Ri Hg b 2013 Numero 0461

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R IHGB a. 174 n. 461 out./dez. 2013

Transcript of Ri Hg b 2013 Numero 0461

  • R IHGBa. 174n. 461

    out./dez.2013

  • INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRODIRETORIA (2012-2013)Presidente: Arno Wehling1 Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda2 Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco3 Vice-Presidente: Jos Arthur Rios1 Secretrio: Cybelle Moreira de Ipanema2 Secretrio: Maria de Lourdes Viana LyraTesoureiro: Fernando Tasso Fragoso PiresOrador: Alberto da Costa e Silva

    ADMISSO DE SCIOS:Alberto da Costa e SilvaAlberto Venancio FilhoCarlos WehrsFernando Tasso Fragoso PiresJos Arthur Rios

    CINCIAS SOCIAIS: Antnio Celso Alves PereiraCndido Mendes de AlmeidaHelio Jaguaribe de MatosLda Boechat RodriguesMaria da Conceio de M. Cou-tinho Beltro.

    ESTATUTO:Affonso Arinos de Mello FrancoAlberto Venancio FilhoClio BorjaJoo Maurcio A. PinhoVictorino Chermont de Miranda

    GEOGRAFIA:Armando Senna BittencourtJonas de Morais Correia NetoMiridan Britto FalciRonaldo Rogrio de Freitas MouroVera Lcia Cabana de Andrade

    HISTRIA: Eduardo SilvaGuilherme de Andrea FrotaLucia Maria Paschoal GuimaresMarcos Guimares SanchesMaria de Lourdes Vianna Lyra.

    PATRIMNIO: Afonso Celso Villela de CarvalhoAntonio Izaas da Costa AbreuClaudio Moreira BentoFernando Tasso Fragoso PiresRoberto Cavalcanti de Albur-querque.

    COMISSES PERMANENTES

    CONSELHO CONSULTIVOMembros nomeados: Carlos Wehrs, Evaristo de Moraes Filho, Helio Leoncio

    Martins, Joo Hermes Pereira de Arajo, Jos Pedro Pin-to Esposel, Lda Boechat Rodrigues, Luiz de Castro Sou-za, Miridan Britto Falci, Vasco Mariz

    CONSELHO FISCALMembros Efetivos: Antonio Gomes da Costa, Jonas de Morais Cor-

    reia Neto, Marilda Correia Ciribelli.Membros Suplentes: Marcos Guimares Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,

    Roberto Cavalcanti de Albuquerque.

    DIRETORIAS ADJUNTASArquivo: Jaime Antunes da SilvaBiblioteca: Claudio AguiarCursos: Antonio Celso Alves PereiraIconografia: D. Joo de Orleans e Bragana e Pedro K. Vasquez (sub-diretor)Informtica e Dissem. da Informao: Esther Caldas BertolettiMuseu: Vera Lcia Bottrel TostesPatrimnio: Guilherme de Andrea FrotaProjetos Especiais: Mary del PrioreRelaes Externas: Maria da Conceio BeltroRelaes Institucionais: Joo Mauricio de A. PinhoCoordenador da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal

    Guimares (sub-coord.)Editor do Noticirio: Victorino Chermont de Miranda

  • REVISTADO

    INSTITUTO HISTRICOE

    GEOGRFICO BRASILEIRO

    Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.Et possint sera posteritate frui.

    R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174, n. 461, pp. 13-694, out./dez. 2013.

  • Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, ano 174, n. 461, 2013

    Indexada por/Indexed byUlrichs International Periodicals Directory Handbook of Latin American Studies (HLAS) Sumrios Correntes Brasileiros

    Correspondncia:Rev. IHGB Av. Augusto Severo, 8-10 andar Glria CEP: 20021-040 Rio de Janeiro RJ BrasilFone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338e-mail: [email protected] home page: www.ihgb.org.br Copright by IHGBTiragem: 700 exemplaresImpresso no Brasil Printed in BrazilRevisora: Sandra Pssaro Secretria da Revista: Tupiara Machareth

    Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o Instituto, 1839-

    v. : il. ; 23 cm

    TrimestralISSN 0101-4366Ind.: T. 1 (1839) n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. Ind.: n. 401 (1998) 449 (2010) em n. 450

    (2011) N. 408: Anais do Simpsio Momentos Fundadores da Formao Nacional. N. 427: Invent-

    rio analtico da documentao colonial portuguesa na frica, sia e Oceania integrante do acervo do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley N. 432: Colquio Luso-Brasileiro de Histria. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006. N. 436: Curso - 1808 - Transformao do Brasil: de Colnia a Reino e Imprio.

    1. Brasil Histria. 2. Histria. 3. Geografia. I. Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.

    Ficha catalogrfica preparada pela bibliotecria Celia da Costa

  • CONSELHO EDITORIAL

    Arno Wehling UFRJ e UNIRIO Rio de Janeiro RJ BrasilAntonio Manuel Dias Farinha U L Lisboa PortugalCarlos Wehrs IHGB Rio de Janeiro RJ BrasilEduardo Silva FCRB Rio de Janeiro RJ BrasilHumberto Carlos Baquero Moreno UP, UPT, Porto, PortugalJoo Hermes Pereira de Arajo Ministrio das Relaes Exteriores e IHGB Rio de Janeiro RJ BrasilJos Murilo de Carvalho UFRJ Rio de Janeiro RJ BrasilVasco Mariz Ministrio das Relaes Exteriores, CNC e IHGB Rio de Janeiro RJ Brasil

    COMISSO DA REVISTA: EDITORES

    Eduardo Silva FCRB Rio de Janeiro RJ BrasilEsther Bertoletti MinC Rio de Janeiro RJ BrasilLucia Maria Paschoal Guimares UERJ Rio de Janeiro RJ Brasil Maria de Lourdes Viana Lyra UFRJ Rio de Janeiro RJ BrasilMary Del Priore UNIVERSO Niteri RJ Brasil

    CONSELHO CONSULTIVO

    Amado Cervo UnB Braslia DF Brasil Aniello Angelo Avella Universidade de Roma Tor Vergata Roma ItliaAntonio Manuel Botelho Hespanha UNL Lisboa PortugalEdivaldo Machado Boaventura UFBA e UNIFACS Salvador BAFernando Camargo UFPEL Pelotas RS BrasilGeraldo Mrtires Coelho UFPA Belm PAJos Octavio Arruda Mello UFPB Joo Pessoa PBJos Marques UP Porto PortugalJunia Ferreira Furtado UFMG Belo Horizonte MG BrasilLeslie Bethell Universidade Oxford Oxford InglaterraMrcia Elisa de Campos Graf UFPR Curitiba PRMarcus Joaquim Maciel de Carvalho UFPE Recife PEMaria Beatriz Nizza da Silva USP So Paulo SPMaria Luiza Marcilio USP So Paulo SPNestor Goulart Reis Filho USP So Paulo SP BrasilRenato Pinto Venncio UFOP Ouro Preto MG BrasilStuart Schwartz Universidade de Yale Connecticut / EUAVictor Tau Anzoategui UBA e CONICET Buenos Aires Argentina

  • SUMRIOCarta ao Leitor 13Lucia Maria PaschoaL GuiMares

    SEMINRIO BRASIL-PORTUGALPero Vaz de Caminha, o primeiro portugus 17 que escreveu sobre o BrasilManueLa MendonaMareantes e Cartgrafos. O Brasil nos mapas 33 portugueses do sculo XVIFernando Loureno FernandesO poder naval portugus como origem da Marinha do Brasil 45arMando de senna BittencourtA ao militar de Portugal na preservao das terras do Brasil 57GuiLherMe de andrea FrotaEstruturas agrrias: Portugal e Brasil no sculo XIX 67Jos arthur rios Os portugueses e os outros no Rio de Janeiro: 81 relaes socioeconmicas dos lusos com os nacionais e demais imigrantes (1890-1920)isMnia de LiMa MartinsLinguagens do Liberalismo em Portugal e no Brasil 105Lucia Maria Bastos P. nevesUma transio na justia luso-brasileira: da casa 119 da suplicao ao Supremo Tribunal de Justia (1808-1829)arno WehLinG A pervivncia do direito portugus no Brasil 135ricardo MarceLo FonsecaA realidade linguageira do Brasil nos tempos coloniais 145doMcio Proena FiLho Jos de Alencar e um projeto de Brasil 157Joo cezar de castro rocha Os lusodescendentes de Antnio Srgio 169aLBerto da costa e siLva

  • Professores portugueses na Bahia 173 na segunda metade do sculo XXedivaLdo M. Boaventura Relaes luso-brasileiras: 1889-1928 183antnio ceLso aLves PereiraBrasil e Portugal: distanciamento e aproximaes. 197 O fim do Imprio e a promessa da EuropaMarcos castrioto de azaMBuJaBrasileiros nos extremos orientais do 203 Imprio (Sculos XVI a XIX)carLos Francisco Moura Por uma nova Lusitnia: o projeto 223 da revista Atlantida (1915-1920)Lucia Maria PaschoaL GuiMaresA Msica no Rio de Janeiro no tempo de D. Joo VI 235vasco Mariz Livreiros portugueses e brasileiros: 245 relaes culturais atravs dos impressostania Bessone Profissionais portugueses na arquitetura religiosa 257 do Brasil setecentistaMyriaM andrade riBeiro de oLiveira

    I CELEBRAES ACADMICAS I. 1 Sesses solenes ou comemorativas

    A poltica exterior do Brasil em tempos de transformao: 269 tradio, continuidade e mudanaLuiz FeLiPe de seixas corra

    Sesso em homenagem ao centenrio de nascimento do scio Dom Pedro Gasto de Orleans e Bragana

    Recordando Dom Pedro Gasto 285Fernando tasso FraGoso Pires Dom Pedro Gasto e o Arquivo Gro-Par 287JaiMe antunes da siLva

  • Sesso em homenagem ao centenrio de nascimento do scio Monsenhor Guilherme Schubert

    Monsenhor Guilherme Schubert 291 recordaes em seu centenrioarno WehLinG Monsenhor Guilherme Schubert 297 Relembrando sua trajetriaMaria de Lourdes viana Lyra Monsenhor Schubert: o msico amigo 303Miridan Britto FaLci

    Sesso em homenagem ao centenrio de nascimento do scio Jos Honrio Rodrigues

    Um intelectual entre a Histria e a Nacionalidade 307Jos octvio de arruda MeLLo Uma companheira intelectual: Lda Boechat Rodrigues 317Miridan Britto FaLci Jos Honrio Rodrigues e a historiografia regional 323GaBrieL Bittencourt Corpo e alma: histria e tradio 329 no pensamento de Jos Honrio Rodriguesandre de LeMos Freixo

    Sesso em homenagem aos 250 anos de nascimento de Jos Bonifcio de Andrada e Silva

    coordenao: Jos MuriLo de carvaLho

    Jos Bonifcio e a Cincia 355carLos a. L. FiLGueiras Jos Bonifcio e a criao da poltica exterior do Brasil 387ruBens ricuPero

    I. 2 Sesses de posseDiscurso de recepo ao scio honorrio 397 Luiz Felipe LampreiaLuiz FeLiPe de seixas corra

  • O Itamaraty: uma instituio de elite do Estado brasileiro 401Luiz FeLiPe LaMPreia Discurso de recepo ao scio correspondente 409 Laurent VidalcLudio aGuiar O deslocamento e a espera, outras razes do Brasil 415Laurent vidaL Discurso de recepo ao scio correspondente 431 Srgio Paulo Muniz CostaJonas Morais correia neto O papel da Histria no Brasil contemporneo 437srGio PauLo Muniz costa Discurso de recepo ao scio correspondente Lus Cludio Villafae Gomes Santos 445vasco Mariz Duarte da Ponte Ribeiro fronteiro-mor do Imprio 449Lus cLudio viLLaFae G. santos Discurso de recepo ao scio correspondente 461 Jlio Bandeiravasco Mariz A ninfa tupinamb dos Franceses e o 465 Instituto Histrico e Geogrfico do BrasilJLio Bandeira Discurso de recepo scia titular 473 Dora Monteiro e Silva de Alcntaravictorino cherMont de Miranda Alguma arquitetura brasileira e suas razes 477dora Monteiro e siLva de aLcntara Discurso de recepo ao scio honorrio 491 Joo Eurpedes de Franklin Lealarno WehLinG A Paleografia e os manuscritos brasileiros 495Joo eurPedes FrankLin LeaL

  • Discurso de recepo ao scio correspondente 501 Augusto Csar Zeferinoarno WehLinG Fortalezas dos mares do sul a Geografia da 505 guerra num Imprio em riscoauGusto csar zeFerino

    I. 3 - Sesso MagnaFala do PresidenteO Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro 521 e a produo do conhecimentoarno WehLinG Relatrio das Atividades 529cyBeLLe Moreira de iPaneMa Elogios dos scios falecidos 535aLBerto da costa e siLva

    II ATAS E DELIBERAES SOCIAISII. 1 Atas das assembleias gerais, ordinrias 539

    e extraordinriasII. 2 Atas de reunies de Diretoria 543II. 3 Atas de sesses ordinrias, extraordinrias e Magna 544II. 4 Documentos e pareceres das Comisses Permanentes 560

    4.1 Propostas para eleio e admisso de scios 5604.2 Pareceres das Comisses 569

    a Comisso de Admisso de Scios 569b Comisso de Histria 569c Comisso de Cincias Sociais 570

    II. 5 Atas da Comisso de Estudos e Pesquisas 570 Histricas Cephas

    III INFORMES ADMINISTRATIVOS III. 1 Atos do Presidente

    Editais e Portarias 625 III. 2 Relatrios Setoriais

    Biblioteca 633

  • Arquivo 634Iconografia 640Mapoteca 640Hemeroteca 641Museu 643

    III. 3 Publicaes RecebidasLivros recebidos 647Peridicos recebidos 658

    III. 4 EstatsticasSala de Leitura 664Visitas ao museu 664Acesso ao site 664

    IV QUADRO SOCIAL IV. 1 Cadastro Social

    a Por classes 665b Presidentes e endereos dos institutos 683

    histricos estaduais e de Petrpolis IV. 2 Movimentao do quadro social

    Eleies 686Transferncias 686Falecimentos 686

    IV. 3 Vagas existentes no quadro social em 31/12/2013 687 Normas de publicao 689 Guide for the authors 691

  • Carta ao Leitor

    O ltimo nmero de cada ano da R.IHGB dedicado, tradicionalmente, ao relato da performance do Instituto Histrico no exerccio que ora se encer-ra. Voltado para o registro da vida acadmica e demais atividades institucio-nais da Casa, sua organizao procura combinar as especificidades de revista especializada com a observncia aos dispositivos regimentais do IHGB.

    Em 2013, entre outras iniciativas, o Instituto promoveu diversas jor-nadas cientficas de mbito internacional, a exemplo do Seminrio Brasil--Portugal. No presente nmero, a R. IHGB reserva suas pginas iniciais para a publicao das contribuies expostas no correr deste Seminrio, cujos resultados devero oferecer novos encaminhamentos historiografia luso--brasileira.

    As demais matrias, como de costume, concentram-se em torno de qua-tro grandes sees celebraes acadmicas; atas e deliberaes; infor-mes administrativos e quadro social. No primeiro segmento aparecem intervenes proferidas em eventos que tiveram lugar no Instituto, princi-piando pela sesso de abertura do ano social, com a conferncia de Luiz Felipe de Seixas Corra, intitulada A poltica exterior do Brasil em tempos de transformao; tradio, continuidade e mudana. Outras exposies se sucederam nas homenagens aos centenrios de nascimento dos scios d. Pe-dro Gasto de Orleans e Bragana, monsenhor Guilherme Schubert e Jos Honrio Rodrigues. O primeiro foi lembrado por Fernando Tasso Fragoso Pires, Jaime Antunes da Silva e Mauricio Vicente Ferreira Jnior. O segundo pelos depoimentos de Arno Wehling, Maria de Lourdes Viana Lyra e Miridan Britto Falci, que tambm interpretou ao piano duas composies inditas de monsenhor Schubert. Por sua vez, o preito a Jos Honrio congregou as falas de Jos Octvio de Arruda Mello, Miridan Britto Falci, Gabriel Bittencourt e Andr de Lemos Freixo. Outra efemride celebrada pelo Instituto, a passa-gem dos duzentos e cinqenta anos de nascimento de Jos Bonifcio de An-drada e Silva, foi alvo de uma sesso acadmica coordenada por Jos Murilo de Carvalho e que contou com as participaes de Carlos A. L. Filgueiras, Rubens Ricupero, Alberto da Costa e Silva e Lucia Bastos Pereira das Neves.

    Saudando o ingresso de novos filiados corporao, a R. IHGB publica os discursos de posse dos scios Luiz Felipe Lampreia, Laurent Vidal, Srgio Paulo Muniz Costa, Lus Cludio Villafae Gomes Santos, Jlio Bandeira, Dora Monteiro e Silva de Alcntara, Joo Eurpedes Franklin Leal e Augus-to Cesar Zeferino recepcionados, respectivamente, por Luiz Felipe Seixas Corra, Claudio Aguiar, Jonas de Morais Correia Neto, Vasco Mariz (Lus Claudio e Jlio), Victorino Chermont de Miranda e Arno Wehling (Joo

  • Eurpedes e Augusto Cesar). Mais do que testemunhos da vitalidade e da renovao dos quadros do Instituto, tais textos constituem importantes fontes para o estudo das tendncias que orientam a historiografia brasileira contem-pornea, como se poder constatar.

    Arremata o primeiro segmento da R.IHGB o conjunto das intervenes realizadas durante a sesso magna de aniversrio do Instituto Histrico, com o pronunciamento do Presidente, o Relatrio do ltimo exerccio, apresen-tado pela Primeira Secretria, e o Elogio dos scios falecidos, pelo Orador do IHGB, um tributo da Casa memria daqueles que partiram.

    Na seo intitulada Atas e deliberaes sociais divulgam-se as deci-ses tomadas em assemblias gerais, reunies ordinrias e extraordinrias, bem como os pareceres das comisses de trabalho permanentes do Instituto. Neste rol de documentos institucionais, cabe salientar as atas das reunies peridicas da Comisso de Estudos e Pesquisas Histricas (CEPHAS), espa-o j tradicional de debates do IHGB, onde estudiosos brasileiros e estrangei-ros comunicam os resultados de suas investigaes e trabalhos mais recentes.

    Os Informes Administrativos agregam os atos e as portarias baixadas pela presidncia no exerccio de 2013, os relatrios de atividades dos setores de Biblioteca, Arquivo, Iconografia, Hemeroteca, Mapoteca e Museu, assim como os quantitativos das publicaes recebidas, das visitas ao Museu e Sala de Leitura e dos acessos ao site do Instituto. Preparado pelos funcion-rios do IHGB, o alentado inventrio atesta o vigor da corporao, bem como o papel relevante que cumpre h cento e setenta e cinco anos no campo da pesquisa e da produo do conhecimento histrico.

    Ao final deste nmero, publicam-se o Quadro Social, por classe e or-dem alfabtica, a relao dos Institutos Histricos estaduais, seus endereos e os nomes dos respectivos presidentes. A publicao conclui-se com a mo-vimentao do quadro de associados at a data de 31 de dezembro de 2013.

    Boa leitura!

    Lucia Maria Paschoal Guimares

    Diretora da Revista

  • R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (461):15-16, out./dez. 2013 15

    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

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    SEMINRIO

    Brasil-Portugal

    2 a 4 de abril de 2013

  • Iniciativa e responsabilidade acadmica

    INSTITUTO HISTRICOE

    GEOGRFICO BRASILEIRO

  • R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (461):17-32, out./dez. 2013 17

    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    PERO VAZ DE CAMINHA, O PRIMEIRO PORTUGUS QUE ESCREVEU SOBRE O BRASIL1

    ManueLa Mendona2

    1. Se h, na Histria de Portugal, figuras que decorreram da sua circuns-tncia, Pero Vaz de Caminha enfileira prioritariamente nesse grupo. Com efeito, no fora a carta que, de Porto Seguro, escreveu, a 1 de maio do ano de Cristo de 1500, ao monarca Venturoso e a sua passagem na vida teria sido condenada ao anonimato. Mas, na feliz expresso de Joaquim Verssimo Ser-ro, a sua carta no representa apenas uma fonte histrica, mas o prprio documento transformado em histria3. Ela constitui como que a certido de batismo desse novo mundo, isto o diploma natalcio lavrado beira do bero de uma nacionalidade futura4. E Pero Vaz de Caminha agiganta-se as-sim e impe-se como autor privilegiado das fontes para a Histria ou, melhor dizendo, o primeiro que escreveu sobre o Brasil!

    Personagem pouco conhecida, pareceu-me interessante esboar aqui os traos fundamentais da sua biografia. E, nesta poca pascal, com redobrada razo, pois vivemos o mesmo tempo durante o qual a armada de Pedro l-vares Cabral avistou o monte que denominou Pascoal e ancorou nesta Terra de Vera Cruz5!

    semelhana da maioria dos personagens envolvidos na gesta martima dos portugueses, tambm de Pero Vaz de Caminha pouco sabemos. Porm, possvel conjugar pequenas informaes que permitem recuperar alguns momentos da sua vida6.

    1 Este texto segue, basicamente, um artigo da nossa autoria pub. em, A Carta de Pero Vaz de Ca-minha. Auto do Nascimento do Brasil, Ericeira, 2000.2 Scia correspondente portuguesa e presidente da Academia Portuguesa da Histria.3 Joaquim Verssimo Serro, Histria de Portugal, vol. III (1495-1580), Lisboa, 1978, p.104.4 Capristano de Abreu, O Descobrimento do Brasil, ed. Anurio do Brasil, Rio de Janeiro, 1929, pp. 238-239, cit. por Joaquim Verssimo Serro, op. cit., p.105.5 Trata-se da segunda armada enviada ndia. Partiu de Lisboa a 9 de maro de 1500 e era com-posta por 13 navios. Um desvio, oficialmente casual, levou-a costa brasileira.6 So fundamentalmente quatro os autores que se debruam sobre esta figura: Sousa Viterbo (Pero Vaz de Caminha e a Primeira Narrativa do Descobrimento do Brasil, Lisboa, 1902), Antnio Cruz (Pero Vaz de Caminha, cidado do Porto. Novas Achegas para a Histria da sua Famlia, Porto, 1941), Dias Dinis (A Famlia de Pero Vaz de Caminha. Novos Documentos, Lisboa, 1961) e Jaime Corteso (A Carta de Pero Vaz e Caminha, Lisboa, 1967). Outros houve que sobre ela es-creveram, dos quais destacaremos: Carlos Malheiro Dias (Histria da Colonizao Portuguesa do Brasil, vol. II, Porto, 1923, pp.76 e ss), Manuel de Sousa Pinto (Pero Vaz de Caminha e a Carta do Achamento do Brasil, Lisboa, 1934) e Flrio Jos de Oliveira (A Carta de Pero Vaz de Caminha e o descobrimento do Brasil, Lisboa, 1948). A Carta foi igualmente estudada por Carlos Simes Ventura (A Mais Recente Leitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, Rio de Janeiro, 1943), mas sem qualquer

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  • ManueLa Mendona

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    Tanto quanto sabemos, o mais antigo documento que se lhe refere de 8 de maio de 14767. Trata-se de uma carta na qual D. Afonso V lhe faz merc do ofcio de Mestre da balana da moeda da cidade do Porto, por morte de seu pai, Vasco Fernandes de Caminha, ou quando este decidisse ceder-lho, uma vez que ento estava vivo e ainda o detinha.

    Neste documento o monarca intitula-o cavaleiro da minha casa. Sig-nifica isso que, no ano de 1476, Pero Vaz estava ao servio do rei e tinha j idade para ser cavaleiro. No sabemos quando teria recebido esse ttulo. Porm, admitimos que tal tivesse acontecido na sequncia da conquista de Arzila, em 1471. Isto porque muitos jovens acompanharam o rei e seu filho, o Prncipe D. Joo, que ali foi armado cavaleiro e, segundo o cronista, na sequncia do ato, elRei e ho Principe armaram alli muitos cavalleiros que naquele dia ho tinham bem merecido8. Se, ento, tivesse, como era habitual para aceder ao estatuto, 20/21 anos, poderemos situar o nascimento de Pero Vaz de Caminha por volta de 14509! Esta hiptese ganha consistncia se co-nhecermos o percurso familiar do jovem. isso que, de seguida, tentaremos.

    2. Vejamos, pois, a sua ascendncia: seu pai foi, como fica claro no documento rgio a que j aludimos, Vasco Fernandes de Caminha. Esta cer-teza confirmada por novo documento, feito em 2 de abril de 1478. Trata-se do testamento do prprio Vasco Fernandes de Caminha, no qual ele nomeia como seu testamenteiro precisamente Pero Vaaz meu filho10. A partir desta mesma fonte conhecemos ainda os nomes: de sua me, Isabel Afonso; de seus avs paternos, Ferno Gonalves e Ins Martins e de suas duas irms, Constana Gonalves e Maria Fernandes.

    Como podemos notar, em nenhum destes familiares aparece o apelido Caminha. Donde ter ento surgido este designativo? Em minha opinio, ele comeou a ser usado com Vasco Fernandes. Note-se que seu pai (o av de Pero Vaz) chamava-se Ferno Gonalves. Portanto, o apelido de Vasco seria Fernandes. Tal significava, como era uso no tempo, filho de Ferno.

    abordagem figura do seu escrivo. Porm, apenas os quatro primeiros autores nos fornecem dados documentais para o tema que abordamos, sendo de destacar Sousa Viterbo e Dias Dinis, este ltimo pelos novos dados que acrescenta ao elenco documental fornecido pelo primeiro. Dessas fontes nos serviremos, completando a nossa leitura com mais alguns registos que encontramos e nos permitem alargar as informaes j conhecidas.7 AN/TT, Ch. de D. Afonso V, lv. 28, fl.99 v. Pub. por Sousa Viterbo, op. cit.,p. 21.8 Damio de Gis, Crnica do Prncipe D. Joo, edio crtica e comentada por Graa Almeida Rodrigues, Lisboa, 1977, p. 72.9 Sobre o estatuto de cavaleiro pode ver-se: Manuela Mendona, O Estatuto de cavaleiro no in-cio do sec. XVI, In: Actas do Colquio, Laos Historico-Militares Luso-Magrebinos, Lisboa, 2002, pp. 451-487.10 Gabinete de Histria da Cidade do Porto, Pergaminhos da Cmara, vol. V, doc.51.

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    Por seu turno, Pero era filho de Vasco, donde, na mesma ordem de ideias, lhe vinha o apelido de Vaz. Portanto, o apelido Caminha no pertencia famlia. Um outro documento, que tambm o mais antigo que encontramos sobre Vasco Fernandes, ajuda a clarificar esta convico. Trata-se da doao de certos bens, no termo de Caminha, em 1449 e 145011. Na respectiva carta rgia, D. Afonso V nomeia-o apenas como Vasco Fernandes, dizendo-o es-cudeiro e secretrio do Duque de Bragana. S a partir de 1458 voltamos a encontrar documentos que se lhe referem, mas neles j se regista o apelido Caminha. Porm, importa destacar um deles, que tambm ajuda a suportar a nossa hiptese. Trata-se de uma carta rgia, na qual D. Afonso V confirma a perfilhao que Pedro Eanes fizera a Vasco Fernandes12. Ora, neste texto, o apelido Caminha apenas se verifica na identificao inicial, feita no pro-tocolo do documento, naturalmente em tempos do monarca africano. Depois insere-se a carta de adoo e, ao longo de todo esse texto, refere-se apenas o nome de Vasco Fernandes e por treze vezes. Quer isso dizer, em nossa opinio, que, quando em 1462 D. Afonso V confirma o documento anterior, j seria comum o uso do apelido Caminha. Porm, tal no acontecia ainda quando Vasco Fernandes fora adotado. Pensamos, pois, que o apelido se ini-cia talvez em ligao com os bens que possua em Caminha, que herdara de seus pais ou que lhe haviam sido doados por D. Afonso V, na sequncia da batalha de Alfarrobeira13. E isto depois de ter vindo para a corte, certamente para se distinguir de um outro Vasco Fernandes, que ali comeava a pontifi-car. Este tomou ento o apelido da terra de origem, Lucena14 e aquele o de Caminha.

    O mesmo documento de perfilhao que referimos permite dar como certo que o pai de Pero Vaz de Caminha esteve ligado a um cnego braca-

    11 Bens de Rodrigo Afonso, morador em Riba de ncora, no termo de Caminha, doados em 14.7.449 (IAN/TT, Livro 4 de Alm Douro, fl.192v) e de Ferno Gonalves, que foi escudeiro do infante D. Pedro, doados em 24.7.1450 (IAN/TT, Livro 3 de Msticos, fl.90v). Dados recolhidos por Humberto Baquero Moreno, A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histrico. Lou-reno Marques, 1973, p. 601.12 O instrumento de perfilhao est inserto na respectiva carta de confirmao, dada por D. Afonso V, em 27 de maro de 1462 (IAN/TT, Chancelaria de Afonso V, lv.1, fl.8v, pub. por Sousa Viterbo, op.cit., pp. 28-30).13 Esta batalha, travada em 1448, ops o jovem rei, Afonso V, ao tio, D. Pedro, que fora Regen-te durante a menoridade do rei. Na sequncia, muitos dos bens dos seguidores de D. Pedro foram doados a homens do rei. Um desses homens ter sido Vasco Fernandes que, como ficou registado, recebeu bens em Caminha.14 Vasco Fernandes, Natural de Lucena. j se encontrava na corte em 1433 Letrado e juris-consulto de mrito, esteve no Conclio de Basileia em 1435 Quando do conflito de Alfarrobeira esteve do lado do rei nos anos seguintes passou a vida em misses diplomticas, desempenhando ofcios de confiana rgia junto de D. Afonso V e de seu filho (conf. Joaquim Verssimo Serro, A Historiografia Portuguesa, Lisboa, 1972, p. 96).

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    rense, morador em a cidade de Bragaa e chanceller do arcebispo em a dita cidade e escripvam das suas appellaoees que per gramde tempo o criara e ensinara. No conhecemos o ano do seu nascimento, mas seguro que aprendeu letras com este clrigo, que o viria a perfilhar. De sua casa ter pas-sado para a Casa de Bragana, pois na mesma carta de perfilhao se afirma, criado que foy do Duque de Bragana. E quando, em 1449 e 1450, recebeu as doaes em Caminha, j era escudeiro do mesmo duque. No seu testamen-to, Vasco Fernandes diz ter sido seu secretrio. Apenas com estes dados j podemos afirmar ter ele sido um homem do duque de Bragana. Mas essa certeza reforada por outras informaes: em trs cartas de merc dadas por D. Afonso V, ele designado por cavaleiro do duque de Guimares. Trata--se de mercs conseguidas por intercesso do mesmo duque de Guimares, meu muito amado e preado sobrinho. A primeira dada em Tnger, a 6 de setembro de 1471 e nela Vasco Fernandes nomeado reebedor moor de todollos direitos e cousas que pera guovernana desta cidade de Tamjere e villas que em estas partes dAfrica temos em a dita cidade do Porto e comar-quas sobre ditas, referindo-se o rei ao ofcio j detido de reebedor moor das cousas de Cepta em a nossa idade do Porto e comarquas dantre Douro e Minho e trallos Montes15. A segunda carta do dia seguinte, tambm dada em Tnger e nela o monarca lhe faz merc, igualmente por empenho do Du-que de Guimares, dos bens de Affonso Rodrigues de Bacellar, que os perdeu por se ter negado a participar na armada que foi conquistar Tnger16. E a ter-ceira, dada no Porto, a 4 de julho de 1476, autoriza Vasco Fernandes a servir o dito officio seu de mestre da balana per outro official da dita moeda que pera ello seia pertencente17. Tambm esta merc foi concedida a pedido do Duque de Guimares, que recordava ao rei que, na tomada de Arzila, j tinha dado esta mesma autorizao que, entretanto, ficara anulada por uma determinao tomada nas cortes de vora que proibia que tal se fizesse18. Lembra ento o duque as muitas ocupaes de Vasco Fernandes e pede, para ele, uma exceo. D. Afonso V concorda, pois dele temos recebido muito servio e lhe somos em grande emcarrego.

    Ora estes trs documentos provam bem o interesse de D. Fernando, du-que de Guimares, por Vasco Fernandes de Caminha e h ainda um outro a reforar esta ideia. Trata-se de nova carta de D. Afonso V, pela qual, estando

    15 IAN/TT, Chancelaria de Afonso V, lv. 22, fl. 26, pub. por Sousa Viterbo, op.cit., p. 24.16 Idem, Chancelaria de Afonso V, lv. 22, fl. 127 (pub. Idem, Ibidem, p. 25).17 Idem, Chancelaria de Afonso V, lv. 7, fl. 23v (pub. Idem, Ibidem, pp. 22-23).18 Julgo tratar-se das Cortes de Coimbra-vora, realizadas nos anos de 1472-73. Sabemos da exis-tncia de outras Cortes reunidas em vora no ano de 1474, mas no tratam este tema. Ele tratado nas anteriores, no captulo sete das peties dos povos. A questo posta e o rei defere satisfatoria-mente. (Cf. Armindo de Sousa, Cortes Portuguesas (1385-1490), Porto, 1990, vol. II, pp. 386 e ss.)

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    em Coimbra, a 5 de agosto de 1472, lhe fez merc dos bens perdidos pelo moedeiro falso, Diogo Afonso. Nesta carta o rei assume de tal maneira o beneficiado que lhe chama nosso cavaleiro19. No fora a carta a que antes aludimos, que de 1476, e pensaramos que o pai de Pero Vaz de Caminha passara para o servio do monarca. Mas essa dvida desaparece, pois nesta data volta a afirmar-se ligado ao duque de Guimares. Fica assim apenas a convico de que este cavaleiro, tal como o duque, estava muito prximo de D. Afonso V e com ele o servia, muito especialmente nas campanhas africa-nas. Tal explica que seu filho, Pero Vaz de Caminha, desde jovem o acompa-nhasse, vindo a ser armado cavaleiro em Arzila, como deixamos em hiptese.

    Portanto, Vasco Fernandes de Caminha pertenceu Casa de Bragana, onde serviu sobretudo dois homens: o primeiro duque, D. Afonso20, de quem chegou a ser secretrio e D. Fernando, duque de Guimares, seu neto, que viria a ser terceiro duque21. Estou certa que foi no servio deste que foi feito cavaleiro, pois tal ttulo s ocorre nos documentos a partir de 1462. Conhe-cemos duas cartas anteriores, ambas de quitao, em que Vasco Fernandes de Caminha no aparece filiado no servio de qualquer senhor, mas apenas com a indicao do ofcio que detinha, a saber: estando em Estremoz, a 10 de junho de 1458, D. Afonso V manda dar-lhe carta de quitao do ofcio de reebedor moor dos dinheiros dos serviaaes da idade do Porto. Refere--se ao exerccio dos anos de 1451 a 145522. Por carta dada em Lisboa, a 20 de agosto de 1460, o mesmo rei d quitao a Vasco Fernandes de Caminha, rreebedor das cousas da dita idade de Cepta em ho Porto23, para o pe-rodo de 1458 e 1459. Como referimos, o beneficiado ainda no tem, em nenhuma destas cartas, o ttulo de cavaleiro.

    Pelo exposto, poderemos ento ensaiar uma sntese: Vasco Fernandes, que aprendera o ofcio das letras com o chanceler Pedro Eanes, de Braga, foi escudeiro do duque de Bragana pelo menos a partir de 1449. Detentor de uma slida preparao, viria a ser nomeado secretrio do seu senhor. No esqueamos que este nobre era tambm conde de Barcelos, permanecendo

    19 IAN/TT, Chancelaria de Afonso V, lv.29, fl.144 (pub. por Sousa Viterbo, op. cit. p. 27).20 Filho bastardo de D. Joo I, casado com a filha de Nuno lvares Pereira. Recebeu o ttulo de Duque de Bragana de seu irmo D. Pedro, durante a respectiva regncia, na menoridade de D. Afon-so V.21 Importa esclarecer que o sucessor de D. Afonso no ducado de Bragana foi seu filho segundo, D. Fernando, conde de Arraiolos e marqus de Vila Viosa. No poder este ser confundido com o seu prprio filho, que viria a ser Duque de Guimares, a quem Vasco Fernandes de Caminha serviu. A partir de 1478, por morte do pai, herdaria ele o ttulo ducal de Bragana. Penso que da Casa de D. Afonso, Vasco Fernandes ter passado para o servio do filho e depois do neto, nascido em 1430 e morto em 1483.22 IAN/TT, Alm Douro, lv.4, fl.113v, pub. por Sousa Viterbo, op. cit., pp. 31-35.23 Idem, Ibidem, lv.3, fl.156, pub. idem, ibidem, pp. 36-37.

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    com frequncia na zona de Entre-Douro e Minho. No , pois, de admirar que o Vasco de Caminha, eventualmente recomendado por Pedro Eanes, tenha sido chamado a servi-lo. D. Afonso, duque de Bragana, ter compensado a sua dedicao, obtendo-lhe cargos da confiana rgia. Por isso em 1451 j era recebedor dos dinheiros dos serviais do Porto e em 1458 era recebedor das coisas de Ceuta. Este duque morreu em 1461. Dez anos mais tarde, Vasco Fernandes comea a aparecer ligado ao duque de Guimares, concretamente a partir de 1471, ano em que nomeado recebedor-mor dos dinheiros de Tn-ger, sendo em simultneo referido como cavaleiro. Significa isso que se man-tivera na corte de Bragana e, atravs dela, servira o monarca, concretamente nos seus interesses no norte de frica, para cujas cidades recebeu mercs e ofcios. E foi to importante o seu desempenho no reebimento do Algarve dallem mar em a comarca dAmtre Doyro e Minho e trallos Montes e desy em outras coussas de seu servio em que encarregavamollo, que foi auto-rizado a ter substituto no seu primeiro ofcio de mestre da balana do Porto. Quer isso dizer que a sua atuao prioritria ia para os assuntos do norte de frica. Do nosso ponto de vista, isso explica-se pela sua ligao ao filho do segundo duque de Bragana, que era tambm fronteiro-mor de Entre Douro e Minho. Sabe-se como este nobre acompanhou Afonso V a frica, com seu pai e irmos, no ano de 1458, na primeira ida deste rei, que o mesmo dizer, na conquista de Alccer-Ceguer24. Tambm no ano de 1461 pedio a ElRei licena pera se ir a Alcacere como foy no mes de Abryl do dito ano, com du-zentos de cavallo, e myl homens de pe, em que entraram muytos Fydalgos e outra nobre jente da Corte .. onde fezeram honrrosos feytos darmas e fizeram outras cousas, em que dom Fernando ganhou bom nome, e muyta honra25. Como recompensa, o rei f-lo-ia conde de Guimares. O ducado atribuir-lho-ia mais tarde, quando do seu casamento, em segundas npcias, com D. Isabel, filha do infante D. Fernando, irmo do monarca.

    Ora os benefcios feitos a um nobre coberto de honra eram, com fre-quncia, extensivos a alguns dos homens que o acompanhavam e se distin-guiam por atos heroicos. O ttulo ento mais desejado era o de cavaleiro, pois significava uma promoo na escala social e dignificava quem o recebia26. Vasco Fernandes conseguiu-o certamente na sequncia desta campanha, pois recorde-se que dez anos mais tarde est, j como cavaleiro, em Tnger, onde recebe mais duas mercs rgias a que antes aludimos. Que participou na cam-panha que levou conquista de Arzila no temos dvida, pois de outro modo no estaria, dias depois, a ser objeto da liberalidade rgia. Que o seu desem-penho e interesse pelas coisas de frica agradavam sobremaneira ao monar-24 Rui de Pina, Chronica do Senhor Rey D.Affonso V, Porto, 1977, pp.775 e ss.25 Idem, Ibidem, p.794.26 Manuela Mendona, O Estatuto de Cavaleiro no Inicio do Sec. XVI...

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    ca, tambm no duvidamos, pois logo ali lhe foi dado o cargo, que j tinha para Ceuta, de recebedor-mor dos dinheiros de Tnger. Alm do mais, em carta posterior, a que j nos referimos, na qual o rei autoriza Vasco Fernan-des a ter substituto no ofcio de mestre da balana, far-se- referncia a uma merc rgia feita na filhada da nossa villa de Arzilla em Africa. Se Vasco Fernandes no estivesse presente e ali se no tivesse distinguido, a merc no teria tido razo de ser. Tudo isto nos leva a acreditar que ele comungou de perto a paixo que daria o cognome de Africano, tanto ao rei Afonso V, como ao seu sobrinho, o duque de Guimares, D. Fernando. Com eles estaria o jovem Pero Vaz de Caminha!

    3. O progenitor de Pero Vaz de Caminha casou com Isabel Afonso, com quem teve trs filhos. O casal teria alguns bens de raiz, recebidos dos pais de Vasco Fernandes que, no seu testamento, diz t-los herdado sozinho, nada ca-bendo s irms, e isto porque ellas ouveram seus casamentos e eu nom ouve cousa alguma. O motivo ter sido a perfilhao que lhe fez Pedro Eanes. E no mesmo testamento se prova que ele era abastado, pois ao referir-se me fala de uma dvida que ela tem para com ele, dvida essa que ffoy fecta des-pois do ffinamento do dicto meu padre. A provar ainda o lugar cimeiro que ocupou na sociedade est o termo notarial de abertura do mesmo testamento, que foi pedido por Lus Fernandes cunhado e criado que foy de Vasco Fer-nandes de Caminha27.

    Certamente radicado no Porto, onde desempenhava os seus ofcios, natural que ali tivessem nascidos os seus filhos Ferno, Pero e Afonso que tero estudado e sido letrados. Embora nada saibamos do nvel atingido por Pero, Ferno surge, no reinado de D. Manuel, como doutor examinador na Universidade de Lisboa, participando em vrios jris28. Tambm na Chan-celaria do mesmo rei encontramos dois documentos que se lhe referem. O primeiro de 13 de maro de 1499 e por ele se faz merc a um criado seu do ofcio de tabelio do pblico e judicial de Viana da Foz do Lima29. Esta proxi-midade com a terra natal de Vasco Fernandes no pode passar despercebida. O segundo uma carta rgia, de 27 de abril de 1502, pela qual se entrega uma misso, na Universidade de Lisboa, ao corregedor Brs Afonso e ao doutor

    27 GHCP, Pergaminhos da Cmara, vol. V, doc. 51.28 Moreira de S, Auctarium. Chartularii Universitatis Portugalensis, vol. I, Lisboa, 1973, docu-mentos: XLII, de 23, 24 e 25 de julho de 1507; CLXXIV e CLXXV, de 15 e 16, 20 e 21 de maro de 1510; CCVIII, de 20 e 21 de novembro de 1510; CCCXLI, de 2 de fevereiro de 1513; CDLIII, de 20 e 21 de outubro de 1514; CDLXVI, de 22 e 23 de dezembro de 1514; CDLXXIV, de 24 de fevereiro de 1515 e CDLXXXIII, de 9 de julho de 1515. No vol. II da mesma obra referem-se-lhe os documentos: DLXXVII, de 30 e 31 de julho de 1517 e DCXCIV, de 2 e 3 de setembro de 1519.29 IAN/TT, Chancelaria de D. Manuel, lv.14, fl.16v.

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    Ferno Vaz de Caminha30. Quanto a Afonso Vaz de Caminha, nada encontra-mos a seu respeito nas chancelarias de D. Afonso V, D. Joo II e D. Manuel. No entanto, pensamos ser ele que viria a receber a alcaidaria-mor de Vila Viosa, dada pelo Duque de Bragana, depois do seu regresso a Portugal, j no reinado de D. Manuel31.

    Fixemo-nos ento, agora, em Pero Vaz. Conforme referimos no incio, o documento mais antigo em que protagonista uma carta rgia, dada por D. Afonso V em Toro, a 8 de maro de 1476. Por ela o rei lhe faz merc do ofcio de mestre da balana da moeda da cidade do Porto, quando o seu pai morrer, ou houver por bem ceder-lho32. Quer isto dizer que Pero Vaz se en-contrava com o monarca em Toro, no mbito da guerra luso-castelhana33. Era seu cavaleiro, certamente desde a conquista de Arzila, conforme j escreve-mos! Magalhes Basto admitiu que ele tivesse ido para Toro juntamente com outros jovens do Porto, em resposta a uma solicitao do prncipe D. Joo, em carta apresentada sesso da Cmara de 15 de julho de 1475 34 . No en-tanto, documenta a prontido desse corpo de tropas em 19 de agosto de 1476, o que posterior merc que referimos e tambm prpria batalha de Toro, que colocou o ponto final na campanha blica. Penso, por isso, no ser de considerar tal hiptese, preferindo assumir que o jovem tenha acompanhado o pai no exrcito do duque de Guimares e da tenha passado diretamente ao servio do monarca. Posteriormente voltaria a Portugal, eventualmente em 1476, quando D. Afonso V, deixando terras castelhanas, se dirigiu a Frana35.

    Vasco Fernandes de Caminha morreu em 1478. Seu filho, Pero Vaz, assumiu ento o seu ofcio no Porto, mantendo-se nas boas graas de D. Afonso V. No entanto, entramos de seguida num perodo em que desapare-30 Idem, Ibidem, lv.6, fl.51.31 A Casa de Bragana, destruda por D. Joo II em 1483, viria a ser reabilitada por D. Manuel, recuperando todos os seus bens e privilgios.32 IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, lv. 38, fl. 99v.33 Conflito iniciado em 1475 e que teve o seu eplogo em 1479, com a assinatura do Tratado das Alcovas. Este interessante acordo ps fim s pretenses portuguesas de dominar Castela, mas foi tambm soluo para a partilha do mar, que ficou dividido por um paralelo a sul das Canrias, atri-buindo o norte aos Reis Catlicos e o sul a Portugal. Esta diviso esteve na base da reivindicao por-tuguesa das terras encontradas por Colombo em 1492 e no posterior Tratado de Tordesilhas. Por isso costumamos afirmar que foi este Tratado que deu o Brasil a Portugal em 1500! (Veja-se, Manuela Mendona, O Sonho da Unio Ibrica. Gerra Luso-Castelhana (1475-1479, APH/QuidNovi, Mato-sinhos, 2007; e De Alcovas a Tordesilhas: a terra de Vera Cruz. In: Revista Histria, Revista do Departamento de Histria e do Programa de Mestrado em Histria, Universidade Federal de Gois, vol. 9, jan/jun, Goinia, 2004, pp. 21-34.)34 A. Magalhes Basto, margem da Batalha de Toro. In: Livro de Cartas e provises de D. Afonso V, D. Joo II e D. Manuel, Porto, s/data, p. 227.35 Manuela Mendona, D. Joo II. Um Percurso Humano e Poltico nas Origens da Modernidade em Portugal, 2. edio, Lisboa, 1995, sobretudo pp. 98-161.

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    cem as referncias a esta famlia, que s voltaremos a encontrar na alvorada do sculo XVI, aps a morte de D. Joo II e aclamao de D. Manuel. Para tal pensamos ter uma explicao.

    Aps a batalha de Toro, D. Afonso V no se reencontrou mais como rei. Dividido entre os interesses de Castela e de Portugal, deixou-se enredar na diplomacia de Lus XI, o que o levou a uma fracassada viagem a Frana (1476-1477). Entretanto, o reino estava entregue aos cuidados do prncipe D. Joo, que ficara como Regente. No seu seio avolumava-se, latente, uma bipolarizao: de um lado os homens de influncia em Afonso V, cabea dos quais se encontrava o Duque de Bragana e do outro um grupo em pro-gressiva formao e fortalecimento, que apoiava a nova poltica centralista liderada pelo Prncipe. Agitava-se assim a Corte, mas a aparente boa relao entre o rei e o Prncipe impedia a concretizao da ameaa latente de ciso. Regressado de Frana, D. Afonso V manteve o filho unido a si no governo do reino, o que o levou a uma poltica moderada, no compromisso entre os seus velhos fulgores de rei senhorial e o novo modo de ver a governana do reino, j preconizado pelo prncipe D. Joo.

    Foi neste perodo que morreu Vasco Fernandes de Caminha, mais preci-samente a 3 de agosto de 1478. Fizera testamento e indicara como testamen-teiro Pero Vaz. O filho cumpriu a misso e, para a posteridade, registou nesse documento, o qual se finou aos iij dias dagosto de mjl e iiij Lxxbiij annos, em huua segunda feira, amtre as dez e as omze oras do dia. (Este tipo de informao denota uma personalidade e um modo de ser. Encontra paralelo na preciso dos pormenores que refere a D. Manuel na sua Carta). O rei D. Afonso V morreria em agosto de 1481, mas, como referimos, a vontade frrea do seu filho j se fazia sentir desde muito antes. Aclamado como D. Joo II, abriu um ciclo novo na vida de Portugal.

    As divises latentes agudizaram-se e o novo rei acabaria por denunciar duas conspiraes: uma do Duque de Bragana, D. Fernando e outra, um ano depois, liderada pelo Duque de Viseu, D. Diogo. Um e outro viriam a ser mortos. O primeiro foi julgado, sentenciado e degolado em vora, em 21 de junho de 1483, e o segundo foi apunhalado pelo prprio monarca, em Setbal, a 28 de agosto de 148436. Foram, deste modo, destrudas as duas

    36 Para maior esclarecimento sobre este tema pode ver-se: Anselmo Braamcamp Freire, As Cons-piraes no Reinado de D. Joo II. In: Archivo Historico Portuguez, vil. I, Lisboa, 1903, pp. 393 e ss. Joaquim Verssimo Serro, entradas D. Fernando e D. Diogo. In: Dicionrio de Histria de Portugal, volumes I e II, Lisboa, 1965; Humberto Baquero Moreno, As Conspiraes contra D. Joo II: O julgamento do Duque de Bragana. In: Arquivos do Centro Cultural Portugus, Paris, 1970, pp. 47-103 e Manuela Mendona, Problemtica das Conspiraes contra D. Joo II, In: CLIO. Revista do Centro de Histria da Universidade de Lisboa, vol.V, 1984-85, pp. 29-53; D. Joo

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    principais casas do reino, sendo confiscados os respectivos bens. Alguns co-laboradores mais prximos dos conspiradores viriam tambm a ser senten-ciados e mortos, enquanto outros, bem como os diretos familiares, tiveram que se ausentar do reino.

    Vem tudo isto a propsito do significado da morte do Duque de Bragan-a para a famlia de Pero Vaz de Caminha, j que Vasco Fernandes integrara a grande casa agora destruda. poca j estava morto, pelo que no sofreu perseguio, como outros servidores do Duque. Mas aos seus filhos abria-se um longo perodo de travessia do deserto. Se no tiveram que sair do reino, refugiaram-se certamente nas suas terras e respectivos ofcios, procurando o mais possvel no ser lembrados junto do rei.

    Ao longo dos 14 anos de reinado do filho de Afonso V, no aparece um nico documento relativo a Pero Vaz de Caminha ou sua famlia! O mais normal seria, pelo menos, a confirmao do ofcio de Pero Vaz, mas nem isso. Por que o rei preferiu ignor-lo? Por que ele conseguiu evitar expor--se perante o monarca? Por que os documentos desapareceram? So tudo perguntas sem resposta, mas a realidade que a omisso total. E a ausncia de confirmao daquele ofcio chama tanto mais a ateno quanto sabemos que ele o desempenhava e a mesma viria a ser feita por D. Manuel, em 19 de Maio de 149637, menos de um ano depois de comear a governar.

    4. Toda a panormica traada demonstra que a famlia de Pero Vaz de Caminha comungou as glrias e os fracassos dos Braganas. Criada e en-grandecida desde D. Afonso, o primeiro duque, valorizada, nas campanhas de frica, com D. Fernando, o segundo duque e particularmente com seu filho, D. Fernando o terceiro Duque de Bragana, identificou-se sempre com esta Casa. Sofreria, por isso, o antema na sequncia da morte de D. Fernan-do. Se no teve de fugir, foi votada ao ostracismo. Isso explica o seu desapa-recimento aparente ao longo do reinado de D. Joo II.

    Zeloso de repor a justia relativamente aos sentenciados do seu ante-cessor, D. Manuel arriscou no cumprir uma vontade testamentria do rei que lhe deu o trono: no reabilitar a casa de Bragana. Ao contrrio, esta foi uma das primeiras medidas que tomou38. Com o regresso do duque, exilado

    II. Um Percurso Humano e Poltico nas Origens da Modernidade em Portugal, 2. Edio, Lisboa, 1995.37 Idem, Chancelaria de D. Manuel, lv.43, fl.76v.38 Aps a reunio de cortes em Montemor-o-Novo, em 1495, onde foi reconhecido como sucessor de D. Joo II, D. Manuel mandou aos Reis Catlicos Gonalo dAzevedo do seu conselho a lhes fazer saber de sua suessam nestes regnos e mandou dizer a dom Jaimes & a dom Dinis filhos do duque dom Fernando que l andavam desterrados, por caso das desaventuras que aconteceram em vida delRei dom Joam, que livremente se podiam tornar pera ho Regno (Damio de Gis, Crni-

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    em Castela, iniciou-se todo o processo de reconstituio da respectiva Casa. Vemo-lo em termos econmicos e tambm sociais. este ltimo aspecto que nos interessa, pois nele emergir tambm a famlia de Pero Vaz de Caminha. De imediato lhe foi feita a confirmao no ofcio que detinha, como j referi-mos. Mais ainda: dois meses depois de ter assumido o trono, D. Manuel dava uma carta de perdo a Jorge Osrio, genro de Pero Vaz de Caminha, por ma-lefcios que este praticara cinco ou seis anos antes39(em tempo de D. Joo II).

    Se pensarmos agora no irmo, Ferno Vaz de Caminha, vemos que tambm a partir de D. Manuel que ele nos reaparece, ocupando um cargo da confiana do monarca na universidade de Lisboa. Deixo aqui como hiptese que ele tenha acompanhado D. Jorge da Costa, o clebre cardeal de Alpedri-nha, na sua partida para Roma, em 1480, tendo regressado j em tempo de D. Manuel40. O outro irmo, Afonso, beneficia da alcaidaria de Vila Viosa, a sede da casa senhorial de Bragana. Assim se explica uma efetiva reaproxi-mao Casa Real da famlia desaparecida durante o reinado de D. Joo II!

    Quanto a Pero Vaz, tambm nesta nova poca que o reencontramos na documentao e como figura de realce na cidade do Porto. Como burgus abastado ali ter vivido, participando da vida do municpio. Mas s numa atividade local. A primeira vez que foi escolhido para obra que teria repercus-so na Corte foi j em pleno reinado de D. Manuel. Pero Vaz de Caminha foi designado, com outros, para elaborar os captulos especiais que os procura-dores da cidade deviam apresentar nas Cortes de vora de 149841. Temos, pois, Pero Vaz de Caminha afirmando-se como cidado de pleno direito e de mritos reconhecidos pelos seus contemporneos:

    Era cavaleiro da Casa real e residia na Rua Nova, na mesma casa onde haviam morado seus pais.

    Era casado com Catarina Vaz, que, em 7 de novembro de 1502, j vi-va, recebeu um comprovativo do aforamento dessas mesmas casas.

    Ambos tiveram pelo menos uma filha, Isabel Caminha, que continuou a viver nas casas da Rua Nova, conforme confirmao rgia de maro de 1516. No respectivo documento se pode ler que os seus pais eram Cateryna

    ca do Felicissimo Rei D. Manuel, nova edio conforme a de 1566, Coimbra, 1949, p. 20).39 IAN/TT, Chancelaria de D. Manuel, lv.33, fl.84v e lv.32, fl.68, cartas datadas de Montemor-o--Novo, a 17 e 19 de janeiro de 1496, respectivamente.40 Sobre o cardeal D. Jorge e os motivos da sua partida para Roma pode ver-se Manuela Mendon-a, D. Jorge da Costa, o Cardeal de Alpedrinha, Lisboa, 1991.41 Antnio Cruz, Ibidem, p. 9, referindo informao de A. Magalhes Basto, que localizou o refe-rido Livro de Vereaes, fl.205.

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    Vaaz e Pero Vaz de Caminha42. Casada com Pedro Osrio, dele teve, pelo menos, dois filhos, Rodrigo e Pero, que viriam a ser moos de cmara, mas s em tempos de D. Manuel43.

    Desaparece da documentao e do mundo social entre 1481 e 1495, anos em que reinou D. Joo II.

    Reaparece em 1495, no desempenho do ofcio de Recebedor da Chancelaria. Sabemo-lo por uma carta de quitao dada a Pero Vaz, cava-leiro da Casa Real. Nela apresentado como recebedor da Chancelaria da Corte nos anos de 1495 a 1497. A quitao de 30 de maio de 1500, o que significa que Pero Vaz quis apresentar contas antes de partir para a ndia44.

    Cerca de 1499, foi chamado a integrar a armada de Pedro lvares Cabral que, em maro de 1500, partiria para a ndia.

    A 1 de maio de 1500 estaria em Porto Seguro, de onde escreveu a D. Manuel.

    Morreu na ndia em 1500/150145.5. Pedro Vaz de Caminha partiu, pois, para a ndia! Ia desempenhar um

    ofcio ao servio de D. Manuel, que assim gratificava o cidado fiel casa de Bragana!

    A carta que, de Porto Seguro, escreve a D. Manuel revela-o sempre em lugar de primazia junto do capito da armada. A prpria maneira como fala ao monarca deixa transparecer uma necessidade de comunicao, um impe-rativo de corao e no o desempenho de uma funo, o que fica provado mal se comea a ler: Posto que o Capito-mr desta Vossa frota, e assim os ou-

    42 Arquivo Distrital do Porto, Contos e real fazenda, vol. 21, fl.8v, pub. por Dinis Dias, op. cit., p. 22.43 Conforme notas 45 e 46. Nestes dois documentos se contm uma pequena, mas muito importan-te informao: Rodrigo e Pero eram moos de cmara do rei. No primeiro caso, penso que ter havido uma falha do escrivo que, ao registar o documento rgio apenas escreveu moo. No considero que deva ler-se o moo, pois essa terminologia s se usava para distinguir o nome de um jovem do de seu pai, o que no o caso. Ora o que ficou escrito foi R. de Osoyro moo, o que certamente denota um lapso. semelhana de seu irmo e como correctamente vem registado no segundo do-cumento, ele dever ser moo de Cmara. Isto importante para provar, mais uma vez, como D. Manuel quis recuperar e recompensar esta famlia. 44 A Pero Vaz, cavaleiro da Casa Real, recebedor da Chancelaria da Corte dos anos de 1495 a 1497, quitao, de tudo o que recebeu e despendeu nesses trs anos, a saber, cinco contos, quatro-centos e cinquenta e nove mil, quinhentos e noventa e trs reais. (ANTT, Chancelaria de D. Manuel, Liv. 6,fl. 7 v.)45 Penso que a sua morte ter ocorrido ainda em 1500. A notcia ter chegado pelos navios da Carreira da ndia que, partindo no final do inverno de 1500, aqui chegaram em 1501, a tempo da nomeao ser feita em dezembro do mesmo ano.

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    tros capites escrevam no deixarei de tambm dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que para o bem contar e falar , o saiba peor que todos fazer. Pero Vaz de Caminha manifesta, por estas importantes notcias, gratido pela rgia generosidade. Com efeito, ele embarcara para a ndia, mas mantendo o ofcio de mestre da Balana. Tal como seu pai, Vasco Fernandes, partira para frica ao servio de D. Afonso V, mas nunca lhe sendo tirado o ofcio, assim agora acontecia com Pero Vaz!

    Mas no voltou a Portugal!

    Cabia a D. Manuel perpetuar-lhe a memria! Isso fez, entregando ao neto o mesmo ofcio, que j pertencera ao seu bisav. Rodrigo Osoyro, filho de Isabel Caminha e Jorge Osoyro, por quem Pero Vaz intercedia ao rei ao finalizar a sua Carta, era ainda criana quando se viu nomeado para mestre da Balana da Moeda da cidade do Porto, por carta rgia de 3 de dezembro de 1501. O texto bem claro, podendo ler-se, neto de Pero Vaz de Caminha que hora faleceo na Hymdia visto como o dito seu avoo morreo em nosso servio avemos por bem e o damos daquy em diamte por mestre da dita balana asy e pella guisa que ho ate quy foy o dito P Vaaz de Caminha 46.

    Rodrigo era ainda criana, pelo que a merc rgia se agiganta em signi-ficado, dispondo que o comearia a desempenhar logo que tivesse idade para isso. Tal ter acontecido at sua morte, pois, a 16 de dezembro de 1536 surge idntica carta, agora de D. Joo III47, nomeando o irmo de Rodrigo, Pero Vaz, para o mesmo ofcio que, por morte do irmo, vagara.

    O ofcio s deixou de estar na famlia quando, a 31 de julho de 1546, Pero Vaz, o neto, renunciou o officio comtheudo na dita carta per licema delRey nosso Senhor em Francisco Pereira, conforme registo inserto na referida carta de nomeao. Porm, no cremos que isso tivesse significado nova queda social da famlia. Trata-se, alm do mais, de uma transferncia a pedido do prprio neto de Pero Vaz de Caminha. E certo que, nos tempos seguintes, encontramos alguns descendentes muito perto do rei. Seja o caso de um outro Vasco Fernandes de Caminha do duque de Bragana, que en-contramos no Livro das Tenas delrei D. Joo III48 com uma tena de 15.000 reis e o Hbito de Cristo. Ento poderemos mesmo afirmar que a famlia de Vasco Fernandes de Caminha no apenas se recuperou junto de D. Manuel, mas se integrou de novo na casa de seus antepassados, a Casa de Bragana!

    Fiquemos, pois, com estas breves notas sobre Pero Vaz de Caminha, a quem a Histria engrandeceu. Certamente mais reconhecido no seu tempo

    46 IAN/TT, Chancelaria de D.Manuel, lv.32, fl.68, pub. por Sousa Viterbo, op. cit., p.17.47 Idem, Chancelaria de D.Joo III, lv.24, fl.1v, pub. por Sousa Viterbo, op. cit., p.19.48 Pub. por A. Braamcamp Freira, in Archivo Historico Portuguez, vol. I, Lisboa, 1903, p.117.

  • ManueLa Mendona

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    como cavaleiro do que como escritor, foi a gesta de frica que elevou a sua famlia. Crescendo sombra da Casa de Bragana, com esta foi vergada, mas, como ela, no morreu.

    D. Manuel trouxe-lhe novo tempo de esplendor.

    A grande recompensa, ou mesmo desagravo a fazer a Pero Vaz estava inerente ao cargo que iria desempenhar na ndia. Por isso embarcou com Pedro lvares Cabral.

    Na viagem, deslumbrado com um novo mundo encontrado, escreveu uma carta ao rei, como outros fizeram tambm. Certamente todas as missivas foram lidas na corte com muito interesse. E ali ficaram. E ainda bem.

    Esquecida por longo tempo, mas redescoberta no sculo XVIII, essa Carta constitui hoje o documento precioso que nos pe em contato com a original terra de Vera Cruz.

    Esse o testemunho material que fez nascer para a histria o seu autor: Pero Vaz de Caminha e que justifica a pacincia com que me ouviram!

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    Pero Vaz de Caminha, o primeiro portugus que escreveu sobre o brasil

    PERO VAZ DE CAMINHA +/- 1450 nasce no Porto 1471(?) Cavaleiro 1476 Carta/promessa do ofcio do pai, mestre da Balana da Mo-

    eda da Cidade do Porto

    1478 Assume o ofcio, por morte do pai 1478/1495 viveria no Porto, na casa da famlia, na Rua Nova 1496 confirmao do Ofcio por D. Manuel 1495/1497 recebedor da Chancelaria da Corte 1500 (maro) parte para a ndia na armada de Pedro lvares Ca-

    bral 1500 (maio) escreve a D. Manuel, deslumbrado com a Terra de

    Vera Cruz

    1500 (30 de maio) carta de Quitao do ofcio de Recebedor da Chancelaria

    1500/1501 morre na ndia 1501 (julho) chega a Lisboa Pedro lvares Cabral 1501 (3 de dezembro) carta do seu ofcio ao neto, Pero Vaz, por-

    que Pero Vaz de Caminha ora faleceu na Hymdia em nosso servio

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    Mareantes e Cartgrafos. o Brasil nos Mapas portugueses do sCulo XVi

    MAREANTES E CARTGRAFOS. O BRASIL NOS MAPAS PORTUGUESES DO SCULO XVI

    Fernando Loureno Fernandes1

    A cartografia portuguesa do sculo XVI , sem dvida, consequncia direta do desenvolvimento luso da cincia nutica de alto-mar, que no s franqueou o acesso a todos os oceanos do mundo, como permitiu com os meios tcnicos criados e aperfeioados em Portugal a realizao da primei-ra viagem de circum-navegao do nosso planeta. Foi este mesmo impulso da Cincia que conduziu o trao dos primeiros planisfrios modernos, dos mapas dos mundos novos, de terras e guas at ali desconhecidos, se no mal imaginados.

    Quando os marinheiros portugueses receberam a orientao de astrno-mos e de matemticos na saga em direo ao ndico e nem sempre a infor-mao que levavam podia ser considerada segura foram suas anotaes e registros da cada uma dessas viagens, a experincia nos lugares percorridos e aportados, os seus roteiros descritivos e desenhos, que facultaram a elabo-rao dessa nova e moderna cartografia.

    Assim, os roteiros de navegadores, dos pilotos, dos fsicos, astrnomos e observadores integrados s tripulaes dos barcos lusos e daqueles estu-diosos que redigiram memrias e relatos dos espaos geogrficos visitados, devem ser considerados partes importantes da histria da cartografia portu-guesa.

    Se ao final do sculo XV ainda, na Europa, a viso de um mundo fantstico em lendas e limitado em espao que descreve o planeta; menos de vinte anos mais tarde h uma nova forma de desenhar o mundo, com a frica Austral, o Atlntico Sul, o ndico em todo o arco desde o Cabo da Boa Esperana ao subcontinente indiano e at mesmo com os mares onde os por-tugueses no deveriam ir, no setentrio do Atlntico Ocidental. E mais, com o Brasil totalmente revelado.

    Ao incio do sculo XVI uma portentosa distncia separava a cartografia portuguesa da elaborada em todo o mundo europeu.

    Consequncia direta dos mtodos e instrumentos de navegao neces-srios s sofisticadas misses atribudas aos navegadores desse perodo de histricos desafios, a cartografia portuguesa despertaria a ateno, o interesse e a ambio de todos aqueles que, em suas navegaes, no precisavam im-

    1 - Scio correspondente.

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  • Fernando Loureno Fernandes

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    primir maiores esforos que exigissem o desenvolvimento de suas tcnicas e cincias nuticas. Naturalmente, to logo precisaram.

    O exemplo clssico, por certo, o da Espanha, ao aproveitar os conhe-cimentos, a experincia e a cartografia lusas para, algum tempo depois, di-vulgar pela Europa, em obras impressas, toda a cincia nutica ibrica, como destacou o historiador portugus Jos Malho Pereira.2

    Seria oportuno recordar o fator impactante da conjuntura cultural e po-ltica da Europa quela poca, decisivo para a ampliao dos horizontes ao final do sculo XV. Este fator como acentuou Dreyer-Eimbcke no foi o descobrimento da Amrica em 1492, e sim o feito de Bartolomeu Dias, em 1498, ao dobrar o cabo da Boa Esperana. O mesmo estudioso, na mesma obra, no deixou de assinalar o comportamento tico dos cartgrafos de en-to, sem o menor escrpulo no que se refere a plgios.3

    Sob tal enfoque, a histria da cartografia europeia tambm um histria de plgios e a de seus editores no se coloca em melhor apreciao.4 Por outro lado, a evoluo da cartografia marcada, no ponto de inflexo o comeo do sculo XVI pela retomada do caminho aos mapas-mndi (me-lhor seria dizer, pela reelaborao de tais cartas) para mais tarde chegar aos de detalhe. A viso abrangente da Terra tornara-se outra.

    A geografia ptolomaica, elaborada sob as concepes matemticas de Marino de Tiro, desmontara de seu turno a concepo da Terra, imensa ilha formada por trs continentes com o Mediterrneo em seu miolo. Cludio Pto-lomeu, nascido em 100 d.C., desenvolveu, a partir do acervo da biblioteca de Alexandria, suas grandes obras, entre estas a mais considerada, a Geografia. O mundo de Ptolomeu projetava-se das Canrias (meridiano zero) ao oriente asitico e, de sul para o norte, do centro da frica Europa setentrional e sia. O arremate meridional conformava uma isolada Terra Australis.

    2 Um parntesis apenas para at certo ponto se compreender que as condies de navegao encontradas pelos nossos vizinhos Ibricos no incio da sua expanso at viagem de Magalhes, no foram de molde a colocar-lhes muitas dificuldades que incentivassem o desenvolvimento da suas tcnica e cincia nuticas. De facto, uma garrafa lanada ao mar no Cabo de S. Vicente facilmente chegar s Antilhas, podendo at eventualmente, fazer a volta redonda no Atlntico Norte. Eram afinal, essencialmente estas as viagens espanholas, alm de algumas costeiras na Amrica do Sul. Jos Manuel Malho Pereira, Conferncia realizada no ICEA, Lisboa, 2010.3 Cfr. Oswald Dreyer-Eimbcke, O Descobrimento da Terra, Melhoramentos Editora da Univer-sidade de So Paulo, So Paulo, 1992, pp.102 e 26.4 A inveno da imprensa no sculo XV fez surgir novos suportes da cultura, do conhecimento e da especulao intelectual: o livro de prelo, o prospecto avulso e o noticirio das gazetas. Os novos suportes introduziram a ilustrao em gravuras, que tambm pretenderam testemunhar a realidade esttica da geografia e, com ela, os mapas.

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    Mareantes e Cartgrafos. o Brasil nos Mapas portugueses do sCulo XVi

    No entanto, o sbio egpcio incidiu no erro de encurtar longitudes e lati-tudes em seus clculos e distendeu para o sul a costa da sia, o que fez com que a ndia atingisse o equador. Era esse o suporte ou modelo bsico em que se apoiavam os cartgrafos para seus desenhos: um mundo pequeno, de mais terras do que guas.

    Em 1502 surge o planisfrio portugus de Cantino que aposenta a carto-grafia ptolomaica. Uma geografia nova, com impressionantes (e no apenas para a poca) revelaes.

    A ndia j aparece em sua forma correta de tringulo; Sumatra, o Ceilo e Malaca ganham posies muito mais conformes com a realidade. Toda a costa oriental da frica, tal e qual a vertente ocidental do continente, despon-ta com um rendilhado opulento de topnimos. O Brasil revelado, e politica-mente bem exibido segundo as exigncias do tratado de Tordesilhas, ganha espao com o meridiano divisor dos interesses ibricos pela primeira vez traado em mapas.

    Indicativos de tcnicas notveis surgem implcitas no cimlio. Tais indi-cativos somam-se aos de viagens portuguesas desconhecidas e, pelo Tratado inimaginveis, os quais ultrapassam o conhecimento que os prprios espa-nhis faziam das suas ndias, tanto nas Antilhas como na terra firme.

    Obra de grandes propores, hoje no acervo da Biblioteca Estense de Modena, foi levada clandestinamente de Portugal por Alberto Cantino, em 1502, e entregue ao seu contratante, o Duque de Ferrara, Ercole dEste. Tal-vez o ardil tenha salvado a carta para a posteridade.

    Teria o planisfrio de Cantino atrado na Itlia a ateno dos cartgrafos e desse modo exercido influncia em suas concepes? A carta, vale reiterar, distanciava-se dos caminhos conceituais do ambiente universitrio, intelec-tual, europeu, to fixados em concepes de uma cosmografia ultrapassada porm vigente, e que se manteria assim por muito tempo, embora corrigida pela ao dos navegadores portugueses.

    Nesse contexto, onde a cartografia ainda encontra cosmgrafos sub-metidos reverencialmente aos clssicos e, entre todos, a Ptolomeu, que surgem, a partir de 1507, as continuadas edies da Geographia, dita ento renovada, a comear pela incorporao dos velhos conceitos no planisfrio de Ruysch. Como outros da mesma poca, o cartgrafo procura conciliar as concepes geogrficas ptolomaicas com os novos subsdios portugueses e espanhis (por exemplo representando unidas a sia e as novas terras desco-bertas a ocidente).5

    5 Armando Corteso. In: Histria da colonizao portuguesa do Brasil, L. Nacional, Porto, 1921-

  • Fernando Loureno Fernandes

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    A Margarita Philosophica, publicada em Estrasburgo em 1503, traz gravada a carta de Gregor Reisch, em alinhamento integral aos ditames pto-lomaicos, como ainda ptolomaicos se mostram os subsequentes mapas im-pressos, o Contarini-Roselli (1506), os naipes de cartas de Waldseemller (1507), de Roselli (c. 1508) e as diversas edies da Geographia, de 1511 (Roma) s de Estrasburgo (1522 em diante).

    Por outro lado, invariavelmente atribudos consulta a um suposto pa-dro portugus, sobre o qual teria sido concebido o planisfrio obtido por Al-berto Cantino, tomaram forma o planisfrio manuscrito italiano de Caverio ou Canerio (Nicol Caveri) entre 1502 e 1506, mais precisamente, entre 1503 e 1504, conforme Max Justo Guedes6 e o j mencionado mapa de Ruysch, este dado impresso em 1507.

    Faz-se notar, porm, que muito poucos especialistas em histria da car-tografia engajaram-se na hiptese talvez por consider-la, de plano, despro-positada de ser o planisfrio annimo portugus desviado para Ferrara, se no o tal prottipo, a fonte, o detonador das novas suscitaes de forma e de contedo, mesmo tmidas, entre cartgrafos e cosmgrafos do arco RomaGnova-Veneza-Florena, ou dos que por l andaram em contatos na primei-ra dcada dos Quinhentos.

    possvel que diante das discrepncias de traado, em particular da frica, do vcuo na nomenclatura e da concepo geral do desenho entre Caverio e Cantino, tenha havido cautela, suficiente o bastante para sustar qualquer avano naquele sentido.

    Diversas falhas cartogrficas so enumeradas quanto a esses mapas, en-tre elas a carncia das linhas dos trpicos. Qualquer deles inscreve o meri-diano de demarcao ou de Tordesilhas, traduzido como indcio de que no teriam seus autores logrado apoio em modelos oficiais, como ocorrera na carta obtida por Alberto Cantino em Portugal. Caverio, muito embora parea na concepo geral do desenho uma cpia do planisfrio annimo portugus de 1502, diverge deste em muitos pontos, com inmeras dessemelhanas, a comear pelo traado e pelas assinalaes do Brasil.

    A importncia do exemplar cartogrfico obtido por Cantino pode ser avaliada igualmente, no tempo mediato, sob o prisma de sua concepo des-critiva, confrontando-o com outras peas bem posteriores da cartografia por-

    1924, A Explorao do Litoral do Brasil na cartografia da primeira dcada do sculo XVI, v. 2, cap. XIII, pp. 345 e 346. Ver, tambm, Alfredo Pinheiro Marques, Origem e desenvolvimento da cartogra-fia portuguesa na poca dos descobrimentos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1987.6 Histria Naval Brasileira, Servio de Documentao Geral da Marinha, 1975, v. 1, tomo I, p. 224.

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    Mareantes e Cartgrafos. o Brasil nos Mapas portugueses do sCulo XVi

    tuguesa, como o planisfrio de 1519 de Lopo Homem, tambm em pergami-nho iluminado (41,5x58 cm ) com o mapa circular de 32,8 cm de dimetro em seu bojo.

    Conforme Armando Corteso,7 a Europa, a frica, a sia, o Brasil (o Mundus Novus Brasil, da carta) e parte das Antilhas esto situados muito ao norte. A poro austral do Planisfrio preenchida por um fantstico conti-nente com a designao de Mundus Novus, ligando o Brasil sia. Outras sees do continente, na parte ocidental do Atlntico Norte, encontram-se igualmente ligadas com o norte da Europa e da sia.

    Note-se que o mapa foi lavrado antes da navegao de Fernando de Ma-galhes, porm 17 anos aps a execuo da Carta del Cantino, situando-se em termos conceituais bem aqum desta, ainda que se queira correspond-lo concepo de Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo de Situ Orbis, onde o mar oceano no outra coisa seno uma muito grande alagoa metida na concavidade da terra, e a mesma terra e o mar, ambos juntamente fazem uma redondeza, de cujo meio saem muitos braos que entram pela terra.

    A distncia conceptiva entre o trabalho de 1502 nas mos de Ercole dEste e o de 1519 (embora se reconhea que poca fosse ainda admitido representar a Amrica Austral e a sia ligadas por um continente ) notvel. Cantino obteve um mapa moderno, enquanto o de Lopo Homem, os mapas de grande parte da cartografia portuguesa da chamada escola de Paris (por l se encontrar) e as de Pedro Reinel, mostram-se impregnados de concep-es ptolomaicas, at na programao visual.8

    Nesse perodo 1502 a 1519 os grandes cartgrafos portugueses ha-viam dedicado maior ateno ao trabalho de representar as terras do ndico do que as do Atlntico ocidental. o que se percebe do elenco de mapas traados por dois importantes especialistas, neste caso, Pedro e Jorge Reinel (pai e filho), onde os espaos do Mediterrneo, do Atlntico Norte e do ndi-co recebem a particular ateno de ambos. Pelo menos, no acervo de traba-lhos que chegaram aos tempos de hoje, nada se observa quanto ao Atlntico Sul, ou seja, quanto ao Brasil, nessa fase.

    Por outro lado, a contribuio dos navegadores ao conhecimento geo-grfico dessa nova terra parece clara nos roteiros e tbuas de ladezas. No citado Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, j em 1506-1508 quando a obra foi redigida; no Livro de Marinharia de Joo de Lisboa, de

    7 Obra citada, p. 340.8 O planisfrio de 1519 foi objeto de srias discusses a respeito da autoria. Sobre a carta geogr-fica de Lopo Homem, ver ainda Armando Corteso, obra citada, pp. 345 e 346.

  • Fernando Loureno Fernandes

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    1514, e no chamado Guia Nutico de vora, segundo Max Justo Guedes, de 1516.

    A melhoria das marcaes latitudinais, quanto ao litoral brasileiro, assi-nala etapas da progresso nutica no conhecimento geogrfico do Atlntico Sul, saber que prontamente ir acudir s necessidades da cartografia. Alm das j citadas contribuies, preciso mencionar os aportes ao desenho da costa no chamado Livro de Francisco Rodrigues (1513).

    Por consequncia, elementos informativos originados na exercitao da nutica subsidiaram os trabalhos cartogrficos do mencionado planisfrio de Lopo Homem em 1519 e, no mesmo ano, a mais famosa carta atlntica do atlas de Lopo Homem-Reineis, a extraordinria pea cartogrfica conhecida como Terra Brasilis.

    Em quatro ou cinco anos, alcanou-se um novo e muito alto nvel de conhecimento objetivo da costa e pluralizaram-se os dizeres da toponmia, o que, por consequncia, deve ser atribudo aos levantamentos conduzidos no decorrer da atribuladssima viagem de Diogo Ribeiro-Estevo Froes, e ao reconhecimento da costa sul com Joo de Lisboa, na longa navegao das caravelas armadas por D. Nuno Manuel e Cristbal de Haro e que resultou no pr-descobrimento do rio da Prata.

    interessante notar que entre as peas cartogrficas estrangeiras dessa poca, aparece o mapa do Vesconte di Maiollo em atlas da Biblioteca Pbli-ca de Munique, com um traado litorneo razovel e a costa norte brasileira bem afeioada, o que Max Justo Guedes atribuiu tambm s assinalaes da expedio Diogo Ribeiro-Estevo Froes.9

    Mas o que se via ento do relacionamento entre o saber terico, o aca-dmico e o das elites, e o conhecimento prtico enfeixado pelos homens do mar, continuava a seguir caminhos de contradio e de conflito.

    No h nada de inexplicvel nisto, quando se leva em conta a dinmica intelectual acadmica, ainda movida pela Teoria dos Planetas de Puerbquio e pela tradio de Sacrobosco, sofrendo o impacto da ao nos mares, como disse Antnio Augusto Marques de Almeida. Como poderia, por exemplo, a Astrologia Judiciria ento vigente oferecer ajuda aos pilotos em meio ao Atlntico ou nas guas do ndico?

    Porm, o conhecimento ou a difuso do conhecimento das Aritm-ticas e das notaes abriu novas possibilidades em vrios campos. Chegou 9 Cfr. O Reconhecimento da costa brasileira, 1501-1519: um impressionante feito nutico e car-togrfico, de Max Justo Guedes, separata da revista De Cabral a Pedro I, Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 2001, pp. 35 e 36.

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    Mareantes e Cartgrafos. o Brasil nos Mapas portugueses do sCulo XVi

    ao dos negcios (a contabilidade, p. e.), ao da cartografia e progressivamente adentrou o ambiente da navegao. Na esfera de expectativas por inovaes das tcnicas de marear, a determinao da longitude, pelas respostas mostra-rem-se as mais urgentes, seria a que provocava menos atritos entre as duas correntes. Esse clima de desgastes (ainda agora um assunto muito pouco es-tudado) mostrou, por um lado, a corrente prtica dos navegantes como o ele-mento decisivo para a progresso do saber, longe das escolas e universidades.

    Por outro, levou as discusses dos problemas ao nvel da Corte sala do monarca e de seus conselheiros. Firmou-se o conceito de que os problemas deviam ajustar a soluo, e aqueles estavam no mar.

    A presena de estudiosos nos navios e frotas dos portugueses no era uma novidade. A prpria armada cabralina incorporara o Mestre Joo entre os acompanhantes grados da nau capitnia, um homem de cincia do crculo mais prximo do rei. A carta do fsico e astrlogo Joo Faraz10 a D. Manuel, escrita no prprio stio do Descobrimento, mostra o tipo de preocupao en-sejada na Corte e o apoio que se dava ali quanto soluo dos problemas nuticos e o da orientao nos oceanos.

    Com a morte de D. Manuel I, em 1521, subiu ao trono o mais velho de seus dez filhos, apodado oficialmente D. Joo III. Portugal encontrava-se em turbilho econmico levado ao rubro pelo comrcio com o Oriente, com o Ocidente africano, com a frica do ndico e com todo o ndico devassado at os confins insulares da Malaca.

    O movimento do cais de Lisboa extravasava para outros portos da linha costeira, um congestionamento de navios, de gentes nas docas, nos arsenais, nos armazns, nas taracenas atulhadas. Homens de muitas naes e mercado-rias de todo o planeta disputavam o espao das ruas confluentes aos embar-cadouros e trapiches.

    Nesse ambiente fervilhante e cosmopolita, a cultura portuguesa reexa-minava seu caminho, influenciada pelo Humanismo cristo, o novo olhar relocado na tradio cultural greco-romana e no Homem como medida e ra-zo de ser.11 O importante, na dinmica de propagao, residia no fato de

    10 Cfr. Juan Gil, El Maestro Juan Faraz: la clave de un enigma, comunicao apresentada nas VIII Jornadas de Histria Ibero-americana e XI Reunio Internacional de Histria da Nutica e da Hidrografia, in As Novidades do mundo: conhecimento e representao na poca moderna, Edies Colibri, Lisboa, 2003, pp. 287 a 312.11 Luis Filipe Barreto, Damio de Goes. Os caminhos de um humanista, CTT Correios de Portu-gal, 2002, p. 12; citado por Carlos Baptista Valentim. O Infante D. Lus (1506-1555) e a investigao do mar no Renascimento, in Memrias 2006 (vol. XXXVI), Academia de Marinha, Lisboa, 2012, p. 109.

  • Fernando Loureno Fernandes

    R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (461):33-44, out./dez. 201340

    membros da Casa Real encontrarem-se atrados pela tendncia renovadora. Em ltima anlise, ajudavam a contraditar a cultura Escolstica, clerical e oficial das universidades e, via de consequncia, a influenciar o que saia das oficinas dos impressores.

    Do ncleo familiar de D. Joo III e dentre os que seguiam pelo novo caminho, projetou-se o vulto do infante D. Lus, o quarto filho de D. Manuel. Suas qualificaes pessoais o levariam a tornar-se o mais respeitado conse-lheiro do Rei e irmo.

    D. Lus recebera por tutor e mentor dos estudos Pedro Nunes, o grande matemtico e cosmgrafo, figura extraordinria de intelectual, no menos voltado para os assuntos do mar, da nutica e da geografia cartogrfica. Com tal preceptor, no se mostra difcil de entender os caminhos mentais da for-mao de D. Lus e pelo que, naturalmente, deveria se interessar e mesmo empolgar-se, ao longo do aprendizado e do convvio amigo com Pedro Nu-nes.

    O sbio portugus incutiu firme estmulo ao desenvolvimento da nave-gao terica, sem embargo de reconhecer a importncia da experimentao e exaltar o trabalho dos pilotos.

    Portanto, havia quem desejasse melhorar e aperfeioar a arte de nave-gar, seja com nova utensilagem tcnica, seja com uma cartografia mais efi-ciente para os propsitos dos mareantes. E nesse grupo onde formava Pedro Nunes, encontravam-se igualmente D. Joo de Castro, Jernimo Osrio e Martim Afonso de Souza, para ficar apenas com estes.12

    No se pode, naturalmente, deixar margem o nome de Diogo de S entre os matemticos lusos vinculados ao tema das navegaes.13 Figura no-tvel do ambiente acadmico e das lides guerreiras em terra e no mar, no Ocidente e no Oriente, Diogo de S considerado o crtico coevo de maior vulto no que respeita s conceituaes tericas de Pedro Nunes, minadas pela falta de experincia em navegar.

    Na essncia, o humanista e heri da expanso portuguesa, primo do nos-so governador Mem de S e do poeta S de Miranda, defendia a necessidade de se aliar a teoria prtica, experincia vivida e testada.

    12 Cfr. Carlos Baptista Valentim, O Infante D. Lus (1506-1555) e a investigao do mar no Re-nascimento. In: Memrias 2006 (vol. XXXVI), Academia de Marinha, Lisboa, 2012, pp. 120 a 122.13 Em 1538, Diogo de S um dos Mestres de Matemtica da Universidade de Coimbra, listado junto aos nomes de Pedro Nunes, de Francisco de Melo e do Frei Lucas, conforme lembra Ana Cris-tina Costa Gomes; Mar, pena e espada no percurso de Diogo de S Comunicao, in Memrias 2005 (vol. XXXV), Academia de Marinha, Lisboa, 2012, p. 162.

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    Mareantes e Cartgrafos. o Brasil nos Mapas portugueses do sCulo XVi

    Ao velejar no oceano, se era fcil saber a posio do navio no sentido norte-sul, o mesmo no acontecia quando se tratava de obter a longitude, a localizao no sentido Leste-Oeste. Ao empregar a estima, por sua vez de-rivada da prtica obtida em muitas viagens, os mareantes lusos construram procedimentos e mtodos objetivos para ajustarem a posio do barco diante da carta plana.

    Se por um lado no se tratava de medida precisa mas aproximada, por outro resolvia o problema de maneira a atender suas necessidades. Montado o paralelo em certo ponto do mar, conseguiam os pilotos ter ideia da distncia em relao ao destino.

    A partir da, caso precisassem aterrar ou, ao contrrio, afastar-se, os sinais de terra formavam um muito bom indicador de onde deveriam estar. O mais seguro, porm, residia na tcnica da variao da agulha, expediente empregado durante sculos e sempre mencionado pelos pilotos nos dirios nuticos e demais escritos.14

    Os defeitos da carta plana impediam sua utilizao como instrumento de trabalho do piloto. Uma linha de rumo, nela posta, seria uma reta se a carta atendesse proporo de paralelos e meridianos, como bem cedo props Pedro Nunes.

    A interveno de Pedro Nunes traduzia a necessidade da discusso dos problemas de geometria e matemtica aportados pela carta-plana e que no se encontravam altura dos pilotos de alto-mar solucionar. O clima necess-rio formulao de tais estudos, das indagaes, das discusses, foi encon-trado na Corte e, quanto a esta, no entusiasmo de D. Lus. Pedro Nunes que j exercia a ctedra na Universidade de Coimbra, foi conduzido ao cargo de cosmgrafo-mor.

    No de admirar que as cartas de marear, devidamente anotadas pelos pilotos com as variaes da agulha, as marcaes dos astrolbios (portugue-ses) e o registro destas marcaes nos Roteiros, com informaes sobre todos os mares do mundo, fossem objeto do interesse e da cobia de cartgrafos estrangeiros, diante do que representavam.

    Em 1546, acode lembrana, o cartgrafo francs Desceliers molda em seu planisfrio a influncia do portugus Gaspar Viegas. No planisfrio de

    14 Essa conhecena, como sintetizou o aludido historiador Jos Malho Pereira, "correspondia ao ngulo que faz o Norte magntico com o Norte verdadeiro, era obtida atravs de vrios mtodos em Portugal desenvolvidos, sendo continuamente registada pelos pilotos e includa nos roteiros que se foram escrevendo ao longo de todo este perodo". Conferncia realizada no ICEA, Lisboa, 2010 e citada anteriormente.

  • Fernando Loureno Fernandes

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    1550, o mesmo Desceliers pina o novo padro cartogrfico desenhado por Viegas na carta de 1534.

    De seu turno, o renomado Baptista Agnese preferia seguir a traa de Diogo Ribeiro, como demonstram as cartas de 1542 e 1543 do cartgrafo italiano.

    Os rumos do pensamento cientfico poca de D. Lus e de Pedro Nu-nes encontravam-se em plena transformao e os conceitos do conhecimento cientfico ganharam o impulso que um aliado do prestgio do grande mate-mtico soube dar expandindo seus trabalhos pela Europa.15 Lucraram todos e lucrou a cartografia europeia.

    No obstante, por muito que a difuso destes conhecimentos lograsse alcanar toda a Europa Ocidental, a primeira carta isognica a contida em um planisfrio de Lus Teixeira, ao que pensam os especialistas, elaborada por volta de 1580. Dito de outra maneira, seria a primeira carta geogrfica com as respectivas linhas de ligao entre os pontos da superfcie terrestre de igual declinao magntica.

    Filho de cartgrafo e pai de cartgrafos, Lus Teixeira deixou um pa-trimnio cartogrfico de grande importncia que, talvez, s fosse ombreado pelo acervo de obras dos filhos, Joo Teixeira Albernaz (chamado O Velho) e Pedro Teixeira Albernaz, principalmente pelo primeiro. Licenciado para ela-borar cartas e construir instrumentos nuticos brev outorgado por Pedro Nunes, seu examinador Teixeira veio a se tornar o cartgrafo-mor. Visitou o Brasil e so dele os to belos mapas que aparecem no seu Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas, e derrotas que h na cos-ta do Brasil desde o cabo de Santo Agostinho at ao estreito de Ferno de Magalhes.16 nesta obra que se encontra incorporado o mapa das Capita-nias Hereditrias (c. 1585-1590).

    E sobre ainda o Brasil, Ferno Vaz Dourado, senhor de um desenho de grande apuro e beleza, aporta na srie de atlas desenhados entre 1568 e 1580 um dos mais importantes contributos cartografia de ento o mapa de 1571, A Costa do Brazil. Esta mesma costa que Gndavo ilustra na sua Des-cripo da Provincia Sancta Cruz a que vulgarmente chamo Brasil, pouco tempo depois, em 1576.

    15 Sua primeira criao de vulto (sem levar em conta as tradues e comentrios de autores clssi-cos), o Tratado em defenso da carta de marear, de 1539, foi publicado em dois idiomas, portugus e latim. No caso do Livro de algebra en arithmetica y geometria, referido a 1566-1567, como se nota, o trabalho saiu impresso em castelhano, o que parece espantoso, dado o antagonismo entre os dois pases ibricos pelo controle do mar. 16 Hoje na Biblioteca Nacional da Ajuda, Lisboa.

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    Mareantes e Cartgrafos. o Brasil nos Mapas portugueses do sCulo XVi

    Mas como esquecer a cartografia em prosa como diria Mariano Cuesta Domingo,17 de Gabriel Soares de Sousa. Se a revelao da geografia brasileira traduziu-se no desenho e cincia de todos estes nomes aqui citados, tambm o foi atravs daqueles que o fizeram por meio de seus textos descri-tivos. Neste peculiar segmento dos estudos geogrficos e da cosmografia, talvez a mais elevada posio do final do sculo XVI tenha sido alcan-ada pelo polgrafo Gabriel Soares de Sousa com o Tratado descritivo do Brasil em 1587.18

    As quatro ltimas dcadas do sculo XVI revelaram-se prdigas em nmero de cartgrafos portugueses e prodigiosas no esmero tcnico de suas criaes. Todavia tambm o incio da chamada Unio Ibrica e da perda da independncia poltica de Portugal. Abraham Ortelius, trabalhando com os espanhis desde pouco antes, manteve contato permanente com Lus Tei-xeira e foi por ele influenciado.19 Recebeu um enorme leque de informaes, refletidas nos seus mapas posteriores, o mesmo caso de outro holands, Jodo-cus Hondius. Bartolomeu Lasso contribuiu literalmente para mudar os rumos da cartografia neerlandesa e coloc-la no caminho da modernidade.

    Outros pases, estimulados pelo desejo de integrar a presena nos no-vos mares ocenicos, da mesma forma exploraram as possibilidades de atrair pilotos e cartgrafos portugueses. Reside a, por exemplo, a origem do que se desenvolveu na Frana e que se conhece como a escola luso-francesa.

    Para quem se debrua por sobre a Histria da Cartografia, chega a sur-preender a performance de todos estes talentos.20

    Estava em meio o perodo de esplendor da cartografia portuguesa.21 Findava-se o sculo de revelao do Brasil.

    17 Mariano Cuesta Domingo, Com os olhos no cu e os ps na terra, Academia de Marinha, Lis-boa, 2011, p. 12.18 Gabriel Soares de Sousa, Notcia do Brasil; Livraria Martins Editora, So Paulo, 1948 (in-troduo, comentrios e notas de Piraj da Silva) e Tratado descriptivo do Brasil em 1587; Editora Brasiliana, So Paulo, 1938, 3a. edio (comentrios de Francisco Adolpho de Varnhagen). 19 Ortelius estava a servio de Felipe II desde 1575.20 Entre outros, podem rapidamente ser lembrados: Joo Baptista Lavanha, Joo Galego, Pero Fernandes, Sebastio Lopes, Fernando lvaro Seco e Lzaro Lus. Cfr. Armando Corteso, Carto-grafia e cartgrafos portugueses dos sculos XV e XVI; Seara Nova, Lisboa, 1935.21 E que se prolongaria por todo o sculo XVII, conforme observou Romero Magalhes. Mundos em miniatura: aproximao a alguns aspectos da cartografia portuguesa do Brasil (sculos XVI a XVIII; in Anais do Museu Paulista, vol. 17, n.1, So Paulo, jan./jun. de 2009.

  • R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (461):45-56, out./dez. 2013 45

    O pOder naval pOrtugus cOmO Origem da marinha dO Brasil

    O PODER NAVAL PORTUGUS COMO ORIGEM DA MARINHA DO BRASIL

    arMando de senna Bittencourt1

    INTRODUOA existncia de um Poder Naval atuante, desde logo aps o Descobri-

    mento, foi imprescindvel para a formao do Brasil que recebemos como herana de nossos antepassados. um legado precioso; um pas de grandes dimenses, com riquezas naturais incalculveis inclusive no mar de suas costas , situado em latitudes de clima favorvel e habitado por um povo que se identifica pelo mesmo idioma e pela mesma cultura. Esse Poder Naval portugus, que defendeu o territrio colonial e expulsou invasores, deu ori-gem ao brasileiro, com a formao de uma Marinha do Brasil durante a Inde-pendncia. Desde ento, ele foi empregado continuamente, com o propsito de manter a paz da forma como e