Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

87

Transcript of Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Page 1: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br
Page 2: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Michel Onfray

Teoria da viagem

Poética da geografia

Tradução Paulo Neves

Page 3: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Titulo original: Theoríe du voyageTexto de acordo com o nova ortografia. Tradução: Paulo NevesCapa: Tatiana Sperhacke.Foto: Raul KrebsPreparação: Jô SaldanhaRevisão: Joseane Rücker

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Onfray, Michel, 1959-Teoria da viagem: poética da geografia / Michel Onfray; tradução

de Paulo Neves. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.Edição eletrônica: S. Bacamarte

Tradução de: Théorie du voyageISBN 978-85-254-1918-7 1. Viagens – Filosofia. 2. Geografia – Filosofia. I. Título. II. Série.

Todos os direitos desta edição reservados a L&PM EditoresRua Comendador Coruja, 314, loja 9 – Floresta – 90.220-180Porto Alegre – RS – Brasil / Fone: 51.3225.5777 – Fax: 51.3221.5380Impresso no Brasil Inverno de 2009

Michel Onfray © Librarie Générale Française, 2007

Page 4: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

SUMÁRIO

INTRADAQuerer a viagem

ANTESEscolher uma destinação

Aumentar o desejo

ENTREMEIO IHabitar o entremeio

DURANTERealizar a amizade

Organizar a memóriaInventar uma inocência

Deparar com a subjetividade

ENTREMEIO IIReencontrar um lugar

DEPOISCristalizar uma versão

Dizer o mundo

CODAConsiderar uma continuação

Page 5: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

INTRADA

Page 6: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

QUERER A VIAGEM

No começo, bem antes de todo gesto, de todainiciativa e de toda vontade deliberada de viajar, o corpotrabalha, à maneira dos metais, sob a ação do sol. Naevidência dos elementos, ele se mexe, se dilata, seestende, se distende e modifica seus volumes. Todagenealogia se perde nas águas tépidas de um líquidoamniótico, esse banho estelar primitivo onde cintilam asestrelas com as quais, mais tarde, se fabricam mapas docéu, depois topografias luminosas nas quais desponta ese aponta a Estrela do pastor – que meu pai foi oprimeiro a me ensinar – entre as constelações diversas. Odesejo de viagem tem sua confusa origem nessa águalustral, tépida, ele se alimenta estranhamente dessasuperfície metafísica e dessa ontologia germinativa.Ninguém se torna nômade impenitente a não serinstruído, na carne, pelas horas do ventre materno,arredondado como um globo, um mapa-múndi. O resto éum pergaminho já escrito.

Mais tarde, muito mais tarde, cada um se descobrenômade ou sedentário, amante de fluxos, transportes,deslocamentos, ou apaixonado por estatismo, imobilismoe raízes. Sem que o saibam, alguns obedecem atropismos imperiosos, submetem-se aos camposmagnéticos hiperbóreos ou setentrionais, voltam-se parao nascente, inclinam-se em direção ao poente, sabem-semortais, é verdade, mas sentem-se como fragmentos deeternidade destinados a se mover num planeta finito –estes vivem de forma semelhante à energia que neles atuae que anima o resto do mundo; de maneira igualmentecega, outros experimentam o desejo de enraizamento,conhecem os prazeres do local e desconfiam do global.

Page 7: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Os primeiros amam a estrada, longa e interminável,sinuosa e ziguezagueante; os segundos se comprazemcom a toca, sombria e profunda, úmida e misteriosa.Esses dois princípios existem menos em estado puro, àmaneira de arquétipos, do que como componentesindiscerníveis na particularidade de cada indivíduo.

Para figurar esses dois modos de ser no mundo, anarrativa genealógica e mitológica produziu o pastor e ocamponês. Esses dois mundos se afirmam e se opõem.Com o passar do tempo, tornam-se o pretexto teóricopara questões metafísicas, ideológicas e depois políticas.Cosmopolitismo dos viajantes nômades contranacionalismo dos camponeses sedentários, a oposiçãoagita a história desde o neolítico até as formas maiscontemporâneas do imperialismo. Ela atormenta ainda asconsciências no horizonte imediato do projeto europeuou, mais distante, mas igualmente certo, do Estadouniversal.

Os pastores percorrem e levam os rebanhos a pastarem vastas extensões, sem preocupação política ou social– a organização comunitária tribal supõe algumas regras,é verdade, mas as mais simples possíveis; já oscamponeses se instalam, constroem, edificam aldeias,cidades, inventam a sociedade, a política, o Estado,portanto a Lei, o Direito que um uso interessado de Deus,através da religião, sustenta. Aparecem as igrejas, ascatedrais e os campanários indispensáveis para ritmar ostempos do trabalho, da prece e do lazer. O capitalismopode nascer e, com ele, a prisão. Tudo o que recusa essanova ordem contradiz o social: o nômade inquieta ospoderes, é o incontrolável, o elétron livre impossível deseguir, de fixar, de designar.

O Antigo Testamento não esqueceu essa questão.Basta reler as páginas inaugurais do Gênese nas quais secruzam Caim e Abel, dois irmãos destinados a tragédia,

Page 8: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

votados à maldição. Todos conhecem mais ou menos ahistória do fratricídio ou do primeiro homicídio. Maisraro é lembrar o oficio dos dois protagonistas: o pastor derebanhos e o camponês lavrador, o homem dos animaisem movimento contra o do campo que permanece. Osandarilhos, os vagabundos, os errantes, os que pastam,correm, viajam, vagueiam, flanam, palmilham, já esempre em oposição aos enraizados, aos imóveis, aospetrificados, aos erigidos em estátua. A água dos riachos,corrente e inapreensível, viva, contra a mineralidade daspedras mortas. O rio e a árvore.

Assim, o agricultor mata o pastor, o camponêsassassina o homem das cabras. As razões? A afeição deDeus mais claramente voltada para a futura vitima. A fimde honrar o Criador, Abel oferece gordura e osprimogênitos do seu rebanho; Caim, os frutos do seutrabalho agrícola. E o Todo-Poderoso, parece, dá maisatenção ao pastor. Não se sabe por quê. Enciumado, ocamponês se lança contra o irmão e o mata. Deusamaldiçoa Caim e, como punição, o condena a vagar, aerrar. Gênese da errância: a maldição; genealogia daeterna viagem: a expiação – donde a anterioridade deuma falta sempre grudada no indivíduo como umasombra maléfica. O viajante procede da raça de Caimque Baudelaire tanto apreciava.

Quando, séculos mais tarde, um nazareno bem-falantecomeça a subida do Gólgota para ser crucificado entredois ladrões, dizem – mas o Novo Testamento permanecesilencioso sobre esse ponto – que um indivíduo semnome, não nomeado e que vai se tornar inominável, serecusa a dar de beber ao homem a caminho dacrucificação. Por esse motivo, o sovina que não ofereceuma gota de água ao sedento foi condenado, também, àmaldição, e depois à errância por séculos e séculos.Tratava-se do judeu que dá origem ao Judeu errante,

Page 9: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

votado a caminhar eternamente, amaldiçoado, ao lado deCaim.

O camponês fratricida e o judeu egocêntricolembram que a condenação a não ter domicílio fixoacompanha a falta, o pecado e o erro. Desde então,associa-se a viagem sem retorno à vontade punitiva deDeus. A ausência de casa, de terra, de chão supõe, amontante, um gesto deslocado, um sofrimento causado aDeus. O esquema impregna a alma dos homens háséculos: judeus, ciganos, gitanos, boêmios, zíngaros, todaessa gente da viagem sabe que, um dia ou outro,quiseram obrigá-la ao sedentarismo, quando não lhenegaram o direito mesmo de existir. O viajante desagradao Deus dos cristãos, assim como indispõe príncipes, reis,homens do poder desejosos de realizar a comunidade daqual sempre escapam os errantes impenitentes, associaise inacessíveis aos grupos enraizados.

Todas as ideologias dominantes exercem seucontrole, sua dominação ou mesmo sua violência sobre onômade. Os impérios se constituem sempre sobre aredução a nada das figuras errantes ou dos povos móveis.O nacional-socialismo alemão celebrou a raça arianasedentária, enraizada, fixa e nacional, ao mesmo tempocm que designava seus inimigos: os judeus e os ciganosnômades, sem raízes, móveis e cosmopolitas, sem pátria,sem terra. O stalinismo russo procedeu da mesma forma,perseguindo também os semitas e os povos de pastoresdas repúblicas caucasianas ou sul-siberianas.

O petainismo francês elege as mesmas vítimasexpiatórias, enquanto celebra os sedentários regionais,locais, patriotas, nacionalistas, os homens da terra, osprodutos gauleses. Qual a falta atribuída àquelas figurasdesignadas? A de serem inassimiláveis à comunidade,irredutíveis, impossíveis de governar, de dirigir. Qual apunição? O campo de concentração, a permanência

Page 10: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

obrigatória num lugar, o confinamento como gado,cercado de arame farpado, e depois a destruição, a mortepor gás, como com os animais nocivos. O capitalismoatual condena do mesmo modo à errância, à ausência dedomicílio ou ao desemprego os indivíduos que ele rejeitae amaldiçoa. Que crime eles cometeram? Sereminassimiláveis ao mercado, a pátria dos homens dodinheiro. Qual o castigo? As pontes, as ruas, as calçadas,os porões, as bocas de metrô, as estações ferroviárias, osbancos de praças públicas – o aviltamento dos corpos e aimpossibilidade de um porto, de um repouso.

O viajante concentra estes tropismos milenares: ogosto pelo movimento, a paixão pela mudança, o desejoardoroso de mobilidade, a incapacidade visceral decomunhão gregária, a vontade de independência, o cultoda liberdade e a paixão pela improvisação de seusmenores atos e gestos; ele ama seu capricho mais do quea sociedade na qual vive à maneira de um estrangeiro,coloca sua autonomia bem acima da salvação da cidade,que ele habita como ator de uma peça da qual não ignoraa natureza de farsa. Longe das ideologias da aldeia natale da terra, do solo da nação e do sangue da raça, o errantecultiva o paradoxo da forte individualidade e saber seopor, de maneira rebelde e radiosa, às leis coletivas.Zaratustra, que odeia as cidades e a vaca multicolorida, éa sua figura tutelar.

Viajar supõe, portanto, recusar o emprego do tempolaborioso da civilização em proveito do lazer inventivo ealegre. A arte da viagem induz uma ética lúdica, umadeclaração de guerra ao espaço quadriculado e àcronometragem da existência. A cidade obriga aosedentarismo através de uma abscissa espacial e de umaordenada temporal: estar sempre num determinado lugarnum momento preciso. Assim o indivíduo é controlado efacilmente identificado por uma autoridade. Já o nômade

Page 11: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

recusa essa lógica que permite transformar o tempo emdinheiro, e a energia singular, único bem de que dispõe,em moeda sonante e legal.

Partir, ir atrás dos pastores, é experimentar um gênerode panteísmo extremamente pagão e reencontrar o rastrodos deuses antigos – deuses das encruzilhadas e da sorte,da fortuna e da embriaguez, da fecundidade e da alegria,deuses das estradas e da comunicação, da natureza e dafatalidade – e romper as amarras com os entraves e asservidões do mundo moderno. A eleição do planetainteiro como périplo equivale à condenação do que fechae subjuga: o Trabalho, a Família e a Pátria, para falarapenas dos entraves mais visíveis, mais identificáveis.

Como mônada autossuficiente, o viajante recusa otempo social, coletivo e coercitivo, em favor de umtempo singular feito de durações subjetivas e de instantesfestivos buscados e desejados. Associal, insociável,irrecuperável, o nômade ignora o tempo convencionado ese orienta pelo sol e as estrelas, pelas constelações e atrajetória do astro no céu; não tem relógio de pulso, masum olho de animal apto em distinguir as auroras, oamanhecer, as tempestades que se formam e se dissipam,os crepúsculos, os eclipses, os cometas, as cintilaçõesestelares; sabe ler a matéria das nuvens e decifrar suaspromessas, interpreta o vento e conhece seus hábitos. Ocapricho governa seus projetos relacionados com osritmos da natureza. Nada mais conta, exceto ele e seu usodo mundo – por isso ele procede dos banidos e dosrecusados. Quando põe o pé na estrada, ele obedece auma força que, surgida do ventre e do âmago doinconsciente, lança-o no caminho, dando-lhe impulso eabrindo-lhe o mundo como um fruto caro, exótico e raro.Desde o primeiro passo realiza seu destino. Nas trilhas enas veredas, nas estepes e nos desertos, nas ruas dasmegalópoles ou na desolação dos pampas, sobre a onda

Page 12: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

profunda ou no ar atravessado por invisíveis correntes,ele sabe o inevitável encontro com sua sombra – não temescolha.

Page 13: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

ANTES

Page 14: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

ESCOLHER UMA DESTINAÇÃO

Quando se olha o planisfério, de início não se percebebem as distâncias. A escala só tem um significado claro edistinto aos acrobatas em aritmética, aos superdotadosem cálculo. Ela me faz pensar no quiliágono, o polígonode mil lados cartesiano: concebível na mente, mas nuncano detalhe. Admito intelectualmente que essa figuraexista, mas não vejo todas as suas facetas. Do mesmomodo, concebo bem o afastamento do cabo Horn ou doestreito de Bering ou a significação de uma completavolta ao mundo; mas como não constatar que, em matériade geografia, topamos com as dificuldades habituaisreservadas à teologia com a questão dos nomes de Deus?De que modo dizer o mundo com um mapa que secontenta em representá-lo e reduzi-lo a convençõesconceituais?

De imediato, somos pegos neste estranho paradoxo: oplanisfério parece pequeno, e o mundo, vasto, ou então oinverso é que é verdadeiro: o planisfério é vasto, e omundo, pequeno. Pois, não obstante sua natureza e suadistância, todo lugar se atinge agora, com a modernidadedos transportes, em prazos bastante curtos. Os lugaresoutrora mais distantes – a Índia de Marco Pólo, a Áfricade René Caillié, o Oriente de Nerval, a Oceania deBougainville – podem ser alcançados por vias de acessotraçadas em mapas definitivamente desembaraçados deseus espaços em branco. Todas as destinações setornaram possíveis, questão de tempo. Nesse campo dospossíveis, como escolher um lugar? O que escolher? Aque renunciar. E por quais razões? Nas combinaçõespensáveis, como preferir, e por quê?

Também ai o determinismo genealógico se impõe.

Page 15: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Não escolhemos os lugares de predileção, somosrequisitados por eles. No registro elementar dos filósofospré-socráticos, cada um pode descobrir-se portador deuma paixão pela água, pela terra ou pelo ar – já o fogocircula no corpo mesmo é viajante. Os nômadesardorosos procedem de um elemento que os concentra,os contém, os animam, catalisa seus entusiasmos: o mar eas ondas dos navegadores, as montanhas e as planíciesdos andarilhos, o éter e o azul dos aviadores; esses trêspontos cardeais orientam um movimento no globo emrotação sob os dedos e nos mapas percorridos na suatotalidade e perscrutados no seu detalhe.

A seguir, combinações se agenciam entre oselementos: um quer a água fria do Ártico, outro, osoutros as correntes quentes do Pacífico; este aspira àsterras férteis, tépidas e úmidas da floresta tropical, aquelequer os solos queimados e calcinados do deserto sariano;o apaixonado pelo ar gélido dos picos himalaios não seinteressa pelas paisagens do amante das moções asiáticasnem pelos azuis e ocres do filho visceal do Mediterrâneo.Cada corpo busca reencontrar o elemento no qual sesente mais à vontade e que, outrora, nas horasplacentárias ou primeiras, o provedor de sensações e deprazeres confusos, mas memoráveis. Existe sempre umageografia que corresponde a um temperamento. Restadescobri-la.

Uma palavra, um lugar legíveis no mapa retêm,então, a atenção. Nome de um país, de um curso de água,de uma montanha, de um vulcão, de um continente, deuma ilha ou de uma cidade. O indistinto, o visceral, sereconhecem de súbito numa emoção desencadeada porum nome guardado na memória: ir ao Tibete, ver o rioAmur, escalar o monte Fuji ou o Etna, caminhar nascolinas de N’Gong, nadar no oceano Pacifico, chegar aGuernesey, visitar Adis-Abeba, andar pelas ruas de

Page 16: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Cirene, navegar na baía de Along – cada um dispõe deuma mitologia antiga fabricada com leituras da infância,filmes, fotos, imagens escolares memorizadas a partir deum mapa-múndi, num dia melancólico ao fundo daclasse. Depois se passa ao ato para realizar o sonho antesde morrer: estacionar em silêncio no local onde se juntamo Oriente e o Ocidente, no estreito de Bósforo; pararalgum tempo diante do começo de uma trilha africana emlaterito, o solo vermelho dos trópicos; sentir-se barrado,numa rua de Nova York, diante dos jatos de vaporexpelidos pelas bocas de esgoto; reter a respiração aosobrevoar as lagunas à beira do oceano Índico; constatarque o coração bate ao atravessar o equador ou o trópicode Capricórnio; estremecer de emoção ao cruzar ocirculo polar.

Sonhar uma destinação é obedecer à ordem quepronuncia, dentro de nós, uma voz estrangeira. Pois umaespécie de demônio socrático formula e traça aquele raioque calcina, em nosso interior, o indeciso, o impreciso ouo confuso. Como o filósofo de Atenas que se entregava aessa palavra demiúrgica, deixaremos a escolha de umlugar, a eleição de um destino a essa língua estrangeirafalada por nós através do nosso corpo – contanto queessa língua não se exprima, é claro, através da razão. Namultiplicidade dos possíveis, o demônio diz, resta àvontade consentir. Então o dedo se detém sobre oplanisfério nas regiões da alma correspondentes. Não secomete erro ao agir assim.

O corpo armazena imagens transformadas em ícones.E esses ícones, nenhuma cultura os celebrou tanto, emdetrimento do livro e do conceito, quanto a nossa. Otexto vai desaparecer, o livro também, em favor designos icônicos, pixelizados, escaneados; o real recua emsua espessura carnal em favor da sua modalidade virtual:atingimos o auge da imagem e, como sempre numa tal

Page 17: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

ocasião, o excesso mata a possibilidade mesma das quepoderiam verdadeiramente significar. Os lugares domundo convergem para as telas informáticas outelevisivas, tristemente semelhantes à sua realidade, masengaiolados, limitados pela exigência da fidelidadesumária. A probabilidade da viagem ricamente sonhadadiminui com a redução do mundo a suas aparências.Triunfo platônico...

Donde a necessária celebração do livro e do papel éconstituinte de um imaginário eficaz e rico. É preferívelos romances de Júlio Verne ou os de Paul d’lvoi aosvídeos ou os discos carregados de imagens digitais odesejo de viagem se alimenta melhor de fantasmasliterários ou poéticos do que de propostas indigentesporque semelhantes demais a uma realidade sumária. Agenealogia de ícones inconscientes úteis para escolherdestinações ganha em celebrar o texto, o livro, oromance, o poema, o relato de viagem. Qualquer linha deum autor, mesmo medíocre, aumenta mais o desejo dolugar descrito do que fotografias, muito menos filmes,vídeos ou reportagens. Entre o mundo e nós,intercalaremos prioritariamente as palavras.

Page 18: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

AUMENTAR O DESEJO

A viagem começa numa biblioteca. Ou numa livraria.Misteriosamente, ela tem lugar ali, na claridade de razõesantes escondidas no corpo. No começo do nomadismo,encontramos assim o sedentarismo das prateleiras e dassalas de leitura, ou mesmo do domicílio onde seacumulam os livros, os atlas, os romances, os poemas,todas aquelas obras que, de perto ou de longe,contribuem para a formulação, a realização, aconcretização de uma escolha de destino. Todas asseções de uma boa biblioteca conduzem ao bom lugar: odesejo de ver um animal extravagante, uma borboletarara, uma planta quase inencontrável, um veio geológiconuma pedreira, a vontade de andar sob um céu como ofez um poeta, tudo leva ao ponto do globo cujo sinalcarregamos às cegas.

O papel instrui as emoções, ativa as sensações eamplia a possibilidade próxima de percepçõespreparadas. O corpo se inicia nas experiências vindourasa partir de informações generalizadas. Todadocumentação alimenta a iconografia mental de cada um.A riqueza de uma viagem requer, a montante, adensidade de uma preparação – assim como experiênciasespirituais convidam a alma à abertura, ao acolhimentode uma verdade capaz de infundir. A leitura age comorito inicíátíco, revela uma mística pagã. O aumento dodesejo desemboca a seguir num prazer refinado, elegantee singular. A existência de um erotismo da viagem supõeque se ultrapasse uma necessidade natural, a fim desuscitar a ocasião de regozijo artificial e cultural. Chegara um lugar do qual tudo se ignora condena à indigênciaexistencial. Na viagem, descobre-se apenas aquilo de que

Page 19: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

se é portador. O vazio do viajante gera a vacuidade daviagem; sua riqueza produz a excelência dela.

Portanto, livros, e em primeiro lugar o atlas – bíbliado nômade necessariamente abastecido de geografia, degeologia, de climatologia, de hidrologia, de topografia,de orografia. Num mapa se efetua sua primeira viagem, amais mágica, talvez, a mais misteriosa, com certeza. Poisele evoluí numa poética generalizada de nomes, traçados,volumes desenhados e cores. As convenções ensinam omarrom das altitudes, das cadeias de montanhas quebarram e recortam os continentes: aqui, as Rochosas e acordilheira dos Andes que esculpem verticalmente ocontinente americano; ali, a linha sinusoidal queatravessa a Europa de oeste a leste: Alpes, Cárpatos,Cáucaso e Himalaia; elas ressaltam o azul dos abismosmarinhos, das profundezas sombrias: manchas no oceanoPacífico em meio às quais pululam os arquipélagosequatoriais, filipinos, melanésios e polinésios; cadeiassubmarinas, fossas, bacias e fraturas que retalham ouescavam o fundo dos oceanos; noutra parte, as artérias,veias e capilares dos rios que um uniformemente azulpercorre: jato longilinear do fluxo até as embocaduras,tremor das fontes, percursos elétricos e serpentinos dasorigens: o Amazonas, o Mississipi, o Saint-Laurent, oNiger, o Nilo, o Ganges, o rio Amarelo como umacoronária, uma carótida, uma aorta, uma jugular de umboneco anatômico gravadas numa prancha de Vesálio.

Depois, virada a página, longe do planeta contadosegundo os acidentes naturais, um mapa político mostrao mesmo mundo, mas desta vez de acordo com ostraçados culturais feitos pelos homens. Lá onde ageomorfologia e a geologia obedecem aos caprichos dasforças telúricas, os planisférios desenhados pelos atoresda história fragmentam o real em peças de um quebra-cabeças cuja combinação supõe longas guerras,

Page 20: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

intermináveis conflitos. As fronteiras são regadas desangue, movem-se, modificam-se: a Europa central,depois do fim do comunismo, obedece a outros traçadosresultantes de divisões, parcelamentos, rupturas. Novospaíses, fim de antigas fórmulas. Antes a Áustria-Hungria,há pouco a Iugoslávia e a Tchecoslováquia, hojedesaparecidas sob o peso de novas vontades políticas:República Tcheca, Eslováquia, Eslovênia, Croácia,Bósnia-Herzegovina. Aniquilação do império soviético:as extravagâncias humanas nada significam. Do ponto devista da eternidade, a geografia triunfa, a história não émais que espuma.

Além dos mapas físicos, marítimos e políticos, osatlas propõem igualmente o traçado das comunicações edos fusos horários: depois da geologia, da geografia, dahistória e da política, a economia. Pois as linhasmarítimas, as ligações aéreas, as distâncias em milhas, osnúmeros a acrescentar para obter as horas locais, asestradas, as ferrovias, os aeroportos correspondem àstrocas: fluxo de homens e mulheres, circulação depessoas, idas e vindas de mercadorias, transferências deinformações, facilidades das vias traçadas em terra ar emar a fim de conduzir engenheiros, comerciantes,banqueiros, industriais, homens de negócios ao lugar desuas empreitadas. Entre eles, a classe inocente dosturistas a caminho do sol, dos lazeres e dos gastossuntuários de suas economias anuais.

Rotas de navegação, portanto: Port-Louis aBombaim, para compreender a população das IlhasMaurício [no oceano Índico]; Nova York ao Rio deJaneiro, a fim de perceber as relações entre as duasAméricas; Londres a Arkhangelsk, para ver o que liga aEuropa mercantil do Mar do Norte ao mercado russo naentrada do Mar Branco. Linhas aéreas, como ramalhetesem forma de guarda-chuva ou de sombrinha sobre o

Page 21: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

mundo: todas as grandes cidades em contato, em relação,através de redes. Além disso, ferrovias com trensintermináveis: o Transiberiano, claro, mas também oQuebec-Vancouver, atravessando de leste a oeste oCanadá, o Cairo-Cartum, acompanhando o curso do Nilo,o Bombaim-Benares e outras destinações míticas. Portoda parte motores e homens conduzidos, deslocados,transportados em migrações perpetuamente reiteradas.Idas e voltas, idas sem volta. O planeta se faz ouvir emtoda a sua superfície por essas trocas de indivíduos e deobjetos, de informações e de projetos.

O mundo não é o que parece, pois o centro degravidade das projeções nos engana com ficções. Ummapa enuncia a ideia que se tem do mundo, não suarealidade. Quando os primeiros cartógrafos propõemseus desenhos, eles deixam transparecer uma teologiauma concepção da relação entre o divino e o humano, oceleste e o terrestre, confessam a ação da épocametafísica sobre eles. Seu mundo coincide com o mundo,e o mundo conhecido, com o único existente. Fora dessemundo, nada: água e depois vazio. Todos os mapascolocam como epicentro o núcleo de sua representaçãointelectual. Na maioria das vezes, a imagem e o reflexode si. A visão soviética do mundo refutava a dosamericanos. A dos chineses de hoje ignora totalmente anossa, servida pela projeção de Mercator que instala aEuropa bem no meio das terras representáveis.

Para organizar esse real diverso, os geógrafosrecorrem à geodésia. Eles matematizam o real,geometrizam-no e encaixam-no em fusos, latitudes elongitudes. Desenham trópicos, um equador, doiscírculos polares, um ártico, o outro antártico, traçam ummeridiano que atravessa Greenwich no seu centro e seamarra aos pólos. O conjunto permite um quadriculado euma localização possível por graus. Nada melhor para

Page 22: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

obter um tipo de visão panóptica e controlar adiversidade a fim de produzir uma unidade legível ecodificável. O devaneio do viajante circula nesse mundode marcas e linhas, cifras e números de que se alimenta odesejo nômade nas primeiras horas.

Certamente o atlas diz o essencial, mas não tudo.Falta a seu prejulgamento conceituai uma carneacrescentada pela literatura e pela poesia. Pois o poeta,mais que qualquer outro, instala seu corpo subjetivoexatamente no lugar freqüentado por sua consciência esua sensibilidade. Todas as suas emoções, sensações,percepções, todas as suas histórias singularesamadurecem em sua alma fantasiosa e um dia resultamnum texto curto que oferece a quintessência desinestesias fantásticas: sentir cores, degustar perfumes,tocar sons, ouvir temperaturas, ver ruídos.

Praticar exercícios confirma que viver supõedesregramento de todos os sentidos, para depois reativá-los e recapitulá-los no verbo. Escrever um poema, nabeirada de um convés diante da água de um imensoestuário, junto à janelinha de um avião que sobrevoa aTransilvânia, num café africano perdido em meio amilhares de hectares sem vivalma, rabiscar o papelamarrotado num saguão ao aeroporto, num quarto dehotel egípcio onde a ventilação joga o ar sobre a nudezde um corpo fatigado e pedir às palavras o poder dasfornalhas alquímicas despejar no cadinho da experiênciaaquilo capaz de tornar incandescentes os metais e obter oouro de um punhado de imagens que permanecem.

Ler um poema permite chegar ao imaginário de umasubjetividade que recebe a infusão do lugar. Daí ascolisões intelectuais, as elipses espirituais e mentais, osfeixes afetivos que solicitam a alma, incitam os sentidos.O poeta transforma a multiplicidade das sensações numconservatório reduzido de imagens incandescentes

Page 23: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

destinadas a ampliar nossas próprias percepções. TodosOS viajantes narram suas peregrinações em cartas,cadernos, relatos. Somente um pequeno número elevaseus deslocamentos à quintessência, numa coletânea depoemas. A China de Claudel, o Tibete de Segalen, asAntilhas de Saint-Jhon Perse, O Equador de Michaux, oMéxico de Artaud, a Europa de Rilke – e mesmo a poesiados videntes que vivem e povoam suas cidades comovisionários, Apollinaire em Paris, Pessoa em Lisboa ouBorges em Buenos Aires...

Depois do Atlas e do Poema, essas duas formas aposteriori da sensibilidade, é a vez da Prosa. Ela exprimediferentemente, de maneira menor, mais diluída, o que opoeta transfigura em cintilâncias. Os relatos de viagemproliferam em detalhes. Às vezes registram dia após diao desenrolar de um pobre uso do tempo. Lá onde o mapae os versos conceitualizam de forma absoluta, praticandoa abstração da quintessência, a prosa oferece um ritmomais lento, mais longo. Ela não tem pressa. Como acorrespondência. Nela se fala de uma paisagem, de umarefeição, de um encontro, de um monumento, de umaemoção, de uma fadiga; descreve-se um trajeto, osdetalhes de um itinerário, contam-se anedotas, peripécias,O material parece mais abundante que num soneto ou emversos livres, mas não há dúvida de que se revela menosrico.

Restam os livros que permitem obter informaçõespráticas. Os Utilitários, os Guias. Sonhamos com elestambém, mas para outras finalidades, outros auxílios.Endereços, referências, indicações técnicas paratelefonar, despachar o correio, vestir-se, fazer a mala,comer, alojar-se: detalhes sobre especialidades culinárias,vinhos, bebidas, horas de refeições, hábitos sociais, taxasde câmbio, uso dos táxis; sínteses histórias, indicaçõespara visitar um museu, observar uma obra numa

Page 24: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

determinada sala, datas de fundação; notas sobre a fauna,a flora, o clima; passagens literárias clássicas, osincontornáveis textos escolhidos de viagem: resumos decivilização, planos gerais e em minúcia das cidades,nomes de ruas, mapas, Um breviário para uma vidacotidiana no detalhe. Livros menos para ler do que parafolhear, percorrer, manusear, usar e tornar a usar.

Na verdade, o Guia, a Prosa, o Poema e o Atlasoferecem a ocasião daquilo que Plotino chamava umadialética descendente: detalhes, lembranças, ideias,conceito, tudo contribui para a solicitação do desejo,descobrimos, sustentamos, alimentamos o desejo depoiso usufruímos, ele nos constrói tanto quanto oconstruímos. De uma maneira acima de tudo platônica,solicitamos a ideia de um lugar, o conceito de umaviagem, e então partimos para verificar a existência real efactual do local cobiçado, entrevisto pelos ícones, pelasimagens e pelas palavras. Sonhar um lugar nesse estadode espírito, permite menos encontrá-la do quereencontrá-lo. Toda viagem vela e desvela umareminiscência.

Page 25: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

ENTREMEIO I

Page 26: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

HABITAR O ENTREMEIO

Em que momento começa realmente a viagem?A vontade, o desejo, a leitura, certamente tudo isso

define o projeto; mas a viagem mesma, quando se podedizer que começou? É quando decidimos partir para umlugar e não um outro? Quando fechamos a mala,afivelamos a mochila? Não. Pois há um momentosingular, identificável, uma data de nascimento evidente,um gesto signatário do começo: é quando giramos achave na fechadura da porta de casa, quando fechamos edeixamos para trás nosso domicílio, nosso porto dematrícula. Nesse instante preciso começa a viagempropriamente dita.

O primeiro passo instala, de fato, um entremeio quetem a ver com uma lógica especial: não mais no lugardeixado, ainda não no lugar cobiçado. Flutuando,vagamente ligado a duas margens, num estado deausência de peso espacial e temporal, cultural e social, oviajante penetra no entremeio como se abordasse ascostas de uma ilha singular. Cada vez mais longe do seudomicílio, cada vez menos distante da sua destinação,circulando nessa zona branca, neutra, o indivíduo escalaficticiamente uma encosta ascendente, atinge um pontozenital, para depois iniciar a descida. Vem-se de, vai-separa; acumulam-se os quilômetros que separam da nossacasa, reduzem-se os que nos aproximam da outra. Essemundo intermediário obedece a leis próprias queignoram as que regem as relações humanas habituais.

De avião, de barco, de trem ou de ônibus, partilhamosum espaço comum no tempo de passagem de um ponto aoutro. A cabine de voo, o convés, o vagão e o assento sãohabitáculos que oferecem ocasiões de proximidade ou

Page 27: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

mesmo de promiscuidade, que forçam ao relacionamentoou obrigam à conversação, Nesse microcosmocomunitário tem lugar uma intersubjetividade limitada notempo. Ao chegar no aeroporto, na estação ferroviária, noporto, ou rodoviária, essa sociedade, na maioria dasvezes, se desfaz. Ela se desagrega tão logo as razõesaleatórias de estar junto desaparecem.

Pode-se trocar palavras, simpatizar, contar a vida semcomplexos, sem contenção, pois o ambiente permite issode maneira estranha. Reina nesses lugares uma atmosferaparticular e consubstanciai à circunstância do entremeio:um tipo de abandono semelhante ao das salas de esperamédicas ou, melhor ainda, dos consultórios de analistas.Longe da rigidez social e das conveniências civilizadas,das regras coletivas e dos hábitos sociais, o viajante seacerca de um mundo suspeito de pessoas dadas àconfidência, daquilo que Heidegger chama a tagarelice:um tipo de fraqueza da palavra, uma práticacompensatória, talvez, da angústia gerada pelo abandonodo domicílio e pela chegada a um mundo sem referência.

Nessa troca de palavras por elas mesmas, que pareceser uma finalidade e não um meio de se comunicar, asuperfície verbal prevalece sobre a profundidadeintelectual. Contam-se coisas sem importância, detalhesde passagens da existência, fragmentos de uma vidainsípida são transformados em peças exemplares capazesde nos fazer parecer importantes, essenciais, notáveis. Noentremeio, a proximidade gera a tagarelice e seus objetosde predileção: as peripécias da viagem, a confidênciabanal, vagas considerações sobre o estado do mundo, aautobiografia transfigurada em epopéia.

Lugar do verbo depreciado, o entremeio é igualmenteo de cruzamentos simétricos. Sua população é formadapor um fluxo e refluxo de ondas: um vai para, outroretorna de – os que partem vestem, a caminho, as roupas

Page 28: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

dos que voltam. Os primeiros iniciam o movimentoascendente da sua viagem, deixam seu domicílio paratrás, os segundos abordam o movimento descendente eretornam para casa. Nesse espaço mental se cruzampessoas ávidas de ver e indivíduos saciados de coisasvistas. Os que aspiram às lembranças se aproximam dosque trazem uma quantidade importante delas. Aimpressão de espelho reina nesse lugar: cada um se senteo inverso do outro, seu exato contraponto, como asemelhança que existe entre o avesso e o direito damesma peça. As forças opostas se equilibram e criamuma estranha suspensão mental.

Esse lugar de extraterritorialidade não parecegovernado por nenhuma língua, nem por tempo algum.De fato, que idioma falar quando se entra no avião? O dopaís que se deixa ou o do país de destinação? Em quelugar viajamos, quando confinados no ar? O da lei quesupõe o espaço aéreo propriedade do país sobrevoado?Que ponto do céu permite dizer claramente que setranspôs uma fronteira? O mesmo vale para o navio quecruza águas internacionais. E também para o tempo deuma destinação no qual se impõe uma defasagemhorária: hora do lugar de partida ou do lugar de chegada?Hora específica de um tempo universal? Em quemomento girar os ponteiros do relógio de pulso?Exatamente na metade dos quilômetros percorridos? Naverdade, todos se submetem ao inglês universal e aoritmo socialmente imposto pelas bandejas de refeiçõesdistribuídas nos voos de longo curso. Somente elesoferecem marcos de uma aparência social: o tipo dealimentação obriga a viver segundo a hora do despertarou da meia-jornada, de almoço ou da janta.

No entremeio, quando os referenciais de civilizaçãodesaparecem, o corpo tende a reencontrar seusmovimentos naturais e obedece mais ardentemente à

Page 29: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

soberania dos ritmos biológicos: come e bebe quandotem fome e sede, dorme quando tem sono. Esse tempoparticipa de maneira longínqua, porque demasiado breve,das experiências de encerramento e confinamentopraticadas pelos que estudam grutas e cavernas, osespeleólogos. Ao apagar os cálculos, as máquinas demedir o tempo, ao suprimir as referências naturais(nascer e por do sol, alternância do dia e da noite), ecorpo se orienta para a sua verdade profunda e visceral,animal. No entremeio se experimenta essa subjetividaderadical que dá impulso a lógicas desconhecidas de cadaum. Ao celebrar essas descobertas com as duraçõesbiológicas, ao jogar com as defasagens entre corpo sociale corpo natural, civilização e biologia, cadaindividualidade conhece o prazer de sentir seu corpovivo, trabalhando por algo maior e mais forte que ele.

O entremeio gera assim uma geografia particular,nem aqui nem alhures, uma história própria, nemenraizada nem atópica, um espaço novo, nem fixo neminapreensível, uma comunidade nova, nem estável nemdurável. Lugar dos cruzamentos, superfície dasextraterritorialidades, ele induz ilhas de sentidoprodutoras de arquipélagos aleatórios destinados àdecomposição. Entre o lugar deixado e a terra que se pisaao chegar, trazido sobre a água, nos ares ou deslocando-se numa translação que isola do chão, o viajante descobrealgumas novidades metafísicas: as alegrias dacomunidade pontualmente realizada na insignificânciavivida em comum, a prática da duração como um escoarassombroso, a impressão de habitar um localinteiramente produzido pela velocidade do deslocamento.É nessa espera mágica que a viagem solidamente seinicia.

Page 30: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

DURANTE

Page 31: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

REALIZAR A AMIZADE

Certamente se pode viajar sozinho, mas com a certezade estar sempre diante de si mesmo, noite e dia, nascircunstâncias, nas horas fastas e nefastas. Momentosfelizes ou momentos tristes, instantes melancólicos oualegres, desejo de isolamento ou vontade decompartilhar: em todos esses casos teremos de nossuportar, aceitar nossa própria companhia. Nem sempreessa é a melhor fórmula. Mas se a solidão implica acerteza de viver permanentemente consigo mesmo, ogrupo, por sua vez, impede que se possa usufruir de si.Sozinho ou com os outros: a alternativa não parece muitoboa. Nem a viagem solitária, nem sua fórmula tribal ougregária oferecem boas ocasiões para realizar umaverdadeira comunidade hedonista.

Em troca, viajar a dois me parece ilustrar umafórmula romana, pois permite uma amizade construída,fabricada dia após dia, peça por peça. Nosso Ocidentecristianizado não aprecia a amizade, que se transformounuma virtude suspeita porque antinômica com a religiãosocial, familista e comunitária. Além disso, a vogaburguesa do casamento por amor torna caduco esseexercício pagão: no casal se pede, agora, que o outrodesempenhe o conjunto dos papéis afetivos, inclusive ode confidente ou de companheiro. A conjugalidade, acoabitação, o tropismo genitor impedem a amizade comopossibilidade existencial e ética. excelência dessa figurada intersubjetividade antiga desaparece completamentenas práticas modernas do companheirismo, da turma, darelação mundana, de convívio pobre destinado a conjurarsem esforço, solidão. As pessoas almoçam, jantam,passam juntas um fim de semana, distribuem papéis de

Page 32: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

padrinho; ou madrinhas por ocasião do batismo dosrespectivos filhos; os cônjuges participam dos encontrosfraternos, é verdade, mas não se vive mais a dois, não seacredita mais na amizade, restando apenas enterrá-lacomo o cadáver de uma bela história decomposta.

Viajar a dois supõe a eleição. Nada pior que ocompanheiro obrigatório, que se vale de um destinocomum para se impor como tal. Pobre de nós quandoesse parasita vem se aproveitar da nossa solidão, esobretudo da dele, para nos infligir sua conversa, suapresença, sua tagarelice. Malditos os grupos que queremnos agregar à sua comunidade indesejável, porque nãosuportam um indivíduo isolado, sem vínculos manifestose visíveis! Viajar a dois permite distanciar do grupo osindesejáveis solitários, bem como escolher indivíduosrealmente eleitos. Dois nos dispensa dos dissabores deum só e dos inconveniente de muitos.

Nem a sós, nem com vários: circular com o amigopermite evitar a angústia multiplicada do trajeto solitário,da barreira das línguas estrangeiras, dos incômodosburocráticos nas fronteiras com funcionários e policiaisde todo o mundo. O estrangeiro que circula livrementenum país inquieta as autoridades, sobretudo onde nãoreina a democracia, isto é, na maioria dos lugares doplaneta. A amizade serve de tônico necessário para aconjuração do estado de fragilidade consubstancial aoafastamento do domicílio, longe das referênciashabitualmente tranquilizadoras do animal em nós.

No exercício da amizade, o outro é o estranho menosestranho possível. Com ele se compartilham as palavras,o silêncio, a fadiga, o projeto, a realização, o riso, atensão, o relaxamento, a emoção, a cumplicidade. Suapresença se manifesta antes da viagem, durante e depois.Em sua fase ascendente e em seu movimentodescendente, no tempo do desejo, no do acontecimento e

Page 33: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

depois no da lembrança e da reiteração, ele está presente,indefectível e necessário. No instante, no momento, eletorna possível a única verdadeira comunidade pensável, adas cumplicidades sem corpo que o tempo melhora,aperfeiçoa. A viagem constrói a amizade tanto quanto oinverso. O mesmo tempo vivido no modo da capilaridadealimenta substancialmente essa transfiguração de umpelo outro.

No detalhe da viagem, a amizade permite adescoberta de si e do outro. Vivemos sob os olhos dele,dia a dia, em estados de espírito diferentes, múltiplos econtraditórios. E a fadiga, como se sabe, contribui para aexacerbação das verdadeiras naturezas. Caminhar, ir evir, comer pouco e mal, beber muito ou nãosuficientemente, levantar cedo, deitar tarde paraaproveitar ao máximo o lugar e as circunstâncias, todasessas ocasiões colocam o corpo num outro estado. Maisfrágil, mas também mais receptivo, esfolado, com aemoção à flor da pele, esmerado como um instrumentode alto valor, o corpo é como um sismógrafohipersensível, portanto suscetível em excesso. Nessalógica em que o infinitesimal conta por muito, a amizadese manifesta em todo o seu esplendor.

Essa virtude sublime se vive, não se sonha. Arealização de uma viagem formula uma comunidadesingular: lá onde o amor parece frágil, dependendo douso dos corpos carnais, a amizade conhece umaverdadeira força, despreocupada e independente dasaflições amorosas. A amizade, esse amor menos o corpo,gera um uso comum do tempo, do espaço e da energia.Entre amigos, então, tudo é comum a partir do princípiodo contraponto: a força de um compensa a fraqueza dooutro, a fadiga do primeiro convoca a resistência dosegundo, a carência aqui induz à plenitude ali.

Um mesmo magnetismo circula entre os dois seres e

Page 34: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

irriga as almas com um ardor sem igual. À maneira daharmonia musical, as diferenças combinadas produzemcomplementaridades, completudes, um tipo de obramelodiosa. A soma das duas entidades produz umaterceira figura que decide o conteúdo, a forma e odesenrolar da viagem. Os apetites, as aspirações, asdeterminações, as vontades pulverizam os cansaços ostédios, as negligências, as fraquezas. A improvisaçãonômade supõe levar em consideração um desejo terceiroe, longe de barrar o movimento de um, esse cuidado ceranovos possíveis para o outro. Tudo o que um indivíduosozinho conseguiria com esforço poupa os dois amigosreunidos, depois os galvaniza e mobiliza a energia nacapacidade de uma realização comum.

Numa viagem digna desse nome, o amor se veriaexposto, fragilizado. Por exemplo, na relação corn ooutro sexo, desviada ou interdita em sua espontaneidadenuma viagem de amantes. A possibilidade de encontrarlivremente as mulheres de um país, sem necessariamentebuscar uma aventura sexual, é necessariamente entravadapela presença da esposa, da companheira, da namorada.Do mesmo modo, as mulheres sofrem com o parasitismode um marido, de um namorado ou de um companheironas relações delas com os homens autóctones. Comogêmeos, como andróginos alegres, os amigos constroema viagem e esta, em contrapartida, num gesto paradoxal esingular, os constitui na sua intimidade. Partir com umamigo oferece a certeza de ir ao encontro de prazeresdiamantinos.

Page 35: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

ORGANIZAR A MEMÓRIA

O poeta recluso no Harar convidava aodesregramento de todos os sentidos e à necessidade defixar vertigens. Como proceder com os enlevos induzidospela viagem? Escrever? Anotar? Desenhar? Enviarcartas? E, nesse caso, cartas breves ou longas? Preferircartões-postais? Fotografar? Transportar consigocadernos nos quais se consignam croquis e frases,palavras e silhuetas, cifras e números? Com capa decouro ou de papelão, com folhas presas ou soltas, bemorganizadas ou negligentemente dispostas: quefetichismos para esses objetos cotidianos presentes emtodas as circunstâncias? O viajante não poderia dispensarum suporte para fixar os abalos consubstanciais aosdeslocamentos.

Contudo do perpétuo fluxo de informações nunca seretém a totalidade. A viagem, de fato, é uma ocasião paraampliar os cinco sentidos: sentir e ouvir mais vivamente,olhar e ver com mais intensidade, degustar ou tocar commais atenção – o corpo abalado, tenso e disposto a novasexperiências, registra mais dados que de costume. Oviajante percebe-se menos preso aos detalhes docotidiano do que submetido à prova fenomenológica:imerso no real, ele se conhece através do jogo daintencionalidade e da consciência, experimenta serforçado a emergir como acontecimento e do nada ondesão encontrados os resíduos da decisão. Viajar é umaintimação a funcionar sensualmente por inteiro. Emoção,afeição, entusiasmo, espanto, interrogação, surpresa,alegria e estupefação: tudo se mistura no exercício dobelo e do sublime, do despaisamento e da diferença.

Page 36: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Registrar, portanto. Registrar aquilo que, nodesenrolar temporal e fluido do tempo real, produzsentido, e quintessência a viagem. Inscrever, marcar nafita da cronologia durações magníficas, instantes quereúnem e resumem a ideia e depois sintetizam o espíritodo deslocamento. A memória funciona assim: extrai daimensidão longa e lenta do diverso os pontos dereferência vivos e densos que ajudarão a cristalizar,constituir e endurecer as lembranças. Eis aí a maneira darecordação: o que acompanha o espírito após terabandonado há muito a geografia. Nessa ordem de ideias,a memória deve ser trabalhada e talhada como uma gemabruta.

Em primeiro lugar, considerar esse bloco de imagense de sensações ao qual se reduz sempre uma viagem emsua imediatez. Emoções difusas, percepçõesdesordenadas, colhidas em fragmentos, pedaços de realsem relações a priori, a não ser sua recepção num lugar,num tempo, numa hora e num local precisos. Quando seestá no meio do acontecimento, só existe a multiplicidadede informações vividas em desordem: profusão deflechas, de solicitações, de fogos em feixe, nada havendode sensato aqui e agora. O corpo se abre à experiência,registra e armazena o difuso, o diverso.

Assim, aceitar num primeiro momento o odor de ummercado oriental, o cheiro de incenso, de açafrão ou desândalo de um templo budista, querer as cores arranjadas,azuis e violetas de um por do sol no alto das dunas doSaara, acolher com benevolência o calor seco, brutal edesidratante de um deserto africano, escutar com enlevoos gritos de aves raras ou o berro de um macaco, ocoaxar do sapo-boi ou o rangido de milhares de insetostropicais, saborear a sombra das ruelas, o frescor dasruas, a obscuridade das passagens nas cidadesmediterrâneas, beber a água gelada de uma fonte

Page 37: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

medieval perdida numa cidade contemporânea, deixar aboca ser tomada pelo gosto do mamão, pela violênciaverde de um limão, pelo amargor no entantocaramelizado de um café queniano, ou mesmo pelotabaco egípcio perfumado de maçã ou por um ópiochinês, tocar a granulação, sentir a porosidade das pedrascaídas de um templo siciliano onde vaguearam filósofospré-socráticos – sentir violentamente o corpo existir nadoçura de um instante vivido no modo mágico, mirífico emagnífico.

A seguir, esgotado o cotidiano, absorvidas asmiríades sensuais, ordenar, traçar nesse bloco deemoções linhas de força, linhas de fuga, abrir mapassagem às energias, produzir sentido, organizar,construir. Donde a necessidade de elaborar a memória,de dominá-la com método. Fixar esse conjunto dispersoexige o abandono, o esquecimento, a recusa do queatinge insuficientemente a carne e só deixa vestígios namemória clássica. Fixar o que fica nos músculos, nasarticulações, no sangue, debaixo da pele, nas cadênciasda respiração ligadas aos ritmos profundos e aosmetabolismos misteriosos, mas de maneira a prioriinvisível, impossível de solicitar pela memória clássica.A matéria recorda, os átomos não esquecem mas oreservatório mnemônico tradicional é vazio dessasreferências. Portanto, fixar com o auxílio de técnicas nas quaisnos sentimos mais à vontade: a aquarela ou a fotografia,o poema ou o croqui, a nota breve ou o longodesenvolvimento, a carta ou o cartão-postal. Cadasuporte convoca um tempo singular: de um lado avelocidade excessiva da máquina fotográfica, de outro alonga paciência da escrita poética trabalhada, aqui aimagem, ali o texto, num caso a cor misturada com água,num outro o traço seco e cursivo, o verbo desdobrado ou a palavra resumida, ou mesmo a fita gravada que

Page 38: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

conserva a lembrança de uma noite em que se ouviam osbatráquios enormes e os insetos monstruosos docontinente africano. Pouco importa o suporte, desde quea memória produza lembranças, extraia quintessências,elabore referências com as quais organizar mais tarde oconjunto da viagem. No amontoado e na balbúrdia daexperiência vivida, o vestígio cartografa e permite olevantamento de uma geografia sentimental.

Mais tarde, quando o tempo do acontecimento estiverlonge de nós, restam instantes congelados em formascapazes de reativação imediata. Esses vestígiosjustificam menos a viagem do que a tornam parcialmenteimortal. Nada pior do que um dilúvio de vestígios, umaabundância de fotografias – como a histeriacontemporânea e turística que consiste em registrar tudocom seus aparelhos digitais e se arrisca a reduzir suapresença no mundo à mera atividade de filmar... Nadamais inútil que uma quantidade imensa de aquarelas,poemas, desenhos, páginas que tornam impossível otrabalho da memória e que, ao contrário, a desarranjam,aumentando a confusão e remetendo o diverso ouconfuso ao ainda mais diverso e confuso.

Entre a ausência de vestígio e seu excesso, a fixaçãodos instantes fortes e raros transforma o tempo longo doacontecimento num tempo curto e denso: o do adventoestético. Trata-se de, com longas durações, produziremoções breves e tempo concentrado no qual secomprima o máximo de emoções experimentadas pelocorpo. Um poema bem-sucedido, uma foto expressiva,uma página que fica supõem a coincidência absolutaentre a experiência vivida, realizada, e a recordaçãoreativada, sempre disponível não obstante o passar dotempo. De uma viagem só deveriam restar uns três ouquatro sinais, cinco ou seis, não mais que isso. Naverdade, não mais que os pontos cardeais necessários àorientação.

Page 39: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

INVENTAR UMA INOCÊNCIA

É difícil escapar das ideias preconcebidas de nossaépoca sobre a diversidade do mundo, na medida em queelas procedem, em sua maior parte, de um velhopatrimônio cultural deletério: o espírito dos povos, ocaráter das raças, o temperamento das nações e outrasconsiderações oriundas da antropologia, dos relatos deviagem, da filosofia política, mas também de umaespécie de bom senso popular assentado. É estranhoencontrar essas teorias errôneas tanto em Hegel, quandoescreve sobre a filosofia da História e busca o surgimentoda Razão no Real, quanto no sr. Homais, quando volta deferias no estrangeiro trazendo, como toda a bagagemintelectual, a mesquinha digestão de um guia de viagem.Ir a qualquer lugar é, na maioria das vezes, dirigir-se alugares-comuns associados desde sempre à destinaçãoeleita.

Encerrar povos e países em tradições reduzidas, elasmesmas, a duas ou três pobres ideias é confortador. poissempre tranqüiliza submeter a inapreensívelmultiplicidade à unidade facilmente controlável: assim,africanos dotados para o ritmo, chineses fanáticos porcomércio, asiáticos em geral talentosos para adissimulação, japoneses polidos ao extremo, alemãesobcecados pela ordem, suíços bem conhecidos por sualimpeza, franceses arrogantes, ingleses egocêntricos,espanhóis orgulhosos e fascinados pela morte, italianosfúteis, turcos desconfiados, canadenses hospitaleiros,russos associados a um senso agudo da fatalidade,brasileiros hedonistas, argentinos roídos peloressentimento e pela melancolia, enquanto os magrebinos(africanos do Norte] se caracterizam, evidentemente, pelahipocrisia e a delinqüência.

Page 40: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

permitem explicar – pelo menos é o que se crê – o jazzamericano e as finanças pós-maoístas, a genealogia dofascismo europeu e a legendária neutralidade helvética, ainsularidade genética dos anglo-saxões e a sangrentatourada ibérica, a exceção nacional francesa e adramática máfia moscovita depois da Glasnost, aimigração à América do Norte, terra de acolhida dosaventureiros e dos colonos, o corpo alegre das praias deCopacabana e a longa e glacial comoção do tango nascaves de Buenos Aires, mas também as taxas decriminalidade elevadas nos países europeus, poucoimportando a verdade, contanto que haja uma aparênciade sentido. Se fosse feita uma lista não exaustiva dosjulgamentos e das opiniões de uns sobre os outros, quemsairia incólume?

Algo de verdadeiro pôde fazer sentido, em todasessas quinquilharias intelectuais, na época dosfechamentos nacionais e das tradições locais, quando aviagem era rara, o turismo inexistente e o tempo maislento, sempre igual desde milênios em espaçospreservados da comunicação e das trocas. Nos temposantidiluvianos, certamente se terá podido constatar ainfluência religiosa ou ideológica de grandes visões domundo sobre tradições hospitaleiras ou pacíficas,conquistadoras ou intolerantes. Não se nasceimpunemente numa terra conquistada de longa data porMoisés, Buda, Confúcio, Jesus ou Maomé. Somosmarcados pela história, sem dúvida, mas também pelageografia, pela paisagem, e profundamente. No entanto,desde as viagens do século XVI, com a descoberta doscontinentes, a penetração dos povos uns nos outros, odesaparecimento progressivo dos espaços vazios nosmapas, as conquistas mútuas e o cosmopolitismo

Lançados indiscriminadamente, esses lugares-comuns

Page 41: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

generalizado, o planeta se retraiu, o espírito dos povosfundiu-se na identidade de uma humanidade logoreduzida a uma única entidade espiritual.

Um dos riscos da viagem consiste em partir paraverificar por si mesmo o quanto o país visitadocorresponde à ideia que se faz dele. Entre o desejo deencontrar os lugares-comuns encarnados que ocupavam oespírito e o de lançar-se numa terra absolutamentevirgem, existe uma meia medida: ela supõe uma arte deviajar inspirada pelo perspectivismo nietzschiano – nadade verdades absolutas, mas verdades relativas, nada depadrão métrico ideológico, metafísico ou ontológico paramedir as outras civilizações, nada de instrumentoscomparativos que imponham a leitura de um lugar comos referenciais de um outro, mas a vontade de deixar-sepreencher pelo líquido local, à maneira dos vasoscomunicantes.

Poderíamos chamar essa deplorável tendência de vero real com o filtro da sua cultura a posição domissionário. De fato, os padres que partiam paraevangelizar terras distantes decodificavam o lugar ondechegavam com a bagagem conceitual cristã, maisparticularmente católica, apostólica e romana. Quandoum padre branco chega em missão a um país africano ouno continente asiático, ele julga, afere e condena emfunção dos escritos bíblicos e dos Evangelhos. Essaatitude persiste em muitos turistas que apreendem hojeuma civilização ou uma cultura com os referenciais deseu espírito pré-fabricado e encerrado nos limites de seutempo, de sua época e de seus caprichos.

A poligamia marroquina, a excisão maliana [daRepública do Mali], a infibulação etíope, o canibalismoguayáqui [Paraguai], o infanticídio chinês podem serlidos como missionário que condena ou como etnólogoque tenta compreender: padre Huc versus Claude Lévi-

Page 42: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Strauss. É difícil não ser mais religioso e dispensar aleitura católica, inclusive em suas formas atuais,humanistas e embebidas na religião dos direitos dohomem. É sabido desde Montaigne que “chamamosbarbárie o que não é obra nossa”, e consente-se de bomgrado a esse imperativo ético, mas apenas quando se tratade ler o mundo na perspectiva do politicamente correto,exportador dos valores ocidentais, leigos e herdados dasLuzes. Mas como é possível, nesses países onde sepraticam tais extravagâncias ontológicas, legislarintelectualmente com a Bíblia numa das mãos e aDeclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão naoutra?

Viajar supõe menos o espírito missionário,nacionalista, eurocêntrico e estreito, do que a vontadeetnológica, cosmopolita, descentrada e aberta. O turistacompara, o viajante separa. O primeiro permanece àporta de uma civilização, toca de leve uma cultura e secontenta em perceber sua espuma, em apreender seusepifenômenos, de longe, como espectador engajado,militante de seu próprio enraizamento; o segundoprocura entrar num mundo desconhecido, sem intençõesprévias, como espectador desengajado, buscando nem rirnem chorar, nem julgar nem condenar, nem absolver nemlançar anátemas, mas pegar pelo interior, que écompreender, segundo a etimologia. O comparatistadesigna sempre o turista, o anatomista indica o viajante.

Assim, para ajudar a criar uma inocência recuperada,evitaremos partir a um país para lá constatar o queensinam os lugares-comuns: evitaremos nos deslocar atéa África para encontrar guerreiros masai que, com oritmo na pele e a dança no sangue, se excitariam demaneira folclórica numa área demarcada pela agência deturismo que vive como parasita dessa exploração dapaixão comparatista turística; não iremos a países de

Page 43: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

tradição muçulmana para ver como se encarnam orefinamento árabe no cotidiano e a paixão islâmica pelaabstração, pois nada disso se verá num lugar onde areligião impõe, ali como alhures, a dominação sobre oscorpos; tampouco se veria o amor ao próximo doscristãos ao passar uma temporada em Paris, Roma ouDublin.

A inocência supõe o esquecimento do que se leu,ouviu, aprendeu. Não a negação, nem o abandono, mas acolocação à distância daquilo que parasita uma relaçãodireta entre o espetáculo de um lugar e nós. Viajarsolicita uma abertura passiva e generosa a emoções queadvêm de um lugar a ser tomado em sua brutalidadeprimitiva, como uma oferenda mística e pagã. Longe dosclichês transmitidos por gerações acumuladas, longe dasvisões morais e moralizadoras, longe das reduções éticas e etnocêntricas, longe das reativações insidiosas doespírito colonizador e invasor, intolerante e bárbaro, aviagem solicita o desejo e o prazer da alteridade; não adiferença facilmente assimilável, mas a verdadeiraresistência, a franca oposição, a dessemelhança maior efundamental.

A invenção da inocência necessária à viagem exige,pois, o abandono das opiniões sobre o espírito dos povos,a recusa do olhar egocêntrico e missionário, mas tambémlivrar-se dos preconceitos sobre a forma da viagem. Poisquase todos os autores especializados no assuntocelebram a imersão, enaltecem o mérito das longastemporadas e dos investimentos novos – a aprendizagemda língua, o domicílio no local, a vida com os autóctones.Com quais objetivos? Compreender um país, captar suanatureza essencial, sentir verdadeiramente seu sabor?Dispor de uma inteligência ativa no interior dessacultura, quando os seus nativos não a possuem?

A conversão não modifica em nada a questão:

Page 44: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

permanecemos prisioneiros de nosso nascimento, denossa terra natal, de nossa língua materna, murados nasdobraduras primitivas da infância. Um quarto de séculovivido no Japão por um japonês nunca eqüivalerámetafisicamente à mesma duração vivida por umocidental no mesmo lugar. A compreensão de um paísnão se obtém em virtude de um longo investimentotemporal, mas segundo a ordem irracional e instintiva, àsvezes breve e fulgurante, da pura subjetividade imersa noaleatório desejado. O preconceito racionalista supõepossível a compreensão de um lugar pelo simples esforçointelectual, pela via cerebral e voluntarista. Na verdade,turistas ou viajantes, somos tolerados como residentesespiritualmente engajados numa temporada mais oumenos longa, nunca à maneira visceral de um nativo.

Certamente tal missão, tal conversão e tal sacerdóciose compreendem e produzem efeitos. Mas acreditomenos nas certezas obtidas pela duração da temporada doque por sua intensidade e pela qualidade de artista doobservador nômade. Um bom viajante possui umacapacidade de registrar as menores variações, é sensívelaos detalhes, à informação microscópica. RolandBarthes, com sua sensibilidade aguda, seu temperamentosismográfico, seu espírito vivo e sua inteligência mordaz,captou mais e melhor o Japão, mesmo ignorando tudo dalíngua e ficando lá por pouco tempo (85 dias em trêstemporadas, no total), do que especialistas diplomadosem línguas orientais que estudaram a evolução do signona literatura do período Edo, ou domiciliados num bairropopular de Kyoto. E o que dizer de um Claudel, cujapoesia capta o Oriente no seu cerne ao mesmo tempo emque ignora tudo do chinês e do japonês, embora ele tenhasido diplomata no Extremo-Oriente durante catorze anose embaixador da França em Tóquio durante seis anos? Oolhar instintivo do artista vale mais que a inteligênciacerebral dos laboriosos do conceito.

Page 45: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

É o caso do poeta, visionário por excelência lá ondeoutros se contentam com a posição de voyeur. Seutalento evita as tergiversações do mandarim, ignora aslentidões penosas do letrado e em toda parte vai além dosábio apegado a referências que o impedem de chegar àevidência. Alguns interpõem coisas em excesso entre omundo e sua subjetividade: referências demais, leiturasdemais, marcas culturais demais, citações demais,rubricas demais; outros, alimentados por esses saberes,sabem, depois de alimentados, afastar com a mão asombra projetada pelas bibliotecas e os arquivos. Nostermos de um Nicolau de Cusa, o viajante artista ganhaem praticar a douta ignorância. O poeta a utilizapoderosamente.

Na escola da poesia, há uma familiaridade com oacaso objetivo caro a André Breton e aos surrealistas:tornar-se disponível aos acontecimentos para suscitar e

O viajante necessita menos uma capacidade teóricado que uma aptidão para a visão. O talento pararacionalizar é menos útil do que a graça. Quando apossui, o nômade-artista sabe e vê como visionário,compreende e capta sem explicações, por impulsonatural. Ele pratica o que poderíamos chamar, emcategorias espinosianas, o conhecimento do terceiro tipo,aquele que se alimenta de intuições e da penetraçãoimediata da essência das coisas. Nesse caso, a realidadefaz uma infusão por capilaridade no viajante queapreende. Uma vida inteira de exilado não basta; é ailuminação que permite, às vezes, atingir um epicentroque permanece obscuro ao peregrino desprovido de dom.Todos os viajantes, escritores da viagem, artistas donomadismo experimentam essa evidência, pois todosvivem como iluminados, como incendiados,incandescentes.

Page 46: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

solicitar o advento, colocar-se à disposição do mundopara que advenha um sinal e surja uma epifania pagã,abrir-se ao real para penetrá-lo à maneira de um frutodecidido a dar-se, convencido da necessidade deoferecer-se. Assim disposto, esse viajante tocado pelagraça põe seu corpo à disposição do inefável e doindizível que, metamorfoseados em impulsos e emoçõesse transformam em sentido e resultam em palavras,imagens, ícones, desenhos, cores, traços – em rastro quetransfigura a efervescência de uma experiência emincandescência expressiva.

Donde a necessidade de um olhar vivo, de um olharacerado, de uma percepção de predador; a águianietzschiana fornece a metáfora. A soltura do corpo énecessária ao exercício da viagem. Pois a carne deve secolocar à disposição do mundo, registrar suas menoresvariações, partir em busca do menor detalhe perceptívelpor uma pele, um sensor olfativo, uma parcela do cérebroprojetada pelo nervo ótico, uma superfície tátil, papilas,um pavilhão auditivo e sua cóclea. A alma material devepartir ao encontro do mundo que se manifesta de maneiraatômica, em virtude do modo de propagação imanentedos simulacros. O viajante se alimenta deles, os busca eos persegue, os espreita e os caça: o real em todas as suasformas – eis em que consiste a sua presa.

Quando temos como padroeiros poetas, iluminados,inspirados ou mesmo loucos, místicos abrasados por suaespera, é inútil dar um crédito considerável aos apóstolosda conversão domiciliar, aos incensadores dos temposlongos, aos vendedores de dialetos, aos sacerdotes davida transfigurada e vivida segundo o modo dateatralização da existência sob o signo da mudança deidentidade: não abandonamos nosso temperamento,nosso caráter, nossas raízes. E há que celebrarprioritariamente o que em nós treme e se eletriza, se

Page 47: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

mexe e se carrega de energia, faz oscilar a agulha dosismógrafo, em vez daquilo que apenas faz o cérebrotrabalhar.

Não nos separamos do nosso ser, que nos habita eacompanha à maneira de uma sombra. Nas viagens, esseser quer e vê, ordena e decide. Ninguém se despoja,como na troca de uma pele, dos ouropéis da sua cultura,da sua civilização. Pode-se apenas contorná-la, nãodeixá-la agir, quando reaparece com toda a força, dentrode cada um de nós, o faro da raposa e do cão, a visão dacoruja e da águia, o ventre liso da serpente que ondulaem contato com a terra. Ganha-se em renunciar, ali ondeestamos, aos livros e aos documentos, às palavras e àspáginas consultadas antes e a serem consultadas depois.Ganha-se em solicitar o animal dentro de nós, o que emnós subsiste do mamífero e se lembra das horas antigas,pré-históricas, nas quais o nomadismo exigia um corpoágil, eficaz, flexível e forte. O animal desembaraçado, ocorpo material, a alma atômica, os órgãos sensuais, osimulacro físico, a graça fisiológica – eis os instrumentosdo poeta e do artista a serem ativados no viajante.

Para inventar uma inocência eficaz, e sempre quantoà forma da viagem, é preciso também desfazer-se elivrar-se de uma visão reacionária que supunha a viagempossível antes e a proclama impossível agora. Antes dequê? Antes da mudança do mundo, antes daglobalização, da suposta uniformização do planeta, antesda modernidade. O fato é que essa tomada de posiçãoprocede da crença numa época ideal, num tempo anteriorao tempo no qual a viagem teria permitido chegardiretamente e sem dificuldade à verdade do país visitado.Ela decalca a ideia antiga, visível a partir de Hesíodo, deuma idade de ouro, seguida de uma idade de bronze e porfim de uma idade de ferro, distinções que só servem paraassentar um pensamento da decadência, para convidar a

Page 48: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

uma restauração, e também para criticar e detestar opresente.

O discurso decadentista reduz a possibilidade deviajar apenas aos descobridores. Aliás, é um lugar-comum a todos ou quase todos os relatos de viagemsonhar com uma idade anterior à penetração estrangeirano país visitado, com uma época de pureza, preservadada contaminação heterogênea do cosmopolitismo e dasinfluências que vêm corromper e sujar. Uma antologiadas deplorações poderia ser feita só com os comentáriosdos escritores viajantes desesperados de que Roma nãoestivesse mais em Roma. Que se pense no meio século derecriminações de um Théodore Monod a propósito dodeserto desfigurado pelos homens.

A modernidade teria triunfado sobre o Diverso –assim como teria obtido a pele de Deus, da Arte, do Belo,do Verdadeiro, do Bem e outras quimeras semelhantes.Assim a viagem não seria mais possível, tendo o Diversodesaparecido em favor de um triunfo do Mesmo. Técnicaeficaz, motores de alto desempenho, culto da velocidade,meios de transporte novos, eletricidade generalizada,turismo de massa, capitalismo planetário, tecnologias decomunicação novas, mídias geradoras de virtualidadestriunfantes... Então nada mais subsistiria como antes? Ofim da história anunciado há pouco por um hegeliano deterceira mão, acessoriamente conselheiro doDepartamento de Estado americano, teria precipitado ageografia no mesmo abismo? Restaria um espetáculodesolador e a constatação de um niilismo planetário quemergulha no desespero generalizado?

Não, pois a história não está morta, ela viveráenquanto os homens viverem e desde que um únicoindivíduo se recuse à dominação universal de uma naçãocom moeda poderosa ou ao Estado planetário. E, seevidentemente há sinais de erradicação das diferenças e

Page 49: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

de supressão do Diverso, seria um erro confundir osmovimentos flutuantes da história com a permanência dageografia ligada à perenidade geológica. É verdade quetodas as grandes cidades do planeta se assemelham cadavez mais. Mas o real do planeta não se reduz somente aelas. Pensar o mundo sem camponeses e sem paisagens,eis a visão e a obsessão dos urbanos. Pois a paisagemdura e persiste, mesmo ameaçada pelos homens. E oDiverso reside nela, nos campos, visível e identificávelnas epifanias naturais, longe dos artifícios da cultura.

O tempo passa, as civilizações se deslocam, elasnascem, crescem, morrem, conhecem um ponto deapogeu, depois iniciam uma descida e desaparecem, sãosubstituídas por outras, mais vivas, mais ativas, maisfortes e melhor adaptadas. Que ridículo querer imobilizarum lugar temporalmente visível numa eternidadeinexistente! A China de Confúcio não é a do padre Huc,nem a de Segalen, de Claudel ou de Simon Leys. Se é ummesmo lugar em tempos diferentes, como escapar dessetruísmo? Como querer o aparecimento de um lugar naúnica dimensão que lhe é vedada, isto é, fora datemporalidade?

Somente os fantasmas presidem ao desejo de umahistória parada e independente das condições deexercício do tempo real. Sob a espuma da globalizaçãoliberal e da globalização econômica persistem ascorrentes, os movimentos e as dinâmicas dasprofundidades eternamente induzidas pela geografia esuas energias telúricas.

A modernidade fabrica megalópoles muitosemelhantes, sem dúvida, mas ela não consegue suprimiras geografias. Quem se proporia viajar exclusivamente àscapitais planetárias para se aproximar de uma civilizaçãoou de uma cultura? Quem gostaria, para descobrir aessência de um país, de colecionar Cidade do México e

Page 50: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Nova York, Sydney e Buenos Aires, Xangai e São Paulo,Calcutá e Cairo, Manila e Bangcoc? É verdade que essasdez cidades contém, juntas, quase duzentos milhões dehabitantes, mas todas parecem os clones de uma mesmametrópole fragmentada e disseminada de maneiraaleatória no planeta. A modernidade reduziu a história,mas poupa a geografia.

Os climas persistem, mesmo violentados peloshomens, as estações, os ritmos planetários e asalternâncias cosmológicas também, tudo regulado comoum sistema de relojoaria com uma fineza e uma exatidãoinigualáveis. A multiplicidade dos ventos e a infinidadedos astros, a tectônica das placas e a deriva doscontinentes, o movimento das marés e o jogo desolstícios e equinócios, o deslocamento das montanhas eo derretimento das geleiras, a escavação dos leitosfluviais e o traçado das correntes marinhas, tudo issotestemunha em favor de um tempo longo e lento,geológico e geomorfológico, o da meditação e dainteração com almas sintonizadas. Viajar supõe, àmaneira das aves migratórias nas quais o relógio interno,o metabolismo e o magnetismo decidem seusmovimentos, colocar-se à escuta do que em nós procededa eternidade do sistema solar e que jaz no maisprofundo da combinação de nossos átomos.

Enfim, os defensores de uma forma antiga eultrapassada de viagem invocam a lentidão e maldizem avelocidade, causa de todos os males. Celebram o passodo burro, a marcha a pé, o lombo de camelo, o barcomovido a roda, a travessia dos oceanos em cruzeiro, adescida dos cursos d'água em barcaça, as carroçaspuxadas por cavalos, as estadias prolongadas emalbergues, em hospedarias rurais, na casa do habitante, asimobilizações voluntárias ou involuntárias, um tipo desedentarismo reinstalado na casa do outro. Imaginam que

Page 51: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

assim, deixando o tempo passar, sem pressa, há maisinfusão, mais impregnação, que experimentam umaempatia mais autêntica, realizam um melhor encontro.Evidentemente, os defensores dessa hipóteseparmenidiana detestam o avião, símbolo do pior emmatéria de viagem.

Eu adoro o avião, que espera seu Marinetti ou seupoeta futurista antifascista. Contudo o avião induz umametafísica nova, contribui para a criação de uma outrapercepção do tempo e do espaço. Antes dele, essasformas a priori da sensibilidade kantiana se deduzemfilosoficamente; depois dele, elas se constatamexperimentalmente: o tempo é espaço, velocidade,deslocamento, é a translação num entremeio, assim comouma percepção corporal e subjetiva, uma sensaçãoindividual e pessoal. Não o tempo absoluto, não a ideiado tempo relacionada à eternidade, não o numero domovimento, mas a pura consciência de si captada emdurações variáveis.

A velocidade do avião modifica a apreensão doespaço e contribui para a sua redução. O planeta se tornavisível, parece pequeno, de repente se percebe suatotalidade num simples golpe de vista. A volta ao mundonão parece mais uma ideia impossível, mas um projetopensável. A rotundidade fascina, como símbolo deperfeição – pensemos na esfera parmenidiana –, comosuperfície sem dobra cujos pontos crepitam todos a igualdistância do centro da Terra, fogo furioso e núcleoincandescente. Nas telas de cristais líquidos, durante aviagem aérea, sucedem-se mapas que reduzem o espaçoreal a um desenho em que o verde das terras e o azul dosmares são cortados pelo traço vermelho dodeslocamento. Lentamente, por pequenos saltossucessivos, por pontilhados e arrastos espasmódicos, umaviãozinho icônico desloca-se, atravessa os oceanos,

Page 52: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

sobrevoa as montanhas, paira acima das planícies, cruzafronteiras, ignora os homens e perfura as nuvens, risca efende o ar gelado, escoa no puro éter azulado, desliza nastrevas espessas ao mesmo tempo em que domina ascidades tentaculares e luminosas, os portos desenhadospela claridade das luzes amarelas, ou a espantosavibração noturna dos desertos invisíveis. Sentir-sehomem a bordo desse instrumento transformado emenergia e em velocidade metamorfoseia a alma demaneira mais segura do que uma leitura dos Evangelhos.

Corporalmente experimentamos a unidade do planeta,sua pequenez, sua totalidade e sua diversidade. O mapa-múndi das escolas primárias ou os mapas pendurados nassalas de aula de nossa infância têm então um significadoclaro. Eu me digo sempre, em voo, que a geografiadeveria ser ensinada às crianças em aviões, conduzindo-as gratuitamente de um ponto a outro, para dar-lhes aocasião de ver o campanário de uma aldeia natal, deconstatar o recorte da sua cidade, de captar numa únicavisão seu desenho traçado no campo ao redor, de seguircom o olhar o leito de um riacho, de um rio, de um cursod’agua, de ver transformados em espelhos densos eluminosos os açudes, os lagos, os pântanos nos quais sereflete o sol. Lições de geografia para aprender a amarseu país de maneira visceral – como o retratomaravilhoso leito por Michelet em suas páginas soberbassobre a França.

O avião, como se sabe desde a ficção alada deLuciano de Samósata [grego do século II] noIcaromenipo, dá lições de filosofia: tudo o que parecegrande e importante no chão se torna pequeno,mesquinho, irrisório e insignificante no ar. Alguns seesforçam para acreditar essenciais suas pequenashistórias, seus pequenos negócios, quando, visto do céu,tudo é acanhado e indiferente. Lição de sabedoria à

Page 53: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

antiga. O avião edifica tanto no terreno metafísico quantono filosófico: de repente nos sentimos o fragmento de umgrande todo, peça irrisória de um mecanismo que noscontém e nos ultrapassa. Sabedoria de um gêneropanteísta e pagão: temos a apercepção da terra, dos seuselementos, e de nenhuma nação. A história desaparece,preocupada demais com peripécias locais, em favor dageografia, familiarizada com as durações indefinidas e aslentidões magníficas.

Além disso, o avião oferece também uma liçãotecnófila: com ele, as coerções da natureza desaparecemsob os efeitos conjugados do artifício desejado peloshomens. O barco contraria a superfície plana dosoceanos, e o submarino, os abismos, as profundezas; oavião zomba da resistência do ar; o trem e o carroignoram os imperativos e os imponderáveis da terra:todos os elementos encontram no artifíciocorrespondente um meio de ultrapassagem, de negação.O poder dos homens se manifesta no motor que liberta epermite evitar o embargo. No habitáculo dessasmáquinas de guerra lançadas contra o império danatureza, experimenta-se o gozo moderno em contatocom um novo sublime.

O avião, enfim, nos liberta das exigênciasclimatológicas, sazonais, geológicas, históricas, políticas.Permite, no mais curto prazo, fugir do inverno rigorosoquando desejamos o calor dos trópicos, acabar com aslongas noites posteriores ao equinócio de outono quandoaspiramos aos dias prolongados, escapar de umaditadura, de uma tirania, de um regime autoritário,afastar-nos de regiões perigosas onde há derramamentosvulcânicos, terremotos recorrentes, catástrofes devidas àseca, à chuva ou a outros delírios climáticos. Cada pontodo globo se torna imediatamente acessível, e a vontade écapaz de vencer as resistências.

Page 54: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Por todas essas razões, amo o avião – mas amo-otanto quanto os outros meios de transporte quetransformam o corpo em projétil lançado, com maior oumenor velocidade, na superfície da terra, na atmosfera esobre os mares, quando não debaixo deles... No séculorecentemente terminado, a velocidade atesta e identificanossa modernidade. Ela explica a revolução informática,a globalização, o cosmopolitismo, ela impregna as visõesde mundo, as éticas, as metafísicas, as políticas e mesmoas religiões ou as espiritualidades reformuladas de hoje:o instante passa a ser a única modalidade do real. Aperda de referências no passado e no futuro obriga agozar apenas a duração instantânea. Queira-se ou não, éassim. Um elogio reacionário à lentidão implica deleitar-se na nostalgia, alimentar a paixão fácil pelas lembrançase cultivar a angústia do futuro.

Aceitemos essa revolução para querê-la, amá-la eusá-la no que ela permite de melhor. Não fustigar o aviãoque transforma a viagem de antanho, mas celebrar essenovo instrumento gerador de um outro modo de viajar,na medida em que a marcha a pé ou em lombo de burrocontinuam disponíveis para os inimigos da velocidade.De Stevenson a Lacarrière, sempre houve ferozesdefensores da medida do tempo a passo animal ouhumano, e tanto melhor assim. O que a modernidade fezfoi permitir escolher nossa própria relação com o tempo,ela não obriga – ao contrário do passado, não sem razão,que obrigava em função de seus limites. Montaigne acavalo, Rimbaud a pé, Morand de barco, Cendrars detrem, Bouvier de carro, Chatwin de avião,evidentemente, mas nada impede Kenneth White ouGuido Cerronetti de caminhar, ou mesmo ThéodoreMonod de optar pela marcha de dromedários...

Os inimigos da velocidade do avião também criticamo telefone, fixo ou celular, a telecópia, o computador

Page 55: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

portátil, as mensagens eletrônicas, culpados igualmentede precipitar a morte da Viagem. Ora, do mesmo modoque o avião, essas tecnologias novas não impedem deviajar, pelo contrário, elas permitem às pessoas deslocar-se de outro modo, diferentemente, menos separadas dosseus. São úteis para fixar vertigens, formular impressões,colocar emoções em palavras. Comunicar supõe odomínio dessas máquinas, não o inverso. Condenáveisquando suscitam uma nova escravidão, uma incapacidadede usufruir o presente no estrangeiro, elas se tornammágicas para compartilhar, oferecer aos amigos cartões-postais sonoros, fragmentos de viagem, sinais de afetoenviados por impulsos digitais da outra ponta do mundo,apesar da ausência e para além da separação.

Assim como a carta de Flaubert ou o cartão-postal deArtaud não impediam a viagem ao Egito ou ao México, achamada telefônica de Gaspésie para falar da subida dasbaleias na foz do Saint-Laurent ou o recurso ao e-mailpara descrever a arquitetura de Brasília a uma pessoaamada não impedem uma real presença no Quebec ou noBrasil. A velocidade da troca de informações, dostransportes, das transferências e translações não destroema essência da viagem, mas sua forma antiga. As técnicasmodernas possibilitam experiências contemporâneas,transfiguram os acontecimentos da viagem, tornampossíveis novos. As gravuras de Vivant Denon nãoimpedem as fotografias de Cartier-Bresson, as chamadastelefônicas transatlânticas também não acabam com aspáginas escritas, os relatos ou os poemas. Amanhã, ouquem sabe hoje, um André Velter enviará pelo correioeletrônico um poema escrito na praça de Cluj, numaRomênia saturada pelo cheiro seminal das tílias em flor.Depois de amanhã, outras técnicas serão as aliadas dosviajantes que, no entanto, continuarão sendo artistas epoetas.

Page 56: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

DEPARAR COM A SUBJETIVIDADE

Nós mesmos, eis a grande questão da viagem. Nósmesmos e nada mais. Ou pouco mais. Certamente hámuitos pretextos, ocasiões e justificativas, mas emrealidade só pegamos a estrada movidos pelo desejo departir em nossa própria busca com o propósito, muitohipotético, de nos reencontrarmos ou, quem sabe, de nosencontrarmos. A volta ao planeta nem sempre ésuficiente para obter esse encontro. Tampouco umaexistência inteira, às vezes. Quantos desvios, e porquantos lugares, antes de nos sabermos em presença doque levanta um pouco o véu do ser! Os trajetos dosviajantes coincidem sempre, em segredo, com buscasiniciáticas que põem em jogo a identidade. Também aí oviajante e o turista se distinguem e se opõemradicalmente. Um não cessa de buscar e às vezesencontra, o outro nada busca e, portanto, nada obtém.

A viagem supõe uma experimentação em nós que tema ver com exercícios costumeiros entre os filósofosantigos: o que posso saber de mim? O que possoaprender e descobrir a meu respeito se mudo de lugareshabituais e modifico minhas referências? O que resta daminha identidade quando são suprimidos vínculossociais, comunitários, tribais, quando me vejo sozinho,ou quase, num ambiente hostil ou pelo menosinquietante, perturbador, angustiante? O que subsiste domeu ser quando se subtraem os apêndices gregários? Oque será do núcleo duro da minha personalidade diantede um real sem rituais ou conjurações constituídas? Agrande volta ao mundo permite nos reencontrarmos damaneira como a eternidade nos conserva.

Page 57: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Outros fima

zeram a peregrinação de Compostela dejoelhos, s o espírito permanece: exigir do corpo quevá além de seus limites, obter dele suor, sangue,lágrimas, crostas, ou então curiosidades médicas:disenterias, úlceras, tumores, calos, arranhões, picadas,purulências, infecções. Pés e mãos gelados, rostosqueimados, membros tetanizados, corpo anquilosado,alucinado pela falta de sono ou pela alimentaçãosumária: nos relatos de viajantes esportistas proliferam

clássica se perde neste ponto: o eu não é detestável. Nemvenerável. Ele é simplesmente considerável, no sentidoetimológico de ser digno de consideração. Nem ódio nemcelebração de si, mas uma justa estima que permitetrabalhar sobre nosso ser como sobre um objeto estranho,sobre uma pedra informe à espera do cinzel e da hora doescultor. Toda viagem é iniciática – assim como umainiciação não cessa de ser uma viagem. Antes, durante edepois se descobrem verdades essenciais que estruturama identidade.

Não gosto da viagem dos que se punem e usam o eucomo um animal a ser mortificado. Estes se deslocampara expiar a existência e transportam seu mal-estar parabuscar desfazer-se dele. Sem sucesso, evidentemente,pois não nos livramos de nossas partes malditas e denossa negatividade como se fossem velhas escamascaducas na pele de um sáurio. Estes carregam a almacomo um castigo, à maneira de uma cruz, de um fardo.Infligem-se dores, sofrimentos, feridas, buscam osespinhos e o sangue na testa, depois o golpe de lança nopeito. Entre esses fanáticos do cilício estão os esportistascom mania de performance: atravessar o Atlântico aremo, dar a volta ao mundo de bicicleta, andar váriascentenas de quilômetros nos ventos furiosos da Antártidaou num meio hostil e perigoso, fazer expedições emcondições extremas e outras variações do ódio de si.

Convém esclarecer, pois toda a filosofia ocidental

Page 58: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

observações e considerações desse tipo. Os amantes desensações mais do que fortes, que vivem o corposegundo o princípio da punição, transformam a viagemem caminho da cruz. Não gosto dos caminhos da cruz...

A viagem tem menos a ver com a subida do Gólgotado que com o convite socrático a conhecer-se. A dor nãoapresenta nenhuma utilidade nesse processo dedescoberta de si. Nada de essencial se descobre sobre aintimidade ao voltar a pulsão de morte contra si e aoquerer transfigurar esse gesto em estética do sofrimento.Basta a negatividade nas doses injetadas naturalmentepelo real: não há necessidade de aumentar essa energianegra e ruim. Na viagem de performance, o desafio malesconde, na maioria das vezes, as intenções masoquistasde uma alma sofrida – ou melhor, de um inconscienteatormentado. O gosto por mordidas de aranha, serpentesvenenosas, plantas vesicantes, desertos perigosos, insetostóxicos, sujeira e elementos hostis procede de uma lógicaexacerbada nos grupos de combate militares ou nas celasmonacais.

O projeto socrático não requer o uso de si como umacoisa, um objeto inimigo. Pelo contrário. A auto-estima,que não se deve confundir com amor, veneração oucomplacência em relação a si mesmo, tem seus melhoresauspícios nos antípodas do ideal ascético. Nem recusanem celebração de si, mas sábio desvio pelo mundo parachegar a um justo conhecimento da identidade íntima. Aviagem ilustra a “casuística do egoísmo” nietzschiana,ela dá um conteúdo tangível ao regime dos prazeres epermite a confusão da ética e da estética. Na verdade, elaresume a possibilidade de uma estetização da existênciaem circunstâncias concretas. Desse modo, faz parte deuma ascese metafísica e conduz ao caminho que leva àapropriação alegre e justa da nossa vida.

Page 59: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

No centro da viagem não há outra referência senão oeu. Montaigne fornece um exemplo explícito desseegotismo do nômade: em Luca ou em Roma, em Loreto eem Veneza, em Ausburgo e em Constança, o filósofopermanece no centro de si mesmo, como insistênciaimpossível de erradicar. E o epicentro dessa identidade éo corpo, a carne do viajante: seus cálculos, suas pedrasnos rins, suas fadigas, seus banhos, suas bebidas, seusalimentos, seu sono. O mundo ao redor se organiza, seoferece em espetáculo, se mostra e se conta, mas comoplanetas gravitando em torno de um astro que ocupa ocentro, real.

É certo que não evitamos nossa própria companhia –para alguns, a pior. O que a alma embarca na partidareaparece na chegada, multiplicado: dores e feridas,tédios e tormentos, pesares e infelicidades, tristezas emelancolias se amplificam na viagem. Não nos curamosao dar a volta ao mundo, pelo contrário, exacerbamosnossos mal-estares, aprofundamos nossos abismos.Longe de ser uma terapia, a viagem define umaontologia, uma arte do ser, uma poética de si. Partir paraperder-se aumenta os riscos, já consideráveis, de ver-sediante de si, pior: diante do mais temível de si.

O eu não se dilui no mundo, ele o colore, lhe dáformas. O real não existe em si, mas percebido. O que,evidentemente, supõe uma consciência para percebê-lo.Esse filtro pelo qual o mundo passa organiza arepresentação e gera uma visão. Por sua essência, o serdo mundo procede do ser que o olha. A viagem teatralizaessa operação metafísica, acelera essa alquimia. Ora, portrás de cada fragmento destacado do mundo há um corpoque lhe confere a existência em geral e suas propriedadesem particular. Em virtude da longínqua teoria humoraldos antigos, a bile negra em excesso num indivíduotransbordará e invadirá o mundo que ele atravessa. Em

Page 60: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

toda parte onde ele estiver, a dominante será sombria ede uma obscuridade profunda.

Ninguém viaja para se curar de si, mas para ficarmais aguerrido, fortalecido, para se sentir e se conhecerde maneira mais apurada. No estrangeiro, nunca se é umestranho para si, mas sempre o mais íntimo, o maisinsistente, o mais colado em sua sombra. Diante de nósmesmos, mais do que nunca obrigados a nos olhar,mergulhamos mais profundamente em nosso centro degravidade, na medida em que nos falta o outro para nosdistrair de nossa presença forçada. A destinação de umaviagem não cessa de coincidir com o núcleo do ser e daidentidade, impossível de romper. Por trás do arsenaltoponímico dos mapas geográficos se ocultaminacreditáveis variações sobre o tema da subjetividade.

Fora de nosso domicilio, no exercício perigoso donomadismo, o primeiro viajante com quem deparamossomos nós mesmos. Permanentemente, em todas asesquinas, em cada ângulo, nos cruzamentos e nas praças,nas cidades ou nos desertos, na sombra ou na luz, emtodas as trilhas e em todos os acidentes da paisagem,sempre e em toda parte nosso personagem busca a ordemíntima. No cenário terrestre vagueiam almas penadas embusca de um corpo a habitar definitivamente, na paz e naserenidade recuperadas. Ao redor do globo se sucedemessas operações de reificação permanente. Aperegrinação tem segredos compartilhados com ademiurgia. Contudo a estranheza do mundo condena asatisfazer-se com a familiaridade mais imediata, aquelaque cada um de nós mantém com seu âmago.

Nosso eu confunde-se com nossa língua, nossaslembranças, nossa história, nossa memória, ele resumenossos hábitos e se dissimula nas dobras do corpo. Numpaís desconhecido, o animal inquieto dentro de nóslevanta a cabeça, ouve uma voz incompreensível, evolui

Page 61: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

num espaço desprovido de referências, experimenta adiferença, a grande diferença que isola, corta, separa,depois põe de lado e exclui. No topo do mundo, no fundodos abismos, no meio dos desertos e do oceano, o euainda conduz a dança, mais do que nunca. Tragicamente,o indivíduo é incapaz de ultrapassar a identidade que ocontém. No estrangeiro, essa identidade flutua, semlaços, sem pontos de referência. Ela espera o rochedoonde permutar sua errância nômade por um artifício quelhe permita esboçar os traços de um sedentarismo.

Em seu trajeto, encontrará um outro queprovavelmente não tornará a rever, uma alteridadegratuita, uma pura alteridade. O grande número derelações contraídas noutro lugar, que não o territóriohabitual, se diluem, se evaporam no calor e no ruído doretorno ao mundo comum. É assim que toda aintersubjetividade se instala no terreno do artifício, dacontingência, do que poderia não ter acontecido. É assimque podemos nos descobrir sem compromissos sociais,sem obrigações políticas, no sentido primeiro do termo,nus diante de um ser que suscita o exercício da fala e dosigno sem amanhã. Nesse jogo com um tempo suspenso,fragmentos do inconsciente habitualmente caladosemergem à superfície e produzem efeitos: angústia ouentusiasmo, assombro ou excitação, recolhimento ouexpansão, prazeres centrípetos ou desejos centrífugos.Em todos os casos, uma dinâmica trabalha vivamente aalma e lhe impede o repouso.

Viajar conduz inexoravelmente à subjetividade.Dividida, fragmentada, espalhada ou compacta, é semprediante dela que acabamos por chegar, como diante de umespelho que nos convida a fazer o balanço de nossotrajeto socrático: o que aprendi de mim? O que possosaber com mais certeza do que antes da minha partida?Os filósofos da Antiguidade grega sabiam a função

Page 62: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

formadora do deslocamento. Todos percorreram a baciado Mediterrâneo, abandonaram a Europa pela África,viajaram até o Oriente Próximo, depois até o ExtremoOriente: Líbia, Egito, Mesopotamia, China ou mesmoÍndia. A Grécia, matriz do continente europeu, vai buscarnas águas do Mediterrâneo e trazer para Atenas aastronomia, as matemáticas, a filosofia, o comércio, apoesia, a geografia, a geometria, a arquitetura e omonoteísmo.

Pitágoras, Demócrito e Platão fabricam o Ocidente aoaclimatarem as cifras e os números egípcios, aodesdobrarem os mapas celestes caldeus, ao copiarem asabedoria dos gimnosofistas indianos ou etíopes, aodissertarem sobre as cosmogonias mesopotâmias, aovisitarem os cirenaicos junto ao deserto da Líbia, aoreativarem ensinamentos recebidos talvez na China. Avirtualidade informática contemporânea parece maislenta que os barcos que cruzavam o mar que banha Romae Atenas, Alexandria e Cartago, Beirute e Gênova. Asredes da época funcionavam com capacidadesconsideráveis, os homens circulavam em quantidade aomesmo tempo em que os bens, as riquezas e também asideias. Viajar supunha então seguir essas passagens,misturar-se às energias que irrigavam o territóriomediterrâneo a partir dos países próximos e das culturascircunvizinhas. Ir de um ponto a outro, ontem como hoje,depende menos da experiência histórica ou geográficaquantificável por um historiador como Braudel que daexperiência ontológica e metafísica mensurável porfilósofos, poetas e artistas. Para além da históriaquantitativa revela-se, frágil e nova, uma geografiapoética.

Page 63: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

ENTREMEIO II

Page 64: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

REENCONTRAR UM LUGAR

Depois do tempo ascendente do desejo, depois dotempo excitante do acontecimento, chega o momentodescendente do retorno. Não há viagem sem reencontrocom Ítaca, que dá sentido ao deslocamento. Um exercícioperpétuo de nomadismo sairia dos limites da viagem paraentrar na errância permanente, na vagabundagem. Ospróprios nômades praticam um tipo de sedentarismo,pois percorrem trajetos habituais, se instalam na rotina deum deslocamento, sempre o mesmo, servem-se dasmesmas referências, ramagens secas, montes de pedras,linhas e rastros feitos por animais, leem sempre domesmo modo o mapa das estrelas ou dos movimentos dosol, mas também porque vão a lugares onde têm seushábitos, suas práticas tribais e rituais na arte de ocupar ossolos.

Assim como o sedentarismo contínuo não meagradaria, o nomadismo permanente não me seduz: asraízes, o local, a vida há muito tempo num lugar idênticonão podem ser considerados sem um recurso regular adeslocamentos ao redor do planeta. Não consigo viver,trabalhar, habitar a província baixo-normanda, esobretudo evitar Paris, senão pela possibilidade regularde ir e vir de maneira transatlântica, transmediterrânea,africana ou europeia. Entre a fixidez das ostras e aloucura furiosa dos paramécios, podemos aspirar aodeslocamento animal, certamente, mas entre o passoaveludado da fera desejosa de vida densa, violenta e olongo voo livre da ave sedenta de embriaguez no azul.Não se me convém nem a existência espetada à maneirade uma borboleta capturada no êxtase entomológico, nema vida instável e agitada dos cotidianos sem destinação:

Page 65: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

entendo a viagem como um momento num movimentomais geral – não como um movimento por si só.

Tanto mais porque o reencontro com o domicilio dáum sentido, o seu sentido, ao nomadismo – e vice-versa.A alternância de partidas e regressos permite, como emHeidegger, uma verdadeira definição do habitar. Comoconviver com o lugar da residência eleita, com oshábitos, o ritual, as referências? De que maneira reatar,no artifício e segundo os princípios da cultura, com asforças comportamentais apontadas pela etologia? Querelações mantêm a casa e a toca, a superfície de umapartamento e o território marcado pelos dejetos de umanimal? Qual a proximidade entre o que se passa atrás daporta, após girar a chave ao regressar, e a disposiçãotroglodita de um mamífero terrestre?

A habitação não se confunde todavia com a ocupaçãopura e simples de um lugar. Não basta dispor de algumasroupas, de alguns bens num espaço, para fazer dele umdomicílio. No ato de habitar se concentram práticas dearquivos cotidianos, é verdade, mas se articulamigualmente hábitos e rituais sem os quais não se afasta aangústia, que atormenta o corpo e a alma. Umaresidência passageira não significa morar, nem terinstalado sua moradia. Aliás, a etimologia assinala que,entre instalar a moradia num lugar preciso, morar emalgum lugar de modo recorrente, ser intimado comodevedor ou ser qualificado de retardado, existe umarelação íntima: a cada vez tardamos. Tardamos emconsiderar uma partida, em partir de novo, um saldaruma dívida ou em despertar a inteligência.

Habitar significa, portanto, tardar em volta do logo, àmaneira pré-histórica, perto do fogo que aquece, afasta operigo das feras e protege das intempéries. Habitação étambém a pousada dos animais escondidos dospredadores e protegidos dos riscos de luta resultantes do

Page 66: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

fato de viverem num mesmo espaço. A pousada pode sera toca, o refúgio, as marcas deixadas no chão. E aetimologia mostra, também aqui, um parentesco entrepousada e jazigo, entre pousar e jazer, estar deitado.Repousar, dormir, recompor as forças – quando nãoinstalar-se para sempre na posição da estátua jacente,incorruptível, petrificada no mármore da morte,semelhante a si mesma para sempre.

Reencontrar o lugar que habitamos habitualmentepermite, às vezes à maneira de um Littré lexicógrafodotado para as hipóteses, aproximar habitus, hábito,habitação, habitar. O domicílio assinala o lugar onde osriscos são os menores e onde se depõem no chão asarmas, as bagagens, o que estorva em tempo normal. Asleis da hospitalidade dizem isso: deve-se dar proteçãosob um teto. Depois da viagem, do movimento, daefervescência, o retorno a casa (maison, em francês,palavra fixada etimologicamente a partir de mainere,ficar) autoriza a recuperação das forças e das energiasdespendidas. Ele obstrui a histeria do movimento que,caso contrário, ficaria girando sem fim.

Nunca retornar, ficar girando sempre, produziria umaembriaguez de dervixe. Percorrer o mundo comolibertino supõe pensá-lo a seguir como beneditino. Acasa equivale tanto a uma cela de monge quanto a umatoca. Ela se organiza em torno da biblioteca, dos papéis,dos arquivos, dos cadernos de apontamentos, das fichas,dos projetos de escrita. Mas também em torno daquiloque Charles Fourier chama uma paixão pivotante: umafigura, uma pessoa em torno da qual se organiza o lar eque guarda o fogo ativo enquanto se sacia, narotundidade do planeta, uma pulsão caçadora e nômade,dinâmica e imperiosa. Voltar para casa permite retomar oestado de espírito dos indivíduos que reencontravam acaverna após terem cruzado, numa natureza inquietante,

Page 67: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

com mamutes, cervos, auroques e renas perigosos paraeles.

Todos os grandes viajantes retornam ao porto, aoporto de matrícula depois dos quarenta anos, depois dasperipécias planetárias, das aventuras selvagens eperigosas. Quando os vikings descobrem a América –bem antes de Cristóvão Colombo –, eles abandonam ascostas escandinavas, atravessam o Atlântico, abordam aAmérica do Norte, ficam algum tempo e tornam a partirem direção à terra natal. Do mesmo modo, os trajetosmúltiplos de viajantes impenitentes como Victor Segalen,Ella Maillard, Nicolas Bouvier, Bruce Chatwin, JacquesLacarrière, Kenneth White ou Michel Le Bris nãoexcluem, pelo contrário, a serenidade de uma habitação,que foi respectivamente Brest, Chandolin (perto deGenebra), Cologny na Suíça, Sheffield na Grã-Bretanha,Sacy na Borgonha, Trébeurden e Terenéz na Bretanha.Nenhum deles, o que não deve causar surpresa, elegeudomicílio fixo em Paris...

O lugar deixado e depois reencontrado é o eixo emtomo do qual oscila a agulha da bússola. Sem ele não hápontos cardeais, nem rosa dos ventos, nem possibilidadede deslocar-se e de organizar uma busca nos mapas domundo. Nele, treme e vibra, frágil, o aço que indica onorte magnético da bússola, sem a qual não há direção,nem ida nem retomo possíveis. Uma cartografia semindicações de direção não apresenta interesse, não temsentido. Tampouco quando lhe falta uma escala. Odomicílio funciona como bússola, cuja etimologia remeteà forma original, uma pequena caixa – como a casa.

Somente Deus, a acreditar no que disse Pascal,permite-se o luxo de existir como uma esfera cujo centroestá em toda parte, e a circunferência, em nenhuma. Comexceção dele, que tem esse privilégio ligado à suacondição, nenhum ser humano se move no planeta sem

Page 68: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

um ponto de referência, um marco posto no chão, fixo ecapaz de ser reencontrado. A possibilidade de perder abússola corresponderia à ausência de relógio de sol numaexistência ou numa viagem. A errância designa tanto oassociai definitivo quanto o doente mental, ela começaquando falta o porto de matrícula, o ponto de ancoragem.Sem reconhecimento do corpo, há o perigo de extraviodefinitivo da alma. Seria essa uma lição enunciada postmortem por Nietzsche?

O mundo, pois, vasto e reduzido ao mesmo tempo,com o eu de cada um no seu centro, a viagem comoconvite a desenharmos para nós uma rosa dos ventos,depois o domicílio para assentar e cultivar essaidentidade – eis algumas referências num cosmo a priorisem alegria. A geografia serve primeiro para elaboraruma poética da existência, para descobrir ocasiões de

fazer funcionar nosso corpo como uma bela máquinasensual, capaz de conhecer exercitando cada um doscinco sentidos, sozinhos ou combinados, à maneira daestátua de Condillac que se fazia odor e perfume empresença de uma rosa. Um mapa, uma bússola, umaescala são instrumentos úteis ao conhecimento de nósmesmos e à escolha dos nossos movimentos. Umaexistência, no momento da morte, se reduza um conjuntode traços num mapa apergaminhado.

Voltar para é também voltar de. No caso, refazer o

entremeio do ir, mas num outro estado de espírito. Ovazio de sensações e a quantidade de hipóteses da partidadão lugar à quantidade de sensações e ao vazio dashipóteses: vimos, sentimos, degustamos, tocamos,experimentamos o contato de um real intensamente vivoe brilhante. As lembranças substituem as expectativas; asverdades, de início informes, apagam as conjeturas doespírito antes excitado pela perspectiva do deslocamento.

Page 69: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

O primeiro entremeio supõe o desconhecido, o segundo,o realizado. De uma antiga disponibilidade instalada nasparagens da expectativa é preciso extrair a novasaciedade de uma descoberta feita.

No entremeio do retorno triunfam a desordem, ocaos, a embriaguez, a abundância. Experimentamos aconfusão, a mistura das sensações, a incoerência daspercepções. O gozo é acompanhado de sobressaltos emmeio ao amontoado de informações recolhidas por umcorpo que funcionou a todo vapor. Depois da maravilhado acontecimento, da festa do real, o retomo turva aságuas e exige uma decantação. Os céus pesados,carregados são varridos pelo sopro do espírito edesaparecem em favor de um éter lavado, límpido eclaro. Na fadiga do retorno preparam-se as sínteses porvir.

O estado de espírito corresponde a uma flutuação.Tudo pesa, em bloco, e nada ainda se distingue. Qual amelhor lembrança? Que lição reter prioritariamente? Oque aprendi sobre mim, sobre os outros e o mundo? Épossível, desde já, concluir, resumir, condensar duas outrês ideias essenciais, três ou quatro momentosimportantes? Em que sentido foi mais enriquecedor terpercorrido as paisagens de um outro lugar em vez donosso cotidiano familiar?

Ou ainda: qual a pior lembrança? Quais as másdescobertas? Quais os achados desagradáveis, as tristescertezas a léguas de distância de casa? Todas essasinterrogações esperam resposta. Mas a hora do entremeiodo retorno convém mais à necessidade de repousar dafadiga que satura o corpo, aquecido ao máximo pelatensão sensual da viagem, do que à urgência deresponder às questões emergentes. Antes da gravação namemória e da evaporação no inconsciente, o instanterequer o retorno a ritmos mais lentos, mais calmos.

Page 70: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Além disso, voltar é decidir não ficar, é dar ao queparece adquirido e definitivo – no caso, o domicílio –uma confirmação nova, uma validação suplementar.Cumprida a peregrinação, a casa toma-se uma evidência.As raízes adquirem seu significado quando a flor pôdebrotar. Então se constata o equilíbrio da árvore. Somenteas fixações subterrâneas ou somente um único ramo defolhas, florido ou repleto de frutas, são desprovidos desentido. O enraizamento justifica o nomadismo e vice-versa. Redescobrir esse conjunto de apaziguamentos quea casa produz leva a uma harmonia entre mim e mim –sobretudo quando a viagem provoca tensões entre essasduas modificações da mesma instância.

Por menor que tenha sido a diferença de fuso horário,o eco do outro lugar ressoa ainda por algum tempo nacarne. Dores, fadiga, reumatismos, inchaços, obstruções,edemas, congestões: o corpo certamente conserva mais amemória do acontecimento do que a lembrançasuperficial ou a memória visível. O organismo e seusritmos requerem um outro tempo, não tão separado, masjá muito distante. Durações em colisão, contagensconfusas, mistura de referenciais temporais e espaciais –onde estou? que horas são? –, tudo converge para umaconfusão do ser, uma comoção existencial.

A fadiga atravessa a carne, o sono chega muito cedoou muito tarde, depois traz os sonhos e os alimenta.Estes, que no meu entender fornecem a ocasião da ordeme do sentido lançados a seguir pela mão no papel, seapoderam das informações trazidas em desordem pelaviagem. Cores, perfumes, sons, palavras, imagens,paisagens, odores, emoções, tudo entra em colisão noespaço mental das noites profundas. Os ritmosfisiológicos se reconstituem na obscuridade dos sonosreparadores. Durante esse tempo, a carne sofre, oorganismo modifica sua respiração, sua cadência, o peso

Page 71: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

muscular e intelectual cede o lugar a uma maior leveza.A circulação sanguínea, a pressão cardíaca, as noitesreorganizadas, o retorno do social trabalham juntos parao abandono do tempo transcorrido, para a suareformulação na perspectiva de um tempo redescoberto.Sob o teto que abriga o adormecido se tecem os fios deuma história em via de se cristalizar, de endurecer. Embreve ela poderá se apresentar sob a forma de um relatológico e de uma narração coerente. As claridades diurnasnão cessam de se alimentar dos assombros noturnos.

Page 72: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

DEPOIS

Page 73: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

CRISTALIZAR UMA VERSÃO

Para que tenha sentido, a viagem deve passar por umtrabalho de contração, de compressão. Do Diversoprimitivo ao Uno definitivo, uma ascese intelectual seimpõe. No entanto, se não prestarmos atenção, amemória produz antes o inverso. É preferível que avontade trabalhe para constituir a memória. O que nãoadquire uma forma nítida e precisa se dilui, vai embora,se espalha. A lembrança formula-se pela secreção de umaabundância de detritos. A quantidade de informações queassaltam o corpo é incapaz de subsistir como tal. Umaseleção rigorosa afasta o anedótico para que o espírito seconcentre no essencial – emoções cruciais, percepçõescardinais. Arquiteta-se, então, um mundo.

Vivemos numa época de renúncia à memória. Tudocontribui a esse holocausto da lembrança. Os antigos,poupados da superabundância de máquinas às quaisconfiamos a tarefa de lembrar por nós, desenvolveramuma quantidade incrível de procedimentosmnemotécnicos, uns mais extraordinários que os outros.Baseando-se na estrutura das peças de uma casa, ou cmsuas disposições facilmente memorizadas no espaço, osmestres de retórica e os oradores convidavam a associaros pontos fortes de uma demonstração a cantos, ângulos,linhas, volumes, a fim de simplificar o complexo e dedispor permanentemente da totalidade das informaçõesarmazenadas. Ao se deslocarem com os referenciaisfornecidos pela habitação mental, eles reencontravam, acada um de seus passos virtuais, as principais entradas deum discurso. Desse modo, memorizavam umaquantidade incalculável de fatos e gestos, de palavras eideias.

Page 74: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

Hoje, os suportes de papel, elétricos, magnéticos einformáticos destronam a massa cinzenta e as sinapsestreinadas. Vagamos no universo acompanhados demáquinas superpoderosas, mas dotados de um corpodiminuído, empobrecido, incapaz das operaçõeselementares da memória. O corpo funciona cada vezmenos como um operador sensual e mecaniza-se àmaneira da máquina simplérrima das origens daengenharia. Nossas identidades se formam com materiaispobres, lembranças magras e memórias vazias. Arevolução metafísica em curso se preocupa com essehomem ausente a si mesmo, incapaz de usar asfaculdades do seu corpo – potência dos sentidos e gêniodas recordações.

A memória precisa ser trabalhada, exercitada,solicitada, precisa se querer, caso contrário perece,morre, seca, encarquilhada sobre si mesma, e vira umaconcha vazia para um ser oco. A imprensa, a gravura, afotografia, o cinema, o gravador, a calculadora, ocomputador aumentam as memórias artificiais, éverdade, mas ao mesmo tempo reduzem as possibilidadesmnemônicas humanas. O olho vê menos, o nariz e a bocanão percebem mais, o tato diminui, a audição regride,embrutecida pelos ruídos perpétuos e pelo parasitismo dedecibéis redundantes. O real aparece agora em suasimples modalidade presente, no instante puro, semraízes nem prolongamentos.

Reativar a fixação das vertigens, retomar nossasanotações, nossos cadernos de croquis, fotos, bilhetes epapéis diversos, consultar novamente os suportes aosquais confiamos nossas impressões solicita a memóriacom eficácia. Tornamos a mergulhar no amontoado dasimpressões imediatas retidas no tempo, podendo separaro essencial e trazer de novo à superfície os momentos deluz com os quais se constrói a lembrança. A obra se

Page 75: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

anuncia e depois se enuncia nesse trabalho voluntarista.Com o passado preparamos o futuro, assim o presentefica mais denso, mais coerente, mais consistente.Organizar os vestígios desobstrui, põe a alma em forma.De volta à casa, em nossa escrivaninha, os restos seacumulam. Então se esboçam um traço nítido, uma linhaclara, um desenho seguro.

A consulta dos documentos pode ser acompanhada danarração feita a um terceiro. Contar é igualmenteorganizar. Os feiticeiros africanos, os que gostam deinventar histórias nas aldeias subsaarianas, contadoresantigos como os koriaque [no nordeste da Rússia] e osxamãs do Ártico transmitem ordem e sentido quando sedirigem às assembleias, quando prendem a atenção dosindivíduos reunidos a seu redor. Os deuses e suashistórias, os ritos e seus sabores, as cosmogonias e seusmistérios, os mitos e suas razões atravessam as idades,nos tempos em que a civilização se reduz à oralidade,pelo simples transporte de palavras e de verbos.Reconstituir um périplo reitera o périplo: ao dizer umavez, vive-se duas. Dizer três vezes é viver quatro.

Graças à narração e através dela, a memória seguetrajetos que se fixam e ganham uma forma capaz de setornar indelével. Na maioria das vezes, quando umaviagem se formula pela primeira vez, vêmo-laestranhamente reaparecer como um guia, uma ordem,uma organização ritual. Por encantamento oencadeamento persiste, não obstante o passar do tempo.Para o grande prejuízo dos ouvintes da história contadavárias vezes, as mesmas palavras, as mesmas frases, asmesmas respirações e até os mesmos ditos espirituososacontecem nos mesmos lugares. A música, o ritmo e acadência nas quais o diverso tomou forma fossilizam-se aponto de forçar um fio condutor, com blocos de sentidose disposições anedóticas. O relato confunde-se com a

Page 76: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

história, junta-se à sua trama e à sua espessura, a formaconduz o fundo.

À maneira dos movimentos numa peça musical, aproposição da história se fecha em sua epifania, comoum quarteto de Haydn – moderado, lento, rápido, fugadouma sinfonia de Brahms – allegro ma non tropo,moderadamente lento, alegro e rápido, um pouco menosrápido, allegro vivace, enérgico e apaixonado, maisrápido –, ou uma peça de Dutilleux – encantatória, linear,obsessiva, entorpecida e flamejante. A memorização seefetua segundo o princípio de uma melodia, de umaretomada, de um tema obstinado, de uma variação, deuma fuga, de um contraponto. Musicar o real obriga-o aaparecer em modos mais facilmente perpetuáveis.

Duas, três ou quatro vezes contados, os detalhes, asperipécias e as anedotas se encadeiam, se deduzem, seconvocam, asseguram a coerência do conjunto. Falarsobre um acontecimento – a viagem, mas não só ela – éclassificar e dispor em fórmula, reunir e conjurar adispersão, matematizar o mundo e tornar possível suapoetização, em particular produzindo os arabescos e obarroco necessários dentro dos limites de um movimento– apresentação dos fatos, esboço de um enigma,dramatização, tensão, resolução na calma, indicação dassaídas, conclusões propostas em quedas. A poéticasolicita a retórica.

Reduzir o diverso a uma proposição formal permiteestabelecer as bases de um romance lógico, instalando-onum mecanismo conceituai, espiritual e metafísico noqual ele evolui à maneira de um animal de que nosaproximamos sem nunca circunscrevê-lo. No jogoxamanístico, oral, retórico, teatral, verbal, o diversoaberto do real focaliza-se num diverso fechado em simesmo: o da narrativa. A lembrança nasce dessasoperações de cristalização e de fechamento, de

Page 77: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

endurecimento da matéria outrora macia e maleável. Overbo inflige à cera uma marca privada e produz odocumento e o arquivo suscetíveis de consultas.

Em realidade, a experiência procede do velho sonhomallarmeano: fazer o real culminar no texto, transfigurara vida em experiências capazes de resultar num livro. Aprosa do mundo, a escrita de si, a retórica mnemônica e apoética da geografia se mesclam para produzir umcomposto singular, quimicamente puro: memória talhadano mármore, dobrada no verso ou fundida no bronze.Somente a experiência escrita permite dar conta datotalidade dos sentidos. Os outros suportes sãorelativamente pobres: a aquarela, o desenho, a fotocaptam o real numa de suas modalidades – a cor, a linha,o traço, o desenho, a imagem nunca do forma integral.

Já o poema, como quintessência do texto, mastambém a prosa, podem captar e restituir um cheiro dejasmim de um jardim do Oriente, uma luz acima de umacidade que se reflete nas águas de um rio, umatemperatura morna numa floresta tropical saturada dosperfumes de terra, húmus e folhas em decomposição, omurmúrio de um riacho dissimulado no ar úmido ou aumidade desse lugar. Somente o verbo circunscreve oscinco sentidos, e mais. O trajeto conduz das coisas àspalavras, da vida ao texto, da viagem ao verbo, de si a si.Na operação que vai do universo infinito à sua fórmulapontual e momentaneamente acabada, sintetizam-sefragmentos de memória transfigurados em lembrançascintilantes.

Page 78: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

DIZER O MUNDO

O mundo resiste, porém, às tentativas de colocá-loem palavras. A poesia permite, por certo, a aproximaçãomais sutil, mas a mais volátil igualmente. Quanto maisabundantes a imagem e as sinestesias, mais o epicentrodo real aparece, mas este se mostra também mais frágil,delicado, evanescente. O poema é lido, relido, meditado,alcança o éter, pedindo sempre uma reativação da leitura.O Equador ou a Ásia de Michaux convidam à meditação,à apreensão lenta, ao tempo lúdico, assim como oMéxico de Antonin Artaud. Eles são poetas, certamente,mas não geógrafos. Contudo as duas disciplinas seignoram desde sempre. Heródoto e Estrabão, de um lado,Píndaro e Teógnis, de outro: não há passagem entre osdois universos.

Os filósofos, de maneira global, negligenciam ageografia. A história lhes permite pensar a política, mas aescrita da terra – que é o significado de geografia, emgrego – não conta com seu favor e parece inútil àprimeira vista. Os dois mundos, no entanto, podem secomunicar e engendrar uma poética de tipo pré-socráticoou bachelardiano: para isso, basta invocar uma retóricados elementos, uma metafísica da terra e do fogo, umaontologia do ar e do éter, uma lógica das matérias e dosfluxos, em suma, uma estética. A etimologia assinala oparentesco desta palavra e da faculdade de sentir ouperceber o sensível. Uma poética da geografia gera umaestética materialista e dinâmica, uma filosofia das forçase dos fluxos, das formas e dos movimentos.

Claro que pensamos em Deleuze e em seu tratado denomadologia, em seus múltiplos platôs, suas máquinasabstratas e sua desterritorialização, seus estratos e planos

Page 79: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

de consistência, suas linhas de segmentos e seus fluxosde quanta, seus pontos, seus devires e seus blocos, suaspaisagens melódicas e suas explanações sobre o natal, oliso ou o estriado. Em Mil platôs há múltiplasconsiderações úteis aos geógrafos para elaborar umdiscurso moderno e conceitualmente sólido. Pensoencontrar reminiscências do trabalho deleuziano nageografia coremática surgida nos anos 1980. Ela permite,no momento da viagem, ver melhor as paisagens,perceber melhor o acontecimento das dobras da terra, nacrista terrestre, na superfície das geologias.

Gosto de olhar, pelas janelinhas dos aviões, ageografia encarnada, compreender movimentos que derepente se tornam inteligíveis graças aos coremas deRobert Brunet. Cidades, cachos de aldeias, estradas nasmontanhas, geologias caprichosas, a distribuição da luzdo dia nos vales, das sombras nas encostas voltadas parao sul, das luzes nas encostas voltadas para o norte, aslinhas das ferrovias, o recorte dos campos; gosto dosespaços amarelos da colza, do verde do trigogerminando, dos violetas ou malvas da lavanda; gosto dever o traçado das margens, as costas do litoral, ascorrentes e os jogos de cores no mar, as redeshidrográficas, lagos, riachos, açudes transformados emespelhos violentos pelo sol; gosto de ver o movimentodos carros, pequenos traços lentos nas estradas, deacompanhar os trens, longas serpentes ondulantes, de veros barcos deslizarem, pesados e lentos, ou o andar doshumanos, fúteis e essenciais.

Toda essa diversidade vista do céu consiste numaengenhosa arte de elementos combinatórios quepermitem uma verdadeira decifração do mundo, umaautêntica leitura do real geográfico. O que é então ageografia coremática? É um alfabeto de signos, oscoremas, capazes de explicar todas as organizações

Page 80: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

espaciais legíveis nas paisagens. O observador indolenteinclinado sobre a terra, através da janelinha do avião,pode, com o auxílio dessas categorias da razão purageográfica, ler, decifrar, compreender, operarinteligentemente com sua visão. Do real sensível àscategorias inteligíveis, o viajante efetua ele mesmo aredução, ativa a processão, para falar em termosplotinianos.

Donde um verdadeiro gozo da inteligência doviajante e do observador quando ele sabe lembrar-se daarte de colocar em perspectiva instâncias que, a priori,parecem não ter relação alguma. Uma floresta e umaárea, um caminho e uma linha, uma aldeia e um ponto,uma paisagem e uma rede – pois ponto, linha, área e redesão as quatro entradas a serem combinadas com as setecolunas que significam as estruturas elementares doespaço: malha, quadriculado, gravitação, contato,tropismo, dinâmica territorial e hierarquia. Com o auxíliodos quatro referenciais como abscissa e dos sete comoordenadas obtêm-se 28 figuras cardinais cuja disposiçãopermite decifrar a terra.

No ruído do avião que viaja a milhares de metros dealtitude, podemos então nos divertir em buscar eencontrar áreas em contato, semeaduras urbanas, redesem forma de malha, podemos ver assimetrias em ação,reconhecer relações gráficas, constatar ligaçõespreferenciais, rupturas, distinguir interfaces, seguir linhasde compartilhamento, surpreender pontas de redes, eixosde propagação ou áreas de extensão, pontos atraídos esuperficies de tendência. A diversidade do real concretose simplifica graças à grade de leitura que ajuda adecodificar a ação da paisagem e da natureza.

No solo, de volta à terra, habitamos essas figurastransformadas em outras, depois da surpresa de suacoerência vista do céu. Movemo-nos diferentemente num

Page 81: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

lugar visto antes do avião, englobado (palavra queexprime bem a operação intelectual de redução ecolocação em forma do sentido num globo, numa esferaperfeita como numa mônada leibniziana). Atravessarcampos de força, passar a linha invisível de umainterface continental, penetrar um arco ou mesmo ver-sediante de uma “banana azul” [Expressão criada pelogeógrafo Roger Brunet para designar a forma dedistribuição das megalópoles européias (N.T.)], de géonsou de táxons: eis aí matéria a pensar, meditar, sonhar.Essa tabela de Mendeleiev da geografia declina-se emgramática e sintaxe produtoras de um estilo de leitura, deuma poética generalizada da viagem.

Evidentemente os profissionais da geografia resistema esse novo método, demasiado poético e filosófico,demasiado impreciso e conceitual, que reúne Píndaro eEstrabão ao mesmo tempo. Se alguma objeção lhe podeser feita, ela destina-se antes a completar a rede do que ainvalidar o modelo inteiro. Os coremas, dizem, servempara nomear o trabalho que a geografia clássica produz amontante. E daí? Nomear é criar, é fazer advir, ésintetizar, dar uma ordem, tornar possível um rigorintelectual que a geografia pede com frequência àmatemática – com a qual tudo se pode dizer –, é filosofarcomo demiurgo.

Desde que tomei conhecimento da geografiacoremática, não consigo deixar de ver de outra forma, deconstatar o funcionamento do meu olhar diante daspaisagens, mais curioso, mais avisado e mais excitado.De viajar diferentemente, portanto. Os blocoscontinentais, os fluxos marítimos e aéreos, as situaçõesespaciais de portos e aeroportos, as estradas eautoestradas, com certeza, mas também os caminhos nocampo e as trilhas florestais dos meus primeiros anos naNormandia; os rios imensos das minhas viagens

Page 82: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

transatlânticas, mas também o riozinho da minha aldeianatal; as floresta do continente sul-americano, mastambém os bosques da minha infância; as vegetaçõesextravagantes da Rússia, os desertos africanos, aspequenas ilhas que constelam o contorno dinamarquês,mas também as matas da região de Auge, a planície deArgentan, o nascimento do maciço armoricano [naBretanha francesa], minhas paisagens fundadoras.

Ao redor de todo o planeta se leem e se veem, quandoaprendemos a lê-los e a vê-los, pontos de localização,linhas de ligação, fluxos geradores de desequilíbrios,passagens abertas e fechadas, crescimentos edecrescimentos, atrações e repulsões, auréolas e faixas,pontas de redes e áreas de drenagem. Essas formas purasse dissimulam em encarnações complexas, em figurassensíveis e concretas. A geografia coremática, mais quequalquer outra, ajuda a identificar esses contornos, deoutro modo condenados a permanecer ocultos,travestidos, complicados. Ela oferece os meiosintelectuais de uma compreensão global e particular,universal e singular. Quando dançam sob os olhos doviajante essas categorias sintéticas, o trabalho poético setorna possível, trabalho do devaneio e da meditação, dosentimento e da sensação. Uma poética da geografiasupõe essa arte de deixar-se embeber pela paisagem, paraquerer depois compreendê-la, vê-la em suascombinações, antes da partida para as regiões lúdicasonde o poeta acompanha o geógrafo e o filósofo, comocomplemento, não como inimigo. Então nosaproximamos daquela estética do Diverso em queSegalen buscava vestígios poéticos imemoriais.

Page 83: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

CODA

Page 84: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

CONSIDERAR UMACONTINUAÇÃO

Saber-se nômade uma vez é o que basta para nosconvencer de que tornaremos a partir, de que a recenteviagem não será a última. A menos que a morte aproveiteum trajeto para nos colher... A paixão da viagem nãoabandona o corpo de quem experimentou os venenosviolentos do despaisamento, do corpo ampliado, dasolidão existencial, da metafísica da alteridade, daestética encarnada. É o que imagino, pelo menos. Exceto,talvez, quando a carne não responde mais e a chamavacila, rarefazendo-se nas proximidades de um fim devida anunciado. A vitalidade dos grandes viajantes mefascina. O mal fulminante, o fim brutal podem impedir odeclínio regular de energia e a entropia generalizada. Ofim misterioso de Segalen, exangue ao pé de uma árvorenos bosques de Huelgoat, com um Shakespeare na mão,parece-me emblemático: não morrer sob um teto, masfora, sob o céu ou as estrelas, vivo.

A busca de si termina no momento do último suspiro.Até à beira do túmulo, é preciso querer ainda e sempre aforça, a vida, o movimento. O mundo está cheio devulcões a escalar, de praias a meditar, de rios a descer, deestradas a seguir, de trens e aviões a tomar, ele não cessade oferecer auroras e crepúsculos, chuvas e sóisincandescentes, desertos e montanhas, florestas ecampos; ele propõe auroras boreais e paraélios[fenômeno produzido pela reflexão e refração da luz queparece multiplicar a imagem do Sol. (N.T.)], arco-íris etornados, nuvens, as maravilhosas nuvens, climas emagias; ele convida a cruzar os trópicos, a cavalgar o

Page 85: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

equador, a ir além do círculo polar, a banhar-se nooceano Índico, a visitar as pirâmides, a muralha da Chinaou os templos incas. A multiplicidade das paisagensdesmente a unicidade das cidades; o diverso desaparecenas megalópoles, mas nunca abandonará os arrozaisasiáticos, a baía de Along [no Vietnã], a tundra siberiana,a floresta amazônica, o deserto do Saara, as paisagenseuropeias, as costas mediterrâneas.

Alguns voltam de maneira compulsiva a lugares jávisitados, reencontrando hábitos de sedentário no núcleomesmo da experiência nômade: ir cinquenta vezes aoVietnã, cem vezes ao Japão, retornar sempre aos mesmoslugares, que ideia estranha! Esses compulsivos me fazempensar nos padres que leem durante a vida inteira omesmo missal, ignorando a variedade e a riqueza dasbibliotecas. A geografia do planeta vale em primeirolugar pela diversidade, pela diferença, pelamultiplicidade. Ela satisfaz a paixão pelo novo, pelaextravagante novidade. Rever, aqui, impede de vernoutro lugar; estacionar de maneira repetida, mesmo nosantípodas, bloqueia as possibilidades nômades e osefeitos violentos da viagem sobre o corpo e a alma. Orisco é instalar o sedentarismo no núcleo do princípionômade.

Viajar para penetrar os mistérios e os segredos deuma civilização também conduz a mal-entendidos. Ailusão racionalista e intelectualista preside a ideia, falsa,de que se pode trabalhar em profundidade. O espírito dogeógrafo não se confunde com o do geólogo, exploradorde minas e de falhas. Um percorre o planeta e se alegracom o movimento no contorno do mapa-múndi, o outrose instala e cava seu buraco, penetra numa toca para alisepultar sua energia e sua curiosidade. A captura doDiverso contradiz a aposta no Mesmo, ela parte davontade de multiplicar o Outro. O “Exoto”, palavra

Page 86: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br

inventada por Segalen, quer o Diverso, solicita-o até aexaustão, corresponde ao personagem conceitual - afigura filosófica necessária, segundo Deleuze -encarregado de exprimir a pulsão nômade e o gosto pelanovidade.

Considerar uma continuação supõe, portanto, menosa repetição do que a inovação. As ocasiões de partirpodem ser aleatórias: abrir um atlas, fechar os olhos,apontar um país, decidir-se por uma região inesperada,confiar, quando se tem essa oportunidade, nos convitesoferecidos a percorrer o planeta, consentir aos sonhos decriança, desejar outro lugar desejado por uma pessoaquerida, partir nas pegadas de um poeta, de um filósofoou de um artista amados, em busca de uma geografiasentimental encarnada, em busca de uma poética dageografia no espírito de Bachelard, que fala de umapoética do espaço e de um direito de sonhar. A prosa domundo pode ser decifrada, segundo a lição desse filósofoda Borgonha, à maneira da água, da terra, do fogo, dasnuvens, dos sonhos, dos devaneios, de um sótão, de umacasa, de uma concha, da chama de uma vela ou de umalareira. Ou de um poema. Pois o poema do mundo nãocessa de invocar propostas de deciframentos.

Page 87: Teoria Da Viagem - edisciplinas.usp.br