferior, além do que, perdeu direitos, antes, assegurados por meio da Lei 8.971/94.

Na união estável, o direito hereditário confundiu-se com a meação. Conforme

estabelece o artigo 1.790, do Código Civil de 2002, o companheiro, somente, terá direito aos bens

adquiridos, onerosamente, na vigência da união estável. Aqui, observa-se um grande descompasso,

entre o casamento e a união estável. O cônjuge, não apenas, foi elevado à classe dos herdeiros

necessários, como também, passou a concorrer com os descendentes, desde que o regime de bens do

104 Os textos integrais da decisão monocrática e da apelação seguem, em anexo (p. 214 e 215), ao final do trabalho. Fonte original: DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. 2º ed. rev. e atual.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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119casamento não seja o da comunhão universal, da separação obrigatória, ou, se da comunhão parcial, o de

cujus não houver deixado bens particulares.

Tanto no casamento, quanto na união estável, o legislador previu o direito

sucessório. O direito de herança tem grande importância, para duas pessoas que conjugam esforços

numa comunhão plena de vida. Assim, nada mais justo do que reconhecer, como ator principal da

sucessão, a pessoa que sempre esteve ao lado do falecido. Posição essa, que deve exercer, juntamente

com a prole.

Conforme leciona Zeno Veloso, “o cônjuge passou a ser considerado como

filho”. Está correta a interpretação, pois, o Código Civil de 2002 colocou o cônjuge e a prole num

mesmo patamar. Pena que o legislador não teve igual diligência em relação ao companheiro.

O artigo 1.790, do Código Civil de 2002 estabelece a sucessão entre os

companheiros. Se fizermos um paralelo desse dispositivo, com o artigo 2º, da Lei 8.971/94, verificar-se-

á, o quão, o companheiro foi prejudicado.

Segundo a Lei 8.971/ 94, o companheiro encontra-se em terceiro lugar, na ordem

de vocação hereditária. Isso lhe permite, se não houver ascendente, herdar a totalidade da herança. Com

o Código Civil de 2002, o companheiro, além de não ocupar a mesma posição da lei anterior, na

verdade, não terá direito de herança, mas, sim de meação.105

O Código Civil fala em bens adquiridos, onerosamente, na vigência da união

estável. Ora, isso, é no mínimo contraditório, pois, a sucessão transfere o patrimônio que o de cujus

possuía, antes de constituir a entidade familiar (casamento ou união estável). Na herança, transferem-se

os bens particulares do falecido.

O patrimônio constituído, durante o casamento ou a união estável, pertence a

ambos os cônjuges, ou, companheiros, desde que, vigore o regime da comunhão parcial de bens. Desse

105 Sobre o assunto é de grande importância a consulta ao artigo: VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS e PEREIRA op.cit., p. 225 – 237. Aí, é estabelecida uma análise à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição da República de 1988.

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120modo, observa-se que não há como, em matéria de sucessão, estabelecer que o companheiro herde a sua

meação.

Outra falha do Código Civil, é que o companheiro ficou em uma posição de

desprestígio, em relação aos parentes colaterais. Isso ocorre, porque o legislador determinou que,

somente, “herdará” a totalidade da “herança”, se não houver parente colateral, até o quarto grau (arts.

1.790, inc. IV e 1.839, CC/ 2002).

Para finalizarmos o direito sucessório na união estável, devemos alertar que,

conforme preceitua o caput, do artigo 1.790, do Código Civil, de 2002, o companheiro supérstite,

somente, terá direito ao patrimônio, para o qual, ele colaborou na aquisição. Assim, os bens particulares

do de cujus, se não houver herdeiros legítimos, nem testamentários, irão integrar o acervo do Município.

Ora, isso é um verdadeiro absurdo e um grande desrespeito à instituição da família.

No momento em que a Constituição da República deu especial proteção à

família, em seu artigo 226, caput, reconhecendo-a, como base da sociedade e, simultaneamente,

declarou que a união estável é uma entidade familiar (art. 226, § 3º), poderíamos defender a tese de

inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002, tal qual o faz o jurista Zeno Veloso.

2.6.1 – Sucessão na União Homoafetiva.

Outra peleja a ser enfrentada pelos casais homossexuais é a matéria referente à

sucessão. Conforme vimos alhures, o Código Civil de 2002, assegura direitos sucessórios aos cônjuges e

companheiros, todavia, em relação a esses, houve um retrocesso.

No que concerne à união estável, apesar do descompasso, entre o Código Civil

de 2002, e a Lei 8.971/94, os companheiros têm reconhecido o direito sucessório Sobre o assunto,

discutimos em matéria de Trabalho de Conclusão de Curso, no ano de 2002, Apontamos que houve

afronta ao texto constitucional, pois, se retirou dos companheiros direitos a que, louvavelmente, fazia

jus. Por isso, entendemos não ser prudente aplicar o Código Civil de 2002 à sucessão na união estável.

Nesse caso, o juiz, deve optar pela Lei 8.971/94. Entre as razões que justificaram nosso argumento,

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121estão: a) a limitação do direito de herança ao patrimônio adquirido, onerosamente, na vigência da união

estável; b) a possibilidade remota, para não dizermos, quase impossível, do companheiro “herdar” a

“totalidade” da herança, o que somente será viável se não houver colaterais até o 4º grau. 106

Fora ressaltado alhures, a importância que o direto sucessório tem para aquele

que passou uma vida inteira ao lado do de cujus. Advogamos não ser justo atribuir o patrimônio do

parceiro falecido a parentes distantes e que, algumas vezes, sequer conhecia o morto, inexistindo assim,

qualquer vínculo de afeto entre o autor da herança e o herdeiro.

Na união homoafetiva, para que o direito sucessório seja admitido, faz-se mister

o reconhecimento daquela, como família. Cabe ao juiz, essa função, uma vez que, inexiste norma sobre

o assunto.

O magistrado é peça fundamental, para reconhecer direitos aos homossexuais.

Não é justo que após o falecimento do companheiro de união homoafetiva, o sobrevivente, que partilhou

uma comunhão de vida, fique excluído do direito sucessório.

Negar direito sucessório ao companheiro homossexual é desdenhar a affectio

societatis que enlaçava o casal. É depreciar o valor que o afeto representa na comunidade familiar,

considerando, essa, tão-só, por seus interesses patrimoniais. A acepção hierarquizada, patriarcal,

partimonializada e heterossexualizada da família, não mais se verifica, tal qual, o era antigamente.

Advogamos que os homossexuais, ao constituírem entidade familiar (união

homoafetiva), devem ter os mesmos direitos sucessórios dos companheiros que vivem em união estável.

Assim, ratificamos as ponderações feitas, anteriormente, sobre o tratamento dado à matéria, pelo Código

Civil de 2002.

106 Os grifos foram feitos, propositalmente, para destacarmos ao leitor o quanto a união estável foi espezinhada pelo Código Civil de 2002, em matéria de direito sucessório. Louvamos a conduta do legislador ao enquadrá-la no livro Do Direito de Família, todavia, não anuímos com o tratamento que lhe fora dado no campo da sucessão. Na verdade, se lermos, com cautela, o artigo 1.790 do CC/02, iremos perceber que houve uma total confusão entre duas figuras bastante distintas: meação e sucessão. A monografia de conclusão de curso teve como titulo: A união estável em face do Novo Código Civil. O trabalho foi defendido em novembro de 2002, na Universidade da Amazônia, compondo a banca, estava o jurista e professor Zeno Veloso. A bacharelanda obteve a nota máxima.

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122Mais uma vez, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul destaca-se, ao

reconhecer o direito sucessório, ao companheiro homossexual sobrevivente, concedendo-lhe a totalidade

da herança, haja vista a inexistência de descendentes. Essa decisão foi proferida pela juíza Judith dos

Santos Mottecy, sendo submetida a embargos infringentes.107

107 DIAS op.cit., p. 154. OBS: Não será possível disponibilizarmos o texto da decisão monocrática, pois o mesmo não se encontra nos anexos da obra supra e, tampouco, no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, todavia, traremos o texto integral dos embargos infringentes (fonte original: DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade – o que diz a Justiça!: as pioneiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecem direitos às uniões homossexuais). Além dos embargos infringentes, segue em anexo a ementa de uma Apelação (p. 216 a 240), onde é reconhecida a possibilidade jurídica do pedido do direito de herança, na união homoafetiva.

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1233 – Direito Previdenciário.

No Direito Previdenciário, devemos louvar a posição assumida aos

companheiros que vivem em união homoafetiva. Esse é o único ramo do Direito que dispõe de

regulamentação normativa acerca dos parceiros homossexuais. Apesar de ser uma norma administrativa,

é inegável a sua importância para o reconhecimento da união homoafetiva, enquanto família.

A inclusão do companheiro homossexual, como dependente de segurado do

Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e, a conseqüente elaboração de Instrução Normativa (IN

25/2000), é resultado de uma sentença. Aí, o magistrado federal Roger Raupp Rios, decidiu demanda,

onde o parceiro homossexual pleiteava a sua inscrição, como dependente, no plano de saúde do outro

companheiro.

Nos autos, o autor provou que havia contraído o vírus do HIV. Diante disso,

justificou a urgência de sua inclusão, no plano de saúde do companheiro. O juiz reconheceu o pedido. A

fundamentação da sentença foi a seguinte: “a exigência de diversidade de sexo, para a inclusão do

companheiro, como dependente, em plano de saúde, representa discriminação por orientação sexual, por

conseguinte, afronta-se a dignidade da pessoa humana e o princípio de igualdade. 108

A partir daquela decisão, o Ministério Público Federal (MPF) ingressou com

ação civil pública contra o INSS, pleiteando a inclusão do companheiro homossexual, na lista de

dependentes do segurado. Para isso, fundamentou-se nos princípios constitucionais da dignidade da

pessoa humana e da igualdade.

Na exordial, o MPF argumentou que a exigência de diversidade de sexo viola

princípios constitucionais. Concedeu-se tutela antecipada. A partir de então, o INSS fora obrigado a

incluir o companheiro homossexual, na lista de dependentes do segurado. Assim, garantiram-se os

direitos à percepção de auxílio-reclusão e, pensão por morte.

108 O trecho, entre aspas, é apenas um resumo da fundamentação. Sobre o assunto, consultar: DIAS op.cit., p. 155 e 156.

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124A concessão de tutela antecipada foi significativa para equiparar a união

homoafetiva à união estável. A relação de dependência será verificada, quando a primeira, preencher os

requisitos da segunda. Desse modo, aplicar-se-ão as mesmas conseqüências jurídicas, aos companheiros

homossexuais e heterossexuais.

A exigência de diversidade de sexo, para atribuírem-se efeitos jurídicos do

Direito de Família, às uniões livres, viola o mais importante preceito constitucional: a dignidade da

pessoa humana. Além disso, infringe-se o princípio da igualdade, uma vez que, concedem-se

tratamentos diferenciados, tão-só, em razão da orientação sexual da pessoa.

Devemos admitir o quão importante foi a elaboração da Instrução Normativa do

INSS (IN 25/2000), para o enquadramento da união homoafetiva, no contexto do Direito de Família.

Esse instrumento legal possibilitou a atribuição, aos companheiros homossexuais, de alguns direitos

decorrentes da entidade familiar.109

4 - Direito Eleitoral.

Para reconhecermos a união homoafetiva, enquanto família, é necessário, não

apenas, a atribuição de direitos, mas também, de deveres. Essa questão se verifica, com bastante

propriedade, na matéria que passaremos a analisar.

No campo do Direito Eleitoral, inédita é a sentença do juiz Vanderley de

Oliveira Silva, da 14º Zona Eleitoral (Viseu – Pará). A decisão foi manchete nacional em jornais e

telejornais, pois, foi a primeira vez, no Direito Eleitoral, que a união homoafetiva é levada ao status de

família.

No Brasil, já existem várias decisões reconhecendo os mesmos direitos da união

estável à união homoafetiva. Entre esses, podemos destacar: a competência das Varas de Família, a

109 A Instrução Normativa nº 25/2000 foi substituída pela IN 50/2001, essa, fora revogada pela IN 57/2001. Sobre o assunto, consultar: FERNANDES op.cit., p. 84- 87. OBS: O texto da Instrução Normativa nº 25/2000 segue, em anexo, ao final do trabalho (p. 192).

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125partilha de bens, os alimentos, o bem de família, a adoção, e a sucessão. É possível apontarmos, ainda,

o benefício previdenciário e, agora, a inelegibilidade, em matéria de Direito Eleitoral.

Até a sentença do magistrado Vanderley de Oliveira, não havia, no Brasil,

decisão no âmbito do Direito Eleitoral. O juiz, da 14º Zona Eleitoral do Estado do Pará, ao sentenciar

pela inelegibilidade da candidata à Prefeitura (Viseu /PA), fundamentou-se no reconhecimento da união

homoafetiva.

No Município de Viseu, Estado do Pará, intentaram-se três ações, contra a

candidatura de Maria Eulina Rabelo de Sousa Fernandes (PFL). As exordiais fundamentaram-se na

existência de união homoafetiva entre a candidata e a, então, prefeita do Município.

Nas petições iniciais, alegou-se que a candidata (Eulina Rabelo), e a prefeita

(Astrid Cunha), mantinham um relacionamento afetivo, tal qual, na união estável. Por essa razão,

defenderam a inelegibilidade da primeira. Visto isso, considera-se que o relacionamento entre a prefeita

e a candidata, manifestava então uma união estável de fato, todavia, com uma diferença peculiar: a

identidade de sexo das companheiras.

O pedido de impugnação ocorreu porque, a então prefeita de Viseu encontrava-

se no segundo mandato. Os autores demonstraram que, apesar da prescrição da Lei Complementar, nº

64/90 (artigo 1º, § 3º) e, da Constituição da República (artigo 14, § 7º), referir-se apenas ao cônjuge, a

jurisprudência estende sua aplicação aos companheiros, que vivem em união estável. Desse modo,

aplicando-se uma interpretação extensiva, a candidatura de Eulina seria inviável.110

A extensão da Lei Complementar 64/90 e, da Constituição da República, de

1988, à união estável, representa uma adaptação da jurisprudência aos fatos sociais. Nesse mesmo

sentido, foi o entendimento do magistrado Vanderley de Oliveira Silva, quando aplicou, tais normas, ao

companheiro de união homoafetiva. 110 O artigo 1º, § 3º, da Lei Complementar 64/90, e o artigo 14, § 7º, da Constituição da República de 1988, prescrevem: “São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo, se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.

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126O magistrado Vanderley de Oliveira reconheceu a existência de união

homoafetiva, entre a candidata a prefeitura do município Maria Eulina e a, então prefeita Astrid Maria

Cunha e Silva. Vejamos a argumentação do juiz:

A impugnada e a atual prefeita convivem numa relação fundada no afeto e na assistência moral, material e sexual recíproca, com os mesmos contornos de uma união estável, mantida entre um homem e uma mulher, qual seja: notoriedade, publicidade e finalidade de constituir família.111 A decisão foi objeto de recurso, no Tribunal Regional Eleitoral do Estado do

Pará (TRE /PA). Aí, entendeu-se que a hipótese não era um caso de inelegibilidade, pois, para constituir-

se a união estável, é necessária a diversidade de sexo. Esse não foi o entendimento da relatora, a juíza

federal Hind Ghassan Kayath, que se manifestou favorável pela decisão de primeiro grau. Para a

magistrada, o caso em tela, era uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. Nessa mesma linha

interpretativa, foi o parecer da Procuradoria Geral Eleitoral, elaborado pelo vice-procurador geral,

Roberto Monteiro. Assim, de posse daqueles argumentos (união estável heterossexual) o TRE /PA

decidiu pela elegibilidade da candidata.

Diante de um acórdão contrário aos interesses dos autores (elegibilidade de

Eulina Rabelo), esses, recorreram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), buscando restabelecer a decisão

de primeiro grau. No TSE, reconheceu-se, por unanimidade, a inelegibilidade da candidata.

O relator do processo, Ministro Gilmar Mendes, entendeu que: “O Direito não

regula sentimentos, contudo, dispõe ele, sobre o que a conduta determinada por este afeto pode

apresentar, como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos

do ordenamento”.

O Ministro Carlos Velloso, em seu voto, argüiu a necessidade do Direito em

acompanhar as mudanças sociais e, assim, reconhecer novos modelos de entidade familiar. O Ministro

Francisco Peçanha, em seu voto, levantou a bandeira do respeito à liberdade de “opção sexual”.112

111 Trecho extraído do Jornal O Liberal, caderno Painel, p. 1, do dia 9 de agosto de 2004. 112 Colocamos o termo entre aspas, porque entendermos que a homossexualidade não é uma questão de escolha, mas, sim, uma manifestação da orientação sexual.

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127Assim, no dia 8 de agosto, de 2004, ocorreu uma “vitória” jurídica para o

reconhecimento das uniões homoafetivas. Nesse dia, o magistrado, Vanderley de Oliveira Silva, da 14º

Zona Eleitoral (Viseu/ PA), elevou a união homoafetiva ao status de família.

Diferente do que foi propagado pelos homossexuais, a decisão do magistrado,

Vanderley de Oliveira, não teve cunho discriminatório. Ao contrário, levaram-se em consideração

princípios constitucionais, que permitem o reconhecimento da união homoafetiva, como família. Desse

modo, os companheiros homossexuais receberam o mesmo tratamento dos heterossexuais que vivem em

união estável.

Sentir-se discriminado, por compreender, equivocadamente, que a

inelegibilidade da candidata representa preconceito aos homossexuais, é tolice. Agindo dessa maneira,

os homossexuais estarão se autodiscriminando, pois, no mundo jurídico, o efetivo reconhecimento de

um instituto, requer a atribuição de direitos e deveres.

Para concretizarmos a dignidade da pessoa humana e a igualdade, enquanto

princípios constitucionais, faz-se mister reconhecermos a união homoafetiva, como entidade familiar,

estendendo-lhe os mesmos direitos e obrigações da união estável.

OBS: Sobre o voto dos ministros, vide: Jornal O Liberal, caderno Painel, dia 2 de outubro de 2004.

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128V - UNIÃO HOMOAFETIVA NO DIREITO ESTRANGEIRO:

A matéria da união homoafetiva, sempre, assume resistência, ainda que pequena,

em quase todos os países do mundo. A ala conservadora da Igreja Católica é a grande responsável por

esse fenômeno. Os vários conceitos atribuídos à união homoafetiva podem variar bastante, conforme a

cultura de cada Estado.

Segundo a classificação estabelecida pela Desembargadora Maria Berenice

Dias, em sua obra - União homossexual: o preconceito e a justiça -, é possível apontarmos três grupos

de países, conforme o grau de liberdade conferido, e o respeito imposto à orientação sexual. Assim,

temos o grupo de extrema repressão, o intermediário e o expandido.

1 – Países de Extrema Repressão:

No bloco de extrema repressão incluem-se os países que adotam uma visão,

bastante, preconceituosa em relação à homossexualidade. Aí, essa prática é considerada crime, cabendo,

inclusive, a aplicação de pena de morte.

Nos países de extrema repressão, a manifestação da homossexualidade, tanto

masculina, quanto feminina, contraria os costumes e tradições religiosas. Nessa ala, encontram-se os

países islâmicos e muçulmanos, além da Grécia e Irlanda113. Os dois últimos, apesar de não serem tão

radicais, ainda possuem uma visão bastante conservadora.

2 – Países Intermediários:

O grupo intermediário é composto pelos países que, não obstante

descriminalizem a homossexualidade e proíbam medidas discriminatórias, ao mesmo tempo, não

estabelecem medidas positivas para o reconhecimento da união homoafetiva.

Nesse bloco, alguns direitos concedidos à união homoafetiva têm fundamento

nos direitos humanos e no respeito à dignidade humana. Aqui, pode-se afirmar que a aceitação do

113 Vide BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 41, e FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São Paulo: Ed. Método, 2004. p. 116.

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129vínculo homoafetivo e, conseqüentemente, a produção de efeitos jurídicos, ainda, é debatida no

Legislativo, sendo que algumas vezes, ou, na maioria, como é o caso do Brasil, os Projetos de Lei são

arquivados por simples desinteresse em dar tratamento normativo a esse novo “modelo” de família.

Exemplo de países intermediários são: Brasil, Espanha, Canadá, Eslovênia,

Finlândia, República Theca, Austrália, Nova Zelândia e alguns Estados americanos, como Nova York,

Nova Jersey e Vermont. 114 Nos Estados Unidos da América, as leis, assim como também, as decisões

judiciais, são bastante diversificadas.

Em 1996, os Estados Unidos aprovaram uma lei, determinando que o casamento

somente pode ser realizado entre pessoas do sexo oposto. Essa lei federal ficou conhecida como Defense

of Marriage Act 115. Destarte, não seria admitido o casamento homossexual. Apesar de tal proibição, não

se vedou aos Estados norte-americanos a regulamentação das uniões homossexuais. Isso é comprovado

pelo Estado de Vermont, primeiro a legislar sobre o assunto. Aí, desde abril de 2001, a “união civil” ,

como foi denominada a relação de convivência entre duas pessoas do mesmo sexo, adquiriu

regulamentação legal igual a do casamento, sendo inclusive atribuído, aos parceiros, a denominação de

“cônjuge”. 116

No Havaí, três casais homossexuais ingressaram com uma ação contra o Estado

por ter-lhes sido negada a licença para o casamento. A Suprema Corte reconheceu o direito de

casamento a essas pessoas, fundamentando sua decisão no texto constitucional, que garante a igualdade

de direitos a todos. Em 2003 a Suprema Corte dos Estados Unidos, em uma decisão, considerou que as

legislações estaduais são inconstitucionais, quando discriminam os homossexuais.117

Não obstante a decisão da Suprema Corte em considerar inconstitucionais as

legislações estaduais, assim como também, diante da manifestação de vários Estados norte-americanos,

114 DIAS op.cit., p. 51. 115 FERNANDES op.cit., p. 117. 116 DIAS op.cit., p. 52. 117 FERNANDES op.cit., p. 119.

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130no sentido de aceitar e regulamentar a união homossexual, o Presidente George Bush se manifestou

favorável à emenda constitucional que proíbe o casamento entre homossexuais.

A conduta do presidente é, lamentavelmente triste, pois expressa uma visão

conservadora. Essa, choca-se com a conduta liberal, paulatinamente, instalada nos Estados norte-

americanos. Isso representa uma afronta aos direitos conquistados pelos grupos homossexuais.

No Canadá, o Supremo Tribunal argumentou que o termo “cônjuge” não pode

restringir-se aos casados legalmente, devendo empregar-se também, aos companheiros homossexuais.

Assim, fica possibilitado a esses, a percepção dos benefícios oferecidos pelo Governo. O Tribunal

reconheceu ainda, que a discriminação fundada na orientação sexual, incide em violação à garantia de

igualdade.

Na Espanha118 algumas cidades admitem a união civil entre pessoas do mesmo

sexo, e.g., Barcelona, Córdoba, Granada, Ibiza e Toledo. Na Catalunha, a Lei 10/98 reconheceu, como

“parceria homossexual”, a união estável formada entre duas pessoas do mesmo sexo, desde que, vivendo

maritalmente. Em Madri, a Lei 11/2001 estabeleceu que as regras que regulamentam as uniões de fato,

devem ser estendidas às relações homoafetivas. O Principado de Astúrias, por meio da Lei 4/2002,

preceituou que ninguém pode ser discriminado em razão do grupo familiar a que pertença, quer seja

formado pelo casamento, quer seja formado pela união estável entre hetero, ou homossexuais.

3 – Países Expandidos:

No grupo expandido estão os países com tradição mais liberal. É constituído,

principalmente, pelos países nórdicos. Nesse bloco adotam-se políticas contrárias à discriminação dos

homossexuais, descriminaliza-se a homossexualidade, e também, instituem-se ações afirmativas, em

apóio aos homossexuais.119

118 No que se refere ao reconhecimento das relações homoafetivas, na Espanha, remetemos o leitor à: FERNANDES op.cit., onde a autora, diligentemente, faz brilhante exposição. 119 DIAS op.cit., p. 53.

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131A Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união homoafetiva. Isso ocorreu

por meio da Lei 372 de 1989 (Lei de Parceira Registrada), que permitiu, inclusive, a troca do nome. Essa

norma concede às parceiras homossexuais, quase todos, os efeitos jurídicos do casamento. A instituição

da “união civil” exige que, pelo menos, um dos companheiros tenham residência permanente e

nacionalidade dinamarquesa. Fica proibido aos parceiros homossexuais contrair casamento, bem como

nova parceria civil, se a anterior ainda não foi desfeita. No caso de violação desse impeditivo, aplica-se

uma pena de prisão de 3 (três) anos. No caso dos dinamarqueses que vivam em união homoafetiva, mas

que, não fizeram o registro de parceira civil, aplicam-se os mesmos efeitos jurídicos dessa.120

A Noruega, da mesma forma que a Dinamarca, reconheceu a união entre

homossexuais. A Lei 40, de 1993, instituiu o Registro de Parceria de Casais Homossexuais.

Na Suécia, em 1995, a Parceria Registrada também foi reconhecida. Da mesma

forma que na Dinamarca, permitiu-se a troca do nome. A legislação sueca estabelece tanto para o

casamento, quanto para a parceria registrada, os mesmos impedimentos: idade mínima, inexistência de

afinidade entre as partes, inexistência de casamento, ou parceria atual. Um dos requisitos para promover

a parceria é que, pelo menos, um dos parceiros seja sueco, ou, tenha residência estabelecida, na Suécia,

por um período.121

A Holanda é o país mais avançado em matéria de reconhecimento das uniões

homoafetivas. Esse país destaca-se, por ser o primeiro, a permitir o casamento entre homossexuais. A lei

que autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo entrou em vigência no dia 1º de abril de 2001.

A partir de então, estabeleceu-se a igualdade de direitos e deveres. Além disso, reconheceu-se a

identidade entre os efeitos jurídicos produzidos no matrimônio homo e heterossexual. A adoção fora

permitida do mesmo modo, desde que o (a) adotado (a) seja criança holandesa. Admitiu-se ainda, a

conversão da “parceria civil” em casamento e vice-versa.

120 BRANDÃO op.cit., p. 41- 45. 121 Ibidem. p. 46 e 47.

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132A Bélgica, seguindo a orientação da Holanda, também admitiu o casamento

entre pessoas do mesmo sexo. Por isso, podemos considerá-la o segundo país a reconhecer a união

homoafetiva, como entidade familiar.

Na Islândia, a partir de 1996, foi permitido o Registro de Parceria Homossexual.

Na Alemanha, é permitido, aos casais homossexuais, regulamentar sua união por

meio de um contrato.

4- Comentários Gerais:

Na França122, em 1999, o Código Civil sofreu uma alteração. Nesse país,

instituiu-se o Pacto de Parceria Civil (PACS), que é um contrato firmado entre duas pessoas do mesmo

sexo, ou, de sexos diferentes, para organizar sua vida em comum. Esse não regulamenta apenas as

uniões homoafetivas, aplicando-se também, aos vínculos heterossexuais. O interessante é que, após um

ano de vigência, o contrato foi estabelecido, em sua maioria, por casais heterossexuais.123

O PACS estabelece que cabe aos contratantes estipular as normas relativas à

aquisição do patrimônio, todavia, em havendo omissão, presume-se que os bens são comuns, quando

adquiridos na vigência do Pacto.

Verificam-se alguns impedimentos, para a formação do PACS. Vejamos: não

pode ser constituído entre ascendentes e descendentes, afins em linha reta, colaterais até o 3º (terceiro)

grau. Da mesma forma, não pode ser celebrado entre pessoas casadas, ou, que estejam vinculadas a

outro PACS. A Lei 99-944, que alterou o Código Civil francês, deu regulamentação ao concubinato. A

esse, atribuiu-se o seguinte conceito: “união de fato, caracterizada por uma vida em comum, estável e

contínua, por pessoas do mesmo sexo, ou de sexos diferentes, que vivam juntas”.

122 Ibidem. p. 52 – 57. 123 Sobre o assunto, ver referência feita por Maria Berenice Dias, in: DIAS op.cit., p. 55.

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133Em Portugal, a partir de 2001, foi reconhecida a “união de fato” entre pessoas do

mesmo sexo. Apesar disso, a concessão de alguns direitos, tais como, previdenciários e sucessórios,

somente far-se-ão possíveis, se a relação perfizer um período mínimo de 2 (dois) anos.

A África do Sul foi o primeiro país do mundo a estabelecer, na Constituição, a

proibição de discriminação em razão de orientação sexual. Isso ocorreu em 1996. A previsão

constitucional considerou a liberdade de orientação sexual, como um direito humano fundamental.

Nesse país é reconhecido o contrato de parceria civil entre duas pessoas do mesmo sexo. Isso confere ao

parceiro, o benefício da pensão, assistência-médica, imigração e direitos sucessórios.124

Na América Latina, somente na Argentina, na cidade de Buenos Aires, é

possível encontrarmos o primeiro texto legal sobre união homossexual. Essa lei, por ser local, produz

efeitos apenas em Buenos Aires. Aí, é permitido o registro de união civil, constituída entre casais do

mesmo sexo, ou de sexos diferentes.

A união civil somente será reconhecida, se a relação for estável, pública e tiver

se constituído há, pelo menos, 2 (dois) anos. Para o registro público, faz-se mister o preenchimento

desses requisitos, assim como também, a presença de duas testemunhas. Foram estabelecidos alguns

impedimentos para a constituição da união civil, não podendo contraí-la: ascendentes com descendentes;

pessoas casadas; incapazes.

A lei da união civil não prevê direito à sucessão, aos alimentos, nem à adoção. A

união civil pode extinguir-se com a morte, ou, casamento de um dos parceiros; acordo mútuo, ou

decisão unilateral.125

Conforme o exposto, verificarmos que os países da Europa são mais avançados

no reconhecimento da união homoafetiva, ao passo que, os países latino-americanos, ainda precisam

124 BRANDÃO op.cit., p. 62. 125 FERNANDES op. cit., p. 130 e 131.

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134desenvolver-se, bastante, na matéria. Nesses, somente a cidade de Buenos Aires possui norma sobre o

assunto.

No grupo dos países expandidos, a união homoafetiva é reconhecida, como

família. No bloco intermediário, observa-se uma tentativa em reconhecer as relações homossexuais,

como parceria civil.

Na maioria dos países, a adoção não é outorgada aos casais homossexuais. Isso é

o que ocorre, por exemplo, na Dinamarca, na Noruega, na Suécia. Nesses lugares, os parceiros não

podem adotar, nem mesmo, individualmente. Nos EUA, o Estado da Flórida, proíbe a adoção por

homossexuais. A Holanda, por ser o país mais avançado no reconhecimento das relações homoafetivas,

admite a adoção pelo casal homossexual. A Islândia também se destaca, ao permitir, após o registro da

parceira civil, a concessão automática da guarda ao outro parceiro, se ao tempo do registro, algum deles

já a possuía.

No Brasil, faz-se mister que o Legislativo desprenda-se de concepções farisaicas

acerca da homossexualidade, possibilitando a regulamentação da união homoafetiva.

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135VI – CONTEXTUALIZAÇÃO LEGAL DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL.

Observa-se, no Brasil, uma grande resistência quanto à elaboração de leis, sobre

a matéria da homossexualidade. Tal fenômeno representa um retrocesso, uma vez que, a união entre

pessoas do mesmo sexo é uma realidade.

Diante de uma cultura conservadora, assim como também, face aos interesses

pessoais de alguns políticos, que visam, tão-só, a perpetuação no poder, nega-se a atribuição de direitos

às pessoas que vivem em união homoafetiva.

A Proposta de Emenda à Constituição, nº 67-A, de 1999 (é uma reapresentação

da PEC 139/95), tinha a finalidade de alterar os artigos 3º, inciso IV, e 7º, inciso XXX, estabelecendo a

proibição de discriminação em razão da orientação sexual. No dia 31 de janeiro, de 2003, novamente, a

PEC fora arquivada.

As justificativas para o arquivamento da PEC 139/95 e, de sua reapresentação,

PEC 67-A/ 99, sempre, mostraram-se implausíveis. O argumento utilizado, tanto na primeira, quanto na

segunda, é o da necessidade de “enxugamento” do texto constitucional.

Além da PEC 67- A /99, tem-se, a Proposta de Emenda à Constituição, nº 66 de

2003. Essa, tal qual a anterior, estabelece a não discriminação por orientação sexual, todavia,

acrescenta o termo expressão sexual.

A PEC 66/2003 aguarda parecer do Relator da Comissão de Constituição e

Justiça – Deputado Paulo Rocha (PT/ Pará). Esperamos, dessa vez, sua aprovação, entretanto,

reconhecemos a enorme dificuldade para tal ocorrência. A questão se agrava, no momento em que

temos, à presidência da Câmara dos Deputados, um político bastante conservador – o Deputado

Severino Cavalcanti (PP – Pernambuco). Esse, em entrevista, após a vitória, manifestou-se,

absolutamente, contrário à união entre pessoas do mesmo sexo126.

126 O Deputado Severino Cavalcanti foi eleito no dia 15 de fevereiro de 2005, em segundo turno, para presidir a Câmara dos Deputados, no biênio 2005 – 2006.

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136Na apresentação do Projeto de Lei, nº 1.151/95, que visava reconhecer a união

civil entre pessoas do mesmo sexo, realizado pela, então deputada Marta Suplicy, o atual presidente da

Câmara comandou um grupo de votação contrário ao PL. No qual obteve êxito.

Os homossexuais encontram-se ao bel-prazer de políticos conservadores. É

indubitável que, no presente contexto, far-se-á mais difícil a aprovação de emenda constitucional que

vise incluir a não-discriminação por orientação sexual. O Deputado Severino Cavalcanti atual

presidente da Câmara é um fervoroso católico. Por isso, manifesta-se, totalmente, contrário à união

homoafetiva. Diante de tal conduta, o legislador viola a dignidade humana, assim como também,

impede a concretização do direito fundamental à livre orientação sexual.

A união homoafetiva é uma realidade. Em razão disso, não é justo que o Estado

reconheça os homossexuais, como pessoas, apenas, no cumprimento de suas obrigações, pois, tal qual os

heterossexuais, faz-se mister atribuir-lhes direitos e deveres.

Em matéria de emenda constitucional, o Estado do Pará merece respeito. Aí, a

Constituição estadual sofreu uma alteração em seu artigo 3º, inciso IV. A Emenda Constitucional nº 20,

de 2003, acresceu a esse dispositivo, a proibição de discriminação por orientação sexual. Sobre este

prisma a Assembléia Legislativa Paraense surpreendeu ao aprovar a Emenda Constitucional nº 20/2003.

A PEC obteve o voto favorável de dois políticos evangélicos, e da maioria dos católicos. O ato deve

servir, como exemplo, para os legisladores federais alterarem a Constituição da República, de 1988,

vedando a discriminação por orientação sexual.

Além das propostas de emenda à Constituição, é possível encontrarmos vários

Projetos de Lei, em matéria de orientação sexual. Alguns têm a finalidade de colocá-la sob a proteção

da Lei 7.716 de 1989 (Lei dos Crimes de Racismo); outros, visam aplicar sanções às práticas

discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas. Há também, PLs que buscam instituir o

dia nacional do orgulho gay e da consciência homossexual.

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137Ao lado dos Projetos de Lei que visam reconhecer direitos aos homossexuais,

existem outros em sentido contrário. Assim, ocorreu com o PL nº 2.177, de 2003, que buscou criar o

programa de auxílio e assistência à reorientação sexual das pessoas que, voluntariamente, optarem pela

mudança de sua orientação sexual (da homossexualidade para heterossexualidade). Nesse mesmo

sentido, encontra-se o PL nº 2.279, de 2003, que teve o propósito de tornar contravenção penal o beijo

lascivo entre pessoas do mesmo sexo, quando realizado em público.

Em relação aos Projetos de Lei comentados no parágrafo anterior, observa-se

que o legislador “remou contra a maré”. Felizmente, o PL 2.177/ 03 obteve parecer desfavorável do

Relator - Deputado Babá (sem partido/ PA), na Comissão de Seguridade Social e Família. O PL 2.279/

03 foi enviado ao arquivo, pela Mesa da Câmara dos Deputados.

É dever do Estado reconhecer conseqüências jurídicas às pessoas que vivem em

união homoafetiva. Para isso, primeiramente, é necessária uma alteração do Texto Constitucional. Aí,

deve-se estabelecer a proibição de discriminação por orientação sexual. Após isso, faz-se mister a

elaboração de uma lei que reconheça direitos e deveres aos pares homossexuais.

A inércia quanto à regulamentação da união homoafetiva é produto da falta de

interesse dos legisladores. Esses, visando interesses, tão-só, eleitoreiros, preferem não discutir a

matéria. Isso acontece, principalmente, em relação aos políticos que provêm de Estados bastante pobres.

Aí, observa-se a dominação de uma cultura conservadora e muito religiosa. Em razão disso, a elaboração

de Projeto de Lei, atribuindo efeitos jurídicos aos pares homossexuais, receberá parecer negativo da

população. A resposta poderá verificar-se nas urnas.

Os Projetos de Lei em comento, assim como também, outros, em matéria de

orientação sexual, podem ser encontrados nos anexos. Nesses, há, ainda, a Proposta de Emenda à

Constituição nº 139/ 95 (autoria de Marta Suplicy), reapresentada sob o nº 67-A /99 (autoria de Marcos

Rolim) e a PEC nº 66/ 03 (autoria de Maria do Rosário).

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138Entre os Projetos de Lei que estabelecem sanções às práticas discriminatórias,

em razão da orientação sexual, tem-se: o PL nº 1.904/99; o PL nº 2.367/00 (esse fala em gênero e opção

sexual127); o PL nº 5.003/01; o PL nº 6.186/02; o PL nº 5/03 e o PL nº 4.243/04.

Devemos ressaltar a importância do Projeto de Lei 1.151/95, no reconhecimento

de direitos à união homossexual. Não obstante isso, o PL deixa a desejar, uma vez que, para a atribuição

de conseqüências jurídicas, faz-se mister que a união seja constituída formalmente.

Na união homoafetiva, da mesma forma que na união estável, os pares,

geralmente, se unem, sem a elaboração de contrato escrito. Em relação aos companheiros

heterossexuais, as conseqüências jurídicas são reconhecidas, independente da formalização da união

estável. Segundo o PL nº 1.151/ 95, a atribuição de efeitos jurídicos, somente, far-se-ia possível, se a

relação fosse constituída por escritura pública, seguida de registro no Cartório de Registros Civil de

Pessoas Naturais. Destarte, observa-se um desequilíbrio entre a união “livre” homossexual, e a união

heterossexual.

Far-se-á um breve comentário acerca do Projeto de Lei nº 1.151/95 (estabelecia a

união civil entre pessoas do mesmo sexo), e de seu Substitutivo (refere-se à parceira civil). Além desses,

será comentado o PL nº 5.252/01, o qual, estabelece o pacto de solidariedade entre as pessoas.

Antes de adentrar-se nos Projetos de Lei, é importante que façamos uma sucinta

explanação das Propostas de Emenda à Constituição, PECs nº 139, de 1995 (reapresentada pela PEC nº

67-A /99), e nº 66, de 2003.

1- Proposta de Emenda à Constituição nº 139, de 1995 (Reapresentação na PEC nº 67-A/, de 1999).

• A PEC 139/95 foi apresentada por Marta Suplicy. Face ao seu

arquivamento, em fevereiro de 1999, o Deputado Marcos Rolim e outros resolveram reapresentá-la,

utilizando a justificativa original. Assim, surge o PEC 67-A de 1999.

127 Devemos ressaltar que, ao longo da exposição, não consideramos a homossexualidade uma opção, mas, sim, manifestação da orientação sexual. Essa, é mais complexa do que a primeira. Em razão disso, entendemos que o PL estaria mais correto se falasse em orientação sexual, ao invés de opção sexual.

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139• A PEC 139/95 teve a finalidade de alterar os artigos 3º, inciso IV, e 7º,

inciso XXX. Esses dispositivos passariam a ter a seguinte redação:

“Art. 3º, IV: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, orientação sexual,

crença religiosa, cor, idade e quaisquer outras formas negativas, de discriminação”.128

“Art. 7º, XXX: proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por

motivo de sexo, orientação sexual, crença religiosa, idade, cor ou estado civil”.129

Nesses dois artigos, a PEC 139/95 incluiu o termo orientação sexual. Assim,

buscou-se garantir maior proteção às pessoas que têm orientação sexual diferente da maioria. Destarte

seriam excluídas quaisquer dúvidas sobre a matéria.

Com a vedação, explícita, da discriminação por orientação sexual, a

argumentação de inconstitucionalidade do artigo 226, § 3º, da Constituição da República, estaria mais

robustecida. A recusa em concederem-se os efeitos jurídicos da união estável à união homoafetiva,

ocorre, simplesmente, pela não verificação da diversidade de sexo entre os companheiros (exigência

constitucional).

Vedar efeitos jurídicos aos companheiros homossexuais, que se unem numa

sociedade de afeto, tal qual, se verifica na união estável, é grave discriminação à pessoa humana.

Afirmar que o art. 226, § 3º, da CR/88, não ampara a união homoafetiva, é violar o Estado Democrático

de Direito.

Face à inexistência de proibição, expressa, à não discriminação por orientação

sexual, o não reconhecimento da união homoafetiva, configura discriminação, em razão do sexo. O

tratamento discriminatório, ao casal, ocorre, tão-somente, em razão da identidade de sexo da pessoa

escolhida, para constituir a entidade familiar.

128 O art. 3º, IV, tem a seguinte redação: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 129 O art. 7º, XXX, tem a seguinte redação: “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.

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140O sexo, pelo qual sentimos atração afetiva e/ou sexual, é uma manifestação da

orientação sexual. Destarte, face à omissão legal dessa última, a discriminação em razão do sexo é,

também, discriminação por orientação sexual.

• Na justificativa, destaca-se que a proposta de inclusão da proibição de

discriminação, em razão da orientação sexual, é bastante antiga, existindo desde a constituinte

originária. Nessa, a Subcomissão de Negros, Populações Indígenas e Pessoas Portadoras de Deficiência

propôs a abrangência da orientação sexual entre as disposições que vedam a discriminação. A

orientação sexual seria reconhecida, expressamente, como direito humano, por conseguinte, sua

violação considerar-se-ia crime inafiançável.

Apesar da tentativa em proteger às pessoas que manifestam orientação sexual

diferente da maioria, a proposta foi rejeitada, sob o argumento de que o texto constitucional precisaria

ser “enxugado”. O Deputado Bernardo Cabral, à época, Relator da Comissão de Sistematização, foi o

responsável pela retirada do termo orientação sexual, do rol de proibições à discriminação, conforme

previa a proposta originária.

Em relação à supressão do termo orientação sexual, pergunta-se: foi verídico o

argumento de “enxugar” o texto constitucional? Será que a justificativa não representa uma das

hipóteses de discriminação aos homossexuais?

Entendemos que o vocábulo orientação sexual não viria dilatar, tão

consideravelmente, o texto da Constituição. Por essa razão, não acatamos o argumento do Relator. Na

verdade, houve receio a um futuro reconhecimento da união homoafetiva, como entidade familiar.

• Caso a proposta da constituinte originária fosse aprovada,

indubitavelmente, os homossexuais estariam mais protegidos. Isso ocorreria, porque a discriminação,

em razão da orientação sexual, seria considerada crime inafiançável, tal qual, o racismo (artigo 5º, XLII,

CR/88). Da mesma forma, ter-se-ia mais argumentos para advogar que a discriminação aos

homossexuais é um atentado aos direitos humanos.

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141O tratamento da discriminação à orientação sexual, como crime inafiançável,

apesar de não impedir a conduta, pelo menos, atuaria no sentido de sua coibição. Destarte, entendemos

que a supressão do termo (orientação sexual) representou, considerável, perda de direitos dos

homossexuais. Essa questão se verifica com bastante propriedade, em relação aos negros.130

• A proposta da PEC 139/95 é resgatar a cidadania dos homossexuais que

ainda não assumiram publicamente sua orientação sexual. Esses, têm grande receio de manifestar sua

orientação sexual homossexual, haja vista as penalidades que, possivelmente, ser-lhe-ão aplicadas (e.g:

humilhações, vexames, chacotas etc).

• A PEC 139/95 tinha o escopo de assegurar a integridade física, psíquica e

moral da pessoa humana. Expressar orientação sexual homossexual, na sociedade, acarreta graves

conseqüências. Essas, podem verificar-se no tratamento humilhante sofrido por aquelas pessoas. Isso

afeta, sobremaneira, a saúde psíquica e moral dos homossexuais.

2 - Proposta de Emenda à Constituição nº 66, de 2003.

• A PEC nº 66/03 é bastante semelhante às PECs anteriores (139/95 e 67-A/

99), todavia, apresenta uma pequena diferença em seu texto. Esse, é mais amplo.

• No artigo 3º, inciso IV, a PEC nº 66/03 estabelece a promoção do bem de

todos sem preconceitos de (...) orientação e expressão sexual, (...), convicção política, condição sócio-

econômica, condição física, psíquica ou mental, (...). Aqui, foi mais ampla, porque além da orientação,

colocou o termo expressão sexual, assim como também, proíbe a discriminação por fatores políticos,

sócio-econômicos, físico, psíquico ou mental. Esses últimos não se encontram na redação da PEC

130 O texto constitucional prescreve a proibição de discriminação, em razão da cor (artigo 3º, inciso IV e artigo 7º inciso XXX), assim como também, preceitua o racismo, como crime inafiançável (art. 5º, XLII). Apesar de tais disposições, é comum verificar-se o tratamento discriminatório aos negros. A prescrição constitucional não deixa de ter seu mérito, pois, os negros, paulatinamente, vêm conquistando seu espaço. Essa “obediência” à Constituição representa o receio que as pessoas têm de serem penalizadas. É, nesse sentido, que os homossexuais foram bastante prejudicados, pois, sem qualquer instrumento de coação, dá-se azo à discriminação.

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142139/95 e PEC 67/99.

• A PEC nº 66/03, da mesma forma, que no artigo 3º, inciso IV, estabelece,

no artigo 7º, inciso XXX, a vedação de diferentes salários, exercício de funções e critérios de admissão,

em razão da orientação e expressão sexual, (...), convicção política, condição física, psíquica ou mental,

(...).

• A PEC nº 66, de 2003, encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça,

sendo designado para Relator, em 4 de agosto de 2003, o Deputado Paulo Rocha (PT/ PA). Acreditamos

que a proposta receberá parecer favorável do Relator, todavia, é indubitável a dificuldade que enfrentar-

se-á para sua aprovação. Tendo em vista que ora preside a Câmara dos Deputados um político de linha

conservadora e reacionária.

3 - Projeto de Lei 1.151 de 1995.

3.1- Pontos Positivos:

• O PL 1.151/95 visava regulamentar os aspectos patrimoniais da união

civil. Destarte, enquadrava-a no Direito Obrigacional, e, não, no Direito de Família. Todavia, a

prescrição do art. 10, indiretamente, referia-se ao último. Esse dispositivo determinava que o imóvel,

próprio e comum, dos companheiros que vivem em união civil, é impenhorável, aplicando-lhe a Lei

8.009/90 (Lei do Bem de Família).

Conforme vimos alhures, tanto a Lei 8.009/90, quanto o Código Civil de 2002,

no artigo 1.711, asseveram que o “bem de família” é aquele que pertence aos cônjuges, ou, à entidade

familiar. O ponto positivo reside no termo entidade familiar, pois, o PL, ao prescrever as mesmas regras

da Lei 8.009/90, à união civil, atribuiu-lhe o status de família.

• Outro ponto a merecer destaque, é o que trata do direito sucessório entre os

contratantes. O artigo 14 do PL aplica aos parceiros da união civil as mesmas regras sucessórias, a que

fazem jus os companheiros de união estável. Interpretando-se o dispositivo, entendemos que,

novamente, a união civil recebeu o timbre de família.

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143• O artigo 15 do PL destaca-se, ao prescrever a preferência do contratante

para o exercício da curatela, quando a outra parte perder a capacidade civil. À época da elaboração do

PL 1.151/95, não havia disposição, nesse sentido, aos companheiros de união estável. As Leis 8.971/94

e 9.278/96 (ambas da união estável) não regulamentaram a matéria. O Código Civil de 1916, no artigo

454, previa a ordem preferencial, apenas, ao cônjuge não separado judicialmente.

O Código Civil de 2002 inovou no assunto, ao colocar o companheiro de união

estável, no mesmo patamar do cônjuge. Assim, admitiu-o, como sujeito preferencial para o exercício da

curatela. O CC/ 2002 foi mais enfático do que o Código de 1916, ao prescrever que o cônjuge não

separado judicialmente, nem separado de fato, pode exercer a curatela. Desse modo, retiraram-se

quaisquer dúvidas sobre o último.

Observa-se, então, que o PL 1.151/95 foi além, quando reconheceu a

importância do companheiro homossexual. Diferente, verificou-se nas legislações referentes à união

estável.

3.2 - Pontos Negativos:

• O art. 1º é claro ao prescrever que o PL visa regulamentar os aspectos

patrimoniais da união civil. A crítica assenta-se na limitação a esses caracteres materiais. Aí, parece-nos

que o legislador desprezou a figura do afeto, analisando a união civil, tão-somente, na órbita do Direito

Obrigacional.

• A união civil seria constituída com a elaboração de escritura pública,

registrada no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, com averbação nos assentos de nascimento

e casamento das partes. Somente após o cumprimento de tais formalidades, seria possível a produção de

efeitos jurídicos.

A união estável, diferente da união civil, constituí-se de modo informal. A

elaboração de contrato escrito é uma faculdade. É nesse ponto, que se verifica a desproporção entre os

institutos. À união estável atribuem-se efeitos jurídicos, independente de estipulação em contrato. Na

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144união civil, somente, poder-se-á falar em conseqüências jurídicas, se elaborada escritura pública com o

preenchimento de todos os requisitos.

É comum, na união “livre” (hetero ou homossexual), que o casal não formalize o

vínculo. Essa conduta faz parte da própria natureza do relacionamento. Por isso, deixar de conceder

efeitos jurídicos aos companheiros homossexuais, face à inexistência de escritura pública,

regulamentando a união, é um despautério.

Diante das exigências formais para constituir-se a união civil, pergunta-se:

“como ficaria a situação dos homossexuais que se unissem livremente, isto é, sem a constituição de

escritura pública e seu respectivo registro? Nesse caso, qual legislação poder-se-ia aplicar, após a

dissolução do vínculo: a que regulamentasse a união civil, ou, aquela referente à união estável, ou ainda,

nenhuma, aplicando-se, no que for possível, o Código Civil, para evitar-se o enriquecimento ilícito?”.

Aqui, ter-se-ia um sério problema a enfrentar. Destarte, o PL 1.151/95 falhou nesse aspecto.

• Entre as pessoas que podem constituir união civil, o art. 2º, § 1º, inc. I, faz

referência aos solteiros (as), aos viúvos (as) e aos divorciados (as), omitindo-se, com relação ao

separado. Nesse ponto, o PL 1.151/95 está mais atrasado do que a Lei 8.971/94, que permite a união

estável entre pessoa separada judicialmente. Agora, esse descompasso mostrar-se-ia mais evidente, pois,

o Código Civil de 2002 permite a união estável, não apenas aos separados judicialmente, mas também,

aos separados de fato.

Em relação ao Código Civil de 2002 poder-se-ia admitir o desequilíbrio entre a

união civil e a união estável, pois, trata-se de norma posterior (ao PL 1.151/95). Entretanto, no que se

refere à Lei 8.971/94, entendemos incabível, tal incongruência.

• Outro ponto a merecer comentário, é o art. 2º, § 2º, que veda a mudança de

estado civil dos contratantes, enquanto vigente o contrato de união civil. Nas leis da união estável (Lei

8.971/94 e Lei 9.278/96), não há qualquer previsão nesse sentido. Assim, permite-se aos companheiros a

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145mudança do estado civil. Caso isso ocorra os efeitos jurídicos da união estável terão validade até o seu

término.

• Outro ponto a se destacar é a necessidade de homologação judicial para a

extinção da união civil. Novamente, verifica-se um descompasso entre essa, e a união estável, onde não

há tal exigência.

Mais grave, ainda, é o pedido de extinção da união civil, realizado por ambos os

companheiros, quando houver desinteresse na continuação da vida em comum. Para isso, faz–se mister a

convivência por um período mínimo de 2 (dois) anos. Aí, verifica-se, uma semelhança, com relação ao

disposto na Lei 6.515/73, em seu artigo 4º, quando trata da separação consensual. O Código Civil, de

2002, reduziu esse tempo para 1 (um) ano, conforme preceitua o artigo 1.574.

A dissolução da união estável, diferentemente da união civil, não requer a

homologação judicial. Naquela, é necessário, tão-só, a separação dos companheiros. Nesse aspecto, o PL

1.151/95 aproximou a união civil mais do casamento, do que da união estável. Nossa crítica é quanto ao

período de 2 (dois) anos para a dissolução consensual.

Além dos requisitos acima, a extinção da união civil deveria ser averbada no

assento de nascimento e casamento das partes.

• O artigo 8º considerava ilícito penal a alteração do estado civil dos

companheiros. O mesmo ocorreria, se houvesse a constituição de outro contrato de união civil, enquanto

vigente contrato anterior. Aí, pretendeu-se penalizar os contratantes, tal qual, os cônjuges, no crime de

bigamia.

Na união estável, não há disposição normativa, prescrevendo como ilícito penal,

a contração de nova união estável, enquanto vigente a anterior. Aí, teríamos a segunda, enquanto mero

concubinato. Nesse caso, permitir-se-ia, às partes, a divisão do patrimônio, segundo as regras do Direito

Obrigacional, desde que, provado o esforço comum. Assim, impedia-se o enriquecimento ilícito. O PL

1.151/95 foi mais longe, ao criminar a conduta.

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1463.3 – Aspectos Gerais:

• Na justificativa do PL 1.151/95, ressalta-se que o direito à orientação

sexual é um direito inerente à pessoa humana. Por essa razão, deve ser respeitado, permitindo-se, aos

indivíduos, a busca da felicidade.

• Na justificativa, se reconhece a importância do afeto, como sustentáculo

dos relacionamentos pessoais, principalmente, naqueles referentes à constituição da família. Por essa

razão, verifica-se a necessidade de reconhecer os vínculos homossexuais. Assim, a manifestação da

orientação sexual homossexual, poder-se-ia tornar menos dificultosa. Com essa justificativa, a

legisladora deu aparência de família à união civil, ao destacar o afeto, como base das relações. Todavia,

o artigo 1º do PL 1.151/95, é expresso, ao preceituar que regulamenta os aspectos patrimoniais, não

obstante, em alguns dispositivos, atribua-lhe o status de família.

• Destaca-se a importância da lei para a redução do comportamento

homofóbico e, conseqüentemente, a diminuição da violência contra os homossexuais. A inclusão da

proibição de discriminação, em razão da orientação sexual, na Constituição da República de 1988, em

seus artigos 3º, inc. IV e 7º, inc. XXX, também, poderia atuar nesse sentido. Com isso, a atribuição de

conseqüências jurídicas à união homossexual, por meio do PL 1.151/95, ajudaria no melhor

relacionamento dos homossexuais, com a família. A lei funcionaria, como um “apaziguador das

relações familiares”.

• A justificativa mostra que a homossexualidade não é uma opção. A

orientação sexual homossexual não é mera escolha, mas, sim, algo complexo, que ainda não conseguiu

ser explicado pela ciência. Geralmente, a homossexualidade se manifesta na adolescência, momento em

que a pessoa tenta, sem sucesso, “modificar” esse comportamento.

• Destaca-se, na justificativa, que a união civil é diferente do casamento.

Esse, é o vínculo entre heterossexuais, com as implicações ideológicas e religiosas que lhes são próprias.

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147A união civil seria um instituto que viria regulamentar, a união emocional e permanente, entre duas

pessoas do mesmo sexo. Mais uma vez, faz-se referência ao afeto existente na relação homossexual.

• A justificativa assinala que a união civil, ao contrário do casamento, e da

união estável, é uma relação entre particulares. A assertiva ratifica o seu aspecto contratual. Diferente,

ocorre naqueles institutos, onde a presença do Estado se faz notável.

4- Substitutivo ao Projeto de Lei 1.151, de 1995.

• Da mesma forma que o Projeto original, o Substitutivo visa regulamentar

os direitos patrimoniais da união homossexual. A diferença encontra-se na denominação do “instituto”,

que passaria a ser chamado parceria civil. Retirando-se, essa alteração, o Substitutivo é quase uma cópia

do Projeto original, salvo, algumas exceções.

• A parceria civil, somente, pode se estabelecer entre duas pessoas do

mesmo sexo. Nesse modelo, a relação sexual não é condição sine qua non para sua existência. Isso, a

diferencia da união civil. Destarte, a parceira civil pode se verificar, e.g., entre avô (ó) e neto (a), tio (a)

e sobrinho (a), irmãos (ãs).

Em relação à prescrição da parceira civil (união de duas pessoas do mesmo sexo,

com ou sem interesse sexual), pergunta-se: que classificação atribuir à “comunidade familiar” formada

por duas pessoas de sexos diferentes, sem o vínculo sexual. Da mesma forma, onde poderemos

enquadrar o vínculo constituído entre pessoas do mesmo sexo, mas, com número superior a dois?

Veremos, no próximo tópico, que a primeira indagação seria solucionada por meio do pacto de

solidariedade, entretanto, no que se refere a segunda, ainda não teríamos uma explicação.

• O estado civil dos contratantes não pode ser alterado. No mesmo sentido, é

proibida a realização de contrato de parceira civil com mais de uma pessoa. Nesse último caso, o

Substitutivo prevê a nulidade do contrato. Isso, não entendemos correto, pois a parceira civil pode se

constituir, independente, da existência do vínculo sexual. Assim, não vemos qualquer óbice para que a

parceira civil se firme duas vezes, desde que entre elas, apenas uma tenha a finalidade sexual.

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148Vimos alhures, que o PL 1.151/95, também vedava a mudança do estado civil

dos contratantes. Além disso, era proibido contrato de união civil com mais de uma pessoa. Caso

houvesse tais violações, configurava-se ilícito penal. Esse sujeitar-se-ia, à ação penal pública

condicionada à representação. Para a conduta criminosa, previa-se uma pena de detenção de 6 (seis)

meses a 2 (dois) anos.

No Substitutivo, se a parceria civil não for registrada no Registro Civil de

Pessoas Naturais, verifica-se o “crime de falsidade ideológica” (artigo 299 do Código Penal). Nesse

caso, a ação penal é pública incondicionada, e a pena é de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multa.

Aí, a tipificação penal é mais grave, do que a prevista no Projeto original.

• O artigo 3º, § 2º, veda que se estabeleça, no contrato, alguma disposição

sobre adoção, tutela ou guarda, de menor, ainda que, filho de um dos parceiros. A disposição foi

bastante retrógrada, uma vez que, desvalorizou o vínculo de afeto entre a criança /adolescente, e o

parceiro de seu pai, ou, a parceira de sua mãe. Nesse contexto, ignorou-se a paternidade sócio-afetiva.

Isso prejudicou, tão-só, os interesses do menor, pois, em relação ao parceiro de seu ascendente não terá,

por exemplo, direito a alimentos e sucessão, no caso de desfazimento da parceria civil.

• Diferente do Projeto original, o Substitutivo não prevê o prazo mínimo de

2 (dois) anos, de existência da parceria civil, para a dissolução consensual.

• Da mesma forma que o Projeto original, determinou-se que o imóvel

destinado à residência dos contratantes é “bem de família”. Assim, deve ser protegido nos termos da Lei

8.009/90. Aí, incluiríamos, também, a disposição do Código Civil de 2002 (artigos 1.711 a 1.722).

• Outra diferença do Substitutivo, para o Projeto Original, ocorre em matéria

de direito sucessório. Naquele, as regras já se encontram estabelecidas, ao passo que nesse, remete-se ao

artigo 2º da Lei 8.971/94.

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149No que se refere ao direito de herança, devemos atentar para a redação do art. 13,

inc. II (Substitutivo) 131. Nesse dispositivo, é reconhecido ao parceiro sobrevivente, o direito de usufruto

da metade dos bens do de cujus, caso não haja filhos, embora existam ascendentes. O artigo prescreve:

“(...) embora ‘não’ sobrevivam ascendentes”. Se o lermos, cautelosamente, perceber-se-á, que houve

falha no emprego do vocábulo não. A presença desse, no texto normativo, demonstra total

incongruência com a finalidade sucessória.

Sabe-se que, se não houver descendentes e ascendentes, o parceiro sobrevivente

terá direito à totalidade da herança (art. 13, III). Pergunta-se: “como poderíamos falar em usufruto da

metade dos bens do falecido, ‘somente’, se não houver ascendentes? A prescrição do Substitutivo é, no

mínimo, ilógica. Destarte, entendemos que melhor seria asseverar, tal qual, o fez Fernandes132, que na

hipótese, verifica-se um erro de digitação.

Ratificamos que a redação do art. 13, inc. II (Substitutivo), encontra-se

equivocada, se lermos o art. 15, inc. II, do Projeto de Lei 5.252 de 2001 (autoria, também, do Deputado

Roberto Jefferson – quem apresentou o Substitutivo ao Projeto de Lei 1.151 de 1995). Nesse dispositivo,

prescreve-se que o pactuante sobrevivente terá direito ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se

não houver filhos desse, embora, sobrevivam ascendentes. Observa-se que o artigo 15, inc. II, do PL

5.252 de 2001, diferentemente, do art. 13, inc. II, do Substitutivo, não empregou o termo “não”.

Entendemos que essa é a redação correta.

Apesar do Substitutivo prever regras próprias do direito de herança, o inciso IV,

do artigo 13, confunde sucessão com meação.

• O Substitutivo reconhece, aos parceiros, o direito de inscrição, como

dependente, para efeitos de legislação tributária.

5 - Projeto de Lei 5.252, de 2001.

131 Segue em anexo, ao final do trabalho, o texto do Substitutivo ao Projeto de Lei 1.151/95 (p. 178). 132 FERNANDES op.cit., p. 142.

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150• Finalidade: instituir o Pacto de Solidariedade entre as pessoas. Diferente do

Projeto de Lei 1.151/95, e de seu Substitutivo, o Pacto de Solidariedade não estabelece a identidade de

sexos. Faz referência, tão-só, ao contrato firmado entre “duas pessoas”. Essas, podem ou não, ser do

mesmo sexo.

Uma vez que, o Pacto de Solidariedade não se aplica, especificamente, às uniões

homossexuais, poder-se-á entender que, essas, encontram-se à margem de tal regulamentação. Todavia,

diante do bom senso e da necessidade de se atribuírem conseqüências jurídicas às relações

homoafetivas, é de boa inteligência que façamos uso dele.

• O Projeto de Lei 1.151/95 e seu Substitutivo, não permitiam aos separados

a elaboração de contrato (de união civil e parceira civil, respectivamente). O Projeto de Lei 5.252/01,

em seu artigo 2º, § 1º, inc. I, permite, a esses, o estabelecimento do Pacto de Solidariedade.

A proibição do contrato de união civil e de parceira civil, aos separados, mostra-

se incongruente. A separação põe fim à sociedade conjugal, conseqüentemente, extinguem-se os efeitos

patrimoniais dessa. Tanto o primeiro, quanto o segundo, tem o escopo de regulamentar os aspectos

patrimoniais da relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Destarte, a impropriedade da vedação.

• Tal qual, a união civil e a parceria civil, a constituição do Pacto de

Solidariedade, requer o cumprimento de formalidades. Essas, assemelham-se, àquelas, previstas no

Substitutivo do Projeto de Lei 1.151/95.

• Várias prescrições do Substitutivo (ao PL 1.151/95), repetem-se no PL

5.252 /2001. Entre essas, podemos destacar o artigo referente à adoção, guarda ou tutela de menor. Da

mesma forma que na parceira civil, veda-se a regulamentação desses institutos, no pacto de

solidariedade, ainda que, a criança, ou o adolescente, seja filho de um dos pactuantes. Novamente,

verifica-se um descaso do legislador com a paternidade sócio-afetiva.

• Os pactuantes não podem alterar o estado civil. (semelhança à união civil,

e à parceria civil). A ocorrência do fato, considerar-se-á nula. Aí, as conseqüências da mudança do

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151estado civil são diferentes, em relação àquela prevista no PL 1.151/95. Nesse, a conduta classificava-se

como ilícito penal; no Pacto de Solidariedade, é ilícito civil, entretanto, será ilícito penal, quando um dos

pactuantes não tiver as condições pessoais que o habilitem a firmar o contrato (e.g.: ser casado, ou, não

possuir capacidade civil plena).

No caso de ilícito penal, o pactuante pratica crime de falsidade ideológica,

previsto no artigo 299 do Código Penal. É importante estabelecermos, resumidamente, a ocorrência do

ilícito penal, na união civil, na parceira civil, e no pacto de solidariedade. Desse modo, tem-se:

União civil (Projeto de Lei 1.151/95): quando mantiver contrato de união civil

com mais de uma pessoa, ou, alterar o estado civil.

Parceira civil (Substitutivo do Projeto de Lei 1.151/95): quando não registrar a

parceria civil no Registro de Pessoas Naturais.

Pacto de solidariedade (Projeto de Lei 5.252/01): quando inexistir condições

pessoais para a realização do contrato.

• O PL 5.252/01, tal qual, o Substitutivo do PL 1.151/95, prevê a extinção

consensual do pacto civil, sem a necessidade de observância a prazo mínimo de 2 (dois) anos (exigência

do PL 1.151/95).

• Interessante é a disposição do artigo 10, ao mandar incluir o Capítulo XV,

no Título 11, da Lei 6.015/73. Com essa alteração, a Lei de Registros Públicos regulamentaria, no

Capítulo XV, algumas disposições sobre o Pacto de Solidariedade entre as pessoas.

O artigo 115, da Lei 6.015/73, passaria a disciplinar o Pacto de Solidariedade

firmado em iminente risco de vida e sem a presença da autoridade competente para celebrar o ato. Para a

elaboração do Pacto, seria necessária a observância da seguinte exigência: ser realizado na presença de 6

(seis) testemunhas, que deverão comparecer dentro de 5 (cinco) dias, perante a autoridade judiciária

mais próxima, para que as declarações dos pactuantes sejam reduzidas a termo.

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152Verifica-se que o disposto no artigo 115, da Lei 6.015/73 (se alterado, pelo PL

5.252/ 01), assemelha-se à hipótese do casamento nuncupativo. Esse, encontra-se previsto nos artigos

1.540 e 1.541, do Código Civil de 2002 (correspondência, no Código Civil /1916: artigo 199, inciso II e

parágrafo único; artigo 200).

É o requisito temporal quem diferencia o “Pacto de Solidariedade

nuncupativo”133 (art. 115, Lei 6.015/73), do casamento nuncupativo (arts. 1.540 e 1.541, Código Civil/

2002). A distinção verifica-se no tempo de apresentação, à autoridade judiciária, da declaração de

vontade dos pactuantes, ou, nubentes, para que, essa, possa reduzir-se a termo.

No Pacto de Solidariedade, as partes têm 5 (cinco) dias para comparecer à

autoridade judiciária; no casamento, os noivos dispõe de 10 dias. O prazo maior para os nubentes, foi

estabelecido pelo Código Civil de 2002, pois, o Código anterior (1916) previa 5 dias. Destarte, inferimos

que o “pacto de solidariedade nuncupativo” seguiu a mesma linha do casamento nuncupativo, previsto

no Código de 1916.

• As regras de sucessão já vêm estabelecidas no PL 5.252/01, tal qual, o fez

o Substitutivo ao Projeto de Lei 1.151/95.

• Estabelece-se, igualmente à parceira civil, que no caso de perda da

capacidade civil de um dos pactuantes, o outro terá preferência para exercer a curatela. Aqui, atribuiu-se

o status de família ao Pacto de Solidariedade, pois, o exercício da curatela fora disciplinado, tal qual, no

casamento e na união estável.

• Da mesma forma que o estabelecido no PL 1.151/95, e no seu Substitutivo, a

residência dos pactuantes é considerada “Bem de Família”. Assim, sujeita-se, à Lei 8.009/90, devendo

também, submeter-se ao Código Civil de 2002.

133 Denominação estabelecida pela autora da presente dissertação.

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153CONCLUSÃO:

1. Se a união homossexual fundar-se no afeto, e no animus de constituir família,

tratar-se-á de união homoafetiva. Desse modo, merecerá enquadramento no Direito de Família, tal qual,

o casamento e a união estável. Portanto, a resistência à admissibilidade da união homoafetiva, como

família, é produto de uma cultura conservadora, onde a Igreja Católica se faz bastante influente. Essa

inércia do Estado, manifestada na ignorância à orientação sexual homossexual, viola o princípio

constitucional da dignidade humana.

2. O respeito à orientação sexual, representa a preservação da dignidade

humana. A manifestação dessa, é bastante ampla, podendo se verificar: no bem-estar físico e psíquico.

Isso representa o respeito à honra e à imagem da pessoa (direitos personalíssimos). Assim, a

discriminação aos companheiros de união homoafetiva, em razão, tão-só, de sua orientação sexual, não

pode admitir-se num Estado Democrático de Direito.

3. É impróprio não enquadrarmos a união homoafetiva, na acepção atual de

família. Reconheceram-se novas concepções de grupo familiar, afastando-se o modelo tradicional,

caracterizado pela hierarquia patriarcal. Com isso, a nova acepção de família, enfoca-se na comunhão de

vida, a qual, se verifica nos aspectos materiais e afetivos. Então, excluir a união homoafetiva, desse

contexto, viola princípios constitucionais. Em obediência a esses preceitos, assim como também, em

respeito aos direitos humanos, faz-se mister a atribuição de efeitos jurídicos às comunidades familiares

formadas entre homossexuais.

4. Apesar das inovadoras decisões judiciais, reconhecendo a união homoafetiva,

como família, por conseguinte, atribuindo-lhe conseqüências jurídicas do

casamento e da união estável, ainda é considerável o número de juízes que se recusam, a tal

interpretação. Como conseqüência disso surgem várias justificativas para o não reconhecimento da

união homoafetiva. A principal delas é a omissão legal. Há também o argumento, de que é inviável a

equiparação dessa, à união estável, porque inexiste a diversidade de sexo entre os companheiros.

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1545. A corrente contrária à admissibilidade da união homoafetiva, como família,

argüi que a diversidade de sexo é condição sine qua non para o casamento e a união estável, entidades

familiares reconhecidas constitucionalmente. Segundo essa doutrina, é impossível falarmos em família,

se não houver a figura masculina e feminina. Tal concepção, restringe a orientação sexual à

heterossexualidade. Isso é inadmissível num Estado de Direito, onde se proíbe a discriminação em razão

do sexo.

6. O juiz é figura fundamental no reconhecimento da união homoafetiva, uma

vez que, o Direito brasileiro se mantém negligente sobre a matéria. Destarte, é incumbência do

magistrado socorrer-se em outros instrumentos, para suprir a omissão legal. Entre as possíveis soluções,

é fundamental a observância dos princípios jurídicos. Mesmo diante da ausência de norma, o magistrado

está obrigado a julgar as demandas. Essa hipótese pode ser observada, nas lides referentes à união

homoafetiva. Nesse caso, cabe ao juiz, socorrer-se no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Aí,

prescreve-se a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. Isso prova que

negar os efeitos jurídicos da união estável, à união homoafetiva, sob o argumento de que a Constituição

da República (art. 226, § 3º) exige a diversidade de sexo, é interpretar, limitadamente, o texto

constitucional.

7. O artigo 226, § 3º, CR/ 88, é uma afronta à própria Constituição, pois, viola

princípios constitucionais, entre esses, podemos indicar: o preceito fundamental da dignidade da pessoa

humana (art. 1º, inc. III), e o princípio da igualdade (art. 5º). Da mesma forma, transgridem-se os

objetivos fundamentais da República Federativa Brasileira, a saber: a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem preconceitos de sexo e quaisquer outras

formas de discriminação.

8. A orientação sexual é um direito humano fundamental, por isso, merece

proteção do Estado. Assim, entendemos possível o reconhecimento constitucional da união homoafetiva,

desde que, se estabeleça uma análise completa da Constituição. Nesse caso, faz-se mister a coadunação

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155do artigo 226, § 3º, com os princípios constitucionais e os direitos fundamentais (art. 1º, III; art. 3º, I e

IV; art. 4º, II; art. 5º, caput, III, X, etc).

9. Assim, a recusa de efeitos jurídicos à união homoafetiva é tratamento

discriminatório em razão da orientação sexual, por conseguinte, é discriminação em razão do sexo. Essa,

a interpretação, dá-se pelo fato de que: se a pessoa manifestasse atração sexual e/ou afetiva por alguém

do sexo oposto, ser-lhe-iam atribuídas conseqüências jurídicas de constituição de família (casamento e

união estável), entretanto, se a libido manifestar-se por pessoa do mesmo sexo (união homoafetiva), os

direitos e deveres decorrentes da entidade familiar, lhes serão negados, pois a união homoafetiva, assim

como, o matrimônio e a união estável, podem romper-se, quer por ato inter vivos (separação), quer,

mortis causa (falecimento de um dos companheiros). E caso ocorra a dissolução do vínculo, é necessária

a atribuição de conseqüências jurídicas que contemplem as diversas uniões.

10. É intolerável assim, a acepção promíscua da homossexualidade. O

homossexual manifesta orientação sexual diferente da maioria. Num Estado de Direito, como é o Brasil,

às minorias, asseguram-se os mesmos direitos da maioria. A inércia estatal em regulamentar a união

homoafetiva, infringe os direitos humanos, conseqüentemente, obsta-se a concretização da dignidade da

pessoa humana.

11. Em obediência a princípios constitucionais, alhures comentado, a união

homoafetiva deve fazer jus às seguintes conseqüências jurídicas: partilha de bens (meação), direito

sucessório (herança), direito a alimentos, adoção, bem de família, benefício previdenciário (Direito

Previdenciário) e inelegibilidade do companheiro (Direito Eleitoral). Desse modo, estar-se-ão atribuindo

os mesmos efeitos jurídicos do casamento e da união estável à união homoafetiva.

12. Entretanto, é perceptível que dentre estas conseqüências jurídicas a mais

polêmica é a adoção. A maior razão para negá-la às relações homoafetivas, se dá unicamente pelo

preconceito. Independente da identidade de sexo do casal, a sua concessão deve fundar-se nos melhores

interesses do menor. Então, a negativa do instituto, ao par homossexual, desprovida de uma minuciosa

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156análise, transgride, duplamente, a Constituição da República. Primeiro porque, retira-se do menor o

direito à convivência familiar (assegurado no artigo 227, caput); segundo, fere-se o princípio da

igualdade (art. 5º), quando o adotante é excluído em virtude de sua orientação sexual homossexual. A

recusa deste instituto, nesse caso, fere a concretização dos direitos personalíssimos e por conseguinte da

dignidade humana.

13. A busca do reconhecimento legal à união homoafetiva, antes, já fora

verificada, de forma semelhante, pelos companheiros heterossexuais, para a regulamentação da união

estável. Sabe-se que a tarefa não é das mais simples, ao contrário, é bastante árdua. Pese o principal

desafio a vencer que é a discriminação acerca da homossexualidade. Após isso, quem sabe, será possível

concretizarmos o Estado Democrático de Direito, transferindo a dignidade humana da utopia à

realidade.

14. As prescrições constitucionais da dignidade humana, e da proibição de

discriminação em razão do sexo, não são suficientes para o respeito à homossexualidade. É necessário

que o Estado adote ações positivas, nesse sentido. Destarte, admitir-se-á a participação de todos,

independente de condição pessoal, social e/ ou sexual. Assim sendo, faz-se mister viabilizar com

seriedade e prioridade o enquadramento legal da União Homoafetiva, no Direito de Família.

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ANEXOS:

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166I – LEGISLAÇÃO: 1. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 17 DE JUNHO DE 2003. (CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PARÁ). Dá nova redação ao Inciso IV do artigo 3º da Constituição do Estado do Pará. A Assembléia Legislativa do Estado do Pará estatui e sua Mesa Diretora promulga a seguinte Emenda Constitucional: Art. 1º. O Inciso IV do art. 3º da Constituição do Estado do Pará passa a ter a seguinte redação: "Art. 3º. ......................................................................................................................... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, orientação sexual, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação"; Art. 2º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. Palácio Cabanagem, Mesa Diretora da Assembléia Legislativa do Estado do Pará, em 17 de junho de 2003. Deputado MÁRIO COUTO. Presidente. Deputado JOSÉ MEGALE. 1º Vice-Presidente. Deputado JOSÉ NETO. 2º Vice-Presidente. Deputado HAROLDO MARTINS. 1º Secretário. Deputado JÚNIOR FERRARI. 2º Secretário. Deputado PIO NETTO. 3º Secretário. Deputada SUZANA LOBÃO. 4º Secretária. JUSTIFICATIVA DO PROJETO DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PARÁ (EC 20/2003). O presente Projeto de Emenda Constitucional (PEC) já possui sua história. Trata-se da representação de um Projeto que sustenta a bandeira do direito à livre orientação sexual. Em sua primeira apreciação no ano de 2001, quando necessitava reunir 25 votos favoráveis, a Emenda mobilizou 20 apoios e 5 abstenções, não registrando nenhum voto contrário. Se aprovado naquela Sessão a PEC teria conseguido o inusitado. Teria recebido a unanimidade dos votos, visto que o número de Deputados presentes era exatamente o número de votos necessários para sua aprovação. Algo pouco provável se considerarmos o reconhecido caráter polêmico do Projeto. Entretanto, tal votação sinalizou positivamente ao Projeto. A avaliação dos integrantes dos movimentos de homossexuais e bissexuais é de que, destarte o preconceito, os Ilustres Deputados podem ser convencidos da importância de se vetar explicitamente a discriminação por orientação sexual. Cabe destacar que a presente Emenda surge por iniciativa do Movimento Homossexual de Belém (MHB), entidade que congrega e representa homens e mulheres que vivem a orientação sexual homossexual ou bissexual. Entre a primeira votação e a presente reapresentação, houve outras importantes iniciativas legislativas, como a apresentação do Projeto de Lei nº 95/01, que estabelece multas, face aos casos de discriminação à orientação sexual praticados no âmbito do Estado do Pará. Com estas ações, além de se conquistarem direitos, pretende-se manter em evidência a violência de que são vítimas os pertencentes a este segmento. Violência que em muitos casos se inicia no seio da família, com agressões físicas e psicológicas, culminando em instabilidade emocional e isolamento social. Adicione-se a isso a violência do mercado de trabalho. Muitos são rejeitados quando buscam trabalho, outros são, sumariamente, demitidos quando revelam sua condição. Felizmente os movimentos organizados de homossexuais masculinos e femininos vêm obtendo conquistas. Em 1973, a Associação Psiquiátrica Norte Americana (APA) retirou o termo “homossexualismo” do manual oficial de doenças mentais e emocionais. Em 1975, a Associação de Psicologia Americana (APA) aprovou uma resolução apoiando esta decisão. No Brasil, em 1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria aprovou a seguinte resolução: “Considerando que a Homossexualidade não implica prejuízo do raciocínio, estabilidade e confiabilidade ou aptidões sociais e vocacionais, opõe-se a toda discriminação e preconceito contra os homossexuais de ambos os sexos”. Culminaram estas conquistas com a Resolução da Organização Mundial de Saúde (OMC), que também em 1984 excluiu definitivamente da classificação internacional de doenças (CID) o código 302 que rotulava a homossexualidade como “desvio e transtorno sexual”. Cabe ressaltar que orientação sexual é diferente de “opção sexual”. Três orientações sexuais são reconhecidas: a heterossexual, a homossexual e bissexual. Compõe ainda sexualidade humana o sexo biológico (aparelho genital), a

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167identidade de gênero (o sentido psicológico de ser macho ou fêmea) e o papel-sexual social (adesão às normas culturais). A determinação sexual dos seres é ainda um tema controverso entre os cientistas. As teorias atribuem a determinação da orientação sexual a fatores diversos: hormonais, genéticos, congênitos e a experiências vivencias durante a infância. Os psicólogos consideram que, para a maioria das pessoas, a orientação sexual não seja uma escolha consciente, portanto, não pode ser voluntariamente mudada. Pela cientificidade do conceito e pelo direito a uma identidade diferente, o movimento organizado luta para estabelecê-lo também em nossa Constituição. Leis orgânicas de mais de 100 municípios brasileiros expressam a proibição de discriminar com base na “orientação sexual”. Também as Constituições do Estado do Sergipe, do Estado do Mato Grosso e do Distrito Federal, utilizam “orientação sexual” em seus textos. Dos cinco continentes, quatro deles têm países ou unidades da Federação com Constituições ou Legislações proibindo a discriminação por “orientação sexual”. Para melhor visualização apresento o quadro abaixo: PAÍS ÁREA DE ABRANGÊNCIA TIPO DE LEGISLAÇÃO África do Sul. Todo o território. Constituição Federal. Alemanha. Brandenburgo, Turíngia. Constituições. Austrália. Território da Capital, New South

Wales, Território do Nordeste, Queensland, Austrália do Sul.

Constituições.

Canadá. British Columbia, Manitoba, New Brunswick, Nova Scotia, Ontario, Quebec, Saskatchewan, Território de Ykon.

Constituições.

Dinamarca. Todo o território. Constituição Monárquica. Estados Unidos Califórnia, Connecticut, Distrito de

Columbia, Hawaii, Massachussets, Minnesota, Nova Jersey, Vermont, Wisconsin.

Constituições.

França. Todo o território. Código Penal e do Trabalho. Holanda. Todo o território. Código Penal. Irlanda. Todo o território. Lei das Demissões Injustas (1977). Israel. Todo o território. Lei da Igualdade de Oportunidade no

Trabalho (1968.) Noruega. Todo o território. Código Penal. Nova Zelândia. Todo o território. Lei de Direitos Humanos. Suécia. Todo o território. Código Criminal. Pelo exposto, e por compreender que a sociedade brasileira é dinâmica, diversa em suas relações, e que o Estado Democrático de Direito deve ser fortalecido, combatendo-se as manifestações discriminatórias, é que convido os Nobre Pares desta Casa de Leis a aprovar o presente Projeto de Emenda Constitucional (PEC). Palácio Cabanagem, Plenário Newton Miranda, aos cinco dias do mês março de 2002. Sandra Batista. (Deputada Líder do PC do B). 2. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 67-A DE 1999. (Do Sr. Marcos Rolim e outros). OBS: É a reapresentação da PEC 139/95 de autoria da ex-deputada Marta Suplicy. Altera os artigos 3º e 7º da Constituição Federal. As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art. 1º - É conferida nova redação ao Inciso IV do art. 3º da Constituição: "Art. 3º - ......................................................................... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, orientação sexual, crença religiosa, cor, idade e quaisquer outras formas negativas, de discriminação. (NR)" Art. 2º - É conferida nova redação ao inciso XXX do art. 7º da Constituição: "Art. 7º - ......................................................................... XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação sexual, crença religiosa, idade, cor ou estado civil. (NR)" JUSTIFICAÇÃO:

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168Esta PEC foi apresentada em 1995 pela Deputada Martha Suplicy. Devido ao arquivamento em fevereiro de 1999, reapresentamos a proposta aproveitando a justificação original. A idéia não é nova. Quando da elaboração da Constituição de 1988, a subcomissão dos Negros, Populações Indígenas e Pessoas Portadoras de Deficiência do Congresso Constituinte aprovou, em 25 de maio de 1987, o seguinte texto para o que seria o art. 2°: "Art. 2° - Todos, homens e mulheres, são iguais perante a lei, que punirá como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos humanos e aos aqui estabelecidos. Parágrafo 1° - Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, etnia, raça, cor, sexo, trabalho, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, ser portador de deficiência de qualquer ordem e qualquer particularidade ou condição social. ..." Com o argumento de "enxugar" o texto constitucional, o relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral, retirou a expressão orientação sexual daquela redação. Na revisão constitucional de 1993, o deputado Fábio Feldmann, apresentou, em 07 de dezembro de 1993, a proposta de emenda constitucional PRE 006951-4. Esta emenda visava modificar o inciso XXX do art. 7°, dando a seguinte redação: "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação sexual, idade, cor ou estado civil". A matéria não chegou a ser apreciada pelo Congresso naquela ocasião. Portanto, não estamos inovando. Apenas reapresentamos para análise destas Casas proposta que visa incluir entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, crença religiosa, cor e idade, também o faça sem preconceito por orientação sexual. Além disso, pretendemos incluir nos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a proibição da diferenciação de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por sexo, idade, cor, estado civil, crença religiosa, e orientação sexual. Mas o que na verdade significa orientação sexual? A expressão orientação sexual designa a atração sexual, quanto ao gênero, de uma pessoa por outra. Não se deve confundir orientação sexual com práticas como masoquismo, voyeurismo, etc. É importante lembrar que a Organização Mundial da Saúde e o Conselho Federal de Medicina não consideram a homossexualidade doença, É consenso para os estudiosos da sexualidade que a orientação sexual não é "opção", mas questão complexa, com fortes possibilidades da existência de predisposição genética, que seria concretizada ou não, a partir das relações familiares. As pessoas não escolhem, portanto, sua orientação sexual. O heterossexual não tem direitos de cidadania por ser heterossexual e o homossexual não deveria ser discriminado por ter uma orientação sexual minoritária. Cabe salientar que várias leis orgânicas municipais e algumas constituições estaduais já adotaram seus textos, a inclusão da expressão "orientação sexual" como causa passível de ser penalizada frente a atos discriminatórios. Para uma melhor visualização, apresentamos o seguinte quadro: 134 ESTADOS / MUNICÍPIOS: BAHIA: América Dourada; Caravelas; Cordeiros; Igaporã; Rodelas; Sátiro Dias; Wagner; Araci; Cruz das Almas; Rio do Antônio; Itapicuru; São José da Vitória e Salvador. ESPÍRITO SANTO: Guarapari; Santa Leopoldina e Mantenópolis. GOIÁS: Alvorada do Norte. MARANHÃO: São Raimundo das Mangabeiras. MINAS GERAIS: Cataguases; Elói Mendes; Indianápolis; Itabirinha de Mantena; Maravilhas; Ourofino; São João Nepomuceno e Visconde do Rio Branco. PARANÁ: Atalaia; Cruzeiro do Oeste; Ivaiporã; Laranjeiras do Sul e Mirasselva. PERNAMBUCO: Bom Conselho. PIAUÍ: Pio IX e Teresina RIO DE JANEIRO: Arraial do Cabo; Barra Mansa; Itaocara; Itatiaia; São Sebastião do Alto; Cachoeiras do Macacu; Cordeiro; Italva; Laje do Muriaé; Niterói; Paty do Alferes; São Gonçalo; Três Rios; Silva Jardim e Rio de Janeiro. RIO GRANDE DO NORTE: Grosso e São Tomé SANTA CATARINA Abelardo Luz e Brusque SÃO PAULO: São Paulo, Cabreúva e São Bernardo do Campo. SERGIPE:Constituição Estadual; Itabaianinha; Canhoba; Amparo de São Francisco; Poço Redondo; Riachuelo e Monte Alegre de Sergipe. TOCANTINS: Porto Alegre do Tocantins e Peixe. AMAPÁ: Macapá CEARÁ: Granjeiro e Novo Oriente. MATO GROSSO: Constituição Estadual. PARAÍBA: Aguair. RIO GRANDE DO SUL: Sapucaia do Sul.

134 Devemos mencionar aqui a Constituição do Estado do Pará que, por meio da Emenda Constitucional nº 20 de 2003, alterou o artigo 3º, inc. IV, estabelecendo a proibição de discriminação por orientação sexual. A Constituição paraense não foi citada nesse projeto porque à época, ainda não havia sofrido a alteração.

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169(atualizada até junho de 1995). O que pretendemos com esta emenda é resgatar a cidadania de milhares de brasileiros que são preteridos no mercado de trabalho, assassinados, discriminados no cotidiano do convívio social. Portanto, dentro do princípio que deve reger a ação legislativa, na permanente defesa dos direitos humanos, e considerando: 1 - que "o desconhecimento e o menosprezo dos direitos humanos tem originado atos de barbárie ultrajantes para a consciência da humanidade", dos quais o genocídio nazista na Europa e exemplo, que eliminou, junto a seis milhões de judeus e outras Importantes minorias raciais, aproximadamente 220.000 homossexuais, segundo dados da Igreja Luterana Austríaca; 2 - que "todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e a segurança pessoal" , assim como "sem distinção, direito à igual proteção da lei" e igual proteção contra toda discriminação que infrinja esta Declaração e contra toda provocação a tal discriminação; 3 - que "toda pessoa tem o direito ao respeito à sua integridade física, psíquica e moral”, da qual é parte constituinte a orientação sexual; 4 - que "nada pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ataques ilegais à sua honra ou reputação, assim como "tem direito a toda proteção da lei contra essas ingerências ou esses ataques"; 5 - que "nas sociedades pluralistas de hoje, no seio das quais a família guarda naturalmente todo seu lugar e seu valor, práticas tais como a exclusão das pessoas de certos empregos em razão de sua orientação sexual, a existência de atos de agressão ou a manutenção de perseguição sobre essas pessoas, que tem sobrevivido a vários séculos de preconceitos ; 6 - que "todos os indivíduos, homens e mulheres, tendo chegado à maioridade, prevista em lei, de acordo com a legislação do país em que vivem e sendo capazes de um consentimento pessoal válido, devem ter o direito a autodeterminação sexual"; e 7.- que organizações internacionais de grande prestígio e de ideologias diversas (Organização Mundial da Saúde, Anistia Internacional, Partido Democrata dos Estados Unidos, Associação Psiquiátrica Americana, Associação Americana de Psicologia, Ministério da Saúde da França, Ministério da Saúde do Brasil, Parlamento Europeu etc) têm começado nas últimas décadas a revisar suas posições a respeito dos diferentes aspectos da orientação sexual das pessoas, tendendo à plena incorporação das mesmas num plano de igualdade. Apresentamos esta PEC e esperamos contar com o apoio de meus pares para sua aprovação. Sala das Sessões, em 30 de junho de 1999. Deputado Marcos Rolim. OBS: Arquivado em 31 de janeiro de 2003, pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 105 do Regimento Interno.135 PARECER DA COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E CIDADANIA À PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 67-A/ 99. (Relator: Deputado Waldir Pires). Por iniciativa do deputado Marcos Rolim e outros foi apresentado o Projeto de Emenda à Constituição nº 67, de 1999, retomando uma proposição semelhante de 1995 da brilhante deputada Marta Suplicy, que fora arquivada quando do esgotamento da legislatura anterior, nos termos do Regimento da Casa. Esta Proposta, que está sob nosso exame, nesta legislatura, altera os artigos 3º e 7º da Constituição Federal, pretendendo ampliar-lhes o conteúdo do inciso IV, no artigo 3º e o do inciso XXX, no artigo 7º, para conferir-lhes a seguinte redação: “Art. 3º - ............................................................................ IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, orientação sexual, crença religiosa, cor, idade e quaisquer outras negativas, de discriminação. (NR)” Art. 2º - É conferida nova redação ao inciso XXX do art. 7º da Constituição. “Art. 7º - ........................................................................... XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação sexual, crença religiosa, idade, cor ou estado civil. (NR)” JUSTIFICAÇÃO O autor faz uma justificação competente da iniciativa da PEC. Diz que a idéia não é nova. Informa que durante a fase dos trabalhos de elaboração constituinte, a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas e pessoas Portadoras de Deficiência aprovou em 25 de maio de 1987, as seguintes normas para o que seria, no projeto, o art. 2º: “Art. 2º - Todos, homens e mulheres, são iguais perante a lei, que punirá com crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos humanos e aos aqui estabelecidos. Parágrafo 1º - Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, etnia, raça, cor, sexo, trabalho, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, ser portador de deficiência de qualquer ordem e qualquer particularidade ou condição social...”

135 Informação obtida in: http://www.camara.gov.br. Em: 7 fev. 2005.

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170Mas nos esclarece que o relator da Comissão de Sistematização, com o argumento de “enxugar” o Texto Constitucional retirou a expressão “orientação sexual” daquela redação. Acrescenta, ainda, que, na revisão constitucional de 1993, o deputado Fábio Feldman apresentou emenda constitucional visando a alterar o inciso XXX, do art. 7º, com a seguinte redação : “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação sexual, idade, cor ou estado civil”. A matéria não chegou a ser discutida. Acentua o autor, assim, que não está inovando. O que busca é incluir entre os objetivos fundamentais que a Constituição enuncia, quando recomenda a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, crença religiosa, também o faça, expressamente, sem o preconceito da orientação sexual. E textualmente, acrescenta “mas o que na verdade significa orientação sexual? A expressão orientação sexual designa a atração sexual, quanto ao gênero, de uma pessoa por outra. Não se deve confundir orientação sexual com práticas como masoquismo, voyeurismo, etc. É importante lembrar que a Organização Mundial da Saúde e o Conselho federal de Medicina não consideram a homossexualidade doença. É consenso para os estudiosos da sexualidade que a orientação sexual não é opção, mas questão complexa, com fortes possibilidades da existência de predisposição genética, que seria concretizada, ou não, a partir das relações familiares. O heterossexual não deveria ser discriminado por ter uma orientação sexual minoritária”. O autor, em seguida, enuncia muitas dezenas de municípios que adotaram, nos seus textos, de Lei Orgânica a inclusão da expressão “orientação sexual” como causa possível de ser penalizada frente a atos discriminatórios, nos estados do Amapá, Ceará, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Tocantins, Mato Grosso, Paraíba, Rio Grande do Sul. E também as contribuições estaduais do Mato Grosso e de Sergipe. Por último, fundamenta a justificação essencial de sua proposição nos princípios e normas, que indica, contidos no Preâmbulo e Artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos; nas regras da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica); na Fundamentação das Recomendações 924 do Parlamento Europeu, de 1981. A PEC 67, de 1999, encontra-se, nesta Comissão, para ser submetida ao exame de sua admissibilidade. Na Constituição Federal do Brasil não há previsão constitucional como a que se pretende incluir no texto atualmente em vigor. Em nossa opinião nada há, igualmente, que possa agredir as limitações definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República. Creio que a explicitação que a Emenda consagra corresponde aos compromissos proclamados na regra que abre seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e que lhe dá início afirmando, no caput do artigo 5º: Todos são iguais perante a Lei. Assim, assegura a todos igual proteção. A lei não distingue entre indivíduo e indivíduo. Por isso não é lícito ao legislador outorgar garantia constitucional a um e negá-la a outro. Na obediência desses princípios democráticos quer proteja, quer castigue, civil ou criminalmente, a lei será sempre igual para todos. Voto pela admissibilidade da proposição, por sua constitucionalidade e, no mérito, por sua aprovação. Sala das Sessões, 30 de maio de 2000. Deputado Waldir Pires. 3. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 66, DE 2003. (Da Senhora Maria do Rosário e outros). Dá nova redação aos artigos 3º e 7º da Constituição Federal. As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art. 1º O Inciso IV do art. 3º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 3º ..................................................................................................................... IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, orientação e expressão sexual, crença religiosa, convicção política, condição sócio-econômica, condição física, psíquica ou mental, cor, idade e nem por quaisquer outras formas de discriminação.” (NR) Art. 2º O Inciso XXX do art. 7º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 7º ...................................................................................................................... XXX – proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação e expressão sexual, crença religiosa, convicção política, condição física, psíquica ou mental, idade, cor ou estado civil.” (NR) JUSTIFICAÇÃO: A presente proposição visa a acrescentar de forma clara e precisa entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e entre os direitos dos cidadãos a proibição de práticas discriminatórias contra a etnia, orientação sexual, crença religiosa, convicção política, condição sócio-econômica e deficiência física ou mental. Trata-se do estabelecimento, por parte do Estado, da garantia de que os direitos humanos estarão afirmados permanentemente em seu caráter universal. O reconhecimento constitucional do direito à livre orientação e expressão sexual, a livre crença religiosa e convicção política, a não discriminação por condição física, psíquica ou mental, colocado juntamente com o que a Constituição já prevê, origem, raça, sexo, cor, idade, complementam de forma a atualizar a Carta Magna a partir de preocupações sentidas pela

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171sociedade brasileira. A emenda constitucional ora apresentada tem este objetivo, bem como estabelecer o conceito de etnia ao lado dos já citados raça e cor, como forma de ampliar a compreensão a partir da valorização da diversidade étnica do País. Nosso desafio é consolidar a proibição de práticas discriminatórias e oferecer a população brasileira um instrumento para a afirmação plena dos direitos civis de cada um de seus cidadãos e cidadãs. Compreendemos que incluído este princípio entre as garantias constitucionais, estaremos cumprindo com nosso dever com todos aqueles que tem suas vidas marcadas pela discriminação e pela violência em todas as esferas da sociedade. Estaremos contribuindo para a afirmação da liberdade, da tolerância e do respeito humano. Pelo exposto, contamos com o apoio dos nobres pares para a aprovação da presente proposta. Sala das Sessões, em 27 de maio de 2003. Deputada Maria Do Rosário (PT – RS). OBS: Encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça, em 4 de agosto de 2003 foi designado para relator o Deputado Paulo Rocha.136 4. PROJETO DE LEI Nº 1.151, DE 1995. (Da Srª. Marta Suplicy). Disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências. O Congresso Nacional Decreta: Art. 1º - É assegurado a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua união civil, visando a proteção dos direitos à propriedade. Art. 2º - A união civil entre pessoas do mesmo sexo constitui-se mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registros Civil de Pessoas Naturais. Parágrafo 1º - Os interessados e interessadas comparecerão perante os oficiais de Registro Civil exibindo: I - prova de serem solteiros ou solteiras, viúvos ou viúvas, divorciados ou divorciadas; II - prova de capacidade civil plena; III - instrumento público de contrato de união civil. Parágrafo 2º - O estado civil dos contratantes não poderá ser alterado na vigência do contrato de união civil. Art. 3º - O contrato de união civil será lavrado em Ofício de Notas, sendo livremente pactuado. Deverá versar sobre disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas. Parágrafo único. Somente por disposição expressa no contrato, as regras nele estabelecidas também serão aplicadas retroativamente, caso tenha havido concorrência para a formação de patrimônio comum. Art. 4º - A extinção da união civil ocorrerá: I - pela morte de um dos contratantes; II - mediante decretação judicial; Art. 5º - Qualquer das partes poderá requerer a extinção da união civil: I - demonstrando a infração contratual em que se fundamenta o pedido; II - alegando o desinteresse na sua continuidade; Parágrafo 1º - As partes poderão requerer consensualmente a homologação judicial da extinção da união civil. Parágrafo 2º - O pedido judicial de extinção da união civil, de que tratam o inciso II e o parágrafo 1º deste arquivo, só será admitido depois de decorridos 2 (dois) anos de sua constituição. Art. 6º - A sentença que extinguir a união civil conterá a partilha dos bens dos interessados, de acordo com o disposto no instrumento público. Art. 7º - O registro de constituição ou extinção da união civil será averbado nos assentos de nascimento e casamento das partes. Art. 8º - É crime, de ação penal pública condicionada à representação, manter o contrato de união civil a que se refere esta Lei com mais de uma pessoa, ou infringir o parágrafo 2º do artigo 2º. Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. Art. 9º - Alteram-se os artigos da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que passam a vigorar com as seguintes redações: Art. 29º - Serão registrados no registro civil de pessoas naturais: (...) IX - os contratos de união civil entre pessoas do mesmo sexo. Parágrafo 1º - Serão averbados: (...) g) a sentença que declarar e extinção da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Art. 33º -Haverá em cada cartório, os seguintes livros, todos com trezentas folhas cada um: (...) III - B - Auxiliar - de registro de casamento religioso para efeitos civis e contratos de união civil entre pessoas do mesmo sexo. Art. 167º - No registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

136 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 7 fev. 2005.

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172I - o registro: (...) 35 - Dos contratos de união civil entre pessoas do mesmo sexo que versarem sobre comunicação patrimonial, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer das partes, inclusive os adquiridos posteriormente à celebração do contrato. II - a averbação: (...) XIV - das sentenças de separação judicial, de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento e de extinção de união civil entre pessoas do mesmo sexo, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro". Art. 10º - O bem imóvel próprio e comum dos contratantes de união civil com pessoa do mesmo sexo é impenhorável, nos termos e condições regulados pela lei 8.009, de 29 de março de 1990. Art. 11º - Os artigos 16º e 17º da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991 passam a vigorar com a seguinte redação. (...) Art 16º - (...) Parágrafo 3º - Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém, com o segurado ou com a segurada a união estável de acordo com o Parágrafo 3º - do art. 226º da Constituição Federal, ou união civil com pessoa do mesmo sexo, nos termos da lei. Art 17º - (...) Parágrafo 2º - O cancelamento da inscrição do cônjuge e do companheiro ou companheira do mesmo sexo se processa em face de separação judicial ou divórcio sem direito a alimentos, certidão de anulação de casamento, certidão de óbito ou sentença judicial, transitada em julgado". Art. 12º - Os artigos 217 e 241 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990 passam a vigorar com a seguinte redação: Art 217º - (...) c) A companheira ou companheiro designado que comprove união estável com entidade familiar, ou união civil com pessoa do mesmo sexo, nos termos da lei.(...). Art 241 - (...) Parágrafo único. Equipara-se ao cônjuge a companheira ou companheiro, que comprove união estável como entidade familiar, ou união civil com pessoa do mesmo sexo, nos termos da lei". Art. 13º - No âmbito da Administração Pública, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal disciplinarão, através de legislação própria, os benefícios previdenciários de seus servidores que mantenham união civil com pessoas do mesmo sexo. Art. 14º - São garantidos aos contratantes de união civil entre pessoas de mesmo sexo, desde a data de sua constituição, os direitos à sucessão regulados pela Lei nº 8.971, de 28 de dezembro de 1994. Art. 15º - Em havendo perda de capacidade civil de qualquer um dos contratantes de união civil entre pessoas do mesmo sexo, terá a outra parte a preferência para exercer a curatela. Art. 16º - O inciso I do art. 113, da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, passa a vigorar com a seguinte redação : Art. 113º - (...) I - ter filho, cônjuge, companheira de união civil entre pessoas do mesmo sexo, brasileiro ou brasileira". Art. 17º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 18º - Revogam-se as disposições em contrário. JUSTIFICATIVA: O presente Projeto de Lei visa o reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo, relacionamentos estes que cada vez mais vêm se impondo em nossa sociedade. A ninguém é dado ignorar que a heterossexualidade não é a única forma de expressão da sexualidade da pessoa humana. O Conselho Federal de Medicina, antecipando-se à Organização Mundial de Saúde, já em 1985 tornou sem efeito o código 302, o da Classificação Internacional de Doenças, não considerando mais a homossexualidade como "desvio ou transtorno sexual". A sociedade vive uma lacuna frente às pessoas que não são heterossexuais. Elas não têm como regulamentar a relação entre si e perante a sociedade, tais como pagamento de impostos, herança, etc... Esta possibilidade de parceria só é reconhecida entre heterossexuais. E os outros tantos ? Realidade e Direitos: Esse projeto pretende fazer valer o direito à orientação sexual, heterossexual, bi ou homossexual, enquanto expressão dos direitos inerentes à pessoa humana. Se os indivíduos têm direito à busca da felicidade, por uma norma imposta pelo direito natural a todas as civilizações, não há porque continuar negando ou querendo desconhecer que muitas pessoas só são felizes se ligadas a pessoas a outras do mesmo sexo. Longe de escândalos ou anomalias, é forçoso reconhecer que estas pessoas só buscam o respeito às uniões enquanto parceiros respeito e consideração que lhes é devida pela sociedade e pelo Estado. Relação duradoura: Relacionamentos pessoais baseados num compromisso mútuo, laços familiares e amizades duradouras são parte da vida de todo ser humano. Eles satisfazem necessidades emocionais fundamentais e provêem a segurança e aconchego nas horas de crise em vários momentos da vida, inclusive na velhice. São uns poderosos instrumentos contra a falta de raízes, protegem e mantém a integridade dos indivíduos. Com essa intenção, a relação permanente e compromissada entre homossexuais deve existir como possibilidade legal. Ao mesmo tempo a aceitação legal da união civil entre pessoas do mesmo sexo encorajará mais gays e lésbicas a assumirem sua orientação sexual. Longe de "criar" mais homossexuais, essa realidade somente tornará mais fácil a vida das pessoas que já vivem esta orientação sexual de forma clandestina. A possibilidade de assumir o que se é, tem como conseqüência a diminuição da angústia e também, segundo pesquisas uma maior possibilidade de proteção à saúde, principalmente em relação à AIDS.

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173O que é proibido gera vergonha, dissimulação e, muitas vezes, medo. A possibilidade da união estável, mesmo que não exercida, reduzirá problemas criados pela necessidade de esconder a própria natureza, de não ser reconhecido (a) socialmente, viver em isolamento ou na mentira. Violência: O Brasil é um país no qual os homossexuais, masculinos e femininos, têm sofrido, extrema violência. Raras são as semanas que não se sabe de um assassinato violento. Uma das portas que leva à violência é a homofobia. A aceitação da homossexualidade - a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo favorecerá e certamente diminuirá o comportamento homofóbico e conseqüente agressão. A lei, além de aceitar e proteger uma realidade, provê um respaldo social importante. Solidariedade: A possibilidade de oficializar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, permitirá, como nas uniões heterossexuais, que em períodos de crise os casais possam ser ajudados. Os casais heterossexuais casados quando passam por problemas enfrentam vários fatores que impedem uma ruptura imediata. Situação enfrentada pelos homossexuais que geralmente mantêm relações secretas, ignoradas pela família e amigos, que não oferecem ajuda nas situações difíceis. Uma parceria legalizada será sinal de que o casal, gay ou lésbica, para suas famílias, amigos e sociedade, desejam manter uma relação de compromisso. Isso será enfatizado pelo status formal e legal da união. Muitos casais homossexuais acham uma injustiça que mesmo depois de muitos anos de coabitação ainda são considerados - legal, econômica e socialmente - meramente como duas pessoas que dividem uma residência. Relacionamentos estáveis proverão segurança e um sentimento de pertencer. A maioria dos homossexuais sozinhos não são reconhecidos pelas famílias. As pessoas com orientação homossexual possuem a mesma necessidade de segurança e proximidade que pessoas com orientação heterossexual, e devem ter direitos ao mesmo apoio nas relações permanentes. O projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo não vai resolver todos estes problemas, nem fazer com que todas as famílias aceitem essa situação, mas certamente poderá ter um efeito estabilizador. Homossexualidade: As causas da homossexualidade são complexas. Os estudiosos acreditam que a homossexualidade não é uma opção, assim como também a heterossexualidade não é uma escolha. As pessoas se descobrem diferentes por volta da pré-puberdade, quando não sabe ainda o que é "homossexualidade". Na puberdade, os hormônios da sexualidade começam a funcionar com conseqüente aumento do desejo sexual, sonhos eróticos e masturbação. A pessoa percebe sua atração por pessoas do mesmo sexo. Acredita-se que fora a orientação sexual, são tão normais e tão diferentes individualmente como os heterossexuais. Entretanto, ser homossexual é, freqüentemente, causa de grandes problemas. A atitude preconceituosa da sociedade resulta em isolamento para homossexuais e, freqüentemente dificulta suas vidas e até seus relacionamentos pessoais e estabilidade emocional. Diferenças e semelhanças entre união civil e casamento: A possibilidade de regularizar uma situação de união já existente tornará estes relacionamentos mais estáveis, na medida que serão solucionados problemas práticos, legais e financeiros. A vida social dos casais homossexuais também será afetada, fazendo com que sejam mais bem aceitos pela sociedade e até pelas próprias famílias. Esse projeto procura disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo e não se propõe dar às parcerias homossexuais um status igual ao casamento. O casamento tem um status único. Esse projeto fala de "parceria" e "união civil". Os termos "matrimônio" e "casamento" são reservados para o casamento heterossexual, com suas implicações ideológicas e religiosas. Está entendido, portanto, que todas as provisões aplicáveis aos casais casados também devem ser direito das parcerias homossexuais permanentes. A possibilidade para casais de gays e lésbicas registrarem suas parcerias implicará na aceitação por parte da sociedade de duas pessoas do mesmo sexo viverem juntas numa relação emocional permanente. Aspectos Jurídicos: O projeto de lei que disciplina a união civil entre pessoas de mesmo sexo vem regulamentar, através do direito, uma situação que há muito, já existe de fato. E, o que de fato existe, de direito não pode ser negado. A criação desse novo instituto legal é plenamente compatível com o nosso ordenamento jurídico, tanto no que se refere a seus aspectos formais quanto de conteúdo. É instituto que guarda perfeita harmonia com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil - constitucionalmente garantidos - de construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos: sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º, I e IV CF). A figura da união civil entre pessoas do mesmo sexo não se confunde nem com o instituto do casamento, regulamentado pelo Código Civil Brasileiro, nem com a união estável, prevista no parágrafo 3º, do art.226 da Constituição Federal. É mais uma relação entre particulares que, por sua relevância e especificidade, merece a proteção do Estado e do Direito. O projeto estabelece com clareza os direitos que visa proteger nessa relação. As formalidades nele previstas servem não só como uma garantia entre os próprios contratantes, mas também perante terceiros; servem, ainda, como um indicador para a sociedade, de quão sério é o tema nele tratado e da expectativa de durabilidade e estabilidade que têm em suas relações. Para sua melhor adequação ao ordenamento jurídico, propõem-se algumas pequenas, porém significativas, alterações de legislações específicas, como em alguns artigos: da lei de registros públicos, da lei de benefícios previdenciários, do estatuto dos servidores públicos federais e da lei dos estrangeiros. A sociedade brasileira é dinâmica e abarca uma diversidade de relações; o Direito brasileiro deve acompanhar. Sala das Sessões, em 26 de outubro de 1995. Deputada Marta Suplicy (PT /SP).

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174OBS: Retirado de pauta no Plenário, em 31 de maio de 2001, face a acordo entre os líderes.137 5. SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 1.151, DE 1995. (Do Sr. Roberto Jefferson). Disciplina a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. É assegurado a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua parceria civil registrada, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais regulados nesta Lei. Art. 2º. A parceria civil registrada constitui-se mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais na forma que segue. § 1º. Os interessados comparecerão perante os Oficiais de Registro Civil, apresentando os seguintes documentos: I - declaração de serem solteiros, viúvos, ou divorciados; II - prova de capacidade civil absoluta, mediante apresentação de certidão de idade ou prova equivalente; III - instrumento público do contrato de parceria civil. § 2º. Após a lavratura do contrato a parceria civil deve ser registrada em livro próprio no Registro Civil de Pessoas Naturais. § 3º. O estado civil dos contratantes não poderá ser alterado na vigência do contrato de parceria civil registrada. Art. 3º. O contrato de parceria registrada será lavrado em Ofício de Notas, sendo livremente pactuado e versando sobre disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas. § 1º. Somente por disposição expressa no contrato, as regras nele estabelecidas também serão aplicadas retroativamente, caso tenha havido concorrência para formação de patrimônio comum. § 2º. São vedadas quaisquer disposições sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros. Art. 4º. A extinção da parceria registrada ocorrerá: I - pela morte de um dos contratantes; II - mediante decretação judicial; III - de forma consensual, homologada pelo juiz. Art. 5º. Qualquer das partes poderá requerer a extinção da parceria registrada: I - demonstrando a infração contratual em que se fundamenta o pedido; II - alegando o desinteresse na sua continuidade. Parágrafo único. As partes poderão requerer consensualmente a homologação judicial da extinção de sua parceria registrada. Art. 6º. A sentença que extinguir a parceria registrada conterá a partilha dos bens dos interessados, de acordo com o disposto no contrato. Art. 7º. É nulo de pleno direito o contrato de parceria registrada feito com mais de uma pessoa ou quando houver infração ao § 2º do artigo 2º desta Lei. Parágrafo único. Ocorrendo a infração mencionada no caput, seu autor comete o crime de falsidade ideológica, sujeitando-se às penas do artigo 299 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 8º. Alteram-se os arts. 29, 33 e 167 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que passam a vigorar com as seguintes redações: "Art.29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais: (...) IX - os contratos de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo. Parágrafo 1º. Serão averbados: (...) g) a sentença que declarar e extinção da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo. Art. 33. Haverá em cada cartório, os seguintes livros: (...) III. E - de registro de contratos de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo. Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I - o registro: (...) 35 - dos contratos de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo que versem sobre comunicação patrimonial, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer das partes, inclusive os adquiridos posteriormente à celebração do contrato. II - a averbação: (...) 14 - das sentenças de separação judicial, de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento e de extinção de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro." Art. 9º. O bem imóvel próprio e comum dos contratantes de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo é impenhorável, nos termos e condições regulados pela lei 8.009, de 29 de março de 1990. Art. 10. Registrado o contrato de parceria civil de que trata esta Lei, o parceiro será considerado beneficiário do Regime

137 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 8 fev. 2005.

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175Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado. Parágrafo único. A extinção do contrato de parceria implica o cancelamento da inscrição a que se refere o caput deste artigo. Art. 11. O parceiro que comprove a parceria civil registrada será considerado beneficiário da pensão prevista no art. 217, I, da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Art. 12. No âmbito da Administração Pública, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal disciplinarão, através de legislação própria, os benefícios previdenciários de seus servidores que mantenham parceria civil registrada com pessoa do mesmo sexo. Art. 13. São garantidos aos contratantes de parceria civil registrada com pessoa do mesmo sexo, desde a data de sua constituição, os direitos à sucessão, nas seguintes condições: I - o parceiro sobrevivente terá direitos, desde que não firme novo contrato de parceria civil registrada, ao usufruto da quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste; II - o parceiro sobrevivente terá direito, enquanto não contratar nova parceria civil registrada, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora não sobrevivam ascendentes; III - na falta de descendentes e ascendentes, o parceiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança; IV - se os bens deixados pelo autor da herança resultar de atividade em que haja a colaboração do parceiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens. Art. 14. O art. 454 da Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, passa a vigorar acrescido de § 3º, com a redação que se segue, passando o atual § 3º a § 4º: "Art. 454. (...) 1º. (...) § 2º. (...) § 3º Havendo parceria civil registrada com pessoa do mesmo sexo, a esta se dará a curatela. Art. 15. O art. 113 da Lei 6.815, de agosto de 1980, passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 113. (...) VI - ter contrato de parceria civil registrada com pessoa de nacionalidade brasileira." Art. 16. É reconhecido aos parceiros o direito de composição de rendas para aquisição da casa própria e todos os direitos relativos a planos de saúde e seguro de grupo. Art. 17. Será admitida aos parceiros a inscrição como dependentes para efeitos de legislação tributária. Art. 18. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 19. Revogam-se as disposições em contrário. Deputado Roberto Jefferson. Sala da Comissão, em 10 de dezembro de 1996. 6. PROJETO DE LEI Nº 1.904, DE 1999. (Do Sr. Nilmário Miranda). Altera o art. 1º da Lei nº 7.716 de 5 de janeiro de 1989, que “Define os crimes resultantes de Preconceitos de Raça ou de Cor e dá outras providências”. (À Comissão de Constituição e de Redação). O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. O art. 1º da Lei nº 7.716, de 1989, alterado pela Lei 9.459 de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º. Serão punidos na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional ou orientação sexual”. Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: Os homossexuais na sociedade brasileira sofrem todo tipo de discriminação e preconceito, representando hoje um dos setores mais vitimizados. As estatísticas demonstram que cresce o número de crimes contra os homossexuais como assassinatos, torturas, maus-tratos, lesões corporais etc. Também são numerosos os casos de ação de grupos de extermínio e de violência policial contra essas pessoas. As cidades que registram maior número de violações são Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Goiânia. No entanto, a violação mais comum aos homossexuais é a discriminação e o preconceito que acontece cotidianamente nos locais públicos e instituições. Recentemente, foi instalado no Rio de Janeiro um disque-denúncia de violações contra os homossexuais, registrando em torno de 60 denúncias de discriminação por dia, somente nos primeiros dias de funcionamento. Os gays, lésbicas, travestis e transexuais enfrentam humilhações, intolerância e os mais diversos preconceitos. Porém, quando chegam a denunciar tais condutas nada é feito pelas instituições judiciárias. Na própria delegacia de polícia essas ações delituosas, quando registradas, sequer são averiguadas, sob a alegação de que não há o tipo penal de discriminação por orientação sexual. Assim, não origina inquéritos nem mesmo ação penal. A Constituição Federal dispõe sobre a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Há também dispositivos que asseguram o direito à intimidade e à vida privada. No entanto, é mister que se tenha no ordenamento jurídico a previsão para a discriminação por orientação sexual, da mesma

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176forma que já existe essa conduta tipificada como delituosa para o racismo. No dia 22 de setembro de 1999, foi realizado na Comissão de Direitos Humanos desta Casa Legislativa um seminário com a presença de diversas entidades de defesa dos direitos humanos dos homossexuais. Após um dia inteiro de debate com juristas e deputados, ficou deliberado que esta Comissão ingressaria com um projeto de lei tipificando o crime de discriminação por preconceito de orientação sexual. Optamos, assim, em alterar a Lei 7.716/99 que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, ao invés de criar nova lei ordinária para a tipificação penal de preconceito por orientação sexual, uma vez que há grande semelhança nas condutas discriminatórias. Em face do exposto, conclamo os nobres colegas a apoiarem a presente iniciativa, na certeza de que estarão contribuindo para acabar com a discriminação e o preconceito contra os homossexuais. Sala das Sessões, em 20 de outubro de 1999. Deputado Nilmário Miranda (PT/MG). OBS: Arquivado em 31 de janeiro de 2003, pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 105 do Regimento Interno.138 7. PROJETO DE LEI Nº 2.367 DE 2000. (Do Sr. Vicente Caropreso). Altera o art. 1º da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que “define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”, para incluir os de gênero e de opção sexual. (Apense-se ao Projeto de Lei nº 1904, de 1999). O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. O art. 1º da lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º. Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional gênero e opção sexual”. Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etina, religião e procedência nacional, o que é um grande avanço para coibir prática tão nefasta e tão incompreensível no relacionamento humano. No entanto, constatamos que o preconceito e a discriminação contra mulheres e homossexuais, continua a grassar em nosso meio, o que não é admissível no atual estágio de civilização em que nos encontramos, sem que os agentes sejam obrigados a responder por tal atitude, deixando as vítimas sem nenhuma proteção jurídica. Para que a Lei nº 7.716, de 1989, possa punir a discriminação e o preconceito contra todas as pessoas mais frágeis do contexto social, estamos apresentando o presente Projeto de Lei, para o qual solicitamos o apóio de nosso ilustres Pares no sentido de sua aprovação. Sala das Sessões, em 27 de janeiro de 2000. Deputado Vicente Caropreso. OBS: Arquivado em 31 de janeiro de 2003, pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 105 do Regimento Interno.139 PARECER DA COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO DE JUSTIÇA E DE CIDADANIA AOS PROJETOS DE LEI Nº 1.904/99 E 2.367/2000. (Relator: Deputado Marcos Rolim). I – RELATÓRIO: Os projetos em exame buscam tipificar a conduta consistente em discriminação ou preconceito decorrente de orientação sexual. As justificações apontam para as violações de direitos praticadas contra as mulheres e os homossexuais e que não são punidas pela ausência de legislação a esse respeito. Cabe-nos, nesta Comissão, o pronunciamento quanto à constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e ao mérito dos projetos, de acordo com o art. 32, III, “a” e “e” do Regimento Interno. As matérias não tramitam conclusivamente, razão pela qual não foi aberto o prazo para a apresentação de emendas na Comissão. É o relatório. II - VOTO DO RELATOR: As proposições ora analisadas atendem aos pressupostos de constitucionalidade relativos à competência da União (art. 22 da C.F.), ao processo legislativo (art. 59 da C.F.) e à legitimidade de iniciativa (art. 61 da C.F.). A juridicidade encontra-se atendida, porquanto não há ofensa aos princípios informadores do nosso ordenamento jurídico.

138 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 7 fev. 2005. 139 Idem.

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177Todavia, quanto à técnica legislativa, há reparos a fazer, que serão oportunamente indicados. No mérito, os projetos revelam-se oportunos, acompanhando a evolução do direito constitucional brasileiro. A igualdade de todos perante a lei, a dignidade e a honra do ser humano são princípios consagrados entre os direitos e garantias individuais contidos no art. 5º de nossa Carta Magna. Não se justifica que a legislação, ao contemplar a discriminação e o preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, deixe de incluir o gênero e a orientação sexual. O direito deve atentar para os fenômenos sociais, sob pena de descumprir a sua finalidade. O direito é fato social, já nos ensina o mestre Récassens Siches, em seu “Tratado de Sociologia Jurídica”. A proposição, sem dúvida, vem ao encontro dos anseios da sociedade, ao resguardar a dignidade humana daqueles que adotam orientação sexual diversa da maioria, bem como das mulheres. Quanto à técnica legislativa, o Projeto principal utiliza a expressão “e dá outras providências”, e, além de não indicar quais seriam, circunscreve-se em alterar o art. 1º da Lei 7.716/89, conflitando com a Lei Complementar nº 95/98. Para sanar esses vícios e inserir, expressamente, a tipificação pela discriminação contra a mulher, prevista na proposição apensada, é que apresentamos o substitutivo em anexo. Em face desses argumentos, nosso voto é pela constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa dos projetos de lei de nºs 1.904/99 e 2.367/2000 com as alterações propostas. No mérito, somos pela aprovação, na forma do substitutivo em anexo. Sala da Comissão, em 23 de janeiro de 2001. Deputado Marcos Rolim. 8. PROJETO DE LEI Nº 5.003, DE 2001. (Da Srª. Iara Bernardi). Determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas. (À Comissão de Constituição e Justiça e de Redação). O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. A qualquer pessoa jurídica que por seus agentes, empregados, dirigentes, propaganda ou qualquer outro meio, promoverem, permitirem ou concorrerem para a discriminação de pessoas em virtude de sua orientação sexual serão aplicadas as sanções previstas nesta lei, sem prejuízo das outras de natureza civil ou penal. Art. 2º. Para efeitos desta lei são atos de discriminação impor às pessoas, de qualquer orientação sexual, e em face desta, as seguintes situações: I – constrangimento ou exposição ao ridículo; II – proibição de ingresso ou permanência; III – atendimento diferenciado ou selecionado; IV – preterimento quando da ocupação de instalações em hotéis ou similares, ou a imposição de pagamento de mais de uma unidade; V- preterimento em aluguel ou locação de qualquer natureza ou aquisição de imóveis para fins residenciais, comerciais ou de lazer; VI – preterimento em exame, seleção, ou entrevista para ingresso em emprego; VII – preterimento em relação a outros consumidores que se encontrem em idêntica situação; VIII – adoção de atos de coação, ameaça ou violência; Art. 3º. A infração aos preceitos desta lei sujeitará os infratores às seguintes sanções: I- inabilitação para contratos com órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional; II – acesso a créditos concedidos pelo Poder Público e suas instituições financeiras, ou a programas de incentivo ao desenvolvimento por estes instituídos ou mantidos; III – isenções, remissões, anistias, ou quaisquer benefícios de natureza tributária; Parágrafo único: Em qualquer caso, o prazo de inabilitação será de doze meses contados da data de aplicação da sanção. Art. 4º. O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 90 (noventa) dias. Art. 5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: A sociedade brasileira tem avançado bastante. O direito e a legislação não podem ficar estagnados. E, como legisladores, temos o dever de encontrar mecanismos que assegurem os direitos humanos, a dignidade e a cidadania das pessoas, independentemente da raça, cor, religião, opinião política, sexo ou da orientação sexual. A orientação sexual é direito personalíssimo, atributo inerente e inegável a pessoa humana. E como direito fundamental, surge o prolongamento dos direitos da personalidade, como direitos imprescindíveis para a construção de uma sociedade que se quer livre, justa e igualitária. Não trata-se aqui de defender o que é certo ou errado. Trata-se de respeitar as diferenças e assegurar a todos o direito de cidadania. Temos como responsabilidade a elaboração de leis que levem em conta a diversidade da população brasileira. Nossa principal função como parlamentares é assegurar direitos, independe de nossas escolhas e valores pessoais. Temos que discutir e assegurar direitos humanos sem hierarquizá-los. Homens, mulheres, portadores de deficiência, homossexuais, negros/negras, crianças e adolescentes são sujeitos sociais, portanto sujeitos de direitos.

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178O que estamos propondo é o fim da discriminação de pessoas que pagam impostos como todos nós. É a garantia de que não serão molestados em seus direitos de cidadania. E para que prevaleça o art. 5º de nossa Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. A presente proposição caminha no sentido de colocar o Brasil num patamar contemporâneo de respeito aos direitos humanos e da cidadania. E é por esta razão que esperamos contar com o apoio das nobres e dos nobres colegas para a aprovação deste projeto de lei. Sala das Sessões, 27 de agosto de 2001. Deputada Iara Bernardi. (PT /SP). OBS: Aguardando Deliberação da CCJC (em: 15/12/04 – não deliberado).140 9. PROJETO DE LEI Nº 5.252, DE 2001. (Do Sr. Roberto Jefferson). Cria e disciplina o Pacto de Solidariedade entre as pessoas e dá outras providências. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. É assegurado a duas pessoas o estabelecimento do pacto de solidariedade, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais regulados nesta Lei. Art. 2º. O pacto de solidariedade constitui-se mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais. § 1º. Os interessados comparecerão perante os Oficiais de Registro Civil, exibindo: I - prova de serem solteiros, viúvos, separados ou divorciados; II - prova de capacidade civil; III - instrumento público do pacto de solidariedade. § 2º. O estado civil dos pactuantes não poderá ser alterado na vigência do pacto de solidariedade, sendo nula de pleno direito qualquer alteração. Art. 3º. O pacto de solidariedade será lavrado em Ofício de Notas, sendo livremente pactuado e versando sobre disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas. § 1º. Somente por disposição expressa no pacto de solidariedade, as regras nele estabelecidas também serão aplicadas retroativamente, caso tenha havido concorrência para formação de patrimônio comum. § 2º. São vedadas quaisquer disposições sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos pactuantes. Art. 4º. A extinção do pacto de solidariedade ocorrerá: I - pela morte de um dos pactuantes; II – pela nulidade absoluta do pacto de solidariedade; III – por decisão consensual dos pactuantes; IV – mediante decretação judicial. Art. 5º. A morte de um dos pactuantes gera ao que sobreviver os direitos sucessórios e previdenciários reservados nos termos do instrumento público do pacto de solidariedade. Parágrafo único. A sucessão patrimonial e o usufruto previstos na presente lei dar-se-ão através de processo de inventário e partilha, obedecendo à legislação processual vigente. Art. 6º. Observa-se a nulidade absoluta de pleno direito do pacto de solidariedade quando inexistam as condições pessoais que habilitem qualquer dos pactuantes ao seu estabelecimento. § 1º. Por ser de interesse público, a nulidade absoluta de pleno direito pode ser argüida por qualquer pessoa a qualquer tempo, através de ação declaratória. § 2º. A sentença declaratória de nulidade do pacto de solidariedade extingue retroativamente qualquer efeito produzido pelo pacto de solidariedade. § 3º. Ocorrendo a infração mencionada no caput do presente artigo, seu autor comete o crime de falsidade ideológica, sujeitando-se às penas do art. 229 do Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 7º. Podem as partes de comum acordo requerer a homologação judicial da extinção do pacto de solidariedade. § 1º. A petição de extinção do pacto de solidariedade deverá conter inventário de bens comuns aos pactuantes, bem como a sua partilha. § 2º. Apresentada a petição ao juiz, este verificará se esta preenche os requisitos legais e, em audiência própria, mandará reduzir a termo as declarações dos pactuantes, homologando a extinção do pacto depois de ouvir o Ministério Público no prazo de 5 (cinco) dias. § 3º. Caso não haja consenso sobre a partilha dos bens, decidirá o juiz sobre a divisão dos mesmos. Art. 8º. Qualquer das partes poderá requerer a extinção do pacto de solidariedade: I - demonstrando a infração pactual em que se fundamenta o pedido;

140 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 7 fev. 2005.

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179II - alegando o desinteresse na sua continuidade. § 1º. A petição requerendo a extinção do pacto será recebida pelo juiz que abrirá prazo de 5 (cinco) dias para contestação do outro pactuante, e posterior manifestação do Ministério Público em igual prazo. Reduzidas a termo as declarações das partes em audiência própria, decidirá o juiz sobre a extinção ou não do Pacto de Solidariedade. § 2º. No caso de extinção litigiosa do Pacto de Solidariedade, obedecer-se-ão as regras de partilha previstas no artigo precedente. Art. 9º. Homologada a extinção do Pacto, averbar-se-á a sentença no registro civil e, havendo bens imóveis, na circunscrição em que se acham Art. 10. Alteram-se os arts. 29, 33 e 167 e inclua-se o Capítulo XV no Título 11 com seus respectivos artigos, renumerando-se os demais constantes da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que passam a vigorar com as seguintes redações: "Art.29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais: (...) IX - os pactos de solidariedade entre as pessoas. Parágrafo 1º. Serão averbados... g) a sentença que declarar e extinção do pacto de solidariedade entre as pessoas.” “Art. 33. Haverá em cada cartório, os seguintes livros, todos com 300 (trezentas) folhas cada um. Parágrafo único. No cartório de 1º Ofício ou da subdivisão judiciária, em cada comarca, haverá outro livro para inscrição dos demais atos relativos ao estado civil, bem como os Pactos de solidariedade entre as pessoas, designado sob a letra ‘E’, com 150 (cento e cinqüenta) folhas, podendo o juiz competente, nas comarcas de grande movimento, autorizar o seu desdobramento, pela natureza dos atos que nele devam ser registrados, em livros especiais.” “Capítulo XV Do Pacto de Solidariedade entre as Pessoas ‘Art. 114. Do pacto de solidariedade será lavrado assento, assinado pelo presidente do ato, os pactuantes, as testemunhas e o oficial, sendo exarados: 1º) os nomes, prenomes, nacionalidade, estado civil, data e lugar do nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos pactuantes; 2º) os nomes, prenomes, nacionalidade, estado civil, data e lugar do nascimento e/ou de morte, profissão, domicílio e residência atual dos pais dos pactuantes; 3º) relação dos documentos apresentados ao oficial do registro; 4º) os nomes, prenomes, nacionalidade, profissão, domicílio e residência atual das testemunhas que serão, pelo menos, duas, a exceção dos casos e que a lei dispor de caso diverso; 5º) os nomes e as idades dos filhos havidos e legitimados; 6º) a margem do termo a impressão digital do pactuante que não souber assinar o nome.’ ‘Art.115. Havendo iminente risco de vida de algum dos pactuantes, e não sendo possível a presença da autoridade competente para presidir o ato, o pacto de solidariedade poderá se realizar na presença de 6 (seis) testemunhas, que comparecerão, dentro de 5 (cinco) dias, perante a autoridade judiciária mais próxima, a fim de que sejam reduzidas a termo suas declarações. § 1º. Não comparecendo as testemunhas, espontaneamente, poderá qualquer interessado requerer sua intimação. § 2º. Autuadas as declarações e encaminhadas à autoridade judiciária competente, se outra for a que as tomou por termo, será ouvido o órgão do Ministério Público e se realizarão as diligências necessárias para verificar a existência de impedimento para efetivação do pacto de solidariedade. § 3º. Ouvidos dentro de 5 (cinco) dias os interessados que o requererem e o órgão do Ministério Público, o juiz decidirá em igual prazo. § 4º. Da decisão caberá apelação com ambos os efeitos. § 5º. Transitada em julgado a sentença, o juiz mandará registrá-la no livro E’. (...) Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I - o registro: (...) 35 - dos pactos de solidariedade entre as pessoas que versem sobre comunicação patrimonial, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer das partes, inclusive os adquiridos posteriormente à celebração do pacto. II - a averbação: (...) 14 - das sentenças de separação judicial, de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento e de extinção do pacto de solidariedade entre pessoas, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro’". Art. 11. O bem imóvel próprio e comum dos pactuantes do pacto de solidariedade é impenhorável, nos termos e condições regulados pela lei 8.009, de 29 de março de 1990. Art. 12. Registrado o pacto de solidariedade de que trata esta Lei, o pactuante será considerado beneficiário do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado. Parágrafo único. A extinção do pacto de solidariedade implica o cancelamento da inscrição a que se refere o caput deste artigo. Art. 13. O pactuante será considerado beneficiário da pensão prevista no art. 217, I, da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990.

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180Art. 14. No âmbito da Administração Pública, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal disciplinarão, através de legislação própria, os benefícios previdenciários de seus servidores que mantenham um pacto de solidariedade. Art. 15. São garantidos aos pactuantes do pacto de solidariedade, desde a data de sua constituição, os direitos à sucessão, nas seguintes condições: I - o pactuante sobrevivente terá direito, desde que não firme novo pacto de solidariedade, ao usufruto da quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste; II - o pactuante sobrevivente terá direito, enquanto não firmar novo pacto de solidariedade, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III - na falta de descendentes e ascendentes, o pactuante sobrevivente terá direito à totalidade da herança; IV - se os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja a colaboração do pactuante, terá o sobrevivente direito à metade dos bens. Art. 16. Em havendo perda da capacidade civil de qualquer um dos pactuantes do pacto de solidariedade, terá a outra parte a preferência para exercer a curatela. Art. 17. O art. 113 da Lei 6.815, de agosto de 1980, passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 113. (...) VI - ter o pacto de solidariedade com pessoa de nacionalidade brasileira”. Art. 18. É reconhecido aos parceiros o direito de composição de rendas para aquisição da casa própria e todos os direitos relativos a planos de saúde e seguro de grupo. Art. 19. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Deputado Roberto Jefferson. Sala da Comissão, em 10 de dezembro de 1996. 10. PROJETO DE LEI Nº 6.186, DE 2002. 141 (Da Srª. Nair Xavier Lobo). Modifica a redação do art. 1º da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989. (À Comissão de Constituição e Justiça e de Redação). O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. O art. 1º da Lei 7.716 de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º. Serão punidos na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, ou procedência nacional e orientação sexual”. Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: A lei, de modo geral, visa o bem estar da comunidade. O indivíduo que tem obrigações perante a Administração, tais como pagar impostos, ser convocado para prestar serviço militar, terá um contra-prestação o direito de exercitar, observados os Princípios de Ordem Pública, suas aptidões e vocações ou opção por determinado modo de vida; e este exercício deve ser garantido pela lei. Ela é, sabemos, é alterada e se ajusta, reconhecendo situações novas ou até já existentes, mas ignoradas por preconceito, passando a regulamentá-las. Exemplificativamente, é o que acontecia com a dissolução do casamento: há cem anos as pessoas separadas eram tidas como portadoras de caráter leviano ou culpados, em algum nível, por algum ato insólito. Atualmente, as separações são aceitas como fato normal, sendo seu procedimento e efeitos regulamentados por lei. Nos dias atuais tem sido realce na área do comportamento humano, o tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico aos componentes do denominado terceiro sexo; na Europa há países que reconhecem a união estável entre homossexuais. No Brasil, projeto de lei nesse sentido, tramita pelo Congresso. E não poderia ser de outra forma; os gays, lésbicas ou mutantes são pessoas titulares de direitos e obrigações; só este fato social já os habilitam a levar uma vida normal no meio social. À guisa de informações, esclarecem artigos da área médica que o masculino trás na sua configuração morfológica aspectos de feminilidade, e vice-versa. É comum observarmos mulher com voz grave, de barítono e compleição muscular com características de homem, e, a seu turno, homens com aptidões para o exercício de atividades e características, tipicamente, femininas. Essas situações são, a priori, definidas fundamentalmente por comandos genéticos ou hormonais, revestindo-se, um certo grau, de um determinismo psíquico-fisiológico. Não há, pois, que culpá-los segregando-os. Estas razões, acreditamos, fundamentam as razões do PL que apresentamos. Muitos gênios da literatura, música, pintura, artistas de modo geral, sabe-se agora, adotavam comportamento sexual que a sociedade, às vezes, discrimina, o que não os impediu de brindar-nos com a riqueza de suas concepções. Sala das Sessões, 28 de fevereiro de 2002. Deputada Nair Xavier Lobo.

141 Entendemos que a fundamentação do Projeto de Lei está um pouco incorreta, tanto no aspecto gramatical, quanto no conteúdo sobre a matéria.

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181OBS: Arquivado em 31de janeiro de 2003, pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 105 do Regimento Interno.142 11. PROJETO DE LEI Nº 5 DE 2003. (Da Sra. Iara Bernardi). Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e o § 3º do art. 140 do Código Penal, para incluir a punição por discriminação ou preconceito de gênero e orientação sexual. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Os arts. 1º. e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterado pela Lei nº. 9.459 de 13 de maio de 1997, passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º. Serão punidos na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero ou orientação sexual”. “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero ou orientação sexual”. Art. 2º.: O § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 140. ....................................................................................................... § 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero ou orientação sexual. Pena: reclusão de um a três anos e multa”. Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO Os setores mais vitimados pelo preconceito e a discriminação são sem sombra de dúvidas as mulheres e os homossexuais. As estatísticas oficiais e as desenvolvidas por ONG’s, estão aí para demonstrar claramente o grau de homofobia, sobretudo, que ainda impera em muitos centros urbanos do nosso país. Assassinatos, torturas, maus-tratos, lesões corporais, além da ação de grupos de extermínio e a violência policial, são eventos que vêm se tornando cotidiano contra essas pessoas. E é nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Goiânia onde residem os maiores registros da violação dos direitos humanos dos homossexuais. A violação mais comum, entretanto, é a discriminação e o preconceito que acontecem cotidianamente nos locais públicos e instituições. São humilhações diárias sofridas por gays, lésbicas, travestis e transexuais, numa atitude intolerante que precisa ser coibida.Muitas das denúncias sequer são averiguadas pela autoridade policial, sob a alegação de que não há o tipo penal de discriminação por orientação sexual. E como não há o tipo penal, também não há dispositivos que assegurem o direito à intimidade e à vida privada. É mister que se tenha no ordenamento jurídico brasileiro, a previsão para que discriminação por gênero e orientação sexual, da mesma forma que já existe a conduta tipificando o crime para o racismo. Face ao exposto, conclamo o apoio dos (as) nobres colegas para a aprovação deste projeto, na certeza de que estaremos contribuindo para acabar com a discriminação e o preconceito contra os homossexuais. Sala das Sessões, em 18 de fevereiro de 2003. Deputada Iara Bernardi (PT-SP). OBS: A Mesa Diretora da Câmara dos Deputados determinou seu apensamento ao PL nº 4243 de 2004.143 12. PROJETO DE LEI Nº 379, DE 2003. (Da Sra. Laura Carneiro). Institui o Dia Nacional do Orgulho Gay e da Consciência Homossexual. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. É instituído o Dia Nacional do Orgulho Gay e da Consciência Homossexual, a ser comemorado em 28 de junho, anualmente. Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: Estender-se ao Brasil o Dia do Orgulho Gay, do ponto de vista da democracia, poderá ser um marco muito importante. Um marco que aponta para o respeito às diferenças não pela pobreza, mas pela riqueza humana. Tornamo-nos humanos, deixando a condição animal, porque perdemos os instintos em favor das aprendizagens. Este fato nos introduz possibilidades insuspeitas de formas variadas de viver, em contraste com a predeterminação bitolada da inscrição genética do desenvolvimento regular e uniforme que se observa no reino puramente animal. Da perda dos instintos seguem-se ricas conseqüências, frutos da fecundidade das aprendizagens. Importa ressaltar que o ser humano é fadado a aprender tudo, não só conhecimentos. O ser humano precisa aprender a ter fome ou a ter sono. Para nós, 142 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 7 fev. 2005. 143 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 7 fev. 2005.

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182nada é exclusivamente natural. Não somos seres da natureza e, sim, seres de cultura. Seres que acrescentamos à natureza as contribuições dos grupos aos quais pertencemos, seres possuidores de valores e saberes, com seus modos de morar, comer, descansar e amar. E somos capazes de criar e inovar quase ad infinitum, por sermos movidos a desejo puro, muito além das necessidades. A criação do Dia do Orgulho Gay representa o atual momento da sociedade brasileira, no que diz respeito à sexualidade. Nesse caso específico, há três décadas que o Pais discute, revisa e se posiciona quanto ao desrespeito e à discriminação que se abatem sobre homossexuais masculinos e femininos. No início de 2002, a questão tomou grande proporção na imprensa brasileira com o falecimento da cantora Cássia Eller, que deixou o filho Francisco Ribeiro Eller, de oito anos, com Maria Eugênia Martins, com quem havia vivido durante quartoze anos. De acordo com o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a guarda e a tutela dos órfãos são concedidas, prioritariamente, aos familiares. Numa decisão inédita no Brasil, o juiz Leonardo Castro Gomes, da Primeira Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, concedeu a guarda provisória do menino a Maria Eugênia, afirmando que tomou a decisão baseado no item do Estatuto que estabelece que seja feito o melhor para o bem-estar da criança. Tão importante quanto a decisão do juiz foi o apoio incondicional da sociedade brasileira que, em momento algum, achou ser possível separar o menino da mulher com que havia vivido toda a sua vida. Isto demonstra, de maneira irrefutável, que o Brasil deseja que as diferenças sejam vividas com tolerância, compreensão e sem traços de animosidade. O Dia do Orgulho Gay existe, em outros países, para lembrar o que é, hoje, considerado um marco na luta pelos direitos civis no século XX. Em 6 de julho de 1969, a polícia nova-iorquina invadiu um bar da cidade, conhecido pela freqüência homossexual. Pela primeira vez, entretanto, os fregueses do local reagiram, no que se tornou conhecido como a Rebelião de Stone Wall. De fato, não pode um País que insculpiu em sua Carta Magna o respeito à diversidade cultural, o reconhecimento da liberdade de expressão, a proteção à intimidade e à vida privada e o repúdio a toda forma de discriminação, omitir-se na luta de mais de 16 milhões de brasileiros que seguem uma orientação sexual diferente da tradicional e, por isso, só por isso, são perseguidos por machistas, policiais, punks, religiosos e outros adeptos da homofobia. Como lembrou, na Folha de São Paulo de 28 de junho de 2000, um importante líder gay: “Todos os oprimidos têm um dia de luta: 8 de março, Dia da Mulher; 19 de abril, Dia do Índio; 20 de novembro: Dia da Consciência Negra”. Porque não haveria de haver, também, um dia de luta dos homossexuais? Contamos com o apoio dos ilustres pares para a aprovação desta proposição. Sala das Sessões, em 18 de março de 2003. Deputada Laura Carneiro. (PFL /RJ). OBS: Mesa Diretora da Câmara dos Deputados – encontra-se encerrado, desde 11 de setembro de 2003, o prazo para apresentação de recurso.144 13. PROJETO DE LEI Nº 2.177, DE 2003. (Dep. Neucimar Fraga). Cria o Programa de auxílio e assistência à reorientação sexual das pessoas que voluntariamente optarem pela mudança de sua orientação sexual da homossexualidade para heterossexualidade e dá outras providências. O Congresso Nacional decreta:

Artigo 1o– Fica instituído em todo território nacional, o Programa de Reorientação Sexual, destinado às pessoas que voluntariamente optarem pela mudança de sua orientação sexual da homossexualidade para heterossexualidade. Artigo 2o – São objetivos do programa instituído no artigo anterior: I – O auxílio, assistência e orientação especializada dos órgãos de saúde à pessoa homossexual que optar pelo retorno à heterossexualidade; II – O desenvolvimento de projetos e ações destinados à garantia da saúde sexual das pessoas atendidas; III – Informar a sociedade em geral sobre a prevenção, apoio e a possibilidade de reorientação sexual das pessoas que vivenciam a homossexualidade. Artigo 3o– Dentre as ações de auxílio, assistência e orientação, destacam-se: I – A oferta de atendimento médico especializado na rede pública de saúde; II – A oferta de atendimento assistencial, psicológico e terapêutico; Artigo 4o – Para a realização dos objetivos previstos neste Programa, o Poder Público firmará convênios e parcerias com entidades públicas ou privadas, governamentais ou não-governamentais, destinando-lhes, se necessário, aporte de recursos para a efetivação de suas atividades; Artigo 5o –– Esta lei será regulamentada pelo Poder Executivo, no prazo de 180 dias de sua publicação; Artigo 6o – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas disposições em contrário. Neucimar Ferreira Fraga (PL/ ES). JUSTIFICATIVA:

144 Última posição de andamento, obtida in: http://www.camara.gov.br. Consulta realizada em: 7 fev. 2005.

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183O presente projeto de lei destina-se a incluir na rede pública de atendimento à saúde, programa específico de orientação, auxílio e assistência à reorientação sexual das pessoas que vivenciam a homossexualidade e, que por opção desejar retornar à heterossexualidade. É certo que a opção sexual é de livre manifestação e escolha, decorrente de preceptivo constitucional, albergado no artigo 5o. e ss da Carta Magna. Ainda dentro dos direitos assegurados na Carta Constitucional, no seu artigo 3º inciso IV, observamos que: “devemos promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Não é raro, identificamos a existência nas escolas e na sociedade, de indivíduos que recebem apelidos com o intuito de serem implicados e até humilhados. São crianças, jovens e até adultos que sofrem discriminação em função de seu jeito de ser e de seus trejeitos. Este é um crime tanto para com as pessoas que não querem deixar a homossexualidade, que merecem o respeito a seu direito, mas, também é um crime contra as pessoas que desejam deixar o comportamento homossexual e que estão lutando para mudar sua orientação sexual para heterossexual. Ocorre ainda, que não obstante a liberdade de opção sexual, a homossexualidade não se reveste por uma opção sem volta, razão pela qual ao Poder Público e à sociedade em geral cumpre o papel de assistir à pessoa que alterando sua opção sexual quiser retornar à heterossexualidade, nos termos e objetivos previstos no presente projeto de lei. Sala das Sessões, em 8 de outubro de 2003. Neucimar Ferreira Fraga (PL/ ES). OBS: Em 14 de fevereiro de 2004, na Comissão de Seguridade Social e Família, o deputado Babá (sem partido /PA) deu parecer pela rejeição.145 PARECER DA COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA AO PROJETO DE LEI Nº 2.177, DE 2003. (Relator: Deputado Babá). I – RELATÓRIO: Pelo Projeto acima ementado, o Deputado Neucimar Fraga propõe a instituição, em todo o território nacional, do Programa de Reorientação Sexual, com a finalidade de prestar assistência e orientação à pessoa homossexual que, voluntariamente, optar pelo retorno á heterossexualidade, o que inclui o atendimento médico especializado e o atendimento psicológico. Outros objetivos do Programa são: desenvolver projetos e ações voltados para a garantia da saúde sexual das pessoas atendidas e informar a sociedade sobre a prevenção e a possibilidade de reorientação sexual. O Poder Público poderá firmar parcerias com entidades públicas ou privadas para o cumprimento dos objetivos previstos no Programa. O Autor reconhece a liberdade de orientação sexual enquanto direito consagrado na Constituição; mas refere que muitos homossexuais, pela discriminação sofrida, querem deixar a homossexualidade e devem ser apoiadas pelo Poder Público e pela sociedade em geral. Não foram apresentadas emendas, durante o prazo regimental previsto. A Proposição foi encaminhada para exame de mérito a esta Comissão de Seguridade Social e Família, em caráter conclusivo, e deverá seguir para análise por parte das Comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Redação. II - VOTO DO RELATOR Em que pese a intenção do Autor ser a de minorar o sofrimento de pessoas que não estão plenamente felizes e integradas à sociedade em função de sua orientação homossexual, entendemos que a medida proposta não encontra respaldo científico que a justifique, podendo agravar os preconceitos e gerar mais dor e não-aceitação de sua condição ou identidade. A homossexualidade há muito deixou de ser encarada como doença ou desvio. Desde 1973, ela não integra mais a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, da Organização Mundial da Saúde. A proliferação de propostas de “cura” ou de “terapias de reversão” da homossexualidade suscitou a manifestação do Conselho Federal de Psicologia que, pela Resolução n.º 001/99, estabeleceu normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Transcrevemos dispositivos daquela Resolução que explicitam como devem proceder, em atendimento aos preceitos éticos da profissão, no trato da questão da homossexualidade: "Art. 20 - Os psicólogos deverão contribuir com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Art. 3º - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.” (grifo nosso) Em geral, as chamadas "terapias de reversão” são desenvolvidas por instituições de cunho religioso, não se podendo atestar a sua eficácia nem a liberdade de escolha do indivíduo, pois há fortes pressões do grupo no sentido de mudar o comportamento

145 Idem.

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184sexual de pessoas homossexuais, por considerá-lo contrário aos preceitos religiosos. Não há, pois, evidências científicas que demonstrem a possibilidade de mudança da orientação sexual. Como a orientação sexual não é considerada doença, não há como aceitar que o Sistema Único de Saúde crie um programa especifico para “tratar” desses casos. O SUS deve prover o atendimento integral á saúde, o que significa contemplar ações voltadas para a saúde mental de um modo geral, para atender as pessoas que estejam em sofrimento mental e emocional seja ele qual for. Em nosso juízo, uma proposta como a que ora se apresenta apenas reforça a discriminação e a exclusão de pessoas com orientação homossexual, contrariando a liberdade de orientação sexual constitucionalmente assegurada, e significa um retrocesso em termos das concepções vigentes sobre saúde sexual. Além disso, o projeto de lei não estabelece as fontes de recursos para a institucionalização do novo serviço no Sistema Único de Saúde, o que afronta a Constituição Federal, em seu art. 195, § 5º. O art. 4º do projeto de lei em análise obriga o Poder Público a firmar “convênios e parcerias com entidades públicas e privadas, governamentais ou não-governamentais para a realização dos objetivos previstos no Programa proposto. Tal dispositivo também se configura em intervenção intempestiva ao arbítrio do Poder Executivo. Pelos motivos supramencionados, nosso voto é pela rejeição do Projeto de Lei n.º 2.177, de 2003. Sala das Comissões, em 14 de fevereiro de 2004. Deputado BABÁ. 14. PROJETO DE LEI Nº 2.279, DE 2003. (Do Sr. Elimar Máximo Damasceno). Torna contravenção penal o beijo lascivo entre pessoas do mesmo sexo em público. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Esta lei torna contravenção penal o beijo lascivo entre pessoas do mesmo sexo, em público. Art. 2º. O Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941 – Lei das Contravenções Penais, passa a vigorar com o acréscimo do seguinte Parágrafo único ao artigo 61: “Art. 61........................................................................... Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem trocar beijos, ou praticar atos lascivos, com pessoa do mesmo sexo em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICATIVA: Constitui fato gravoso que causa constrangimento e desafia a moralidade pública a prática, por parte de pessoas do mesmo sexo, de atos que, mesmo praticados por pessoas de sexos diferentes, não deveriam ser realizados em público. Aliás, que motivos podem levar certas pessoas, ou namorados não do mesmo sexo, a praticar tais fatos em público? Que dizer, então, quando tais fatos são praticados por pessoas do mesmo sexo, na frente de crianças, em shopping centers, na frente de clientes que se escandalizam? Deste modo, cremos que esta conduta deve ser típica, a fim de que os comerciantes, ou outras pessoas que se sentirem prejudicadas, possam impedi-la. Pelo exposto, contamos com a aprovação dos ilustres pares para esta proposta. Sala das Sessões, em 9 de outubro de 2003. Deputado Elimar Máximo Damasceno (PRONA-SP). OBS: arquivado pela MESA em 3 de agosto de 2004, nos termos do art. 58, § 4º do RI.146 PARECER DA COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO DE JUSTIÇA E DE CIDADANIA AO PROJETO DE LEI Nº 2.279 DE 2003. (Relatora: Deputada Iara Bernardi). I – RELATÓRIO: Trata-se de projeto de lei que pretende tipificar como contravenção penal o beijo lascivo entre pessoas do mesmo sexo em público. Para tanto, inclui-se no artigo 61 do Decreto-lei nº 3.688/41 um parágrafo único segundo o qual incorre na pena do delito de importunação ofensiva ao pudor aquele que “trocar beijos, ou praticar atos lascivos, com pessoa do mesmo sexo em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. Sustenta o autor da proposta que tal comportamento causa constrangimento e desafia a moralidade pública, até mesmo quando praticado por pessoas de sexos diferentes, devendo, com maior razão, ser obstada tal prática quando envolvidas pessoas do mesmo sexo. A proposição foi distribuída a esta Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania para análise quanto à sua constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e mérito, estando sujeita à apreciação final do Plenário desta Casa. É o relatório. II - VOTO DA RELATORA: O projeto encontra-se compreendido na competência privativa da União para legislar sobre direito penal, atribuição a ser

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185exercida pelo Congresso Nacional, com a posterior sanção presidencial (artigos 22, I e 48, caput, da Constituição Federal). Não se trata, outrossim, de matéria sujeita à iniciativa legislativa reservada prevista no artigo 61 da Carta Magna. Não há problemas de técnica legislativa, tampouco de juridicidade. Contudo, a proposição apresenta, a nosso sentir, insuperável vício de inconstitucionalidade material, por afrontar, a um só tempo, os direitos fundamentais à igualdade e à liberdade, consagrados, com envergadura de cláusulas pétreas, no caput do artigo 5º da Constituição de República de 1988. É certo que o princípio da isonomia não proíbe de modo absoluto as diferenciações de tratamento, permitindo que se façam distinções objetivas e racionalmente justificáveis, bem como adequadas ao fim visado pela diferenciação. Não se toleram, entretanto, distinções arbitrárias, destituídas de fundamento objetivo, verdadeiras discriminações. A igualdade, por ser expressão direta da opção política do constituinte originário por um Estado Democrático de Direito, configura, mais do que um simples princípio de interpretação, uma verdadeira limitação ao legislador, que fica proibido de editar regras que estabeleçam privilégios desarrazoados. O próprio autor da proposta reconhece que o comportamento descrito no tipo ora em discussão gera constrangimentos ainda quando praticado por pessoas de sexos diferentes, de modo que não se justifica a criminalização daquela prática somente quando envolvidas pessoas do mesmo sexo, pois estaríamos concedendo tratamento diferenciado em virtude da opção sexual do indivíduo, em afronta ao princípio constitucional da isonomia. Ademais, os casais homossexuais têm assegurado, assim como os heterossexuais, o direito à liberdade, que não lhes pode ser tolhido em virtude de atitudes discriminatórias, desprovidas de embasamento jurídico. De outro lado, a importunação ofensiva ao pudor poderá, eventualmente, caracterizar ato obsceno, atraindo a incidência do tipo previsto no artigo 233 do Código Penal, que se aplica a todos, independentemente de sua opção sexual. Consideramos, portanto, inconstitucional a proposição em exame. E, ainda que fosse porventura superado tal obstáculo, também no mérito não deve prosperar o projeto em questão, por estar o mesmo na contramão da concepção de um Direito Penal voltado apenas para a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade, criminalizando condutas que efetivamente sejam detentoras de potencial de lesividade. Num momento em que se discute até mesmo a descriminalização das contravenções penais, tipificar como delituosa tal conduta é, no mínimo, inconveniente. Diante do exposto e com todo o respeito pelo nobre autor da proposta, nosso voto é pela inconstitucionalidade, juridicidade, boa técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição do Projeto de Lei nº 2.279, de 2003. Sala da Comissão, em 27 de maio de 2004. Deputada Iara Bernardi (Relatora). 15. PROJETO DE LEI Nº 2.383, DE 2003 (Autora: Deputada MANINHA). Altera a Lei 9.656 de 03 de junho de 1998, que “Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde”, na forma que especifica e dá outras providências. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. O artigo 14 da Lei 9.656 de 03 de junho de 1998 passa a vigorar acrescido de parágrafo único, com a seguinte redação: “Art. 14 ...................................................................................... Parágrafo Único: A vedação prevista no caput abrange qualquer forma de frustrar ou impedir a contratação de pessoas como dependente econômico, companheiro ou companheira, ou participante de grupo familiar de outrem em razão de pertencerem ao mesmo sexo, considerando-se o ato com tal finalidade discriminatória e punível na forma da legislação específica. Art. 2º É aplicável a vedação do artigo anterior a qualquer entidade pública ou privada que utilize, gerencie ou opere planos de saúde, próprios ou contratados. Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário. JUSTIFICAÇÃO: A presente proposta tem finalidade de oferecer à sociedade brasileira a legislação necessária a impedir os constantes atos de discriminação a que são submetidas milhares de pessoas no momento em que procuram se inscrever em planos de saúde. Embora não haja impedimento legal, as operadoras de planos de saúde, públicas ou privadas, criam restrições à inscrição de pessoas como dependentes de outras em função de pertencerem ao mesmo sexo, em verdadeira afronta ao direito da liberdade de opção sexual garantido na Constituição Federal. Na maioria das vezes, a restrição é feita de forma disfarçada buscando argumentos em campos outros que não a legislação, submetendo pessoas a constrangimentos não permitidos pela lei e incompatíveis com o exercício da cidadania. Tal situação configura-se em verdadeiro absurdo, não só porque tais atos são desumanos e, do ponto de vista da atividade econômica, não há justificativa alguma, como também não se acham em conformidade com a legislação sobre a matéria, tratando-se de verdadeira discriminação. Não é possível que a sociedade brasileira mantenha situações que possam viabilizar ações de natureza discriminatória como normalmente ocorre quando um cidadão ou cidadã busca inscrever como dependente em planos de saúde o parceiro.

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186Com certeza a questão é polêmica e provavelmente a tendência é que sua discussão seja difícil, pois a tendência é que venha a ser feita no campo da "moral" ou "religião", quando na verdade deve ser feita no campo dos direitos humanos, no campo de exercício de cidadania e das garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal. Esperamos seja esta proposta o marco inicial para que a sociedade através de seus legítimos representantes faça o debate necessário sobre a questão e ao final possa disponibilizar aos brasileiros a legislação adequada, capaz de garantir os direitos dos cidadãos de terem acesso aos instrumentos de atenção à saúde independente de sua opção sexual, religiosa, ou qualquer outra. Contamos com o apoio dos nobres pares para aprovação. Sala das Sessões, 29 de outubro de 2003. Deputada MANINHA. (PT /DF). OBS: Em 30 de março de 2004 foi devolvida da Comissão de Seguridade Social e Família.147 16. PROJETO DE LEI Nº 3.817, DE 2004. (Da Sra. Maninha). Estabelece como crime hediondo o cometido contra homossexuais, em razão de sua orientação sexual. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Esta lei torna crime hediondo aquele cometido contra homossexuais, em razão de sua orientação sexual. Art. 2º O Parágrafo Único, do Art. 1º, da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º .................................................................................... Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956, e todos os crimes cometidos contra homossexuais em razão de sua orientação sexual. (NR)” Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: A sociedade brasileira já assimilou a homossexualidade como uma das formas em que se expressa a sexualidade humana. Hoje, em eventos como a Parada do Orgulho Gay em São Paulo, vemos milhões de pessoas saírem às ruas para proclamar que não discriminam, nem aceitam discriminação contra homossexuais. Esses milhões de pessoas são cidadãos brasileiros comuns, a maior parte heterossexuais, que levam sua família, dos avós aos filhos pequenos, a esse tipo de manifestação, porque compreendem a importância de uma democracia apoiar as minorias sociais. Não obstante a esmagadora maioria da sociedade conviver, tranqüilamente, com a expressão da orientação homossexual, há grupos de radicais que continuam pregando a violência, a discriminação e a intolerância. Para essas pessoas, ser homossexual torna alguém menos que um ser humano, para ser perseguido, torturado, humilhado ou, não raras vezes, fisicamente agredido ou morto. Tornando essa discriminação odiosa um crime hediondo, estaremos expressando o repúdio a esse comportamento anti-social e antidemocrático. É preciso coibir as atrocidades cometidas por grupos como a gangue de skinheads que assassinou o cabeleireiro Edson Neris da Silva, na Praça da República em São Paulo, em 2000. Apesar de ter se tornado emblemático, esse crime não é um crime isolado, nem incomum: em todo o país a violência contra homossexuais põe à prova o Estado de Direito. Cabe a nós legisladores conservarmos a garantia de que vivemos em um país pluralista, com total respeito aos direitos humanos e um duro tratamento penal àqueles que ousam violar os direitos mais básicos de uma pessoa. Por todo o exposto, exorto os Nobres Pares a aprovarem esta proposição. Sala das Sessões, em 16 de junho de 2004. Deputada Maninha. PARECER DA COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E DE JUSTIÇA E DE CIDADANIA AO PROJETO DE LEI Nº 3.817, DE 2004 (Relator: Deputado João Paulo Gomes Da Silva). I – RELATÓRIO: Através do presente Projeto de Lei, pretende a ilustre Deputada Maninha tornar modalidade de crime hediondo o crime cometido contra homossexuais, em razão de sua orientação sexual. Em suas justificações, argumenta com o fato de a sociedade brasileira já ter assimilado a homossexualidade como uma das formas através da qual se expressa a sexualidade humana. Refere-se a Parada do Orgulho Gay, em São Paulo, assistida por multidões que demonstraram, assim, a não aceitação de discriminação contra os homossexuais. Entretanto, esclarece, grupos radicais não aceitam o tratamento igualitário, cometendo toda sorte de atrocidades contra os “gays”. Daí a razão da Proposta. É o relatório. II - VOTO DO RELATOR:

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187Nos termos regimentais, compete a este órgão colegiado apreciar os aspectos concernentes a constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e mérito da proposta. Constitucionalmente, no que se refere à iniciativa, não há reparo a ser feito, uma vez que se encontram satisfeitos os requisitos referentes à competência para legislar (art. 22, I da CF) e para iniciar o processo legislativo (art. 61 da CF). Entretanto a Proposta busca a introduzir tratamento diferenciado, estabelecendo graduação no tratamento penal – crime hediondo – aos crimes cometidos apenas contra os homossexuais. Daí, pois, violação ao Princípio da Isonomia, agasalhado pela Constituição Federal, e conseqüente ocorrência de inconstitucionalidade e injuridicidade. No que se refere à técnica legislativa, há inadequação face à Lei Complementar nº 95/98. Quanto ao mérito, é de se louvar a preocupação da ilustre autora da Proposição bem como a busca de soluções para práticas criminosas que deseja enfrentar. Oportuno lembrar, também que a ação criminosa reiterada contra a vida de grupos determinados, caracteriza crime de extermínio, já elencado na Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos. Face ao exposto, em que pese as boas razões objetivadas, votamos pela rejeição do Projeto de Lei nº 3.817, de 2004 por vício de inconstitucionalidade, injuridicidade, inadequada técnica legislativa e pelas razões de mérito já expendidos. Sala da Comissão, em 06 de outubro de 2004. Deputado João Paulo Gomes Da Silva. (Relator). 17. PROJETO DE LEI Nº 4.243 DE 2004. (Do Sr. Edson Duarte). Estabelece o crime de preconceito por orientação sexual, alterando a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceito em razão da orientação sexual. Art. 2º. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com as seguintes alterações: I – A Ementa da Lei passa a ser: “Define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional e orientação sexual (NR)”. II – Os Arts. 1º e 20 passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional ou orientação sexual. (NR)”; “Art. 14 A. Os crimes previstos nesta Lei são inafiançáveis”; “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional ou orientação sexual. (NR)”. Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICAÇÃO: O preconceito contra homossexuais é uma das mais perversas formas de violência que vem recrudescendo na sociedade brasileira. Freqüentes são as notícias de ofensa aos direitos básicos desses cidadãos, que não raro redundam em agressão física e até mesmo homicídios com requintes de crueldade. Por outro lado, a maioria dos cidadãos comuns convive com tranqüilidade com pessoas que mantém preferências sexuais e formam núcleos familiares fora do padrão comum. A jurisprudência já garante há anos os direitos de homossexuais. É preciso que nós Legisladores respondamos às exigências da sociedade de minorar esse tipo de conduta. O tratamento penal do tema é a maneira correta de banir de nosso meio os preconceitos de todos os tipos. E para que haja consciência da gravidade desse crime, impõe-se torná-lo inafiançável. Cremos que o não haver fiança desencorajará aqueles que tendem a cometer esse delito, sendo medida educativa e intimidatória a minorar essa odiosa forma de conduta. Sala das Sessões, em 7 de outubro de 2004. Deputado Edson Duarte. (PV-BA). OBS: Encontra-se na Coordenação de Comissões Permanentes. Publicou-se, inicialmente, no Diário da Câmara dos Deputados em 27 de outubro de 2004.148 18. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 25, DE 7 DE JUNHO DE 2000 (*). MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 25, DE 7 DE JUNHO DE 2000 (*) Estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL:

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188Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0. A DIRETORIA COLEGIADA DO INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, em reunião extraordinária realizada no dia 07 de Junho de 2000, no uso da competência que lhe foi conferida pelo inciso III, do artigo 7º, do Regimento Interno do INSS, aprovado pela Portaria nº 6.247, de 28 de dezembro de 1999, e CONSIDERANDO a determinação judicial proferida em Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0; CONSIDERANDO a necessidade de estabelecer rotinas para uniformizar procedimentos a serem adotados pela linha de benefícios, resolve: Art. 1º - Disciplinar procedimentos a serem adotados para a concessão de pensão por morte e auxílio-reclusão a serem pagos ao companheiro ou companheira homossexual. Art. 2º - A pensão por morte e o auxílio-reclusão requeridos por companheiro ou companheira homossexual, reger-se-ão pelas rotinas disciplinadas no Capítulo XII da IN INSS/DC nº 20, de 18.05.2000. Art. 3º - A comprovação da união estável e dependência econômica far-se-á através dos seguintes documentos: I - declaração de Imposto de Renda do segurado, em que conste o interessado como seu dependente; II - disposições testamentárias; III - declaração especial feita perante tabelião (escritura pública declaratória de dependência econômica); IV - prova de mesmo domicílio; V - prova de encargos domésticos evidentes e existência de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil; VI - procuração ou fiança reciprocamente outorgada; VII - conta bancária conjunta; VIII - registro em associação de classe, onde conste o interessado como dependente do segurado; IX - anotação constante de ficha ou livro de registro de empregados; X - apólice de seguro da qual conste o segurado como instituidor do seguro e a pessoa interessada como sua beneficiária; XI - ficha de tratamento em instituição de assistência médica da qual conste o segurado como responsável; XII - escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente; XIII - quaisquer outros documentos que possam levar à convicção do fato a comprovar. Art. 4º - Para a referida comprovação, os documentos enumerados nos incisos I, II, III e IX do artigo anterior, constituem, por si só, prova bastante e suficiente, devendo os demais serem considerados em conjunto de no mínimo três, corroborados, quando necessário, mediante Justificação Administrativa JA. Art. 5º - A Diretoria de Benefícios e a DATAPREV estabelecerão mecanismos de controle para os procedimentos ora estabelecidos nesta Instrução Normativa. Art. 6º Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação. CRÉSIO DE MATOS ROLIM. Diretor-Presidente do INSS. PAULO ROBERTO T. FREITAS. Diretor de Administração. LUIZ ALBERTO LAZINHO. Diretor de Arrecadação. SEBASTIÃO FAUSTINO DE PAULA. Diretor de Benefícios. MARCOS MAIA JÚNIOR . Procurador Geral . (*) Republicada por ter saído com incorreção, do original, no D.O. n? 110-E, de 8/6/2000, Seção 1, pág 4. (Of. El. nº 60/2000). II – JURISPRUDÊNCIA: 1. COMPETÊNCIA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 599075496. Oitava Câmara Cível. Relator: Des. Breno Moreira Mussi. Agravante: E.C.E. Agravado: E.S.C. Data do julgamento: 17/6/1999. Ementa: RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido.

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189ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. A Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por unanimidade, acorda em dar provimento ao recurso. Custas na forma da lei. Participam do julgamento, além dos signatários, os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Ântônio Carlos Stangler Pereira, Presidente, e José S. Trindade. Porto Alegre, 17 de junho de 1999. Des. Breno Moreira Mussi, Relator. RELATÓRIO DES. BRENO MOREIRA MUSSI (RELATOR) – Decisão. Trata-se de declaração de incompetência do magistrado da 5º Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre, encaminhando os autos para a redistribuição a uma das Varas Cíveis. O motivo está no fato de que a relação em causa (litígio patrimonial decorrente da separação de sociedade de fato entre duas mulheres) não é uma relação familiar, resultante de união entre homem e mulher, excluída, assim, da regência dos incisos III e IV do art. 73 do COJE, e art. 9º da Lei nº 9.278, de 10.05.96. Agravo. Tempestivo e preparado. Fundamentos: a) não é possível, nos dias de hoje, desconhecer as uniões homossexuais; b) no caso, existiu um relacionamento de “concubinato”, pois as partes dividiam “cama, mesa, proventos, amor, solidariedade, companheirismo e mais outros sentimentos inerentes aos casais heterossexuais”. Requer seja liminarmente deferido efeito suspensivo ao cumprimento da decisão atacada e, ao final, julgado procedente o agravo. Adiantamento. Ao receber o recurso, mantive o feito na Vara de Família, nos seguintes termos (fl. 65): “Processar o agravo, com efeito suspensivo, na medida em que a matéria de fundo envolve gama de interesses inseridos no Juízo de Família. O componente discrepante – identidade de sexos – comporta visualização similar, quanto ao mais. Sendo assim, em princípio, razoável processar o feito no juízo especializado”. Informações. Noticiam que a agravante entregou cópia do recurso no cartório, cumprindo o disposto no art. 526 do CPrCv (fl. 68). Ministério Público. Opina pelo improvimento (fls. 70/72). É o relatório. VOTO DES. BRENO MOREIRA MUSSI (RELATOR) – 1. A definição da competência, no caso concreto, parte de três pontos. O primeiro diz respeito à especialização das Varas. O sistema judiciário gaúcho optou por uma das vertentes possíveis, em matéria de prestação jurisdicional, na medida em que especializou determinados Juízes para receber certos tipos de demanda. Há quem contrarie a tese, porque o fato de especializar diminuiria o horizonte dos juízes, deixando-os bitolados, fazendo com que percam a noção sistemática. Em princípio, todos os Juízes da Capital teriam, teoricamente, competência territorial para conhecer de todas as demandas ocorrentes em Porto Alegre. Há vários Estados da Federação em que é assim. Porém, ao optar por especializar determinados Juízes para certos temas, o Rio Grande do Sul previu a preparação profissional específica, fazendo com que o juiz cada vez mais se aprofundasse e tivesse melhores condições para enfrentar a matéria. Isso não ocorre só no mundo do Direito, mas também na Medicina, Odontologia e em outros ramos. No Direito, sabemos que determinados advogados trabalham somente matéria tributária, em matéria penal, tem outros especializados, e assim por diante. O que não apaga, também, a circunstância de termos advogados generalistas, que atuam com excelente proficiência, em diversas áreas. É de longa data que o Judiciário gaúcho chegou ao ponto da especialização. Ao mesmo tempo, há Estados que deixam as Varas de Família inseridas nas varas cíveis comuns. Em nosso Estado, acredita-se que os Juízes, certamente por trabalharem diuturnamente os temas, adquiriram a experiência, sensibilidade, e profundidade naquelas matérias próprias ao assunto, que lhe são submetidas ao conhecimento, o que levaria à maior justiça das decisões mais justas. A especialização também foi levada à segunda instância, com as Câmaras de Família.149 Por estarmos tratando toda a semana somente questões de Família,150 estaríamos mais habilitados para entrar no detalhamento, na sutileza e na sensibilidade destas relações. A especialização existe em função desse detalhamento. 2. O segundo ponto, também muito importante, é a questão da discriminação. A nossa Constituição está na esteira das legislações modernas, democráticas, em que sempre aparece uma proibição absoluta de discriminar em razão do sexo. Seu art. 3º, inciso IV assim dispõe, verbis:

149 7º e 8º Câmaras Cíveis, as quais perfazem o 4º Grupo Cível. 150 Como também Sucessões, Infância e Juventude, e Registro Civil, como consta do Regimento Interno da Corte.

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190“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ...IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.” (grifei). Mas nós sabemos que não é assim. A discriminação existe em vários setores de nossa sociedade, e não apenas em relação à questão da homossexualidade. Falo na discriminação contra a mulher, por exemplo. Salvo nas carreiras públicas, a tendência é a mulher receber menos pelo mesmo trabalho que o homem faz. Os casos do negro, do pobre, do deficiente físico, todos eles abertamente discriminados. Quando entrarmos em tema de homossexualidade, tudo se põe mais flagrante. Apesar de a Constituição dizer que não se pode discriminar, nós o fazemos com freqüência. Desconheço, por exemplo, que no quadro da Magistratura gaúcha haja algum homossexual declarado. E tenho certeza que, apresentando-se alguém, em tais condições, querendo ser Juiz, terá sua inscrição repelida, mesmo sendo pessoa com as melhores qualificações. A orientação sexual é direito da pessoa, atributo da dignidade. O fato de alguém se ligar a outro do mesmo sexo, para uma proposta de vida em comum, é desenvolver seus afetos, está dentro das prerrogativas da pessoa. A identidade dos sexos não torna diferente, ou impede, o intenso conteúdo afetivo de uma relação emocional, espiritual, enfim de amor, descaracterizando-a como tal. Esta circunstância é por demais relevante. O fato de serem as litigantes do mesmo sexo não impediu a concretização de um relacionamento afetivo entre ambas, com conseqüências idênticas aos entretidos pelos casais de sexos diversos. A longa e sofrida jurisprudência em favor da companheira, hoje transformada em legislação, terminou sendo inserida, dentro da Constituição, como se vê do art. 226, § 3º. Dito dispositivo fala em homem e mulher, trazendo para o ventre da Carta Magna o casamento de fato. Eu diria que o Constituinte retirou debaixo do tapete a união estável, e a trouxe para o sofá da sala. Não teve, porém, o mesmo cuidado com as relações homossexuais. Mas isto não impede o reconhecimento que uma ligação homossexual, em termos de afetividade, tem exatamente os mesmos componentes da heterossexual. Como diz a parte agravante, numa síntese muito bem feita, as pessoas envolvidas nesta relação “dividiam cama, mesa, proventos, amor, solidariedade, companheirismo e mais outros sentimentos inerentes aos casais heterossexuais”. A única diferença, no caso concreto, é que, legalmente, não podem casar, uma com a outra. Mas toda união estável tem que resultar ou possibilitar um casamento? Não consigo ver no ditame da Constituição151- “devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento” – também, este componente. Vejo a união estável como a relação em que as pessoas não estão preocupadas com o casamento. Pode ocorrer, inclusive, que justamente não querem o matrimônio, sem que a relação deixe de ser uma união estável. O único elemento discrepante, dentro deste conceito, está na homossexualidade. Este é o caso concreto. Não me impressiona o argumento de que se trata de simples questão patrimonial. Isto porque as demandas nas quais se discute patrimônio, numa união heterossexual – casamento com ou sem papel – vão para a Vara de Família. Os autos trazem rigorosamente a mesma questão. Então, isola-se perfeitamente, no presente caso, a definição do sexo das pessoas envolvidas, que passa a ser o fator determinante. A matéria não recebe o tratamento que merece, pelo seu conteúdo, pela discriminação. Aberta ou veladamente, a identidade de sexo transforma o afetivo numa relação civil ou comercial comum, como se fosse aluguel, compra e venda, participação societária, ou algo da mesma natureza. Em que pese opiniões diversa, não me parece razoável, nos tempos atuais, desconhecer a realidade que demonstra, a todo o momento, a existência de relações do tipo das que aqui se discute e que, com certeza, hão de merecer especial e adequada solução. 3. Agora o terceiro ponto. Consigo ir mais longe do que a letra fria da lei, ao vislumbrar uma situação analógica, no caso concreto. Ao que me consta, a matéria não foi regulamentada pelo Congresso Nacional. Não há artigo de lei que proíba uma relação afetiva entre duas pessoas do mesmo sexo. Aliás, nem poderia, ante as garantias constitucionais. Porém, o fato de uma hipótese, rigorosamente, não existir na lei, jamais levará ao ponto de fazer desaparecer o fenômeno social, como se a omissão legislativa fosse capaz de suprimir a homossexualidade. Quando não está na lei, o operador deve socorrer-se da analogia, para preencher a lacuna. Assim o dizem os arts. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e 126 do Código de Processo Civil. Na verdade, é impróprio falar em lacuna. O ordenamento jurídico, visto como um todo, encarrega determinados órgãos – no caso os juízes – para atribuírem soluções aos casos concretos, mesmo naquelas situações em que não existem regras legais específicas. Como asseveram Aftalión, Garcia y Vilanova,152 verbis: “Contra la opinión de algunos auotres, que han sostenido que em el ordenamiento jurídico existen lagunas – o sea, casos o situacionaes no previstas – que seria necessario llenar o colmar a medida que las circunstancias mostrassen la conveniencia

151 Art. 226, § 3º, in fine. 152 Introducción al Derecho, nº 1, 27, pág. 23, Buenos Aires, 1975.

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191de harcelo, debemos hacer notar que el ordenaimento jurídico es pleno : todos los casos que puedan presentarse se encuentran previstos em él (...) (...) No hay lagunas, porque hay jueces”. Na situação dos autos, a analogia me leva, por todos os detalhes, a entender que, salvo o elemento discrepante, que é a identidade do sexo, a matéria tem os mesmos componentes das digladiadas entre os casais heterossexuais. Não me assusto, também, com o medo da possibilidade de ação de alimentos, ou demandas paralelas. Há tantos temas em aberto, deferindo-se, por exemplo, inscrição como beneficiário em plano de saúde para as pessoas do mesmo sexo. Se for ajuizada alguma ação de alimentos, cumpre examiná-la, ver se estão presentes os elementos valorativos indispensáveis ao conhecimento da questão, ao invés de indeferir, pura e simplesmente, discriminando a homossexualidade. O mesmo se pode dizer quanto ao direito de concorrer à herança, e outras situações que a vida, no seu trabalho multifacetado e incomparável para criar acontecimentos, for capaz de apresentar. Quando surgem estas demandas, é bom lembrar as injustiças que foram cometidas contra os partícipes das uniões estáveis, antes de receberem os avais legislativos. Normalmente as mulheres eram afetadas, pois ficavam em casa, enquanto os varões saiam para a batalha do ganha- pão, e traziam o dinheiro. Os bens ficavam em seus nomes. A muito custo, se evoluiu pela “remuneração dos serviços prestados”, sociedades de fato (nas quais a mulher deveria comprovar os aportes financeiros – tarefa impossível -, para ter direito a partilhar os bens), e outros modos de se fazer justiça, até chegar no sistema atual, que valoriza o trabalho doméstico. Muitos testamentos e doações foram anulados, com base em falsos moralismos, quando tais atos apenas tentavam garantir as companheiras de toda uma vida, na mais plena observância dos padrões éticos. Também é importante dizer que as demandas relativas a uniões estáveis (homem e mulher), até pouco tempo, não corriam no juízo especializado das Varas de Família. A questão das minorias exige, nos sistemas constitucionais modernos, ações positivas de proteção. Na parte do Judiciário, que não faz leis, e as aplica, as ações positivas podem ter curso através de uma interpretação integradora, e sem dar guarida a qualquer forma de discriminação, velada ou aberta. 4. Conclusão. Creio que na entrada do terceiro milênio, não cabe mais fazer de conta que a homossexualidade não existe, nem deixar constar na Constituição uma quota vazia, de cunho meramente formal, dizendo que é proibida a discriminação por sexo, mas, ao mesmo tempo, acatar que se continue discriminando em tal matéria. É função do Direito acompanhar a evolução dos tempos e, na ausência de leis que venham a dirimir as questões homossexuais apresentadas, sejam elas entre homens ou entre mulheres, formar, através da jurisprudência, uma regulamentação da matéria, de acordo com as normas gerais do ordenamento jurídico. Com certeza, no caso em discussão, não estamos frente a um negócio jurídico, a ser resolvido pelas varas cíveis generalistas. O relacionamento entre as partes foi bem mais além, pois teve curso, do início ao fim, nos sentimentos que estimulam emocionalmente as pessoas, cujas sutilezas correspondem ao que levou o legislador gaúcho especializar as varas de família. Como a Constituição Federal proíbe a discriminação pelo sexo, sou pelo exame da causa junto ao juízo especializado. Com o que estou tornando definitivo o adiantamento. Isto posto, dou provimento. DES. JOSÉ S. TRINDADE – Revisados os autos, concordo integralmente com o eminente relator para estabelecer que a competência para apreciar e julgar a ação de dissolução de sociedade de fato com divisão de patrimônio movida pela agravante contra a agravada, é da Vara de Família. Examinando-se a inicial da ação acostada às fls. 10/14, verifica-se que o pedido da ora agravante, baseia-se, efetivamente, em relação de afeto mantida com a agravada, conforme muito bem salienta o nobre relator. Consubstanciada ficou a competência das Varas e Câmaras de Família, para apreciar as ações referentes ao concubinato – atualmente união estável - mantida entre o homem e a mulher. A discriminação, à toda evidência, não pode ser feita quando se tratar de união entre pessoas do mesmo sexo, por afronta à Carta Magna que proíbe qualquer discriminação, segundo bem destacado no voto do Desembargador Breno Moreira Mussi. Serve como paradigma precedente do colendo Superior Tribunal de Justiça, ao retratar o descabimento de preconceitos contra os homossexuais, e, por isso, sua ementa merece transcrição: “Resp – PROCESSO PENAL – TESTEMUNHA- HOMOSSEXUAL – A história das provas orais evidencia evolução, no sentido de superar preconceito com algumas pessoas. Durante muito tempo, recusou-se credibilidade ao escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Projeção, sem dúvida, de distinção social. Os romanos distinguiam – patrícios e plebeus. A economia rural, entre o senhor do engenho e o cortador da cana, o proprietário da fazenda de café e quem se encarregasse da colheita. Os Direitos Humanos buscam afastar distinção. O Poder Judiciário precisa ficar atento para não transformar essas distinções em coisa julgada. O requisito moderno para uma pessoa ser testemunha é não evidenciar interesse no desfecho do processo. Isenção, pois. O homossexual, nessa linha, não pode receber restrições. Tem o direito-dever de ser testemunha. E mais: sua palavra merece o mesmo crédito do heterossexual. Assim se concretiza o princípio da igualdade, registrado na Constituição da República e no Pacto de San Jose da Costa Rica”. (REsp. nº 154. 857/DF, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHARIO, Sexta Turma, julgado em 26/05/1988).

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192Ainda, também o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o direito a partilha de bens entre homossexuais, em inovador julgamento, merecendo transcrever a ementa do precedente: “SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM. O parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato no art. 1.363153 do C. Civil”. (REsp. nº 148.897/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Quarta Turma, julgado em 10/02/1998). Assim, já tendo sido a matéria enfrentada inclusive pelo STJ em Turma especializada em Direito de Família, mais uma razão para se entender que, efetivamente, assiste razão à agravante ao pretender o exame da ação intentada na Vara de Família. Acompanho o relator, provendo o recurso. DES. ANTÔNIO CARLOS STANGLER PEREIRA – Hoje, o relacionamento de pessoas do mesmo sexo é uma realidade evidente. Não se escondem mais esses relacionamentos como antigamente acontecia. O patrimônio adquirido origina-se do esforço comum, tal como acontece em relações de companheiros heterossexuais. Os sentimentos que motivam duas pessoas do mesmo sexo a viverem juntas são os mesmos que motivam os heterossexuais. A preferência sexual é pessoal de cada homem ou mulher. No mais das vezes, há mais fidelidade, amor, e respeito entre os homossexuais do que entre os heterossexuais. Se para os heterossexuais os homossexuais são diferentes, estes, em seus direitos, não podem ser diferenciados só porque a nossa sociedade judaico-cristã tem como padrão de comportamento sexual a heterossexualidade. O patrimônio, se resultante de união heterossexual ou homossexual, é o mesmo, portanto, a competência é da Vara de Família. Acrescento o que diz Guilherme Calmon Nogueira da Gama: “Há precedentes jurisprudenciais em matéria de união homossexual no sentido do reconhecimento da existência de sociedade de fato, e, certamente, a tendência será justamente que tal reconhecimento se estenda também para as hipóteses de concubinato e de convivência entre parentes e amigos. Há, nesta matéria, campo aberto para a perfeita aplicação da doutrina da sociedade de fato, tal como aventada na oportunidade da edição da Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal, com perfeita adequação a nova realidade, inclusive quanto à exigência de ser demonstrada a contribuição direita dos partícipes na aquisição ou incremento patrimonial.” (“O companheirismo. Uma das espécies de família”. Editora Revista dos Tribunais, p. 494). Este é o registro que faço para também acolher a competência da Vara de Família e Sucessões. AGRAVO DE INSTRUEMNTO Nº 599075496 DE PORTO ALEGRE – “DERAM PROVIMENTO UNÂNIME”. Decisor de 1º Grau: Dr. Nelson José Gonzaga. 2. PARTILHA DE BENS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. APLEAÇÃO CÍVEL nº 70001388982. Sétima Câmara Cível. Relator: Des. José Carlos Teixeira Giorgis. Apelante: Espólio de H.O., representado por sua inventariante, E.O. Apelado: N.G. Data do julgamento: 14/03/2001. Ementa: UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECEIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceito, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal do Estado, por maioria, prover, em parte, o apelo, vencido o eminente Des.Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, que lhe nega proviemnto. Custas na forma da lei. Participou do julgamento, além dos signatários, a eminente Senhora Desembargadora Maria Berenice Dias, Presidenta. Porto Alegre, 14 de março de 2001. DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS (RELATOR) –

153 O artigo indicado (art. 1.363 CC) é do C. Civil de 1916. Atualmente, corresponde ao dispositivo 981 do C.Civil de 2002.

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193Cuida-se de apelação cível interposta pelo Espólio de H.O., representado pela inventariante E.O., contra sentença de fls. 156/164 que, nos autos da Ação de Reconhecimento de Sociedade de Fato que lhe move N.G., julgou procedente o pedido para reconhecer a sociedade de fato entre requerente e requerido, determinar a partilha proporcional do patrimônio em nome do titular do espólio listado na inicial e com documentos de propriedade a partir das fls. 141, no percentual de setenta e cinco por cento ao autor e o restante à sucessora do parceiro falecido. Em suas razões, o apelante alega que o apelado não fez pedido expresso de partilha no percentual de 75%. Aduz que, pelo fato do recorrido ter requerido o benefício da AJG, há a demonstração de que quem recebia o dinheiro era o de cujus, e sendo assim, o patrimônio foi construído exclusivamente com as economias deste. Refere que os direitos da mulher, nos casos de sociedade heterossexual, é de 50% do patrimônio comum. Afirma ser a decisão ilegal e desproporcional, eis que não se demonstrou a sociedade, apenas a coabitação. Postula a reforma total da sentença com a conseqüente improcedência da ação. O apelado ofertou suas contra-razões, aduzindo que o relacionamento entre ele e o falecido não é negado. Diz que o salário que recebia, comprovado nos autos, impossibilitá-lo-ia de construir o vasto patrimônio deixado por ocasião da morte do companheiro. Postula o improvimento do recurso para ver mantida a sentença de 1º grau. O Ministério Público exarou parecer, manifestando-se pelo conhecimento e desprovimento da apelação. Vieram-me os autos. É o relatório. VOTO DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS (RELATOR) – Cuida-se de pedido de partilha de patrimônio construído durante uma relação homossexual, que perdurou por mais de trinta anos. O autor almeja proporção maior do acervo. Era o parceiro que tinha melhor atividade remunerada, enquanto o companheiro só auferia provento previdenciário, mas, por analfabeto, consentiu que tudo fosse registrado em nome deste, motivo por que deseja ser beneficiado na partilha. A relação se encontra adequadamente provada, tendo se iniciado em 1967, quando o apelado tinha 22 anos, e se estendeu até a morte de H.O., inclusive com a adoção de uma filha, ora representante do espólio, conforme deriva do depoimento pessoal (fls. 102/114). As testemunhas Gustavo (fl. 115), Alda (fl. 123/131) e Anita, mãe da inventariante (fl. 132/134), corroboraram a união, informando que N. é médium, possui casa de muita freqüência e consulta, e que as partes mantinham uma relação afetiva, pública e notória. Para todos, H. não desempenhava qualquer atividade lucrativa, apenas auxiliando na casa de religião e administrando o patrimônio conjunto. Não há qualquer respingo na afirmação exordial, tanto no que toca à união existente, como sobre a existência de bens em nome do demandado, embora não desfrutasse de rendas, salvo pequena pensão que recolheu por acidente. A questão posta não mais causa frêmito nos tribunais, sendo já freqüentes as inserções de casos semelhantes nos repertórios da jurisprudência e causa de debates em seminários. É verdade que ainda resta o empecilho de considerar tais relações como união estável, em vista da prescrição constitucional e das Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96, que exigem a diversidade de sexos. Leciona Rainer Czajkowski que a relação sexual entre duas pessoas capazes do mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relação homossexual voluntária, em si, não interessa ao Direito, em linha de princípio, já que a opção e a prática são aspectos do exercício do direito à intimidade, garantia constitucional de todo o indivíduo (art. 5º, X). Nessa medida, a escolha por essa conduta sexual não poderá acarretar, para os envolvidos, qualquer tipo de discriminação, o que decorre do princípio da isonomia. Todavia, por mais estável que seja, a união sexual entre pessoas do mesmo sexo, que morem juntas ou não, jamais se caracteriza como uma entidade familiar, o que resulta, não de uma realização afetiva e psicológica dos parceiros, mas da constatação de que duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo de procriação humana e de educação de futuros cidadãos. A união entre um homem e uma mulher pode ser, pelo menos potencialmente, uma família, porque o homem assume o papel de pai e a mulher de mãe, em face dos filhos. Parceiros do mesmo sexo, dois homens ou duas mulheres, jamais oferecem esta conjugação de pai e mãe, em toda a complexidade psicológica que tais papéis distintos envolvem. Como argumento secundário, arremata o festejado mestre paranaense, a união de duas pessoas do mesmo sexo não forma uma família porque, primeiramente, é da essência do casamento, modo tradicional e jurídico de constituir família, a dualidade de sexos. Em segundo lugar porque mesmo as uniões livres estáveis, consagradas pela Constituição como entidades familiares, são formadas necessariamente por um homem e uma mulher (art. 226, § 3º). Menos por força da Constituição expressamente dizê-lo, mais por que a concepção antropológica de família supõe as figuras de pai e de mãe, o que as uniões homossexuais não conseguem imitar. Ainda, se numa família monoparental, o ascendente que está na companhia do filho resolve ter uma relação com terceiro do mesmo sexo, ainda que de forma continuada, isto não implica, juridicamente, trazer este terceiro para dentro da noção de

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194família, mesmo que haja moradia comum, pois família continua sendo, aí, o ascendente e seu filho, excluído o parceiro do mesmo sexo daquele. Não vinga, aqui, o argumento de que nessas famílias monoparentais não exista a figura de pai e mãe, pois falta a figura de outro ascendente; mas a substituição só é admissível juridicamente, para o parceiro integrar o ente familiar, se houver respeito à dualidade de sexos que originariamente se apresentava, o que só acontece com nova esposa ou companheira do pai, que substitui a mãe. Portanto, é admissível o reconhecimento judicial de uma sociedade de fato entre os parceiros homossexuais, se o patrimônio adquirido em nome de um deles resultou da cooperação comprovada de ambos, sendo a questão de direito obrigacional, nada tendo a ver com a família. (Reflexos jurídicos das uniões homossexuais, Jurisprudência Brasileira, Editora Juruá, Curitiba, 1995, p. 97/107). Não é a posição que se adotará, como adiante se justifica. É que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadra nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os mesmos efeitos dela. É de Rodrigo da Cunha Pereira a afirmação de que nas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem sido, até então, a marca de um estigma, pois se relega à marginalidade aqueles que não têm suas preferências sexuais de acordo com determinados padrões de moralidade. Essa estigmatização não é só em relação à homo ou heterossexualidade, mas para qualquer comportamento sexual anormal, como se isto pudesse controlado e colocado dentro de um padrão normal (Direito de Família. Uma abordagem psicanalítica, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, p. 43). É que o sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a atribuição de uma posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de titularidades que o sistema define, operando-se a exclusão quanto a pessoas ou situações às quais as portas de entrada da moldura das titularidades de direitos e deveres é negada. Tal negativa, emergente de força preconceituosa e estigmatizaste dos valores culturais dominantes em cada época, alicerçam-se em juízo de valor depreciativo, historicamente atrasado e equivocado, mas esse medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e afeto (Luiz Edson Fachin, Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo, em : A nova família: problemas e perspectivas, Editora Renovar, Rio, 1997, p. 114, passim). É irrefutável que a homossexualidade sempre existiu, podendo ser encontrada nos povos primitivos, selvagens e nas civilizações mais antigas, como a romana, egípcia e assíria, tanto que chegou a relacionar-se com a religião e a carreira militar, sendo a pederastia uma virtude castrense entre os dórios, citas e os normandos. Sua maior feição foi entre os gregos, que lhe atribuíam predicados como a intelectualidade, a estética corporal e a ética comportamental, sendo considerada mais nobre que a relação heterossexual, e prática recomendável por sua utilidade. Com o cristianismo, a homossexualidade passou a ser tida como uma anomalia psicológica, um vício baixo, repugnante, já condenado em passagens bíblicas (...com o homem não te deitarás, como se fosse mulher: é abominação, Levítico, 18:22) e na destruição de Sodoma e Gomorra. Alguns teólogos modernos associam a concepção bíblica de homossexualidade aos conceitos judaicos que procuravam preservar o grupo étnico, nesta linha, toda a prática sexual entre os hebreus só poderia se admitir com a finalidade de procriação, condenado-se qualquer ato sexual que desperdiçasse o sêmen: já entre as mulheres, por não haver perda seminal, a homossexualidade era reputada como mera lascívia. Estava, todavia, freqüente na vida dos cananeus, dos gregos, dos gentios, mas repelida, até hoje, entre os povos islâmicos, que têm a homossexualidade como um delito contrário aos costumes religiosos. A Idade Média registra o florescimento da homossexualidade em mosteiros e acampamentos militares, sabendo-se que na Renascença, artistas como Miguel Ângelo e Francis Bacon cultivavam a homossexualidade. Do ponto de vista psicológico e médico, a homossexualidade configura a atração erótica por indivíduos do mesmo sexo, uma perversão sexual que atinge os dois sexos, sendo considerado homossexual quem pratica atos libidinosos com indivíduos do mesmo sexo ou exibe fantasias eróticas a respeito (Delton Croce e Delton Croce Júnior), ou inversão sexual que se caracteriza pela atração por pessoas do mesmo sexo (Guilherme Oswaldo Arbenz), ou, ainda, por perversão sexual que leva os indivíduos a sentirem-se atraídos por outros do mesmo sexo (Hélio Gomes), com repulsa absoluta ou relativa para os do sexo oposto (Fernanda de Almeida Brito, União afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos, Editora LTr, São paulo, 2000, p. 46/48). Teorias de cunho psicanalítico, social e biológico explicam as causas da homossexualidade sob diferentes pontos de vista, havendo se alterado o conceito, eis que a homossexualidade deixou de ser tida como uma patologia, tanto que, em 1985, o Código Internacional de Doenças (CID) foi revisado, mudando-se o homossexualismo, então entre os distúrbios mentais, para o capítulo dos sintomas decorrentes de circunstâncias psicossociais, ou seja, um desajustamento social decorrente da discriminação religiosa ou sexual. Em 1995, na última revisão, o sufixo ismo, que significa doença, foi substituído por idade, que designa modo de ser, concluindo os cientistas que a atividade não podia mais ser sustentada enquanto diagnóstico médico, por que os transtornos derivam mais da discriminação e da repressão social, oriundos de um preconceito de seu desvio sexual.

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195A proibição da homossexualidade é considerada como violação aos direitos humanos pela Anistia Internacional, desde 1991 (Fernanda de Almeida Brito, ob. cit. p. 43/46). Ensina o lusitano Asdrúbal de Aguiar que, genericamente, os sexos de nomes contrários se atraem e os de sexo do mesmo nome repelem-se, daí chamar-se o homossexualismo de inversão sexual, cumprindo, desde logo, distinguir entre os indivíduos capazes de relacionar-se com outros do sexo homônimo, os que assim procedem por um pendor independente de sua vontade (verdadeiros homossexuais, invertidos) e os que se comportam por imitação, por vício, por curiosidade ou até por divertimento (pseudo-homossexuais ou perversos), criando-se duas grandes categorias de homossexualidade, a inversão e a perversão (Américo Luís Martins da Silva, A evolução do Direito e a realidade das uniões sexuais, Editora Lúmen Júris, Rio, 1996, p. 300). Lembra Edward Wilson que a história genética da humanidade propugna uma moral sexual mais liberal, na qual as práticas sexuais devem ser consideradas, primeiro, como mecanismo de união e apenas, secundariamente, como meios de procriação e que o comportamento homossexual tem sido censurado pelas sentinelas da moral ocidental judaico-cristã, e tratado como doença na maioria dos países (A natureza humana, Editora USP, 1981, p. 141). Para Desmond Morris, todavia, a função primária do comportamento sexual é a reprodução da espécie, a qual é manifestamente posta de lado no acasalamento homossexual, ressaltando ele que nada existe biologicamente anormal num ato de pseudocópula homossexual, o que muitas espécies fazem, em variadíssimas circunstâncias, sendo a constituição de casais homossexuais apenas despropositada sob o aspecto reprodutivo, visto que não produz descendência e que desperdiça adultos potencialmente reprodutores (Américo Luís Martins da Silva, cit. p. 305). Não é negando direitos à união homossexual que far-se-á desaparecer o homossexualismo, como acentua Marilene Silveira Guimarães, pois os fundamentos dessas uniões se assemelham ao casamento e à união estável, sendo o afeto o vínculo que une os parceiros, à semelhança dos demais casais, e que gera efeitos jurídicos. A homossexualidade é considerada um distúrbio de identidade e não mais uma doença, não sendo hereditária nem uma opção consciente, eis que, como ensina o psicólogo Roberto Graña, a homossexualidade é fruto de um pré-determinismo psíquico primitivo, também estudado a partir das contribuições da etiologia sob a denominação de imprinting, originado nas relações parentais das crianças desde a concepção até os três ou quatro anos de idade. Já, aí, nessa tenra idade, constitui-se o núcleo da identidade sexual na personalidade do indivíduo, que será mais ou menos corroborado de acordo com o ambiente em que ele se desenvolva, o que posteriormente determinará sua orientação sexual definitiva. Portanto, a homossexualidade não é opção livre, é determinismo psicológico inconsciente (Reflexos acerca de questões patrimoniais nas uniões formalizadas, in Direito de família, aspectos constitucionais, processuais e civis, Ed. RT, v.2. p. 201/202). Esclarece Oswaldo Pataro que, na etiologia do homossexualismo em seres humanos, apontam-se quatro possibilidades explicativas: anomalia genética, perturbação endócrina, condição psicológica ou mistura de duas ou mais dessas possibilidades. Freud, um dos primeiros a idealizá-la, aceitava que a orientação era uma anormalidade do desenvolvimento emocional, sendo fator essencial a fixação do jovem à sua mãe e hostilidade ao pai, o que acabaria por levá-lo a uma tendência de comportamento feminino; ou seja, as formas de homossexualismo masculino e feminino representam uma espécie de imaturidade emocional decorrente da falta de identificação com o papel adulto em seu próprio sexo. Após várias teorias, lembra Pataro que a psicanálise propôs que o homossexualismo é um desvio adquirido do impulso sexual, que expressa um fracasso do aparecimento edipiano e uma regressão a impulsos e fantasmas pré-genitais, derivado de diversos fatores, uns constitucionais, outros ocidentais e ainda outros pertencentes à estrutura familiar e às personalidade sos pais (Américo Luís Martins da Silva, cit. p. 304/305). Anote-se que a tese de que o homossexualismo provém do estado da natureza com origens biológicas e não culturais ganha corpo atualmente, em vista de descobertas por cientistas canadenses de que a região do cérebro ligada às funções de aprendizagem é 13% maior nos homossexuais, restando sugerido que há um componente biológico na orientação sexual; sublinhe-se, também, que o corpo caloso do cérebro, ligado à habilidade verbal e motora, é também maior naquele núcleo (Witelson, 1994), que gêmeas idênticas têm três vezes mais probabilidades de serem lésbicas que gêmeas fraternas (Pillard e Bailey, 1993), que os homossexuais têm mais microestrias em suas impressões digitais (Kimura, 1994), e que o hipotálamo, parte do cérebro que regula o apetite, a temperatura do corpo e o comportamento sexual, é menor nos homossexuais (Levay, 1994). Afirma Luis Muñoz Sabaté que “la homossexualidad es tal vez uma de las desviaciones sexuales que más dificilmente podrías ser atacada o reprobada com base solamente a argumentos derivados de uma sexologia comparada. Tanto si nos remontamos a las costumbres de las sociedade paralelas a la nuestra, o incluso si acudimos a las conductas de otras especies animales habremeos de rendirnos a la evidencia de que se trata de um fenômeno corriente sobre el cual se han añandido diversas consideraciones de orden cultural y alguno que outro prejuicio. Nuestra sociedad ocidental mantiene uma actitud totalmente prohibitiva de la homossexualidad. Esta proihbición se refleja no solamente em uma serie de pautas morales y religiosas, calificando de vergonzoza, ridícula, denigrante o pecaminosa este tipo de conducta sino también em determinadas sanciones jurídicas, que em algunas épocas o países han llegado incluso a la castración y la piena de muerte” (Sexualidad y derecho. Elementos de sexologia jurídica, Editora Hispano-Europea, Barcelona, 1976, p. 199/2001).

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Ana Paula Pereira Marques – DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

196Helmut Thielick, ex-Reitor das Universidades de Tübingen e Hamburgo, alude que dificilmente se pode esperar uma atitude unânime sobre a homossexualidade na ética teleológica do protestantismo alemão, pois “el desconcierto frente a um fenômeno considerado um tabu religioso se pone de manifesto también em que casi siempre se encuadra la homossexualidad dentro de la competencia del médico. Más que discutibles, desde um punto de vista objetivo, son afirmaciones como las de que la “homossexualidad congênita em sentido estricto es extraordinariamente rara (em cualquier caso los homossexuales por herencia tienen que extinguirse pronto...ya que no se reproducen)”. O la afirmación de que como es posible acabar com la homossexualidad adquirida mediante um tratamiento médico, lo que hay que hacer em la mayoria de los casos es exigir del afectado que se someta a cuidados médicos. Se afirma también que “por parte médicase han hecho ya experiemntos com hormonas sexuales, registrándose Buenos resultados curativos”. Continuamente encontramos análogas muestras de esta desorientación o média-orientación” (Sexualidad y crímen, 3º edição, Instituto Editorial Reus, Madrid, 1990, p. 49/50). Com extrema precisão, Jurandir Freire Costa informa que toda época produz crenças sobre a natureza do bem e do mal, do sujeito e do mundo que, aos olhos dos contemporâneos, sempre aparecem como óbvias e indubitáveis. Os séculos XIV, XV, XVI e XVII criaram a feitiçaria. E, porque a crença na bruxaria existia, existiam bruxas. As bruxas eram um efeito da crença em bruxaria, sem esta crença não haveria mulheres que sentissem, agissem, reconhecessem-se e fossem reconhecidas como bruxas. Tampouco haveria moralistas, religiosos, médicos, etc, que se debatessem em infindáveis querelas sobre as causas e as manifestações do diabolismo ou sobre a competência dos que estavam autorizados a distinguir as falsas das verdadeiras feitiçarias, mas com o advento do imaginário racionalista e cientificista dos séculos XVIII e XIX pereceram as crenças na feitiçaria e, com elas, as feitiçarias. Outros tempos, outras crenças, outros sujeitos. Acrescenta o renomado psicanalista que, nas crenças a respeito da sexualidade, como as crenças de feitiçaria, também são apresentadas como fundadas em fatos evidentes por si mesmos. Assim, desde o século XIX passou-se a crer na existência de uma divisão natural dos sujeitos em heterossexuais, bissexuais e homossexuais, crença que se impõe como um dado imediato da consciência, como algo intuitivo e, portanto, universalmente válido para todos os sujeitos em qualquer circunstância espaço-temporal. No entanto, com um pouco de imaginação, pode-se conjeturar um futuro em que essa classificação fosse flexibilizada e enriquecida, com outros tipos sexuais, como os multissexuais, assexuais e alien-sexuais, estes últimos homens e mulheres que se sentiriam atraídos por seres extraterrestres; neste universo remoto, ideologicamente copiado da cultura moral, as novas gerações aprenderiam como é que se sente, sabendo que sente, uma atração multissexual ou alien-sexual, daí surgindo livros, vídeos, programas, com informações sobre o assunto, encontros e conferências seriam realizados para apurar as causa, as origens genéticas, psicológicas ou históricas daquelas características sexuais, aparecendo movimentos em defesa dos direitos civis dos alien-sexuais, outros os acusando de ter uma tendência sexual antinatural, posto que, se todos fossem atraídos por extraterrestres, a reprodução da espécie terráquea estaria ameaçada... Fora desse enfoque, toda a discussão sobre a chamada homossexualidade corre o risco de tornar-se um exercício fútil para mentes acadêmicas, e, na linha de Wittgenstein, Foucault ou Richard Rorty, pensa-se que todos são seres de linguagem, pois nada, nem a subjetividade ou sexualidade, escapa ao modo como se aprende a perceber, sentir, descrever, definir, ou avaliar moralmente o que se é. Nossa subjetividade e nossa sexualidade são realidades lingüísticas, não existindo uma coisa sexual objetiva que preexista à forma como se conhece lingüisticamente, a palavra não é aquilo que se diz, falsa ou verdadeiramente, o que a suposta coisa sexual é em si, mas aquilo que a palavra diz que ela é. Acredita-se que se é heterossexual, bissexual ou homossexual porque o vocabulário sexual coage a identificar desta maneira; vocabulário, no entanto, que não surge do nada, nem representa, para a razão, a verdade sobre a homossexualidade, ignorada pelo obscurantismo dos que vieram antes. Uma vez criados, os dispositivos lingüísticos de crenças ou os hábitos morais e intelectuais, tornam-se quase absolutos na demarcação do limite de possibilidades das identificações sexuais de cada indivíduo, sem chance de se escolher as preferências sexuais, assim como não se opta pela língua materna. As inclinações sexuais, como disse Freud, são contingentes, arbitrárias e casuais, o que não significa que sejam gratuitas, pois se está preso ao repertório sexual da cultura, até que outras práticas lingüísticas produzam novos modos de identificação moral dos indivíduos. Entretanto, ninguém é senhor da morada sexual, pode tornar-se livre para reescrever moralmente a versão imposta à forma de amar e desejar sexualmente, eis que ninguém pode escolher que tipo de desejo ou atração sexual será a sua, mas qualquer um pode aprender a definir o que sente conforme seus padrões éticos. Assim, discutir-se homossexualidade, partindo da premissa que todos são heterossexuais, bissexuais ou homossexuais, significa acumpliciar-se com o jogo de linguagem que se mostrou violento, discriminador, preconceituoso e intolerante, e que já levou a acreditar que certas pessoas humanas são moralmente inferiores, só pelo fato de sentirem atração por outra do mesmo sexo biológico. É possível abandonar o vocabulário onde consta a idéia de homossexualidade, assim como já se recusa a discutir sobre bruxas e bruxarias com o glossário da Inquisição.

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197E nessa cidade ideal de ética humanitária e democrática, as pessoas serão livres para amar sexualmente de tantas formas quanto possam inventar, e onde o único limite para a imaginação amorosa será o respeito pela integridade física e moral do semelhante. Heterossexuais, bissexuais e homossexuais serão, para Freire Costa, figuras curiosas nos museus de mentalidades antigas e na vida terão desaparecido, como rostos de areia no limite do mar. (A ética e o espelho da cultura. 3º edição, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2002, p. 118/122). Propõe o autor, então, o termo homoerotismo para aludir ao que hoje se chama homossexualidade, procurando evitar que o homem moderno, preso aos hábitos, desse tal sentido a quaisquer práticas eróticas entre indivíduos do mesmo sexo biológico, já que trocando o vocabulário também se mudam as perguntas, encontrando-se respostas que não podem ser achadas quando se utiliza a terminologia hetero ou homossexual. Como diz Rorty, trocando-se o vocabulário trocam-se os problemas e, com isso, algumas realidades que pareciam absolutamente importantes passam a não ter qualquer importância. (Jurandir Freire Costa, ob.cit. p. 113/116). Para Caio Fernando Abreu, a homossexualidade não existe, nunca existiu, e sim a sexualidade, voltada para um objeto qualquer de desejo, que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe, mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. (Pequenas epifanias, Editora Sulina, Porto Alegre, 1996, p. 49). A questão dos direitos dos casais do mesmo sexo tem sido debatida no mundo, e o argumento básico, em favor do tratamento igualitário, é no sentido de que as uniões homoeróticas devem ter os mesmos direitos que outros casais, ao demonstrar um compromisso público um para o outro, em desfrutar uma vida de família, a qual pode ou não incluir crianças, o que exige isonomia legal. Como noticia Andrew Bainham, a Convenção Européia é, até o presente, um desapontamento para os casais do mesmo sexo e para os transexuais, tendo o Tribunal Europeu adotado uma visão restritiva em relação ao direito ao casamento, o qual limita aos heterossexuais, não aceitando que os homossexuais possam ter uma vida familiar. Todavia, alguns países, incluindo a Grã-Bretanha, foram mais longe do que preconizado pela Convenção e começaram a conceder direitos a casais do mesmo sexo. Assim, na Inglaterra, em 1999, ocorreu o caso de Martin FitzPatrick e John Thompson, que viveram juntos até a morte prematura do último, então inquilino de um imóvel, para indagar-se se o primeiro podia continuar o contrato de locação ou tinha que devolver o bem. Ou seja, se FitzPatrick podia ser considerado como esposo de Mr. Thompson ou como um membro de sua família. A Câmara de Lordes disse não para a primeira questão, mas afirmou a segunda, que o parceiro remanescente poderia ser tido como integrante da família, por que a relação homossexual comprometida tinha as características de amor, afeto, apoio e companheirismo, normalmente presentes nas relações familiares. No Canadá, o Supremo Tribunal foi mais longe e defendeu que a expressão cônjuge, quando utilizada em determinadas partes da legislação, não deveria restringir-se formalmente aos casados, mas estendia-se a casais do mesmo sexo. Desenvolvimentos mais radicais ocorreram em alguns países da Europa Setentrional. As nações nórdicas (Dinamarca, Suécia, Noruega e Islândia) têm a concepção de parceira registrada, permitindo que casais homossexuais comprometidos registrem seus relacionamentos, sendo tratados como se consorciados fossem, não sê-lhes aceitando adotar crianças, o que já foi superado pelo parlamento holandês, com a possibilidade de que tais pessoas casem e adotem, cânone que passou a viger em 1º de abril deste ano. Assevera Bainham que os movimentos europeus estão lastreados na noção de igualdade e neutralidade como entre diferentes tipos de relações familiares, podendo tais reformas progressistas ser vistas como reflexo de uma visão do compromisso com os direitos humanos. No Canadá, a discriminação, com base na orientação sexual, viola a garantia constitucional da igualdade. Mas há também uma dimensão adicional para os debates que dizem com o sexo e com os gêneros masculino e feminino, indagando-se o cabimento, no mundo moderno, de agarrar-se à visão tradicional de que o casamento deve envolver um homem e uma mulher ou que a parentalidade envolva necessariamente duas pessoas, um pai e uma mãe. Argumenta-se que o compromisso entre duas pessoas ou em relação à criança, não depende do sexo ou gênero destas pessoas, o que aceito, implicaria emergir o casamento ou a parentalidade, no futuro, como conceitos neutros quanto ao gênero, ao invés de específicos (Direitos humanos, crianças e divórcio da Inglaterra, UFP/IBDFAM, Editora Juruá, Curitiba, 2001, p. 12/15). Acrescento que, na Hungria, a Corte Constitucional considerou que existindo o intuito do common-law marriage, semelhante à união estável brasileira, que reconhece aos casais heterossexuais os direitos econômicos do casamento, tal regra estende-se aos homossexuais, revisando, para tanto, a Lei de Coabitação de 1996, excetuando-se, contudo, o direito à adoção. No Canadá, os benefícios de saúde foram estendidos aos parceiros do mesmo sexo, também admitindo que pudessem ser tratados como membros de uma união estável; o governo oferece benefício médico, dentário e oftalmológico aos parceiros dos empregados homossexuais. Ali, uma província reconheceu, em 1997, a possibilidade de tutela e adoção por homossexuais. Nos Estado Unidos, embora o Congresso tenha aprovado a Lei de Defesa do Casamento (Defense of marriage Act, 1997), pela qual os Estados não precisam reconhecer os registros de casamentos homossexuais de outros Estados, lei cuja constitucionalidade ainda se debate, o Estado de Havaí aceitou benefícios recíprocos aos casais homossexuais do quadro de

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198seus servidores públicos, incluindo direito à pensão, saúde e indenização em caso de morte (1997), no que foi secundado pelo Estado de Oregon (1998). Embora o campo ainda não se tenha dilatado, os Estados Unidos concedem asilo político a homossexuais, desde que comprovada a perseguição, além de atribuir indenização por abuso sexual entre pessoas de mesmo sexo. Algumas empresas, como a Disney, Microsoft, IBM e Kodak, por exemplo, reconhecem a parceira doméstica entre pessoas do mesmo sexo, a fim de perceber benefícios médicos e pensão. A França foi a primeira nação católica a reconhecer legalmente a união homossexual, ao aprovar um Pacto Civil de Solidariedade entre pessoas de mesmo sexo, garantindo direito à imigração, à sucessão e declaração de renda conjunta, excetuada a adoção (1998). Em Israel, a lei de Igual Oportunidade de Emprego (1992), proíbe a discriminação contra empregados baseada em sua orientação sexual, o que também acontece no Exército, tendo já acontecido decisão judicial em favor de um homossexual quanto aos benefícios previdenciários relativos ao seu parceiro enfermo. Em Mendonza, província Argentina, foi atribuído ao parceiro os benefícios da saúde; na Espanha, foi rejeitada a lei de parceira registrada, mas na Catalúnia foi aprovada a parceria doméstica para homossexuais e heterossexuais, com garantia de direitos trabalhistas e pensão; na Alemanha, Portugal e Finlândia estuda-se legislação sobre casamento entre pessoas de mesmo sexo, reconhecimento de uniões homoeróticas e parceria registrada (Napoleão Dagnese, Cidadania no armário. Uma abordagem sócio-jurídica acerca da homossexualidade, LTr Editora, São Paulo, 2000, p. 71775 154). Em magistério paradigmático, Maria Berenice Dias lembra que os temas da ordem e da sexualidade são envoltos em uma aura de silêncio, despertando sempre enorme curiosidade e profundas inquietações, tendo lenta maturação por gravitarem na esfera comportamental, existindo tendência a conduzir e controlar seu exercício, acabando por emitir-se um juízo moral voltado exclusivamente à conduta sexual. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos padrões, é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais. O conceito de normal X anormal decorre, para a ilustrada doutrinadora e magistrada, de uma sacralização do conceito de família, que é historicamente associada ao conceito de casamento e filhos, supondo sempre uma relação heterossexual. Entretanto, as uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos, sendo incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças. Subtrair os direitos de alguns e gerar o enriquecimento injustificado de outros, afronta o mais sagrado princípio constitucional, o da dignidade humana, e se a palavra de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos, uma sociedade que se deseja aberta, justa, pluralista, solidária, fraterna e democrática não pode conviver com tal discriminação. (União homossexual, o preconceito e a justiça, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2000, p. 17/21). A partida para a confirmação dos direitos dos casais homoeróticos está, precipuamente, no texto constitucional brasileiro, que aponta como valor fundante do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), a liberdade e a igualdade sem distinção de qualquer natureza (CF, art. 5º), a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (CF, art. 5º, X), que, como assevera Luiz Edson Fachin, formam a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa e que, assim, como direito fundamental, é um prolongamento de direitos da personalidade imprescindíveis para a construção de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária. (Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo, em A nova família: problemas e perspectivas, Editora Renovar, Rio, 1997, p. 114). O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é prólogo de várias cartas constitucionais modernas (Lei Fundamental da República Federal Alemã, art. 1º; Constituição de Portugal, art. 1º; Constituição da Espanha, art. 1º; Constituição Russa, art. 21; Constituição do Brasil, art. 1º, III, etc.). Alicerça-se na afirmação kantiana de que o homem existe como um fim em si mesmo e não como mero meio (imperativo categórico), diversamente dos seres desprovidos de razão que têm valor relativo e condicionado e se chamam coisas; os seres humanos são pessoas, pois sua natureza já os designa com um fim, com valor absoluto. Reputa-se que o princípio da dignidade não é um conceito constitucional, mas um dado apriorístico, preexistente à toda experiência, verdadeiro fundamento da República brasileira, atraindo o conteúdo de todos os direitos fundamentais. Assim, não é só um princípio da ordem jurídica, mas também de ordem econômica, política, cultural, com densificação constitucional. É um valor supremo, e acompanha o homem até sua morte, por ser da essência da natureza humana; a dignidade não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, perseguido ou depreciado, sendo norma que subjaz à concepção de pessoa como um ser ético-espiritual que aspira determinar-se e desenvolver-se em liberdade. Não basta a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, reclama condições mínimas de existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da

154 Não sabemos se houve algum erro na numeração da página, copiamos integralmente o acórdão.

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199ordem econômica (José Afonso Silva, A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo, nº 212, p. 91/93). Assim, a idéia de dignidade humana não é algo puramente apriorístico, mas que deve concretizar-se no plano histórico-cultural, e para que não se desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa. Ingo Sarlet, em obra proeminente, menciona que nesse sentido assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice que também aponta para uma simultânea dimensão defensiva e protecional da dignidade. Como limite das atividades dos poderes públicos, a dignidade é algo que pertence necessariamente a cada um e que não pode ser perdida e alienada, pois se não existisse, não haveria fronteira a ser respeitada; e como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, que é dependente da ordem comunitária, já que é de perquirir até que ponto é possível o indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita para tanto do concurso do Estado ou da comunidade. Sinaliza o douto constitucionalista gaúcho que uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação (A dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2001, p. 46/49). A contribuição da Igreja na afirmação da dignidade da pessoa humana como princípio elementar sobre os fundamentos do ordenamento constitucional brasileiro, antes da Assembléia Constituinte, efetivou-se em declaração denominada Por um Nova Ordem Constitucional, onde os cristãos foram instados a acompanhar e posicionar-se, quando se tentasse introduzir na nova carta elementos incompatíveis com a dignidade e a liberdade da pessoa. Ali, constou que todo ser humano, qualquer que seja sua idade, sexo, raça, cor, língua, condição de saúde, confissão religiosa, posição social econômica, política, cultural, é portador de uma dignidade inviolável e sujeito de direitos e deveres que o dignificam, em sua relação com Deus, como filho, com os outros, como irmão e com a natureza como Senhor. Por isso, todos os seres humanos são fundamentalmente iguais em direitos e dignidade, livres para pensar e decidir de acordo com sua consciência; para expressar-se, organizar-se em associações e buscar sua plena realização, mas em profundo respeito à liberdade e à dignidade dos outros seres humanos, tendo sempre em vista o bem comum. Mas não é suficiente o reconhecimento formal dessa dignidade e igualdade fundamentais. É preciso que este reconhecimento seja traduzido na promoção de condições concretas para realizar e reivindicar os direitos fundamentais de todos os homens e de todas as mulheres, tais como: direito à vida e a um padrão digno de existência, direito à saúde e ao lazer; direito à educação, inclusive religiosa, a escolher o tipo de educação desejada para os filhos; direito à liberdade religiosa; direito ao trabalho e à remuneração suficiente para o sustento pessoal e da própria família; direito de todos à propriedade, submetida à sua função social, direito de ir e vir; direito de entrar no país e dele sair; direito à segurança, à preservação da própria imagem e participação na vida política (Cleber Francisco Alves, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da Doutrina Social da Igreja, Editora Renovar, Rio, 2001, p. 157/159). Dessa forma, a consagração do princípio da dignidade humana implica em considerar-se o homem como centro do universo jurídico, reconhecimento que abrange todos os seres e que não se dirige a determinados indivíduos, mas a cada um individualmente considerado, de sorte que os efeitos irradiados pela ordem jurídica não hão de manifestar-se, em princípio, de modo diverso ante duas pessoas. Daí se segue de que a igualdade entre os homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto na elaboração da regra de Direito quanto em relação à sua aplicação, já que a consideração da pessoa humana é um conceito dotado de universalidade, que não admite distinções (Edilson Pereira Nobre Júnior, O direito brasileiro e o princípio da dignidade humana, Revista dos Tribunais, nº 777, p. 475). Em magistério original, Roger Raupp Rios estabelece as extremas entre o princípio da dignidade humana e a orientação sexual, assim, compreendida esta como a identidade atribuída à alguém em função da direção de seu desejo e/ou condutas sexuais, seja para outra pessoa do mesmo sexo (homossexualidade), do sexo oposto (heterossexualidade) ou de ambos os sexos (bissexualidade). Ou, especificamente as discriminações em face da homossexualidade, uma vez que a diferenciação é gerada em vista desta direção de desejo ou conduta sexual. A sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental da constituição da subjetividade, alicerce indispensável para a possibilidade de livre desenvolvimento da personalidade. O respeito aos traços fundamentais da individualidade de cada um, sem depender de orientação sexual, é ordenado juridicamente em virtude do artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988, sendo o reconhecimento da dignidade da pessoa humana o elemento central do Estado de Direito, que promete aos indivíduos muito mais que abstenções de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais: a promoção positiva de suas liberdades.

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200A afirmação da dignidade humana, no direito brasileiro, repele quaisquer providências, diretas ou indiretas, que esvaziem a força normativa dessa noção fundamental, tanto pelo seu enfraquecimento na motivação das atividades estatais, quanto por sua pura e simples desconsideração. De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo à alguém em função de sua orientação sexual é dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, como se tal aspecto não se relacionasse com a dignidade humana. Diante destes elementos, conclui-se que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, fortalecendo estigmas sociais e espezinhando um dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito (Dignidade da pessoa humana, homossexualidade e família: reflexões sobre uniões de pessoas do mesmo sexo, trabalho inédito). Ainda a atentar-se para o princípio da igualdade. Celso Antonio Bandeira de Mello dita que o alcance do princípio da igualdade não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. Ou seja, a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas o instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente a todos, sendo esse o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral. Em suma, dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3º ed. Malheiros Editores, São Paulo, 1999, p. 9/10). A concretização da igualdade em matéria de sexo, diz Roger Raupp Rios, exponencializada pela proibição de discriminação, se examinada com cuidado, alcança o âmbito da orientação sexual homossexual. De fato, quando alguém atenta para a direção do envolvimento, por mera atração, ou pela conduta sexual de outrem, valoriza a direção do desejo, isto é, o sexo da pessoa com que o sujeito deseja se relacionar ou efetivamente se relaciona, mas esta definição (da direção desejada de qual seja a orientação sexual do sujeito, isto é, pessoa do mesmo sexo ou de sexo oposto) resulta tão só da combinação dos sexos de duas pessoas. Ora, se um for tratado de maneira diferente de uma terceira pessoa, que tenha sua sexualidade direcionada para o sexo oposto, em razão do sexo da pessoa escolhida, conclui-se que a escolha que o primeiro fez suporta um tratamento discriminatório unicamente em função de seu sexo. Fica claro, assim, que a discriminação fundada na orientação sexual do sujeito esconde, na verdade, uma discriminação em virtude de seu próprio sexo. O sexo da pessoa escolhida, se homem ou mulher, em relação ao sexo do sujeito, vai continuar qualificando a orientação sexual como causa de tratamento diferenciado ou não, em relação àquele. Não se diga, outrossim, que inexiste discriminação sexual porque prevalece tratamento igualitário para homens e mulheres diante de idêntica orientação sexual, pois o argumento peca duplamente, ao buscar justificar uma hipótese de discriminação (homossexualismo masculino) invocando outra hipótese de discriminação (homossexualismo feminino). O raciocínio desenvolvido acerca da relação entre o princípio da igualdade a orientação sexual, aduz ainda o culto magistrado, é uma espécie de discriminação por motivo de sexo, isso significando que, em linha de princípio, são vedados no ordenamento jurídico pátrio os tratamentos discriminatórios fundados na orientação sexual. Tem-se de investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é afinado, em concreto, com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional, se guarda harmonia com eles (Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade, Revista do Centro de Estudos Judiciários Brasileiros, Conselho da Justiça Federal, 1988, v. 6, p. 29/30). A idéia de igualdade interessa particularmente ao Direito, pois ela se liga à idéia de Justiça, que é a regra das regras de uma sociedade e que dá o sentido ético de respeito a todas as outras regras. Na esteira da igualdade dos gêneros, e com a evolução dos costumes, principalmente a partir da década de 60, desmontam-se privilégios e a suposta superioridade do masculino sobre o feminino, e a sexualidade legitima autorizada pelo Estado começa a deixar de existir unicamente por meio do casamento, eis que, com a evolução do conhecimento científico, torna-se possível a reprodução mesmo sem ato sexual. (Rodrigo da Cunha Pereira, A sexualidade vista pelos tribunais, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2000, p. 61/62). Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair conseqüências jurídicas das relações entre as pessoas do mesmo sexo, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos, mas a convivência homossexual em nada se diferencia da união estável, podendo como tal apenas pela restrição contida na Carta Maior. Entretanto, é imperioso que, através de uma interpretação analógica, passe-se a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de um relacionamento que tem base no amor (Maria Berenice Dias, Efeitos patrimoniais das relações de afeto, in Repensando o direito de família, IBDFam, Belo Horizonte, 1999, p. 57).

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201Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, sob o prisma jurídico, não há efeitos distintos das uniões concubinárias e das uniões homossexuais, já que ambas, fora do Direito de Família, somente podem ser cuidadas como sociedade de fato, desde que evidentemente sejam preenchidos os requisitos para a configuração de tais entidades, possibilitando o reconhecimento do direito de partícipe da relação – que for prejudicado em decorrência da aquisição patrimonial em nome tão-somente do outro – ao partilhamento dos bens adquiridos durante a constância da sociedade de fato, na medida de sua efetiva contribuição para a formação ou incremento patrimonial (O companheirismo, uma espécie de família, Editora RT, São Paulo, 1998, p. 491). Observa Euclides de Oliveira que, muito antes das leis de união estável, o Supremo Tribunal Federal vinha mandando partilhar bens decorrentes da sociedade de fato entre concubinos, desde que comprovado o esforço comum; o mesmo raciocínio serve às uniões de pessoas do mesmo sexo, uma vez que, por mútua colaboração, formem uma sociedade de fato, que, desfeita, exige repartição igualitária dos bens, sob pena de estar um dos parceiros se enriquecendo injustamente à custa do outro (União homossexual gera direitos patrimoniais limitados, in Nova realidade do direito de família, COAD, 1998, p. 39). Buscando uma hermenêutica construtiva, baseada numa interpretação atualizada e dialética, Luiz Edson Fachin afirma que a partilha da metade dos bens havidos durante a comunhão de vidas mediante colaboração mútua, é um exemplo de via que pode ser trilhada, expondo perante o próprio sistema jurídico suas lacunas, daí porque equivoca a base da formulação doutrinária e jurisprudencial acerca da diversidade dos sexos como pressuposto do casamento. O grande mestre paranaense lembra que a técnica engessada das fórmulas acabadas não transforma o tema em algo perdido no ar, quando ensinar é percorrer a geografia do construir, exigindo o estudo, em seu mapa cartográfico do saber, o construído e não a indução ao dado. Não se deve, então, conviver com uma atitude de indiferença ou de renúncia a uma posição avançada na inovação e mesmo na revisão e superação dos conceitos, atribuindo, abertamente, para fomentar questionamentos e fazer brotar inquietude que estimule o estudo e a pesquisa comprometidos com seu tempo e seus dilemas. (Elementos críticos de direito de família, Editora Renovar, Rio, 1999, p. 2, passim). Como conclui Maria Berenice Dias, comprovada a existência de um relacionamento em que haja vida em comum, coabitação e laços afetivos, está-se à frente de uma entidade familiar, forma de convívio que goza da proteção constitucional, nada justificando que se desqualifique o reconhecimento dela, pois o só fato dos conviventes serem do mesmo sexo, não permite que lhes sejam negados os direitos assegurados aos heterossexuais (ob.cit. p. 88). Além disso, como apregoam José Lamartine Corrêa de Oliveira Francisco José Ferreira Muniz, as uniões estáveis de natureza homossexual podem ter relevância jurídica em outros planos e sob outras formas, não como modalidades de casamento (Direito de Família. Direito Matrimonial, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1990, p. 215). Embora ainda tímido em qualificar a relação como entidade familiar, não me divorcio da possibilidade do uso analógico dos institutos jurídicos existentes e dos princípios do Direito, para admitir efeitos patrimoniais na união homossexual, tal como se faz no casamento ou na união estável, como uma comunidade familiar. A família não suporta mais a estreita concepção de núcleo formado por pais e filhos, já que os laços biológicos, a heterossexualidade, a existência de, pelo menos, duas gerações, cederam lugar aos compromissos dos vínculos afetivos, sendo um espaço privilegiado para que os opostos possam vir a se tornar complementares. Atualmente a família, além de sua função de reprodução biológica, produz também sua própria reprodução social, através da função ideológica que exerce ao vincular a introjeção, por seus membros, de valores, papéis, padrões de comportamento que serão repetidos pelas sucessivas gerações, deixando a família nuclear de se constituir em modelo prevalente. A progressão dos inúmeros divórcios, filhos criados pelo pai ou pela mãe, filhos criados em famílias reconstruídas por novos casamentos, aconchegam os novos arranjos cada vez mais freqüentes na sociedade, não comportando mais a simples reprodução dos antigos modelos para o exercício dos papéis de mães e pais, experiência que vai além dos fato biológico natural, mas adquire o estatuto de uma experiência psicológica, social, que pode ou não acontecer, independentemente a fecundação, gestação e do dar a luz e amamentar. Ressignificar a família na função balizadora do périplo existencial é um imperativo de nossos dias, revitalizá-la com o aporte de novas e mais satisfatórias modalidades de relacionamento entre os seus membros é indispensável para se aperfeiçoar a convivência humana, repensá-la é tarefa a ser por todos compartida por sua transcendência com a condição humana (Cristina de Oliveira Zamberlan, Os novos paradigmas da família contemporânea. Uma perspectiva interdisciplinar, Editora Renovar, Rio, 2001, p. 13/14 e 149/151). Segundo Rosana Amara Giardi Fachin, a família contemporânea não corresponde àquela formata pelo Código Civil, constituída por pai e mãe, unidos por um casamento regulado pelo Estado, a quem se conferia filhos legítimos, eis que o grande número de famílias não matrimonializadas, oriundas de uniões estáveis, ao lado de famílias monoparentais, denota a abertura de possibilidades às pessoas, para além de um único modelo. Hoje, a nova família busca construir uma história em comum, não mais a união formal, eventualmente sequer se cogita do casal, o que existe é uma comunhão afetiva, cuja ausência implica a falência do projeto de vida, já não se identifica o pai como marido, eis que papéis e funções são diversas, e a procura de um outro desenho jurídico familiar passa pela superação da herança colonial e do tradicional modo de ver os sujeitos das relações familiares como entes abstratos. (Em busca da família do novo milênio. (Uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâneo, Editora Renovar, Rio, 2001, p. 7, passim).

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202É ainda Guilherme Calmon Nogueira da Gama que flagra o descompasso entre o avanço constitucional do direito de família e a existência de algumas famílias sociológicas, que ainda se mantém à margem das família jurídica, diante dos valores e princípios constitucionais que norteiam o ordenamento brasileiro, tais como as uniões sexuais entre parentes, pai e filha, e as famílias de fato resultantes da união de pessoas do mesmo sexo. Embora aceitando que alguns valores e princípios tradicionais ainda prevaleçam em matéria de conjugalidade, o que obsta relações entre pessoas de mesmo sexo, pois a sexualidade se vincula ainda à procriação, impedindo outros modelos, reconhece o mestre carioca que a realidade fática de ditas uniões, tal como ocorreu com a união livre, deve percorrer caminho também difícil e tortuoso, mais vai atingir o status de família em tempos não muito distantes. (Família não fundada no casamento, RT nº 771, p. 62 e 68). Como foi observado no início, afastada a possibilidade de emoldurar a união homoerótica como forma de casamento, o que acha respaldo na doutrina e nos repertórios dos tribunais, toca examiná-la como uma forma de comunidade familiar, aparententada com a união estável, esta também vedada pela prescrição constitucional vigorante (CF, art. 226, § 3º). Não desconheço a tese que sustenta a inconstitucionalidade da regra constitucional invocada, por violar os princípios da dignidade humana e da igualdade ao discriminar o conceito de homossexualidade, mas que cede ante a afirmação do Supremo Tribunal Federal de que a existência de hierarquia entre as normas constitucionais originárias, dando azo de uma em relação a outras, é incompossível com o sistema de Constituição rígida (ADIn nº 815/DF, rel. Min. Moreira Alves, DJU 10.05.96), além de afrontar o princípio da unidade constitucional. Aparenta-me adequado, pois, filiar-me ao uso razoável da analogia e uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais, principalmente o direito de igualdade. Como explica Roger Raupp Rios, a equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo destinado originariamente à situação diversa, ou seja, comunidade formada por um homem e uma mulher, mas onde a semelhança autorizadora seria a ausência de laços formais e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre com os sexos opostos. O argumento avança no sentido da concretização da Constituição, pois conferindo uma unidade diante da realidade histórica, fazendo concorrer os princípios constitucionais, dentre os quais se destaca o isonômico e a decorrente proibição por motivo de sexo e de orientação sexual. Todavia, embora a analogia tenha o mérito de reconhecer o caráter familiar das uniões homossexuais, segundo Rios, o reconhecimento destas uniões ao direito de família prescinde da união estável como paradigma, pois se uma emenda constitucional retirasse da Carta a previsão da união estável, sem mais nada, o procedimento não impediria que a legislação e a jurisprudência continuassem a desenvolver e atualizá-lo, reconhecendo a pertinência tanto da união estável quanto das uniões homossexuais; e, portanto, a qualificação jurídica familiar às uniões homossexuais não depende da existência da união estável, cuidando-se, pois, mais que uma analogia, de comunhão de características típicas do conceito de família às duas situações (Dignidade da pessoa humana, cit. p. 31/34). Aliás, a jurisprudência local já havia dito que “é possível o processamento e o reconhecimento da união estável entre os homossexuais, ante os princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preconceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e as coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos”. (TJRS, Oitava Câmara Cível, APC 598 362 655, rel. Dês. José Siqueira Trindade, j. 01.03.2000). Dir-se-á, talvez, que a utilização da analogia apenas socorre para preencher alguma lacuna (LICC, art. 4º e CPC, art. 126), mas na verdade o ordenamento jurídico, visto como um todo, encarrega determinados órgãos, no caso os juízes, para atribuírem soluções aos casos concretos, mesmo naquelas situações em que não existem regras legais específicas, eis que como assevera Aftalión, Garcia y Vilanova, contra la opinión de algunos autores que han sostenido que em ordenamiento jurídico existen lagunas – o sea, casos o situaciones no previstas – que serían necesario llenar o colmar a medida que las circuntancias mostrasen la conveniência de harcelo, debemos hacer nota que el ordenaimento jurídico es pleno: todos os casos que puedan presentarse se encuentran previstos em él (...). No hay lagunas, porque hay jucees (voto do Des. Breno Moreira Mussi, no AGI 599 075 496, julgado pela Oitava Câmara Cível do TJRS, em 17.06.99, quando definiu que as demandas que envolvem relações de afeto são de competência das Varas de Família). Se o juiz não pode, sob a alegação de que aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com seu sentimento de justiça ou eqüidade, substituir-se ao legislador para formular ele próprio a regra de direito aplicável (STF, RBDP 50/159), não é menos verdade que a hermenêutica não deve ser formal, mas antes de tudo real, humana e socialmente útil; e se ele não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, decidindo contra ela, alude o Ministro Sálvio de Figueiredo, pode e deve, por outro lado, optar interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum (RSTJ 26/378), já que a proibição de decidir pela eqüidade não há de ser entendida como vedando se busque alcançar a justiça no caso concreto, com atenção ao disposto no artigo 5º da Lei Introdução (RSTJ 83/168).

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203Assim encorajado aplico ao caso concreto os efeitos patrimoniais que deslumbro da união estável, repartindo o acervo angariado pelos parceiros em sua vida comum, destoando do fundamento e do percentual ditados na erudita sentença do Dr. Tasso Caubi Soares Delabary, que encaminhou ao autor 75% do patrimônio existente. Embora comprovada a coabitação e a comunidade de afetos, resta solitária no processo a afirmação do apelado de que somente seus recursos geraram o cabedal sob exame, não havendo prova que afaste a presunção derivada da vida conjunta, onde, de muito, os tribunais vinham alertando para contribuição indireta na construção do cabedal. É razoável, pois, atribuir-lhe somente a meação do patrimônio existente, como numa comunidade familiar, conclusão que mais se fortalece com a existência de uma filha adotiva, tal como na união estável que adoto como paradigma para o caso concreto, que, obviamente, não se trata de uma sociedade de fato. Assim dou provimento parcial ao apelo, repartindo a sucumbência estatuída no decisório. Desejo consignar, ainda, um voto de louvor ao eminente juiz, Dr. Tasso Caubi Soares Delabary, pela erudita decisão. É como voto. DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELOS CHAVES – REVISOR- Penso também que a questão da homossexualidade deve ser vista hoje com desassombro e trago, aqui, a mesma linha de argumentação que expandi ao apreciar outro processo (agravo de instrumento nº 70000535542, da 8º Câmara Cível), em que litigavam duas mulheres que mantinham relacionamento homossexual. A homossexualidade sempre existiu desde os primórdios e, depois de um longo período de perseguição e brutal restrição, e até de ataques à prática homossexual, sendo tal conduta até mesmo tipificada criminalmente em algumas sociedades, ao longo da história da humanidade, tendo sido repudiada também até o terceiro quarto do tormentoso século XX, de tantas mudanças sociais e redefinição de valores. Mas hoje a sociedade convive bem com esse fato social que não é novo, sendo sua aceitação progressiva. Vivemos novos tempos, e o preconceito vai ficando para trás. A sociedade vai olhando os fatos com o colorido e o contorno que eles efetivamente apresentam, sem a máscara hipócrita que transformava o fato real em invisível, e alvo de prévia, imposta e artificial censura. É momento de perceber que a dignidade de uma pessoa não está atrelada à sua orientação sexual, e que cada qual pode livremente exercitar a sua sexualidade, externando comportamento compatível com a sua própria maneira de ser, respeitando obviamente os limites da privacidade de cada um. Não se pode mais ficar adstrito aos antigos paradigmas que ditavam as condutas, como se a sexualidade humana fosse linear e coubesse nos estreitos limites de gênero homem ou mulher. Ao lado dessa dualidade, é preciso considerar que existem outros critérios respeitáveis para identificar a sexualidade de uma pessoa. A orientação homossexual não é uma aberração senão uma definição individual vinculada a apelos próprios, físicos ou emocionais. Há que se respeitar o sentimento de cada um, a busca da realização de cada pessoa, que deve encontrar espaço para a integração ao grupo social a que pertence, sem discriminações. É preciso, pois, que as pessoas reconheçam, como direito individual, a identidade de gênero, expressão cunhada pelo legislador norte-americano ROBERT STOLLER, que há mais de quatro décadas estuda a questão da intersexualidade e transexualidade, que diz, pois, com a forma de o indivíduo se relacionar com o grupo social a que está inserido. Não existe opção sexual. Cada qual exercita a sexualidade da forma como a natureza lhe oferece. A orientação a ser seguida decorre de um impulso natural. ROBERTO FARINA, na sua obra sobre transexualismo, e que leva este título, diz que a homossexualidade tem origem psicogênica e é essencialmente multifatorial, isto é, decorre de causas orgânicas (ou endócrinas), psíquicas, ambientais e sociais. Portanto, trata-se de uma forma de comportamento rigorosamente natural, isto é, decorre de causas biológicas ou psíquicas e de circunstâncias pessoais ou sociais. Dada a freqüência com que se verifica hoje, já bastante reduzida a carga de preconceito, não se pode dizer que se trata de um fato raro. Pelo contrário, cada vez mais vem sendo alvo de uma afirmação social, existindo até um dia internacional do “orgulho gay”. Não obstante isso, o comportamento tido como normal na nossa sociedade é o do homem que se relaciona com mulher e da mulher que se relaciona com o homem. Mas nunca se perquiriu se tais relacionamentos são ou não satisfatórios para todas as mulheres e para todos os homens. O modelo tradicional apontava para as pessoas que tinham apenas insatisfações ou frustrações nos relacionamentos afetivos heterossexuais, como a única saída socialmente aceita o celibato. E a solidão era penitência imposta para quem não teve culpa de ser diferente, por não se adequar ao modelo imposto pela sociedade e que, talvez, soube responder aos apelos que a natureza lhe impôs. Hoje, porém, afigura-se intolerável obscurantismo persistir em qualquer prática discriminatória. Aproximando-se os influxos da nova era, que se iniciou neste século XXI, é preciso reconhecer como um fato social a homossexualidade e que, portanto, não merece e não pode ser alvo de discriminação. Com essa visão, tenho que as questões acerca da dissolução de sociedades de fato envolvendo relações homossexuais devem, efetivamente, ser tratadas no âmbito de Varas especializadas em Direito de Família. Mas, convém deixar bem claro, não vejo como deferir um tratamento paralelo ao casamento ou à união estável. O exame de tais questões, dentro do Direito de Família, situa-se no âmbito do direito assistencial. Ou seja, localiza-se fora do direito matrimonial ou direito parental, não

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204sendo possível erigir tal relacionamento ao patamar de uma entidade familiar, tendo conteúdo meramente obrigacional. Situa-se tal questão dentro do direito assistencial, pois não se trata de uma mera questão patrimonial, já que a relação tem o componente da intimidade e da afetividade, o que reclama a aplicação de princípios peculiares ao Direito de Família, tal como ocorre, também, com a tutela, a curatela e a assistência. E tal entendimento, afastando qualquer paralelo com o casamento ou a união estável, não decorre de qualquer preconceito, senão pela compreensão que tenho do que seja família, a partir da própria história da humanidade. O que é família? Como se compreende o grupo familiar? A família é um fenômeno natural e que prescinde de toda e qualquer convenção formal ou social, embora não se possa ignorar que foram as exigências da própria natureza e da própria sociedade, acatando os apelos naturais, que se encarregaram de delinear e formatar esse ente social que é a base de toda e qualquer sociedade organizada. CLÓVIS BEVILÁQUA, aliás, dizia, com propriedade, que a família é uma instituição natural, que a sociedade molda e aperfeiçoa. Toda e qualquer noção de família passa, necessariamente, pela idéia de uma prole, e partir dessa noção é que foi sendo estruturado esse grupamento social em todos os povos e em todas as épocas da história da humanidade. Na linha de entendimento de BACHOFEN, e que foi desenvolvida por MORGAN e MC’LENNAN, partindo-se de um estado de promiscuidade absoluta, lá nos primórdios, encontrou-se o primeiro resquício de civilização quando a humanidade passou a perceber a necessidade de se definir a filiação, até pela higidez da prole. Então, a partir daí é que começou a primeira noção de família, com repúdio ao relacionamento incestuoso. E foi isso, precisamente, que fez com que a sociedade encontrasse a sua primeira forma, que foi o matriarcado, e que se manifestava ainda na poligamia, na modalidade de poliandria, que foi a primeira forma de família e tinha a mulher como principal referencial familiar. E, daí, o matriarcado. A evolução fez com que, também e pelos mesmos problemas relacionados com a prole, se fizesse necessário definira a paternidade. Foi a necessidade de se buscar a paternidade certa que fez com que o homem passasse a ser o centro da família. E aí, ainda com a poligamia, encontrou-se a poligenia, passando a ser abominado o relacionamento poliândrico. Na medida em que o homem subjugava a mulher, sendo ele o pai dos filhos das suas mulheres, passou a sociedade a ter, não apenas a maternidade certa, mas também a certeza da paternidade. Ou, talvez, uma suposta certeza, já que durante muito tempo se disse que a maternidade era uma certeza e a paternidade uma hipótese... E a sociedade evoluiu mais, até chegar à monogamia como ocorre no mundo moderno e, particularmente, no mundo ocidental. Mas, como se infere, sempre focalizando a estrutura de família: homem, mulher e prole. Essa forma de estruturação familiar não decorreu, portanto de uma mera invenção ou convenção, nem surgiu do dia para a noite. As regras sociais relativamente à família foram, são e certamente continuarão sendo alvo de constante elaboração e burilamento, acompanhando o próprio desenvolvimento social, cultural e econômico de cada povo. As regras jurídicas que disciplinam as relações de família, como tal estabelecidas no direito positivo, foram, outrora, meras formas de conduta social. E a razão de ser desse regramento, cada vez mais minucioso e abrangente, foi decorrência necessária da importância social do agrupamento familiar. A própria Igreja que inspirou as relações de família no mundo ocidental, a partir de normas do Direito Canônico, estabeleceu até punições severas, sempre buscando a monogamia, a fim de manter a ordem e a estabilidade dos organismos familiares, com vistas à definição de uma sociedade organizada. É que a família era, também para a Igreja, a célula básica. Como se infere, as disposições religiosas, sociais e jurídicas acerca das relações de família tinham por finalidade tutelar esse agrupamento social de tamanha significação para a própria vida em sociedade, constituindo um tecido capaz de estabelecer uma convivência cada vez melhor, mais civilizada e harmônica. Então, vê-se que a idéia de família sempre esteve voltada para a caracterização de um ambiente ético por excelência, onde a função procriativa pudesse se exercitar e a prole encontrasse espaço para se desenvolver de forma natural e segura. Essa, pois, é a noção do que é família, construída e reconstruída muitas vezes, em processos sociais lentos, durante a longa, tormentosa, conflitada e surpreendente caminhada do homem sobre a Terra, sempre em função de se estabelecer e manter a vida social, com vistas à edificação de um mundo melhor. Hoje, pois, temos o império da família monogâmica, mas, vista agora, no limiar desse novo século, até com certo desprezo, tantos são os apelos para a retomada da promiscuidade sexual. Como já disse, a sociedade vive novos tempos, há uma maior abertura, há uma maior aceitação de comportamentos menos ortodoxos. Os meios de comunicação transformaram o mundo numa aldeia global – pena que a expressão aldeia global não signifique um intercâmbio cultural, uma aproximação entre os povos baseada em valores espirituais e morais mais saudáveis, na medida em que o homem parece retornar àquele estágio inicial de promiscuidade, mais impelido pelos impulsos carnais do que afetivos. E a expressão aldeia parece que se amolda, pois os homens, por vezes, estabelecem comportamentos primitivos... Isso permite que tenhamos uma visão mais ampla do que efetivamente está acontecendo no mundo, das crises de valor, de expectativas, de perspectivas e correspondentes frustrações pelas quais passa o homem, nesse mundo competitivo, onde o ter supera o ser, os bens materiais superam os espirituais, e o Direito não pode fechar os olhos para essa realidade circunstancial. Fiz essas colocações para dizer que tenho a família como sendo um grupo afetivo de cooperação social acima de tudo, mas não consigo desvincular, ainda, a idéia de família da idéia de prole, não consigo desvincular a idéia de família como sendo aquele ambiente próprio para receber um prole, natural ou adotiva e onde, em verdade, deve ser formado o novo cidadão. A família é isso, e, portanto, muito mais do que uma mera relação de afeto.

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205Tenho que o legislador constituinte, quando cuidou de dar à união estável a feição de entidade familiar, ele não procurou proteger o amor nem os amantes, mas a família, vista como sendo a base do grupo social. A família é muito mais do que mera união de duas pessoas, ou, por absurdo que possa parecer, de três pessoas que pudessem se amar, porque não estamos falando apenas em pacto ou de relação amorosa. Nada tenho contra que duas, três, ou quem sabe, quatro pessoas optem por desenvolver vida em comum, com ou sem o componente erótico-afetivo, e dessa forma somar esforços e dividir a solidão, morando juntas e libertando a sexualidade, numa explosão de emoções. Não pretendo fazer censura alguma, enquanto operador do direito. Mas não me parece que, a priori, seja este o ambiente ideal onde uma criança deve se desenvolver. Não pode a família se apartar da estrutura formal concebida pelo legislador, como sendo o ambiente natural e próprio para a procriação e desenvolvimento da prole, admitida como tal no ordenamento jurídico pátrio como sendo decorrente do casamento ou da união estável, ou na modalidade monoparental, de um homem ou uma mulher com a sua prole, natural ou adotiva. E usei, propositalmente, a expressão estrutura formal, pois a forma concebida não partiu de uma idéia ou de uma convenção, mas da construção social consolidada através dos séculos: a família diz com a estrutura afetiva construída por um homem e uma mulher em função de uma prole, natural ou adotiva, podendo manter-se como tal, caso tenhamos o homem ou a mulher separados, e, sua prole. Fiz estas longas considerações para enfatizar que se está aqui a tratar de relações humanas, que o direito não pode desconhecer e urge, portanto, proceder sem discriminação, mas também sem violentar a própria estrutura do Direito de Família e sem modificar a natureza da relação havida, que não perde sua natureza obrigacional. Cuida-se, pois, de uma relação de dois homens, um dos quais – o de cujus – teve uma filha adotiva e que, vale gizar, jamais reconheceu o autor como mãe...Não houve, a toda evidência, a constituição de uma família. Evidente que o reconhecimento do fato natural do afeto ou até da tendência gregária própria do ser humano não pode ser ignorada, mas isso não agasalha o reconhecimento de tal relação, como sendo uma relação tipicamente de família. O direito pátrio concebe, por princípio, a família monogâmica, formada a partir da união de um homem e uma mulher, que sejam casados ou vivam como se casados fossem, ou, ainda, as famílias monoparentais, isto é, o homem ou a mulher e sua prole. Tenho reservas com a apologia do novo e penso que o entusiasmo pela possibilidade de mudar estruturas pode conduzir a uma incontornável situação de insegurança jurídica. É perigoso romper com os liames que secularmente definiram a própria ordem jurídica no mundo civilizado. Então, quero frisar, não se trata de uma posição preconceituosa dizer que a união de dois homens ou de duas mulheres não constitui núcleo familiar, como também não constitui núcleo familiar uma mera união (não estável, isto é, que não seja da convivência more uxório) de um homem e uma mulher, pelo só fato de existir afeto. É que a lei diz que a família inicia com o casamento, quando o legislador constituinte disse que “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável (...)” e “entende-se, também, (...) a comunidade formada por qualquer de seus pais e descendentes”, está excepcionando a regra geral de que a família começa com o casamento. E não se pode, por princípio elementar de hermenêutica, interpretar ampliativamente a exceção. A família começa a partir do casamento, porque assim está estruturado o ordenamento jurídico, mas o legislador constituinte deu passo fabuloso, terminando com aquela postura hipócrita que grassava antes, em que tínhamos famílias constituídas de maneira igual à do casamento e que eram discriminadas. O legislador constituinte reparou esse erro na Carta de 1988, em que trouxe para a proteção do Estado essas outras famílias, que apenas não haviam sido constituídas com a chancela estatal, bem como aquelas compostas por um genitor e a prole. Não consigo vislumbrar, porém, um núcleo familiar na união de dois homens ou duas mulheres apenas pelo fato de existir afeto. Não é o afeto o fato jurígeno, o fato jurígeno é a constituição de uma família. Afeto também existe entre amigos, com ou sem relacionamento sexual entre eles, nem por isso vamos dizer que os amigos podem pedir alimentos uns para os outros, sendo que há amizades de 30, 40, 50 e até de 70 anos...Existem amigos que dividem apartamentos e que mantêm verdadeira sociedade de fato, sem que um ou outro sejam homossexuais. Ou, mesmo que mantenham vínculo sexual entre si, será que a homossexualidade por si deve gerar direitos? E, se for assim, não estarão sendo discriminados os homossexuais? Cuida-se aqui neste processo de dissolução de sociedade de fato decorrente de uma união homossexual da qual resultou aquisição de um patrimônio significativo. E a partilha justa e equilibrada dos bens, em tal hipótese se impõe, não por ser uma entidade familiar, mas porque repugna ao direito a idéia do enriquecimento sem causa, isto é, o enriquecimento de um em detrimento do direito de outro. E, mais ainda, cumpre considerar que, no caso sub judice, era o autor quem trabalhava, pelo que se colhe com segurança da prova coligida, e foi ele quem produziu o capital necessário para a aquisição dos bens, cuja partilha esta a reclamar. Como a capacidade intelectual do autor é bastante reduzida, sendo analfabeto, dedicando-se apenas às atividades de religião, da qual obtinha significativo proveito econômico, o seu parceiro, ora falecido, que não desenvolvia atividade remunerada alguma e, por ter maior cultura, administrava todos os seus ganhos, adquirindo bens e colocando-os no seu próprio nome, já que era absoluta a relação de confiança entre o par.

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206Com a morte, ficou o autor privado de todo o seu patrimônio, ensejando uma situação de flagrante injustiça, sendo inequívoca a necessidade de ser estabelecida a partilha dos bens. A prova coligida ao longa da instrução revela, com clareza, que todo o patrimônio foi adquirido com o fruto do trabalho exclusivo do autor, limitando-se o de cujus a administrar os recursos econômicos do par. Tenho que, dessa forma, promovendo aquisição dos bens e auxiliando ao autor a mantê-los, o de cujus concorreu para a constituição de uma sociedade de fato. De qualquer sorte, não vejo como estabelecer uma partilha igualitária, como propõe o eminente Relator, já que flagrantemente desigual o concurso de cada um para a construção do patrimônio, não tendo o de cujus contribuído economicamente para a aquisição dos bens. Justifica-se, então, o acolhimento de forma plena da pretensão deduzida na exordial, como decidiu a douta sentença hostilizada. É a lei veda o julgamento ultra petita e, mais do que isso, não se pode negar também o significado econômico da administração dos recursos feita pelo falecido H.O. Nesse passo, rogo vênia, ao eminente Relator, mas não vejo como estabelecer analogia entre a união homossexual e um casamento, de forma a aplicar o regime legal de bens do matrimônio para reger os efeitos patrimoniais de tal relacionamento. Entendo que tem aplicação, sim, a idéia contida na Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal, quando estabelece que “comprovada a existência de sociedade de fato (...) é cabível a sua dissolução judicial, com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Essa partilha deve ser proporcional ao esforço de cada pessoa, já que, não sendo assim, se estará propiciando enriquecimento sem causa. Como foi o autor quem concorreu com a parte mais significativa para o amealhar dos bens, cabe a ele, por óbvio, o recebimento da maior porção, merecendo acolhida o pedido que busca a divisão proporcional do patrimônio, reclamando para si 75% dos bens. Mesmo que tenha sido provado que foi ele apenas quem concorreu economicamente para a aquisição da totalidade dos bens, não pode ser desprezado o auxílio do de cujus, afigurando-se razoável a definição para ele do percentual de 25%. Com essa mesma linha de entendimento, destaco a lição oportuna e erudita do eminente civilista pátrio SÍLVIO DE SALVO VENOSA (in Direito Civil – Direito de Família, Ed. Atlas, 2000, pág. 49/50), quando focaliza a exigência de diversidade de sexo para o reconhecimento de uma união estável, ensinado que “a união do homem e da mulher tem, entre outras finalidades, a geração de prole, sua educação e assistência. Desse modo, afasta-se de plano qualquer idéia que permita considerar a união de pessoas do mesmo sexo, como união estável nos termos da lei”. De forma incisiva, afirma o preclaro jurista que “o relacionamento homossexual, por mais estável e duradouro que seja, não receberá a proteção constitucional e, conseqüentemente, não se amolda aos direitos de índole familiar criados pelo legislador ordinário. Eventuais direitos que possam decorrer dessa união, diversa do casamento e da união estável, nunca terão o cunho familiar, situando-se no campo obrigacional, no âmbito de uma sociedade de fato”. Essa linha de entendimento do professor SÍLVIO DE SALVO VENOSA vem ilustrada por interesse – e pertinente-aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo, do qual foi relator o eminente DESEMBARGADOR NEY ALMADA (op. cit. pág. 50), in verbis: “SOCIEDADE DE FATO. CONCUBINATO. LIGAÇÃO HOMOSSEXUAL. Alteridade de sexos, que é pressuposto do concubinato, tratando-se de sucedâneo do matrimônio constitutivo da família, e não dele decorrente. Hipótese que trata de uma sociedade patrimonial de fato, destituída de vínculo com o instituto”. Igual linha de entendimento tem, também, o ilustre PROFESSOR GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA (in Companheirismo – uma espécie de família -, Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. 491), quando afirma que enquanto o Projeto da Deputada Marta Suplicy “não for convertido em lei, a união homossexual continuará a não ser passível de registro oficial, não gerando efeitos jurídicos no Direito de Família, devendo ser tratada como sociedade de fato, ou seja, no campo do Direito das Obrigações”. E sua conclusão é perfeitamente ajustada para o caso em tela, in verbis: “(...) somente podem ser cuidadas como sociedades de fato, desde que evidentemente sejam preenchidos os requisitos para a configuração de tais entidades, possibilitando o reconhecimento do direito do partícipe da relação – que for prejudicado em decorrência da aquisição patrimonial em nome, tão-somente, do outro – ao partilhamento dos bens adquiridos durante a constância da sociedade de fato, na medida de sua efetiva contribuição para a formação ou incremento patrimonial” (grifo meu) 155. Por tais razões rogando vênia pelas longas considerações que fiz, ouso divergir do douto voto do eminente Relator para negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a douta sentença hostilizada. DES. MARIA BERENICE DIAS – Não tenho como me afastar do lúcido, pioneiro e corajoso voto do eminente Relator, que, com a sensibilidade e perspicácia que tanto o distingue ente seus pares, mais uma vez revela sua profunda consciência na busca da verdade e da justiça. Preciso confessar que tenho a posição do ilustre colega como um dos primeiros frutos colhidos das muitas sementes que venho plantando ao longo de minha vida profissional. Por ter sentido na carne – a ingressar no reduto até então exclusivamente masculino da magistratura – a difícil posição de quem é excluído e discriminado pelo só fato de não ser igual aos demais, acabei empunhando a luta pela igualdade. Por isso, liguei-me ao movimento feminista, criei serviços em prol da mulher, editei um jornal, escrevi artigos, proferi palestras por esse Brasil afora.

155 Atente-se que o grifo é do próprio desembargador.

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207Despertou minha atenção o descaso da sociedade, do Estado e da própria Justiça para com todas as questões femininas, principalmente no que diz com o crime mais praticado em todo o mundo, que é a violência doméstica. Ao buscar entender o mecanismo que rege as relações interpessoais, acabei, ao natural, embrenhando no Direito de Família, e passei a visualizar a necessidade de se mudar, não só no meio social, mas principalmente no âmbito jurídico, o conceito de família. Nessa incessante busca, fui uma das idealizadoras e fundadoras do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam, do qual tenho a honra de ser Vice-Presidente nacional. Foi, ao certo, a reunião de todos aqueles que se devotavam a esse ramo do Direito e se revoltavam com o pouco prestígio de que gozavam no mundo jurídico que levou ao nascimento de um novo conceito de família, desatrelado da definição legal, desvencilhado dos laços do casamento e enlaçado, tão-somente, no vínculo afetivo. Foi seguindo essa trilha que acabei por envolver no conceito de família, também, as relações que prefiro nominar de homoafetivas. Mais uma vez, pela minha verdadeira aversão ao preconceito, chocou-me constatar o rechaço que envolve tais vínculos e que os levavam à exclusão não só familiar, social, legal, mas à pior das marginalizações, que é a exclusão perpetrada pela Justiça ao infringir o mais sagrado princípio insculpido na Constituição Federal, como marco maior de nosso Estado Democrático de Direito, que é o respeito à dignidade humana. Daí a razão de escrever o livro, tão repetidamente referido pelo ilustre Relator, o que recebo como uma verdadeira lisonja. Tenho, de outro lado, que não poderia ser outra a posição desta Corte, que goza de uma invejável e destacada posição no panorama nacional. Reconhecida como uma Justiça vanguardista, arrojada e desbravadora, o pioneirismo ao certo é a nossa marca. Ora, se foi daqui a primeira decisão que emprestou efeitos jurídicos às relações extramatrimoniais e que levou à sua inclusão na órbita constitucional, se foi a nossa Justiça que de forma inédita reconheceu como entidade familiar as relações homossexuais, definindo a competência das Varas de Família para o julgamento de tais uniões, e também é gaúcha – ainda que da órbita da Justiça Federal – a decisão que conferiu direitos previdenciários aos parceiros do mesmo sexo, ao certo essa desbravadora trajetória só poderia culminar com a manifestação do ilustre Relator. Mister que seja consignado o pioneirismo de tal decisão, pois, pela vez primeira, a Justiça retirou a venda dos olhos e viu essas relações como vínculos afetivos a serem inseridos e tratados no âmbito do Direito de Família. Certamente era chegada a hora de abandonar o medo de ver a realidade. No dilema entre praticar uma injustiça e afrontar tabus e preconceitos, vinha o Judiciário, de forma cômoda, buscando subterfúgios no campo do Direito Obrigacional para reconhecer como sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto. Relegar tais questões ao âmbito obrigacional gerava, no mínimo, um paradoxo, pois acabavam os juízes aplicadores do Direito de Família se socorrendo de ramo do Direito para cujo julgamento não detêm competência. Assim, e reservando-me a faculdade de nada mais dizer além do que já clara e lucidamente referiu o ilustre Relator, quero parabenizá-lo por ter dado um seguro e irreversível passo para resgatar o conceito de que a Justiça tem a consciência de sua missão de inserir todos os cidadãos no Estado democrático de direito em que vivemos. Acompanho o eminente Relator. DESA. MARIA BERENICE DIAS – PRESIDENTA – Apelação Cível nº 70001388982, de Porto Alegre: “POR MAIORIA, PROVERAM, EM PARTE, O APELO, VENCIDO O EMINENTE DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES, QUE LHE NEGAVA PROVIMENTO.” Decisor (a) de 1º Grau: Tasso Caubi Soares Delabary. 3. ALIMENTOS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 70000535542. Oitava Câmara Cível. Relator: Des. Antônio Carlos Stangler Pereira. Agravante: E.L.L. Agravado: C.M. Data do julgamento: 13/4/2000. Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. O relacionamento homossexual não esta amparado pela lei 8.971 de 21 de dezembro de 1994, e lei 9.278, de 10 de maio de 1996, o que impede a concessão de alimentos para uma das partes, pois o envolvimento amoroso de duas mulheres não se constitui em união estável, e semelhante convivência traduz uma sociedade de fato. Voto vencido. 4. ADOÇÃO. 4.1. PRIMEIRA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO RIO DE JANEIRO. PROCESSO nº 97/1/03710-8. Juiz Siro Darlan de Oliveira. Requerente: J.L.P.M.

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208Adolescente: M.S.P. Data do julgamento: 20/7/1998. Vistos, etc... O Requerente propôs AÇÃO DE ADOÇÃO com Destituição de Pátrio Poder156 em face dos Requeridos alegando que o menor já se encontra em companhia do Requerente, após ter sido abandonado por vários anos no Educandário R.D., desde 1998, quando contava apenas 2 anos de idade. Instruiu o pedido com os documentos acostados às fls. 6/7. Deferida a guarda provisória (fls.9), a citação editalícia (fls. 24/26) e funcionou regularmente o Dr. Curador Especial (fls.28). Estudo Social às fls. 15/16, relatório de visita domiciliar às fls. 32/33 e declaração de idoneidade para a adoção às fls. 34, laudo de parecer psicológico favorável ao deferimento do pedido às fls. 39. Saneador irrecorrido. Realizada a audiência de instrução e julgamento às fls. 44 com manifestação da Promotoria da Infância e da Juventude requerendo sejam repetidos os estudos sociais e psicológicos (fls. 46/47), laudos às fls. 49/52, não encontrando as Assistentes Sociais óbices ao pleito do Requerente. Manifestaram-se as representantes do Ministério Público às fls. 55/57 opinando pelo indeferimento do pedido. É o relatório. DECIDO: O pedido inicial deve ser acolhido porque o Suplicante demonstrou reunir condições para o pleno exercício do encargo pleiteado, atestado esse fato pela emissão da Declaração de Idoneidade para a Adoção que se encontra às fls. 34 com o parecer favorável do Ministério Público contra o qual não se insurgiu no prazo legal devido, fundando-se em motivos legítimos, de acordo com o Estudo Social (fls. 15/16 e 49/52) e Parecer Psicológico (fls. 39/41), e apresenta reais vantagens para o Adotando, que vivia há 12 anos em estado de abandono familiar em instituição coletiva e hoje tem a possibilidade de conviver em ambiente familiar (chama o Requerente de “pai”), estuda em colégio de conceituado nível de ensino religioso, o Colégio S.M. e freqüenta um psicanalista par que melhor possa se adequar à nova realidade de poder exercitar o direito do convívio familiar que a Constituição Federal assegura no art. 227. A Constituição da República assegura igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, não admite o texto constitucional qualquer tipo de preconceito ou discriminação na decisão judicial quando afirma que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”, estando previsto ainda que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Ora, não alegam os Fiscais qualquer norma impeditiva para o acolhimento do pleito inicial, ao contrário, manifestaram-se favoravelmente ao deferimento da Habilitação para a Adoção, cujo certificado instrui o pedido e a manifestação contida às fls. 55/57 parece referir-se a pedido diverso do contido na peça exordial, eis que afirma que “o ordenamento jurídico brasileiro não prevê o casamento de pessoas do mesmo sexo, o que data vênia não é matéria a ser decidida por esse juízo, além de estar em franca contradição com os fatos e laudos da equipe interprofissional ao afirmar que “não acredita que trará reais vantagens ao adotando”. Afirmam os expertos que “M. demonstra estar feliz com sua inserção num contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e parecem estar permitindo o desenvolvimento pleno do menino” (Parecer psicológico, fls. 41) e, “o menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade, parecendo-nos estar recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento (Estudo Social, fls. 51) e, ainda, o próprio adolescente afirma às fls. 44: “que agora tem um pai de nome J. ...que está gostando de morar com seu novo pai, que além de estudar brinca muito, que seu novo pai é professor de ciências, que quando seu pai está trabalhando fica com a empregada, que deseja ser adotado”. Qual será então o conceito de “reais vantagens” dos Ilustres Fiscais? Deve ser muito diferente do que afirmam a Equipe Interprofissional e o próprio interessado, o adolescente, que prefere ver acolhido o pedido a permanecer em uma instituição sem qualquer nova chance de ter uma família, abandonado até que aos doze anos sofrerá nova rejeição já que não poderá mais permanecer no Educandário R.M.D., onde se encontra desde que nasceu, e será transferido para outro estabelecimento de segregação e tratamento coletivo, sem qualquer chance de desenvolver sua individualidade e sua cidadania, até que por evasão forçada ou espontânea poderá transformar-se em mais um habitante das ruas e logradouros públicos com grandes chances de residir nas Escolas de Formação de “marginais” em que se transformaram os atuais “Presídios de menores” e, quem sabe, atingir ao posto máximo com ingresso no Sistema Penitenciário? Será esse o critério de “reais vantagens”??? A lei não acolhe razões que tem por fundamento o preconceito e a discriminação, portanto, o que lei não proíbe não pode o intérprete inovar. ISTO POSTO. Julgo Procedente o pedido inicial para deferir, com fundamento no art. 39 da Lei 8.069/90, ao Requerente a adoção do adolescente, acima qualificada, e passará a chamar-se M.C.P.M., filho de J.L.P. M., sendo avós paternos S. M. M e D.P.R. Decreto a perda do Pátrio Poder 157 em relação aos pais biológicos. Cancele-se o registro de nascimento e escreva-se a presente no competente cartório de registro civil.

156 Note-se que com o Código Civil de 2002, o termo “pátrio poder” fora substituído por poder familiar (art. 1.630, CC/02). 157 Vide nota anterior.

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209P.R.I. Transitado em julgado. Arquive-se. Rio de Janeiro, 20 de julho de 1998. SIRO DARLAN DE OLIVEIRA. Juiz Titular da 1º Vara da Infância e Juventude. 4.2. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. APELAÇÃO CÍVEL nº 14.332/98. Apelante: Ministério Público. Apelado: J.L.P.M. Data do julgamento: 23/3/1999. Ementa: ADOÇÃO CUMULADA COM DESTITUIÇÃO DO PÁTRIO PODER. ALEGAÇÃO DE SER HOMOSSEXUAL O ADOTANTE. DEFERIMENTO DO PEDIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PUBLICO. 1. Havendo os pareceres de apoio (psicológico e de estudos sociais) considerado que o adotado, agora com dez anos sente agora orgulho de ter um pai e uma família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade, atende a adoção aos objetivos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor de ciências de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente observados, e inexistindo óbice outro, também é a adoção, a ele entregue, fator de formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, na pode servir de empecilho à adoção de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre a cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos outros jovens. Apelo improvido. Vistos, relatados e discutidos estes autos da apelação cível em epígrafe. Acordam os desembargadores da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade, em negar provimento ao recurso. Assim, decidem pelo seguinte. Como se vê do Relatório, insurge-se o Ministério Público contra a sentença que deferiu ao apelado a adoção de menor, com dez anos de idade, alegando-se que a entidade familiar, constitucionalmente garantida, não enseja o direito à adoção, e que o fato de o adotado passar a conviver com dois homens homossexuais pode prejudicar-lhe a formação de caráter e personalidade. O Ministério Público, neste Tribunal em seu bem lançado parecer de fls. 82, afirmou: ao nosso sentir, e do ponto de vista jurídico, entendemos que é permissível tudo aquilo que a lei não veda...O problema do menor abandonado é dos mais angustiantes da sociedade moderna...Desse estado, quase sempre caótico de coisas, resulta a imensa falange de menores que passam a infância e a adolescência em instituições desprovidas dos meios. Mas também se preocupa com as dúvidas sobre a influência, mesmo involuntária do adotante sobre o menor, em relação ao seu comportamento afetivo. O quadro é, realmente, eivado de dúvidas e problemas, mas entendemos que a sentença está correta. Como afirma seu ilustre prolator, o talentoso Juiz Siro Darlan, às fls. 59: Afirmam os expertos que “M. demonstra estar feliz com sua inserção num contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e parecem estar permitindo o desenvolvimento pleno do menino” (Parecer psicológico, fls. 41) e, “o menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade, parecendo-nos estar recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento (Estudo Social, fls. 51). Percebe-se que sua experiência de anos à frente do Juizado, e a observação pessoal do caso ditou sua decisão, que nos parece ponderável. Será preferível a nosso juízo, correr o risco da dúvida, a deixar o adotado em uma instituição de abandonados, já agora afastado e arrancado de uma adoção que tanto orgulho e alegria lhe causam, o que, sem dúvida, passará a ser razão de revolta para ele. Rompê-la para depois encaminhá-lo a uma escola de delinqüência, como acontecerá aos seus doze anos, no Educandário R.D., é muito mais indigno e aterrorizante do que confiar na competência dos técnicos que emitiram o pareceres favoráveis e manter a decisão que o entregou a uma adoção cujas desconfianças e suspeitas parecem não haver considerado a realidade e as circunstâncias do fato, além de, d.v., fundadas em preconceitos que a lei veda. Tais são as razões pelas quais se mantém a bem elaborada decisão. Rio de Janeiro, 23 de março de 1999. Des. Laerson Moura – Desembargador - Presidente. Des. Jorge de Miranda Magalhães – Relator. 5. SUCESSÃO. 5.1. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. EMBARGOS INFRINGENTES nº 70003967676.

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2104º Grupo de Câmaras Cíveis de Porto Alegre. Embargante: I.L.M. Embargado: Espólio de V.D., representado por sua curadora especial L.F. Ementa: UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. Incontrovertida a convivência duradoura, pública e continua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos, por maioria. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam, em 4º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, acolher os embargos infringentes, vencidos o Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, Luiz Felipe Brasil Santos, Alfredo Guilherme Engelert e Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves (Relator), sendo designada redatora do acórdão a Desª Maria Berenice Dias, de conformidade e pelos fundamentos constantes das notas taquigráficas anexas, integrantes do presente acórdão. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além da signatária, os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Carlos Alberto Bencke (Presidente), Alfredo Guilherme Englert, Antônio Carlos Stangler Pereira, José Carlos Teixeira Giorigs, Rui Portanova, Luiz Felipe Brasil Santos, Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves (Relator vencido) e José Ataídes de S. Trindade. Porto Alegre, 9 de maio de 2003. DESA. MARIA BERENICE DIAS, Redatora p/ o acórdão. VOTO O DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELOS CHAVES (RELATOR) – Estou desacolhendo os embargos opostos e confirmando o entendimento majoritário, e trilho a mesma linha de entendimento posta nos votos que lancei nos julgamentos da apelação cível nº 70001388982, da Egrégia 7º Câmara Cível158, e no Agravo de Instrumento nº 70000535542, da Egrégia 8º Câmara Cível159. A DESA. MARIA BERENICE DIAS – A questão posta neste volumoso processo, que já conta com mais de 800 páginas e tramita desde 1996, é das mais singelas: I. e V. mantiveram um vínculo afetivo desde 1981, residindo no mesmo teto nos anos de 1986 e 1987 e a partir de 1989, até o falecimento de V. em 1995. Incontrovertido que se trata de uma convivência duradoura, pública e contínua, sendo uníssona a prova carreada aos autos nesse sentido. Tudo o mais diz tão-só com a postura pessoal do próprio julgador, em assumir a realidade de julgar de conformidade com a realidade que se apresenta ou reproduzir o modelo social e, escudando-se na falta da lei, simplesmente deixar de cumprir o seu dever de fazer justiça. Se é verdade, como diz o eminente Relator, que a homossexualidade sempre existiu mas que o preconceito vem sendo superado na exata medida em que o princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo realçado, porquanto a dignidade a dignidade de uma pessoa não pode ficar atrelada à sua orientação sexual; se como continua eminente Relator, não mais se pode ficar adstrito aos antigos paradigmas que ditavam as condutas sociais e...a sociedade já consegue conviver melhor com ele, uma vez que a homossexualidade não constitui aberração, senão uma definição individual, sendo uma forma de comportamento natural ..., e suas manifestações não podem mais ser consideradas como situações excepcionais na sociedade, nada justifica que não mereçam, as relações que prefiro chamar de homoafetivas, ser enlaçadas no âmbito da juridicidade. Ora, se os vínculos afetivos entre pessoas do mesmo sexo existem, não pode o Poder Judiciário negar-lhes inserção no mundo do Direito, deixando de lhes atribuir direitos e obrigações. A falta de previsão legal, por óbvio, não pode ser obstáculo. Aliás, essa é a função criadora do juiz, que, tendo de solver as questões que lhe são trazidas, com a sensibilidade que seu mister exige, deve ver a realidade e posicionar-se, pois tem o compromisso de cumprir sua missão de fazer justiça. Não é repetindo as posturas conservadoras e preconceituosas da sociedade, não é deixando de ver o que está claro diante dos olhos que a Justiça conseguirá ser o grande agente transformador da sociedade. Inquestionável que a lei não consegue acompanhar o desenvolvimento social cada vez mais acentuado, sendo as relações afetivas as mais sensíveis às evoluções dos valores e conceitos. Dada a aceleração com que se transforma a sociedade, elas escapam ao Direito positivado, não tendo o legislador condições de prever tudo o que é digno de regramento. Compete ao Judiciário colmatar as lacunas que acabam existindo. Para tanto, deve estar consciente de que as regras legais existentes não podem servir de limites à prestação jurisdicional. Se o fato sub judice se apresenta fora da normatização

158 Ver anexos II – Jurisprudência, 2. Partilha de Bens. 159 Ver anexos II – Jurisprudência, 3. Alimentos. OBS: Disponibilizamos apenas a ementa do Agravo de Instrumento indicado, pois o texto integral não está disponível nos Anexos da obra de Maria Berenice Dias – União Homossexual: o preconceito e a justiça, nossa fonte, tampouco se encontra disponível no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, haja vista que se trata de segredo de justiça.

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211ordinária, a resposta precisa ser encontrada, não só na analogia, nos costumes, nos princípios gerais do direito, como ordena a lei civil, mas principalmente nos direitos e garantias fundamentais, que servem de base ao estado democrático de direito. Imperioso que os juízes sejam criativos, encontrando soluções que – atentas aos ditames de ordem constitucional – assegurem o respeito à dignidade da pessoa humana, calcado nos princípios da liberdade e da igualdade. Ante a situações novas, a busca de subsídios em regras ditadas para outras relações jurídicas tende a soluções conservadoras. Por outro lado, não reconhecer direitos sob o fundamento de inexistir previsão legal, bem como usar de normas vertidas para situações outras, em diverso contexto temporal, nada mais é do que mera negação de direitos. É dever da jurisprudência inovar diante do novo. Cabe lembrar que os vínculos afetivos que surgiram fora do selo da oficialidade, mesmo sem nome e sem lei, foram ao Judiciário, que começou a dar visibilidade e juridicidade ao afeto. A princípio, ainda que de forma tímida e conservadora, confundindo amor com labor, as relações então ditas como concubinárias foram vistas como verdadeiros vínculos empregatícios. Depois, entendeu-se como sociedade de fato o que nada mais era do que sociedade de afeto. Assim, as relações extramatrimoniais foram reconhecidas como negócio jurídico e inseridas no campo do Direito das Obrigações. Mas, impositivo reconhecer que foi o respaldo judicial que levou a Constituição Federal a alargar o conceito de família para além do casamento. Também o que ela chamou de união estável e as relações de um dos pais com seus filhos receberam o nome de entidade familiar e a especial proteção do Estado. Mas, embora vanguardista, o conceito de família cunhado pela Lei Maior ainda é acanhado. Não alcançou vínculos afetivos outros, que não respondem ao paradigma convencional, identificado pela tríade: casamento, sexo, reprodução. Ora, se os métodos contraceptivos e os movimentos feministas concederam à mulher o livre exercício da sexualidade, e se passaram a ser considerado como família os relacionamentos não selados pelo casamento, é imperioso que se busque um novo conceito de família, sobretudo no estágio atual de evolução da engenharia genética, em que a reprodução não mais depende de contato sexual. A identificação da presença de um vínculo amoroso, cujo entrelaçamento de sentimentos leva ao enlaçamento das vidas, é o que se basta para que se reconheça a existência de uma família. Como já afirmava Saint Exupéry: você é o responsável pelas coisas que cativa. Esse comprometimento é o objeto do Direito de Família. Leva à imposição de encargos e obrigações, que dão base à concessão de direitos e prerrogativas a quem passa a comungar com outrem a sua vida. Se basta o afeto para se ver uma família, nenhum limite há para o seu reconhecimento. A presença de qualquer outro requisito ou pressuposto é desnecessária para a sua identificação. Essa nova concepção tem levado cada vez mais a sociedade a conviver com todos os tipos de relacionamento, mesmo que não mais correspondam ao modelo tido como “oficial”. No momento em que se enlaçam no conceito de família, além dos relacionamentos decorrentes do casamento, também as uniões estáveis e os vínculos monoparentais, mister seja inserido no âmbito do Direito de Família mais um gênero de vínculos afetivos, quais sejam as relações homossexuais, hoje chamadas de relações homoafetivas. Ainda que esses relacionamentos sejam alvo de rejeição social, as relações de pessoas do mesmo sexo não podem receber do Poder Judiciário um tratamento discriminatório, preconceituoso. O paradoxo entre o direito vigente e a realidade existente, no confronto entre o conservadorismo social e a emergência de novos valores, coloca os operadores do Direito diante de um verdadeiro dilema para atender à necessidade de implementar os direitos de forma ampliativa. Ante as novas formas de convívio, necessária uma revisão crítica e a atenta reavaliação dos fatos sociais, para alcançar a tão decantada igualdade social. Nesse contexto, é fundamental a missão dos juízes. Importante que tomem consciência de que lhes é delegada a função de agentes transformadores dos valores jurídicos, que – estigmatizantes – perpetuam o sistema de exclusão social. O que é aceito pelos tribunais como merecedor da tutela jurídica acaba recebendo a aceitação social, o que gera, por conseqüência, a possibilidade de cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida. O surgimento de novos paradigmas conduz à necessidade de rever os modelos preexistentes, atentando-se na liberdade e na igualdade como os pilares básicos do Direito, assentados no reconhecimento da existência das diferenças. Essa sensibilidade deve ter o magistrado. Hoje, a necessidade de assegurar em plenitude os direitos humanos, tanto subjetiva como objetivamente, tanto individual como socialmente, torna imperioso pensar e repensar a relação entre o justo e o legal. Precisam os juízes enfrentar as novas realidades que lhe são postas à decisão e não ter medo de fazer justiça. Esse compromisso com a realidade o Judiciário gaúcho sempre soube assumir, tanto que se destaca no panorama nacional como sendo uma justiça vanguardista e corajosa. Aliás, não é por outro motivo que é desta Corte a primeira decisão que distingui as uniões extramatrimoniais e lhes conferiu direitos, tendo sido o meu pai, o Des. César Dias Filho, quem assim votou pela primeira vez, nos idos de 1964. Também é deste Tribunal a decisão que fixou a competência deste órgão julgador para apreciar a questão ora sub judice e é de um membro da Câmara que tenho o privilégio de presidir, o Des. José Carlos Teixeira Giogis, a primeira decisão que no Brasil reconheceu uma união homossexual como entidade familiar. Outros três tribunais já adotaram postura idênticas: Bahia, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. Inquestionavelmente essas decisões estão sinalando o novo rumo, que com certeza corresponde ao anseio social de que se possa viver em uma sociedade mais livre e igual e na qual o direito à cidadania não seja mero discurso vazio de vésperas eleitoreiras.

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212Por tais fundamentos, voto pelo acolhimento dos embargos, aqui reproduzidos os precisos termos da sentença da Dra. Judith dos Santos Mottecy e do voto do Des. José Siqueira Trindade. O DES. ANTÔNIO CARLOS STANGLER PEREIRA – O relacionamento homossexual entre dois homens ou duas mulheres encontra óbice no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, na Lei nº 8.971, de 2-2-94, e na Lei 9.278, de 10-5-96, tanto para o reconhecimento de uma união estável como para a conversão em casamento. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na Apelação Cível nº 3.309/92 – 8º Câmara Cível, Relator Des. Celso Guedes, em julgamento de 24-11-1992, estabelece, no corpo do acórdão, o seguinte: “O concubinato é a união livre e estável entre o homem e a mulher, como se marido e mulher fossem com fidelidade recíproca, more uxório, sem embargo do disposto no art. 226, § 3º, da CF. Concubinato entre ‘dois homens’, como se casados fossem, é ostensiva esdruxularia contrastando com a índole do direito brasileiro”. – Maria Berenice Dias, “União Homossexual – O Preconceito, A Justiça”, Livraria do Advogado Editora, p. 171. Desacolho os embargos. O DES. JOSÉ S. TRINDADE – A matéria já foi por mim exaustivamente examinada quando do julgamento na Câmara. Lá a prova foi examinada minuciosamente e colacionando respaldo jurídico para a posição assumida. Mantendo a mesma linha daquele voto, acolho os embargos. O DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS – Adoto, para o caso, argumentos que já venho expondo em acórdãos, artigos e revistas jurídicas e em palestras, e que ora renovo, pois entendo a pretensão como uma união estável. 1. Costuma-se objetar, e aqui o disse a douta maioria da Câmara, que a relação homoerótica não se constitui em espécie de união estável, pois a regra constitucional e as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 exigem a diversidade de sexos. Nesse sentido, argumenta-se que a relação sexual entre duas pessoas capazes do mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relação homossexual voluntária, em si, não interessa ao Direito, em linha de princípio, já que a opção e a prática são aspectos do exercício do direito à intimidade, garantia constitucional de todo o indivíduo (art. 5º, X), escolha que não deve gerar qualquer discriminação, em vista do preceito da isonomia. Todavia, por mais estável que seja a união sexual entre pessoas do mesmo sexo, que morem juntas ou não, jamais se caracteriza como uma entidade familiar, o que resulta, não de uma realização afetiva e psicológica dos parceiros, mas da constatação de que duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo de procriação humana e de educação de futuros cidadãos. É que a união entre um homem e uma mulher pode, em potência, ser uma família, porque o homem assume o papel de pai e a mulher de mãe, em face dos filhos; e dos dois parceiros do mesmo sexo, homens ou mulheres, jamais conjugam a paternidade e a maternidade em sua complexidade psicológica que os papéis exigem. Como argumento secundário a união de duas pessoas do mesmo sexo não forma uma família porque, primeiramente, é da essência do casamento, modo tradicional e jurídico de constituir família, a dualidade de sexos e, depois, porque as uniões estáveis previstas na Lei Fundamental como entidades familiares são necessariamente formadas por um casal heterossexual (CF, art. 226, § 3º). Nem porque a Constituição o diga, mas porque a concepção antropológica de família supõe as figuras de pai e de mãe, o que as uniões homossexuais não conseguem imitar. E se numa família monoparental, o ascendente que está na companhia do filho resolve ter uma relação com terceiro do mesmo sexo, ainda que de forma continuada, isto não implica, juridicamente, trazer este terceiro para dentro da noção de família, mesmo que haja moradia comum, pois família continua sendo, aí, o ascendente e seu filho, excluído o parceiro do mesmo sexo daquele. Não vinga o argumento de que nestas famílias monoparentais não exista a figura de pai e mãe, pois falta a figura de outro ascendente; mas a substituição só é admissível juridicamente, para o parceiro integrar o ente familiar, se houver respeito à dualidade de sexos que originariamente se apresentava, o que só acontece com nova esposa ou companheira do pai, que substitui a mãe. Portanto, é admissível o reconhecimento judicial de uma sociedade de fato entre os parceiros homossexuais, se o patrimônio adquirido em nome de um deles resultou da cooperação comprovada de ambos, sendo a questão de direito obrigacional, nada tendo a ver com a família.160 Não é a posição que adoto. É que o amor e ao feto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadra nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os mesmos efeitos dela. Nas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem sido, até então, a marca de um estigma, pois se relega à marginalidade aqueles que não têm suas preferências sexuais de acordo com determinados padrões de moralidade, o que acontece não apenas com a homo ou heterossexualidade, mas para qualquer comportamento sexual anormal, como se isto pudesse controlado e colocado dentro de um padrão normal161

160 Czajkowski, Rainer. Reflexos jurídicos das uniões homossexuais, Jurisprudência Brasileira, Editora Juruá, Curitiba, 1995, p. 97/107. 161 Pereira, Rodrigo da Cunha. Direito de Família. Uma abordagem psicanalítica, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, p. 43.

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213É que o sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a atribuição de uma posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de titularidades que o sistema define, operando-se a exclusão quando se negam às pessoas ou situações as portas de entrada da moldura das titularidades de direitos e deveres. Tal negativa, emergente de força preconceituosa dos valores culturais dominantes em cada época, alicerçam-se em juízo de valor depreciativo, historicamente atrasado e equivocado, mas esse medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e de afeto.162 2. A questão dos direitos dos casais do mesmo sexo tem sido debatida no mundo, e o argumento básico, em favor do tratamento igualitário, é no sentido de que as uniões homoeróticas devem ter os mesmos diretos que outros casais, ao demonstrar um compromisso público um para com o outro, em desfrutar uma vida. São numerosos os países que já tem legislação que assegura direitos aos casais homoeróticos como a Inglaterra, o Canadá, a Dinamarca, Suécia, Noruega, Islândia, Hungria, Estados Unidos, França, Israel, Argentina, entre outros. 3. A Constituição erigiu, como entidades familiares, as formadas pelo casamento, pela união estável ou comunidades monoparentais, com filhos biológicos ou filhos adotivos. Anotam-se, assim a união de parentes e pessoas que convivem em dependência afetiva, sem pai ou mãe que os chefie, como um grupo de irmãos, após o falecimento ou abandono dos pais; pessoas não aparentadas, que vivem em caráter permanente. Com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou econômica, as uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou ambos os companheiros163, com ou sem filhos; o grupo formado por “filhos de criação”, segundo a tradição pátria, sem vínculo de filiação ou adoção. Acrescentem-se as famílias formadas por mães com filhos de diversos pais, ou constituídas por “genitores convencionais”, que reúnem crianças sem pais ou, ainda, de amigos aposentados que habitam pensionatos para prover suas necessidades. E, por óbvio, também as uniões homossexuais.164 O Superior Tribunal de Justiça, em sucessivas decisões, ao examinar controvérsias que dizem com a proteção do “bem de família”, e instigado a definir o sentido da locução “entidade familiar” estatuída na Lei 8.009/90, ao garantir a tutela e a dignidade da pessoa humana, o último princípio vetor dos fundamentos constitucionais, considera assim os irmãos solteiros, que vivem em apartamento (Resp. 159851 – São Paulo, 4º Turma, rel. Min. Ruy Rosado, DJU 22.6.98), o solteiro celibatário, viúvo sem descendentes, desquitado, divorciado (Resp. 57606 – MG, Sexta Turma, rel. Min. Luiz Vicente Cernichiaro, DJU 10.5..99), a viúva e sua filha (EDREsp. 276004- SP, Terceira Turma, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU 27.8.01); no mesmo sentido, (Resp. 253854 – SP, ainda a mesma Turma e relator, DJU 6.11.00), o separado que viva sozinho (Resp. 205170- SP, Quinta Turma, rel. Min. Gilson Dipp, DJU 7.2.00), mãe e filhas menores (Resp. 57606-SP, Quarta Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJU 2.4.01), devedor e sua esposa (Resp. 345933-RS, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJU 29.4.02), cônjuge separado (Resp. 218377- ES, Quarta Turma, rel. Min. Barros Monteiro, DJU 11.9.00). Aquele colegiado chega a considera como “entidades familiares simultâneas”, para efeito de pagamento de seguro de vida, a situação de homem que se mantenha ligado à família legítima e à relação concubinária, com prole em ambas (Resp. 100.888 – BA, Quarta Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJU 12.3.01). As entidades familiares referidas na Constituição não encerram uma relação hermética, fechada ou clausulada e nela se podem incluir outras que preencham determinados requisitos. Por outro lado, não há supremacia do casamento sobre a união estável, como poderia induzir o parágrafo 3º, do artigo 226, da Carta Federal, eis que tal relação não é uma “menos valia”, apenas por almejar transformar-se em casamento, mas um incentivo aos conviventes que desejam casar-se, sem maiores formalidades, prerrogativas que alguns doutrinadores censuram no novo Código Civil, ao ordenar que a intenção seja submetida ao Poder Judiciário, o que, vestido de inconstitucionalidade, representa fator de complicação e demora. Tampouco há, nem deve haver, qualquer hierarquia entre as entidades familiares, nem qualquer tipo de preferência por uma delas, sob pena de se criar odiosa distinção em nenhum momento autorizada pelo constituinte. O fato do dispositivo relacionado com a união estável orientar o legislador no sentido de facilitar a conversão do companheirismo em casamento, não tem o condão, por alguns buscado, de revelar a primazia do casamento. Ao contrário, indica que se cuida de regime diferenciado, facultando-se aos que vivem em união estável passar ao sistema matrimonial.165 A isonomia entre as entidades deriva, precipuamente, do reflexo do princípio da isonomia prescrito na Constituição. Sublinhe-se que o constituinte, ao tratar e família, omitiu a locução “constituída pelo casamento”, então presente na Carta de 1969 (art. 175), sem fazer qualquer substituição. Deste modo, a família ou qualquer família, foi posta sob tutela constitucional, desaparecendo a cláusula de exclusão, pois a interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus

162 Fachin, Luiz Edson. “Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo”, A nova família: problemas e perspectivas, Editora Renovar, Rio, 1997, p. 114, passim. 163 Atente-se que à época a união extramatrimonial entre um homem e uma mulher, como se casados fossem, chamava-se concubinato. Hoje, o termo usado é união estável. Essa, admite como companheiro o separado de fato e o separado judicialmente. O primeiro (separado de fato) é uma inovação do Código Civil de 2002 (art. 1.723, § 1º). OBS: A informação em nota de rodapé é de nossa autoria. 164 Paulo Luiz Netto Lobo. A personalidade das relações de família. In: O Direito de Família e a Constituição de 1988, coord. Carlos Alberto Bittar, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 53-81; Orlando Gomes. O novo direito de família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1984, p. 66. 165 Heloisa Helena Barboza. O Direito de Família no projeto de Código Civil: considerações sobre o “direito pessoal”. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, 2002, nº11, p. 21.

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214efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos.166 O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram, já que antes, a proteção se voltava para a paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo. Destarte, o caput do art. 226 é cláusula geral de inclusão, não sendo licito excluir qualquer entidade que preencha os requisitos da afetividade, estabilidade e notoriedade, sendo as famílias ali arroladas meramente exemplificativas, embora as mais comuns. As demais comunidades se acham implícitas, pois se cuida de conceito constitucional amplo e indeterminado, a que a experiência da vida há de concretizar, conduzindo à tipicidade aberta, adaptável, dúctil, 167 interpretação que se reforça quando o preceito constitucional usa o termo “também”, contido no artigo 226, § 4º, que significa “da mesma forma”, “outrossim”, exprimindo-se uma idéia de inclusão destas entidades, sem afastar-se outras não previstas. Assim, pode-se concluir que, mesmo sem lei que as regule, as uniões homoeróticas são reconhecidas pela Constituição como verdadeiras entidades familiares, para alguns como entidades distintas, em vista de sua natureza e para outros, onde me filio, como verdadeiras uniões estáveis. 4. Afastada a possibilidade de emoldurar a união homoerótica como forma de casamento, o que não acha respaldo na doutrina e nos repertórios dos tribunais, toca examiná-la como uma forma de comunidade familiar, aparentada com a união estável, o que, como sublinhado, encontra reação pela antinomia com a regra constitucional vigente (CF, art. 226, § 3º). Não se desconhece a posição que sustenta a inconstitucionalidade da regra constitucional invocada, por violar os princípios da dignidade humana e da igualdade ao discriminar o conceito de homossexualidade, o que cede, no entanto, à afirmação do Supremo Tribunal Federal de que a existência de hierarquia entre as normas constitucionais originárias, dando azo de uma relação a outras, é incompossível com o sistema de Constituição rígida168, além de afrontar o princípio da unidade constitucional. Todavia, a leitura do dispositivo deve mirar o espelho desse princípio, extraindo dele as seqüelas que acabem por abonar a intenção deste trabalho. A Constituição é a norma fundamental que dá unidade e coerência à ordem jurídica, necessitando ela mesma ter as mesmas características, com a superação de contradições, não através de uma lógica de exclusão de uma parte a favor de outra, mas de uma lógica dialética de síntese, através de uma solução de compromisso. Daí que a interpretação constitucional deve garantir uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo e de toda a ordem jurídica.169 Isso significa que o Direito Constitucional deve ser interpretado evitando-se contradições entre suas normas, sendo insustentável uma dualidade de constituições, cabendo ao intérprete procurar recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária de grundnorm. Como conseqüências deste princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas coesas e mutuamente imbicadas, não se podendo jamais tomar determinada regra isoladamente, pois a Constituição é o documento supremo de uma nação, estando as normas em igualdade de condições, nenhuma podendo se sobrepor à outra, para afastar seu cumprimento, onde cada norma subsume-se e complementa-se com princípios constitucionais, neles procurando encontrar seu perfil último.170 O princípio da unidade da ordem jurídica considera a Constituição como o contexto superior das demais normas, devendo as leis e normas secundárias serem interpretadas em consonância com ela, configurando a perspectiva uma subdivisão da chamada interpretação sistemática. 171 Como corolários desta unidade interna, mas também axiológica, a Constituição é uma integração dos diversos valores aspirados pelos diferentes segmentos da sociedade, através de uma fórmula político-ideológica de caráter democrático, devendo a interpretação ser aquela que mais contribua para a integração social (princípio do efeito integrador), como ainda que lhe confira maior eficácia, para a prática e acatamento social (princípio da máxima efetividade). Ou seja, a interpretação da Constituição deve atualizá-la com a vivência dos valores de parte da comunidade, de modo que os preceitos constitucionais obriguem as consciências (princípio da força normativa da Constituição).172 A respeito, é preciso lembrar, como Hesse, que a Constituição não configura apenas a expressão de um ser, mas também de um dever ser, significando mais do que simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas, mas graças à pretensão de eficácia, ela procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente, mostrando-se eficaz e adquirindo o poder e prestígio se for determinado pelo princípio da necessidade, assentando-se na sua

166 Paulo Luiz Netto Lobo. Entidades familiares constitucionais: para além do numerus clausus. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, 2002, nº 12, p. 44-45. 167 Paulo Luiz Netto Lobo. Cit. , p. 44-45. 168 STF, ADIn. nº 815/DF, rel. Min. Moreita Alves, DJU 10.5.96. 169 Magalhães Filho, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2001, p. 79. 170 Bastos, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 102/104. 171 Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, p. 223. 172 Magalhães Filho, ob. cit. p. 79/80.

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215vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita seu desenvolvimento e sua ordenação objetiva, convertendo-se a Constituição, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relações de vida. Desta forma, quanto mais o conteúdo de uma Constituição corresponder à natureza singular do presente, tanto mais segura há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.173 Arremata o mestre de Freiburg, que a interpretação da Constituição está submetida ao princípio da ótima concretização da norma, postulado que não deve ser aplicado apenas com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual, mas há de contemplar os fatos concretos da vida, relacionando-os com as proposições normativas da Constituição. Desta forma, a interpretação adequada é a que consegue concretizar, de forma excelente o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. Ou seja, uma mudança das relações fáticas pode e deve provocar mudanças na interpretação da Constituição. Em síntese, pode-se afirmar que a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica, não podendo separar-se da verdade concreta de seu tempo, operando-se sua eficácia somente tendo em conta dita realidade. A Carta não expressa apenas um dado momento, mas, ao contrário, conforma e ordena a situação política e social, despertando a força que reside na natureza das coisas, convertendo-se ela mesma em força ativa que influi e determina dita realidade, e que será tanto mais efetiva quando mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição.174 A norma constitucional é uma petição de princípios e daí a possibilidade de sua atualização, cumprindo a interpretação, então mero pressuposto de aplicação de um texto, importante elemento de constante renovação da ordem jurídica, atenta às mudanças acontecidas na sociedade, tanto no sentido do desenvolvimento como ainda quanto à existência de novas ideologias.175 Quanto ao homoerotismo, recorde-se que os temas da sexualidade são envoltos em uma aura de silêncio, despertando sempre enorme curiosidade e profundas inquietações, com lenta maturação por gravitarem na esfera comportamental, existindo tendência a conduzir e controlar seu exercício, acabando por emitir-se em juízo moral voltado exclusivamente à conduta sexual. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos padrões, é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais. Entretanto, as uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos, sendo incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem atribuições de efeitos, relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças. Subtrair os direitos de alguns e gerar o enriquecimento injustificado de outros, afronta o mais sagrado princípio constitucional, o da dignidade, e se a palavra de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos, uma sociedade que se deseja aberta, justa, pluralista, solidária, fraterna e democrática não pode conviver com tal discriminação.176 Alinhadas tais premissas, de que as relações homoeróticas constituem realidade notória, a que o Direito deve atenção, e de que a interpretação da Constituição deva ser ativa, relevando a vida concreta e atual, sem perder de vista a unidade e eficácia das normas constitucionais, é que se pode reler a regra constitucional que trata da família, do casamento, da união estável e das uniões monoparentais, cuidando de sua vinculação com as uniões homossexuais. Sublinhe-se que a Constituição, contendo princípios gerais, dotados de alto grau de abstratividade, enunciados em linguagem vaga, mantém aberta ao tempo e sob o compromisso da mudança democrática de sentido. Um princípio não é aplicado a uma situação de fato isoladamente, mas, sim, em conjunto com outros, através de uma ponderação, em que o predomínio de um ou outro dependerá das exigências do caso concreto, o que ordena uma harmonização prática. Desta forma, o sentido de uma norma principiológica se completa na situação fática, oportunidade em que afloram os valores da comunidade, num ir e vir dialético entre o sentido lingüístico e a realidade concreta, atualizando a norma em face das novas exigências sociais. Essa visão autopoética, que aceita a influência indireta da sociedade sobre o Direito num sistema de fechamento auto-referencial, sinaliza que a Constituição é um sistema aberto, trazendo um roteiro para as decisões, mas não um sistema cerrado de soluções, o que possibilita maior liberdade criadora do intérprete, o que não apenas extrai o sentido da norma, mas o perfaz no caso concreto. 177 O que corresponde a reputar o Direito, enquanto sistema aberto de normas, a uma incompletude completável já que ele mesmo trás soluções para os casos que eventualmente deixa de regular.178 A Constituição afirma que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado e dispõe sobre a forma e gratuidade do casamento, os efeitos do casamento religioso, para depois reconhecer a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, ainda assim tida a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226 e

173 Hesse, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 18, passim. 174 Hesse, ob. cit. p.22/24. 175 Bastos, ob. cit. p. 54. 176 Dias, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p. 17/21. 177 Magalhães Filho, ob. cit., p. 73/76. 178 Bastos, ob. cit. p. 56.

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216parágrafos). Ora, desde logo se impõe aceitar que o constituinte quis apontar a existência de mais de uma entidade familiar, não depositando apenas na união matrimonializada e heterossexual a vassalagem de comunidade familiar, já que assim ainda admite a união estável e a família monoparental. Portanto, tendo prescrito que o casamento e a união estável seriam constituídos por homem mulher, deixou antever que a entidade familiar ainda podia ser formada por um homem (ou mulher) e seus descendentes, o que impele concluir que o texto não é taxativo ao conceituar como entidade familiar apenas os que descreve. A Constituição não só possibilita, como requer que o legislador e o juiz no procedimento hermenêutico resultante da interação entre o programa da norma (texto) e seu âmbito (realidade) concretize o direito vigente, de molde a considerar os princípios democráticos e a inegável pluralidade de formas de vida amorosa, abrindo espaço para a caracterização das uniões homossexuais como comunidades familiares, que não se caracterizam pelo vínculo matrimonial.179 Na ausência de proibição expressa ou de previsão positiva, postula-se a interpretação da Constituição de acordo com o cânone hermenêutico da “unidade da Constituição”, segundo o qual uma interpretação adequada do texto exige a consideração das demais normas, de modo que sejam evitadas conclusões contraditórias, pois sob o ponto do direito de família, a norma do parágrafo 3º, do artigo 226, da CF/88 não excluiu a união estável entre os homossexuais. 5. A partida para a confirmação dos direitos dos casais homossexuais está, precipuamente, no texto constitucional brasileiro, que aponta como valor fundante do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), a liberdade e a igualdade sem distinção de qualquer natureza (CF, art. 5º), a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (CF, art. 5º, X), que, como assevera Luiz Edson Fachin, formam a base jurídica para construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa e que, assim, como direito fundamental, é um prolongamento de direitos da personalidade, imprescindíveis para a construção de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária. 180 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é prólogo de várias cartas constitucionais modernas (Lei Fundamental da República Federal Alemã, art. 1º; Constituição de Portugal, art. 1º; Constituição da Espanha, art. 1º; Constituição Russa, art. 21; Constituição do Brasil, art. 1º, III, etc.). Alicerça-se na afirmação kantiana de que o homem existe como um fim em si mesmo e não como mero meio (imperativo categórico), diversamente dos seres desprovidos de razão que têm valor relativo e condicionado e se chamam coisas; os seres humanos são pessoas, pois sua natureza já os designa com um fim, com valor absoluto. Reputa-se que o princípio da dignidade não é um conceito constitucional, mas um dado apriorístico, preexistente à toda experiência, verdadeiro fundamento da República brasileira, atraindo o conteúdo de todos os direitos fundamentais; não é só um princípio da ordem jurídica, mas também de ordem econômica, política, cultural, com densificação constitucional. É um valor supremo, e acompanha o homem até sua morte, por ser da essência da natureza humana. A dignidade não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, perseguido ou depreciado, sendo norma que subjaz à concepção de pessoa como um ser ético-espiritual que aspira determinar-se e desenvolver-se em liberdade. Não basta a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, reclama condições mínimas de existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica.181 Assim, a idéia de dignidade humana não é algo puramente apriorístico, mas que deve concretizar-se no plano histórico-cultural, e para que não se desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa. Nesse sentido assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice que também aponta para uma simultânea dimensão defensiva e protecional da dignidade. Como limite das atividades dos poderes públicos, a dignidade é algo que pertence necessariamente a cada um e que não pode ser perdido e alienado, pois se não existisse, não haveria fronteira a ser respeitada; e como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, que é dependente da ordem comunitária, já que é de perquirir até que ponto é possível o indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita para tanto do concurso do Estado ou da comunidade. A dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.182

179 Rios, ob. cit. p. 134. 180 Fachin, cit. p. 114. 181 Silva, José Afonso. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo, nº 212, p. 91/93. 182 Sarlet, Ingo. A dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2001, p. 46/49.

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217A contribuição da Igreja na afirmação da dignidade da pessoa humana como princípio elementar sobre os fundamentos do ordenamento constitucional brasileiro, antes da Assembléia Constituinte, se efetivou em declaração denominada Por um Nova Ordem Constitucional, onde os cristãos foram instados a acompanhar e posicionarem-se quando se tentasse introduzir na nova carta elementos incompatíveis com a dignidade e a liberdade da pessoa. Ali, constou que todo ser humano, qualquer que seja sua idade, sexo, raça, cor, língua, condição de saúde, confissão religiosa, posição social econômica, política, cultural, é portador de uma dignidade inviolável e sujeito de direitos e deveres que o dignificam, em sua relação com Deus, como filho, com os outros, como irmão e com a natureza como Senhor.183 Desta forma, a consagração do princípio da dignidade humana implica em considerar-se o homem como centro do universo jurídico, reconhecimento que abrange todos os seres e que não se dirige a determinados indivíduos, mas a cada um individualmente considerado, de sorte que os efeitos irradiados pela ordem jurídica não hão de manifestar-se, em princípio, de modo diverso ante duas pessoas. Daí se segue de que a igualdade entre os homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto na elaboração da regra de Direito quanto em relação à sua aplicação, já que a consideração da pessoa humana é um conceito dotado de universalidade, que não admite distinções.184 No exame do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, no que respeita à orientação sexual, aqui entendida como a identidade atribuída à alguém em função da direção de seu desejo e/ou condutas sexuais, seja para outra pessoa do mesmo sexo (homossexualidade), do sexo oposto (heterossexualidade) ou de ambos os sexos (bissexualidade), evidencia-se sua pertinência no âmbito da proteção daquele postulado constitucional. Com efeito, na construção da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental em sua subjetividade, alicerce indispensável para a possibilidade de livre desenvolvimento da personalidade. A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos de cada um, sem depender de orientação sexual, é previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição e o Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades. De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que aquela se inclui. Nesta linha, pode-se afirmar que, assim como nas uniões heterossexuais, o estabelecimento de relações homossexuais fundadas no afeto e na sexualidade, de forma livre e autônoma, sem qualquer prejuízo a terceiros, diz com a proteção da dignidade humana.185 A afirmação da dignidade humana no direito brasileiro repele quaisquer providências, diretas ou indiretas, que esvaziam a força normativa desta noção fundamental, tanto pelo seu enfraquecimento na motivação das atividades estatais, quanto por sua pura e simples desconsideração. De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém em função de sua orientação sexual é dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, como se tal aspecto não se relacionasse com a dignidade humana. Diante destes elementos, conclui-se que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, fortalecendo estigmas sociais e espezinhando um dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.186 6. O alcance do princípio da igualdade não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. Ou seja, a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas o instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente a todos, sendo esse o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral. Em suma, dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes.187 A concretização da igualdade em matéria de sexo, exponencializada pela proibição de discriminação, se examinada com cuidado, alcança o âmbito da orientação sexual homossexual. De fato, quando alguém atenta para a direção do envolvimento, por mera atração, ou por a conduta sexual de outrem, valoriza a direção do desejo, isto é, o sexo da pessoa com que o sujeito deseja se relacionar ou efetivamente se relaciona, mas esta definição (da direção desejada de qual seja a orientação sexual do sujeito, isto é, pessoa do mesmo sexo ou de sexo oposto) resulta tão só da combinação dos sexos de duas pessoas.

183 Alves, Cleber Francisco. O princípio constitucional da dignidade da pessoas humana: o enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio: Editora Renovar, 2001, p. 157/159. 184 Nobre Júnior, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade humana, Revista dos Tribunais, nº 777, p. 475. 185 Rios, A Homossexualidade...,cit. p. 89, passim. 186 Rios, Roger Raupp. Dignidade da pessoa humana, homossexualidade e família: reflexões sobre uniões de pessoas do mesmo sexo. Trabalho de pós-graduação, inédito. 187 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3º ed. Malheiros Editores, São Paulo, 1999, p. 9/10.

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218Ora, se um for tratado de maneira diferente de uma terceira pessoa, que tenha sua sexualidade direcionada para o sexo oposto, em razão do sexo da pessoa escolhida, conclui-se que a escolha que o primeiro fez suporta um tratamento discriminatório unicamente em função de seu sexo. Fica claro, assim, que a discriminação fundada na orientação sexual do sujeito esconde, na verdade, uma discriminação em virtude de seu próprio sexo. O sexo da pessoa escolhida, se homem ou mulher, em relação ao sexo do sujeito, vai continuar qualificando a orientação sexual como causa de tratamento diferenciado ou não, em relação àquele. Não se diga, outrossim, que inexiste discriminação sexual porque prevalece tratamento igualitário para homens e mulheres diante de idêntica orientação sexual, pois o argumento peca duplamente, ao buscar justificar uma hipótese de discriminação (homossexualismo masculino) invocando outra hipótese de discriminação (homossexualismo feminino). O raciocínio desenvolvido acerca da relação entre o princípio da igualdade e a orientação sexual é uma espécie de discriminação por motivo de sexo, isso significando que, em linha de princípio, são vedados no ordenamento jurídico pátrio os tratamentos discriminatórios fundados na orientação sexual. Tem-se de investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é afinado, em concreto, com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional, se guarda harmonia com eles.188 A idéia de igualdade interessa particularmente ao Direito, pois ela se liga à idéia de Justiça, que é a regra das regras de uma sociedade e que dá o sentido ético de respeito a todas as outras regras. Na esteira da igualdade dos gêneros, e com a evolução dos costumes, principalmente a partir da década de 60, desmontam-se privilégios e a suposta superioridade do masculino sobre o feminino, e a sexualidade legitima autorizada pelo Estado começa a deixar de existir unicamente por meio do casamento, eis que, com a evolução do conhecimento científico, torna-se possível a reprodução mesmo sem ato sexual.189 7. Ainda a utilizar-se o processo analógico. A analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista na lei a disposição relativa a um caso semelhante, devendo os fatos semelhantes ser regulados de modo idêntico. Funda-se a analogia em princípio de verdadeira justiça, de igualdade jurídica, o qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes. Assim, pressupõe: a) uma hipótese não prevista; b) a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; c) e tal elemento não pode ser qualquer e, sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo. Não bastam afinidades aparentes ou semelhança formal, mas se exige a real, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no fato de se encontrar, num e outro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só a idéia geradora tanto na regra existente como da que se busca.190 Por outro lado, a atividade interpretativa extensiva ou ampliativa permanece sempre dentro da significação de uma palavra, embora se busque atribuir-lhe um significado máximo, para chegar-se, na analogia, à construção de uma regra hipotética similar por identidade de razões entre o caso regulamentado e aquele não disciplinado. Em outras palavras, a utilização da analogia não pode ser definida como pertencente à atividade interpretativa, já que não se extrai o significado mais exato da norma, justamente por esta não existir para o caso concreto. Contudo, não deixa de ter o mesmo fim buscado na interpretação, na busca da solução para um caso concreto e, ademais, usar-se de uma regra paradigma que, sem dúvida, terá de ser interpretada para se verificar a identidade de razões entre o caso regulado e o não regulado.191 A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo originariamente destinado a situação diversa de tais relações, qual seja, a comunidade familiar formada pela união estável entre um homem e uma mulher. A semelhança autorizadora seria a ausência de vínculos formais e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva, sexual, duradoura e permanente entre companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre com pessoas de sexos diferentes, argumento que avança no sentido da concretização da Constituição, pois confere uma unidade diante da realidade histórica, fazendo concorrer com os princípios informativos do Direito de Família, também presentes na Carta Federal, outros princípios constitucionais, como o da isonomia e a proibição de discriminação por motivo de sexo e orientação sexual, como também o da dignidade humana.192 Não há como se fugir da analogia com as demais relações que têm o afeto por causa e, assim, reconhecer a existência de uma entidade familiar à semelhança do casamento e da união estável, pois o óbice constitucional, estabelecendo a distinção de

188 Rios, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Brasília. Conselho da Justiça Federal, Revista do Centro de Estudos Judiciários Brasileiros, 1988, v. 6, p. 29/30. 189 Pereira, Rodrigo da Cunha. A sexualidade vista pelos tribunais, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2000, p. 61/62. 190 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979, p. 206, passim. 191 Bastos, ob. cit. p. 57/58. 192 Rios, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 121/123.

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219sexos ao definir a união estável, não impede o uso de tal forma integrativa do sistema jurídico, eis que a identidade sexual, assim como a esterilidade do casal, não serve de justificativa para se buscar qualquer outro ramo do Direito que não o Direito de Família. Destarte, a solução dos relacionamentos homossexuais só pode encontrar subsídios na instituição com que guarda semelhanças, que é a família, calcada na solidariedade, enquadrando a que se forma pelo casamento como a que se estrutura pela união estável. Comprovada a existência de um relacionamento em que haja vida comum, coabitação e laços afetivos, está-se em frente de uma entidade familiar, que goza de proteção constitucional, nada se justificando que se desqualifique o reconhecimento de sua existência, assegurando-se aos conviventes do mesmo sexo os direitos garantidos aos heterossexuais. 193 Dir-se-á, talvez, que a utilização da analogia apenas socorre para preencher alguma lacuna (LICC, art. 4º e CPC, art. 126), mas na verdade o ordenamento jurídico, visto como um todo, encarrega determinados órgãos, no caso os juízes, para atribuírem soluções aos casos concretos, mesmo naquelas situações em que não existem regras legais específicas, eis que, como asseveram Aftalión, Garcia y Vilanova, contra la opinión de algunos autores que han sostenido que em ordenamiento jurídico existen lagunas – o sea, casos o situaciones no previstas – que serían necesario llenar o colmar a medida que las circuntancias mostrasen la conveniência de harcelo, debemos hacer nota que el ordenaimento jurídico es pleno: todos os casos que puedan presentarse se encuentran previstos em él (...). No hay lagunas, porque hay jucees.194 Se o juiz não pode, sob a alegação de que aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com seu sentimento de justiça ou eqüidade, substituir-se ao legislador para formular ele próprio a regra de direito aplicável195, não é menos verdade que a hermenêutica não deve ser formal, mas antes de tudo real, humana e socialmente útil; e se ele não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, decidindo contra ela, alude o Ministro Sálvio de Figueiredo, pode e deve, por outro lado, optar interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum196, já que a proibição de decidir pela eqüidade não há de ser entendida como vedando se busque alcançar a justiça no caso concreto, com atenção ao disposto no artigo 5º da Lei Introdução.197 É imperioso que, através de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de um relacionamento que tem base no amor.198 Uma hermenêutica construtiva, baseada numa interpretação atualizada e dialética, afirma que a partilha da metade dos bens havidos durante da comunhão de vida mediante colaboração mútua, é um exemplo de via que pode ser trilhada, expondo perante o próprio sistema jurídico suas lacunas, daí por que equívoca a base da formulação doutrinária e jurisprudencial acerca da diversidade dos sexos como pressuposto do casamento. O mestre paranaense lembra que a técnica engessada das fórmulas acabadas não transforma o tema em algo perdido no ar quando ensinar é percorrer a geografia do construir, exigindo o estudo, em seu mapa cartográfico do saber, o construído e não a indução ao dado. Não se deve, então, conviver com uma atitude de indiferença ou de renúncia a uma posição avançada na inovação e mesmo na revisão e superação dos conceitos, atribuindo, abertamente, para fomentar questionamentos e fazer brotar inquietude que estimule o estudo e a pesquisa comprometidos com seu tempo e seus dilemas.199 Além disso, as uniões estáveis de natureza homossexual podem ter relevância jurídica em outros planos e sob outras formas, não como modalidade de casamento.200 É necessário, pois, qualificar a relação homoerótica como entidade familiar, como uso analógico dos institutos jurídicos existentes e dos princípios do Direito, timbrando-a como espécie de união estável. A família não suporta mais a estreita concepção de núcleo formado por pais e filhos, já que os laços biológicos, a heterossexualidade, a existência de, pelo menos, duas gerações, cederam lugar aos compromissos dos vínculos afetivos, sendo um espaço privilegiado para que os opostos possam vir a se tornar complementares. Atualmente a família, além de sua função de reprodução biológica, produz também sua própria reprodução social, através da função ideológica que exerce ao vincular a introjeção, por seus membros, de valores, papéis, padrões de comportamento que serão repetidos pelas sucessivas gerações, deixando a família nuclear de se constituir em modelo prevalente. A progressão dos inúmeros divórcios, filhos criados pelo pai ou pela mãe, filhos criados em famílias reconstruídas por novos casamentos, aconchegam os novos arranjos cada vez mais freqüentes na sociedade, não comportando mais a simples reprodução dos antigos modelos para o exercício dos papéis de mães e pais, experiência que vai além do fato biológico natural, mas adquire o estatuto de uma experiência psicológica, social, que pode ou não acontecer, independentemente da fecundação, gestação e do dar a luz e amamentar.

193 Dias, ob. cit. p. 87/88. 194 TJRS, Oitava Câmara Cível, AGI 599 075 496, rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.06.99, quando se decidiu pela competência das Varas de Família para apreciar as demandas que envolvem relações de afeto (homossexuais). 195 STF, RBDP nº 50/159. 196 RSTJ 26/378 197 RSTJ 83/168. 198 Dias, Maria Berenice. Efeitos patrimoniais da relação de afeto. Repensando o direito de família. Belo Horizonte: IBDFam, 1999, p. 57. 199 Fachin, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família. Direito matrimonial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1990, p. 215. 200 Oliveira, José Lamartine Côrrea de. Direito de Família. Direito matrimonial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1990, p. 215.

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220Ressignificar a família na função balizadora do périplo existencial é um imperativo de nossos dias, revitalizá-la com o aporte de novas e mais satisfatórias modalidades de relacionamento entre os seus membros é indispensável para se aperfeiçoar a convivência humana. Repensá-la é tarefa a ser por todos compartida por sua transcendência com a condição humana.201 A família contemporânea não corresponde àquela formata pelo Código Civil, constituída por pai e mãe, unidos por um casamento regulado pelo Estado, a quem se conferiam filhos legítimos, eis que o grande número de famílias não matrimonializadas, oriundas de uniões estáveis, ao lado de famílias monoparentais, denota a abertura de possibilidades às pessoas, para além de um único modelo. Hoje, a nova família busca construir uma história em comum, não mais a união formal, eventualmente sequer se cogita do casal, o que existe é uma comunhão afetiva, cuja ausência implica a falência do projeto de vida, já não se identifica o pai como marido, eis que papéis e funções são diversos, e a procura de um outro desenho jurídico familiar passa pela superação da herança colonial e do tradicional modo de ver os sujeitos das relações familiares como entes abstratos.202 Flagra-se o descompasso entre o avanço constitucional do direito de família e a existência de algumas famílias sociológicas, que ainda se mantém à margem da família jurídica, diante dos valores e princípios constitucionais que norteiam o ordenamento brasileiro, tais como as uniões sexuais entre parentes, pai e filha, e as famílias de fato resultantes da união de pessoas do mesmo sexo. Embora aceitando que alguns valores e princípios tradicionais ainda prevaleçam em matéria de conjugalidade, o que obsta que relações entre pessoas de mesmo sexo, pois a sexualidade se vincula ainda à procriação, impedindo outros modelos, reconhece o mestre carioca que a realidade fática de ditas uniões, tal como ocorreu com a união livre, deve percorrer caminho também difícil e tortuoso, mais vai atingir o status de família em tempos não muito distantes.203 8. Finalmente, para os tribunais, é possível o processamento e o reconhecimento da união estável entre os homossexuais, ante os princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preconceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e as coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos.204 Posteriormente, ao dirimir a partição de bens entre homossexuais, aludiu-se que não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas, realidades ainda permeadas de preconceito, mas que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária, pois nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas uniões de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, prestigiados os princípios da dignidade humana e da igualdade.205 Em outro escólio diz-se que o Judiciário não se deve distanciar das questões pulsantes, revestidas de preconceito, só porque desprovidas de norma legal, devendo a união homossexual ter a mesma atenção dispensada às outras relações. Portanto, a companheira tem direito assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que se trate de pessoa do mesmo sexo, desde que dissolvida a união estável.206 9. Assim, não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, considerada a visão unitária e coerente da Constituição, com o uso da analogia e suporte nos princípios gerais do direito, ter-se a união homoerótica como forma de união estável, desde que se divisem, na relação, os pressupostos da notoriedade, da publicidade, da coabitação, da fidelidade, de sinais explícitos de uma verdadeira comunhão de afetos. 10. O caso vertente, como aqui já referido, não se divorcia da moldura de uma união estável. E, portanto, deve guardar coerência com as Leis nº 8.971/94 e 9.278/96. Ao examinar, com habitual proficiência, os direitos sucessórios dos companheiros, então regulados pelos artigos 2º e 3º da Lei 8.971/94, o Des. Luiz Felipe Brasil Santos, proclama que os dispositivos conferem meação ou herança, de forma análoga ao que dispõe o art. 1.611, § 1º, do Código Civil em relação ao cônjuge. Ao indagar se, para receber a totalidade da herança, na inexistência de descendentes ou ascendentes, conforme alude o inc. III do art. 2º da nova lei é necessária prova da contribuição, dito o jurista afirma, que a resposta será negativa, visto que o requisito não está na lei. Assim, não havendo descendente ou ascendente, o (a) companheiro (a) supérstite herdará todos os bens, indiferentemente de haver ou não contribuído para sua aquisição ou do fato de que tais bens tenham sido ou não adquiridos durante o período de vida comum. Para tanto, arremata, basta que se demonstre a existência da relação, como os requisitos do caput do art. 1º, em demanda litigiosa movida aqui necessariamente contra eventuais parentes colaterais do de cujus, ou, inexistindo estes, contra o Município, o Distrito Federal ou a União.207 201 Zamberlan, Cristina de Oliveira. Os novos paradigmas da família contemporânea: uma perspectiva interdisciplinar. Rio: Editora Renovar, 2001, p. 13/14 e 149/151. 202 Fachin, Rosana Amara Giardi.Em busca da família do novo milênio.Uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâneo. Rio: Editora Renovar, 2001, p. 7, passim. 203 Gama, Guilherme Calmon Nogueira da. Família não-fundada no casamento. Revista dos Tribunais, nº 771, p. 62 e 68. 204 TJRS, Oitava Câmara Cível, APC 598 362 655, rel. Des. José Siqueira Trindade, j. 01.03.2000. 205 TJRS, Sétima Câmara Cível, APC 70001388982, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis. 206 TJBA, Terceira Câmara Cível, APC 16313-9/99, rel. Des. Mario ALbiani, j. 4.4.2001. 207 Luiz Felipe Brasil Santos. Breves notas sobre a Lei nº 8.971/94. In: Revista AJURIS, Porto Alegre, 1995, v. 63, p. 315/319.

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221Assim, acolho os embargos infringentes para declarar a união estável entre o recorrente e o recorrido, encaminhando ao embargante a totalidade dos bens inventariados. O DES. RUI PORTANOVA – LACUNA. Quando estamos em face de uma união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, vivemos um fato ainda não disciplinado em lei. Ou seja, estamos diante de uma lacuna. No que diz com as lacunas no Direito, a doutrina nos apresenta duas posições fundamentais: uma centrada na doutrina de Kelsen, outra baseada nas lições de Bobbio. A primeira (de Kelsen) sustenta que o brocardo permittitur quod non prohietur (o que não é proibido é permitido) afasta qualquer possibilidade de existência de lacuna no ordenamento jurídico. Entende o doutrinador que com essa máxima o sistema jurídico regula todas as condutas seja de forma positiva ou negativa. Esta forma de ver a questão da lacuna não é isenta de crítica. Contudo, aqui já encontramos um bom início par fundamentar a necessidade de se retirar conseqüências jurídicas (pessoais e patrimoniais) ainda que não haja previsão legal a respeito das relações afetivas homossexuais. Ocorre que, em todo o ordenamento jurídico, não se encontra um dispositivo legal proibindo seja a relação afetiva homossexual seja a proibição de que o juiz retire efeito das relações homossexuais. Não estamos diante daqueles casos em que a lei expressa e imperativamente proíbe o tipo de relacionamento e seus efeitos, tais como são os casos de nulidade de pleno direito dos casamentos. Logo, utilizando-se a mesma máxima e o mesmo raciocínio de Kelsen podemos dizer, sem medo de errar que, já que não é proibida, a união homossexual, é permitida pelo Direito. Assim, tomando-se do espírito kelseniano, não se pode negar efeitos jurídico a uniões entre pessoas do mesmo sexo. Mesmo sem se cogitar de lacuna no direito, é de rigor reconhecer juridicidade às uniões afetivas homossexuais, porquanto a completude do sistema jurídico abarcaria tais relações de fato, mesmo sem expressa previsão legal a respeito. Uma outra forma de ver a teoria das lacunas centra-se na doutrina de Norbeto Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico. A teoria do jurista italiano parte da idéia de incompletude. Assim, “se pode demonstrar que nem a proibição nem a permissão de um certo comportamento são dedutíveis do sistema, da forma que foi colocado, é preciso dizer que o sistema é incompleto e que o ordenamento jurídico tem uma lacuna”. (Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 115). Para Bobbio, na mesma obra (p. 139), a incompletude ocorre não na falta de uma norma a ser aplicada, mas da falta de critérios válidos para decidir qual norma deve ser aplicada. O autor entende por lacuna “a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em outras palavras, não já a falta de uma norma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma norma que desejaria que existisse, mas que não existe. Uma vez que essas lacunas deveriam não da consideração do ordenamento jurídico como ele é, mas da comparação entre ordenamento jurídico como ele é como deveria ser, foram chamadas de ‘ideológicas’, para se distinguir daquelas que eventualmente se encontrassem no ordenamento jurídico como ele é, e que se podem chamar de ‘reais’. Podemos também enunciar a diferença deste modo: as lacunas ideológicas são lacunas de iure condendo (de direito a ser estabelecido), as lacunas reais são de iure condito (de direito já estabelecido)”. Dessa forma, a partir de Bobbio podemos dizer que estamos diante de uma lacuna da lei, porque há omissão quanto aos efeitos jurídicos da união afetiva homossexual. A lei não tem previsão quanto aos efeitos jurídicos decorrentes dessa união. A idéia de existência de lacunas no direito ou no ordenamento jurídico é a idéia prevalente entre os juristas. Haverá sempre lacuna, quando para uma solução jurídica para determinado caso se torne necessária e a legislação não ofereça uma solução que se adapte ao caso concreto em espécie. Nesse passo, o vocábulo “lacuna” designa os possíveis “vazios”, ou melhor, os casos em que o direito objetivo não oferece, em princípio, uma solução. (Maria Helena Diniz. Lacunas no Direito, p. 29). Vale repetir, quando se trata de uniões homossexuais a lei não prevê nenhuma forma expressa de solução. Por igual, também nenhuma lei proíbe taxativa ou implicitamente que se retire efeitos de uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Não há lei que ofereça solução jurídica para o caso. Há um vazio legal, pois em todo o ordenamento nacional não existe um direito objetivo que alvitre uma solução a ser tomada diante da ocorrência de tais uniões quando postas em juízo. Enfim, há lacuna, pois estamos diante de um comportamento (comissão ou omissão) que não tem lei expressa permitindo. Também, não há lei proibindo ou cirando qualquer sanção para esta forma de união. O DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Sr. Presidente, encontro dificuldade em votar depois do magnífico voto do Relator e do voto que qualifico de intimidatório, pela sua grandiosidade e densidade doutrinária, do Des. Giorgis, porque seja qual for a posição que eu adote, jamais conseguirei sair da sombra projetada por esse monumento jurídico. De qualquer forma, independentemente da posição teórica que eu vá adotar sobre o reconhecimento, ou não, de união estável em relações homossexuais, haverá desdobramentos fáticos a examinar: se, em tese, admitir a união estável, vou ter que me debruçar sobre a prova para ver se, no caso concreto, os requisitos da união estável estão presentes (e, como não tenho conhecimento dos autos, vejo-me em dificuldade para proferir voto neste momento); se, por outro lado, entender que não cabe o reconhecimento da união estável, poderá caber a atribuição de direitos a título de sociedade de fato (e, então, terei que me debruçar também sobre a prova para verificar se estão presentes ou não os requisitos da sociedade de fato nos moldes da Súmula nº 380). Por tudo isso, terei que frustrar de certa forma a expectativa e pedir vista dos autos. O SR. PRESIDENTE (DES. ALFREDO GHILHERME ENGLERT) – Aguardo a vista.

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222Embargos Infringentes nº 70003967676, de Porto Alegre – “Votaram acolhendo os embargos infringentes a Des.ª Maria Berenice e o Des. Giorgis, Portanova e Trindade. Desacolheram os embargos infringentes o Relator e o Des. Luiz Felipe pediu vista. Aguarda a mesma o Des. Englert”. (Em 10 de maio de 2002). PEDIDO DE VISTA. VOTO. O DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Ao tomar vista destes autos, uma questão preliminar, até agora não suscita, parece-me que indispensável abordar. Diz respeito à circunstância de que, comparecendo no pólo passivo herança jacente, representada aqui por sua curadora, não ocorreu citação do Município para integrar a lide. Cabe, pois, examinar se disso resultou ou não nulidade do feito. E adianto meu posicionamento no sentido negativo. Como se vê a fl. 701 (4º vol.), em data de 29 de novembro de 1996, ante a inexistência de herdeiros conhecidos do de cujus, a magistrada transformou o inventário em herança jacente, nomeando curador. De lá para cá, ao que consta destes autos, não se completou o procedimento previsto nos artigos 1.142 a 1.156 do CPC, e, via de conseqüência, não ocorreu a declaração de vacância regrada no art. 1.557 do mesmo Código, circunstância indispensável à incorporação dos bens jacentes ao patrimônio público – e, conseqüentemente, à caracterização do interesse deste na lide – uma vez que, conforme entendimento jurisprudencial hoje sedimentado no STJ, “ao ente público não se aplica o princípio da saisine” (RESP, 164196/ RJ). Nessa mesma linha, dentre inúmeros outros, cabe referir os precedente do mesmo tribunal nos Recursos Especiais 16.562/SP, 60008-1/RJ, 27328/SP, 253719/RJ, 36873/ SP, 36959/SP. Assim, não se operando a saisine em favor do ente público, e não tendo ainda ocorrido a declaração de vacância da herança, dispensável o comparecimento do Município no pólo passivo da demanda. Ainda em caráter preambular, desejo tecer breves considerações acerca da distinção entre sociedade de fato e união estável. Isso se mostra necessário para a adequada compreensão da questão posta nos autos, uma vez que verifico, como de hábito, alguma imprecisão conceitual no enfrentamento do tema, tanto na peça vestibular quanto na própria sentença. A petição inicial nomina a ação como de “RECONHECIMENTO DE SOCIEDADE DE FATO COM PARTILHA DE BENS”. Entretanto, ao longo da minudente exposição, refere-se em várias passagens à existência de “união estável” entre o autor e o de cujus. A fl. 4, chega o autor a destacar, de modo singular: “Por isso, V. Exa. há de ter sensibilidade para as peculiaridades desta postulação que envolve uma situação híbrida: Competência: Juízo Civil. Fato do mundo dos fatos: união estável. Título que se pretende: declaração de sociedade de fato”. Ou seja, pelas incertezas e perplexidades que o tema posto nestes autos ainda suscita na jurisprudência, tudo indica que os ilustres signatários da inicial optaram por um “caminho meio”, ou seja, embora busquem caracterizar uma “união estável” (o que está bem claro ante os termos da inicial), pugnam pelo reconhecimento de uma “sociedade de fato”, tanto assim que ajuizaram a demanda em Vara Cível, e não Vara de Família, não obstante o teor da Súmula 14 deste Tribunal, que, desde o início da década passada, atribui às Varas de Família a competência para os feitos relativos às uniões estáveis. E, a tal perplexidade não ficou imune a sentença, que, já em seu relatório noticia que o autor “pretende a declaração da existência de sociedade de fato havida com V.D., decorrente de união estável” (fl.505). E, em expressiva passagem da fundamentação, afirma: “o autor em união, sim; estável, sim; em uma affectio societatis, sim, com V.” (fl.514). Concluindo, no dispositivo culmina afirmando: “Reconheço a sociedade de fato havida entre os parceiros, para o fim de que sejam os bens de V. devidos ao sobrevivente, I.” (fl. 516). Na fundamentação, entretanto, todo o enfoque é dado à existência de uma união estável, buscando na prova a existência de uma relação com características de entidade familiar. É necessário, porém, delimitar e precisar conceitos. Não se pode continuar referindo aqui a “união estável” e “sociedade de fato” como se fossem fenômenos idênticos, quando bem diversos são seus pressupostos e conseqüências! É bem verdade que, antes da Constituição Federal de 1988, quando ainda não fora introduzida no ordenamento jurídico pátrio a noção de que as uniões de fato, a partir de então denominadas “uniões estáveis”, eram entidades familiares merecedoras da proteção estatal, a jurisprudência – na esteira do que, a partir de meados do século XIX, já faziam os tribunais franceses -, na ausência de regramento específico para essas relações, e, em nome da necessidade de evitar o enriquecimento ilícito, enquadrava-as como “sociedade de fato”, conceito notoriamente pertencente ao campo do direito obrigacional (art. 1.363 e ss. do Código de 1916), e, por conseqüência, desde que provada a colaboração dos parceiros para a formação do patrimônio – plasmada, aí sim, pela affectio societatis -, conferia direito à partilha dos bens havidos em sua constância, muitas vezes em quinhões díspares, proporcionais à contribuição de cada integrante. Tal orientação culminou por sedimentar-se no conhecido enunciado sumular nº 380, do STF. Com o advento da Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 226, § 3º, consagrou como entidades familiares as uniões estáveis entre homem e mulher, tais relações – reconhecidas agora como inspiradas pela affectio conjugalis (diverso da affectio societatis) – tiveram seu tratamento deslocado para o âmbito do direito de família, dispensando, para sua tutela, a noção de “sociedade de fato”. E tal distinção não é ociosa! É que bem diferentes, como assinalei ao início, são os pressupostos e as seqüelas de uma e de outra entidade. Por ter natureza familiar, a união estável rege-se pelos princípios e normas do direito de família, abrindo mão de qualquer

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223prova de contribuição dos parceiros para a formação do patrimônio, que é comum a ambos em razão da simples comprovação da relação, sendo presumida a contribuição, a teor do art. 5º, da Lei 9.278/96. Ademais, há previsão de que, ao companheiro, integrante de uma união estável, é conferido direito sucessório, nos termos do art. 2º, da Lei 8.971/94. De outro lado, para caracterizar a sociedade de fato (animada esta pela affectio societatis, repito), indispensável a comprovação da contribuição à formação, ou, no mínimo, preservação do patrimônio. Tal contribuição, ao tempo em que não era reconhecida a união estável, já admitia a jurisprudência que pudesse ser até mesmo indireta, representada pelo trabalho doméstico, de inegável valor econômico. Entretanto, a partir do momento em que se reconheceu a união estável como entidade familiar, não há como entender que a contribuição, na sociedade de fato, possa ser ainda indireta. Isso, porque, se trabalho doméstico houve, de que o parceiro tenha usufruído, é porque ocorreu coabitação, e, assim, estaremos diante de uma união estável e não de uma sociedade de fato. Isso é de uma evidência palmar! Assim, a contrapartida, ante a criação do instituto da união estável, é a inafastável exigência de que, para caracterizar a sociedade de fato, a contribuição agora deve ser novamente direta, pelo trabalho externo apto a gerar recursos que possibilitem a aquisição de bens. Entretanto, considerando que a concepção de união estável gerou-se e gestou-se, ao longo de décadas, a partir da evolução produzida na jurisprudência em tempo anterior à Constituição de 1988, do conceito de sociedade de fato aplicado às uniões de fato de conteúdo inequivocamente familiar (embora até então não houvesse fundamento jurídico para afirmá-lo), tem-se admitido neste Tribunal, de forma bastante liberal, que, desde que descritas na petição inicial as características de uma união estável, esta possa ser reconhecida (desde que provada, é claro), mesmo que a pretensão (“híbrida”, como bem qualificada na inicial – fl. 4) explicitamente esteja direcionada à declaração de uma sociedade de fato. Por isso é que admito aqui – como, em geral, temos feito em casos semelhantes – o debate em torno da configuração da união estável, mesmo que explicitamente postulado o reconhecimento de uma sociedade de fato. Por igual razão, e considerando, modo especial, a circunstância de que está em debate o controvertido e atual tema dos efeitos jurídicos das relações afetivas estáveis entre duas pessoas do mesmo sexo, que apenas em tempo recente – posteriormente à sentença, por sinal – foi objeto de definição de competência em prol das Varas de Família, em conhecidos precedentes deste Tribunal, é que supero a circunstância de que o feito teve sua tramitação em Vara Cível, não vendo aí – nessas especiais circunstâncias, repito – caracterizada qualquer nulidade decorrente de possível incompetência do juízo. Superadas tais questões preambulares, passo ao mérito. O instigante e desafiador tema versado nestes autos oportunizou brilhantes e enriquecedoras manifestações doutrinárias dos eminentes colegas que até agora expressam seus votos. Algumas no sentido de admitir o reconhecimento das relações homossexuais (homoeróticas ou homoafetivas, como queiram) como uniões estáveis, ou, ao menos, dar-lhes tratamento eqüitativo, por analogia. Outras, não menos brilhantes, repelindo tal tese. Humildemente, peço vênia para inverter o raciocínio. Ou seja, antes de adentrar na tese, irei aos fatos e às provas. E, caso estes permitam-me prosseguir no caminho, chegarei à tese. Vejamos. Como notório, os requisitos da união estável estão, na legislação ordinária, estampados no art. 1º da Lei 9.278/96, e são: (1) diversidade de sexos, (2) duração, (3) continuidade, (4) publicidade e (5) intenção de constituir família (requisito subjetivo). Abstraindo o primeiro requisito (diversidade de sexos), por ser justamente o tema de direito aqui em debate, passo ao exame dos demais. Primeiramente, chama atenção nestes autos que, ao contrário do que de regra ocorre em feitos da espécie, não há qualquer prova documental da relação. Ou seja, inexistem fotografias que mostrem os parceiros juntos em situações corriqueiras da vida, assim como não há qualquer espécie de correspondência entre eles trocada, nem outro documento que evidencie uma vida com comunhão de interesses. Isso não deixa de ser estranhável, considerando o tempo alegado como de duração do relacionamento. Sinale-se que a única prova documental de relevo (mas que não milita em prol da tese do autor, até pelo contrário) consiste nos documentos de fls. 36-38, que são cópias da CTPS do requerente, que evidenciam que ele era empregado do estabelecimento comercial do de cujus, exercendo inicialmente a função de balconista e, a partir de abril de 1992, de motorista. As únicas fotografias trazidas aos autos não o foram pelo autor, e não reforçam sua tese. Observe-se a fls. 140-143, em especial as fotografias de fls. 142 e 143, trazidas pelos contestantes P. C. C. M. e outros (que, mais adiante, desinteressaram-se do feito). Atente-se para a explicação que o autor dá para tais fotos, que mostram a ele, juntamente com duas moças e outro homem, em atitudes afetivas, na sala do apartamento do de cujus. Manifestando-se sobre elas, às fls. 210, assim disse o autor: “O figurante do ‘beijo’ de fl. 143 obvia e notoriamente NÃO é o autor. A foto em que o autor aparece (fl. 142) nada tem de malícia, ou de qualquer outra atitude que comporte qualquer interpretação maliciosa. A moça que ali aparece chama-se Cristina e é amiga, e V. a conhecia. O autor informa que o figurante da foto de fl. 143 é VL.F. que veio residir no apartamento do ‘de cujus’ como consta na inicial da Ação de Reintegração de Posse”. Como se vê, o próprio autor reconhece que mais alguém, além dele, morava no apartamento de V.E., estranhamente, foi justamente esse terceiro (V.L.F.), e não o autor, quem efetuou o registro de óbito de V., como se vê na Certidão de fl. 32. Desde quando V.L.F. residia no mesmo apartamento, e por qual razão, são questões não esclarecidas nos autos. Diga-se em suas reiteradas e extensas manifestações, omitiu-se o autor de dar explicações acerca do papel exercido por esse estranho personagem (V.L.F.), que parece haver permeado a vida de I. e V.. O certo, entretanto, é que as fotografias – feitas na sala de estar do apartamento do

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224de cujus, quando este ainda vivia – mostram I. e V.L. em situação de nítida proximidade afetiva com duas pessoas do sexo oposto. Observe-se, ainda, que nelas não aparece o de cujus. Há, é certo, dois aspectos acerca dos quais não reside controvérsias: (1) V. era homossexual e (2) I. manteve com ele relações erótico-afetivas, tendo residido durante certo tempo no apartamento de V.. Nesse sentido, o depoimento das testemunhas trazidas pelo autor. Bastará isso, entretanto, para caracterizar um relacionamento assemelhado à entidade familiar denominada união estável, para o qual é indispensável a “intenção de constituir família?” Entendo que não. Família é mais do que duas pessoas morando juntas, o que pode ocorrer com amigos, com ou sem relação sexual. Integra a noção de família a comunidade ligadas por laço de afeto, solidariedade, fraternidade e ajuda mútua. É o partilhar os bons e os maus momentos da vida. É o manter de uma intimidade, de uma cumplicidade, que não se restringe à alcova, mas se expõe aos olhos do mundo. Nada disso, entretanto, pelo que dos autos consta, fica evidenciado na relação existente entre o autor e V.. A circunstância de serem vistos juntos com freqüência, inclusive aos finais de semana, pode ser facilmente explicada pelo fato de que I. era motorista de V. V. era doente, tendo falecido de infarto no miocárdio (fl.32), que não foi inesperado. Nada consta nos autos, entretanto, sobre a circunstância do óbito de V., nem acerca da possível assistência que I. lhe tenha prestado nos derradeiros momentos. Ao contrário, o que está demonstrado nos autos é que não foi sequer o autor quem efetuou o registro de óbito de V., mas sim, V.L.F., curiosamente o mesmo que aparece na fotografia de fl. 143, beijando uma moça na sala do apartamento de V. Ademais, é de atentar para a circunstância de que, sendo V. detentor de expressivo patrimônio, e não possuindo herdeiros, não tenha se preocupado em dispor de seus bens em testamento a favor do autor, o que seria de esperar, caso existisse entre eles realmente uma relação mais profunda, uma vez que se tratava de pessoa idosa, rica e doente, sendo o autor jovem, pobre e saudável. Por tais razões, sem ingressar na tentadora seara do debate doutrinário acerca da possibilidade de caracterização da união estável entre pessoas do mesmo sexo – tão brilhantemente travado aqui pelos eminentes colegas – estou afastando, no caso concreto, a configuração dessa entidade familiar, por flagrantemente ausente o requisito subjetivo (“intenção de constituir família”). Entretanto, afastado o reconhecimento da união estável, resta averiguar a caracterização de uma sociedade de fato, entidade que, como assinalei ao início, não se confunde com a entidade familiar que é objeto de proteção constitucional, e em torno de cuja possibilidade de caracterização entre pessoas do mesmo sexo não grassa controvérsia, até porque sua natureza é meramente obrigacional. Sinale-se, porém, que a eventual caracterização de uma sociedade de fato não terá jamais o condão de atribuir ao autor direitos hereditário sobre os bens deixados por V.I., limitando-se a conferir mero quinhão proporcional em alguns bens. Isso porque somente aos integrantes de uma união estável (por ser uma entidade familiar), é que é atribuído direito sucessório. E ao início de meu voto já fiz a distinção necessária entre um e outro conceito. No exame da possibilidade de caracterizar uma sociedade de fato, melhor sorte não contempla o autor. Ocorre que, para tanto, nos termos da Súmula nº 380, do STF, há que estar comprovada a contribuição para a formação do patrimônio adquirido em sua constância, havendo jurisprudência mais liberal que admite que tal contribuição possa ocorrer na conservação de tais bens. Nada disso, porém, resulta provado nos autos. Primeiro, porque todos os bens integrantes do patrimônio do de cujus foram adquiridos muito antes do início do relacionamento dele com o autor. Depois, porque não há qualquer adminículo de prova no sentido da mais mínima contribuição de I. para a conservação do patrimônio de V.. A hipótese de prestação de serviços domésticos não calha, no caso. Isso porque V. tinha empregada doméstica que se encarregava de tais tarefas. Ademais, convém não esquecer que I. era empregado de V., como motorista, com CTPS assinada, o que explica os serviços prestados nesse âmbito. Finalmente, risível seria até cogitar de contribuição financeira de I. para a preservação do patrimônio de V., quanto sabido que era este último quem sustentava o primeiro. Assim, visualizada a prova na perspectiva da união estável e da sociedade de fato, não há sob qualquer ótica, como contemplar a pretensão do embargante, razão pela qual DESACOLHO OS EMBARGOS. O SR. PRESIDENTE (DES. ANTONIO CARLOS STANGLER PEREIRA) – Embargos Infringentes nº 70003967676, de Porto Alegre – “Após o voto do Des. Luiz Felipe desacolhendo os embargos infringentes, ficando suspenso o julgamento para o voto do Des. Englert, que aguardava a vista”. (Em 11 de outubro de 2002). PEDIDO DE VISTA VOTO O SR. PRESIDENTE (DES. ALFREDO GUHILHERME ENGLERT) – O autor deduziu a inicial requerendo “ação ordinária de reconhecimento de sociedade de fato com partilha de bens”, dizendo que iniciou relacionamento com V.D. em 1981. O ajuizamento da demanda aconteceu em março de 1996. Relatou que residiu no apartamento de V.D., em 1986 e 1987, ocasião “em que trabalhou como motorista” no estabelecimento no qual V.D. era sócio-gerente, quando teve sua carteira de trabalho firmada pelo próprio. Posteriormente “precisou dar apoio a sua família, e teve de mudar-se para o interior”, mas, mesmo assim, “encontravam-se, no mínimo, uma vez por mês”. No verão passavam o fim de semana, na casa de V., em Imbé. Retornou para Porto Alegre em 1989, para “definitivamente morar com V.”. Em 1992, voltou a laborar como motorista, na firma na qual V. era gerente. O pedido formulado, fl. 23, é expresso e explícito, no sentido de declarações da “existência de sociedade de fato decorrente da união estável...reconhecendo-lhe seus direitos sobre a totalidade da herança do falecido”. Subsidiariamente, formulou

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225outros requerimentos, inclusive no tocante à meação e até indenização por serviços prestados ao longo de 9 anos em que viveu com V. no apartamento. O próprio autor confirmou que não foi comprado qualquer bem, quando do relacionamento, fl. 226: “Não foi adquirido nenhum bem móvel ou imóvel durante a vivência em comum”, com o que já se poderia indeferir o pedido de declaração de sociedade de fato, sem outros comentários, persistindo, talvez, o exame do pedido de indenização por “serviços prestados”. De qualquer forma, a inicial também fez alusão à existência de união estável, apesar do pedido ser formulado no enfoque da sociedade de fato, pelo que, para não fugir ao debate, algumas considerações merecem ser feitas. O depoimento pessoal do autor diverge frontalmente da inicial, no tocante ao início do convívio sob o mesmo teto. “Em 1983 passaram a morar juntos”, fl. 226, mas foi noticiado que residiu no apartamento de V. em “1986 e 1987”, na peça inicial, fl. 2. Quando de outra audiência, fl. 54 v, disse que o relacionamento íntimo começou em 1986. Para aumentar ainda mais a imprecisão do relatado, o autor especificou que, em 1986 retornou para Tupanciretã, mas o relacionamento com V. foi mantido, pois “telefonavam-se praticamente todos os dias e vinha aos fins de semana para vê-lo”. Estranho, mas muito estranho mesmo, que apesar das ligações telefônicas quase que diárias, num tempo em que é sabido que as comunicações sofriam percalços, máxime para o interior do Rio Grande do Sul, e também levando em consideração o alegado tempo do “início”, de 1981 até o passamento de V., em 9 de julho de 1995, fl. 32, o autor, que tantos fatos noticiou na inicial, com pormenores até sobre a conservação do automóvel de V. (referiu que sempre providenciava nas vistorias regulamentares, evitando também, que o automóvel apresentasse “qualquer ruído, por mínimo que fosse, e V. tinha para isso um ouvido muito sensível”), não tenha o demandante juntado qualquer conta, recado escrito, cartão de boas festas ou aniversário firmado por V. Nenhuma foto dos dois juntos apesar do alegado longo tempo do relacionamento. Nenhuma comemoração em eventual data especial. O demandante até lembrou na inicial a minudência de que às vezes tomavam “um chopinho, p. ex., em Ipanema”, quando ele dirigia o veículo. Tantas recordações, tantos encontros, sendo que o autor preparava canjas e chimarrão, fl. 4, sendo que na casa de praia providenciava tudo, mas a inicial não acostou qualquer lembrete firmado por V., homem de sólida posição econômica e financeira. Só a carteira de trabalho é que está assinada por V., demonstrando, pois, que o autor era empregado do estabelecimento comercial de V.e, em sendo motorista – fl. 4 da inicial até especificava os horários das entregas – com o que nada a estranhar que também residisse, por um tempo, no apartamento de V., também na qualidade de motorista. Há prova que outra pessoa, do sexo masculino, residia ao mesmo tempo no apartamento, pois o próprio demandante disse, fl. 54v, que V.L.F., “que é afilhado do réu, que morava no apartamento...” É o mesmo V.L. quem declarou o óbito, fl. 32. Isso é circunstância importante, pelo que necessariamente o autor deveria ter feito as explicitações pertinentes, quando da inicial. O testemunho de J. L., fl. 415, não pode ter o alcance pretendido na sentença. As refeições a dois em restaurantes não podem ser fortes indicativos de união estável. Ademais, difícil acreditar que no momento de entrega das refeições no apartamento, o autor fosse dizer para o entregador (aliás, o próprio dono do restaurante!!) que falasse em voz baixa, “porque seu companheiro, seu esposo estava dormindo”. Não é razoável que alguém especifique para terceiro que entrega uma encomenda, uma circunstância de for íntimo. Salvo que pretenda fazer alguma prova no futuro... C.R., fl. 416, vizinho, não deixou de relatar que viu também outro rapaz em companhia de V., mas não sabe se o mesmo residia no apartamento de V. Se é certo que G., fl. 417, advogado, noticiou que V.D. “respondeu que era solteiro” e que “deixaria para seu marido que e ra I.”, isso quando falavam sobre procedimentos “para testar”, não pode deixar de ser sopesado que assim não procedeu I., que não tinha ascendentes ou descendentes, e, portanto, poderia dispor de todo o seu patrimônio. V. era pessoa afeita a negócios e sabia das conseqüências de atos relativos a bens, pelo que, se fosse o caso, e entendesse que I. merecia uma recompensa, ao menos pelos “serviços prestados” (expressão que consta na inicial, fl. 24) é certo que teria providenciado na elaboração do testamento. Nada fez durante o longo tempo (dito pelo demandante) da alegada união. É fator que deve ser ponderado com intensidade. O esclarecimento solicitado ao advogado aconteceu no final de 1993 e o passamento de V. teve lugar muito tempo depois, julho de 1995, pelo que V. teria possibilidade de testar, se assim o entendesse. Não o fez. Deve ser respeitada sua vontade, não interessando perquirir se os bens revertem aos municípios, pois assim dispõe a legislação e é até razoável que órgãos públicos, em certos casos, recebam bens, para a conservação de seus objetivo sociais. O testemunho de A., fl. 419, também referiu que V.pretendia deixar seus bens para “a pessoa que estava vivendo com ele, de quem gostava”. Essa conversa aconteceu em 1984/1985, com o que resta evidenciado, mais uma vez, que V. sabia da possibilidade de testar, mas assim não agiu, apesar do tempo transcorrido desde 1984/1985 até sua morte. Reitero os argumentos expendidos pela eminente Procuradora de Justiça Sônia Maria Freitas, enfatizando seu percuciente estudo da prova do processo, fl. 626, inclusive no “tocante ao interstício de tempo da relação afetiva”, pois “também existe incongruência”, fl. 627, sendo salientado que V. “vivia maritalmente nos anos 90 com um rapaz chamado P.”, fl. 627, conforme noticiado por C.E., anotando-se que P. “veio a falecer no próprio apartamento de V. por intoxicação de gás naquela época”, fl. 436, o que consoa e condiz com a notícia jornalística juntada. O voto do Relator também discutiu as questões de fato, e que sempre devem preceder ao debate de eventuais teses que

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226eventualmente podem ser discutidas, dependendo do resultado da prova dos fatos. Discordo do constante no voto da Des.ª Maria Berenice Dias, que, em sua longa argumentação quase que só discutiu sobre a necessidade do Poder Judiciário concordar com a existência de “vínculos afetivos entre pessoas do mesmo sexo”, atribuindo-lhes direitos e obrigações. Ora, não se está a dizer que esse tipo de relação inexiste e que não tem proteção legal. O próprio autor pediu apenas o reconhecimento de sociedade de fato e faz muito, muito tempo mesmo, que a jurisprudência aceita essa argumentação. O que se dissente, com a máxima vênia, é que na argumentação da ínclita Desembargadora, consubstanciada em quase cinco laudas, apenas 20 palavras foram reservadas à prova: “Incontrovertido que se trata de uma convivência duradoura, pública e contínua, sendo uníssona a prova carreada aos autos nesse sentido”, conforme notas taquigráficas. Não e não. De qualquer forma penso que se deva, obrigatoriamente, discutir previamente os fatos, para então, se for o caso, discorrer sobre teses, hipóteses e o que mais for. Quanto ao voto do Des. José Carlos Giogis, composto de 26 laudas, com notas de rodapé, de que os componente do colegiado receberam cópia na véspera do julgamento, sendo que, merece ser dito que já se conhecia sua posição sobre a relação “homoerótica”, pois, no início de sua alentada argumentação, é referido que seus argumentos já foram expostos em outros “acórdãos, artigos e revistas jurídicas e palestras”. Anota-se, todavia, que nada foi comentado sobre a prova coletada, e apenas é aludido, na rapidez de 16 palavras que: “O caso vertente, como aqui já referido, não se divorcia da moldura de uma união estável” – item 10. Já tinha lido sua intenção de voto e me preocupava, aflitivamente, com o não exame dos comemorativos do processo. Se de um lado é certo que a questão debatida no voto do Des. Giogis é instigante, e digna de figurar em qualquer seminário jurídico do IBDFam, por exemplo, não posso deixar de registrar que se está discutindo, agora, um caso concreto, e dele não pode o colegiado abdicar. Com acuidade, o Des. Luiz Felipe Brasil Santos, disse que inverteria o raciocínio de alguns votos, ou seja, “antes de adentrar na tese, irei aos fatos e às provas. E, caso estes permitam-me prosseguir no caminho, chegarei à tese”. Concordo com isso em gênero, número e grau. “ Da mihi factum dabo tibi jus”. Não pode ser “ Non da mihi factum dabo tibi thesem”. Em face da juntada de fotos de fls. 142/143, o próprio autor explicou que também Vl. F. residia no apartamento do de cujus, conforme noticiado na inicial da ação de reintegração de posse. Em vista disso é que foi dito que, estranhamente, foi Vl. e não o autor, quem efetuou o registro de óbito de V. Refere o Des. Luiz Felipe que o autor, em suas “reiteradas e extensas manifestações, omitiu-se o autor de dar explicações acerca do papel exercido por esse estranho personagem (Vl. F.), que parece haver permeado a vida de I. e V.”. Será que não se estaria frente a uma relação mais ampla, de três pessoas? Será que não se pode reconhecer, em tese vanguardeira da vanguarda, a possibilidade de se reconhecer outras pessoas como participante de tal união, “sociedade de fato com mais de duas pessoas”, mesmo nesse tema? Por certo não faltarão defensores da união estável entre mais de duas pessoas. Discorda-se disso, mas não custa referir o fato, já que a discussão transbordou para diversas teses. Destaque-se que o demandante em nenhum momento noticiou na inicial a presença de Vl. nos fatos e circunstâncias. O voto já está manifestado e acompanho o Relator, com os adendos do Des. Luiz Felipe. Mas não me omito de dizer, ainda, que a juntada de cópia da Declaração dos Direitos do Homem – ONU – Paris – 1948, assinalada pelo autor, fl. 66, no tópico que diz que todos os homens “nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e que todos “tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração”, é seguida, também, e na página seguinte, art. XVI, que os “homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, tem o direito de contrair matrimônio e fundar uma família”. Com respeitosa vênia discordo do posicionamento da ilustre julgadora que prolatou a sentença, que, diga-se de passagem, comentou e examinou a prova coletada. O mesmo deve ser ressaltado no voto do Des. José S. Trindade, fl. 765, quando do julgamento da apelação. Os argumentos explicitados supra demonstram os motivos de minha divergência no tocante aos fatos. Fui vogal quando do apelo e só agora manuseei o processo, mas reitero também a argumentação lá proferida. De qualquer forma, permanece entre todas as correntes do Direito a necessidade de primeiramente haver a discussão dos fatos, para, ao depois, dizer a solução jurídica. Quanto a isso poderemos dizer que se está frente à cláusula pétrea e já noticiada na lembrança do Direito Romano. Desacolho os embargos. O DES. RUI PORTANOVA – Peço vista dos autos. O SR. PRESIDENTE (ALFREDO GULHERME ENGLERT) – Embargos Infringentes nº 70003967676, de Porto Alegre – “Com o voto do Des. Englert, desacolhendo os embargos infringentes, ficou suspenso o julgamento, face ao pedido de vista do Des. Portanova ”. (Em 8 de novembro de 2002). PEDIDO DE VISTA VOTO O DES. RUI PORTANOVA – O meu interesse em ter pedido a revista dos autos primeiro se deveu ao fato constrangedor para mim de ter votado na tese, e terem trazido, então, o Des. Felipe e o Des. Englert, a questão fática, que é precedente à questão da tese. Eu, evidentemente me sentiria muito mal em homologar uma união afetiva de homossexuais se eu, no caso

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227Vogal, não tivesse como provada a questão dos fatos, mesmo da união entre eles. Esse era um dos fatos que fizeram com que eu me sentisse, de alguma forma, constrangido em relação a isso. O outro detalhe é algo que me seduz bastante, pois considero esse tema ideológico, no qual ninguém é neutro. As pessoas têm uma predisposição em relação a esse tema, assim como têm predisposição em relação a outros temas, favorável ou desfavoravelmente. Eu sustento que essa predisposição que se tem em relação a isso não está imune nem à prova, porque, quando se tem uma predisposição a determinadas circunstâncias e não se tem consciência absoluta dessa predisposição, se vê o mesmo fato, uma mesma prova de formas diferentes. Então, isso acabou seduzindo-me, porque, em face da abrangência da investigação probatória realizada pelo Des. Luiz Felipe e pelo Des. Englert, eu precisava ver isso e também colocar os meus olhos, predispostos a acolher a união homossexual, nesta investigação probatória, colocar sob risco a minha tese, à vista do fato. Então vejam que vou pedir vênia para usar os votos do Des.Englert, Brasil e Chaves como rumo para, ao mesmo tempo, sustentar a minha posição, de que eu encontro provada a união afetiva do par, e fazer uma crítica ideológica, sem falar de má-fé, de malícia, simplesmente vendo como a questão perpassa o dado ideológico. O Des. Englert, depois de votar na Câmara contra a tese da união estável, pediu vista, no Grupo, para fazer análise dos fatos. Como ele já é contra a tese, então, na verdade, pensando logicamente, nem precisaria do pedido de vista. De pouco adiantaria analisar os fatos, se os fatos esbarrariam fatalmente numa tese que o eminente Des. Englert há, de antemão, não tem aceitado. Vejam que aí se mostra claro que, aos olhos do Des. Englert, quando fez a análise dos fatos, já estava predisposto a ver a união, porque ele já tinha dito antes que era contra. O Des. Sérgio tentou, ao máximo, fugir do preconceito. Ele é claro em dizer “friso que estou afastando qualquer paralelo com casamento e também com união estável não por preconceito, mas precisamente pela compreensão que tenho do que seja a família, a partir da própria história da humanidade, noção que é fundamental para o exame adequado para o caso proposto”. E qual a idéia de família que tem o Des. Sérgio? Ele está tentando fugir do preconceito, mas ele tem uma idéia de família, que é marido, mulher e prole. Se fizermos uma evolução da idéia de família, não é essa a idéia de família que a Sociologia, a Antropologia estão nos trazendo hoje. Mas essa é a idéia do Des. Sérgio de família. O que estou tentando dizer é como S. Exa. Valoriza uma determinada idéia de família e como é possível, com as mesmas bases doutrinárias, sociológicas e antropológicas, ter uma outra idéia de família. É lógico que se o Des. Sérgio tem essa idéia de família, só pode chegar a uma conclusão, aquilo que tinha lá não era família. E toda a prova do fato acaba tendo para o Des. Sérgio a coloração de algo que não pode ser família. Logo, não pode ter qualquer efeito. E o Des. Sérgio acaba trazendo uma expressão, data máxima vênia, que tem de mais conservador, e repetindo, que é a questão de insegurança jurídica, quando todos nós sabemos que não existe segurança jurídica. Mas, lá pela p.16 do seu voto, ele diz: “temos que precisar disso, porque, senão, nós vamos viver uma insegurança jurídica”. Quero tomar como ponto de partida algo induvidoso: eles tinham uma vida em comum. Nas p. 124, 129, 130, confirma-se que eles viveram dois anos no mínimo. O que temos que resolver é qual o efeito jurídico que tem isso: ou é união estável, ou é sociedade de fato, ou é nada, não tem efeito nenhum. O Des. Luiz Felipe, na p. 6 do seu voto, também diz que “V. era homossexual e I. manteve com ele relações erótico-afetivas, tendo residido durante certo tempo no mesmo apartamento”. Então, não há dúvida de que eles viveram durante algum tempo, dois anos, mais ou menos, uma união afetiva. Falta prova. Eu gostaria de começar dizendo que nessas situações – em que se cogita da sinceridade de união afetiva e não do chamado ‘golpe do baú’ – muitas vezes é a falta de prova que mais convence. Quando uma parte quer dar o ‘golpe’ então para provar uma união afetiva inexistente ela guarda coisas absolutamente insignificantes. (Neste tema gostaria de lembrar o que aconteceu na AC nº 70003016136, onde havia recados para compras em supermercado, recibo de compras de meias e cuecas). Fala-se da falta de correspondência, só que eles viviam na mesma casa durante determinado tempo. Está certo que houve uma época em que viviam fora. O SR. PRESIDENTE (DES. ALFREDO GHUILHERME ENGLERT) – Permite um aparte? Num tempo viveram, depois um morava no Interior, onde se telefonavam diariamente quando havia muito problema com os telefones. O DES. RUI PORTANOVA – Quando eles dizem que estavam fora e se ligavam diariamente, fazemos uma ironia dizendo que é impossível de fazer. Mas a verdade é que daí, quando há possibilidade de prova, se descaracteriza a prova. O SR. PRESIDENTE (DES. ALFREDO GHUILHERME ENGLERT) – Porque não mandavam um bilhete e telefonavam todo o dia para Tupanciretã em época em que as comunicações eram terrivelmente precárias. O DES. RUI PORTANOVA – Pode ser que se ‘mandavam bilhetes’. Só que não guardavam – como faz a maioria dos casais hetero e homossexuais. Foi dito que não há documento. Não é que não haja documento. O documento da fl. 46 mostra I. fazendo uma conta na Caixa Econômica Estadual e dando como endereço a Duque de Caxias. Documento existe. Há uma comunicação à Polícia, na fl. 48, também, dando o mesmo endereço. Poder-se-ia concluir que o I. morava ali. Veja a questão da carteira de trabalho. Diz o Des. Luiz Felipe que o que tem de prova documental é o fato de ele ser contratado como motorista. Diz ainda que isso não milita em prol da tese do autor, até pelo contrário. O que significa isso? O fato de ele ser motorista vai fazer com que eles deixem de ter essa união socioafetiva.

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228Nós, aqui, tratamos a união homossexual para fins de prova, como se fosse uma união heterossexual. Exige-se deles o que se exige de uma união heterossexual, sem contar que eles são discriminados, que se escondem. Mas o Des. Englert não encontrou fotos nem bilhetes e disse, claramente, isso. Porém, no Processo nº 70003016136, que julgamos na 8º Câmara, que era uma relação homossexual, havia 38 fotos, cartas e bilhetes nas págs. 37 e 38, cartões de amigos para o casal, um com 22 folhas, outro com 30 folhas e outro com 70 folhas, e, também lá, o Des. Englert não reconheceu a união estável. O SR. PRESIDENTE (DES. ALFREDO GHUILHERME ENGLERT) – Lá, por causa da tese; aqui, por causa do fato. O DES. RUI PORTANOVA – Lá estava provado o fato e S. Exa., também não reconheceu a tese. Quanto à questão da falta de testamento, os ilustres Desembargadores queixam-se do fato de ele não ter feito testamento. Porém, há alguns detalhes que, são relevantes. No Brasil, toda a doutrina diz que, infelizmente, não se tem o hábito de fazer testamento. Ele dizia para o advogado: “Eu quero fazer um testamento, porque sou solteira e quero fazer para o meu marido”. E disse quem era, que era o Erl. do. Para os Colegas que não reconhecem a união estável ele chamar o outro de marido, dizer-se “solteira” e querer fazer um testamento não é importante. E o interessante é que na certidão de óbito, está dito que há testamento. O que estou tentando mostrar é que algumas coisas foram vistas e outras não. A análise da prova oral foi feita, e o interessante é que a prova oral é uniforme em confirmar a união estável. Não há uma testemunha que não diga que eles viviam juntos. Uma das testemunhas é o síndico do edifício, advogado, que dizia que os dois dormiam na mesma cama. Era uma testemunha que não foi considerada importante para configurar a união deles. Para mim, a testemunha é importante. E o síndico, é atuante e isento, ele é um advogado. Um funcionário do Banco do Brasil também confirmou, e o dono do restaurante, que foi vítima de alguma ironia, porque, quando foi entregar um lanche à noite, o outro disse: “Fica quieto que o meu marido está dormindo”. Marido é como ele chamava a pessoa. Por fim, estou pedindo vênia para referir que não podemos tratar este casal como um casal heterossexual. O que fizeram os Des. Sérgio e Luiz? Verificaram se, se preenchiam todos os requisitos da união estável. ‘Data vênia’, não podemos esquecer que estamos tratando de uma união afetiva entre homossexuais. Eles são discriminados pela sociedade, e não se pode exigir deles que venham para um processo, cumprindo todos os requisitos da união estável. Não podemos esquecer que, dependendo da situação pessoal – e, agora, nós vamos entrar na situação particular -, eles vão ter um outro tipo de comportamento. Vejam que, no particular, ainda temos mais um detalhe, o V. era rico, era gerente de uma loja conhecida, e o I. pobre. Então, esse é mais um detalhe que, do ponto de vista particular, parece influenciar na questão de se saber como é que se portavam, como é que se sujeitavam, como é que se conseguiriam tais provas. Isso, agora, do ponto de vista pessoal, traz mais um detalhe que, para mim, parecer relevante e que mostra que temos que fazer esse desvendamento. O V. tem uma declaração de um amigo íntimo dele, escrita à mão, ele era um homem discreto e reservado, fl. 138. Está dito isso claramente por um amigo íntimo. O DES. SÉRGIO FERNANDO S. DE V. CHAVES (RELATOR) – Se ele era tão discreto e reservado, era razoável que ele fosse dizer para um cidadão que bate à porta: “Meu marido está dormindo”. Se ele era discreto e reservado ele ia usar a primeira pessoa no feminino? Que discrição é essa? O DES. RUI PORTANOVA – Eu só gostaria de dizer que isto aqui está dito pelo amigo e trazido na contestação, uma pessoa que morou com ele e que sabia que ele era homossexual. Bem, e V. sofreu com a morte de P. uma situação extremamente constrangedora. O companheiro dele morreu na casa dele, no banheiro, com gás. E o texto da Zero Hora, e aqui vem toda a minha idéia a respeito, fica dando a entender que havia uma relação homossexual. Então, ele já tinha essa situação que havia sofrido, sendo um homem rico, sendo homossexual, sendo gerente de uma loja importante, ele tinha o peso dessa situação noticiada pelo jornal. Por isso, tratá-los como se fosse uma relação heterossexual é projetar uma igualdade, mas uma igualdade formal, e não é essa igualdade que temos de ter com eles, temos de tratá-los desigualmente, à medida que se desigualam, que é a igualdade material. Precisamos entender a situação deles, tentar o máximo possível vivenciar a dificuldade da discriminação que eles sofrem e o tipo de discriminação. Com isso, fiz alguma análise da prova. Acabei convencendo-me de que alguma prova há de que eles realmente viveram juntos, por pouco tempo. O Dr. Sérgio fala, no seu voto, que não existe uma legislação a respeito disso, e, quando não existe legislação, julgar improcedente, porque não tem lei, é quase, do meu ponto de vista, data máxima vênia, como um non liquet, é não julgar. Assim, quando não existe legislação, aprendemos no primeiro ano da Faculdade, estamos diante de uma lacuna, e o art. 126 do CPC tanto diz para o Juiz que ele tem de julgar quando estiver diante de uma lacuna, como diz como julgar. Então, vai julgar pelos princípios e pela analogia. Quais os princípios? Basicamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da não-discriminação em razão do sexo. Quer dizer, não podemos, porque se trata de homossexuais, torná-los indignos, temos de reconhecer que eles têm dignidade. Se eles têm dignidade, eles têm acesso ao ordenamento. Qual é a analogia que se faz? Com a sociedade de fato? Não, com a união estável, porque a sociedade de fato não tem o que

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229eles tinham. Para nós pode ser constrangedor, mas eles se amavam. Na sociedade de fato, não há amor; a situação em que é indispensável haver amor é na união estável. Então, o que tem de mais parecido na união deles é a união estável. O DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELOS CHAVES (RELATOR) – Esse é um conteúdo retórico. V. Exa. fez várias referências ao meu voto, citou um trecho e não falou mais nada; descontextualizou, portanto, o que eu escrevi, ao longo de 20 folhas, nas quais eu examino o que é família. E mais, V. Exa. está partindo de uma analogia de uma relação para outra relação que merece especial proteção do Estado e V. Exa., Des. Luiz Felipe, disse: “A minha família é diferente da do Des. Chaves”, mas a minha família é aquela que está na Constituição. O art. 226 define e delineia com clareza qual o conceito de família. A família começa com o casamento, sim, parte daquele conceito inicial trazido pelo Código de 1916, mas ele avança. A família também é constituída pelo casamento religioso, também se considera entidade familiar a união estável, e o legislador disse: entre homem e mulher que vivem como se casados fossem, e também coloca as famílias monoparentais, e ali fala dos filhos. Qual é o escopo da família? Era preciso que voltássemos a aprofundar um pouquinho mais o conceito de família e fazer uma análise não-comprometida casuisticamente em resolver um problema emergente e sério, eu reconheço, porque a homossexualidade é antiga. Lá na Grécia antiga existia, e nunca se questionou se dois homossexuais constituíam lá uma família, e nós já tínhamos a família heterossexual. Essa era a família, e, ao longo da história da humanidade, a homossexualidade existiu, mas nós sempre tivemos a família, portanto o reconhecimento de um par, ou trio, ou quarteto, porque eu sei as razões que levaram a humanidade a chegar à monogamia conforme o ideal de família, mas não sei porque a monogamia na relação homossexual. Esta é uma questão a ser pensada. Foi ouvido recentemente, e eu facultei ao Des. Giorgis e também ao Des. Luiz Felipe, e até eu quero ver se localizo a fita e coloco à disposição dos Colegas, a entrevista com o Secretário-Geral do Grupo Nuances, que critica abertamente inclusive as expressões homoerótico, homoafetivo. Eles dizem: “nós somos diferentes, nós queremos ser tratados como pessoas, nós não queremos o modelo homem/mulher”. Não foi exatamente isso que disseram? A relação deles é diferente, seus valores são outros. Eles disseram isso. O que eu não encontro é espaço para dar a essa relação especial proteção do Estado, que não é dada, data máxima vênia, em razão de envolvimento afetivo, em razão do amor e muito menos em razão da intimidade sexual ou erótico-afetiva. A especial proteção do Estado é dada exatamente pela possibilidade de se criar, naquele ninho, a formação de uma nova família para que a sociedade continue hígida e saudável. A união homossexual não merece especial proteção do Estado, porque, se pudéssemos, numa abstração, imaginar que a sociedade fosse toda ela construídas por homossexuais, em menos de uma geração, terminaria a humanidade sobre a terra. O que a legislação protege, o que o legislador constituinte enxergou foi exatamente a proteção da família enquanto base da própria estrutura social. Com a vênia do Colega, que fez referência às minhas posições, e aparentemente eu só estava no modelo tradicional homem e mulher, filho, casamento, e quem sabe abençoado pela Igreja, parece que eu estou com uma visão preconceituosa, ou pior, com uma visão absolutamente restritiva, quando, no meu voto, a análise que eu fiz foi focalizar a família à luz da Constituição, e a Constituição diz que a família é composta por homem e mulher, casados, ou submetidos a casamento religioso, ou mantendo uma união estável, mas coloca, na sua essência, a união heterossexual. É a Carta Magna que diz isso. A diversidade de sexo é pressuposto material do casamento e também da uinão estável. Então, com a vênia dos colegas, eram essas as colocações que eu tinha a fazer. O SR. PRESIDENTE (DES. ALFREDO GHUILHERME ENGLERT) – Embargos Infringentes nº 70003967676, de Porto Alegre – “Desacolheram os embargos infringentes o Relator, Desembargadores Stangler Pereira, Luiz Felipe e Englert. Acolheram os embargos a Des.ª Maria Berenice e os Desembargadores Trindade, Giorgis e Portanova. O recurso será encaminhado ao 3º Vice-Presidente, para o voto de desempate”. (Em 13 de dezembro de 2002). SESSÃO ADIADA VOTO O SR. PRESIDENTE (DES. CARLOS ALBERTO BENCKE) – Pelo relatório viu-se, simplificadamente, que a questão envolve duas vertentes de reflexão e que merecem a mesma atenção por parte dos julgadores, como bem colocado pelo eminente colegas que já intervieram no processo: fato e Direito. Ao menos no início, não estava sendo este o caminho trilhado de forma explícita, pois a discussão ficara restrita às teses antagônicas entre os integrantes deste colendo 4º Grupo Cível. Mas, em bom tempo, volveu-se à discussão dos fatos que embasaram o pedido formulado na inicial. Deixo de apreciar a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido – não suscitada expressamente nas contra-razões dos embargos infringentes, mas implicitamente referida, como se vê na fl. 814, item 2º - porque confunde-se com o mérito da quaestio júris. Subscrevo a esclarecedora manifestação do Des. Brasil Santos quanto à distinção que se deve fazer entre união estável e sociedade de fato. Não obstante a confusão feita na inicial, flagrada também no voto do Des. Englert, transparce daquela peça a intenção do autor em ver declarada a união estável que afirma ter existido entre ele e o falecido. Não se concretiza, por conseguinte, a inépcia da vestibular, pois está claro, ao menos para mim, que o objeto da ação intentada é o autor ver-se contemplado como herdeiro do companheiro falecido, o que se revelaria diferente se a intenção dele fosse a de preservação da parte patrimonial que resultasse do esforço comum para a aquisição dos bens. Todavia, para alargar o alcance da coisa julgada e apanhar mais esta situação, e esta parcela do pedido, adianto, desde logo, e

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230na esteira do voto do Des. Brasil Santos, que não haveria adminículo probatório a embasar a pretensão da parte autora quanto à existência da sociedade de fato. As tarefas por ele desenvolvidas e relatadas na inicial, sobre não restarem comprovadas, sugerem simples preservação do patrimônio que fora adquirido pelo falecido V. Bem colocada a espécie e demarcado o âmbito de discussão, passo ao exame da prova da existência o não de uma união equiparável àquela prevista no art. 226, § 3º, e legislação infraconstitucional que se seguiu. Não pretendo estender a discussão além dos limites já postos pelos integrantes do Grupo, pois entendo que os colegas esgotaram a matéria em todos os seus ângulos e, por isso, seria fastidioso repetir argumentos e impossível formular proposições novas a respeito de tão debatida matéria. Assim, é minha pretensão apenas resumir a posição que, no meu entendimento, é correta e acrescentar um ou outro fundamento que a justifique. Começo, então, pelo exame da prova. Esta é esparsa, difícil de apreciar, porque ausente a prova material/ documental, que atestaria, com melhor percuciência e estreme de dúvida, se existiu ou não a alegada união. Mas, para isso é que foi acionado o Poder Judiciário: para examinar a controvérsia e sopesar e valorar as provas trazidas pelas partes. Deste mister o juiz não se pode demitir. A documental demonstra que I. era motorista da empresa do de cujus, sem qualquer contestação. Até aí nada mais. O busílis é que, na prática, a prestação de serviços de motorista ficava restrita a V., não havendo indícios de que servia como chofer na empresa. Ou seja, andava habitualmente com o patrão, como se fosse o seu motorista particular, inclusive nos fins de semana, pois assim disseram os testemunhos de J.L.D. (O depoente levava refeições aos dois na residência deles, muitas vezes à noite, outras vezes aos finais de semana. Às vezes, almoçavam com o depoente aos domingos e outras vezes, antes de se dirigir à casa de praia), de C.R.T.M. (Sabe que moravam juntos, pois subia com eles, seguidamente, na hora do almoço. Nos finais de semana saíam juntos. (...) Nos finais de semana, quando os encontrava o autor sempre estava dirigindo o carro de V.) e em várias passagens do depoimento de A.A.G. Ora, quem era contratado pela empresa certamente não prestaria serviços a o empresário se outras circunstâncias não estivessem presentes. Que I. era visto na empresa de propriedade de V., são escassas as referências, não obstante existente, como no depoimento de J.J.M. (Na loja dos barbantes foi atingido deve-se considerar o termo atendido como o correto - por I. em certa ocasião). Tem-se, portanto, este primeiro dado importante na montagem da prova por inteiro: o autor estava sempre na companhia do de cujus, mesmo sendo motorista da empresa. Este elemento probatório – ser motorista da sociedade da qual era sócio o de cujus, mas praticamente só prestar serviços para ele - se não é essencial para o deslinde da quaestio júris, assume contornos de nitidez corroborado com outros dados do conjunto de provas e que podem ser vistos a olho nu, como referido pelo Des. Portanova em seu voto vista. Por exemplo, os depoimentos das testemunhas arroladas vão num mesmo sentido e, das pessoas ouvidas, apenas uma destoa da univocidade verificada. Não vou repeti-los para não cansar os eminentes colegas e as partes e seus advogados, pois os colegas que me antecederam já examinaram à exaustão tais oitivas. Todavia, há de ser destacado, pois não o foi suficientemente, data vênia, o depoimento de A.G. Disse ele, com todas as letras que o autor e o falecido viviam em situação de par homossexual, convivendo harmoniosamente e como se formassem uma parelha heterossexual. Ou seja, o comportamento de ambos demonstrava a intenção que tinham de viver maritalmente. As passagens de seu depoimento assim o demonstravam. Teve momentos, inclusive, que demonstravam o carinho e o afeto que o de cujus nutria pelo autor: quando afastado de I., V. não via a hora de I. retornar. (...) com I era diferente, pois havia pessoas que olhavam para o seu interior e I. era uma dessas pessoas. (...) I. não era tratado por V. como empregado dele, era uma pessoa que ele tratava com carinho e, inclusive, quando I. chegava no restaurante, V. dirigiu-se ao depoente dizendo que naquela ocasião havia colocado roupa de cama de cetim, pois iria fazer lua-de-mel de novo. (...) Em ocasiões em que esteve na casa de praia, percebeu que os dois viviam como um casal, tanto que pernoitavam no quarto junto. (...) Disse que o carinho com que o autor tratava V. o depoente percebia era grande (...). E por aí afora, revelando, inclusive, que sempre teve intimidade com V., trazendo, pormenores de suas atitudes, de seu estado de ânimo, de sua personalidade, enfim, demonstrando que conhecia profundamente o amigo falecido. Essas atitudes também foram notadas pelos demais depoentes, naquela univocidade quebrada apenas por uma das pessoas arroladas. As demais questões, para o conjunto de prova, parecem-me desarrazoadas e sequer deveriam ser aventadas, porquanto ausente o necessário contraditório. Refiro-me às dúvidas dos eminentes colegas que pretendiam fossem trazidas fotos ou outros documentos a revelar momentos de intimidade entre o de cujus e o autor. Ou aquelas outras incertezas causadas pelo fato de não ter sido o autor quem levou a notícia da morte ao registro público, ou de não ter qualquer indicação de prova dos últimos momentos do falecido em companhia do autor. Até admito que poderiam ter sido levantadas estas questões pelo douto juízo instrutório, no uso da prerrogativa permitida pelo art. 130, do CPC, mas apoiar-se agora na ausência desses elementos para excluir a vida em comum, quando outra foi a direção da prova, é desrespeitar os princípios essenciais de proteção ao devido processo legal e ao contraditório. Demais disso, pareceu-me suficiente a afirmação do Des. Portanova a respeito da discriminação que sofrem os casais homossexuais e da necessidade de discrição em público que a dotam para justificar a ausência de quaisquer outros elementos a corroborar o depoimento das pessoas arroladas como testemunhas. Não tenho pela prova testemunhal o mesmo desassombro que teria se fosse ela documental ou corroborada por fotografias de momentos da intimidade dos dois. Também tenho consciência de que a prova testemunhal não reflete os fatos como aconteceram, mas sim refletem do depoente. Ainda mais quando estes acontecimentos referem-se mais a questões

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231sentimentais do que racionais. Mesmo assim, não tenho como afastar-me destes depoimentos – e das circunstâncias ao redor – e elegê-las como prova bastante de que I. e V. conviveram durante um bom tempo como um casal homossexual. Essa moldura probatória mostra uma convivência além daquela normal entre amigos, ou entre patrão e empregado, por isso que mais próxima da convivência normalmente verificada entre marido e mulher, ou a esta assemelhada. Ultrapassada a primeira fase de exame deste tormentoso processo, o próximo passo é a indagação de quais os reflexos que essa convivência traria: na visão formal e dogmática nenhum; na ótica heterodoxa equipara-se à união estável prevista no art. 226, § 3º, da Constituição Federal. De uma coisa não padece dúvida: as uniões homossexuais são uma realidade que o Direito não pode mais desconhecer. Que existiam antes, sem quaisquer efeitos jurídicos e até execradas pela sociedade, como bem apanhado no voto do Des. Chaves, relator destes embargos infringentes, todos sabemos. Mas, o Direito evoluiu: veja-se que o que não se admitia exceto por construção da jurisprudência – como, por exemplo, a equiparação da união estável ao casamento – passou a ser matéria regulada na Constituição de 1988. Em época anterior, no estertor da década de 70, experimentou-se avanço notável com a aprovação da Lei do Divórcio. Então, há uma evolução que se faz sentir, mas existe ainda uma forte compressão de situações mal resolvidas. Uma delas, sem qualquer dificuldade de colocação, é a situação vivida pelas uniões homossexuais. A evolução do Direito é lenta e gradual. Basta atentar para um detalhe e que ressalta no exame que se faça do dispositivo constitucional: é o relacionado ao fato de que a união estável somente pode ser estabelecida em uma entidade familiar fundamentada em homem, mulher e prole. Exclui, por conseguinte, as relações que possam formar pessoas do mesmo sexo. Para estas situações, a tímida jurisprudência existente encontra a mesma solução que antes se preconizava para os companheiros que viviam juntos como se casados fossem, através do reconhecimento de uma sociedade de fato, aplicando-se aos bens dos homossexuais o princípio já consagrado inserido na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal. Não se pode esquecer, todavia, que base jurídica existe para proteção dessas anômalas (para a visão mais ortodoxa) situações de fato. Fundamenta-se nos princípios da liberdade, igualdade e inviolabilidade da vida privada e da intimidade, como os colegas que me antecederam em seus votos, já reconheceram. Ou seja, não estão órfãos no âmbito do Direito aqueles que têm orientação sexual diversa da pretendida pela Constituição em seu art. 226, § 3º, diante da identificação daqueles princípios como norte para uma efetiva proteção. O Direito de Família, entre todos os ramos das ciências jurídicas foi o que experimentou maiores transformações nos últimos tempos. Antes submetido a um olhar retrógrado do sistema, teimava em não admitir a existência de uniões de fato que, com toda a aparência de uma entidade familiar, convivia aparentemente bem na sociedade. Competiu a uma doutrina avançada e aos precedentes dos tribunais ditar as novas linhas que passaram a comandar tais relações, finalmente reconhecidas em dispositivo da Constituição de 1988. No entanto, nem o texto constitucional, nem a legislação infraconstitucional, mostram-se suficientes para a solução de todos os conflitos que porventura surjam das relações de afeto, quando rompidas. Tais novidades podem e devem dirigir a doutrina e a jurisprudência no sentido de consolidar uma ou outra das posições até agora visíveis para a apreciação das relações homossexuais. Os eminentes colegas que defendem a impossibilidade de reconhecer a união homossexual como se fora união estável, aduzem que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, refere que a união estável se dará entre homem e mulher – portanto excluindo a união de pessoas do mesmo sexo -, reconhecendo-a como entidade familiar – o que se revelaria impossível entre pessoas do mesmo sexo, diante do conceito de família – e porque também impossível a conversão em casamento – a lei brasileira não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Já os que defendem a tese contrária consubstanciam-na diante da liberdade de escolha sexual, na igualdade de tratamento a todos os cidadãos e na preservação da vida íntima da pessoa humana. Posta assim a questão, tem-se uma aparente antinomia de normas constitucionais. Se, de um lado, existe a limitação constitucional do art. 226, § 3º, de outro, abre-se o leque de liberdades individuais, fundamentada nos direitos essenciais do cidadão. E estes, a meu juízo, mostram-se mais importantes. Reconheço que é difícil admitir que o hábito arraigado de examinar, sob o prisma dos conceitos civis, questões entre casais unidos informalmente, como difícil é extirpar do pensamento médio dos juristas a idéia de união entre pessoas do mesmo sexo. Mas é assim que se constrói o Direito e a evolução mostra que outros pontos de vista deverão vicejar em meio a este pensamento médio dos juristas. Claro que, hoje, diante da inoperância objetiva da Carta Magna e da legislação que rege a matéria, a construção deve basear –se mais em princípios do que na norma. É o que faço, substanciando a igualdade e liberdade do cidadão acima de tudo. Sigo esta senda já palmilhada pelos eminentes colegas que deram pelo provimento dos presentes embargos, fundamentado na igualdade entre todos os cidadãos e na liberdade de escolha sexual. Embargos Infringentes nº 70003967676, Porto Alegre – “Prosseguindo no julgamento, proferiu voto de desempate o Des. 3º Vice-Presidente acolhendo os embargos. Acolheram os embargos, por maioria, vencidos os Des. Stangler, Luiz Felipe, Englert e Chaves (Relator). Lavrará o acórdão a Des.ª Maria Berenice”. 5.2. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. APELAÇÃO CÍVEL nº 598 362 655. Relator: José Ataídes Siqueira Trindade

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232Oitava Câmara Cível. Apelante: J.G.R.D. Apelado: L.C.M. e outros sucessores de W.M.M. Data do julgamento: 1/3/2000. Ementa: HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade cientifica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida.

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