Ri Hg b 2014 Numero 0463

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R IHGB a. 175 n. 463 abr./jun. 2014

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Narrativas sobre a experiência da história contemporânea 13do Império Luso-Brasileiro: Hipólito da Costae Francisco Solano Constâncio (1808-1810)Narratives about the experience of the contemporary history of theLuso-Brazilian Empire: Hipólito da Costa and Francisco SolanoConstâncio (1808-1810))André da Silva RamosThamara de Oliveira Rodrigues

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R IHGBa. 175n. 463

abr./jun.2014

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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRODIRETORIA – (2012-2013)Presidente: Arno Wehling

1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco3º Vice-Presidente: José Arthur Rios1º Secretário: Cybelle Moreira de Ipanema2º Secretário: Maria de Lourdes Viana LyraTesoureiro: Fernando Tasso Fragoso PiresOrador: Alberto da Costa e Silva

ADMISSÃO DE SÓCIOS:

Alberto da Costa e SilvaAlberto Venancio FilhoCarlos WehrsFernando Tasso Fragoso PiresJosé Arthur Rios

CIÊNCIAS SOCIAIS:

Antônio Celso Alves PereiraCândido Mendes de AlmeidaHelio Jaguaribe de MatosJosé Murilo de CarvalhoMaria da Conceição de M. Cou-tinho Beltrão.

ESTATUTO:

Affonso Arinos de Mello FrancoAlberto Venancio FilhoCélio BorjaJoão Maurício A. PinhoVictorino Chermont de Miranda

GEOGRAFIA:Armando Senna BittencourtJonas de Morais Correia NetoMiridan Britto FalciRonaldo Rogério de Freitas Mourão

Vera Lúcia Cabana de Andrade

HISTÓRIA:Eduardo SilvaGuilherme de Andrea FrotaLucia Maria Paschoal GuimarãesMarcos Guimarães Sanches

Maria de Lourdes Vianna Lyra.

PATRIMÔNIO:Afonso Celso Villela de CarvalhoAntonio Izaías da Costa AbreuClaudio Moreira BentoFernando Tasso Fragoso Pires

Roberto Cavalcanti de Albur-querque.

COMISSÕES PERMANENTES

CONSELHO CONSULTIVOMembros nomeados: Antonio Gomes da Costa, Carlos Wehrs, Célio Borja,

Evaristo de Moraes Filho, Helio Leoncio Martins, JoãoHermes Pereira de Araújo, José Pedro Pinto Esposel, Luizde Castro Souza, Miridan Britto Falci e Vasco Mariz

CONSELHO FISCALMembros Efetivos: Antonio Gomes da Costa, Jonas de Morais Cor-

reia Neto, Marilda Correia Ciribelli.Membros Suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,

Roberto Cavalcanti de Albuquerque.

DIRETORIAS ADJUNTASArquivo: Jaime Antunes da SilvaBiblioteca: Claudio Aguiar Cursos: Antonio Celso Alves PereiraIconograa: D. João de Orleans e Bragança e Pedro K. Vasquez (sub-diretor)

Informática e Dissem. da Informação: Esther Caldas BertolettiMuseu: Carlos Eduardo de Almeida Barata ( pro tempore)Patrimônio: Guilherme de Andrea FrotaProjetos Especiais: Mary del PrioreRelações Externas: Maria da Conceição BeltrãoRelações Institucionais: João Mauricio de A. PinhoCoordenador da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal

Guimarães (sub-coord.)Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda

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REVISTADO

INSTITUTO HISTÓRICO

EGEOGRÁFICO BRASILEIRO

 Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.

 Et possint sera posteritate frui.

 

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175, n. 463, pp. 11-396, abr./jun. 2014.

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Revista do Instituto Histórico e Geográfco Brasileiro, ano 175, n. 463, 2014

Indexada por/Indexed by

Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –Sumários Correntes Brasileiros

Correspondência:

Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338e-mail: [email protected]   home page: www.ihgb.org.br 

© Copright by IHGB

Tiragem: 700 exemplares

Impresso no Brasil – Printed in Brazil 

Revisora: Sandra Pássaro

Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfco Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o

Instituto, 1839-v. : il. ; 23 cm

TrimestralISSN 0101-4366

Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450(2011)

 N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventá-rio analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervodo Instituto Histórico e Geográfco Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley 

 – N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006. – N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império.

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografa. I. Instituto Histórico e Geográfco Brasileiro.

Ficha catalográca preparada pela bibliotecária Celia da Costa

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CONSELHO EDITORIAL

Arno Wehling – UFRJ e UNIRIO – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Antonio Manuel Dias Farinha – U L – Lisboa – Portugal

Carlos Wehrs – IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Humberto Carlos Baquero Moreno – UP, UPT, Porto, Portugal

João Hermes Pereira de Araújo – Ministério das Relações Exteriores e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

José Murilo de Carvalho – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Vasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores, CNC e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES

Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Esther Bertoletti – MinC – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Lucia Maria Paschoal Guimarães – UERJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Maria de Lourdes Viana Lyra – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Mary Del Priore – UNIVERSO – Niterói – RJ– Brasil

CONSELHO CONSULTIVO

Amado Cervo – UnB – Brasília – DF – Brasil

Aniello Angelo Avella – Universidade de Roma Tor Vergata – Roma – Itália

Antonio Manuel Botelho Hespanha – UNL – Lisboa – Portugal

Edivaldo Machado Boaventura – UFBA e UNIFACS – Salvador – BA

Fernando Camargo – UFPEL – Pelotas – RS – Brasil

Geraldo Mártires Coelho – UFPA – Belém – PA

José Octavio Arruda Mello – UFPB – João Pessoa – PB

José Marques – UP – Porto – Portugal

Junia Ferreira Furtado – UFMG – Belo Horizonte – MG – Brasil

Leslie Bethell – Universidade Oxford – Oxford – Inglaterra

Márcia Elisa de Campos Graf – UFPR– Curitiba – PR 

Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – UFPE – Recife – PE

Maria Beatriz Nizza da Silva – USP – São Paulo – SP

Maria Luiza Marcilio – USP – São Paulo – SP

 Nestor Goulart Reis Filho – USP – São Paulo – SP – Brasil

Renato Pinto Venâncio – UFOP – Ouro Preto – MG – Brasil

Stuart Schwartz – Universidade de Yale – Connecticut / EUA

Victor Tau Anzoategui – UBA e CONICET – Buenos Aires – Argentina

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SUMÁRIO  SUMMARY 

Carta ao Leitor 11LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

I – ARTIGOS E ENSAIOS  ARTICLES AND ESSAYS 

 Narrativas sobre a experiência da história contemporânea 13do Império Luso-Brasileiro: Hipólito da Costae Francisco Solano Constâncio (1808-1810) Narratives about the experience of the contemporary history of the

 Luso-Brazilian Empire: Hipólito da Costa and Francisco SolanoConstâncio (1808-1810))A NDRÉ DA SILVA R AMOS THAMARA DE OLIVEIRA R ODRIGUES

Entre o rural e o urbano: As touradas 39na São Paulo do século XIX (1877-1889) Between rural and urban: bullfghting in 19th century São Paulo

(1877-1889)

FLÁVIA DA CRUZ SANTOS VICTOR  A NDRADE DE MELO

O Presidente, a Santa Cruz, os Cirineus 71e o Estado Laico da República Brasileira: É Prudente?The President, the Holy Cross, the Cirineus and the State

of Brazilian Republic: is it Prudente de Morais?R OGÉRIA DE IPANEMA

Roland Garros no Rio de Janeiro em 1912: 93garoto propaganda da indústria francesa Roland Garros in Rio de Janeiro in 1912:

the propaganda face of French industryJEAN-PIERRE BLAY

Relações entre música popular e poder na belle époque carioca 109The relationship between popular music and

 power in the Carioca belle époque

PAULO R OBERTO PELOSO AUGUSTO

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A demarcação das fronteiras da Amazônia: 141Os jesuítas matemáticos italianos de Alexandre de Gusmão

 A demarcação das fronteiras da Amazônia: Os jesuítasmatemáticos italianos de Alexandre de GusmãoVASCO MARIZ

Militares, diplomatas e cientistas no processo 161de demarcação de limites com a Guiana FrancesaSoldiers, diplomats, and scientists in the process

of demarcating the border with French GuianaLUCIENE CARRIS CARDOSO

II – COMUNICAÇÕES  NOTIFICATIONS 

Por uma nova geograa política para a Amazônia brasileira 199 A new political geography of the Brazilian AmazonR OBERTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

Visões do sertão: o interior das terras no 235Brasil colonial e na África portuguesa

Visions of the Sertão: hinterlands inColonial Brazil and Portuguese AfricaA NDRÉ R ICARDO HERÁCLIO DO R ÊGO

O IHGB e a fundação do Instituto Histórico de Petrópolis 279 IHGB and the Foundation of

the Historical Institute of PetrópolisARNO WEHLING

III – DOCUMENTOS  DOCUMENTS 

As rememorações da “bonifácia”: entre a devassa de 1822 287e o Processo dos cidadãos de 1824 – (2ª parte ) Recollections of the ‘bonifacia’: between the ‘devassa’ of 1822

and the ‘Processo dos Cidadãos’ of 1824IARA LIS SCHIAVINATTO PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

Volume II  288

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“ Informação do Estado do Maranhão”: 349uma relação sobre a Amazônia Portuguesa

no m do século XVII“Informação do Estado do Maranhão”:

a report about the Portuguese Amazon at the

end of the 17th CenturyK ARL HEINZ ARENZ FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

IV – RESENHAS  REVIEW ESSAYS 

O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 381 em Setúbal e o Padre MalagridaADELTO GONÇALVES 

STEFAN & LOTTE ZWEIG – Cartas da América: 387 

 Rio, Buenos Aires e Nova York 1940-42CARLOS WEHRS 

•  Normas de publicação 391 

Guide for the authors 393

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Carta ao Leitor 

O traço crítico do artista e homem de imprensa Ângelo Agostini

(1843-1910) constitui uma das fontes mais valiosas para se reetir a res- peito do sistema político brasileiro e seus principais atores, no períodoque se estende de meados do Segundo Reinado às primeiras décadas doregime republicano. Neste número, no segmento Artigos e Ensaios, a pesquisadora Rogéria de Ipanema disseca novas possibilidades de leiturado legado de Agostini, por meio do estudo da imagem “Semana SantaPolítica”, publicada no periódico o Don Quixote, em 1896.

Além do contributo de Rogéria, a seção Artigos e Ensaios traz mais

seis inéditos, a começar pelo ensaio historiográco escrito por André daSilva Ramos e Thamara de Oliveira Rodrigues, os quais cotejam as narra-tivas contemporâneas da história do Império luso-brasileiro, produzidas por Hipólito da Costa e por Francisco Solano Constâncio no contexto datransferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Outro par deautores – Flávia da Cruz Santos e Victor Andrade de Melo - ocupa-se da prática da tauromaquia no Brasil, assunto por sinal pouco conhecido dahistória das nossas cidades, tendo como foco as corridas de touros orga-

nizadas na cidade de São Paulo, entre os anos de 1877 e 1889. Na sequência, Jean Pierre Blay trata da passagem do aviador francês

Roland Garros pelo Rio de Janeiro em 1912. Ele revela que Garros nãoveio prestar homenagem a Alberto Santos-Dumont, o “pai da aviação”,como se imaginava mas, sim, fazer propaganda de produtos da indústriafrancesa. Também voltada para o alvorecer do século passado, a eruditacolaboração de Paulo Peloso examina as relações entre a música populare o poder na belle époque carioca.

Finalmente, duas contribuições se debruçam sobre a problemática daformação do nosso território. O texto de Vasco Mariz joga luz sobre os jesuítas italianos matemáticos e astrônomos contratados por Alexandrede Gusmão para assessorar o governo português na demarcação das fron-teiras da Amazônia, após a assinatura do tratado de Madrid. Já o artigode Luciene Carris Cardoso apresenta uma síntese alentada da atuação demilitares, diplomatas e cientistas no processo de xação dos limites doBrasil com a Guiana Francesa.

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 No segmento destinado à divulgação das comunicações apresenta-das na Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas do IHGB (CEPHAS)aparecem três trabalhos instigantes: o de Roberto Cavalcanti de Albu-querque propõe uma nova geograa política para a Amazônia brasileira,apontando opções estratégicas para o progresso desta rica região tropical,enquanto que André Heráclio oferece um interessante estudo comparati-vo entre as visões de sertão no Brasil colonial e nos domínios portuguesesem África. Por sua vez, a intervenção de Arno Wehling reete sobre afundação do Instituto Histórico de Petrópolis no âmbito das comemora-ções do primeiro centenário da cidade serrana, destacando o papel cum- prido pelo IHGB neste contexto.

 Na Seção Documentos, dá-se continuidade à publicação iniciada nonúmero anterior da Revista, com a reprodução da 2º parte da “Bonifá-cia”, a célebre devassa que o então ministro do Império José Bonifáciomandou proceder em 1822, com o intuito de investigar a organização deum “conluio republicano”, envolvendo seus antigos companheiros das jornadas pela independência, como os políticos liberais Joaquim Gon-çalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa e José Clemente Pereira. Aindanesta parte da R.IHGB  o leitor encontra a reprodução do importante ma-

nuscrito “Informação do Estado do Maranhão”, relatório redigido peloouvidor-geral Miguel da Rosa Pimentel, em 1692. A transcrição vem pre-cedida de estudo crítico preparado pelos pesquisadores Karl Heinz Arenze Frederik Luizi Andrade de Matos, ambos da Universidade Federal doPará.

Completam este número as resenhas de Adelto Gonçalves e de Car-los Wehrs. O primeiro faz uma análise do livro de Daniel Pires, O Mar-quês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida 

(Setubal: Centro de Estudos Bocageanos, 2013), enquanto que Wehrs,examina a edição em língua portuguesa do livro Stefan and Lotte Zweig’sSouth American Letters: New York, Argentina and Brazil1940-2 (Stefan& Lotte Zweig Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York , tradu-ção de Eduardo Silva e Maria das Graças S. Salgado. RJ: Versal Editores,2012).

Boa leitura!

  Lucia Maria Paschoal Guimarães  Diretora da Revista

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 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):13-38, abr./jun. 2014 13

I – ARTIGOS E ENSAIOS  ARTICLES AND ESSAYS

NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA

CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO:

HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO

(1808-1810)1

 NARRATIVES ABOUT THE EXPERIENCE OF THE

CONTEMPORARY HISTORY OF THE LUSO-BRAZILIAN EMPIRE:

HIPÓLITO DA COSTA AND FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO

(1808-1810)

A NDRÉ DA SILVA R AMOS2 THAMARA DE OLIVEIRA R ODRIGUES3

1 – Agradecemos a leitura de Valdei Lopes de Araujo e ao nanciamento da CAPES.2 – Doutorando em História. Programa de Pós-Graduação de História da UniversidadeFederal de Ouro Preto. E-mail: [email protected] 

3 – Mestranda em História. Programa de Pós-Graduação de História da UniversidadeFederal de Ouro Preto. E-mail: [email protected] 

Resumo:

 Neste artigo, pretende-se analisar como Hipó-lito da Costa e Francisco Solano Constâncionarraram a história contemporânea de Portugalno contexto da transferência da Corte portugue-sa. Explora-se como estes letrados, residentesrespectivamente em Londres e em Paris, pro-curaram caracterizar a decadência em vigor noreinado de D. Maria I. Analisaremos o capítuloescrito por Hipólito da Costa na reedição daobra  História de Portugal composta em inglês por uma sociedade de literatos (1809) e o artigode Constâncio, On the state of Portugal during

the last thirty years, escrito em 1808 para um periódico francês, a m de demonstrar como,ao escreverem a história contemporânea des-te reinado, os letrados historicizaram o tempo presente de Portugal. Argumenta-se que apesardos letrados estarem envolvidos em projetos po-líticos distintos, ambos mobilizaram estratégiasdiscursivas com o intuito de arcaizar a experiên-

13

 Abstract:

 In this article we intend to analyze how Hipólitoda Costa and Francisco Solano Constâncionarrated the contemporary history of Portugalin the context of the transfer of the PortugueseCourt to Brazil. We explore how these scholars,residing respectively in London and Paris, char-acterized the decadence of the reign of Maria I.We analyze the chapter written by Hipólito daCosta in the new edition of História de Portu- gal composta em ingles por uma sociedade deliteratos (1809) and Constâncio’s article On the state of Portugal during the last thirty years,

written in 1808 for a French review, to dem-onstrate how these men of letters historicizedthe present time of Portugal. It is argued thatdespite being involved in different politic proj-ects, both mobilized discursive strategies withthe intention to archaize the experience of Por-tugal history. Finally, we explore how Hipólitoda Costa criticized Constâncio’s perspectives in

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A NDRÉ DA SILVA R AMOS E 

THAMARA DE OLIVEIRA R ODRIGUES

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):13-38, abr./jun. 201414

Introdução

É consenso em meio aos recentes estudos produzidos no âmbito dahistória da historiograa brasileira a necessidade de se pensar a formaçãoda nação e a constituição de culturas históricas no Brasil no século XIXa partir do estudo das permanências e continuidades discursivas que re-montam ao passado de unidade do Império português. De fato, a forma-ção da nação e a sedimentação de possibilidades de constituição de práti-cas historiográcas modernas comprometidas com a tessitura de grandes

narrativas capazes de explicar a evolução e a singularidade nacional nãose processaram de forma teleológica. Dessa forma, pode-se vericar aimportância da tematização dos diversos universos nos quais emergiram práticas de crítica histórica e possibilidades de narrativização dos eventosno Império português, tanto na metrópoles, quanto na América portugue-sa. Neste aspecto, destaca-se a contribuição dos estudos produzidos noâmbito da história da historiograa brasileira que restituíram a complexi-

dade das práticas historiográcas em vigor no século XVIII, especialmen-te na Academia Real de História Portuguesa e Academias Luso-Brasílicasdos Esquecidos e Renascidos, demonstrando as interpenetrações ecléticasentre crítica erudita, retórica e providencialismo (KANTOR, 2004; NI-COLAZZI, 2010; SILVEIRA, 2012).

Contribuição análoga a estes estudos pode ser atribuída àqueles quetematizaram tanto as possibilidades político-historiográcas de fragmen-

tação do Império Luso-Brasileiro quanto as estratégias discursivas demediação temporal mobilizadas posteriormente à Independência, con-

cia da história de Portugal. Ao m, analisaremosuma crítica de Hipólito ao texto de Constâncio publicada no Correio Brasiliense  em 1810,

 buscando mapear as soluções distintas projeta-das para o futuro do Império Luso-Brasileiro a partir dos acontecimentos de 1808. Pretende-sedemonstrar como estas soluções emergiram en-redadas à narrativização da decadência de Portu-gal, que assumiu graus distintos de intensidadenos textos dos autores abordados.

Palavras-chave: História da Historiograa.Historicidade. Decadência

 Keywords: History of Historiography. Historic-ity. Decadence.

the Correio Brasiliense in 1810, in order to mapthe opposing solutions designed for the Luso- Brazilian Empire after 1808. We intend to dem-

onstrate how these solutions emerged entangledin the narrativization of the decadence of Portu- gal, which assumed different degrees of intensityin the texts of the authors discussed.

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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cebidas como indispensáveis para a formação da nação no Império doBrasil (GUIMARÃES, 2006; ARAÚJO, 2008; ARAÚJO & PIMENTA,

2008; SILVA, 2010; SANTOS, 2010; ROSA, 2011; RANGEL, 2011;VARELLA, 2011; MEDEIROS, 2013; RAMOS, 2013). Estas perspec-tivas, como armado acima, possibilitaram tanto a desnaturalização daformação das nações, quanto a compreensão das continuidades e descon-tinuidades discursivas que permitiram a sedimentação e coexistência de práticas historiográcas e culturas históricas.

Vericam-se também na história da historiograa portuguesa con-

temporânea estudos que têm ressaltado a importância das práticas histo-riográcas acadêmicas que remontam ao século XVIII (MOTA, 2004),como perspectivas que visam à compreensão da modernização discursi-va, conferindo centralidade às interpenetrações semânticas entre os sé-culos XVIII e XIX (MATOS, 2009). Todavia, deve ser destacado queestudos importantes que visaram dar um amplo panorama da história dahistoriograa portuguesa priorizaram a historiograa romântica praticadano século XIX, enfatizando seu caráter de ruptura e singularidade (CA-

TROGA et al ., 1998; OLIVEIRA MARQUES, 1988; MACEDO, 1995;MATOS, 1998).

Tendo em vista a ampliação das pesquisas que possibilitam com- preensões aprofundadas das relações político-historiográcas entre Por -tugal e Brasil em um contexto de crise transatlântica, este artigo se propõea tematizar narrativas históricas escritas por Francisco Solano Constân-cio (1777-1846) e Hipólito da Costa (1774-1823), que ainda não foram

abordadas pela história da historiograa. É notável a relevância destesautores para a cultura histórica luso-brasileira, tendo em vista que SolanoConstâncio, além de uma intensa atividade periódica destinada à crítica edivulgação dos debates sobre economia política e literatura, publicou sua História do Brasil , em 1839.4 Já Hipólito da Costa foi o editor do perió-

4 – Francisco Solano Constâncio nasceu em Lisboa em 24 de julho de 1777, mudou-seaos 14 anos para Inglaterra e, posteriormente, para a Escócia, nanciado pelo governo deD. Maria I para estudar medicina. A hostilidade contra o governo inglês e seu sarcasmo

antiacadêmico, que pode ser conrmado nas páginas do período The Ghost , que editouem 1796, foi responsável pela sua expulsão da Grã-Bretanha, indo, em seguida, viver na

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A NDRÉ DA SILVA R AMOS E 

THAMARA DE OLIVEIRA R ODRIGUES

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dico de emigração Correio Brasiliense, publicado na Inglaterra, respon-sável por também divulgar debates no âmbito da economia política, dos

avanços cientícos tecnológicos e literários entre 1808 e 1822, sendo seumaior comprometimento o progresso social do Império Luso-Brasileirosediado no Brasil.5 Os escritos de Solano Constâncio e Hipólito da Costa,que serão tematizados neste artigo foram produzidos, respectivamente,nos anos de 1808 e 1809, e abordaram os debates contemporâneos queenredaram a conjuntura da transferência e instalação da Corte portuguesano Brasil, contexto de grande relevância constantemente retomado pelahistoriograa brasileira e portuguesa a partir de diferentes perspectivas

(MOTTA & MARTINS, 2010).

Pretende-se explorar o fato de que apesar de estarem envolvidosem projetos políticos distintos, Solano Constâncio e Hipólito da Costamobilizaram estratégias discursivas para arcaizar o passado de Portugal.Partindo de uma perspectiva revolucionária, que atribuía à presença fran-cesa em Portugal um contexto favorável para a ruptura com instituiçõese modelos políticos concebidos como arcaicos, Solano Constâncio inter-

 pretou a transferência da Corte como negativa. Para o autor, a fuga da

França. Ao retornar ao seu país em 1799, colaborou com os franceses, deixando novamen-te Portugal em 1807, momento da primeira invasão napoleônica, para fugir de possíveis

 perseguições de seus conterrâneos. Nunca mais retornou ao Reino. Viveu a maior parte davida em Paris como médico, escritor, lólogo, pedagogo, tradutor, jornalista e diplomata,se destacando como um dos principais divulgadores da economia política, tendo editadoimportantes periódicos dedicados ao tema. Morreu em Paris, no ano de 1846 (SOUSA,1979).5 – Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça nasceu em 25 de março de 1774

na Colônia do Sacramento. Seus primeiros estudos foram realizados em Porto Alegre. Em1793 partiu para Portugal e iniciou os estudos em leis e losoa em Coimbra. Nunca maisretornou ao Brasil. Recebeu o encargo do ministro do Ultramar, D. Rodrigo de SouzaCoutinho, de estudar nos Estados Unidos e México. Nos Estados Unidos se tornou ma-çom, sendo iniciado na Filadéla. Em 1802, foi preso em Lisboa devido à sua associaçãocom a maçonaria. Fugiu dos cárceres da Inquisição para a Inglaterra em 1805. Desfrutouda amizade e proteção do membro da família real inglesa e maçom duque de Sussex. Entre1808 e 1822 editou em Londres o Correio Brasiliense. Apesar de ter sido proibida a cir-culação do jornal no Império Luso-Brasileiro e do governo ter nanciado O Investigador

 português para confrontá-lo, sua inuência foi impactante para as publicações impressasno Brasil e em Portugal em um contexto no qual aconteceram a Revolução do Porto e a

Independência do Brasil. Hipólito morreu no dia 11 de setembro de 1823 (PAULA, 2001, pp. 13-34).

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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Corte impossibilitou a efetivação de uma revolução a ser instaurada por Napoleão que seria capaz de erradicar as desigualdades sociais e a cor-

rupção do Reino. Além do mais, Constâncio compreendia que a presençada Corte no Brasil intensicaria os vícios instaurados pelos próprios por -tugueses, levando o Brasil também à degeneração. De modo alternativo,Hipólito da Costa avaliou a transferência da Corte como positiva (LUS-TOSA, 2006, p. 436), pois o Brasil, concebido pelo autor como prenhe de progresso, passaria a ser o centro da regeneração do Império português,sendo esta, por sua vez, não passível de ser realizada no Reino, tendoem vista seu estado de decadência. Para o letrado luso-brasileiro o m

da instituição monárquica não se tornava necessário, pois se apresentavacomo possível, em sua perspectiva, a conciliação entre o poder do rei ea existência de órgãos consultivos como as cortes (LUSTOSA, 2006, p.440). O fundamental era que as políticas reformistas partissem do novocentro do Império (LUSTOSA, 2006, p. 442). Apesar das soluções dis-tintas projetadas para o futuro de Portugal a partir dos acontecimentos de1808, ambos os autores foram unânimes ao narrarem o estado decadente

do Reino e predicarem a necessidade de rupturas com o passado.

6

A experiência da história de Portugal a partir de perspectivascosmopolitas

Com o surgimento da Academia Real de Ciências de Lisboa em 1779multiplicou-se em Portugal os projetos de se escrever uma história eruditae losóca sobre o processo de formação do Reino. Os membros da Aca-

6 – Tendo em vista nosso objetivo de compreender a historização do tempo presentee a projeção de futuros possíveis para Portugal e o Império Luso-Brasileiro a partir de

 perspectivas distintas abertas na conjuntura de 1808, conferiremos centralidade às  per- formances discursivas em vigor nas narrativas de Hipólito da Costa e Solano Constâncio.Portanto, evitaremos reduzir as performances discursivas presentes nos textos dos autoresa categorias extratextuais normativas. Nesse sentido, os horizontes teórico-metodológicoscaros a este artigo estão fundados nas proposições de Reinhart Koselleck, que visam com-

 preender a modernização do conceito de história em um tempo acelerado na passagemdos séculos XVIII para o XIX e do contextualismo linguístico de Cambridge, que tomaunidades linguísticas compartilhadas por comunidades de sujeitos distintos como obje-

tos historiográcos. Para um aprofundamento conra: KOSELLECK, 2013, e POCOCK,2003.

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demia se confrontaram com a necessidade de responder às enunciaçõesde viajantes estrangeiros e portugueses emigrados que diagnosticavam

causticamente a decadência do Reino, tornando-se necessária a produçãode uma história erudita e losóca que desobscurecesse as causalidadeshistóricas determinantes do estado de desenvolvimento contemporâneo.

Mesmo se opondo às enunciações dos letrados estrangeiros quedenunciavam a decadência de Portugal, os membros da Academia nãodeixaram de criticar o descompasso do Reino com as demais nações eu-ropeias. Para os acadêmicos, era fundamental conhecer as causas históri-

cas que impediam o seu desenvolvimento socioeconômico de forma quefosse possível a projeção de políticas reformistas (SILVA, 2006). No en-tanto, estes letrados se comprometiam em armar as potencialidades deD. Maria em promover o progresso português (SILVA, 2010). Apesar dadedicação de muitos membros ao labor historiográco, nenhum acadêmi-co concretizou a escrita da História de Portugal. Em face desta ausência, pode-se considerar que os membros da Academia procuraram supri-la pormeio da tradução de obras sobre Portugal produzidas no exterior (MA-

TOS, 2009, p.671).

Em 1788, a Academia viabilizou a impressão da História de Portu-

 gal composta em Inglês por uma sociedade de Literatos, traduzida porAntonio Moraes Silva. Esta obra se constitui na parte dedicada à História

de Portugal  presente no projeto editorial britânico  A Universal History

 publicada em 65 volumes entre 1736 e 1768, composta por George Sale,George Psalmanazar, Archibald Bower, George Shelvocke, John Camp-

 bell e John Swinton (ABBATISTA, 1985). A parte que contém a História

de Portugal  foi publicada no volume 23, em 1760, sendo a narrativa daobra encerrada no ano de 1714, não abarcando, assim, os eventos con-temporâneos. No entanto, Moraes Silva utilizou uma tradução ampliadaem língua francesa desta obra, iniciada em 1779, para compor a versãoem língua portuguesa. Incorporou o capítulo introdutório Description du

 Royaume de Portugal: origine, splendeur e décadence de cette Monar-

chie e continuou o relato do reinado de D. José I até a morte do rei no anode 1777.

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Outras edições desta obra foram publicadas em Portugal nos anosde 1802, 1825 e 1828 (RODRIGUES, 1992, pp. 254, 358, 369). Estas

edições tiveram o último capítulo sobre o reinado de D. Maria acrescen-tado, sendo este composto por José Agostinho de Macedo (1761-1831). Na Inglaterra, Hipólito da Costa editou uma versão em 1809, igualmentemantendo o corpo da obra compilado por Moraes Silva, sendo o capítu-lo inserido por Agostinho de Macedo retirado por ser considerado equi-vocado e trocado por um de sua autoria. Assim, esta obra demonstra-seimportante para a cultura histórica portuguesa, tendo em vista as váriasreedições e as polêmicas surgidas a propósito do Reinado de D. Maria I.

Dessa forma, tendo em vista que a experiência da história de Portu-gal na virada do século XVIII para o século XIX se constituiu em face dacirculação de textos entre Portugal, França e Grã-Bretanha, pretende-seabordar como o problema da decadência contemporânea de Portugal foirespondido por letrados que não residiam no Reino e não eram membrosda Academia Real de Ciências de Lisboa. Analisaremos como Hipólitoda Costa e Francisco Solano Constâncio, residentes respectivamente em

Londres e Paris, escreveram a história contemporânea relativa ao reinadode D. Maria I. Primeiro, aborda-se como Hipólito da Costa escreveu umúltimo capítulo para a História de Portugal composta em Inglês por uma

 sociedade de Literatos, na reedição desta obra publicada em Londres, em1809. Em um segundo momento, analisaremos o texto de Solano Cons-tâncio, On the state of Portugal during the last 30 years  publicado no periódico editado na França The Monthly repertory of English Literature, 

em que o autor apresenta uma narrativa sobre o declínio português a partirdo Reinado de D. Maria I. Em um terceiro momento, confrontaremos asduas análises com o objetivo de evidenciar a complexidade das leiturasem torno do reinado de D. Maria e, consequentemente, as diferentes so-luções propostas por estes autores concernentes ao futuro de Portugal.

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Hipólito da Costa e as disputas pelo presente de Portugal

As edições de Agostinho de Macedo e Hipólito da Costa da  His-

tória de Portugal composta em inglês por uma sociedade de literatos, publicadas respectivamente em 1802 e 1809, trazem capítulos distintossobre a história do reinado de D. Maria. A edição publicada por Hipólitoem Londres trouxe um capítulo em substituição ao apresentado na obraeditada por Agostinho de Macedo. Os autores divergem no tocante à his-toricização do tempo presente em Portugal, sendo o relato memorialísticode ambos problematizadores do percurso histórico do Reino a partir deum viés diacrônico.

Diante de uma perspectiva histórica geral e sintética sobre o proces-so formativo do Reino, ambos colocaram em causa as condições sociaisimpulsionadoras das transformações e permanências ocorridas em Portu-gal. Para os autores a narrativa sobre o reinado de D. Maria não poderiase limitar à exposição dos acontecimentos políticos contemporâneos, pois para a demonstração dos progressos ou não do presente com relação àsépocas passadas tornava-se necessário explorar em que medida a rainhafoi capaz de promover o bem-estar social do Reino. Portanto, ambos en-tendiam que escrever a história do reinado de D. Maria não signicavacompor um panegírico, uma memória sobre as virtudes militares do Rei-no e de sua soberana, pois as virtudes que Portugal necessitava cultivarno presente não eram as mesmas idealizadas pelos cronistas dos séculos passados.

 No capítulo História do Reinado da Fidelíssima Rainha D. Maria

 I nossa Senhora, Agostinho de Macedo teve a intenção de demonstrar asingularidade do governo desta soberana com relação aos reinados ante-riores, expondo como este se tornou glorioso não pelo cultivo de virtudes belicosas, mas pelo cultivo de “virtudes pacícas”, que possibilitaram aefetivação da prosperidade vigente. O passado de Portugal narrado noscapítulos precedentes da  História de Portugal... é reprovado por Agos-tinho de Macedo, pois as virtudes militares, ou seja, “a glória de um

conquistador” é “quase sempre funesta a vencidos e vencedores”, não

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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 podendo se retirar deste passado “utilidades, que possam ressarcir os ma-les, que causaram”. As consequências destes males foram superadas no

 presente pelas “virtudes pacícas” da rainha, a promotora da “felicidadeda Nação” (MACEDO, 1802, pp. 75-76). Somente o passado próximo era julgado como digno de exaltação, especicamente o reinado de D. JoséI, já que o reinado de D. Maria era concebido como um aperfeiçoamentodeste (MACEDO, 1802, pp. 80, 83).

 No entanto, em1809 este quadro positivo construído sobre o reinadode D. Maria foi confrontado por Hipólito da Costa ao reeditar a História

de Portugal em Londres, pois o autor substituiu o capítulo de Agostinhode Macedo por um de sua autoria, intitulado História do Reinado de D.

 Maria I . Assim como Agostinho de Macedo, Hipólito manteve a estruturada obra organizada por Moraes Silva limitando-se a acrescentar o últimocapítulo. Hipólito da Costa não concordava com a compreensão de Agos-tinho de Macedo de que o reinado de D. Maria instaurou um progresso emPortugal análogo ao de outras nações europeias polidas, rompendo comtodo um passado de belicosidade. Assim, sua intenção foi demonstrar as

fragilidades contemporâneas de Portugal, ou seja, os entraves que impos-sibilitavam seu desenvolvimento.

Hipólito demonstrou os equívocos perpetrados no reinado de D. Josécometidos pelo Marquês de Pombal, fundamentais para a compreensãoda administração que se seguiu no reinado de D. Maria. Segundo Hipó-lito, Pombal tinha trazido muitos benefícios para Portugal, porém, seuscastigos arbitrários faziam com que o povo lhe odiasse (COSTA, 1809, p.

216). O povo considerava Pombal um déspota e estando este no ministé-rio ainda no início do reinado de D. Maria, “era tão maltratado no Paço,que pediu a Rainha a sua demissão, aos 6 de março de 1777” (COSTA,1809, p. 216). Hipólito escreveu ainda que a rainha concedeu a demissãoa Pombal “com algum pesar”, pois reconhecia “o merecimento do Mar -quês” (COSTA, 1809, p. 216). Todavia, apesar da

[...] moderação da parte da Soberana, a alegria do Povo em ver oMarquês abatido era maior do que se poderia esperar, [foi como] se a

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nação se visse livre do julgo de um conquistador inimigo, ou outra ca-lamidade notável; e disto foi a causa, o despotismo de sua administra-

ção; ainda que muitas vezes ele desprezasse as formalidades da justiça para o bem da nação; mas o povo supunha-se livre daquelas execuçõessanguinolentas, que tinham presenciado, e que se haviam praticadosem os procedimentos de direito, e sem as evidências de provas, quetão exemplares execuções, sem dúvida exigiam (COSTA, 1809, 217).

Apesar de expor os aspectos negativos do reinado de D. José, ressal-tando a depreciação do Marquês de Pombal por todos os grupos sociaisconstituintes da nação, “nobreza antiga”, “clero” e “povo comum”, Hipó-

lito da Costa não deixou de ponderar os benefícios trazidos para Portugalno seu governo, dando ênfase, assim, à superioridade deste ministro comrelação aos seus sucessores eleitos por D. Maria.

Os sucessores porém do Marquês, que eram todos da facção oposta, ea cuja frente se achava o rei D. Pedro, cuidaram mais em expor os ví-cios do Marquês do que em imitar as suas virtudes, e continuar os pla-nos que ele começara; porque quando o Marquês chegou ao governo,achou a agricultura em decadência, as artes desestimadas, e a indústria

nacional quase extinta: e muitos ramos da administração pública diri-gidos por estrangeiros aventureiros, que nunca tinham em vista senãoo seu bem pessoal, sem que se importassem com os interesses ou hon-ra da nação. Assim de fora vinha para o Reino o trigo, panos e etc.; aCoroa não tinha tesouro; e o erário estava exausto: a glória militar doReino estava extinta; e a sua segurança dependia do precário capricho,ou negligencia dos seus vizinhos. Estes males havia, em grande parte,remediado o Marquês; porém o despotismo do seu governo, como ditoca, obscureceu de [tal] maneira estes benefícios, que, antes do dia dacoroação da Rainha se mandou cobrir de cal o busto do Marques, queestava no pedestal da coluna da estatua equestre, erigida em honra doRei D. José [...] (COSTA, 1809, p. 218).

Segundo Hipólito da Costa, o Marquês de Pombal tinha combatidoa decadência do Reino promovendo a agricultura, as artes e a indústria, possibilitando que Portugal se tornasse mais autônomo com relação aosauxílios de outras nações, no entanto, mesmo com os seus esforços, es-

tes “males” não foram completamente “remediados”. Estes problemas

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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se demonstravam em vigor no reinado de D. Maria e se contrapunhamà imagem idealizada construída por Agostinho de Macedo. Hipólito da

Costa ainda aponta um agravante: os ministros eleitos por D. Maria eramda “facção oposta” e ao invés de superarem os equívocos do ministro an-terior, “cuidaram mais em expor os vícios do Marquês do que em imitaras suas virtudes e continuar os planos que ele começara”.

Para Hipólito da Costa, não era somente Portugal que necessitavasuperar os entraves para o seu desenvolvimento, pois toda a Europa seencontrava imersa na decadência que remontava à sua formação histórica

após a dissolução do Império Romano. Nesse sentido, os povos de toda aEuropa “gritavam” por “reformas”, que se faziam necessárias, no entanto,muitas das que foram realizadas punham em evidência os “defeitos dosistema em geral”. Ainda pior se faziam as revoluções, pois ao rompe-rem com as “instituições antigas, que conservavam a ordem”, levaram aFrança “a uma horrível anarquia”. Portanto, Hipólito da Costa suspendede forma cética a possibilidade de progresso inequívoco na história dasnações europeias. Com efeito, ao perspectivar a história da Europa como

um todo, diacrônica e sincronicamente, o letrado luso-brasileiro não viaa possibilidade de as nações europeias se orientarem inequivocamenterumo ao desenvolvimento histórico, levando em consideração tanto osideais reformistas quanto os revolucionários. A propósito do ceticismocom relação às reformas empreendidas pelas nações europeias, o autorescreveu:

O progresso das ciências e conhecimentos da Europa tinha feito des-cobrir aos homens instruídos e até aos povos, em geral, os defeitosinerentes à forma de Governo, e instituições feudais, introduzidas pe-los Bárbaros do Norte, que fundaram as Monarquias modernas, sobreas ruínas do Império Romano. De muito tempo a esta parte gritavam

os povos pela reforma, e ainda que, em quase todos os estados da

 Europa, se emendassem alguns inconvenientes parciais a isto, só se

 servia de mostrar mais os defeitos do sistema em geral, e ordem das

coisas (COSTA, 1809, p. 237 – grifo nosso).

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Para além do ceticismo com relação às reformas, Hipólito da Costarechaçava as revoluções, tendo em vista a desagradável experiência fran-

cesa:

Infelizmente quando o Governo da França se lembrou do expedientede começar uma reforma gradual, para acalmar os espíritos do povo,

 já estava a revolução nos ânimos tão adiantados, que esta medida só

 serviu de fogo à mina, e fazer rebentar a explosão. O povo francês,

maníaco em reformar, derrubou uma vez por todas as suas institui-

ções antigas, que conservavam a ordem; e insensivelmente se achou

reduzido a uma horrível anarquia; e iludindo com toda a ideia de que

gozavam liberdade, quando nem se quer governo tinham, quiseramos franceses introduzir as diferentes formas de governo, que sucessi-vamente inventavam para si, em todos os outros Estados da Europa:empregavam para isto, primeiro a persuasão, a força depois (COSTA,1809, p. 237 – grifo nosso).

Para Hipólito da Costa, não havia modelos de desenvolvimento ine-quívocos a serem seguidos por Portugal, pois a herança do passado impul-sionava as nações europeias às reformas, as reformas faziam com que os

erros do passado fossem repetidos, e, por sua vez, as revoluções traziam acompleta desordem e a anarquia. Contudo, mesmo estando envolvido emuma perspectiva cética sobre o progresso histórico, evidenciando no li-mite a sua impossibilidade, Hipólito da Costa não deixou de hierarquizaro que seria mais positivo e negativo para as nações, em especial, no quediz respeito a Portugal. Sendo assim, mesmo que as reformas, em muitasocasiões, servissem somente para evidenciar “os defeitos do sistema em

geral”, estas eram superiores às revoluções, que destituíam as “institui-ções antigas, que conservavam a ordem”, possibilitando a instauração de“uma horrível anarquia”. Logo, para Hipólito era melhor a manutençãoda ordem e das instituições antigas e o empreendimento de reformas gra-duais do que a invenção de “diferentes formas de governo”, que podiamlevar a uma completa anarquia.

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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Francisco Solano Constâncio e o panorama do Estado português

Em 1808, no periódico francês, The monthly repertory of English

literature, Francisco Solano Constâncio publicou o texto “On the state ofPortugal during the last 30 years”. Este periódico foi editado na França,tendo como público alvo a comunidade britânica residente em Paris. Orecorte de trinta anos analisado pelo autor se relaciona a uma aceleraçãodo tempo especíca em Portugal, que coincide com o início do Reinadode D. Maria até a transferência da corte para o Brasil. Assim, foi por meioda conjuntura do Estado de Portugal entre 1778 a 1808 que Constâncioexplicou e tematizou a decadência portuguesa “que tem jogado a nação,outrora tão orescente, em um estado de pior abjeção e pobreza” (CONS-TÂNCIO, 1808, p. 213).

O texto tem como eixo narrativo uma interpretação do declínio por-tuguês, tendo sua etapa de esplendor no período das navegações, momen-to em que “Portugal com a população não menos considerável com a quese tem no presente, produziu todo o necessário para os habitantes e forne-ceu os meios de fazer poderosas conquistas” (CONSTÂNCIO, 1808, p.214). A agricultura e a indústria internas eram as riquezas desse períodode auge civilizacional, que deveriam e poderiam ter sido preservadas. No entanto, a superstição e a ausência das luzes dos sucessivos monar-cas levaram-no ao declínio, caracterizado principalmente pela “absolutadependência” do Reino em relação aos outros países. Esse declínio forainiciado, para o autor, no reinado de D. João III devido ao estabeleci-mento da inquisição e banimento dos judeus. Posteriormente, teria sido

acentuado com D. Sebastião, que sacricou os interesses dos súditos naÁfrica em um “fanático projeto”. O declínio teria se energizado com atirania de D. Felipe e, por m, com a incapacidade dos reis de Bragança(CONSTÂNCIO, 1808, p. 214).

 No entanto, este processo de declínio que Portugal experimentavadesde o reinado de D. João III teve uma expressiva redução a partir dasmedidas ministeriais do Marquês de Pombal. Para Constâncio, Pombal

teria recuperado princípios e medidas fundamentais ao desenvolvimento

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da civilização portuguesa ao reduzir o poder da Inquisição, se mantercontra o papa e os direitos da Igreja nacional, ao reformar a Universidade

de Coimbra e as escolas públicas, ao banir o formalismo escolástico,ao incentivar as artes e as ciências e, principalmente, por forçar “umaarrogante nobreza a fazer parte da comunidade, obedecer ao monarca eàs leis” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 215). Além do mais, Pombal se opôs àinuência da corte britânica, conseguindo recuperar dos ingleses grande parte do comércio realizado indiretamente com as colônias portuguesas.Por tais razões, Pombal deixara um estado orescente em Portugal, quasecapaz de permitir a interrupção completa do declínio, sendo que “a morte

de D. José privou Portugal simultaneamente de um bom rei e de um ótimoministro” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 215).

Apesar do reinado de D. José ter recebido críticas positivas e a ad-ministração de Pombal ter sido compreendida como a responsável pordespertar o Reino “do estado de letargia e ignorância” que a superstição olevou, Constâncio considerou o despotismo como um elemento negativo para o desenvolvimento português:

É preciso, contudo, confessar que a administração de Pombal foi des- pótica, e frequentemente opressiva; sua vontade era lei, e suas ordens,sob nome de Avisos, assinadas apenas por si mesmo, combatiam e atémesmo anulavam as decisões da suprema corte de justiça. Isso foi um

terrível precedente, dos quais seus sucessores fzeram um abuso mais

escandaloso (CONSTÂNCIO, 1808, p. 216 – grifo nosso).7

O abuso da justiça era um tema fundamental para Constâncio, que

enfatizou em seu texto os “últimos trinta anos” portugueses, buscandoanalisar as consequências da permanência deste abuso no governo de D.Maria e de seu lho. O afastamento de Pombal e a morte de D. Josérearticularam uma experiência do declínio e infelicidade, apesar do bomcoração de D. Maria, de sua mente cultivada e do seu amor aos súditos. A

7 – Tradução nossa. No original: “It must, however, be confessed, that the administrationof Pombal was despotic, and often oppressive; his will was law, and his orders, under thename of Avisos, signed only by himself, counteracted and even annulled the decisions of

the supreme courts of justice. This was a terrible precedent, of which his successors madethe most scandalous abuse” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 216).

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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superstição, “consequência necessária da educação adotada naquela cor-te, sempre comprometida com padres e frades” e a falta de rmeza, que

“parece ser hereditária na casa dos Bragança”, impediram a intensica-ção da ascensão portuguesa experimentada com Pombal. Na narrativa deConstâncio, os membros que compunham o ministério e a nobreza eram“incapazes de agir sob princípios rígidos; suas decisões eram meramente pessoais e todos eles esperavam logo governar sem controle sob o nomede uma Rainha frágil” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 217). Esse caráter mo-ral deformado fez com o que o reinado de D. Maria fosse marcado pelaadmissão de novos religiosos, pela péssima administração das colônias,

 pela impossibilidade da polícia em cuidar da limpeza e da segurança e pelo abandono de portugueses que saíam de sua pátria rumo às colônias.Além do mais, o governo de D. Maria restabeleceu o espaço privilegiadoda nobreza, situação que Pombal havia reduzido de forma expressiva.Cada vez mais a nobreza tornava-se “desprezível e odiosa”, destacando--se por sua “insolência e o desprezo dos compromissos mais sagrados”quando comparada “ao aumento da civilização das outras classes da so-

ciedade” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 218).Apesar do reinado de D. Maria e seu ministério terem lançado as

 bases para ruína, “pode-se dizer ter sido feliz” – considerou Constâncio.Portugal gozava de paz ainda que o governo fosse fraco, pois encontrararecursos sucientes para retardar a “fatal época” que se tornaria debaixoda regência de seu lho. A regência de D. João foi marcada pela “vena-lidade” que surgiu “dentro de todos os ramos do serviço público” e pela

“patronagem”, sendo que estes e demais “vícios” e “tipos de corrupção”geraram tamanho “descontentamento” que a nação “nomeou o reinado daRainha como a Idade do Ouro” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 223).

A regência de D. João foi avaliada, pelo autor, pela venalidade dosmembros que compunham seu ministério, responsáveis por um Portugalmarcado por perseguições, abandono das práticas comerciais, indiferençaàs leis. Todos os demais ramos da administração estavam na mesma si-

tuação, além do mais, os cargos públicos eram uma espécie de mercado,onde “tudo era comprado e vendido”. Constâncio armava que o Prín-

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cipe, apesar de ciente da conjuntura, “não tinha o desejo nem a rmezanecessária para reprovar tais abusos” (CONSTÂNCIO, 1808, p. 223).

 Constâncio descreveu o Reino em um estado muito próximo ao daFrança pré-revolucionária. Esse cenário de miséria e injustiça foi perce- bido pelo povo português, segundo o autor, que reclamava e acusava avenalidade do governo. No entanto, “não existia uma tendência geral parauma revolução” em Portugal, e aqui destina uma das poucas críticas ao povo português, que, diferentemente dos franceses, não transformou radi-calmente a conjuntura que questionavam (CONSTÂNCIO, 1808, p. 306).

O que melhor pode conrmar a inexistência da possibilidade de umarevolução, entendida aqui como mudança capaz de retirar Portugal de suadecadência, foi a saída da Corte para o Brasil. Constâncio considerou esteevento uma fuga e o limite do que poderia ser suportado:

[...] não há maior prova que pode ser dada a essa armação [de quenão havia um espírito de revolução em Portugal], que a fuga recentedo Regente, que foi discretamente permitida para levar uma grande

 parte da propriedade da nação e, sua marinha, sem a menor tentativade oposição à sua partida (CONSTÂNCIO, 1808, pp. 306-307).8

A necessidade desta reforma intensa em que as “antigas instituições já não são adequadas” devia-se ao alto nível de corrupção em que se en-contrava Portugal. Ao escrever sobre os últimos ministros do Príncipe, D.Diogo de Noronha, Luís de Vasconcellos e Sousa e António de Araújo deAzevedo, os usou como analogias do que havia de pior na administração

 portuguesa, pois eram homens extremamente “supersticiosos”, de “in-tensa religiosidade”, “egoístas”, “glutões”, “ambiciosos” e “perversos”;distantes do espírito das luzes e que inviabilizavam a reconstrução dasvirtudes, fomentando, assim, a doença do reino de Portugal. Após as des-crições negativas sobre os ministros de D. João VI, Constâncio foi breve

8 Tradução nossa. No Original: “No greater proof can be given of this assertion, thatthe recent ight of the Regent, who was quietly allowed to carry away a great part of the

 property of the nation, and their navy, without the smallest attempt to oppose his depar-ture” (CONSTÂNCIO, 1808, pp. 306-307).

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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em sua avaliação sobre a emigração do Príncipe para o Brasil, tratando-acomo um evento recente e de causas conhecidas:

D. João levou consigo todos os preconceitos e a corrupção da mãe pá-tria, e dicilmente um homem de mérito real o seguiu. A grande partedas pessoas que o acompanhou pertence ao interesse Inglês, e sob aadministração de homens como Almeida, o Brasil não pode ser senãouma colônia britânica; e no país mais rico e mais fértil do mundo, os

 Portugueses podem ainda continuar a ser uma pobre e infeliz nação! (CONSTÂNCIO, 1808, pp. 306-307 – grifo nosso).9

Desta forma, Solano Constâncio considerou o governo de D. Mariacomo uma ruptura negativa em relação aos benefícios trazidos pelo rei-nado de D. José a partir de Pombal, mas ainda assim fora menos nocivo para Portugal do que a regência de D. João, que maximizara todos osvícios presentes no Reino, o levando a uma “fatal ruína”. Neste sentido,a transferência da Corte, para o autor, consistia em um episódio nocivo, pois representava a extensão e a intensicação dos vícios portuguesesà sua promissora colônia americana. Do mesmo modo, a fuga da Corte

também inviabilizou a tomada da casa de Bragança por Napoleão. Cons-tâncio, neste momento, um entusiasta da Revolução de 1789, cria que oimperador francês estenderia ao mundo os ideais revolucionários. Apesarda expectativa em Napoleão não durar muito tempo, os projetos defen-didos pelo autor para erradicar “o rápido progresso do mal em Portugal”ao longo de sua carreira passavam necessariamente por um discurso re-volucionário em que a ruptura com o passado teria que se dar de forma

radical, para desenraizar todos os vícios que mantinham Portugal sempre próximo de seu m.

9 – Tradução nossa. No original: “John carried with him all the prejudices and corruptionof the mother country, and hardly a man of real merit followed him. Most of those whoaccompanied him are in the English interest, and under the administration of men like Al-meida, the Brazils can be nothing but a British colony; and in the richest and most fertile

country of the world, the Portuguese may still continue to be a poor and unhappy nation!”(CONSTÂNCIO, 1808, p. 320).

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A crítica de Hipólito da Costa a Solano Constâncio

 Não se tem um mapeamento denso da recepção do texto de Cons-

tâncio seja pela comunidade francesa, inglesa e/ou portuguesa. Sabe-seque em 1810 esse texto foi reeditado em Londres por Edmund Lloyd e, por esta razão, Hipólito da Costa no volume IV do Correio Braziliense  publicou, na sessão dedicada à literatura e as ciências, um parecer críticosobre o artigo On the state of Portugal during the last 30 years.

Hipólito não se opôs aos reconhecimentos feitos por Constâncio doserros e abusos da administração portuguesa, dos homens corruptos da

Corte e alegou sempre ser o primeiro a desejar e a sugerir reformas noGoverno. No entanto, compreendeu a “pintura” de Constâncio da situa-ção portuguesa feita demasiadamente com “cores negras”, raticando umquadro intensamente “fúnebre” e “sombrio”, faltando “tons e cores cla-ras” sobre o estado da nação, que poderiam ser introduzidos sem faltar àverdade. Hipólito considerou a narrativa do médico português exageradae triste, evidenciando em excesso a decadência portuguesa. Tem-se, en-tão, uma crítica de Hipólito à excessiva ênfase à decadência portuguesadescrita por Constâncio. O autor do Correio não negou a experiência dadecadência, no entanto, não acreditava que a sua descrição incessantefosse uma estratégia eciente para combatê-la, pois falar excessivamentesobre este estado ofuscava o brio português e seu desejo de transforma-ção, ou seja, para Hipólito, mais importante do que a conrmação da dorera a produção de seu alívio.

Essa crítica de Hipólito a Constâncio revela uma tensão no uso dalinguagem sentimental. A autoconsciência moderna precisou de instru-mentos e estratégias capazes de construir sentidos e signicados fortes para a orientação dos homens no interior de um tempo instável. A lingua-gem sentimental foi uma dessas estratégias que procurava intensicar aconsolidação desses signicados, no entanto, os sentimentos evidencia-dos em excesso eram um risco à concretização desses sentidos, uma vezque poderiam “empolgar” ou “desesperar” em demasia os homens; ou

seja, se por um lado os sentimentos foram fundamentais na composição

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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das narrativas modernas, por outro, eles também eram um risco se nãotrabalhados adequadamente e com prudência (PHILIPS, 1997). É a partir

desta compreensão que Hipólito criticou Constâncio, tendo em vista queo segundo, baseado em uma linguagem sentimental bastante negativa,não apresentava de forma satisfatória solução ou esperança clara para odestino do Império Português, pois ao

[...] pintar o estado deplorável da nação com toda a negridão das cores,que talvez lhe pudessem convir, mas que se acham ali sem aquelesclaros, que podendo introduzir-se sem faltar a verdade serviriam dealiviar a dor, que naturalmente deve causar a um Português a leitura de

tão sombria e lúgubre descrição (COSTA, 1810, p. 71).

 No entanto, a crítica mais contundente feita pelo escritor do Correio

 Braziliense diz respeito à expectativa de Constâncio na recuperação dePortugal a partir da intervenção francesa. Hipólito considerou uma “co-vardia criminosa” um “patriota” como Constâncio “esperar de uma naçãoestrangeira e de um povo da mais corrompida moral a emenda de costu-mes, e o exemplo de devoção à causa pública” (COSTA, 1810, p.71).

Como vimos na seção dedicada a Hipólito, a Revolução Francesarepresentava para o autor a desordem e anarquia que colocava em ques-tão a possibilidade do progresso das nações europeias, compreensão queo levou a defender a manutenção da ordem e das instituições antigas e oempreendimento de reformas graduais. Por esta razão, Hipólito fora umdos protagonistas da edicação de um discurso antinapoleônico durantea Invasão Francesa e, por consequência, um defensor da emigração do

Príncipe (NEVES, 2008):Para o cúmulo de desgraça foram os Soberanos da Espanha obrigadosa renunciar os seus direitos, a abdicar o seu trono e a solicitar o seumesmo povo a que faltasse a fé, e juramento de delidade, que haviam

 prestado à Real Família Reinante; a pedir por m que obedecesse seusinimigos.

 Depois disso, quem se atreverá a duvidar da sábia polícia do Príncipe

 Regente de Portugal, em mudar a sua corte para o Brasil? Até agora podia imputar-se a ignorância, ou estupidez, os esforços que algumas pessoas tem feito, (entre outros a populaça de Madrid), de acusar de

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indiscreta a viagem do Príncipe; mas se agora alguém persiste em sus-tentar tal opinião deve ser somente por obstinação ou perversidade

(COSTA ,1808, p. 61 – grifo nosso).

Desta forma, a oposição a Napoleão o levou a defender argumentoscompletamente distintos dos adotados por Constâncio em relação à emi-gração do Príncipe para o Brasil. Para Hipólito, a saída da Corte fora umaestratégia política que garantiu a sobrevivência da Casa de Bragança e dasoberania portuguesa, impedindo que Portugal tivesse o mesmo destinoda Espanha, posição que defendera constantemente no Correio Brasilien-

 se. Além do mais, a emigração da família real estabelecia uma nova con- juntura capaz de garantir a “consolidação do Novo Império do Brasil”.Em contrapartida, os anseios revolucionários de Constâncio impediamque ele projetasse suas expectativas na regeneração de Portugal a partirdo Brasil, por isso, como já observamos, o autor considerou a transferên-cia da Corte um evento negativo, pois a fuga impossibilitou a tomada daCasa de Bragança por Napoleão e, consequentemente, impediu a deseja-da transformação institucional como se vira na Espanha.

Assim, tendo em vista a perspectiva da Revolução Francesa como oque abalou a antiga ordem europeia e o desejo de defender politicamentea emigração do Príncipe, Hipólito procurou avaliar o texto de Constâncio buscando provar que os argumentos utilizados por ele só eram possíveis aquem servia aos interesses franceses. Primeiramente, o autor do Correio comentou os elogios que Constâncio concedeu a Pombal e ao governode D. José. Hipólito considerava não ser capaz de compartilhar de tais

elogios por razões que o próprio Constâncio já havia enunciado: a ad-ministração despótica e agressiva de Pombal, que inviabiliza apreço porqualquer benefício trazido pelo ministro a Portugal: “Pombal fez alguns benefícios à nação, mas que são eles todos juntos comparados ao únicomal de extinguir a liberdade civil, e perverter inteiramente os princípiosfundamentais da legislação criminal do reino?” (COSTA, 1810, p. 74).

Para Hipólito, os homens da Corte no reinado de D. Maria apresen-

taram indiferença à justiça e permitiram a chegada ao estado deplorável

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 NARRATIVAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: HIPÓLITO DA COSTA E FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO (1808-1810)

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de 1808 porque Pombal abrira “um terrível precedente” permitindo queseus sucessores ignorassem a justiça. Opondo-se a Constâncio, Hipólito

avaliava o despotismo de Pombal e sua permanência no Reino como a principal causa da decadência em vigor. Esta oposição se baseia em com- preensões distintas das causalidades determinantes para a emergência dosfenômenos históricos. Enquanto para Constâncio o desenvolvimento darazão era o motivo pelo qual tudo deve estar submetido e pelo qual tudodeve se aprimorar, sendo, em última instância, a causa da decadência por-tuguesa a ausência das luzes e a presença da superstição, para Hipólito,o princípio fundamental para o progresso e decadência na história era a

liberdade civil, sendo o despotismo e a tirania os responsáveis pelo deplo-rável estado presente de Portugal.

Um tema recorrente nas narrativas lusas foi a relação entre a censurae a decadência político-intelectual. Para Hipólito da Costa e seu adversá-rio, o editor do Investigador Português, José Liberato Freire de Carvalho, por exemplo, havia uma relação de causa e efeito entre o despotismo ea decadência das letras e ciências. Esses autores identicaram no minis-

tério de Pombal o declínio das letras e das ciências por consideraremque houve a usurpação do poder do povo em benefício do despotismoreal (ARAUJO & VARELLA, 2009; ARAUJO, 2010). Em contraponto aesta perspectiva, para Constâncio o despotismo e a decadência das letrase das ciências em Portugal estavam subordinados a um terceiro fator: aausência das luzes e a presença da superstição, por isso, apesar de criticaro despotismo do ministro, o entende como um elemento inevitável em

um Reino onde as luzes ainda não estavam plenamente asseguradas. Comefeito, a superstição e ausência das luzes são os elementos metanarrativosorganizadores dos argumentos de Constâncio a propósito da decadênciade Portugal, enquanto que para Hipólito o determinante metanarrativoserá a liberdade civil.

 Neste sentido, procuramos aqui demonstrar que ambos os letrados buscaram por meio da escrita da história contemporânea estabelecer as

causas da decadência portuguesa. Os projetos político-editoriais em- preendidos ao longo da vida tanto por Hipólito quanto por Constâncio

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foram amplamente marcados pela interpretação que cada um conferiu aeste momento da história portuguesa, principalmente no que diz respeito

à saída da Corte. Hipólito desejava a manutenção da ordem ou reformas pontuais que garantissem a liberdade civil, mas, apesar de sua preferência pelas reformas, não deixou de apontar seu ceticismo com relação a elas. Neste sentido, a defesa da emigração do Príncipe remete à própria expec-tativa de um Novo Portugal a partir do Brasil. Já Constâncio, envolvido por um ceticismo mais intenso em relação às reformas parciais, defendia projetos mais radicais, pois a emigração da Corte representaria ao mesmotempo a impossibilidade da reforma absoluta do Estado e a degeneração

da América, uma vez que os vícios portugueses no Brasil seriam intensi-cados pela presença do governo. Desta maneira, as explicações sobre adecadência portuguesa resultaram em distintas expectativas e linguagensque fomentaram intensas disputas político-historiográcas sobre o desti-no do Império Luso-Brasileiro.

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Texto apresentado em março/2014. Aprovado para publicação em

abril/2014.

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ENTRE O RURAL E O URBANO: AS TOURADAS

NA SÃO PAULO DO SÉCULO XIX (1877-1889)

BETWEEN RURAL AND URBAN: BULLFIGHTING IN 19TH 

CENTURY SÃO PAULO (1877-1889)

FLÁVIA DA CRUZ SANTOS1 VICTOR  A NDRADE DE MELO2

Introdução

Os eventos tauromáquicos no Brasil realizados são um assunto ain-

da pouco discutido e investigado, até mesmo considerado surpreendente para alguns. Excetuando-se breves referências em estudos históricos eobras de memorialistas, trata-se de um tema que só recentemente temchamado a atenção de um ou outro pesquisador.

1 – Doutoranda do Programa Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Fe-deral de Minas Gerais.2 – Doutor em Educação Física. Professor do Programa de Pós-Graduação em Histó-

ria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista do CNPq. E-mail:[email protected] 

39

Resumo:

O objetivo deste estudo é discutir a relação daexperiência das corridas de touros organizadas

em São Paulo, entre os anos de 1877 e 1889,com o processo de transição de uma dinâmicarural para outra mais urbana pelo qual passou acidade no decorrer do século XIX. Nesse mes-mo cenário, discutem-se os embates e ajustesentre tradição e modernidade que se manifesta-ram ao redor da prática. Para alcance de nos-so intuito, como fontes utilizamos três jornaisde grande circulação: o Correio Paulistano, o Diário de São Paulo e  A Província de S. Paulo (atual O Estado de São Paulo). Ao nal, con-cluímos que o caso das touradas promovidas na

capital paulistana nos ajuda a ampliar nossas re-exões sobre as peculiaridades da adesão à ideiade modernidade por meio de práticas esportivase de entretenimento em geral.

 Abstract:

The aim of this study is to discuss how the ex- perience of bullghting organized in São Paulo

between 1877 and 1889 can be seen as an in-dicator of the 19th century transition process from a rural dynamic to a more urban one. Inthis context, we also discuss the conicts andadjustments between tradition and modernityrelated to bullghting. We use as sources threenewspapers: Correio Paulistano , Diário de SãoPaulo  and A Província de S. Paulo  (currentlyO Estado de São Paulo). Finally, we concludethat the case of the bullghts held in São Paulohelps broaden our reections on the peculiari-ties of adhesion to the idea of modernity through

 sports and entertainment in general.

Palavras-chave: Touradas. São Paulo. Moder-nidade. Lazer. História do Esporte.

 Keywords: Bullghting. São Paulo. Modernity. Leisure. Sport History.

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Este artigo dialoga com as investigações de Melo e Baptista (2013)e de Karls e Melo (2013), que analisaram a presença das touradas em

cidades que, com peculiaridades, no século XIX passaram por mudançasem função da adesão a discursos de modernidade: Rio de Janeiro e PortoAlegre. O nosso objetivo, tendo em conta esses dois casos, é discutir arelação da experiência das corridas de touros organizadas em São Paulo,entre os anos de 1877 e 1889, com o processo de transição de uma dinâ-mica rural para outra mais urbana pelo qual passou a capital paulistana nodecorrer do século XIX.

A instalação da Academia Jurídica, em 1827, atraiu para São Paulo pessoas de diversas localidades, inclusive do Rio de Janeiro, e interferiuna sua dinâmica social, até mesmo no que tange à diversicação da es-trutura de entretenimentos (COSTA, 2012). Esse processo de mudançaintensicou-se a partir dos anos 1870, em função da instalação da ferroviae da diversicação econômica gerada pela prosperidade da cafeicultura.

Houve no período uma nova circulação de ideias (positivistas e re-

 publicanas). O presidente da Província (de 1872 a 1875), João TheodoroXavier, esteve à frente de uma série de intervenções no espaço urbano;logo São Paulo não seria mais apenas uma cidade de estudantes. O novodinamismo uma vez mais se reetiu na ocupação do espaço público comns de diversão3.

 Na última década do século XIX, houve um denotado incremento dosetor industrial (ROLNIK, 1988). O processo de transformação da cidade

de novo se acentuou, notadamente a partir de 1899, quando se tornouintendente Antonio da Silva Prado4, um dos responsáveis por denitiva-mente sintonizar São Paulo com o ideário e imaginário da modernidade, preparando-a para o rápido crescimento que assistiria nas décadas seguin-tes. Deve-se ter em conta que a transição de um Estado imperial escra-vocrata para uma república de trabalho assalariado gestava um quadrodistinto nos mais diversos âmbitos. A capital dava os primeiros passos

3 – Para mais informações, ver Szmrecsányi (2004) e Frehse (2005).4 – Prado permaneceu na prefeitura até 1911.

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em direção a se transformar em uma metrópole, e novamente os impactosforam perceptíveis nos hábitos de diversão (RAGO, 2004).

O recorte temporal desse estudo tem em conta esse uxo de desen-volvimento da capital paulistana, mas também a trajetória especíca dastouradas, uma prática, a princípio, eminentemente rural. No decorrer dotempo, no cenário urbano, esses espetáculos adquiriram um formato em- presarial. Se antes eram patrocinadas pelo Estado, sua manutenção pas-sou a depender da compra de ingressos pelo público, a ser atraído pelosesforços dos que promoviam os eventos. Nesse percurso, o processo de

“civilização” as colocou em xeque: progressivamente alguns setores asconsideraram como “bárbaras” e ultrapassadas.

Como veremos, na capital paulistana as touradas existiam desde oséculo XVIII. A partir de 1877, contudo, passaram a se organizar no for-mato empresarial, tendo que lidar com as emergentes exigências típicasdo processo de mudança. Já em 1889, ocorreu a última temporada prota-gonizada pelo mais importante personagem das corridas de touros de São

Paulo, Francisco Pontes, responsável por consolidar na cidade, mesmoque provisoriamente, esses espetáculos.

Para alcance do objetivo, como fontes foram utilizados três jornaisde grande circulação. O Correio Paulistano foi um dos primeiros perió-dicos diários de São Paulo. Criado em 1854, durante décadas foi o maisinuente da cidade, destacando-se por transitar entre diferentes posições políticas de acordo com os interesses dos seus proprietários e da oligar-

quia paulistana (THALASSA, 2007).Já o Diário de São Paulo foi criado em 1865. Era politicamente mais

denido do que seu rival. Apesar de se apresentar como imparcial, ado-tava, em geral, um posicionamento conservador (DIAS, 1999). Embora bem estruturado do ponto de vista editorial e ainda que tenha logradoalguns sucessos, durou somente 13 anos.

O  Província de São Paulo foi lançado em 1875, por um grupo derepublicanos atentos a certas demandas liberais, como, por exemplo, a

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abolição da escravatura. Depois da proclamação da República, mudoude nome para O Estado de S. Paulo, denominação que permanece até

hoje. Na transição de séculos, superou o Correio Paulistano, tornando-seo mais importante da capital (MARTINS, LUCA, 2006).

 No desenvolvimento desse estudo, consideramos que as touradas sãomarcadas por um grande trânsito de referências, oferecendo interessanteselementos para discutir os embates e ajustes entre tradição e modernida-de (MELO, BAPTISTA, 2013). Certamente o caso de São Paulo adendaimportantes compreensões sobre o assunto, na mesma medida em que o

objeto lança uma luz sobre a capital paulistana do século XIX.

As touradas no período colonial

 No período colonial, as touradas comumente integravam a progra-mação dos festejos que se organizavam para celebrar datas importantesda família real portuguesa, uma estratégia de difusão de símbolos da hie-rarquia metropolitana (MELO, 2013). As Câmaras eram responsáveis pororganizar esses eventos.

Como lembra Kantor, uma das características dos programas dasfestas públicas promovidas em São Paulo, a partir de meados do séculoXVIII, era a “exibição de torneios equestres, cavalhadas, tauromaquias”(2008, p. 172). Por exemplo, em 1762, três dias de touradas integraramos festejos de celebração do nascimento de D. José, primogênito de D.Maria I (LEME, 1905; BORREGO, 2006). Entre os toureiros, podemos

citar o capitão Joaquim José Pinto de Moraes Leme e seu ajudante José deCastro de Canto e Mello, personagens importantes da cidade, membrosdo Exército e de famílias de prestígio.

Já em 1795, as touradas integraram as festividades realizadas paracelebrar o nascimento de D. Antônio, segundo lho da princesa CarlotaJoaquina com D. João:

Fazemos igualmente saber que as preditas festas hão de principiarcom um tríduo nos dias 22, 23 e 24 do mês de agosto celebrado pelo

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ilustríssimo cabido na Igreja Catedral, nalizando-se no dia 24 comuma solene procissão pelas ruas do costume. (...) se farão três dias de

touros, três noites de encamisadas e três de opera5

.

A chegada da família real no Rio de Janeiro, em 1808, incremen-tou a promoção de festividades na colônia. Em São Paulo, as touradasorganizadas nas comemorações do desembarque foram oferecidas peloscapitães-mores das ordenanças, contando com a participação de coronéise tenentes-coronéis dos corpos milicianos. Segundo Campos (2008), a praça do curro foi montada, à custa da Câmara, no Jardim Botânico, na

época situado no Parque da Luz.Outra importante data em São Paulo também comemorada com cor-

ridas foi o juramento de D. João VI, em abril de 1817. Para os três diasde festas, foi construída uma arena de touros com recursos de particularese da Câmara6, planejada pelo engenheiro militar Pedro Daniel Muller 7.Segundo Campos (2008): “Teria sido esta a primeira vez que as touradasse apresentaram na parte nova da cidade, na Praça da Alegria, desde então

denominada Largo dos Curros” (s. p.).Essa localidade receberia a maior parte dos eventos tauromáquicos

organizados no século XIX. Originalmente propriedade de José Arouchede Toledo Rendon8, o Largo dos Curros, em 1865, foi renomeado paraLargo Sete de Abril, uma referência à abdicação de Pedro I. Na década de1870, passou por intervenções no âmbito do governo de João TheodoroXavier. O nome atual, Praça da República, foi adotado em celebração à

 proclamação do novo regime. Nos primeiros anos do século XX, Antônio5 – São Paulo (SP), Câmara Municipal. Registro Geral da Câmara Municipal de São

 Paulo: 1764-1795. São Paulo: Tipograa Piratininga, 1920, vol. 11, pp. 260, 261. Dis- ponível em: <http://archive.org/details/registrogeralda01bragoog>. Acesso em: 28 nov.2013.6 – A municipalidade encarregou-se de construir apenas as trincheiras e os camarotes

 para o governador, a câmara e o cabido (BRUNO, 1954).7 – Formado na Real Escola dos Nobres de Lisboa, o engenheiro participou ativamenteda construção da capital paulistana. Foi o primeiro diretor do Gabinete Topográco daProvíncia (SALGADO, 2010).

8 – Foi um personagem de destaque na cidade, sendo inclusive diretor da Faculdade deDireito entre 1827 e 1833.

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Prado promoveu no espaço uma grande reformulação, inclusive com seuajardinamento.

Em junho de 1817, novas touradas foram no mesmo Largo realiza-das, para comemorar o casamento de D. Pedro com Leopoldina (CAM-POS, 2008). O local acolheria ainda, no ano seguinte, mais uma impor-tante cerimônia: os festejos da aclamação de D. João VI. Uma vez maisas corridas de touros integraram a programação, mesmo que, na ocasião,a Câmara estava passando por diculdades nanceiras.

Foram três dias de touradas, para os quais a praça do curro foi refor-mada (Almeida, 1999). No espetáculo, houve a morte dos animais, em- bora já se contasse com a presença de forcados. Tratava-se de um mistoentre a moda portuguesa e a espanhola, em um momento de transição dosestilos de tourear (CAPUCHA, 1988).

Depois dessa ocasião até a independência não mais corridas de tou-ros foram organizadas. Vejamos que Saint Hilaire (1954), em sua viagema São Paulo, realizada em 1819, elogia a arena construída no Largo dosCurros, mas observa que não chegou a assistir qualquer evento. Sem o patrocínio do Estado, tornava-se mesmo difícil a promoção de espetáculotão custoso. Em 1823, ordenou-se o desmanche do redondel em funçãode seu mau estado.

Limitações, cobranças, regulamentações

Já com o país independente, o Largo dos Curros durante décadas

 parece ter recebido poucas corridas. Na verdade, nos faltam dados parainferir melhor o que por lá se passou. Eventualmente encontramos algumrelato. Eli Mendes, por exemplo, sem citar a fonte, sugere que, em 1852, por ocasião da inauguração do Hospital dos Alienados, um grupo de So-rocaba promoveu um evento em uma improvisada arena instalada no lo-cal. A atração principal, o toureiro Tan Tan, teria sido morto pelos chifresdo touro ao tentar agarrá-lo à unha9.

9 – Informação publicada no blogue Saudade de Sampa, com uma foto de uma touradarealizada, em 1902, no Largo (já renomeado para Praça da República). Disponível em:

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 Nos jornais consultados10 também não há maiores pistas. Sobre SãoPaulo, encontramos apenas uma breve informação sobre touradas reali-

zadas, em 1856, no Campo Redondo, região norte da cidade, próximo daLuz. Já naquele momento houve um problema costumeiro na história da prática no Brasil – a falta de gado adequado e de habilidade dos artistas:“Temos ouvido dizer (...) que a imperícia dos toureadores e a mansidãodos bois tornaram esse espetáculo uma verdadeira logração às bolsas dorespeitável público.”11

 Nas décadas de 1850 e 1860, de fato, as notícias sobre as touradas

diziam respeito a eventos do exterior, da Corte e de outras cidades da província. Por exemplo, em 1857, por ocasião da Festa do Divino EspíritoSanto de Lorena, foram organizados dois dias corridas, que não satisze-ram o público pela falta de habilidade dos toureiros, “uns especuladores já acostumados a tourearem as algibeiras dos que lhes caem nas unhas”12.

Algumas dessas touradas já adotavam o modelo empresarial. Vemosisso nas iniciativas de Francisco Antônio Martins, que promoveu corridas

de touros em várias cidades, como Itu13

 e Tatui14

. Comumente integravasua comitiva o famoso ator Vasques, responsável por apresentar númeroscômicos nos intervalos.

Outra cidade em que as touradas parecem ter sido costumeiras foiTaubaté (MONTEIRO, 2011). Das notícias publicadas, destacamos uma por tocar em uma constante preocupação na trajetória dos eventos tauro-máquicos: a segurança. Em 1870, a arena desmoronou, deixando muitos

feridos. Para o jornal: “Se o Sr. Delegado soubesse cumprir com os seusdeveres e mandasse examinar aquela obra”15, o acidente não teria ocor-rido.

<http://saudadesampa.nafoto.net/photo20090124172012.html>. Acesso em: 4 nov. 2013.10 – Além dos três usados no estudo, consultamos O Farol Paulistano, O Novo Farol

 Paulistano, A Phenix, O Mercantil , O Ypiranga, Radical Paulistano e A Constituinte.11 – Correio Paulistano, 13/7/1856, p. 2.12 – Correio Paulistano de 16/9/1857, p. 213 – Diário de São Paulo, 19/5/1868, p. 3.

14 – Correio Paulistano, 17/10/1868, p. 4.15 – Correio Paulistano, 14/6/1870, p. 1.

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Constantemente as autoridades eram convocadas a interferir no es- petáculo, até mesmo porque, ainda que menos do que no Rio de Janeiro,

havia na província de São Paulo uma representação de que as corridas detouros eram tumultuadas16. Assim sendo, não chega a surpreender que otema estivesse tão presente nos códigos municipais de posturas que foramaprovados no decorrer do século XIX.

Algumas cidades, como Itapetinga, optaram por proibir as touradas. Nesse caso, inclusive, se discutiu que o código era falho por não preveruma sanção “tanto mais severa quanto creio que a reprovação de seme-

lhante divertimento está em todos os ânimos”, como disse o vereador D.de Azevedo17. Já a legislação de Jundiaí estabeleceu penas para quem promovesse as corridas: multa de 30$000 e oito dias de prisão18.

Em outros municípios, como Guaratinguetá, achou-se por bem co- brar para autorizar a realização das corridas: “De cada espetáculo eques-tre ou ginástico, de cavalhadas, bailes mascarados e outros semelhantes20$000; Dos espetáculos dramáticos, uma vez que não sejam gratuitos,

ou dados por sociedade particular 10$ de cada um; Dos de corridas detouros 10$ idem.”19

Pelos jornais, pode-se ver o quanto algumas cidades arrecadaramcom esse recurso. Por exemplo, em julho de 1873, a Câmara de São Luizde Paraitinga anuncia que coletou 200$000 com as touradas, uma dasmaiores rendas do município, perdendo somente para a venda de aguar-dentes, venda de carnes e impostos de tavernas e estalagens20.

A preocupação central era o mesmo estabelecimento de mecanismosde controle urbano. Não eram somente as corridas de touros que passa-

16 –  Para mais informações sobre o caso do Rio de Janeiro, onde o termo “corrida detouros” virou sinônimo de tumulto, ver Melo e Baptista (2013).17 – Correio Paulistano, 3/3/1864, p. 2.18 – Correio Paulistano, 16/9/1865, p. 1.19 – Correio Paulistano, 24/8/1865, p. 120 – Diário de São Paulo, 24/7/1873, p. 1. Essa alta arrecadação apareceu diversas vezes

na prestação de contas de outras cidades, como no caso de Taubaté ( Diário de São Paulo,26/7/1877, p. 1).

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vam por isso. Toda a estrutura citadina tornava-se mais regulada, inclu-sive os demais divertimentos, um processo que se relacionava tanto com

as necessidades desencadeadas pelo crescimento dos municípios quantocom a melhor estruturação da burocracia governamental.

Essas preocupações também se relacionavam com a diversicaçãodos entretenimentos. No caso da capital, Silvio-Silvis nos dá uma noçãodo que ocorria em meados dos anos 1860: “O espírito público em S. Pau-lo jaz no silencio tumular.”21 Para ele, “nessa terra não se mata ninguém,não se dá facadas, não há corridas de touros, não há teatro lírico, nem

 bailes, nem poesias, nem romances, (...) uma indigestão de tédio mistu-rado com carne de vaca, sem lagosta, sem ostra, sem a mínima porção dequalquer estimulante”.

É possível que Silvio-Silvis tenha sido um dos estudantes da Acade-mia de Direito, originário de outra cidade, talvez mesmo da Corte. Ele,que considerava o folhetim importante por tratar de assuntos mais frívo-los, constantemente escrevia sobre o tédio e a falta de opções de diversão

na capital paulistana (BORGES, 2011).Esse cenário, todavia, mudaria no decorrer dos anos 1870. No qua-

dro de rápidas transformações pelas quais passava a cidade, em 1873 pro-mulgou-se para a capital um rigoroso código de posturas. Previa o artigo42: “Não se dará licença para corridas de touros, que cam absolutamente proibidas; sob multa de 30$000 e 8 dias de prisão.”22 

Tudo indicava que não seria alvissareiro o futuro das corridas de tou-ros em São Paulo, tanto mais que o Correio Paulistano constantemente publicava críticas à existência da prática em Portugal e Espanha23. Sem setratar de uma posição ocial, era mais um indicador de que não era grandea ambiência para as touradas na cidade.

21 – Correio do Paulistano, 12/3/1865, p. 1.

22 – Diário de São Paulo, 8/7/1873, p. 1.23 – Ver, por exemplo, Correio Paulistano, 27/2/1877, p. 3.

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A adequação/inadequação das touradas em uma capital que semodernizava

O código de posturas de 1873 sofreu muitas críticas, consideradoexcessivamente rígido. As diculdades de scalização eram muitas, e ogoverno percebeu que a melhor saída era elaborar uma nova legislação, promulgada em 1875, permanecendo em vigor até 1886.

Ainda que algumas exigências e determinações tenham sido atenua-das, o código de 1875 manteve a restrição: “Ficam inteiramente proibidasas corridas de touros. O infrator sofrerá a multa de 30$000 e oito dias de

 prisão, e será obrigado a desmanchar imediatamente o circo.”24 

Somente em 1886 a orientação seria distinta: “Os espetáculos públi-cos de corridas de touros serão permitidos, quando estejam convenien-temente embolados, de forma a evitar quaisquer ocorrências funestas.”25 A indicação de “embolar” os animais, cobrir os chifres para diminuir osriscos para os toureiros, seguia a tradição das touradas portuguesas. Erauma tentativa de fazer da tauromaquia uma prática menos bárbara.

Assim sendo, até 1886 não teriam sido realizadas touradas em SãoPaulo? Não foi isso que ocorreu. Em julho de 1877, Antonio Aragon pedeà Câmara licença para levantar um circo e organizar eventos tauromáqui-cos no Largo dos Curros. A princípio, o pedido foi negado tendo em vistao que previa o código de condutas26.

Todavia, o presidente da Província, Joaquim Manuel Gonçalves de

Andrade, interveio e a autorização foi concedida27

, a partir da sugestãode que fosse modicado o item que tratava do tema, acrescentando-se oseguinte: “Os espetáculos públicos de corridas de touros serão permiti-dos quando estejam embolados de forma a evitar quaisquer ocorrências

24 – Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/resolucao/1875/re-solucao-62-31.05.1875.html>. Acesso em: 12 dez. 201325 – Disponível em: <https://archive.org/details/CodigoDePosturasDoMunicipioDeSao-Paulo1886>. Acesso em: 12 dez. 2013.

26 – Diário de São Paulo, 4 de julho de 1877, p. 2.27 – Diário de São Paulo, 2/8/1877, p. 2.

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funestas.”28 Perceba-se que esse texto seria futuramente inserido no có-digo de 1886.

Essa decisão acabou estabelecendo uma peculiaridade das touradasde São Paulo se comparadas às de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. En-quanto nessas cidades houve corridas à moda espanhola (valorizando-seo toureio a pé, sem embolação e com a morte do touro no nal) e à moda portuguesa (valorizando-se o toureio a cavalo, com embolação, sem amorte do touro no nal e com a apresentação dos forcados, que pegavamo animal “à unha”), na capital paulistana muito largamente foi adotado o

modelo lusitano29

, ainda que nas notícias de jornais se dissesse equivoca-damente que se tratava de uma prática originária da Espanha, inclusivese valorizando a presença de naturais desse país nas companhias tauro-máquicas30.

 No Rio de Janeiro, as corridas começam a se estruturar em um for-mato empresarial a partir dos anos 1840 e nos anos 1850 já tinham surgi-do as primeiras críticas à sua inadequação, o que por vezes foi um dos fa-

tores responsáveis por sua extinção. Já em Porto Alegre, as contestaçõesnunca foram intensas.

Em São Paulo, mesmo que com diferente intensidade, bem menordo que no Rio de Janeiro e maior do que em Porto Alegre, também houvedebates sobre a adequação das corridas. Em algumas ocasiões, elas foramchamadas de “bárbaro divertimento”31, bem como eram adjetivadas de“representações sanguinolentas e brutais” as touradas espanholas por os

animais não estarem embolados. Eram por alguns relacionadas ao maugosto, à ignorância, ao não civilizado.

A crueldade do espetáculo, contudo, não era o principal motivo dascríticas. O que preponderava era a preocupação com a segurança. A de-

28 – Diário de São Paulo, 17/8/1877, p. 2.29 – Somente no período colonial houve touradas com a morte do animal.30 – No Rio de Janeiro, a defesa e predominância da moda portuguesa tinha relação tantocom a inuência do outrora colonizador quanto com a argumentação de que não havia

crueldade nas touradas (MELO, BAPTISTA, 2013).31 – Um exemplo: Correio Paulistano, 16/9/1857.

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terminação de que os touros fossem embolados expressava os cuidadoscom os homens, não com os animais. Aliás, notícias de diferentes lugares

sobre ferimento e morte de toureiros eram comuns nos jornais32

, o quecontribuía para a construção da ideia de inadequação das corridas quandoos touros estivessem desembolados. Sem derramamento de sangue huma-no, supunha-se, a prática era menos bárbara.

Houve também preocupações com os touros. Uma matéria publicadano Correio Paulistano, em 1874, condena os maus tratos dos homens para com os animais. Para o autor, o sofrimento do gado já era sucien-

te “para julgar a moralidade do espetáculo” 33

, lamentando que “o san-gue pode como o vinho embriagar a multidão.” As touradas, assim, eramapresentadas como incompatíveis com o mundo civilizado.

Vejamos outro posicionamento publicado em  A Província de São

 Paulo, em outubro de 1877, às vésperas da inauguração de um novo tourilna cidade: “Lastimando tão infeliz ideia, escrevemos estas linhas unica-mente para despertar a atenção da imprensa sobre esta novidade que, se

hoje é uma simples tourada, mais tarde, a ser aceita, será prova de nossoatraso.”34

Esse mesmo autor, dias depois da inauguração do curro, é categóri-co: “Para a capital, esta data, de triste recordação, será o marco miliáriode seu retrocesso.”35 Para ele, São Paulo deveria acolher a ideia de ci-vilização, e não um espetáculo bárbaro, que ainda rivalizava, de formaincompreensível, com teatros e concertos. Ele lembra que a prática fora

 proibida pela Câmara, somente sendo autorizada graças ao empenho deAragon, que mobilizou interesses nanceiros. A seu ver, traíra-se o espí-rito público.

Tratar-se-ia de um contrassenso um governo que diz pensar na edu-cação pública autorizar a realização das corridas, mesmo com animais

32 – Um exemplo: Diário de São Paulo, 9/6/1869.33 – Correio Paulistano, 8/3/1874, p. 2.

34 – A Província de São Paulo, 27/10/1877, p. 2.35 – A Província de São Paulo, 12/11/1877, p. 3.

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E NTRE O RURAL E O URBANO: AS TOURADAS  NA SÃO PAULO DO SÉCULO XIX (1877-1889)

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embolados, uma estratégia que, segundo o seu olhar, em nada reduzia acrueldade para com o touro e para com o público. Sua frase nal descorti-

na denitivamente sua expectativa de civilização: “Já temos as touradas;não será, pois, de estranhar que forme-se uma associação para nos divertircom congadas e assim nos fazer passar verdadeiras horas africanas.”36

A questão era de padrão civilizacional, ligado ao que se podia es- perar de um país que deveria se pretender moderno. Não surpreende quecompare as criticadas touradas com as elogiadas corridas de cavalo (“pelogrande benefício que daí resulta à província pelo melhoramento da raça

cavalar”37

) e com a patinação (uma “verdadeira ginástica, tão necessáriaao desenvolvimento das forças físicas”).

Em janeiro de 1878, outro cronista critica as touradas: “Ora bravo!Agora sim, vai servindo este circo; já se viu sangue e talvez logo apare-çam intestinos dilacerados e mortes. Assim começa a servir, já diverte.”38 O cronista segue descrevendo o prazer do público ao ver um touro atingirum toureiro. Para ele, o espetáculo lembrava as antigas execuções, quan-

do os assistentes se deleitavam com o sofrimento alheio. Ao nal, ironiza:“Parabéns aos senhores vereadores que, arcando com as ideias da época,revogaram a postura que proibia este divertimento.”

Essas posições, de fato, eram minoritárias. O próprio autor das mis-sivas de 1877 se indignava com o fato de a imprensa não tomar uma posição contrária contundente. Aliás, no mesmo dia em que publicou suasegunda crítica, numa coluna ao lado, outro jornalista comenta a falta de

emoção do espetáculo. A expectativa era exatamente oposta: “Para outravez talvez tenhamos a ventura de trazer aos leitores a narrativa de algumacena horripilante, fúnebre, sanguinolenta. Está nisso a tourada.”39

Uma síntese do debate pode ser prospectada na crônica de Don Gi-gadas el Chico, que narra uma visita ao curro com um amigo espanhol. O

36 – A Província de São Paulo, 12/11/1877, p. 3.37 – A Província de São Paulo, 27/10/1877, p. 2.

38 – A Província de São Paulo, 3/1/1878, p. 2.39 –  A Província de São Paulo, 12/11/1877, p. 3.

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diálogo entre eles recria as posições a favor e contrárias à prática. O po-sicionamento majoritário era de que as touradas não eram mesmo um di-

vertimento bárbaro, mas sim uma celebração dos embates entre o homeme a natureza, uma forma de desenvolver a “energia do caráter, forticandoo corpo, adestrando o músculo”40.

Assim, mesmo que houvesse críticas, o espetáculo era por muitosaguardado com ansiedade.

Inaugura-se a arena

Com a autorização concedida, mesmo que de forma controvertida,teve início, no Largo dos Curros, a construção da praça de touros. Frenteà notícia de que a instalação seria inaugurada em 4 de novembro de 1877,comenta um jornalista do Correio Paulistano: “É uma novidade atraentee uma propicia oportunidade de regalo para os que procuram ser abalados pelas fortes e vivas sensações que provocam os exercícios de circo.”41 

O cronista do Diário de São Paulo também celebra com ironia: “Mas

o povo que foge do S. José, não pode morrer de tédio; damos-lhe paraconforto três altas novidades que andam por aí viajando nos boatos cor-rentes: a próxima inauguração de um circo de touros, a volta da Fênix equem sabe? A volta d’el rei...D. Sebastião. A los toros!...e viva a arte!”42.Já o jornalista de A Província de São Paulo é mais cauteloso: “A expe-riência dirá se os paulistas estão dispostos a aceitar esse gênero de diver-são importado do estrangeiro.”43

Os paulistanos tiveram que esperar um pouco mais. Os toureiroscontratados atrasaram por participarem de uma sessão benecente orga-nizada pelo Clube Tauromáquico do Rio de Janeiro44. Finalmente, em 11de novembro de 1877 se inaugura o Grande Circo de Touros no Largo

40 – A Província de São Paulo, 29/3/1887, p. 3.41 – Correio Paulistano, 26/10/1877, p. 2.42 – Diário de São Paulo, 4/11/1877, p. 2.43 – A Província de São Paulo, 25/10/1877, p. 2.

44 – Diário de São Paulo, 4/11/1877, p. 4. Para mais informações sobre o clube, ver Meloe Baptista (2013).

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dos Curros, com execução solene do Hino Nacional. A experiente equipetauromáquica estava completa, inclusive com os forcados45.

Houve uma grande preocupação de deixar claro que o espetáculofora autorizado pelas autoridades. Além disso, explicitava-se: “É expres-samente proibido a qualquer espectador saltar à praça, salvo só depoisde terminar o espetáculo.” Os bilhetes foram vendidos pelos preços que perdurariam no decorrer do século: 2$000 o mais caro e 1$000 o mais barato, similar ao de outras diversões públicas.

A expectativa era grande, a auência de público foi notável (os jor -nais estimaram em torno de 3.000 pessoas), mas ocorreu algo que se tor-nou comum nos primeiros meses dessas touradas paulistanas mais bemestruturadas: decepção com o espetáculo, inclusive devido à inadequaçãodos animais. Isso era um problema para a manutenção da prática, pois,com a adoção de um formato empresarial, a assistência tinha que ser sa-tisfeita para que comparecesse nas funções seguintes.

Vale lembrar que as touradas se inseriam numa cidade que diversi-cava sua estrutura de entretenimentos. O público se dividia entre o Rink,o Teatro de São José, o Hipódromo Paulistano, o Jockey Club e o CircoCasali, entre outros. Não surpreende que no anúncio das segundas corri-das ressaltasse o organizador:

AO RESPEITÁVEL PÚBLICOEm virtude de no dia 11 a corrida não ter deixado o publico completa-mente satisfeito, pela falta de bravura dos bois, a Empresa, desejandosatisfazer aos concorrentes deste espetáculo, tem lançado mão de to-dos os meios ao seu alcance para achar gado de excelente condição, am de oferecer uma BRILHANTE FUNÇÃO46.

 Na verdade, foi bem tumultuado o evento inaugural. Em função dogrande número de interessados, a arena cou lotada e muita gente com in-gresso não conseguiu entrar. O empresário foi acusado de vender bilhetes

45 – Correio Paulistano, 10/11/1877, p. 4.46 – Correio Paulistano, 16/11/1877, p. 4.

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em excesso. A revolta do público mal foi contida pela força policial: as portas do redondel foram destruídas, funcionários agredidos, as famílias

se retiraram frente à turba47

.A despeito das promessas, os problemas continuaram no evento de

18 de novembro. Foram ainda mais graves os conitos entre “paisanos e praças, de que saíram feridas e contusas várias pessoas”. O jornal criticouos “desordeiros e insubordinados que lançando mão da violência sacri-cam a paz e a tranquilidade pública”48. O fato é que o público, indignadocom a má qualidade do espetáculo, protestou veementemente e destruiu

uma parte do curro, sendo controlado por uma força policial despreparada para agir em casos como esses.

Para o Diário de São Paulo: “Foi um completo asco, repetimos, odivertimento de domingo.” 49 Também registra o tumulto entre a “força pública e o povo”, minimizado pela ação do subdelegado, capitão Fran-cisco de Paula Xavier de Toledo, que chegou a agir contra os próprios sol-dados por sua violência. A balbúrdia foi generalizada, os conitos foram

múltiplos, inclusive com insubordinação dos agentes50

. Esse fato repercu-tiu por semanas, com setores da sociedade cobrando do chefe de políciaque punisse os responsáveis pelo desacato51.

Os tumultos claramente se relacionavam às iniciativas de organiza-ção da esfera pública em um momento em que os novos costumes es-tavam se consolidando. Tratava-se de uma ideia relativamente recentena capital: “a formação cada vez mais clara da res publica que deve ser

garantida pela administração e respeitada pela população” (TORRÃOFILHO, 2006, p. 151). Público e força policial aprendiam a lidar com anova dinâmica social, um processo que teve similaridades com o que se passou em várias cidades brasileiras.

47 – Diário de São Paulo de 16/11/1877, p. 1.48 – Correio Paulistano, 20/11/1877, p. 1.49 – Diário de São Paulo, 20/11/1877, p. 2.50 – Uma minuciosa descrição desses acontecimentos se encontra em: A Província de São

 Paulo, 20/11/1877, p. 2.51 – A Província de São Paulo, 25/11/1877, p. 2.

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Com tanta turbulência, Aragon desiste do negócio, adquirido por umnovo empresário, que contrata novos toureiros, muda o fornecedor de ani-

mais e anuncia para 2 de dezembro de 1877, em letras garrafais: “GRAN-DE CIRCO DE TOUROS – LARGO DOS CURROS – EXTRAORDI- NÁRIO ESPETÁCULO”52.

Anunciada como uma homenagem ao aniversário de D. Pedro II,que, aliás, não apreciava e nunca esteve numa corrida de touros53, a pro-gramação sugeria que haveria uma “alta novidade”: a atuação de Mme.Julia Rachel, que já se apresentara em Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre

e Rio de Janeiro. Prometiam-se, nos intervalos, números cômicos e musi-cais sob a responsabilidade do palhaço Joaquim Capitão.

Causou alvoroço a performance de Mme. Rachel. Chamava a aten-ção uma mulher desempenhar funções públicas tão ousadas, consideradastipicamente masculinas. Antes mesmo de ocializar-se sua apresentação,sugeria-se em  A Província de São Paulo: “Andam por aí a dizer tantacoisa da próxima corrida! Uns, que os pegadores propõem-se a fazer ma-

ravilhas; outros, que aparecerá uma amazona que há de mostrar para oque serve uma saia. Queremos ver isso.”54 

O Correio Paulistano ironizou: “Como é lá isso? Uma mulher tou-reando! Se a moda pega... É verdade que os touros de casa costumam sermansos. Contudo, a coisa dá que pensar.”55 No Diário de São Paulo, uma breve nota dá uma noção da expectativa: “Rapaziada, vamos ver Mme.Rachel meter farpas de fogo em um bravio touro. É hoje o dia em que pela

 primeira vez aparecerá em público esta heroína.”56

  A Província de São

52 – Correio Paulistano, 1/12/1877, p. 4. A mudança de empresários ocasionou alguns problemas em função dos contratos assinados. Por exemplo, José Barros, responsável pelo estabelecimento que fornecia bebidas e comidas ao público, contestava sua substitui-ção já que assinara com Aragon por um ano ( A Província de São Paulo, 31/1/1878, p. 2).Esses debates são um indício de que havia certa complexidade no negócio das touradas,uma das razões da diculdade de sua conformação em algumas cidades.53 – Sobre a não relação da família real com as touradas, ver Melo e Baptista (2013).54 – A Província de São Paulo, 29/11/1877, p. 2.

55 – Correio Paulistano, 30/11/1877, p. 2.56 – Diário de São Paulo, 2/12/1877, p. 2.

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 Paulo exalta: “Estreia hoje na Praça de touros (...) uma valorosa dama.(...). Decididamente a empresa quer abarrotar-nos de novidades.”57

Ainda que, segundo os jornais, o evento não tenha sido dos melho-res – uma parte dos touros era de má qualidade e o cavalheiro era inábil,chegando a ser lançado ao chão, pelo que foi “aplaudido com grande vaiada multidão”58 – um cronista sugere que as corridas poderiam ter sucesso, já que “o nosso público é apreciador de tais divertimentos”.

Rachel foi elogiada por sua atuação. Um leitor, que assina como Pa-lafox, chega a ironizar que foi melhor do que o cavaleiro: “Mira, pícarocaballero. Si vuelves a caer, rompo-te l’alma – Caramba! Que hombre! No ves que hasta una dama te vá dar leciones de cabaleria?”59. Posterior-mente, a toureira surpreenderia por sua coragem, mesmo nos acidentesnos quais se envolveu.

 Nessa iniciativa, percebe-se a tentativa de aperfeiçoamento dos espe-táculos, inclusive com a diversicação das “sortes” (técnicas de tourear).Além disso, aumenta-se a expectativa com os touros: “Dizem que os boisde hoje vão fazer diabruras, porque são uns bichos de má entranhas.”60 Assim, as corridas de 8 de dezembro parecem ter sido o primeiro su-cesso da prática na capital paulistana: “(...) o divertimento agradou aosespectadores que deram signicativas mostras de satisfação aplaudindoos trabalhos dos vários artistas”61.

Como os touros seguiam sendo um problema – não havia no Brasilcriação de gado com características adequadas para as corridas – uma dassaídas era dar notoriedade a um animal reconhecido (ou assim apresenta-do) pela ferocidade. Esse era o caso do “afamado Boi Amarelo de Jaca-reí”, descrito como “brioso e nunca vencido animal”62. Quando esse ani-

57 – A Província de São Paulo, 2/12/1877, p. 4.58 – Diário de São Paulo, 4/12/1877, p. 2.59 – A Província de São Paulo, 4/12/1877, p. 2.60 – A Província de São Paulo, 8/12/1877, p. 3.

61 – Correio Paulistano, 11/12/1877, p. 2.62 – Correio Paulistano, 15/12/1877, p. 4.

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E NTRE O RURAL E O URBANO: AS TOURADAS  NA SÃO PAULO DO SÉCULO XIX (1877-1889)

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mal aparecia na programação, tomava lugar dos toureiros nos anúncios;os amantes das touradas aguardavam com ansiedade sua performance.

Até mesmo por essa peculiaridade, os espetáculos tauromáquicoseram irregulares; alternavam-se bons e maus eventos, corridas com gran-de público e outras com arquibancadas vazias. A legislação estabelecialimites, os empresários testavam essas imposições. Em dezembro se ins-tituiu, de forma ainda tímida e bem controlada (com inscrição prévia),uma modalidade que já era muito comum e tinha muito sucesso nas outrascidades, o “touro para curiosos”, em São Paulo chamada de “boi para

amadores”: se oferecia um animal para que alguém da plateia enfrentasseà busca de algum prêmio63.

Mesmo com essas deciências, sempre havia expectativas ao redordas corridas. Assim um cronista celebra a nova temporada de 1878: “Oentrudo e o carnaval, que rivalizaram de insipidez, em dias da semana passada; a volta da companhia dramática do Sr. Guilherme da Silvei-ra, e a reabertura da praça de touros, são motivos justicativos de um

folhetim”.64

Em março de 1878, depois de dois meses sem touradas, uma novacompanhia, dirigida pelos irmãos ituanos Martins, se instala na cidade,sem lograr, todavia, grande sucesso. Para um cronista, os espetáculos sótiveram algum público por se tratar de um momento em que houve quedana oferta de diversões: “Este gênero de divertimento tem, em geral, es-tado abaixo do que era para desejar, atendendo, porém, a que as compa-

nhias líricas, dramáticas ou de zarzuelas nos abandonaram de vez, que ostouros sirvam de expansão aos ávidos de distrações públicas.”65 

Tendo encontrado diculdades nanceiras, logo o negócio mudoude mãos, causando uma vez mais alguns problemas para os contratados.Uma notícia dá-nos conta de que havia mesmo muitos envolvidos com oespetáculo: “Francisco C. Mesa convida aos trabalhadores do Circo de

63 – Diário de São Paulo, 30/12/1877, p. 2.

64 – Correio Paulistano, 10/3/1878, p. 1.65 – A Província de São Paulo, 18/4/1878, p. 2.

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Touros, que ainda não foram pagos de seus jornais, para uma reunião queterá lugar na casa do anunciante, à travessa do Rosário, n. 21, baixos, no

dia 13 do corrente, às 11 horas da manhã.”66

Um problema mais ainda ocorreu. Em abril de 1878, a AssembleiaLegislativa Provincial de São Paulo resolve enfatizar: “Artigo único. Alei provincial n. 31, de 7 de maio de 1877, é extensiva em todas as suasdisposições às companhias que exibirem em circos as corridas de touros,revogadas as disposições em contrário.”67 Isso é, estava de novo proibidaa realização de touradas.

Em meio a esse quadro desolador para os amantes da prática vaidesembarcar na cidade um determinante personagem: Francisco Pontes.

Para “satisfazer as exigências dos amadores das touradas”: FranciscoPontes

Diante da proibição do Legislativo, uma vez mais interviu o Executi-vo, com a mesma estratégia de permitir a realização das touradas caso os

animais estivessem embolados68. Assim, em junho de 1878, desembarcouem São Paulo aquele que seria o grande nome das touradas paulistanas,repetindo um sucesso e uma notoriedade que já conseguira no Rio deJaneiro e em Porto Alegre: Francisco Pontes. Além de excelente toureiro,ele dominava todos os segredos do espetáculo tauromáquico, conheciacomo ninguém a necessidade de adequá-lo à nova dinâmica das cidades.

O toureiro trouxe sua trupe completa, já famosa na Corte. A assis-

tência recebia total atenção. Pontes dizia esperar “merecer de um públicotão ilustrado como o desta capital, a mesma benevolência com que temsido acolhido nas principais praças da Europa e ultimamente do Rio deJaneiro”69. Pela primeira vez em São Paulo se instituiu o modelo de “sol esombra” para dividir os locais mais baratos e mais caros da arena. O em-

66 – A Província de São Paulo, 3/5/1878, p. 3.67 – Diário de São Paulo, 11/4/1878, p. 1.

68 – Diário de São Paulo, 22/6/1878, p. 1.69 – Correio Paulistano, 22/6/1878, p. 3.

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E NTRE O RURAL E O URBANO: AS TOURADAS  NA SÃO PAULO DO SÉCULO XIX (1877-1889)

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 presário denitivamente apresentou à cidade um modelo bem estruturadode touradas.

Mesmo com algumas ressalvas à qualidade dos animais, o espetá-culo inaugural foi um sucesso70. Os toureiros em geral foram elogiados,e o líder da trupe mereceu muitas reverências: “A agilidade, a perícia e agalhardia com que se houve Pontes justicaram plenamente a fama que o precedeu nesta capital.” Para o cronista, a companhia, enm, tinha condi-ções de “satisfazer as exigências dos amadores das touradas”71.

Pontes sabia bem como criar novos fatos para atrair o público. Em- penhava-se em apresentar suas diversicadas atrações. “Grande, alta e pomposa novidade”72: frases como essa eram constantes nos anúncios desua companhia, que transitavam entre os autoelogios às habilidades datrupe e a busca de comover os leitores para que comparecessem ao espe-táculo.

 Nem sempre se manteve o alto interesse pelas corridas: “A de do-mingo, apesar de ser em benecio do intrépido bandarilheiro Pontes, nãoconseguiu atrair à praça do Campo dos Curros se não uma diminuta con-corrência, o que foi de lastimar, pois a nosso ver foi talvez a melhor dastouradas que houve até hoje nesta capital.”73 Quando isso ocorria, Pontessacava uma carta da manga e reacendia a curiosidade.

Uma de suas estratégias já se tornara comum no Rio de Janeiro: aorganização de corridas benecentes. Em agosto de 1878, por exemplo,a função foi dedicada às “vítimas da seca nas províncias do Norte”. Parteda arrecadação, os honorários de um dos cavaleiros (Leite Vasconcelos) eo resultado de um leilão de um touro foram destinados à causa.

70 – Na temporada, Pontes encontrou diculdades com a qualidade do gado. Chegou ausar o “terrível” Boi Amarelo de Jacareí, sempre requisitado quando se esperava maisemoção das corridas. A atração, todavia, parecia estar decadente. Logo uma novidadesurgiria: o Touro Preto de Cupim.71 – Correio Paulistano, 9/7/1878, p. 2.

72 – Diário de São Paulo, 3/8/1878, p. 3.73 – Correio Paulistano, 20/8/1878, p. 2.

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Esse tipo de iniciativa tinha diferentes intuitos. Demonstrava queos toureiros não eram brutais, mas sim gente que se sintonizava com as

necessidades públicas, que “não é indiferente às desgraças”74

, como dis-se certa vez o diretor. Além disso, atraía antigo e novo público, que seestimulava a comparecer ao redondel para contribuir com o intuito anun-ciado, bem como autoridades desejosas de explicitar seu envolvimentocom temas nobres. Mais ainda, como Pontes tinha ligações com questões políticas, os eventos benecentes eram ocasiões em que manifestava suavinculação a determinadas causas (como, por exemplo, a abolição da es-cravatura).

Em setembro, Pontes usa outra arma de seu arsenal: ofereceu um boi para ser lidado por amadores pertencentes à classe caixeiral, que, comono Rio de Janeiro e em Porto Alegre, se envolviam costumeiramente coma prática, provavelmente por ser grande o número de portugueses queatuavam no comércio nas três cidades75. Essa era uma forma de ampliar a participação do público. Isso também ocorria por meio de sorteios ou comatrações como o “mastro cocagne”, um pau do sebo com prêmios no topo,

disponível para aqueles que se dispusessem a escalá-lo76.

O mês de outubro de 1878 trouxe o anúncio de que a companhiatauromáquica se despediria de São Paulo, mas as novidades não paravam.Para as sessão do dia 27, previram-se duas atividades que se tornariamcomuns quando o campo esportivo estivesse organizado na cidade. Umadelas foi uma “corrida de homens a pé”77, a ser disputada pelo “afamadoe bem conhecido primeiro corredor desta capital Francisco da Costa, e o

não menos ágil corredor argentino, que pela 1ª vez corre nesta Praça, D.Manoel Alça Lembranno”. Além disso, completava o programa uma dis- puta de cavalos, com a qual a população já estava acostumada por causado Club de Corridas Paulistano.

74 – Correio Paulistano, 23/8/1878, p. 3.75 – Em São Paulo viviam muitos portugueses (Klein, 1995). Em 1895, eles eram quinzemil entre os cerca de 130 mil habitantes que possuía a capital (Bruno, 1954).

76 – Correio Paulistano, 19/9/1878, p. 3.77 – Correio Paulistano, 25/10/1878, p. 4.

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Essa atividade foi transferida para novembro por causa do mau tem- po, mas as touradas estavam mesmo próximas de serem interrompidas.

Pontes deixou saudades quando partiu.

O retorno de Pontes

Depois das experiências dos anos de 1877/1878, as touradas sumi-ram da capital por anos, e provavelmente o motivo principal tenha sidomesmo a falta de alguém que conseguisse promover com sucesso o com- plexo e custoso espetáculo. Durante a maior parte da década de 1880, nos jornais pouco das corridas de touros aparece, somente notícias de eventosrealizados em muitos municípios do interior, na Corte ou no exterior.

Eventualmente surgia alguma especulação de que seriam novamen-te realizadas em São Paulo, normalmente quando se criticava a falta deopções de entretenimento na cidade. Concretamente, só quase nove anosdepois teve início uma nova temporada, em março de 1887, sob a respon-sabilidade de um velho conhecido: Francisco Pontes, que no antigo Largodos Curros, já renomeado para Largo Sete de Abril, montou seu CircoTauromáquico78.

O redondel estava lotado por ocasião da inauguração. Pelo olhar do jornalista, foi bom o espetáculo, muito apreciado pelo público79. Comosugere Don Gigadas el Chico: “O povo compraz nestes divertimentosque abalam-no e sacodem-no em suas bras. Como sempre, a gritaria foigrande, mas dizem que não chegou a algazarra. Deram-se as competentes

vaias, e choveram dictos mais ou menos picantes.”

80

É interessante observar a nova segmentação dos ingressos, vendidosna Casa Garraux, uma das mais importantes livrarias de São Paulo, e noluxuoso café Terraço Paulista: camarotes com 5 lugares a 12$000, entradade sombra a 2$000, espaço especial para família a 2$000, bilhete de sola 1$000 e para crianças e militares sem graduação a $500. Claramente o

78 – Correio Paulistano, 16/3/1887, p. 3.

79 – Correio Paulistano, 22/3/1887, p. 3.80 – A Província de São Paul o, 22/3/1887, p. 1.

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intuito era alcançar um número maior de interessados, aos quais, aliás,era franqueada a presença na embolação dos touros e em visitas para co-

nhecer o touril.Pontes continuava sendo uma grande atração, reverenciado e aplau-

dido por público e imprensa. A trupe de toureiros era também elogiada,e persistiam os problemas com a qualidade dos touros. A novidade foia ampliação da participação de amadores, alguns até mesmo integrandoa companhia, como José Alves Rolo e Pedro Cancio Pontes, alcunhadoDoduca. O “touro dos curiosos” foi também mais comumente oferecido.

Por vezes essa parte do espetáculo era chamada de “tourada popular”81

.Como ocorrera anteriormente, Pontes apresentava com grande alar-

de suas atrações. Para as provas de 10 de abril, por exemplo, programou aexibição de um novo animal feroz, a vaca Tribilontrina, e uma “atraente eassombrosa novidade”, a toureira Mme. Josephina Baggossi, chamada de“Rainha das Andarilhas e das Toureadoras”82, denida com adjetivos naocasião mais comuns aos homens: ágil, veloz, intrépida, forte, corajosa.

 Na verdade, os jornais consideraram que ela “produziu um incontestávelefeito plástico, mas não conseguiu tourear”83.

Como vimos, não foi a primeira vez que uma toureira atuou em SãoPaulo. No mesmo mês, aliás, outra vez se destacou a participação de umacavaleira, “da arrojada heroína nacional Maria de Aguiar Barbosa”, queteria arrancado “os mais delirantes e frenéticos aplausos”84. Nessa tempo-rada, ainda atuaria “a corajosa e bem conhecida amadora Anna Angelica

do Espírito Santo, natural de Taubaté”85

. Devemos também citar a pre-sença frequente do público feminino nas arquibancadas, onde progres-sivamente se tornaram parte importante do espetáculo. Denitivamenteessas mulheres estavam à frente de seu tempo, marcando seus nomes nahistória.

81 – Correio Paulistano, 3/4/1887, p. 3.82 – Correio Paulistano, 10/4/1887, p. 3.83 – A Província de São Paulo, 19/4/1887, p. 1.

84 – Correio Paulistano, 17/4/1887, p. 4.85 – Correio Paulistano, 24/3/1888, p. 3.

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 Nessa temporada, houve também uma novidade que somente encon-tra-se igual em Porto Alegre, onde eram bem atenuadas as críticas às cor -

ridas: “oito valorosos meninos, vestidos a caráter”, formando “um grupode capinhas e forcados, para bandarilhar, capear e pegar à unha um bra-víssimo tourinho”. De fato, esse é mais um indicador de que não eram tãointensas as resistências à prática na capital paulistana daquele momento.

 Não tardaria para Pontes, como de costume, organizar touradas be-necentes. Por exemplo, as provas de 1º de maio de 1887 foram dedica-das à Santa Casa de Misericórdia, que recebeu “metade do produto total

do preço de costume e todas as esportulas que se dignarem enviar”86

.Entre as corridas dessa natureza, vale destacar as que tinham relação comuma causa com a qual Pontes sempre esteve envolvido e que era candentena época: a libertação de escravos87.

Já o espetáculo em benefício da Sociedade Portuguesa de Benecên-cia, realizado em 12 de junho88, merece destaque pela grande participaçãode amadores da classe caixeiral, inclusive sócios do Congresso Ginástico

Português e do Real Clube Ginástico Português, agremiações que origi-nalmente foram fundadas no Rio de Janeiro, mas que estavam tambémestabelecidas em São Paulo.

Dentro da estratégia de Pontes de diversicar o espetáculo, como natemporada anterior houve programas com competições esportivas, comocorridas a pé e a cavalo. Promoveu-se pela primeira vez uma prova de lutaromana, entre o “intrépido Hercules italiano Vicente Braco” e o “valente

 português José da Silva Capeta”. Além disso, anunciou-se:GRANDE E ADMIRÁVEL NOVIDADE! NOVIDADE UNIVER-SAL! A DESTEMIDA E VALENTE PORTUGUESA (MINHOCA)MARIA JOSÉ RODRIGUES se apresentará na arena para uma luta

86 – Correio Paulistano, 1/5/1887, p. 3.87 – Correio Paulistano, 24/3/1888, p. 3. No decorrer da temporada, vários foram os

cativos libertos.88 – Correio Paulistano, 12/6/1887, p. 3.

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romana, e desde já convida qualquer pessoa de seu sexo que queiraganhar um valioso premio a qualquer aposta, si a vencerem89.

 Nesse desao, a lusitana acabou derrotada pela toureira Maria Bar - boza, que no evento seguinte enfrentou e foi derrotada pela italiana Jonitada Rosa90. Essa última enfrentou outra brasileira, Maria da Conceição91.Causava impacto as cenas de mulheres se agarrando no redondel.

O circo de touros, de fato, transformou-se num grande complexo deentretenimento. Por vezes, os touros eram o menos importante na progra-mação. Um exemplo é o evento de 8 de dezembro de 1887. A CompanhiaEquestre de Paulo Serino apresentou os mais distintos exercícios ginásti-cos e acrobáticos92. Houve outros números similares, como as exibiçõesde força de Maximo Rodrigues, alcunhado “Sansão do século XIX”93.

Essa diversicação tinha relação tanto com a mais intensa dinâmi-ca pública quanto com a necessidade de manter ativa a praça de touros: buscava-se sintonizá-la com as novidades em curso na cidade. Vale dizerque em alguns eventos programaram-se apresentações do silforama (es- pécie de lanterna mágica).

Alguns espetáculos, aliás, foram realizados à noite, aproveitando:

uma grande e admirável máquina de luz elétrica, que iluminará todoo circo, e, para quando se retirarem os amadores que se dignarem as-sistir à festa non plus ultra, mudar-se-á para fora do circo a brilhanteluz elétrica, iluminando assim o vasto e aprazível largo Sete de Abrile suas circunvizinhanças94.

Essa temporada, mesmo com altos e baixos, logrou mais sucesso econtou com maior e mais regular público (muitas funções tiveram mesmolotação máxima). Também foram muitos os elogios à organização e à

89 – Correio Paulistano, 5/11/1887, p. 3.90 – Correio Paulistano, 19/11/1887, p. 3.91 – Correio Paulistano, 26/11/1887, p. 3.92 – Correio Paulistano, 7/12/1887, p. 3.

93 – Correio Paulistano, 18/2/1888, p. 3.94 – Correio paulistano, 18/2/1888, p. 3.

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qualidade dos toureiros. Excluindo um breve intervalo, no mês de agostode 1887, as corridas se prolongaram até março de 1888, nessa segunda

fase com Pontes mais distante, como toureiro atuando em poucos espetá-culos. No anúncio do último evento, agradeceu o famoso bandarilheiro:

serve-se deste meio para patentear a sua gratidão às ilustradas reda-ções, ao benévolo público em geral e aos seus amigos em particular,agradecendo-lhes o bom acolhimento e as nezas do que se consideradevedor, oferecendo-lhes o seu limitado préstimo na Corte, onde vaiinaugurar seus espetáculos. A todos, pois, um saudoso aperto de mão,de amigo agradecido95.

Em janeiro de 1889, Pontes ainda voltou à cidade, promovendo osespetáculos em um novo espaço, o Colyseu Paulistano, que tinha capaci-dade para 6.000 espectadores96. Durante algum tempo foi também utili-zado o Polytheama Paulista. Essa seria mesmo sua despedida. Uma vezmais deixaria saudades.

À guisa de conclusão: a cidade e as touradas na transição dos séculos

XIX e XX Na década nal do século XIX, a capital paulistana seguiu crescendo

e diversicando sua estrutura urbana. No folhetim do Correio Paulistano,que a essa altura já se apresentava como “órgão republicano”, essas mu-danças são registradas: “A vida urbana de São Paulo é hoje tão ampla, tãovariada em seus tons e tão intensa, que factos de suma importância vivemapenas um momento na opinião pública.”97 O cronista observa que: “A

vida popular, o rumor do comércio, dos clubes, da imprensa, das corridas,dos teatros, dos circos, das touradas, da bolsa, dos bancos, absorveu emsi a velha cidade.”

 No Rio de Janeiro e em Porto Alegre esse foi o momento de maior popularidade das corridas. Já em São Paulo, as temporadas eram espo-

95 – Correio Paulistano, 24/3/1888, p. 3.

96 – A Província de São Paulo, 18/1/1889, p. 3.97 – Correio Paulistano, 18/3/1895, p. 1.

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rádicas, talvez até mesmo porque a cidade passava por transformaçõesmuito rápidas.

Em maio de 1891, houve uma tentativa de organizar touradas noPolytheama Paulista98. À frente da iniciativa se encontravam Joaquim daRocha Ferreira e Alfredo Gomes Branco, que convocaram o público lem- brando o nome do famoso toureiro. Informaram que ao contratar a equipetauromáquica preferiram “os que formaram parte da trupe do célebre Sr.Pontes e no qual acha-se o estimado bandarilheiro Lourenço Delgado”99.

Diante dos decientes resultados nanceiros, o negócio foi vendido para José Vianna, que transformou o antigo teatro em um completo circode touros e tentou trazer diferentes companhias tauromáquicas para incre-mentar a prática100. Uma vez mais a temporada não teve grande sucesso.

Em 1892, o Teatro Minerva chegou a acolher algumas corridas101. Nesse mesmo ano, a Intendência Municipal, na ocasião presidida por Ce-sario Ramalho da Silva, indefere o pedido de Francisco Navarro parainstalar uma arena no Largo do Arouche102. Ao nal do ano, entretanto,é construído um novo redondel na rua do Ipiranga, como era chamada aatual 24 de maio na altura da Estação da Luz103.

Em janeiro de 1893 começou a funcionar o Coliseu Paulista, paraoferecer as touradas à população. Conseguimos saber pouco sobre esseespaço. As notícias eram bem modestas, e anúncios não eram publicadoscom constância. De toda forma, percebe-se que o estabelecimento fun-cionou com regularidade durante alguns meses, no início de 1893, e deforma intermitente até 1894. Em 1897, houve ainda uma nova tentativa,também sem grande continuidade: o “Circo Tauromáquico”, na rua Pira-tininga, no Brás104.

98 – Correio Paulistano, 10/5/1891, p. 4.99 – Correio Paulistano, 23/5/1891, p. 3.100 – Correio Paulistano, 30/8/1891, p. 4.101 – Correio Paulistano, 19/3/1892, p. 4.102 – Correio Paulistano, 12/7/1892, p. 2.

103 – Correio Paulistano, 30/12/1892, p. 1.104 – Correio Paulistano, 11/7/1897, p. 2.

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De fato, não é possível armar que as corridas de touros tiveramgrande sucesso na capital paulistana, ainda que tivessem logrado alguns

êxitos. As touradas foram no Brasil proibidas em 1934. No Rio de Janei-ro, isso ocorreu em 1907. Em Porto Alegre, foram realizadas até o últimoano possível. Em São Paulo, não encontramos referências da promoçãodesses espetáculos depois de 1912, quando uma sessão foi organizada noTeatro Cassino, de Afonso Segreto105. Foi mesmo pequeno o número deeventos tauromáquicos organizados na primeira década do século XX,no Recreio Tauromáquico Paulistano, numa Praça de Touros na Praça daRepública e em alguns teatros.

O caso de São Paulo nos permite ampliar nossas reexões sobre as peculiaridades da adesão à ideia de modernidade por meio de práticas es- portivas e de entretenimento em geral. As touradas nos ajudam a entendero cenário de transição.

Em cidades que se urbanizaram mais rapidamente, as touradas seconsolidaram, mas também passaram a ser mais criticadas, como ocor-

reu no Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, a peculiaridade do diálogo comas ideias de modernidade ajuda a entender que isso não tenha ocorrido(KARLS, MELO, 2013). São Paulo parecia estar no meio do caminho.Urbanizava-se e se modernizava sim, mas não tão veloz a ponto de colo-car em xeque as touradas, nem de ter uma ambiência em que elas pudes-sem se manifestar de forma mais forte no cotidiano.

Quando esse quadro se delineou, as corridas já eram tidas por muitos

como anacrônicas, em função das iniciativas de civilização da cidade.Assim sendo, uma vez mais não prosperaram na capital paulistana quedenitivamente se pretendia moderna.

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105 – Correio Paulistano, 22/6/1912, p. 8.

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Texto apresentado em fevereiro/2014. Aprovado para publicação emabril /2014.

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O PRESIDENTE, A SANTA CRUZ, OS CIRINEUS

E O ESTADO LAICO DA REPÚBLICA BRASILEIRA: É

PRUDENTE?

THE PRESIDENT, THE HOLY CROSS, THE CIRINEUS AND

THE STATE OF BRAZILIAN REPUBLIC: IS IT PRUDENTE DE

MORAIS?

R OGÉRIA DE IPANEMA1

1 – Doutora em História pela UFF. Professora do Departamento de História e Teoria da

Arte e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Riode Janeiro.

71

Resumo:

O presente texto analisa a imagem intituladas,Semana Santa Política, publicada em o  DonQuixote, jornal ilustrado de Angelo Agostini,onde as páginas centrais da publicação apre-sentam a paisagem política nacional de 1896,intertextualizada com a paixão de Cristo, sig-nicativa passagem do calendário católico. Pelateoria da imagem e pela teoria da arte, o texto

coordena conceitos como mimesis, ícone, mito,metáfora, memória, imaginação, para fundearquestões temáticas da história da religião cristã,de arte e história, largamente empregada na sáti-ra cotidiana, assim como nos hebdomadários dogênero do século XIX. Na tradução visual agos-tiniana da presidência da República e seu mo-mento ministerial, dá-se a ver a enorme tensãoassimétrica do peso do Estado sobre o governode Prudente de Morais, e partindo desta propos-ta, o trabalho apresenta algumas possibilidadesde leituras e interpretação, como também, pela

conjuntura política contemporânea, são descri-tos alguns episódios e conitos da história doBrasil.

 Abstract:

This article analyzes the image, Holy Week Poli-tics, published in Don Quixote, Angelo Agos-tini’s illustrated newspaper. The center pages present the national political landscape in 1896inscribed in the passion of Christ. According tothe theory of the image and art, the text coor-dinates concepts such as mimesis , icon, myth,metaphor, memory, imagination, to anchor some

thematic questions from the history of Christi-anity widely used in satiric images, especiallyin this weekly paper genre. In the Augustinianvisual translation of the presidency of Braziland the period of his administration, a hugeasymmetric tension can be seen in the weight ofthe state on Prudente de Morais’ govenrnment,Starting from this, this paper presents some pos- sibilities of interpreting moments of great con- ict in the history of Brazil.

Palavras-chave: Primeira República. Governode Prudente de Morais. Jornal  Don Quixote,imagem satírica, arte e história

 Keywords: First Republic. Government of Pru-dente de Morais. Don Quixote newspaper; sa-tiric image; art and history.

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Fig. 1 – Agostini, Angelo (1843-1910). Semana Santa Política

( Don Quixote, a. 2, n. 57, 4 abr. 1896. pp. 4-5. Acervo: Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográco Brasilei-ro).

 Na imagem intitulada Semana Santa Política, Prudente de Moraisé Cristo sofredor porque é salvador da pátria República? Apesar de umgabinete ministerial que não sabe o que faz, será perdoado? Foi perdoa-do. Prudente que transgura Cristo na subida da colina do Calvário será

crucicado? Pelas burlas de Agostini, foi crucicado, e assim o era o

tempo todo. As duas cruzes ao alto, vazias, seriam para os dois primei-ros presidentes militares, representando o assalto republicano ao antigoregime por Deodoro da Fonseca, ou da inconstitucionalidade do governode Floriano Peixoto? Iria se juntar o civil, a primeira tríade governista

republicana, o insustentável Prudente, com seus seis Cyrineus montadosna cruz, ao dorso presidencial? Mas elas estão vazias, para quem seriam?O ministro da Marinha, em último lugar, ajuda-o a erguer e sustentar ouespera momento oportuno para também subir e pesar o pesar do Presiden-te? Prudente tem que seguir na estrada ascendente por uma condenaçãocapital sob grande martírio? Pois, Prudente sobe e carrega o seu m, a sua

carga, o seu corpo, o seu corpo ministerial.

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Podemos levantar modulações interpretativas a partir das imagenssatíricas publicadas no político jornal  Don Quixote.2  Não que Angelo

Agostini se comunicasse por meio de códigos fechados, mas tinha argu-mentos para invocar nos detalhes, narrativas complementares do seu dis-curso principal. São vários os exemplos em sua obra que resolve o ritmohierárquico da dinâmica de sua linguagem, e nos detalhes, encontramosnotas signicativas de investigação.

A história da República é o início do laicismo do regime políticorepublicano e no momento, um governo civil, mas nas imagens, várias

representações da história religiosa cristã. O Estado torna-se laico, mas ocristianismo, um dos fundamentos da civilização brasileira, permaneciaocial, constituinte de uma das maiores representações da vida e da moral

religiosa da nação, mesmo contaminada de todas as práticas sincréticas ede aceitação e de escusa. A religião católica, uma ordem cultural tão pro-fundamente admitida quanto comprovada ainda na contemporaneidade,exemplo da distinção do monumento do Cristo Redentor, inscrustado na paisagem da cidade do Rio de Janeiro.3 

A imagem (Fig. 1) apresenta, sentados na grande e pesada cruz, Pru-dente de Morais com enorme e suado esforço na Semana Santa Política,carrega ladeira acima em abril de 1896 o gabinete ministerial com seis pastas, assim disposto, da direita para a esquerda: o general de divisãoBernardo Vasques, com a pasta da Guerra; Carlos Augusto de Carvalho,das Relações Exteriores; Antônio Gonçalves Ferreira, da Justiça e Negó-cios Interiores; com a pasta da Indústria, Viação e Obras Públicas, An-

tônio Olinto dos Santos Pires; a Fazenda, Francisco de Paula RodriguesAlves, e na pasta da Marinha, Eliziário José Barbosa.

 Não houve nenhuma alteração nos ministérios no ano de 1895. A pri-meira mudança do gabinete instituído em 15 de novembro de 1894 deu-se

2 – Don Quixote: jornal ilustrado de Angelo Agostini (1895-1903).3 – Por uma votação nacional absolutamente tão representativa que incluiu a estátuta doCristo Redentor entre as Sete Maravilhas do Mundo Moderno, eleito em 2007, em pleno

século 21. Mesmo aqueles votaram ainda que distantes da fé praticada, o pertencimentodo símbolo o faz nacional e o fez mundial.

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em 30 de agosto de 1896, com a nomeação de Alberto de Seixas MartinsTorres, na pasta da Justiça, em 1º de setembro Dionísio Evangelista de

Castro Cerqueira assume as Relações Exteriores, e no mês de novem- bro as outras quatro pastas são renomeadas, fechando o ano executivode 1896, com a mudança em 23 de novembro do ministro da Guerra pelainterinidade de Castro Cerqueira, com um gabinete todo renovado. Daí asalterações passaram a ser maiores em determinadas pastas como o minis-tério da Indústria, Viação e Obras Públicas que se modicou por mais três

responsáveis, totalizando quatro nomeações entre cinco ministros,4 assimcomo o ministério da Guerra, com a ressalva de uma composição interina,

correspondendo também a cinco ministros.5 O ministério dos NegóciosInteriores com quatro,6 e Fazenda,7 Marinha,8 e Relações Exteriores comdois cada um.9

Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira é o nome que mais apare-ceu entre os ministérios no governo de Prudente de Morais, compondo--os por três vezes: a primeira participação foi no ministério das RelaçõesExteriores, na segunda formação da pasta, de 1º de setembro de 1896 até

o m do mandato presidencial, em 15 de novembro de 1898; a segunda

4 – Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas: Antônio Olinto dos Santos Pi-res (15 nov. 1894/20 nov. 1896); Joaquim Duarte Murtinho (20 nov. 1896/1 out. 1897);Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira (1 out. 1897/ 13 nov. 1897); Sebastião EuricoGonçalves de Lacerda (13 nov. 1897/27 jun. 1898) e o marechal Jerônimo Rodrigues deMorais Jardim (27 jun. 1898/15 nov. 1898).5 – Ministério da Guerra: Bernardo Vasques, general de divisão (15 nov. 1894/23 nov.1896); Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira, general de brigada (interinamente – 23nov. 1896/4 jan. 1897); Francisco de Paula Argolo, general-de-brigada (4 jan. 1897/17

maio 1897); Carlos Machado Bittencourt, marechal (17 nov. 1897/5 nov. 1897) e JoãoTomás de Cantuária, general de divisão (6 nov. 1897/15 nov. 1898).6 – Ministério da Justiça e Negócios Interiores: Antônio Gonçalves Ferreira (15 nov.1894/30 ago.1896); Alberto de Seixas Martins Torres (30 ago. 1896/7 jan. 1897); Bernar-dino José de Campos Júnior (interinamente – 7 jan. 1897/19 jan. 1897) e Amaro Caval-canti (19 jan. 1897/15 nov. 1898).7 – Ministério da Fazenda: Francisco de Paula Rodrigues Alves (15 nov. 1894/20 nov.1896) e Bernardino José de Campos Júnior (20 nov. 1896/15 nov. 1898).8 – Ministério da Marinha: Eliziário José Barbosa, almirante (15 nov. 1894/21 nov.1896) e Manuel José Alves Barbosa (21 nov. 1896/15 nov. 1898).9 – Ministério das Relações Exteriores: Carlos Augusto de Carvalho (15 nov. 1894/1 set.

1896) e Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira. Bernardo Vasques foi substituído pelomilitar general de brigada em 13 de novembro de 1897.

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interinamente no ministério da Guerra, em breve exercício de 23 de no-vembro de 1896 a 4 de janeiro de 1897, também na segunda formação da

 pasta; e a terceira e última brevíssima participação, agora no ministério daMarinha, durante 1º de outubro a 13 de novembro de 1897.

O segundo nome que aparece nas alterações do gabinete ministerialé de Bernardino José de Campos Júnior, que consta por duas vezes dasegunda formação do ministério da Fazenda, de 20 de novembro de 1896ao m do mandato, e da Justiça e Negócios Interiores, em interinidade de

7 a 19 de janeiro de 1897.

O ministério de Prudente de Morais em todas as suas formações foirepresentado em sua grande maioria por políticos de carreira, obviamentecom representações presidenciais dos estados, exercidas por prossionais

formados em Direito, assim como o presidente, numa continuidade de prática de personagens atuantes no Império, e agora na República, com presenças de engenheiros militares.

Imagem, teorias da imagem e a dimensão religiosa cristãO teórico e historiador de arte Ernest Gombrich imbrica duas corren-

tes teórico-metodológicas, da história da cultura, de Aby Warburg, asso-ciadas a um determinado capital sociológico, e os campos da psicologia davisão e estruturalismo. Crítico e analítico, Gombrich olha profundamentedo objeto de arte, a sua imagem emitida e percebida. Trago algumas desuas reexões, para pensar as relações de analogia e fonte econômica

da teoria da imagem, junto a outros autores, ao repertório imaginante dahistória da religião cristã nas utilizações de deslocamento e mediação desentido, inscritos na sátira e no humor.

Ao analisar as imagens satíricas ocidentais, a partir de exemplaresde um largo espaço-tempo, o autor extrai pelas fontes das imagens im- pressas, cerca de 500 anos do uso da metáfora mítica do diabo, entidadeevidente no contraponto do universo da religião cristã, para o próprio

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estado do mal, da perversão, da transgressão.10 Nesta perspectiva deve-sedecalcar o sentido simbólico muitas vezes protagonizador nas constru-

ções gerais das imagens satíricas políticas de o Don Quixote, o caso, quetambém se apoiam nas ideias, imagens e mensagens da história religio-sa cristã. Trata-se de metafóricas moralistas e de ideologias de crençascomuns e em códigos sociais, apresentadas em combinados planos designicação e entendimento, por sua origem intertextual e de composição

interdiscursiva.

 No passado, esta produção imagética foi empregada também como

forma de insulto, e para Gombrich um insulto pictórico não era exatamen-te uma caricatura por inexistirem distorções sionômicas. Na verdade

resta muita discussão nesta armação, mas o que passará a ser praticado

também é a caricatura-retrato, que encontrou facilidade de divulgaçãosegundo os desenhos de Annibale Carracci, dos irmãos de Bologna.11 Vie-ram as imagens de discurso visual de maior complexidade e inserção cul-tural, reunindo, numa composição de contexto social – personagens, atos,fatos, latos –, em imagens autorais de opinião e visão de mundo. E depois

a conguração da mídia da imprensa, a imagem e o meio, e a imprensa

 política ilustrada.

Gombrich compõe o grupo de teóricos e historiadores que criticamas imagens satíricas com todos os sentidos transversais e transgressoresimplicantes denindo que, “a essência da sátira é realmente a conden-sação, o encaixe de toda uma cadeia de ideias dentro de uma imageminventiva.”12 Diz que, “a força e o perigo do cartunista estão no fato de

ele apelar para essa tendência e nos facilitar a abordagem das abstraçõescomo se fossem realidades tangíveis”, e que “o cartunista apenas assegu-

10 – GOMBRICH, E. H.. Os usos das imagens: estudos sobre a função social da arte e dacomunicação visual. Porto Alegre: Bookman, 2012.11 – Artistas maneiristas barrocos, Ludovico (1555-1619), Agostino (1557-1602) e Anni-

 bale (1560-1609) Carraci. Mais em: ARGAN, Guilio Carlo. Imagem e persuasão: ensaiossobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

12 – GOMBRICH, E. H.. Meditações de um cavalinho de pau: e outros ensaios sobre ateoria da arte. São Paulo: Edusp, 1999. p. 130.

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ra o que a linguagem preparou.”13  Articula as relações da metáfora e domito na obra do caricaturista ou cartunista, para além do desenho com

sionomias alteradas, mas da apresentação e representação transgredidas,concluindo que a inovação da obra está na “liberdade de traduzir os con-ceitos e símbolos abreviados de nosso discurso político para tais situaçõesmetafóricas.”14 

E entre mitos, metáforas e símbolos, Gombrich conrma que o car -tum é herdeiro da arte simbólica da Idade Média e que o cartunista ao brincar com metáforas,

aplica uma narrativa ou mito conhecido pelo público a um eventonovo, e, por conseguinte, associa o familiar ao não familiar. Trata osincidentes de hoje, com se todos zessem parte da narrativa antiga.

[...] Se uma das funções do mito é fornecer uma explicação para oseventos da natureza, a metáfora habilmente aplicada apresenta umaexplicação pelo menos ctícia aos eventos do mito. Portanto, o mais

característico da sátira pictórica é seu conservadorismo, ou seja, a ten-dência de se basear no velho estoque de motivos estereótipos. Essesmotivos podem ocupar o lugar do mito comunitário, servindo para nos

reassegurar a forma de uma explicação.15

 Don Quixote de Agostini é do gênero de caricatura política onde asimagens têm efeito, “devido ao uso da metáfora para comentar os tópicos

do dia” e é Gombrich quem reforça tratar-se de um gênero da arte, “que

se baseia em um público que aprecia a astúcia da comparação que nãoconsegue explicar uma situação, mas a resume”.16 Caso da imagem dasemana, da Semana Santa Política, quando a cruz é a metáfora imagéti-

ca da representação da Presidência da República e Prudente de Morais,Jesus Cristo. Símbolo e design carregando o traço comum de imagem,visão, imaginação e memória pela presença do ausente. Paul Ricoeur pro- blematiza a imagem e a lembrança, apoiado na fenomenologia de Hus-serl, quando pergunta: “Que necessidade faz que, depois de ter separado

13 – Idem, p. 128.14 – Idem, p. 129.15 – GOMBRICH, E. H.. Os usos das imagens: estudos sobre a função social da arte e da

comunicação visual. Porto Alegre: Bookman, 2012. p. 199.16 – Idem, p. 198.

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a imaginação e a memória, seja preciso associá-las de maneira diferenteda que presidiu à sua dissociação?”  17 E a anatomia da composição de

Agostini propõe à reexão.

Desnecessário evidenciar o óbvio, a conhecida história bíblica paraarticular paralelos de linguagem e leitura. O predomínio do conhecimento primaz destas histórias, uma das histórias mais conhecidas, senão a maisconhecida dos povos ocidentais e ocidentalizados, faz-se existir, rememo-radas e celebradas permanentemente pelo cotidiano, muito mais intenso àépoca, guiado pelo tempo moral e espiritual do calendário cristão.

Para a lósofa da imagem Marie-José Mondzain,18  que prefere acompreensão de mimeseis como ato que tende a presenticar – tornar ma-nifesto –, a cruz está para o espírito e a verdade como as únicas mimeseis,tal a eucaristia, a vida virtuosa e o bom governo. Explica: a cruz respeita ainvisibilidade divina, ao renunciar à semelhança. Em seu capítulo Econo-mia Icônica, desenvolve a situação do ícone no lugar sagrado e no espaço público, “no lugar sagrado, para compreender o que foi o vocabulário de

sua sacralidade num mundo profano, no espaço público, para captar emseus componentes o estatuto dos desaos pedagógicos e políticos”.19 

Sobre sacralidade e iconicidade, referências para a apreensão daimagem no cristianismo, Mondzain, reete: “Entre o Santo dos Santos e

o mundo profano, como a economia negociará a denição da sacralidade

icônica?”E pensando na zona e contágio do ícone, a autora dene: “Isento

da consagração e digno da prosternação, o ícone vem ocupar um espaço

abstrato e se tornar o tecido conjuntivo que estabelece a comunicação en-tre a natureza, a graça e a razão.”20 Todo o seu pensamento sobre o temaestá inserido na grande problemática que se apresentava às censuras dosiconoclastismos bizantinos.

17 – RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Uni-camp, 2007. p. 61.18 – MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imagi-nário contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de Arte do Rio, 2013.

19 – Idem, p. 107.20 – Idem, p. 161.

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Assim pode-se convocar a imagem satírica como estratégias de sere não ser a dessacralidade de um símbolo religioso e de sua imagem

historiada, ela é transitória e intransitiva com os seus sujeitos e objetos,apropria-se e ao mesmo tempo trabalha com a iconicidade e a economia.Segundo Mondzain, Cristo é a economia por excelência, por fazer parteda distribuição trinitária manifestou pela união do verbo com a carne,condescendeu no aniquilamento e se fez instrumento do pai no plano dasalvação. “Ele é imagem, relação e órgão. E o é naturalmente, ou seja, é,

 por natureza, o que seu ícone será por técnica e convenção.” Continua,“aquilo que é por natureza e por essência é absolutamente; aquilo que é

 por artifício e convenção é relativamente.”21 A economia, então, assumiuas duas ordens de similitude, porque é o órgão, o operador que as rela-ciona.

A reexão de Hans Belting no contexto de sua obra sobre a histó-ria da imagem antes da era da arte22 auxilia para consubstanciar aque-le arsenal que tipologizava Gombrich, no conservadorismo das velhasfontes para ressignicações em outros contextos e temporalidades. Pensa

e discute o longo percurso de divulgação e xação das imagens e o pro-cedimento da memória para o controle histórico em sua autenticidade,legitimidade e ocialização.

A memória que uma imagem evoca se refere tanto à sua própria his-tória quanto àquela de seu lugar. Foram feitas cópias com a nalidade

de se difundir a veneração da imagem para além do seu local. Mesmoque reforçassem a conexão entre a imagem original e a sua próprialocalidade. A memória ligada à imagem original, portanto, permane-cia indivisível. As cópias lembravam o original de uma imagem localfamosa que, por sua vez, lembrava os privilégios que ela adquirira em(e para) seu próprio lugar, durante sua história. Nesse sentido, imageme memória se tornam um aspecto da história ocial.23

21 – Idem, p. 55.22 – BELTING, Hans. Semelhança e presença: a história da imagem antes da era da arte.

Rio de Janeiro: Ars Urbe, 2010.23 – Idem, p. 15.

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As questões e reexões aqui trazidas vão de encontro ao tratamento

de Didi-Huberman ao pensar a imagem e sua graa, armando que “a

historiograa da arte deve reformular constantemente sua extensão epis-temológica para melhor aproximar-se da economia do objeto visual”.24 

Semana Santa Política de Don Quixote

Mas o que se vê e o que nos olha, aproximando-se da abordagem deDidi-Huberman? E o que é que pode ser investido na imagem das páginascentrais da Santa Semana Política, publicada em o  Don Quixote de 4 deabril de 1896 (Fig. 1)? Na legenda: “Coitado! Ainda bem que seus bons

Cyrineus o ajudam a carregar tão pesada cruz!”

Os cirineus que Agostini intitula estão transgurados em papéis

opostos ao de Simão de Cirene que na verdade, obrigado pelos soldadosromanos, ajudou a carregar a cruz para Cristo. Transpostos de seus altoscargos de colaboradores do governo, eles sobrecarregam por demais o peso que já a cruz e seu tamanho por si só são excessivos. Agostini expõeque a via-crúcis de Prudente foi pior do que a de Cristo, superlativandoa história religiosa cristã sublinhada pela história civil daquele momen-to da política brasileira. O calvário do presidente é o que  seria a morteanunciada, lenta, ascendente e sob crudelíssima cruz, e será que ele con-seguiria assim mesmo exercer a sua função, agir o seu papel? E qual, a de presidente, a de Jesus, ou ambas? Então, aquela era a paisagem políticada Semana Santa de 1896.

Uma coisa é certa: as crises, os movimentos, as revoluções, revol-tas militares, atentados, manifestações populares, o câmbio elevado, nãodeixam dúvidas sobre o agitadíssimo período em que governou o País o presidente Prudente José de Morais e Barros.25 Levando-se em considera-ção além do seu próprio mandato, mas também as razões e acontecimen-

24 – DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34, 2010. p.17.25 – Prudente José de Morais e Barros (Itu, 1841 – Piracicaba, 1902). Formado em Di-reito, era um político tradicional das oligarquias cafeicultoras paulistas. Na monarquia

 pertenceu ao Partido Liberal, sendo vereador na cidade de Piracicaba e deputado pela província de São Paulo. Neste Estado, existe o município de Presidente Prudente.

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tos anteriores que ainda se faziam presentes durante o espaço prudentistade Governo. Prudente de Morais é um nome de grande representativida-

de e signicado no cenário daquela fase da política brasileira, assumirao importantíssimo lugar de presidente da Constituinte de 1891,26  foi o primeiro a ser eleito pelo voto direto pelo Partido Republicano, e comexperiência de mais de três décadas de exercício e cargos políticos, so-mava muitas forças, ações e frentes inaugurais e fundadoras no períododa Primeira República, e por isso mesmo conviveu com fortíssimas eviolentas reações partidárias, até mesmo dentro de sua própria estruturagovernamental. É este exatamente o entendimento da  performance con-

 juntural colocada na imagem caricaturada, e a imprensa de Don Quixote corroborava para marquetear uma imagem difícil de Prudente de Moraisem meio a uma enorme tensão política durante o seu governo, não supor-tava o papel do ator virtuoso da temperança, para o enérgico cavaleiro,tratava-se de um político Prudente de Mais.27

O Brasil vivia problemas regionais, nacionais, internacionais, bra-sileiros e estrangeiros, uxo e complexo próprios das coisas públicas e

de Estado, mas na opinião do jornalista, Prudente ainda carregava umgabinete ministerial que lhe pesava quanto a cruz e o fazia sofrer quantoCristo na subida da colina em direção à sua penalidade capital. E qual? Ade ser o messias?

A gura 1 apresenta o ministério designado em 15 de novembro de

1894, dia da posse do Presidente. Desta informação visual, tomo dois per-sonagens e algumas questões que envolviam suas pastas, para se pensarna cruz da presidência que Prudente arrasta com enorme diculdade, mas

ao mesmo tempo com muito esforço e determinação. Trata-se do ministro

26 – Como relator da Constituinte de 1891, junto a Rui Barbosa, valeu-se da orientaçãoliberal de uma constituição modelada pelo republicanismo democrático norte-americano,

 parlamentar e não ditatorial, corroborando no afastamento institucional positivista. Maisem, CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política. BeloHorizonte: Editora da UFMG, 2005.27 – Mais em: IPANEMA, Rogéria de. A estética de Don Quixote e a imagem difícil de

Prudente de Morais. Anais do  XXVII Simpósio Nacional da Associação Nacional de His-tória – ANPUH , Natal, pp. 1-10, 2013.

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da Guerra e do ministro das Relações Exteriores, atores por muitas vezesabordados em sátiras agudas, como no exemplo de uma das mais bem

 postas críticas de Angelo Agostini ao governo de Prudente de Morais e aocastilhismo, publicada em 25 de janeiro de 1896.28

Fig. 2. (Idem, Idem).

A primeira gura entre os “Cirineus” é a do ministro da Guerra, Ber -nardo Vasquez 29 (Fig. 2). Sobre esta competência, uma enorme questão,acontecia no País, a Revolta de Canudos, originada pelo movimento mes-siânico e de terras levantado por Antônio Conselheiro, o que desencadeouna guerra do exército brasileiro contra os revoltosos no interior da Bahia.Bernardo Vasquez se encontrava no cargo quando da primeira expedi-ção do Exército malograda ao arraial de Canudos, em outubro de 1896.Depois de ser substituído em novembro, a pasta se alteraria novamenteem janeiro de 1897, durante a presidência do vice-presidente Manuel Vi-

28 – Mais em: IPANEMA, Rogéria de. Imagem carnavalizada do poder: desordem e re-gresso na bandeira nacional. Anais do XXXII Colóquio do Comitê Brasileiro de História

da Arte, Brasília, pp. 1749-1766, 2013.29 – Bernardo Vasques (Magé, 1837–Rio de Janeiro, 1902), general de divisão.

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O PRESIDENTE, A SANTA CRUZ, OS CIRINEUS E O ESTADO LAICO DA R EPÚBLICA BRASILEIRA: É PRUDENTE?

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torino, e a partir de maio, de volta, Prudente de Morais30 nomeia CarlosMachado Bittencourt, designando-o em agosto para ir à Bahia, para o

combate pesado e denitivo da quarta e última expedição sangrenta daGuerra de Canudos. A ação violenta do marechal do Exército contra os prisioneiros de guerra e rendidos foi rechaçada na opinião pública, cujomassacre foi posteriormente enquadrado nos crimes de guerra da Con-venção de Haia de 1899. Carlos Machado saiu da cena política em 5 dedezembro de 1897, quanto pagou com a vida a defesa do atentado à balacontra o presidente Prudente de Morais.

Por conta do atentado e durante o inquérito policial, Prudente de Mo-rais decretara estado de sítio no Distrito Federal e na comarca de Niterói.O vice-presidente Manuel Vitorino, tendo sido apontado como um dos principais responsáveis, fez publicar, em quatro números de O País,31 suadefesa e análise de governo sob o título Manifesto Político, escrevendo:“Os homens públicos que mais incomodavam o governo nos seus planos

de ditadura, e nos seus erros funestíssimos de política e administração, eisas causas reais do sítio.” E mais, “Enquanto o dr. Prudente de Morais não

começou a maltratar-me ninguém serviu com maior dedicação e lealdadeao seu governo do que eu.”32 

 No início de 1898 surgiram boatos sobre um novo atentado e umasuposta deposição do Presidente, conspirado dentro da Marinha. Em te-legrama-reposta, de 12 de abril de 1898, à preocupação do governador daBahia, Luís Viana, Prudente de Morais expõe seu conhecimento e pedesigilo.33 Em verdade Prudente de Morais sobreviveu à forte oposição do

 jacobinismo castilhista e a ideia de deposição era uma trama latente dosorianistas. Em carta de 10 de janeiro de 1896 ao presidente do Estado

de São Paulo, Bernardino de Campos,34 o posicionamento de Prudente

30 – Prudente de Morais pedira licença à Câmara para tratamento de saúde em novembrode 1896, retornando no dia 4 de março de 1897. Arquivos presidenciais: Prudente de Mo-rais. Rio de Janeiro: IHGB, 1990, vol. 1.31 – Em 28 de fevereiro e nos dias 1º, 2 e 3 de março de 1898.32  Arquivos presidenciais, Prudente de Morais, vol. 1, p. 52.

33 – Idem.34 – Bernardino José de Campos Júnior (Pouso Alegre, 1841 – São Paulo, 1915). Forma-

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 parece muito seguro e consciente, quando escreve: “Não ligo a menor im- portância a tais boatos.”35 No mesmo documento, mais adiante se coloca,

“sei que os jacobinos têm-me ódio [...] animados pelos chefes – generaisQuintino e Glicério; e logo se sintam com força para substituir-me”, con-tudo, enquanto não chegasse esse dia, diz o presidente, “continuarei o

meu caminho, traçado pelo meu programa de governo, que é o mesmo doPartido Republicano Federal, cujos chefes têm-me criado diculdades e

embaraços, dizendo-se amigos!”36

Fig. 3. (Idem, idem)

A segunda gura política é o cirineu Carlos Augusto de Carvalho, 37

 (Fig. 3) ministro das Relações Exteriores, que enfrentava um problema

do em Direito, enquanto ministro esteve nas negociações junto ao Presidente, relativasaos empréstimos externos com o banqueiro Rotschild, e antes de ser nomeado, presidiu oEstado de São Paulo.35 – SPALDING, Walter. Prudente de Morais e o castilhismo.  R.IHGB, Rio de Janeiro,vol. 280, pp. 3- 42, jul. /set. 1968. p. 8.36 – Idem, p. 9.37 – Carlos Augusto de Carvalho (Rio de Janeiro, 1851-1905), formado em Direito, foi

 presidente da província do Paraná entre 1882 e 1883, ministro das Relações Exterioresde Floriano Peixoto e Prudente de Morais, foi árbitro do tribunal Brasileiro-Boliviano em

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com a Itália a respeito das indenizações em reparações judiciais nas quaisitalianos físicos e jurídicos processavam a nação, questão, aliás, vivencia-

da em outras correntes étnico-migratórias de menor aos maiores contin-gentes e a italiana reclamava à Justiça brasileira as suas perdas materiaise morais. Havia também as questões políticas, e reclamava-se tambémsobre a expulsão de oito italianos anarquistas enquadrados pela políciade São Paulo.38 Problema que Floriano Peixoto enfrentara, expulsando,segundo José Murilo de Carvalho, “por simples decreto presidencial”, 76

estrangeiros do país, dentre os quais, 19 acusados de anarquismo.39 

A questão dos protocolos italianos foi gerada pelas reclamações nãosanadas no ano de 1894, a qual foi resolvida por três votações na Câma-ra, do projeto número 63/96. A primeira discussão foi iniciada em 3 deagosto de 1896, e como fora vencido no dia 4, por 85 votos contra 49 afavor, o encaminhamento do deputado João Penido para o encerramentodos debates, estas se seguiram até o dia 7. Neste dia, mesmo com duasmoções contrárias, a votação nominal realizada aprovou os protocolos pelo total de 97 a 64. A segunda discussão ocorreu ainda em agosto, de

18 a 21, quando, pela segunda vez, o documento assinado pelo ministroCarlos de Carvalho encaminhado à Câmara foi aprovado. Por m, em 24

de agosto, após a fala do deputado Francisco Glicério, por unanimidade esurpresa, o projeto dos protocolos italianos foi rejeitado. 40 

O primeiro protocolo foi rmado em 3 de setembro de 1895, no

Rio de Janeiro, entre o ministro de Estado das Relações Exteriores daRepública dos Estados Unidos do Brasil e o Enviado Extraordinário e

ministro plenipotenciário de s. m. o rei da Itália, R. de Martino, com om de dar solução denitiva às reclamações italianas. “Todas as ditas

reclamações serão deferidas ao juízo arbitral do presidente dos EstadosUnidos da América”, o documento apontava a possibilidade inclusive do

1904, no governo de Rodrigues Alves.38 – Mais em: VASCONCELLOS, Francisco de. Aconteceu em 1896 : a capitulação do

 parlamento brasileiro. Petrópolis: edição do autor, 2012. (Série História, n.19).39 – CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que

não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 24.40 – VASCONCELLOS, Francisco de. Op. cit .

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não aceite do árbitro escolhido e a sugestão de um novo. Ao nal deter -minava, “rmam o presente protocolo com a reserva, um da aprovação de

seu governo e o outro do Congresso Nacional.”41

 Um segundo protocolocomplementar foi gerado em 12 de fevereiro de 1896, mais complexo eclausulado.

Durante o processo de debate e votação muitas manifestações foramativas na capital federal, na cidade de São Paulo, com participação inclu-sive do cônsul italiano, e ainda no interior da Bahia, em Jequié. O pintorPedro Américo, que residia desde 1894 em Florença, se solidarizou a fa-

vor de Prudente de Morais, contra a imprensa ostensiva italiana, emitindouma carta à sua excelência em 17 de setembro de 1896.

Ao nal, em 19 de novembro, o Parlamento recebia a informação:

“Por um acordo rmado hoje com o ministro de s. m. o rei da Itália e

constante da cópia inclusa, ca, segundo penso, satisfatoriamente resol-vida a questão das reclamações italianas”, assinado, Manuel Vitorino Pe-reira, vice-presidente da República. O texto aprovado pelo Congresso,

 baseado nas condições anteriores aos protocolos que foram rejeitados,determinava um aumento no montante da indenização nanceira reivin-dicada pela Itália, de 1.098:897$745 (hum mil e 98 contos de réis) para4.000:000$000 (quatro mil contos de réis). Valor que foi questionado pelaarbitrariedade de seu critério, conforme Francisco de Vasconcellos.

Por conta dos protocolos italianos, Prudente de Morais esteve nacena do primeiro atentado sem vítima fatal do seu governo. O deputado

 pernambucano Medeiros e Albuquerque expusera no Parlamento sobre asituação irregular de um determinado processo acionado por empresa ita-liana, em cujo escritório advocatício se encontrava amigos de Carlos deCarvalho, e ainda que o ministro que agora tratava da causa no Executivotivera sido anteriormente ele próprio advogado da causa. Durante sua falafoi atingido sicamente pelo irmão do ministro, o deputado José Carlos

de Carvalho. Por conta disso, antes da ativação processual regulamentarda Casa, de quebra de decoro, o deputado renunciou ao seu mandato, e a

41 – Idem, p. 45.

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questão da agressão repudiada e encerrada na dita Sessão do mesmo dia27 de agosto de 1896. Em 1º de setembro a pasta das Relações Exteriores

 já tinha um novo ministro,42

 e também Carlos de Carvalho saía da cena política nacional. Menos de uma semana depois,43 Medeiros e Albuquer-que atirou contra o ex-deputado José Carlos de Carvalho, ferindo-o deraspão, na cena, o presidente Prudente de Morais, o ministro da Justiça e Negócios Interiores, Antônio Gonçalves Ferreira, os ministros da Vene-zuela e Peru, ociais argentinos e inúmeros jornalistas, segundo Francis-co de Vasconcellos.

Conforme Rodrigo Otávio,44

 na verdade, Carlos de Carvalho deixarao ministério por divergências políticas com o ministro Antônio Gonçal-ves Ferreira, o que determinou o “sacrifício de ambos”.45  Mas ao que parece a conjuntura política apontava para várias questões, mas realmenteas alterações se zeram seguidas e foram as primeiras do gabinete minis-terial de Prudente de Morais.46 

Outra questão político-internacional foi o caso de soberania nacional

do território da Ilha da Trindade invadida e reivindicada pelos inglesesem janeiro de 1895. O ministro Carlos de Carvalho dera instruções aorepresentante diplomático brasileiro em Londres, João Artur de SousaCorreia47, “no sentido de protestar contra o ato da ocupação”, a Inglaterra

então propôs o arbitramento da questão, o que foi recusado pelo Bra-sil.48 Aliás, Prudente de Morais era a favor, mas entendeu a competência

42 – Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira (Curralinho, 1847-Paris, 1910). Engenhei-

ro militar.43 – Em 6 de setembro de 1896.44 –  Rodrigo Otávio de Langgaard Meneses (1866-1944) foi presidente do Instituto dosAdvogados do Brasil, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro, fun-dador da Academia Brasileira de Letras, ministro do Supremo Tribunal Federal, delegadoem Conferências Internacionais. Empresta o nome a uma Escola Municipal na Ilha doGovernador.45 – OTÁVIO, Rodrigo. Carlos de Carvalho. Rio de Janeiro, R.IHGB, t. 101, vol. 155, pp.97-115, 1927. p. 113.46 – A pasta das Relações Exteriores em 30 de agosto, e a da Justiça e Negócios Interioresem 1º de setembro do ano de 1896.

47 – João Artur de Sousa Correia fora ministro Plenipotenciário do Brasil na Inglaterra.48 – Arquivos presidenciais. Op. cit .

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absoluta de Carlos de Carvalho que era contra e a tensão entre as duasnações permanecia, terminando pela intervenção proposta por Portugal,

enquanto mediador do litígio, aprovada por ambos os lados. A ideia dePortugal, do rei Carlos I, recaía por sua primazia anterior sobre a unidade, pois, exatamente “por intervenção da Inglaterra, Portugal reconhecera a

independência do Brasil constituído por um território do qual fazia parte ailha.”49  O caso se encerra em 5 de agosto de 1896, quando do recebimen-to da nota de comunicação do encarregado de negócios de Portugal emque “o governo de s. m. britânica acaba de declarar ao de s m. delíssima

que reconhece a soberania do Brasil sobre a Ilha da Trindade.” Prudente

de Morais assina a transmissão da nota à Câmara dos Deputados, nali-zando com o “faço-o com verdadeira satisfação.”50 

Por m, seguem-se então os outros quatros cireneus: o ministro An-tônio Gonçalves Ferreira,51 o ministro da Viação, Indústria e Obras Pú- blicas, Antônio Olinto Pires,52 com graves problemas de estruturação eurbanização na capital e da saúde pública muito comprometida com asdoenças epidêmicas; Rodrigues Alves,53 ministro da Fazenda, que enfren-

tava uma taxa de câmbio a 8,5, elevadíssima, “um gerador de desastres”

49 – OTÁVIO, Rodrigo. Op. cit ., pp. 112-113.50 – VASCONCELOS, Francisco de. Op. cit., p. 98.51 – Antônio Gonçalves Ferreira (Recife, 1864-Rio de Janeiro, 1939) formou-se em Di-reito Recife, foi promotor público, presidente das províncias de Minas Gerais e Pernam-

 buco, deputado constituinte, ministro da Justiça e Negócios Interiores, senador e governa-dor de Pernambuco e senador por mais dois mandatos.

52 – Antônio Olinto dos Santos Pires (Serro, 1860-Belo Horizonte, 1925) formou-se emLetras e Direito na Faculdade de Direito de São Paulo. Foi jornalista, escritor, colabora-dor do Dicionário histórico, geográco e etnográco brasileiro. Foi ministro do governode Prudente de Morais e responsável pela Superintendência de obras contra a Seca e daDiretoria Geral dos Telégrafos no governo de Afonso Pena.53 – Francisco de Paula Rodrigues Alves (Guaratinguetá, 1848-Rio de Janeiro, 1919)formou-se em Letras e Direito em São Paulo, foi presidente da província de São Paulo econselheiro do Império. Na República foi deputado constituinte, ministro da Fazenda deFloriano Peixoto, senador renunciante para a pasta novamente da Fazenda no governo dePrudente, depois presidente do Estado de São Paulo e presidente do Brasil de 1902 a 1906,

 período de um processo intenso de modernização urbanística da cidade no Rio de Janeiro.

Foi o terceiro presidente civil do Brasil e o quinto do período da Primeira República. Ro-drigues Alves foi um riquíssimo produtor de café.

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conforme editorial de 14 de março de 1896; e por m o ministro da Ma -rinha, o almirante Eliziário José Barbosa.54

Outras leituras, outros olhares, jogos culturais

A imagem pode-nos levar a pensar também, em se tratando de umaestética satírica, que, ao contrário, não será o presidente o crucicado,

ele é quem leva o seu corpo presidente para a crucicação do seu corpo

ministerial e não ele.

Vale reetir que apesar da apresentação de Prudente estar para Cristo

e o calvário, na verdade é uma das mais decididas representações que An-gelo Agostini fez do Presidente durante os dois primeiros anos do jornalque são exatamente os dois do seu governo. Nas imagens semanais, asimpressões de d. Quixote tratam um ator político, desanimado, sentado,introspectivo, inativo, alienado, alheio aos grandes problemas brasileiros,de olhos fechados, petricado em estátua, imobilizado por aranhas... qua-se um autista.55 

 Nesta, ao contrário, o desenhista imprime não uma resignação, masum dever, uma ação extrema, uma determinação. É uma das representa-ções mais edicantes de Prudente no jornal. Podemos até perguntar se

se trata mesmo do processo da crucicação de Prudente na presidência

da República que a cruz representa carregada de ministros, ou será que o presidente leva todos ao m, o calvário é seu e o destino capital aos outros

 pertence. E se vai enterrar a cruz da presidência para o sofrimento e sa-

crifício, todos irão com ele. Ou irão todos juntos para o m ou na verdadeo único cirineu é o próprio Prudente? Aliás, se o for, muito prudente oPresidente, anal, ao nal do ano de 1896, com uma última alteração no

dia 23 de novembro, terá caído todo o seu ministério.

Mas, na verdade, sob o olhar imediato da primeira visada é mesmoPrudente de Morais quem arrasta o cargo maior do Estado sobrecarregado por um gabinete que não o ajuda.

54 Elisiário José Barbosa (Rio de Janeiro, 1830-1909).55 – IPANEMA, Rogéria de. Op. cit ., 2013.

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 Não sendo exatamente uma conclusão à inserção e leitura de umadas centenas de obras que Angelo Agostini realizou em seus quase 40

anos de trabalho na imprensa,56

 trago novamente uma frase de Gombrichque dene e ajuda a entender alguns parâmetros para a compreensão da

lógica do exercício político e social do artista, que diz: “A cultura que

conhecemos dicilmente existiria se não participássemos desses jogos

 perpétuos de faz de conta que lubricam as engrenagens da interação

social.”57

Periódicos

 Don Quixote (1895-1903).Acervos: Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro;

Coleção Hemeroteca Marcello, Cybelle e Rogéria de Ipanema

Referências bibliográcas

ARGAN, Guilio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. São Paulo:Companhia das Letras, 2004.

 Arquivos presidenciais: Prudente de Morais. Introd. Herculano Gomes Mathias.

Rio de Janeiro: IHGB, 1990, vol. 1 Arquivos presidenciais: Rodrigues Alves. Introd. Herculano Gomes Mathias. Riode Janeiro: IHGB, 1990, vol. 2.

BELTING, Hans. Semelhança e presença: a história da imagem antes da era daarte. Rio de Janeiro: Ars Urbe, 2010.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repúblicaque não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 ____________ .  Pontos e bordados: escritos de história e política. BeloHorizonte: Editora da UFMG, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34,2010. (Coleção TRANS).

 _____________ . A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmassegundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

 Dicionário  histórico, geográco e etnográco: comemorativa do centenário

56 – IPANEMA, Rogéria de. Angelo Agostini e a imprensa caricata nos Oitocentos.  R.

 IHGB, Rio de Janeiro, n. 457, pp. 343-352, out./dez. 2012.57 – GOMBRICH, E. H.. Op. cit ., 2013, pp. 193.

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O PRESIDENTE, A SANTA CRUZ, OS CIRINEUS E O ESTADO LAICO DA R EPÚBLICA BRASILEIRA: É PRUDENTE?

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):71-92, abr./jun. 2014 91

da Independência. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográco Brasileiro,

1922.

GOMBRICH, E. H. Meditações sobre um cavalinho de pau: e outros ensaios sobrea teoria da arte. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

 ____. Os usos das imagens: estudos sobre a função social da arte e da comunicaçãovisual. Porto Alegre: Bookman, 2012.

IPANEMA, Rogéria de. Angelo Agostini e a imprensa caricata no Brasil dosOitocentos. R. IHGB, Rio de Janeiro, n. 457, pp. 343-352, out./dez. 2012.

 ____. A estética de Don Quixote e a imagem difícil de Prudente de Morais. Anais

do  XXVII Simpósio Nacional da ANPUH , Natal, pp. 1-10, 2013.

 ____. Imagem carnavalizada do poder: desordem e regresso na bandeira nacional. Anais do XXXII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, Brasília, pp.1749-1766, 2013.

MONDZAIN, Marie-José.  Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas doimaginário contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de Arte do Rio,2013.

MONIZ-BANDEIRA. O sentido social e o contexto político da Guerra deCanudos. R.IHGB, Rio de Janeiro, vol. 396, pp. 739-755, jul./set. 1997.

OTÁVIO, Rodrigo. Carlos de Carvalho.  R. IHGB, Rio de Janeiro, t. 101, vol.155, 1927.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora daUnicamp, 2007.

SPALDING, Walter. Prudente de Morais e o castilhismo. R.IHGB, Rio de Janeiro,vol. 280, pp. 3-42 – jul. /set. 1968.

VASCONCELLOS, Francisco de.  Aconteceu em 1896 : a capitulação do parlamento brasileiro. Petrópolis: edição do autor, 2012. (Série História,n.19).

Texto apresentado em fevereiro/2014. Aprovado para publicação emabril /2014.

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ROLAND GARROS NO RIO DE JANEIRO EM 1912: GAROTO

PROPAGANDA DA INDÚSTRIA FRANCESA

ROLAND GARROS IN RIO DE JANEIRO IN 1912:

THE PROPAGANDA FACE OF FRENCH INDUSTRY

JEAN-PIERRE BLAY1

Os meetings aéreos: entre esporte e propaganda comercial.

Entre 1901 e 1904, a realização do primeiro voo dirigível e os primei-ros recordes da aviação obtidos por Santos-Dumont criaram oportunida-

1 – Université de Paris Ouest-Nanterre. Sócio correspondente do Instituto Histórico eGeográco Brasileiro.

93

Resumo:

A estadia do aviador francês Roland Garros noRio de Janeiro em 1912 é o resultado de um pro-cesso histórico iniciado na França por Alberto

Santos-Dumont. Trata-se da comercialização docéu e da necessidade de apresentar um aeroplano performático e seguro, não somente para um pú- blico reduzido de  sportsmen privilegiados, mastambém para governos interessados em acom- panhar a modernidade do século que se iniciavae, consequentemente, não serem ultrapassadostecnologicamente pelos outros países. Como aEuropa e os Estados Unidos estavam liderandoesse mercado, viajar para demonstrar a superio-ridade de um construtor sobre os demais tornou--se indispensável. Convidar o melhor dos pilo-

tos e exibir a tecnologia mais avançada tambémera uma opção. Se Santos-Dumont viajou paraa França para conhecer os segredos de GustaveEiffel e dos irmãos Peugeot, foi Roland Garrosque proporcionou, ao povo brasileiro, conhecero resultado das pesquisas do “Pai da Aviação.”Essas trajetórias cruzadas caracterizam o quehoje se chama “globalização” da economia. Oshomens voando, como os navegantes do séculoXVI, contradizem o afastamento tectônico doscontinentes e negociam melhor. Assim, RolandGarros não planejou uma viagem ao Rio parahomenagear o muito respeitado vanguardistaSantos-Dumont, mas sim para vender os produ-tos da indústria francesa.

 Abstract:

 In January 1912, the pioneering French avia-tor, Roland Garros, was hired by the Americanindustrialist McCormick to participate in the

 frst aerial meeting in Brazil. The objective wasto sell French technology for airplanes, pilottraining, and the luxurious Cartier wristwatch,‘Santos 1904,’ which went on sale in December1911. Symbol of pragmatic luxury, this watchwas, above all, an indispensable accessoryof the ‘legal brotherhood’ of the few Santos- Dumont graduated pilots. This article intendsto answer questions about the technical andmilitary cooperation between the two countries,which began after the end of the First WorldWar.

Palavras-chave: Roland Garros. Pioneiros daaviação.  Meeting   aéreo. Comercialização docéu.

 Keywords: aeronautics. Pioneers. French lux-ury industry. Commercial relationships. Aerialmeeting. Rio de Janeiro.

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JEAN-PIERRE BLAY

des para os sportsmen franceses da aeronáutica aproveitarem, livremente,das máquinas do brasileiro. Totalmente desinteressado, ele nunca deposi-

tou nenhuma licença de invenção: deixava seus consócios do Aéro-Clubde France subirem no balão n° 9 ou pilotarem a “ Demoiselle”. RolandGarros, jovem executivo diplomado da prestigiosa escola de comércioH.E.C.2, fazia parte dessa geração fascinada pelo esporte aéreo e adotou onovo meio de transporte. Santos-Dumont estava feliz por ser consultado por um representante de uma juventude culta e otimista sobre o futurocomercial do avião. A partir de 1910, Louis Blériot, Henry Farman e Ro-land Garros entraram numa competição aberta para melhorar os recordes

do pioneiro-dandy com o objetivo de vender os aviões fabricados por elesmesmos. Nesse esquema, a visibilidade dos produtos era obrigatória a m

de que as incontestáveis proezas motivassem o ato da compra. O meeting  de Reims, de 22 a 29 de agosto de 1909, patrocinado pelas marcas deChampagne, foi o primeiro do mundo a ter a participação de aviões3.

Como sempre acontece no esporte, depois da criação das regras quedeterminam uma vitória, vem a etapa da procura por um lugar adequado

à prática do mesmo. Os organizadores do chamado “Aeropolis”4 inspira-ram-se na forma do hipódromo. Esse modelo de estrutura competitiva foiutilizado na França, tanto pelos pioneiros do atletismo e do futebol nosanos 18805 quanto por Santos-Dumont em Longchamp a partir de 1901.

A competição aérea foi logo captada pelo movimento olímpico por-que ela correspondeu ao desao “citius, altius, fortius”6 e, principalmen-te, pela indústria mecânica que atraiu engenheiros como Louis Blériot e

2 – Hautes Etudes Commerciales.3 – O fabricante de Champagne Ruinart foi o patrocinador da travessia do Canal daMancha por Louis Blériot, em 25 de julho de 1909.4 – Não se falava ainda de aeroporto. Aeropolis era dotado de tribunas, de uma pistacircular, de armazéns e de uma sala de imprensa.5 – Os fundadores dos clubes de futebol e de atletismo (Racing Club de France, criadoem 1882, e o Stade Français, criado em 1883) começaram a praticar e a competir noshipódromos parisienses antes de comprar um espaço especico no Bois de Boulogne.6 – O lema olímpico foi inventado pelo padre francês do colégio de Vanves: "mais rápi-

do, mais alto, mais forte" no congresso do Comitê Internacional Olímpico ocorrido em LeHavre em 1897.

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executivos comerciais como Roland Garros. O dinheiro ganho em uma prova de meeting  permitia a validação de uma competência técnica que

dava direito à carteira ocial de piloto do A.C.F. Assim o espetáculo es- portivo renovou-se numa terceira dimensão e conheceu um sucesso po- pular. Além dos campeonatos, podemos constatar que as grandes cidadessentiram a obrigação de diversicar o programa competitivo dentro do

calendário esportivo.

Roland Garros revela-se para o público internacional em Reims eganha a carteira n°147. Em 1910, com seus primeiros prêmios ele conse-

gue comprar o sonho de todos os aviadores: uma “ Demoiselle”. O aviãode Santos-Dumont, produzido por Adolphe Clément-Bayard, é montado

com um motor mais potente com o intuito de transportar pilotos mais pesados. Em setembro, ele bate o recorde mundial de velocidade com150 km/h no meeting  de Dinard. Segue-se, por estratégia comercial, umasucessão de meetings no Estados Unidos onde ele conserva seu recorde,apesar da concorrência americana liderada pelos irmãos Wright7. No anoseguinte, a capacidade dos aparelhos permite imaginar corridas de cidade

à cidade (Paris-Madrid, Paris-Rome) para testar as linhas comerciais dofuturo. Então, precisava-se vencer os Alpes e os Pirineus. Nessa busca,Roland Garros bate o recorde de altitude em 4 de setembro de 1911 voan-do a 3.910 m. Como consequência deste feito, ele e com seu amigo suiçoEdmond Audemars (também formado na Demoiselle de Santos-Dumont)são contratados por Willis, lho de Harold F. McCormick, o presiden-te americano da Queen Aeroplane Cie Ldt, cuja rma é sediada no Illi-

nois8

. Recomendados por Barrier no meeting  de Chicago. Willis, jovem sportsman, queria viver sua paixão pelo esporte mecânico e viajar pelomundo acompanhando Garros e Audemars. A competência dos aviadoresregistrados no A.C.F. convenceu o construtor de máquinas agrícolas deinvestir nesse team e promover seu nome num show aéreo, mesmo se elesutilizavam aeroplanos franceses.

7 – Garros participa dos meetings de Belmont Park em Nova Yorke, Richmond, New

Orleans, Dallas, Fort Worth, Oklahoma City, Monterey e, no nal, no México.8 – Herdeiro do fabricante de máquinas agrícolas.

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Paris, capital da aeronáutica, Rio destinação capital

A concentração de talentos cientícos na capital francesa deve-se

muito às exposições internacionais ocorridas desde 1855. A Torre Eiffel,monumento construído para a exposição de 1889 e símbolo do “savoir-

-faire”  francês, foi integrada às experiências de Santos-Dumont querealizou o primeiro voo dirigível contornando a “Dama de ferro”. Porisso, Santos-Dumont solicitou o melhor da tecnologia francesa. Toda aindústria observou, de perto ou de longe, mas com grande interesse, arevolução dos transportes. A química (petróleo Deutstch, pneu Michelin),a siderurgia (liga de metais Schneider) e o têxtil (asas e roupas de avia-dor de Boussac)9 adaptaram suas produções segundo as necessidades daaviação. Assim, os investimentos em prêmios de competição atingiram 1milhão de francos em 1910 depois da performance de Blériot. O esporte

aéreo, nanciado por essas grandes empresas, tornou-se um laboratório

 para testar as invenções e Paris estava no centro de muitas negociações.Mesmo os americanos, de Wright a Lindbergh, foram obrigados a irema Paris para obter um reconhecimento. Os empresários também queriam

ocializar (com o incontornável A.C.F.) os recordes e promover suas rea-lizações com propaganda nas mídias. A partir de 1911, os construtores demotores deixam os ateliers nos subúrbios e instalam suas sedes sociais emParis intramuros como, por exemplo, Louis Renault no Champs Elysées

em 1911. Essa acumulação de capital humano e nanceiro, da qualidade

na criatividade e na produção, atraiu, também, investimentos estrangei-ros. A busca por novos mercados estava ligada a um processo econômicoque envolvia, então, o Brasil.

Para persuadir Garros e Audemars de viajarem durante duas sema-nas em um navio para o Rio de Janeiro, McCormick os convidou norestaurante do Ritz, Praça Vendôme, centro nervoso da indústria do luxo,em dezembro de 1911. Na mesa, ele dissimulou nos guardanapos umacaixinha de couro vermelho. Surpresa suntuosa! Eles acabavam de ga-nhar o primeiro relógio de pulso masculino da joalheria francesa. Elefoi imaginado, em 1901, por Louis Cartier e Santos-Dumont durante o

9 – Todas essas empresas são francesas com sede social em Paris.

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 jantar de comemoração do prêmio Deutsch de la Meurthre pelo contornoaéreo da Torre Eiffel. Se o “SANTOS” foi oferecido a Alberto em 1904, o

modelo epônimo foi comercializado a partir de novembro de 1911. Essesímbolo do luxo pragmático respondeu a uma necessidade aeronáutica:ter as mãos livres para acionar os elementos de direção e medir “de umaolhada” o tempo de voo e o tempo de reserva de carburante.

Em janeiro de 1912, quando essa turma de pioneiros da aviação che-gou ao porto do Rio, eles carregavam o melhor da tecnologia e da moda,até um agasalho de piloto concebido por Santos-Dumont. Essa irmandade

leiga se autodenominou “Demoisellites” para lembrar da autoridade mo-ral da qual eles tiraram este estatuto prossional tão admirado.

Os aviões no Prado Fluminense

O hipódromo, por conta de suas dimensões e do gramado bem cor-tado, virou um campo de experiências de esportes, inclusive os aéreos. Na época, existiam, no Rio de Janeiro, quatro hipódromos: o hipódromo Nacional, o prado do Derby Club, o prado do Turf Club e o prado Flu-minense que pertencia ao Jockey-Club10. Na ausência de um aeroporto,optou-se pela instalação de um campo de provas no mais adequado den-tre eles, o do Jockey do engenheiro Paulo de Frontin , o “ Longchamp da

 zona norte”.

A chegada dos aviadores no Brasil foi bastante comentada na im- prensa11 que criou, junto à opinião pública, muitas expectativas com a

 possibilidade de se ver os aviões neste teatro verde especialmento aberto para os Pégasus modernos. Para Roland Garros, o hipódromo era vis-to como uma vitrine dedicada à indústria francesa. Essa divergência eramais profunda entre as autoridades brasileiras e os representantes da ae-

10 – Almanaque Garnier de 1911. "Planta da cidade de Rio de Janeiro". Os hipódromosestavam situados numa linha que ia do bairro do Rio Comprido até o norte do morro doTelégrapho. A estrada de ferro da central do Brasil passava por perto para faciltar o trans- porte dos cavalos e dos turstas.

11 – O acervo disponível sobre essa temporada de Roland Garros encontra-se nos jornais brasileiros e na revista cientíca do Aéro-Club de France, "L'Aérophile"  .

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ronáutica francesa e virou um mal-entendido. Uns queriam ver um espe-táculo, até pegar ideias, e outros queriam vender tecnologia.

“A semana da aviação”

Podemos sentir uma certa frustração dos jornalistas em relação a ri-queza de notícias aeronáuticas que eram publicadas em todo o mundo12,enquanto nada acontecia no país de Santos-Dumont. Eles chegaram a seaborrecer com as diculdade impostas a Roland Garros para se instalar

no Prado Fluminense. Enquanto se discutiam as tensões entre Berlim e

Paris a respeito dos orçamentos da aviação militar 13, no Rio de Janeiro, aadministração da alfândega dicultava a liberação das caixas repletas de

 peças mecânicas. Os funcionários do porto suspeitavam que o conteúdodas mesmas eram mercadorias não declaradas. A Noite declarou o absur-do dessa oposição feita a Garros porque este não teria interesse nenhumem vender seu material de demonstração. “O nosso exército está desa- parelhado da quarta arma de guerra como o próprio exército turco ao sersurpreendido agora pela inteligência e o patriotismo italiano.”14 O jornal

criticava bastante a falta de patriotismo que perturbava a organização deum evento esportivo que ele patrocinava. Dez contos de reis seriam ofe-recidos ao piloto que atravessasse a Baía de Guanabara durante o período

de 6 a 14 de janeiro. Mas, essa oferta não era suciente para cobrir as

despesas dos aviadores que esperavam um gesto do governo brasileiro.Garros conseguiu montar um Blériot n° 11 e acostumou-se com as con-dições climáticas do Rio, enquanto seus parceiros, Audemars, Barrier e

o construtor Charles Voisin acabavam de montar uma garagem para osaviões que ainda estavam a caminho em um segundo navio no meio do

12 – Projeto americano de travessia do Atlântico por James Martin com um avião de cincomotores.13 – A Noite, 4 de janeiro de 1912. A França estava inquieta em relação aos investimentosalemães de 10 milhões de marcos (7.200 contos dos reis) contra 850.000 francos. O Go-verno francês foi criticado na Câmara dos Deputados. O artigo fala que, "a França perdea sua supremacia na obra civilizadora da aviação."

14 – A Noite, segunda-feria, 8 de janeiro de 1912, "os ensinamentos eloquentes da quartaarma de guerra", p.1.

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oceano15. Revezando-se no comando do monoplano Blériot, eles treina-vam para decolar e aterissar no centro do hipódromo.

A primeira evolução fora deste campo ocorreu no dia 9 de janeiro.Entre 4h e 4h30 da tarde, Roland Garros sobrevoou o bairro do Castelo.Toda a Avenida Central parou de trabalhar e acompanhou o feito das ja-nelas. Ele foi até o Palácio do Catete, onde o presidente da República, omarechal Hermes da Fonseca, esperava Garros passar 16. Cada dia maisconante, Roland Garros aumentava as proezas e o tempo de voo que

eram realizados sempre de tarde para poder ser admirado pela multidão

de cariocas após o trabalho. Dando entrevistas, os aviadores faziam pro- paganda da potência do aparelho e das marcas francesas reunidas no mo-delo Blériot: hélice Chauvière, motor Gnome, bateria Bosch. O público

estava cando frustrado porque e impaciente pelo inédito voo da baía. No

dia 10, Garros vai até os bairros de Botafogo e da Urca e dá uma volta em

cima do Pão de Açúcar a 600m de altitude17. Na volta, “ele demonstra sua perícia e sua serenidade realizando um perigosa espiral e toca o alto dasárvores do Palácio presidencial.”18 Garros queria impressionar o chefe

de Estado, deixando cair seu cartão de visitas com uma ta tricolor noterraço do Palácio! Mas o vento levou o presente para a rua onde ele foirecuperado por um “Gavroche” (em françês no texto), que o devolveu aosguardas. Depois, Barrier e Audemars lhe sucederam em evoluções menos

assustadoras para os moradores da zona sul.19 

Apesar dessas aventuras, o jornal A Noite fala do fracasso da “Sema-na da Aviação” e lamenta que a cidade de Buenos Aires se preparava para

acolher a turma de Garros. A companhia  Light  é chamada para salvar asituação e, principalmente, “a motivação dos aviadores.”20  O dinheirofalta. Sem jeito e desiludidos, com os bonés virados (à la Blériot) e as

15 –  Jornal do Brasil, quarta feira, 10 de janeiro. Outros aviões foram embarcados emAntwerp (Belgica) no navio "L'Eburon".16 – A Noite, terça-feira, 9 de janeiro de 1912.17 – A Noite, quarta-feira 10, de janeiro de 1912.18 – Idem.

19 – Idem, segundo artigo, p. 3.20 – Idem.

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mangas das camisas dobradas, Garros, Audemars e Barrier são fotogra-fados de braços cruzados, símbolo de uma inação forçada, mas deixando

aparecer o relógio SANTOS da (já) bem conhecida Cartier. “Os garotos--propaganda” não perderam a oportunidade de promover seus patrocina-dores, na capa do Jornal do Brasil .21

Pioneirismo e negócio

Prevista dos dias 8 até o 13 de janeiro de 1912, a “Semana da Avia-ção” acabou sendo uma “grande semana” e, nalmente, virou o mês!

Usando como argumento, de um lado, a frustração do público histéricoque reclamava mais e, do outro, as ofertas dos paulistas e dos argentinos,Roland Garros, Willis McCormick e William E. Malone (representantesda Queen Aeroplane Cie) queriam pressionar o Governo para receberemum nanciamento e uma encomenda concreta de material.

Sexta-feria 12, Garros, Audemars e Barrier evoluíram somente no

 perímetro do hipódromo para economizar a gasolina e mostrar a malea- bilidade dos aeroplanos. Um atrás do outro, eles decolaram a menos de100 m. Garros desenhava um “S” enquanto Audemars se deixava cair em picada na vertical e Barrier tentava um voo rasante “tal uma águia”22, que-rendo receber um chapéu como troféu. Nessa manobra, Barrier avariou

uma asa ao tocar o chão com uma velocidade excessiva, o que provocouas emoções esperadas pelo público que estava fascinado.

 Neste dia, as tribunas estavam lotadas de personalidades. O presi-

dente da República estava acompanhado do ministro da Justiça (Dr. Ri-valdo Corrêa), seu Estado-Maior e do prefeito do Rio. Militares de grauinferior, o capitão Estellita Wermer, o tenente Kirck e o tenente Dutraestavam refugiados no pavilhão dos comissários do Jockey-Club e ca-ram tão entusiasmados quanto os cariocas e manifestaram, claramente,a ambição de voar também. No m do meeting  o marechal Hermes e ogeneral Bento Ribeiro, chefe da comissão aeronáutica, decidiram atribuir,

21 – Jornal do Brasil, quinta-feira, 11 de janeiro.22 – Idem, sexta-feira, 12 de janeiro, reportagem sobre 2 colunas, p. 11.

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 para cada semana a mais, um prêmio de 50$000. Eles estavam deniti-vamente convencidos de iniciar a formação de pilotos e dotar o Brasil

de uma força aérea, já que não faltavam voluntários. O acordo previu 3voos com passageiros: Rio-Teresópolis23 (com o major Paiva Meira), Rio--Santa Cruz e Sepetiba24 (com o capitão Wermer) e Rio-Petrópolis25 (como tenente Dutra).

As perspetivas nanceiras deixaram Garros excitado e, depois das 5

horas da tarde, ele resolveu agradecer ao Governo brasileiro com um vooinédito. Ele fez um sobrevoo das ondas da Baía de Guanabara, cruzando

 perigosamente um navio e, depois, tentou aterissar na alameda centraldo Palácio do Catete.26 Depois de todas essas evoluções que provaram o potencial técnico e humano, cada um achava que a “Semana da Aviação” poderia iniciar. O Estado-Maior ocializou esse acordo com a publicação

da carta do major Paiva ao Presidente na qual o detalhe das prestações e ascondições nanceiras estavam descritas. A chegada do navio “ L’Eburon” 

com o último modelo Blériot acabou de convencer os mais hesitantes.

O esporte aéreo era viável em termos de espetáculo popular, mas oGoverno queria ter a certeza de que as negociações com “Garros & Cia.”seriam proveitosas para o Exército. Enquanto o francês centralizava todosas atenções, dois aviadores italianos, Gian Felice Gino e Ernesto Darioli,voavam em Petrópolis (com material francês) e, também, se aproxima-ram dos militares27. Esse duplo contato pode explicar a demora da Presi-dência da República em responder ao orçamento de Garros. 

Quanto ao retorno econômico, os dirigentes do Jockey-Club Flumi-nense estavam satisfeitos com os lucros inesperados feitos com a mul-tidão fascinada pelos “homems voando”28 no hipódromo. A admiração

23 – Voo chamado prêmio do Presidente da República.24 – Voo chamado prêmio do Barão de Rio Branco.25 – Voo chamado prêmio do Ministério da Guerra.26 – Idem.27 – Gen. Nelson Freire Lavenère Wanderley,  História da força aérea, editora GrácaBrasileira, R.J., 2ª edição, 1975, p. 33.

28 – A Noite, quinta-feira, 11 de janeiro, artigo : "o arrojado Garros." O Jockey-Club ga-nhava até 120 $ por meeting .

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 por esses heróis gerou a vontade, em alguns sócios do Jockey, de matri-cularem-se no recente criado Aero-Club Brasileiro29. A transferência de

um esporte para o outro revela a passagem lenta de uma tendência emuma moda, veiculada pelas elites sociais. Esse processo também ocorreuna França com os sportsmen d o Jockey-Club que passaram ao Automo- bile Club de France e depois ao Aéro-Club de France30. As mudançasdas sociabilidades esportivas da elite traduziam as etapas da revoluçãoindustrial e dos transportes. Essa aproximação esportiva se armou, ainda

mais, após uma corrida “mista” de resistência entre o avião do Garros e ocarro Knox de 60 HP pilotado por Rockett.31 Depois de ganhar, Garros fez

um pouso e em seguida voou até Niterói em 16 mn à 1.600 m de altitude. A Noite publica na primeira página: “V|er Garros no ar é ver alguma coi-sa de sobrenatural. Os Deuses deviam brincar assim no olympo quando

queriam voar.”

 Na quinta-feira, 18 de janeiro, a “Semana da Aviação” toma uma di-mensão mais esportiva. Uma loja de troféus da Rua do Ouvidor (Mappin& Webb) faz a publicidade no jornal para as diferentes provas e desaos

organizados no Prado Fluminense32. Entre os prêmios governamentais,as taças e as medalhas dos patrocinadores, podemos ver a inuência do

esporte sobre a economia e a relação interessada dos políticos com asatividades criadoras de riqueza. Na verdade, é uma relação triangular en-tre: esporte, economia e política (o que envolve aspectos estratégicos) jáobservada no início da competição hípica, na Europa e nas Américas. Aindústria cavalar (que envolve as corridas) participou do desenvolvimen-

to da agricultura, do transporte e do Exército; três setores de atividades para os quais os criadores de cavalos queriam vender seus produtos. Os pioneiros da Aeronáutica obedeciam à mesma lógica comercial. Eles rea-lizavam as  performances  aéreas para depois negociar. Paradoxalmente,na era olímpica, dominada pelo dogma do amadorismo, o esporte aéreoera, totalmente, um negócio de prossionais.

29 – Idem, terça-feira, 16 de janeiro. Sede social no Largo do Rosário, 29, 1° andar.30 – Geralmente, eles eram sócios dos três clubes.

31 – A Noite, quinta-feira, 18 de janeiro.32 – Quase todas as edições do jornal A Noite, a partir de terça-feira, 16 de janeiro.

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Cooperação técnica

O interesse do governo de marechal Hermes não estava somente vol-

tado para a compra de aviões, ele também objetivava uma autonomiaestratégica com seus próprios pilotos. Ele queria algo de semelhante aocentro de formação e de treinamento francês que acabara de se abrir emPau. A Noite insistiu sobre o fato de que, “o Brasil é uma terra sem barrei-ra montanhosa, aberta aos ataques. Ver de longe é prever!”33 Este aspectoestratégico já tinha motivado o Brasil, em 1907, que mandou uma dele-gação militar para etudar a montagem de uma unidade de aerostação.34

Do dia 19 até o dia 25 de janeiro, aprendizes brasileiros e pilotosfranceses estavam associados em diversos trajetos. O primeiro a sentar noassento traseiro de Garros foi o major Paiva. Muito emocionado pela sen-sação de vertigem, ele confessou, depois de 40 mn de voo, que a neblinatornou impossível a chegada a Teresópolis, então ele pediu a Garros demudar de trajeto.35 Para rearmar a posição do Exército sobre a necessi-dade de uma força aérea, Paiva escreve no cartão de visitas de Garros estamessagem (comunicada a toda a imprensa) que foi jogada do ar sobre oPalácio do Catete: “Bem vale o sacrifício do governo de V. Ex. Sr. Ma-rechal por 4 anos para a organização da Defesa Nacional instituido-se anova arma de guerra.” Garros, totalmente cumplice de Paiva, sugeriu desobrevoar a marina de guerra para dar credibilidade a esta operação decomunicação e de falso ataque.

Durante a tentativa frustrada do prêmio do presidente da República(dia 19 às 11h15) a equipe francesa, liderada pelo construtor Voisin, pre- parou os aeroplanos Bleriot e Nieuport com os motores Anziani e Gno-me recentemente desembarcados. Com a perspectiva de uma encomendaimportante, os franceses deviam mostrar a mais avançada tecnologia. Damesma forma que Santos-Dumont venceu a Torre Eiffel, o pico urbano

33 – A Noite, quinta-feira, 18 de janeiro, editorial, p.1.34 – O tenente Juventino Fernandes da Fonseca comprou balões do engenheiro LouisGodard.

35 – " Eu faço isso pela Pátria.../.... pensando muita na minha família !" , A Noite, sexta--feira, 19 de janeiro, p. 1.

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JEAN-PIERRE BLAY

de Paris, eles precisavam vencer um símbolo vertical do Brasil. Então,

depois do Pão de Açúcar e do Corcovado, Garros escolhe sobrevoar, à

tarde, o Dedo de Deus.

Cavalheirismo contrariado

Sozinho, Garros decolou às 16h25 em direção à região serrana. Eleatingiu 2.000 m, altitude de segurança para não bater na montanha. Ele percorreu 128 km com o tempo de 1h32. De volta ao Rio, ele recebeu sau-dações do general Gaetano de Faria e do general Pinheiro Bittencourt. Ele

contou aos jornalistas que chegou a ver Teresópolis, mas a neblina densao impediu de ver o ponto mais alto do Estado do Rio. Essa revelação criouuma polêmica com os habitantes de Teresópolis, que se expressaram nasedições de 22 de janeiro. Mesmo recebendo o prêmio, Garros achou in-dispensável a descrição dos detalhes marcantes do voo, nas edições do dia23: a Baía de Guanabara, Magé, a estrada de ferro e o vale de Teresópolis.

 A Noite vai até implicar com a mordomia dos serranos, sugerindo queeles se frustraram por não verem o aeroplano. O jornal carioca não du-

vida da honestidade e da coragem do piloto. “Garros é o produto de umaeducação, aquela do País das Luzes e ele já demonstrou que ele era um perfeito gentleman, até teimoso.”36 O Jornal do Brasil  publicou tambémseu elogio.

Apesar dessas realizações tangíveis e sempre públicas, Garros e seus parceiros foram criticados por não respeitarem todos os itens do contrato.Durante as tentativas de longa duração, os pilotos reservas distraíam o pú-

 blico do hipódromo com números aéreos. Mas, com a exceção de Paiva,nenhum brasileiro subiu no ar. Garros usou o argumento do excesso de peso que o impedia de levar outros ociais. Provavelmente, aborrecido

 pela polêmica de Teresópolis e pelas críticas do Exército, ele tomou umaatitude provocante e, no dia 22, ele voou com Dona Pierratini de Masini.37 Para acalmar todo mundo, ele se comprometeu a aumentar a “Semana”

36 – A Noite, segunda-feira 22 de janeiro, artigo : "RG à Teresópolis", p. 2. [1 hora na ida,

32 mn na volta por conta dos ventos favoráveis].37 – Jornal do Brasil, segunda-feira 22 de janeiro, p. 6.

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de mais um dia, que seria reservado aos militares. Neste dia extra, osfranceses só poderiam contar com o Blériot de Garros (motor Anziani),

visto que Audemars e Barrier tinham avariado os seus e o avião Nieuport precisava de uma pista mais comprida para decolar. Estes empecilhoscomprometiam o retorno nanceiro que obteriam com o evento.

Garros resolve participar do prêmio do jornal A Noite, que se resumea dar uma volta Rio-Niterói, da Barra até Icaraí. Essa operação é, na reali-dade, uma ação de publicidade. Garros lançou um monte de papéis sobreos quais estava escrito: “Roland Garros, disputando o prêmio da Noite,

envia as suas saudações ao público.” Único participante, ele recebeu, ob-viamente, e sem contestação, o prêmio em dinheiro de Rocha Pombo nacasa Accacio Leite.38 

 No dia 23, um jantar dado no Hotel dos Estrangeiros reuniu os repre-sentantes da Marinha, do Exército, do Aéro-Club do Brasil e do Queen

 Aeroplane Cie  para comemorar o início da aviação no Brasil. Garros,

questionado sobre o meeting  de Buenos Aires, previsto para o dia 10 de

fevereiro, revela que sua participação depende da conrmação da enco-menda de 12 aeroplanos pelos argentinos. A Cia. América queria limitardespesas e achava inútil ir a um outro país sem a certeza de vender aviões.

O A.C.B. anunciou que a temporada brasileira de Garros esclareceu

 bem o projeto aeronáutico que a nova instituíção iria submeter ao Gover-no. Tratava-se de uma escolha da aviação civil e militar que seria instala-da perto da vila militar de Deodoro. Darioli foi designado professor-ins-

trutor, mas isto não representou uma ruptura do modelo francês porqueo italiano se formou com os irmãos Voisin, em Issy-les-Moulineaux, e

sempre voou com aeroplanos franceses. A concretização dessa relaçãodurável entre os Estados-Maior do Brasil e da França aconteceu em ou-tubro de 1912, quando o tenente Kirk chegou a Etampes para aprendera pilotar aviões. As demonstrações de Garros convenceram o A.C.B. de

 possuir aparelhos franceses.

38 – A Noite, segunda-feira 22 de janeiro, voo realizado de 16h às 17h10.

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JEAN-PIERRE BLAY

Quando a Escola Brasileira de Aviação foi inaugurada, em 2 de fe-vereiro de 1914, a otilha das forças aéreas contava com nove aviões

importados da França.39

 O modelo aeronáutico francês, apesar deste bri-lhante italiano, era dominante. Talvez a francolia de Santos-Dumont e

as excelentes relações entre o Brasil e a França criasse uma convivência

natural e ajudassem a formalizar uma situação menos concurrencial queos dias de hoje.

A “Semana” acabou de acordo com as esperanças dos militares. Em25 de janeiro, Delmont, Newton Cavalcanti, Mario Golm, Raul Vieira

de Melo... e tantos outros, realizaram um sonho: voar!Enquanto os aviadores da Queen Aeroplane Cie estavam na Argenti-

na (19 de março-25 de abril de 1912), a imagem idealizada dos voos con-tinuava a alimentar a memória coletiva. Nos jornais: caricaturas, cções,

extrapolações técnicas.... tudo era possível com o avião. Com o projetodo Campo dos Afonsos, o Brasil preparava-se para seguir o caminho das

grandes nações.

Conclusão

A temporada de Roland Garros na América do Sul durou seis me-ses. Do embarque, no navio inglês “Thames” no dia 2 de dezembro de1911 no porto de Le Havre (Normandia), até a volta a Paris no iníciode maio de 1912, essa missão foi um sucesso porque ela respondeu auma necessidade: melhorar o potential militar das nações sul-americanas

e promover a indústria fracesa. Roland Garros, no Rio de Janeiro, foi umagente comercial moderno. Ele contribuiu na transferência de tecnologiasque deram início a um processo de modernização do Exército, que con-tinuou após a Primeira Guerra Mundial, com a Missão Militar Francesa(1919-1939)40.

39 – 2 biplanos Farman (motor Gnome) ; 1 biplano Farman (Gnome) ; 1 monoplano Aero-torpedo (Suet), 4 monoplanos Blériot (Anziani de 25 HP) ; 1 monoplano Blériot (Anzianide 35 HP)40 –  Jean-Pierre Blay, “La Mission Militaire Française, son inuence intellectuelle et te-

chnologique dans la formation des élites militaires brésiliennes” (1919-1940)  in  Bevue Guerres Mondiales et Conits Contemporains, n°177, pp 95-104.

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R OLAND GARROS  NO R IO DE JANEIRO EM 1912:

GAROTO PROPAGANDA DA INDÚSTRIA FRANCESA

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Esse circuito esportivo-comercial correspondia aos objetivos deter-minados por Robert Esnault-Pelterie, delegado da “Câmara sindical das

indústrias da aeronáutica”. Este sócio do AC.F., piloto e construtor, que-ria transformar, em processo comercial, as mudanças ocorridas durantea III Exposição Internacional da Locomoção Aérea (dezembro de 1911,Grand-Palais, Paris). Ele declarou: “Os aeroplanos de luxo substituirãodenitivamante as máquinas voadoras”.41 Segundo ele, a França poderiaconservar a liderança da tecnologia com a condição de exportá-la juntocom os seus pilotos. O governo francês concordou com esta análise e in-vestiu 20 milhões de francos42 a m de encorajar a pesquisa aeronáutica.

Para o ministro da Guerra, Millerand, o aeroplano tornou-se “mecanizadoe industrializa-se”43. Então, os contratos assinados pela Queen Aeroplane

Cie asseguraram à fabricação taylorizada dos avioes Blériot, Farman e

outros Bréguet. A Notícia foi bastante comentada nos relatórios do orgão

ocial do A.C.F., L’Aérophile, que homenageou as demonstrações triun-fais de Garros.44

 No Brasil, a aviação foi discutida, principalmente, como sendo a

“quarta arma”. A atualidade diplomática, comentada pelos jornais cario-cas, se focalizava na resolução do conito turco-italiano, na Lybia, em be-nefício da Itália que triunfou com aviões franceses. Sem dúvida nenhuma,a aviação militar era francesa. A conança nesta indústria era tamanha

que o patrocinador desta aventura de Garros no Brasil e na Argentina foi

um grupo americano.

Apesar dos cenários bélicos, o lado comercial da aeronáutica se des-

tacava porque a tragédia do Titanic45 (abril de 1912) reanimou as especu-lações sobre o futuro da aviação. Assim, Santos-Dumont tentou, a partir

41 –  L’Aérophile, vol. 1912, Revue Technique et pratique des locomotions aériennes. 20eannée, n° de janvier, p. 6.42 – Para dar uma idéia da tabela de preços, o “Demoiselle” custava 7.500 francos naversão mais cara.43 – L’Aérophile, vol. 1912, op. cit ., p. 68.

44 – Idem, 1º de julho, p.296. Garros realizou 30 voos.45 – Esta tragédia foi comentada durante muitos dias na imprensa brasileira.

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JEAN-PIERRE BLAY

de 1915, desenvolver um projeto de comunicação aérea no continenteamericano.

A irmandade leiga dos “Demoisellites” foi el e respeitosa com o

“Pai de Aviação”. Esses aviadores, formados com o “Demoiselle”, que-riam homenageá-lo voando no Brasil com um exemplar do deste, com- prado por Garros e Audemars. Mas, no nal da interminável semana, o

“Demoiselle” nem mesmo saiu da sua caixa de transporte. Ele foi encon-trado, no hipódromo, abandonado, tal um “caixão de orfão”. No leilãoque fechou o evento aeronáutico, ninguém quis comprar o amejante

objeto do desejo de todos os discípulos de Santos-Dumont46

, ele mesmoultrapassado. No país da “ordem e progresso”, acredita-se na ideia do po-sitivismo que traz a felicidade pela modernidade. A trajetória de Garros,naquele momento, caraterizou uma irreversível evolução: o progressotécnico que manda todo o resto para a História.

Texto apresentado em novembro/2013. Aprovado para publicaçãoem fevereiro/2014.

46 – Jornal do Brasil , quinta-feira, 25 de janeiro, p. 7.

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RELAÇÕES ENTRE MÚSICA POPULAR E PODER

NA BELLE ÉPOQUE  CARIOCA

THE RELATIONSHIP BETWEEN POPULAR MUSIC

AND POWER IN THE CARIOCA BELLE ÉPOQUE 

PAULO R OBERTO PELOSO AUGUSTO1

Contextualização: a inserção da música popular na belle époque carioca

A partir da década de 18702, podemos observar, no âmbito da cidadedo Rio de Janeiro, o surgimento de novos gêneros musicais populares,

1 – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor Associado doDepartamento de Composição da Escola de Música da Universidade Federal do Rio deJaneiro. E-mail: [email protected].

2 – A palavra de ordem da “geração modernista” de 1870 era condenar a sociedade “fos-silizada” do Império e pregar as grandes reformas redentoras: “a abolição”, “a república”,

109

Resumo:

O signo musical, polissêmico, apresenta fortesmarcas ideológicas e, em relação às músicas populares da chamada belle époque  carioca,

observamos contradições nas falas dos músicos,neste momento de tensão social. Analisamos eentendemos o gênero musical tango brasileirocomo paradigma da nova música popular queentão surgiu, tendo representado, estrategica-mente, um símbolo importante de ascensão so-cial das classes populares, penetrando com êxitonos salões abastados da elite. O piano desem- penhou papel central neste complexo processo,que foram as relações entre os músicos, a mú-sica popular e a classe dominante de então no poder, com seus cânones artísticos e culturais

de tradição europeia. Assim, não só os tangosocupam lugar de destaque neste artigo, mastambém polcas, maxixes, choros, habaneras eoutros gêneros populares intimamente relacio-nados à existência do tango, cujas músicas pas-saram cada vez mais a inuenciar fortemente ascomposições eruditas de então.

 Abstract:

The polysemic musical sign has important ideo-logical aspects and in relation to the popularmusic of the so-called Carioca (from Rio de

 Janeiro) Belle Époque , we can observe contra-dictions in what the musicians said during thismoment of social tension. We analyze and un-derstand the musical genre of Brazilian tangoas a paradigm of the new popular music, strate- gically representing an important symbol of the social ascension of the lower classes, success- fully penetrating the rich halls of the elite. The piano played a central role in this complex pro-cess, in the relationship with the canons of the European tradition. Not only do the tangos oc-cupy a very prominent place in this article, but

 so do polkas, maxixes, choros, habaneras andother popular genres closely related to the ex-istence of tango, which increasingly inuencedthe erudite compositions of that time

Palavras-chave: Tango brasileiro. Belle époquecarioca. Música popular para piano. Gênerosmusicais.

 Keywords:  Brazilian tango. Carioca belleépoque. Popular music for piano. Musical genres

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PAULO R OBERTO PELOSO AUGUSTO

que representaram, desde então, a fala de uma nova classe que se ar -mava e uma proposta artística original, assim observada tendo em vista

a cristalização de uma nova estética musical urbana. O ambiente culturaldeste momento, e em especial na virada do século, ocupado em todos ossetores pela classe dominante com sua obstinação pela “civilização”, não privilegiava ou sequer permitia as manifestações culturais populares3, es-tas vistas então como sinal e expressão do atraso em que estava imersoo País. Esta hostilidade implicava a adesão a um modelo de desenvol-vimento e progresso, representado pela cultura francesa e ao consumo,tanto de produtos e mercadorias quanto de músicas da moda parisiense,

assim como o gosto pelas demais manifestações artístico-culturais daque-la metrópole. Uma reforma arquitetônica radical, concebida por PereiraPassos, transformaria a paisagem do Rio de Janeiro, mimetizando aquelaempreendida por Haussmann em Paris:

Aqui, me parece, reside o “nó górdio” da renovação urbana: a expro- priação ou segregação de um conjunto socialmente diferenciado deocupantes de um espaço determinado da cidade – modicado pela

ação do Estado – e suas apropriações por outras frações de classe.Essa “transferência” realizou-se por intermédio de mecanismos deexpropriação e valorização acionados diretamente pelo Estado (BEN-CHIMOL, 1992, p. 245).

A elite burguesa brasileira transformou os salões familiares e osteatros em espaços de autorreconhecimento (NEEDEL, 1993, p.106),tomando por paradigma sempre o código artístico-musical francês, por

meio do qual se expressavam, negando a validade de um outro código, principalmente o que fosse advindo das camadas subalternas, que recor-davam uma realidade a ser esquecida.

“a democracia” (SEVCENKO, 1989, p. 78).3 – A corrida imperialista para a conquista de amplos mercados capazes de alimentar aEuropa da II Revolução Industrial encontrou na teoria das raças uma justicação digna esuciente para o seu vandalismo nas regiões “bárbaras” do globo. Tratava-se de levar os

 benefícios da civilização para os povos “atrasados”. Ora, civilização, nesse sentido, erasinônimo de modo de vida dos europeus da belle époque (SEVCENKO, 1989, p.123).

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R ELAÇÕES ENTRE MÚSICA POPULAR  E PODER   NA  BELLE   ÉPOQUE  CARIOCA

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Este preconceito, entretanto, não colidia com a armação do ideal denação brasileira ou conceito de brasilidade, uma vez que, segundo a óp-

tica da elite dominante, ao se promover o progresso e o desenvolvimentodo Brasil de acordo com os cânones dominantes da metrópole francesa, anação encontraria assim sua identidade mais genuína4. Na realidade, esteera um ideal da burguesia brasileira, de participar da chamada sociedadecivilizada.

 Neste momento, em que o músico popular é excluído do processo deconstrução da nação pela elite brasileira, a música popular urbana, que

surge no Rio de Janeiro, apresenta uma nova proposta estética, caracte-rizada pela seguinte fusão: de um lado o aproveitamento das formas mu-sicais em voga na Europa, para a dança e o canto, como, por exemplo, a polca; por outro lado a introdução de novas expressões rítmico-melódicase harmônicas, que viriam consolidar uma nova estética musical urbana,ou seja, um contraponto aos ideais estéticos europeizantes das elites.

Como armamos, estes novos gêneros populares, como o tango, de-

rivavam, na realidade, de composições de sucesso na Europa, especial-mente em Paris. Observamos que o tango, antes de ser acolhido pelas plateias cariocas, no início da década de 1870, já fazia enorme sucessonos teatros parisienses, tendo, por isso mesmo, logo interessado a compo-sitores brasileiros, como Henrique Alves de Mesquita, que logo o intro-duziram em suas operetas.

Esta predileção nos revela, também, que as camadas subalternas,

longe de rejeitarem por completo o código musical das elites e em es- pecial seus gêneros musicais favoritos – como forma de resistência àdominação e discriminação – assimilaram no discurso musical popularelementos importantes das falas dominantes, como as próprias formasmusicais, com todas as implicações tonais, rítmicas e culturais.

4 – No nível psicológico, o conceito de autoritarismo é o equivalente ao conceito so-ciológico de etnocentrismo. A personalidade autoritária caracteriza-se pelo julgamentonegativo do grupo estranho; tende a atribuir a este todas as más qualidades, enquanto as

 boas são atribuídas ao próprio grupo. Poder-se-ia dizer que a personalidade autoritáriamanifesta um etnocentrismo extremo (LEITE, 1992, p. 22).

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PAULO R OBERTO PELOSO AUGUSTO

Um outro elemento forte de assimilação das falas dominantes namúsica popular foi a incorporação do piano no conjunto instrumental do

choro. Este último possuiu, sem dúvida, a formação que melhor caracte-rizaria a música popular urbana na chamada belle époque: auta, violão,cavaquinho, entre outras possibilidades, com a participação do piano, quese tornou indispensável em conjuntos de choro, como o de ChiquinhaGonzaga.

A incorporação do piano teria um signicado especial. Na realidade,tratava-se de um símbolo importante, não somente musical, mas princi-

 palmente de poder e de ascensão social. Isto porque o piano era o símbolode status da burguesia europeia e veículo privilegiado do código musical burguês dominante: o romantismo.

Podemos observar, então, que a interpretação de obras populares ao piano, a aquisição deste instrumento – de preço elevado – e a localizaçãodo mesmo, em lugar de destaque nas salas das casas de família, bemcomo a estilização de diversos gêneros oriundos da elite, sinalizavam um

indicativo de promoção ou integração social. Estava, assim, o músico popular em busca da respeitabilidade, sem se opor frontalmente à músicada classe dominante, símbolo da repressão.

Assim, observamos um diálogo entre a música popular e a da elite,em que há mais sintonias do que oposições radicais, propriamente ditas. Notamos uma aproximação das falas, pela incorporação de diversos có-digos musicais dominantes, que serão analisados neste artigo. O signo

musical, contudo, é polissêmico, devendo-se ter cautela, então, na análisedestas comparações, que remetem, por vezes, ao campo subjetivo das in-terpretações.

O tango brasileiro

Dentre as várias manifestações musicais que podemos localizar nacidade do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1870-1920,

destacamos o gênero tango, pela grande repercussão que obteve nos sa-lões da época, quer populares, quer da elite.

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R ELAÇÕES ENTRE MÚSICA POPULAR  E PODER   NA  BELLE   ÉPOQUE  CARIOCA

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Contudo, ao observarmos seus antecedentes formais, a sua duraçãoenquanto gênero musical, com todas as suas variantes criadas e, nal-

mente, os gêneros que lhe sucederam e que inuenciaram o gosto musical popular, citamos Zamacois, quando se pronuncia sobre a transformação erenovação dos tipos formais:

Cada tipo formal tem sua história – curta ou longa – e esta não pode dar-se nunca por denitivamente encerrada, pois os compo-sitores, com bastante frequência, voltam ao antigo e esquecido,aspirando dar-lhe novas aparências. Ademais, em cada tipo formaldevem registrar-se seus períodos de gestação, desenvolvimento, cres-

cimento, etc. Houve tipos formais que desapareceram sem deixarrastro; outros houve que fruticaram e deram seiva a outros, e há osque sobrevivem, com maior ou menor força. Nenhum tipo formal delonga história pôde, como é lógico, permanecer invariável atravésdela. Não há, pois, que esperar, por exemplo, que uma sonata de hojese ajuste aos moldes das primitivas e nem sequer das beethovenianas.Aqui, como em tudo, ‘renovar-se ou morrer’ (ZAMACOIS, 1985, p.4).

Podemos, assim, observar que o gênero tango nunca apresentouuma estrutura modelar xa, variando muito a célula rítmica geradora, oandamento, a forma e a própria denominação, já que os títulos faziam,frequentemente, alusão a outras danças. Daí ser mais apropriado falar em“tangos brasileiros”.

 Na década de 1870, o Rio de Janeiro assistiria à representação, emteatro, de uma nova dança: a habanera. Em 1871, o maestro Henrique Al-

ves de Mesquita, ao adaptar duas habaneras espanholas da peça O jovemTelêmaco, deu-lhes o nome de tango.

A habanera, popularizada em Havana, Cuba, logo foi difundida na

Espanha e o seu ritmo característico no acompanhamento era omesmo do tango, este na origem uma dança mexicana, que se diferencia-va basicamente da habanera pela variação no andamento, acelerando aos poucos até acabar abruptamente. Da mesma forma que a habanera o tango

mexicano difundiu-se na Espanha, ambas as danças foram posteriormente

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PAULO R OBERTO PELOSO AUGUSTO

executadas em números teatrais em Paris, de onde Henrique Alves deMesquita foi buscar o modelo para compor, então, o primeiro tango brasi-

leiro, o qual denominou Olhos matadores, no mesmo ano em que zeramsucesso as suas transcrições das duas habaneras espanholas, ou seja 1871,conforme relacionamos anteriormente.

Efetivamente, a acolhida do público a este novo gênero foi calorosa,tanto assim que no ano seguinte, 1872, compunha outro tango, agora parauma peça teatral, intitulado Ali-babá ou os quarenta ladrões, que obteveuma tal receptividade, que levou Machado de Assis a escrever na Sema-

na Illustrada: “Ninguém se mata porque não tirou a sorte ou porque perdeu o primeiro ato do Ali-babá do Mesquita” (SIQUEIRA, 1969, p. 29).

 Nesta obra, o Ali-babá, as características do tango nativo mexicano,recém-chegado ao Brasil após um longo percurso via Espanha-Paris-Rio,são bem explicitadas, ou seja, é uma composição que inicia em andamen-to moderado, na segunda parte, poco più, já está bem mais movimentado,

até que nos últimos seis compassos surge a indicação  stringendo, o queleva a acelerar cada vez mais, concluindo abruptamente.

Entretanto, esta composição não tem a mesma linguagem que os si-milares tangos espanhóis. A célula rítmica da habanera e do tango está presente na primeira parte ; na melodia podemos notar a célula fre-quente no lundu, , que pode ser entendida, também, como umatransposição popular (carioca), da rítmica característica da habanera

. Na segunda parte, enquanto a melodia apresenta o ritmo da polca, comfeições cariocas , o acompanhamento estabelece a pulsação dolundu . Assim, não deixava dúvida a procedência da nova dança: amúsica popular carioca.

Observamos, contudo, que o caráter fundamental desta composição – tango mexicano – , conforme foi descrito acima, não se repetiria maisnas composições intituladas tango, mas sim as recorrências da habanera,

sendo uma dedução nossa, que se tornou uma incoerência o título “tan-go brasileiro”, que melhor signicado teria se fosse nomeado “habanera

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R ELAÇÕES ENTRE MÚSICA POPULAR  E PODER   NA  BELLE   ÉPOQUE  CARIOCA

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 brasileira”. O caráter de ambas as peças era tido pela elite como erótico:“ Le tango...n’est pas très différente de la habanera connue à Cuba

 sous le nom de Danza. Cette danse mi-indiènne mi-nègre eut des formes primitives nettement érotiques” (RIEMANN, 1931, p.1320).

Ao fazermos uma análise do chamado tango brasileiro, concluímos pela necessidade de se entender este gênero no plural: tangos brasileiros. Contudo, não só devemos entender o gênero tango brasileiro no plural,como também analisar a pluralidade de interpretações válidas, a partirdos diversos componentes rítmicos e sociais que entraram em sua com-

 posição. Componentes estes que fazem referência muito diretamente àsmais variadas e complexas manifestações musicais das classes menos pri-vilegiadas, tanto quanto às músicas de salão das elites dominantes, sem- pre ao gosto francês.

Antecedentes do tango brasileiro

Ao acompanharmos a trajetória dos gêneros musicais populares quemais foram consumidos no Rio de Janeiro a partir da segunda metade doséculo XIX até as duas primeiras décadas do século XX, observaremosque a década de 1870 representou um momento de revitalização da cria-ção musical, com a divulgação de modinhas, lundus polcas, valsas, xotese mazurcas, os quais já eram conhecidos da população há pelo menos trêsdécadas. No caso do lundu e da modinha, remontavam ao século XVIII,quando foram amplamente divulgados por Domingos Caldas Barbosa:

Tal como no caso da modinha, a mais antiga notícia do lundu-cançãoé encontrada na coletânea de versos musicados pelo mulato cariocaDomingos Caldas Barbosa, e publicada em dois volumes: o primeiroem 1798, ainda em vida do autor (o poeta e tocador de viola morreuem1800), o segundo em 1826 (TINHORÃO, 1986, p. 12).

 Na verdade, o superávit da balança comercial brasileira, a partir de1860, representando um momento de euforia econômica, aliado ao surgi-mento de novas camadas populares, dado o incremento do trabalho livre,

com a proibição da importação de escravos e o surto comercial e indus-

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PAULO R OBERTO PELOSO AUGUSTO

trial, propiciaram as condições não só da revitalização dos antigos gêne-ros musicais populares como a criação de um outro que representaria bem

este momento de euforia: o maxixe. Entretanto, a polca europeia chegouao Rio de Janeiro em 1845, com seu ritmo movido em compasso binário.Assim atesta Machado de Assis:

Mas a polca? A polca veioDe longes terras estranhas,Galgando o que achou permeio,

Mares, cidades, montanhas.

Aqui cou, aqui mora,Mas de feições tão mudadas,Que até discute ou memoraCoisas velhas e intrincadas.

Pusemos-lhe a melhor graça, No título, que é dengoso,Já requebro, já chalaça,Ou lépido ou langoroso.

Vem a polca: Tire as patas, Nhonhô! – Vem a polca: Ó gentes!Outra é: Bife com batatas!Outra: Que bonitos dentes!

 – Ai, não me pegue, que morro! – Nhonhô seja menos seco! – Você me adora? – Olhe, eu corro! – Que graça! Caia no beco!

E como se não bastaraIsto, já de casa veioCoisa muito mais que rara,Coisa nova e de recreio.

Veio a polca de perguntaSobre qualquer coisa postaImpressa, vendida e junta

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R ELAÇÕES ENTRE MÚSICA POPULAR  E PODER   NA  BELLE   ÉPOQUE  CARIOCA

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Com a polca de resposta (in KIEFER, 1983, p. 18).

A polca logo deixou a exclusividade dos salões mais abastados, ondeera executada preferentemente ao piano, para ser dançada nos salões dascamadas populares, que tradicionalmente interpretavam suas composi-ções num conjunto musical muito característico: auta, violão e cava-quinho, com a variante comum da clarineta e/ou oclide. Os músicos participantes deste conjunto instrumental caram conhecidos como cho-rões e sua forma de interpretar as mais diversas melodias criou um estiloinconfundível, que posteriormente, já no início do século XX, originaria

um gênero típico carioca: o choro. Contudo, esta forma peculiar desteschorões interpretarem o ritmo da polca, procurando adaptar os acentosrítmicos da mesma aos do lundu, o mesmo fazendo os dançarinos com acoreograa, deu origem a uma nova dança com ambientação própria, quecou conhecida como maxixe.

Esta nova dança incorporava e salientava um traço característicoda polca (e da valsa): o par de dançarinos unidos e enlaçados. Quanto

à rítmica e à melodia tratava-se de uma novidade, já que as síncopes dolundu incorporavam além da célula , a constante . Podemosobservar esta característica na partitura do maxixe Bafo de Onça (1896),de Zequinha de Abreu.

A dança do maxixe desde a sua origem foi marcada com o estigma dadiscriminação e da proibição. Sua coreograa em que os dançarinos atua-vam com os quadris colados, foi considerada imoral, sendo vista como

diversão baixa e desprezível. O nome maxixe, entre outras acepções, de-signava o fruto de uma planta rasteira dos mangues do bairro da Cidade Nova, completamente sem valor, e o próprio termo era aplicado pejora-tivamente a tudo que devesse ser colocado em último lugar na escala devalores da sociedade da época:

Uma dessas suposições, valendo pelo simbolismo que lhe serve de base, é a de que o fruto do maxixeiro (planta) sendo formado pormuitas centenas, talvez milhares, de sementes agrupadas, ou dizendomelhor, apinhadas em seu âmago, assemelha-se aos bailes de ínma

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classe, os criouléus. Tais bailes, realizados em pequenas salas, commuitos pares comprimindo-se em dança estabanada, rebolante, des-

 preocupados da etiqueta e num agarramento antifamiliar, sugeriram aalcunha, a designação. Essa designação foi aceita por Antenor Nas-centes, que com ela avalisou o verbete Maxixe em A Gíria Brasilei-ra (p.117) dizendo: ‘Antigamente também se chamava assim o salãoonde, com entrada paga, se dançava o maxixe’ (EFEGÊ, 1974, p. 34).

Estes bailes logo foram procurados por respeitáveis chefes de famí-lia, que se interessaram pelas permissões e atrativos da nova dança.

Uma vez comprovada a diversidade e variedade de formas e gênerosmusicais que interagiam com o tango brasileiro, bem como suas variantese combinações, que lhe deram características bem peculiares, apresenta-remos a seguir uma análise e respectiva exemplicação dos principaisgêneros musicais até agora abordados. Esta análise não se limita tão so-mente aos chamados gêneros populares, uma vez que os gêneros musicaiseuropeus, por exemplo, a polca, eram muito executados nos bailes popu-lares, ao som dos conjuntos de choro, propiciando, assim o surgimento

dos novos gêneros. Por outro lado, o consumo e a aceitação da músicada elite, em especial os modismos franceses, pelas classes subalternas,apesar das transformações surgidas em suas estruturas musicais, nos levaa entender este consumo como uma forma de promoção social e comosímbolo de ascensão social. Na realidade tratava-se de um comportamen-to que visava à integração social das classes desfavorecidas junto à cul-tura de elite, fato que pode ser comprovado pela incorporação do piano

nos conjuntos de choro. Esta presença constante nas casas de família,mesmo as mais pobres, sugeria a identicação ao ideal cultural burguês,numa metáfora de grande importância para se poder compreender o papelda música, dos músicos, do surgimento dos gêneros musicais populares edos instrumentos utilizados, em especial o piano.

A polca

A polca foi uma das danças mais populares do Rio de Janeiro, nasegunda metade do século XIX, tendo sido importada pela elite. Frequen-

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tando assiduamente os salões mais abastados, foi introduzida nos salõesdas classes subalternas, onde representou um símbolo de ascensão social.

Segundo Baptista Siqueira:

A polca chega à metrópole brasileira precisamente em outubro de1844, segundo registro que do acontecimento faz o Jornal do Comér-cio do Rio de Janeiro, daquele mês e ano. E, nessa mesma época, nascomemorações de aniversário do Imperador D. Pedro II, na sala doteatro S. Francisco, foi representado um vaudeville em um ato, daautoria de Paul Vermont e Frederico Berat, cujo nome era La Polka(apud  KIEFER, 1983, p. 16).

Com relação à polca, podemos caracterizá-la musicalmente comouma dança de compasso binário e andamento vivo, originada na Boêmiano início do século XIX, possivelmente em 1830, tendo se difundido lar-gamente, primeiramente em Paris, depois em toda a Europa, chegando aoRio de Janeiro em 1844, conforme citado anteriormente.

A polca apresentava ritmos básicos que lhe davam um caráter dan-

çante bem marcante. Tal como em outras danças, podemos identicar di-versas variantes rítmicas, que, entretanto, não desguram o caráter geralda polca. Contudo, a célula rítmica da polca mais frequente no Brasil é

. Além disso, as introduções às polcas ocupam um papel de des-taque nas danças: servem ao mesmo tempo para criar o ambiente rítmico--melódico propício para iniciar a coreograa e também para que os pares possam se enlaçar e preparar para começarem a dançar todos juntos. Nocaso especial da polca, este procedimento é tanto mais importante por

se tratar de uma dança que tem por início um ritmo anacrústico, ou seja, possui um impulso rítmico inicial.

A polca no Brasil

Como observamos, no período da chamada belle époque, a música,ou melhor, as músicas e os compositores estavam em contínua transfor-mação e criação. Na França, entretanto, desde o século passado, o gênero

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Opereta5  estava em moda, assim como as danças de salão, que foramexportadas para várias partes do mundo, passando a ser incorporadas ao

dia a dia dos brasileiros.As operetas, gênero de música ligeira, ou seja, de caráter alegre,

tornaram-se a marca da belle époque. O mais famoso compositor destegênero, Jacques Offenbach6, autor de  La Belle Helène, Gaité Parisièn-ne, Orphée aux Enfers, entre outras, tornou-se paradigma desta músicaaparentemente despreocupada: era um disfarce coletivo, para desviar aatenção do grande fantasma que se aproximava – a primeira grande guer-

ra – que resultou na maior catástrofe até então vista, mas intimamente pressentida pelos frequentadores assíduos do Moulin Rouge.

Luiz Edmundo, em o  Rio de Janeiro do meu tempo, traça um pa-ralelo da correspondência do  Moulin Rouge  parisiense com os chopesberrantes no Rio:

De se ver, por exemplo, no “Alhambra” de Londres, no “Moulin Rou-ge” de Paris ou no “Winter Garden” de Berlim, uma dançarina de fama

causando enorme sucesso, ganhando rios de dinheiro, e, seis mesesdepois encontrá-la no Rio, surgindo do palco do “Guarda Velha” ou da“Maison Moderne”, fazendo o mesmo sucesso e ganhando aqui, comolá também verdadeiras fortunas. Dançarinas, malabaristas, cantores decançonetas ou canções, diseurs e diseuses, palhaços, transformistas,mágicos, domadores de animais, pantomineiros, musicistas exóticos,números fenômenos e excêntricos de toda a sorte, estão sempre che-gando, pelos paquetes, da Europa e da América. Por isso a indústria da

5 –  Termo usado nos séculos XVII e XVIII para toda uma variedade de obras cênicasmais curtas ou menos ambiciosas que a ópera e, no nal do séc. XIX e início do séc. XX,

 para uma ópera ligeira com diálogo declamado e danças. Este tipo evoluiu, nos anos 1850,da ópera comique francesa, sendo o estilo estabelecido por Offenbach, em obras comoOrfeu no Inferno (1858) e La belle Hélène (1864). Offenbach foi seguido na França porLecocq, Planquette, Messager e outros, e seu sucesso no exterior provocou o surgi-mento de outras escolas nacionais de opereta (SADIE, 1980, p. 356).6 –  Com Johann Strauss Jr., Offenbach foi um dos dois compositores mais notáveisna música popular do séc. XIX. Foi por meio do sucesso das obras de Offenbach noexterior que a opereta tornou-se um gênero internacionalmente reconhecido, produzindo

importantes expoentes nacionais em Strauss, Sullivan e Léhar, e evoluindo para a formado musical do séc. XX (SADIE, 1980, p. 668).

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Pension d’artiste, que se revela na apresentação do albergue mais oumenos elegante e que corrige a deciência em matéria de conforto dos

nossos afrontosos hotéis, dia a dia prolifera. A famosa Suzana de Cas-tera possui no gênero uma hospedaria modelo à rua do Passeio, que éa capitanea destas habitações provisórias e onde se escorcha a pobreestrela, que ali deixa integralmente o que ganha no teatro. Apenas,como ela não viva apenas disso... (EDMUNDO, 1938, vol.1, p. 478).

 Na música de salão o quadro não era diferente. Proliferavam-se asdanças que, sob a inuência das músicas nacionais, apresentavam con-tornos melódicos e estruturas rítmicas próprias das culturas das quais

se originavam. Entre outras podemos citar a  Polonaise, a Habanera e a Schottish (xote). No Brasil, a partir da segunda metade de século XIX, es-tas danças eram conhecidas nos saraus familiares, em que estava sempre presente a quadrilha com o seu famoso galop:

Em 1898, o editor H. Garnier lança um “novíssimo e completo” Ma-nual de Dança, em que deslam todas as danças de sociedade da épo-ca: a Contradança, a Quadrilha Francesa (com suas cinco guras: Pan-

talon, L’Été, La Poule, La Pastourele e Finale), a Quadrilha Imperial(em alguns casos terminada por um galop), a Quadrilha Cruzada, osLanceiros (também em cinco partes: Les tiroirs, Les lignes, Mouli-nets, Les visites e Les Lanciers), Rocambole, Princesa Imperial, AJuventude, Esmeralda ou Lanceiros Lusitanos, Lanceiros Fluminen-ses, Últimas Proezas de Rocambole, Polo ou Quadrilha Americana(danças essas que eram espécies de Quadrilhas), a Valsa,  A Polca, aEscocesa ou a Xote (Schottish), Mazurca, Polca-Mazurca, a Redowa,Boston, a Siciliana, a Varsoviana (chamada no nordeste de Valsa--Viana), a Habanera ou Polca Espanhola e o Cotillon (este a dança -nal de um baile com dezenas de guras: La Présentation, Dos-à-Dos,La Chaise, Les Impairs, Les Tours de Mains, etc.) (VASCONCELOS,1977, p.16).

Contudo, observamos que tanto as danças de salão quanto as ope-retas, na medida em que iam sendo veiculadas no Rio de Janeiro, foram paulatinamente sendo modicadas pela introdução da síncope, herança da

música africana e dos contornos melódicos já conhecidos da modinha. Si-

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multaneamente, graças à inuência forte do conjunto do choro e outrosintérpretes, como pianeiros7 e músicos de banda, já na virada do século,

todo aquele repertório europeu podia ser ouvido pelos de gêneros popula-res brasileiros: polcas, modinhas, lundus, cançonetas, valsas, xotes, maxi-xes e tangos brasileiros. Podemos constatar várias destas células rítmicasque permearam as obras dos compositores populares urbanos na chamadabelle époque, buscando uma amostra signicativa nas composições para piano de Ernesto Nazareth.

Destacadamente, podemos relacionar músicos brasileiros que com-

 puseram intensamente operetas e música de salão, com características na-cionais: Henrique Alves de Mesquita, Chiquinha Gonzaga, e, com ênfasena música instrumental: Antonio Callado, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth, Aurelio Cavalvanti, entre outros. Entretanto, mesmo estes com- positores, que introduziram em suas partituras as células rítmicas bási-cas da chamada música popular urbana, não descartavam a possibilidadede escrever obras obedecendo aos cânones da música de salão francesa.Assim, constatamos no início de uma Quadrilha de Chiquinha Gonzaga,

integrante da opereta Forrobodó – sobre costumes cariocas –, a inuênciada linha melódica francesa.

Pelas crônicas da época, podemos notar o quanto eram popularestanto os gêneros musicais como os seus compositores. Relatamos, emseguida, uma crítica publicada no Correio da Manhã, em sua edição de12 de junho de 1912, a propósito do Forrobodó:

Forrobodó é uma pequena burleta que tem o seu sucesso garantido.A simpatia com que a acolheu ontem a plateia do São José, em trêscasas sucessivamente cheias, prova que há peça ali para muito tempo.Escrita com muita verve sem excesso de pimenta, discreta em certos

 pontos, a burleta está destinada à grande e franca popularidade. Elaconstitui um estudo muito bem-feito da vida dos nossos arrabaldesmodestos, desenrolando-se o enredo num clube carnavalesco. Os au-

7 – Pianeiro era uma alcunha um tanto depreciativa para se referir aos pianistas que sededicavam à música popular de então. Ao contrário, os músicos que interpretavam o re-

 pertório erudito eram chamados de pianistas. Ser pianista ou pianeiro, eis um drama que perseguiu muitos músicos durante a belle époque carioca.

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tores tiveram felicidade na observação dos tipos, apresentando um tra- balho digno de ser visto. Além disso Francisca Gonzaga escreveu uma

série de tangos verdadeiramente admiráveis, capazes de garantir esustentar o Forrobodó. Os artistas da pequena companhia do São Josédefendem a peça corretamente (apud VASCONCELOS, 1977, p. 55).

 No Rio de Janeiro, um dos compositores de destaque na composiçãode polcas foi Joaquim Antonio da Silva Callado (1848-1880), criador de A Flor Amorosa. Autor de dezenove polcas de sucesso, o autista Anto-nio Callado assumiu uma posição de destaque para a música popular doRio de Janeiro, uma vez que integrou o conjunto instrumental que viriaconstituir e fornecer a base rítmica, timbrística, melódica e harmônicadas estruturas das danças do momento: O choro carioca. As polcas deAntonio Callado, na realidade, antecipam e preparam a popularização dotango brasileiro:

Comecemos por esclarecer que a polca brasileira, particularmentecomo gênero dançante, já em 1883, estava em constante processo desuperação com o aparecimento de danças novas, mais compatíveis

com a índole do brasileiro em geral : o tango brasileiro (1871) deMesquita e o samba interiorano apresentado por alguns cultores es-trangeiros no Skating-Rink na Rua do Costa, 31-A, em 1 de julho de1878. A polca brasileira, que estava generalizada em todo o país, paranão desaparecer adotou daí em diante, a forma mixta polca-lundu,

 polca-cochicho, polca-cateretê: servia assim de equilíbrio formal em- prestando às demais sua estrutura básica de cinco seções. O grupo dechoro começou adotando a polca-de-serenata, que trazia como novi-dade, passagens modulantes em ritmo acelerado, para contrastar comas modinhas dolentes e as valsas-canções que eram executadas nasnoites enluaradas (SIQUEIRA, 1969, p.137).

Comparando a polca  A or amorosa  com as francesas  Arlequine e Mille feux, podemos ressaltar certos traços estruturais na composição deAntonio Callado, que as suas precedentes francesas não possuíam. Es-tas transformações na estrutura viriam propiciar o surgimento de novosgêneros musicais, sendo o principal deles o tango brasileiro. A princípio

nota-se uma mudança na forma básica, ou seja, não se trata mais de uma

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forma ternária A B A como as precedentes, ou A B A C A, caracterizandoum Rondó, como era comum em composições do gênero, destinadas à

dança. O que se observa é a estrutura A B A C A B A, ou seja uma seme-lhança com a forma do Rondó-Sonata8.

Um outro aspecto que também já diferencia radicalmente esta pol-ca de Antonio Callado das polcas francesas analisadas anteriormente é a presença da sátira. Na parte C, em Fá Maior, observa-se que a melodiaaí utilizada Com graça9, é, na realidade um aproveitamento, em ritmode polca, da segunda parte da Marcha Fúnebre, de Chopin10, conhecida

como lamento, e que aqui se torna bem apropriada ao ritmo do maxixe. Na realidade, tanto os títulos das polcas como as referências melódicas amúsicas conhecidas, bem como as homenagens ou sátiras, faziam partedo ambiente musical popular na chamada belle époque carioca.

Outra polca de Antonio Callado, Querida por todos, apresenta emsua estrutura, mais especicamente no acompanhamento, uma caracteri-zação que se tornaria comum nas músicas do gênero, ou seja, a sugestão

dos baixos do violão, com uma imitação timbrística deste instrumento,tão preferido pelos músicos populares.

8 – Uma das formas musicais mais antigas e ainda em uso, o rondó, deriva, como de-monstra a etimologia do nome, das danças de roda. É comum que estas danças venhamacompanhadas de uma canção, que apresente uma melodia que se repita alternadamente(estribilho), sendo intercalada por outra contrastante, que não se repete. Isto forma uma

estrutura A B A ou A B A C A ou A B A C A D A e outras. Assim como é possível serencontrada não só no rondó, mas também no lied  e em diferentes gêneros, como a valsa,o maxixe, o tango, o chorinho, o samba, entre outros. Já a forma A B A C A B A é cogno -minada de Rondó-Sonata, por sua semelhança simultânea com as formas Rondó e Sonata.9 –  As diversas acentuações dos sons na música, bem como as necessárias utuações deandamento e de intensidade sonora, são regidas pela Expressão Musical. Assim, é preciso

 por parte do intérprete o conhecimento adequado do estilo a ser executado para o empregocorreto dos princípios da Expressão Musical.10 – A Marcha fúnebre, de Chopin, foi alvo de algumas citações por parte de composito-res de variadas procedências. Liszt, na sua obra Funerais, emprega um modelo de lamento semelhante ao usado por Chopin. Já Erik Satie faz uma citação satírica da mesma na obra

 Embryons desséchés, que foi executada como símbolo da modernidade em música, naSemana de Arte Moderna, em 1922, por Guiomar Novaes.

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As melodias, nas atividades artísticas de Callado, representam o prin-cipal objetivo, pois, com a auta na mão, dispensava os arranjos pia-

nísticos, que, segundo ele, conduziam a deturpações das tendênciasnativistas; se referia ao uso que inconscientemente faziam alguns de processos mecânicos automatizados, e oriundos de técnica importa-da. Callado preferia, com muita razão aliás, a atmosfera violonísticaonde, outros gênios da execução, como ele próprio o era, se encar-regassem do acompanhamento instrumental no estilo de sua prefe-rência(...) Muitas de suas polcas, verdadeiramente originais, comomelodia, não chegaram a ser publicadas, apesar da enorme fama doautor simplesmente porque os editores da época as julgavam muito

complicadas melodicamente. Eram as modulações passageiras, queapareciam vertiginosamente no canto e tinham endereço certo: osautistas bem dotados (SIQUEIRA, 1969, p. 101).

Querida por todos foi dedicada à Chiquinha Gonzaga e se popula-rizou tão rapidamente, que logo surgiu outra polca intitulada  Por todosquerida, como resposta ao sucesso da primeira.

O nome de Aurélio Cavalcanti (1874-1915) não está ligado somente

à composição de polcas de sucesso. Sua atividade como pianeiro e com- petente improvisador 11 o colocaria entre os mais requisitados animadoresdos bailes das camadas populares do Rio de Janeiro, especialmente no bairro da Cidade Nova. Este emprego harmônico se tornaria apropriado para os acompanhamentos e fórmulas de modulação, que os pianeiros echorões passariam a adotar, de maneira marcante nas composições im- pressas e nas improvisações. A improvisação era um requisito básico para

a formação do músico popular, que demonstrava toda a sua habilidadeimprovisando, inclusive, em grupo.

11 – Esses artistas aprendiam uma polca de ouvido e a executavam para que os violonistasse adestrassem nas passagens modulatórias, transformando exercícios em agradáveis pas-satempos. É de compreender-se que, com o correr do tempo, a repetição dessas passagensacabasse xando certos esquemas modulatórios, os quais, por se vericarem sempre nostons mais graves do violão, acabariam se estruturando sob o nome genérico de baixa-ria. Pois seriam esses esquemas modulatórios partindo do bordão para descaírem quasesempre rolando pelos sons graves, em tom plangente, os responsáveis pela impressão de

melancolia que acabaria conferindo o nome de choro a tal maneira de tocar, e a designaçãode chorões aos músicos de tais conjuntos, por extensão (TINHORÃO, 1986, p.103).

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 Nessa altura da análise e discussão em torno dos gêneros musicaisque propiciaram o surgimento do tango brasileiro, após termos observado

as estruturas fundamentais, do ponto de vista musical, com as suas trans-formações e variações, passaremos a debater as falas dos compositores populares da chamada belle époque. Este debate precede, assim, a análisedo tango brasileiro, com as suas possibilidades e variantes estruturais,conitos internos e contradições sociais.

Versões eruditas do tango

 Na realidade, o ritmo empregado no tango e na habanera, como ca-racterístico destas danças e que está tão presente no tango brasileiro, nãoé de origem recente. Nossa busca em direção de uma possível origem,tanto nos conduziu às musicas das camadas populares da América Es- panhola, no início do século XIX, como também à música aristocráticada corte francesa da época de Luís XV, com o compositor e clavecinistaRameau (1683-1764).

Em sua composição para cravo L’Égyptiènne podemos observar noscompassos 17, 18, 19, 47, 48, 50, 57 (entre outros) a presença da célularítmica na parte inferior. Esta referência só é consignada aqui emvirtude de tratar-se de uma dança que, no caso, recebe um tratamento preponderantemente instrumental, como outras danças da época, que in-tegravam as suítes. Não é um aproveitamento rítmico fortuito, mas sim bastante sugestivo. O que nos faz lembrar que grande parte das dançasque integraram as suítes barrocas, dirigidas a uma plateia aristocrática,

tinha origem popular, mantendo, inclusive, seus títulos originais.

 Na Espanha o compositor e musicólogo Pedrell, da escola nacio-nalista, desenvolveu uma pesquisa aprofundada sobre a canção popularespanhola. Nas suas composições pode-se notar o emprego de célulasrítmicas especícas das danças populares, em especial do tango.

Outro compositor espanhol de expressão nacionalista, Albeniz, em-

 pregou em suas composições as células rítmicas próprias do tango. Pode-mos analisar em uma de suas obras para piano, intitulada tango, na qual

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está lançada toda a problemática rítmica e estrutural. Contudo é de senotar na melodia a presença da célula rítmica , em que as quiálteras

iniciais, segundo Mario de Andrade, viriam, no Brasil, se transformar em; que é um dos ritmos caraterísticos do maxixe. Esta obra pertencea uma suíte intitulada Espanha.

Em Debussy (1862-1918) também pudemos encontrar a célula rít-mica própria do tango. O Prelúdio III do segundo livro, intitulado ... La Puerta del Vino,  com a indicação expressa  Mouvement de Habanera,exibe claramente esta problemática, apresentando, igualmente um viés

nacionalista, com a utilização da chamada escala árabe, integrante, damúsica popular espanhola.

Este compositor, que empreendia a pesquisa tímbrica detalhada ea busca de sonoridades sempre novas, especicou logo no início deste prelúdio o seguinte caráter: ...avec de brusques oppositions d’extrêmeviolence et de passionée doucer, indicando uma concepção erudita destasdanças populares.

 Notamos que o compositor utilizou a indicação habanera e não tan-go. Assim, no tango brasileiro, existem mais traços do gênero habanerado que do tango, conforme mencionado anteriormente, uma vez que otango se diferenciava da habanera pela utuação contínua do andamento.

 Nesta linha de argumentação ainda podemos citar Ravel (1875-935),que, em sua Pièce en forme de habanera, dá um tratamento textural a estacomposição semelhante ao tango de Albeniz, apresentando, contudo, umaoutra linguagem, mas nomeando a obra não como tango, mas sim comohabanera. É de se notar a indicação inicial do caráter ... Presque lent etavec indolence.  Assemelhando-se, assim, a Debussy, na escuta eruditadestes gêneros populares.

Assim como os compositores franceses precedentes, Milhaud (1892-1974) empregou em suas composições os ritmos próprios da habanera edo tango. Entretanto, trata-se de um compositor que residiu no Rio deJaneiro, de 1916 a 1918, como secretário diplomático na missão de Paul

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Claudel e que pesquisou as diversas manifestações na música popular ur- bana carioca da época, em especial os pianeiros que tocavam nos cinemas

e por quem nutria particular interesse. Neste caso, a observação do compositor francês foi feita a partir da

audição dos tangos brasileiros, muitos deles executados por Ernesto Na-zareth.

O momento histórico francês favorecia o chamado “primitivismo”das outras nações, que eram vistas como culturas a serem dominadase incorporadas sob o eixo clássico-romântico europeu, passando porexóticas, mas “disciplinando-se” ao contato da cultura dominante. Umexemplo brasileiro deste primitivismo “dionisíaco” sendo submetido àesfera “apolínea” da linguagem “culta” francesa é a coletânea de obrasde Milhaud, que apresenta as chamadas melodias brasileiras visando aoexotismo, como em Saudades do Brazil, onde constatamos a presençasistemática da síncope brasileira, mas numa linguagem politonal (comona peça Corcovado), conforme os cânones da música moderna da belle

époque francesa.

Os tangos no Rio de Janeiro

Falamos anteriormente das possibilidades da transposição e adap-tação da habanera cubano-espanhola-francesa à rítmica e linguagem daregião do Rio de Janeiro. Comentaremos agora a conceituação social dadança de maior penetração popular, o maxixe, que era taxada de reles,

imoral e proibida pela classe dominante, sendo motivo de constrangimen-to público a simples citação do termo maxixe.

Em 1883, porém, o ator Francisco Correia Vasques mencionou e fezexecutar em público a dança proibida, assim na peça cômica de sua au-toria encenada no teatro Santana e intitulada  Aí, caradura, o maxixe foidançado para o público de classe média que comparecera ao teatro paraeste m. Mas a partitura do referido maxixe indicava polca-tango, o que

 provava que o maxixe já era divulgado pelo título tango, o que era bemaceito, executado e com penetração nos salões da elite.

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Uma das razões que apontamos para a aceitação do termo tango como disfarce para a música do maxixe, ou mesmo das polcas e lundus

mais agitados, é justamente a proveniência francesa deste termo, que fa-zia sucesso nos teatros parisienses, com outro conteúdo musical, comoanalisado anteriormente.

Podemos constatar uma segunda acepção para o termo tango, ouseja, como disfarce para as músicas proibidas, o que facilitava de maneiraconsiderável aos compositores a circulação de suas partituras. Ao mesmotempo evitava aos intérpretes e consumidores o constrangimento da dis-

criminação:

Para começar, o próprio nome maxixe devido à sua origem popular deúltima categoria, estava, como se viu, de tal maneira ligado à noçãode coisa reles e imoral, que a sua indicação ostensiva implicava ne-cessariamente no desagrado e no veto dos compradores de partituras

 para piano, que eram gente da classe média para cima (TINHORÃO,1986, p. 69).

Só no choro – tango característico de Chiquinha Gonzaga – é, naverdade, um lundu, em vista do rítmo característico . Na parteC aparece a lembrança da polca . A nossa sugestão para o títuloseria polca-lundu.

Já no tango Tupinambá, de Ernesto Nazareth, o ritmo acéfalo (com pausa no início) característico do maxixe é o que domina: ,assim como a outra célula frequente, também desta dança, no acompa-

nhamento: . Nazareth, contudo, rejeitava qualquer associação desuas obras com o maxixe, dizendo inclusive que as mesmas não deveriamser dançadas, como analisaremos mais adiante. Não sendo destinadas àdança e nem ao canto, o compositor, com suas músicas, se aproximava doideal clássico de Música Pura.

 Notamos ainda que algumas variantes são detectadas nas partiturasdos diversos compositores, no período 1870-1920. Tango, tango brasi-

leiro, tango característico, tango carnavalesco, tango meditativo, tango

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de salão, tango fado, tango habanera, tango milonga, são denominaçõesfrequentes que têm signicado de acordo com o caráter derivado de cada

obra. Assim o termo “característico” recorda a presença de algum ritmode outra dança. Desta forma os outros adjetivos.

Mais sutil, porém, é a insistência do adjetivo “brasileiro”, que nãoera tão frequente, conforme pudemos apurar, mas que se tornou quaseobrigatório a partir de 1914, quando o tango argentino divulgou-se rapi-damente em Paris (o que contou com incentivo ocial do governo argen-tino). O adjetivo “brasileiro” também deve ser visto com reserva, uma

vez que o Rio de Janeiro, tendo sido capital do Brasil, deu, muitas vezes,o designativo “brasileiro” ou “nacional” a manifestações exclusivamen-te cariocas e até mesmo restritas a certas regiões do Rio de Janeiro. Narealidade, estamos em presença do tango carioca ou habanera carioca.

Uma outra leitura do tango brasileiro podemos desenvolver ao ob-servarmos sua divulgação na Europa. Quando Antônio Lopes de AmorimDiniz, O Duque, e Maria Lino divulgaram em Paris o que chamaram de le

vrai tango brésilien (EFEGÊ, 1974, p. 49), em oposição ao tango argen-tino, na realidade dançavam o maxixe. Entretanto, desenvolvemos umacrítica a estes dois dançarinos, que, apesar de terem alcançado grandesucesso, não apresentaram aquela coreograa “proibida”, original da Ci-dade Nova, mas sim passos estilizados, inspirados na dança da bailarinaIsadora Duncan, tendo sido por isso duramente criticados pela imprensa brasileira da época. Contudo, mesmo modicada, a coreograa mantinhamuito dos antigos traços, o que levou à proibição da Igreja e a consequen-

te fama de “dança excomungada”.

Possibilidades formais do tango

Um destaque, na trajetória do tango brasileiro, é a obra do composi-tor Ernesto Nazareth. Segundo Tinhorão:

A ideia de mascarar o aproveitamento do maxixe com o nome de tan-go ia mesmo constituir, no caso especial de Ernesto Nazareth, umaverdade imprevista. Embora muitos compositores da época, como a

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 própria Chiquinha Gonzaga, tivessem chamado seus maxixes de tan-go, os tangos de Nazareth seriam na verdade os únicos que merece-

riam esse nome, como distintivo de uma criação particular. (TINHO-RÃO, 1986, p.72).

Compartilhamos esta armação, uma vez que a análise das obras deErnesto Nazareth, em confronto com as composições de seus contempo-râneos, revela um conteúdo e linguagem próprios. A inuência da haba-nera sobre este compositor, como em nenhum outro, a ponto de anotaresta designação em dois de seus tangos, foi decisiva para que ambientasse

suas músicas com as características próprias desta dança, merecendo emespecial o título de tango, devido à originalidade. Podemos, ainda, notaruma outra particularidade em Nazareth, que foi a sua formação musical,fortemente clássico-romântica, o que transparece nas suas composições,que não são cantadas (à exceção de duas obras cujas letras foram acres-centadas por Catulo da Paixão Cearense), e nem foram feitas para seremdançadas, conforme instrução do próprio compositor, que, por várias ve-zes, criticou a velocidade exagerada com que os intérpretes as executa-

vam12.

Tangos com ritmo de polca

Uma das possibilidades formais mais frequentes nas estruturas dostangos é a apresentação do ritmo da polca, seja no acompanhamento ouna melodia. Em Ernesto Nazareth podemos observar claramente este pro-cedimento. Por exemplo, no tango Nenê onde, após a introdução, toda a

 primeira parte se apresenta, no acompanhamento, com o ritmo próprio da polca. Caso semelhante, igualmente de Ernesto Nazareth, é oChoro  Apanhei-te cavaquinho, que vem intitulado em algumas ediçõescomo polca.

 Na realidade, podemos argumentar de uma vez que várias polcascom a mesma estrutura rítmica, assim como outras danças, foram publi-

12 – Verica-se que esta crítica de Nazareth aos andamentos rápidos exagerados não temsido acatada pela maioria de seus intérpretes pósteros.

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cadas ou gravadas como tangos. Este choro também pode e deve ser en-tendido como um tango, uma vez que se adapta estruturalmente a este gê-

nero popular. Deve-se recordar ainda que o termo choro designava mais propriamente o conjunto musical do que um tipo de composição. Nestaobra, por exemplo, são colocados em relevo dois dos instrumentos maiscaracterísticos deste conjunto: a auta e o cavaquinho.

Tangos com ritmo de lundu ou maxixe

Conforme abordamos anteriormente, a coreograa do maxixe erainaceitável para a cultura de elite da época. Contudo, os compositores,com o objetivo de penetrar nos salões abastados, camuavam a dança proibida com o sugestivo e aceito título de tango, como o Corta jaca, deChiquinha Gonzaga. Este tango, na realidade, intitula-se Gaúcho, masé conhecido popularmente como O corta jaca, que é o nome de um dos passos da coreograa do maxixe.

O gaúcho apresenta constantemente pausas nos primeiros temposdos compassos (ritmo acéfalo), traço indicativo da presença de um dosritmos do maxixe, também encontrável frequentemente no lundu.

A execução deste tango escandalizou as elites do início do século,quando Nair de Teffé, esposa do então presidente marechal Hermes, inter- pretou-o ao violão no Palácio do Catete (KIEFER, 1986, p.12).

Podemos observar em Ernesto Nazareth dois tangos que apresentama mesma problemática do Corta jaca, rearmando com isso o caráter de

maxixe, que, por sua vez, era negado terminantemente pelo compositor.

Tangos com ritmo de habanera

Os tangos mais usualmente conhecidos apresentam o ritmo da haba-nera e apresentam a contradição da fusão de duas danças – o tangoe a habanera –, conforme abordamos anteriormente. Outro aspecto quefavoreceu a divulgação maior deste ritmo foi a semelhança com o tango

argentino, que o utilizava constantemente. Entretanto, ressalvamos, ainda

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uma vez, que esta célula rítmica é apenas uma das várias possibilidadesestruturantes, de acordo com os exemplos até agora apresentados. Em  A

 pera de Satamaz de Henrique Alves de Mesquita, que introduziu o gê-nero tango no Brasil, podemos observar a presença contínua da célulano acompanhamento. No tango Tim-tim, de Chiquinha Gonzaga,

vericamos a mesma sistemática na composição, dando ênfase às célulasrítmicas da habanera. Nos dois exemplos anteriores e ainda em Ernes-to Nazareth, observamos que, apesar do ritmo constante da habanera noacompanhamento, as melodias variam os ritmos, apresentando frequen-temente a célula temática do maxixe. Este mesmo ritmo foi o que encon-

tramos anteriormente nos tangos e habaneras dos compositores eruditos,demonstrando, assim, uma certa preferência por esta estrutura rítmica.

Tangos com ritmos constantes

Uma das fórmulas rítmicas mais usuais na construção do tango erao emprego da célula , que em certos tangos, como Tambyquererê,de Chiquinha Gonzaga, aparece de forma constante no acompanhamento.

Este ritmo é mais um dos comprovantes de que sob o título de tango seescondia o maxixe, uma vez que é um dos mais propícios e usados nestadança “proibida”. Anteriormente, quando foi apresentado o maxixe Bafode onça de Zequinha de Abreu, pudemos notar justamente o empregodesta célula rítmica constante.

Por comparação, podemos constatar na obra de Zequinha de Abreu,Os pintinhos no terreiro, a mesma célula rítmica constante, encontrada

nos tangos anteriores, com a denominação de Chorinho Sapeca. Assimcomo observamos semelhante emprego rítmico no tango Talisman,  deErnesto Nazareth.

Tanguinho

Em Marcelo Tupinambá (Fernando Lobo), podemos notar uma par -ticularidade: o acompanhamento sempre com a célula rítmica , tal

como nos exemplos anteriores, e a denominação de tanguinho, como uma

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disposição afetiva. Seus títulos são de caráter melancólico, quase sempretoadas (melodia de caráter dolente).

Tangos com ritmos combinados

Uma outra possibilidade estrutural para os tangos era a combinaçãoentre si, no acompanhamento e na melodia, dos ritmos vistos anterior-mente, ou seja, de polca, lundu, maxixe, habanera e, principalmente, dasvariações possíveis entre eles, o que traria uma pluralidade de interpreta-ções, no que se refere ao conhecimento da proveniência da música, comoà sua execução pelo pianista. Uma amostra desta combinação está notango Zênite, de Ernesto Nazareth.

Gêneros populares estruturalmente similares ao tango

Conforme já citado anteriormente, podemos localizar certas compo-sições populares que escapam às denominações mais conhecidas, como polca, lundu, habanera, tango, maxixe, choro, mas que na realidade, es-truturalmente falando, se enquadram em um desses gêneros. Com mais

frequência, podemos associar estas obras ao tango brasileiro, uma vezque como temos demonstrado, este gênero possui uma pluralidade rít-mica e uma associação de inuências de diversas procedências. Assim,no Candomblé, da peça “Céu e inferno”, de Chiquinha Gonzaga, obser-vamos as estruturas rítmicas pertinentes ao que nos exemplos anterio-res relacionamos como tango, ou seja, o caráter é o mesmo, só o títulodifere. Outro exemplo desta prática é o  Fado característico brasileiro

Caramuru, igualmente de Chiquinha Gonzaga, onde se introduz o nomeda conhecida dança portuguesa, porém sob os ritmos próprios do tango brasileiro.

A memória sonora

O tango brasileiro, conforme expusemos anteriormente, apresentaem suas várias abordagens, ocasião de controvérsias e divergências acer -ca de sua caracterização como gênero musical, desde a chamada belleépoque carioca. Frequentemente têm sido discutidas as recorrências for-

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mais que levaram à armação deste gênero, partindo de lugares comunstais como Henrique Alves de Mesquita foi o criador do tango brasileiro,

em 1871, e Ernesto Nazareth seu “sistematizador genial”. Problemas deordem técnica levaram alguns musicólogos como Bruno Kieffer (1986),em sua obra “Música e dança popular; sua inuência na música erudita”,a armar que o tango brasileiro sempre foi um gênero completamenteindependente do maxixe, enquanto outros, como Tinhorão, viram nes-ta última dança a essência do tango brasileiro, na realidade um disfarcesutil. Outra possibilidade de diferenciação, partilhada, por exemplo, porJoão Chagas, seria uma distinção coreográca:

A sua música (do maxixe) é a música dos tangos, com um ritmo novo,introduzido no Brasil por compositores brasileiros; mas, na realidadedança-se ao som de todas as músicas, de valsas, como de marchas,árias ou canções, porque o maxixe é o ato de dançar e não a própriadança (apud VASCONCELOS, 1977, p. 15).

Além das partituras analisadas, observamos atentamente as grava-ções da época, porque nelas podemos examinar as manifestações de ex-

 pressão musical com a intenção desejada pelos artistas deste momentohistórico. Algumas variáveis são: altura do diapasão, anação, andamen-tos, licenças interpretativas, instrumentos preferidos e suas diversas for-mações, preferência por timbres, acentuação dos tempos, valorização decertas células rítmicas, valorização de certas linhas melódicas secundá-rias, marcação dos baixos e improvisações durante a execução.

Uma fonte especial para a realização desta análise sobre a produção

musical da época foram os discos gravados na década de 1910 (que so-mam quase quinhentos exemplares), localizados no acervo do Centro dePesquisas Folclóricas da Escola de Música da Universidade Federal doRio de Janeiro13. Este acervo encontrava-se originalmente na Biblioteca Nacional, na seção dos Direitos Autorais. Nesta seção encontram-se os

13 – Em 1997 foi publicada pelo Centro de Pesquisas Folclóricas da Escola de Músicada Universidade Federal do Rio de Janeiro a obra  Música popular gravada na segundadécada do século, de autoria da professora Dulce Martins Lamas e com revisão minuciosa

da professora Rosa Zamith, que apresenta um catálogo importante deste acervo, trazendonovas luzes sobre este tema.

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livros de tombo do início do século, em que se lavravam os registros deDireitos Autorais. Nestes livros faziam-se registros de todas e quaisquer

 patentes, aí incluídas as composições musicais, que eram relacionadasindiscriminadamente ao lado das mais variadas requisições de direitosautorais. Com isso o levantamento das gravações foi dicultado por estadispersão. Contudo, pudemos observar pelos registros que os músicos namaior parte das vezes vendiam seus direitos autorais aos donos das grava-doras. Além disso, o fato de registrarem as músicas por meio de discos enão de partituras, como seria mais natural supor, devia-se ao fato de essesmúsicos não terem possibilidade de gravarem a música em partitura, o

que era um traço comum nestes artistas, grande parte deles autodidatas eimprovisadores.

As gravadoras, na época, tiveram uma penetração muito grande emtodas as camadas sociais, podendo-se provar isto, argumentando-se quesó em 1910 foram vendidos mais de um milhão de discos só na cidadedo Rio de Janeiro, os quais eram gravados nesta cidade e prensados, emsua maioria, nas principais capitais europeias, fato este que contribuiu,

indiretamente, para a divulgação da música popular na Europa, especial-mente entre as bandas militares, que incluíam em seus repertórios tangos brasileiros e maxixes, como o sucesso Vem cá mulata.

Marcas estrangeiras da recém-nascida indústria fonográca, aqui,disputavam o mercado, não só gravando os discos, como vendendo-os juntamente com fonógrafos, grafofones, cilindros, gramofones, vitrolas eoutros engenhos, que eram superados em pouco tempo devido às moder-

nas tecnologias (FRANCESCHI, 1984, p. 79). Entre estas marcas as maisconhecidas eram a Odeon Record, que tinha como sede comercial a CasaEdison, do proprietário do introdutor desta indústria no Brasil, Fred Fig-ner; a Favorite Record, da Casa Faulhaber; a Colúmbia e a Casa Phoenix.

Estas casas possuíam entretenimentos disputados, na época, como aexibição e audição de discos, com entrada paga. Além disso colocavamà disposição dos compositores suas bandas e orquestras, estas últimas

constituídas, às vezes, curiosamente, por quatro instrumentos.

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Estes discos, em 78 rotações p.m., apresentam em sua maioria a vozdo locutor da gravadora, anunciando em voz alta, na maior parte das ve-

zes, o nome da música, o gênero correspondente, o conjunto e o nome dacasa proprietária do disco. Os referidos anúncios das músicas, por partedos locutores tornou-se uma fonte importante de informações, tendo emvista as inúmeras contradições que são elucidativas para o debate em tor-no do tema tango brasileiro.

Assim, se tomarmos como exemplo a peça Anadinho, veremos queo selo do disco traz impresso tango; no livro dos Direitos Aurorais da Bi-

 blioteca Nacional está registrado polca-tango e o locutor anuncia choro.Devemos notar que a indicação dada pelos intérpretes era aquela anun-ciada pelo locutor, uma vez que o mesmo repetia o que os músicos lhediziam no momento da gravação. Não quer dizer, contudo, que sejam asclassicações denitivas, uma vez que cada denominação reetia um as- pecto musical e social da composição. Nesta composição, particularmen-te, o nome choro atribuído pelo locutor refere-se muito mais à maneirade tocar dos executantes – chorões –, nos seus instrumentos – clarineta,

cavaquinho e violão –, que imprimiam um estilo particular de interpreta-ção, cujo caráter era denominado choro (não como forma). O registro de polca visava ao ritmo constante e presente nesta obra , própriodesta dança. Mas o título do selo – tango – seria uma garantia de venda damúsica, uma vez que disfarçava sutilmente a polca e o choro.

Podemos, por meio do registro sonoro da época, com o signo mu-sical, estabelecer as relações entre história e música de forma interativa,

conseguindo levantar e esclarecer questões que a bibliograa, somente,não poderia subsidiar.

Os diversos conjuntos instrumentais podiam ter formação diversa.O conjunto do choro: auta, violão e cavaquinho (e ainda clarineta e/ouoclide). As bandas de pequeno ou grande porte e as orquestras, às vezes,apresentavam dimensões próprias de um pequeno conjunto, a que se po-dia se somar o piano.

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Em especial devemos considerar as bandas, que às vezes pertenciamà gravadora, mas na maior parte eram militares. Integrar uma banda mi-

litar era considerado um símbolo de ascensão social. Muitas vezes estesmúsicos tinham patentes militares, das quais eram desobrigados do tra- balho, como os bombeiros, para apenas se dedicarem à música. Estas bandas representavam, para a maior parte da população, uma das poucasocasiões de escutar música, fato este que propiciava prestígio e concor-rência entre estes conjuntos.

Observamos que, sendo estes músicos vindos das classes subalter-

nas, incluíam nos repertórios destas bandas a chamada “música proibi-da” , inclusive animando bailes carnavalescos ou comemorações ociaisem que estava presente o tango brasileiro.

Como amostra do levantamento das partituras da época, na Bibliote-ca Nacional, publicadas como tango brasileiro, encontramos duzentos esessenta e cinco partituras para canto com acompanhamento instrumen-tal; trezentas e cinquenta para piano solo; quinze para conjunto instru-

mental. Estes dados reetem, proporcionalmente, que os compositoresdas duas primeiras categorias possivelmente dominavam a escrita musi-cal, por isso veiculavam suas obras pelas partituras. Já o terceiro gruponão apresentava esta habilidade, registrando e divulgando as suas com- posições por meio de discos, cedendo os direitos autorais aos proprietá-rios das indústrias fonográcas. Quanto à divulgação dos termos tempo egênero musical, pode-se concluir que a larga divulgação do tango argen-tino, em ns da década de 1920, no Rio de Janeiro, contribuiu para que

o tango brasileiro pouco a pouco desaparecesse, dada a ambiguidade donome com aquela dança e, ainda, as contradições internas relacionadasanteriormente. O surgimento do samba despertou a preferência entre ascamadas populares.

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R ELAÇÕES ENTRE MÚSICA POPULAR  E PODER   NA  BELLE   ÉPOQUE  CARIOCA

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Texto apresentado em fevereiro/2014. Aprovado para publicação emmarço/2014.

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A DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA:

OS JESUÍTAS MATEMÁTICOS ITALIANOS

DE ALEXANDRE DE GUSMÃO

DEMARKING THE AMAZON FRONTIERS:

ALEXANDRE DE GUSMÃO’S ITALIAN JESUIT

MATHEMATICIANS

VASCO MARIZ1

Decididamente, Alexandre de Gusmão foi o barão do Rio Branco do

século XVIII, assegurando, graças ao Tratado de Madri de 1750, à Coroa portuguesa e indiretamente ao Brasil de hoje amplos territórios ao sul doPaís e, sobretudo, na Amazônia. Seus feitos e a sua glória infelizmentesão pouco conhecidos dos brasileiros e me parece justo tentar divulgarmelhor a sua obra. Mas antes de chegar aos misteriosos padres matemá-ticos italianos contratados na Universidade de Bolonha, na Itália, paradeterminar os limites da Amazônia portuguesa, vamos recordar a extraor-dinária história do próprio Gusmão.

Alexandre viu a luz em Santos, São Paulo, em 1695, lho do cirur -gião-mor de um presídio daquela cidade. Teve numerosos irmãos e umdeles cou célebre em Portugal bem antes dele: Bartolomeu de Gusmão,

o chamado “padre voador”, o inventor da passarola, que voou em Lisboacom o seu aeróstato de ar quente. Antecipou-se em quase um século aosirmãos Montgoler em Paris. Bartolomeu mandou chamar do Brasil o

 jovem irmão Alexandre, que chegou a Lisboa aos 15 anos de idade apenas

1 – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro.

141

Resumo:

Alexandre Gusmão conquistou a Amazônia peloTratado de Madri. Contratou jesuítas italianosmatemáticos e astrônomos. Três grupos delimi-taram toda a área.

 Abstract:

 Alexander Gusmão conquered the Amazon re- gion in the Treaty of Madrid. He hired Italian Jesuit mathematicians and astronomers to de-marcate the enormous area, dividing them intothree groups.

Palavras-chave: Alexandre Gusmão. Tratadode Madri. Jesuítas italianos matemáticos e as-trônomos. Três grupos.

 Keywords:  Alexandre Gusmão. Treaty of Ma-drid. Italian Jesuits mathematicians and astron-omers, Three groups.

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 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):141-160, abr./jun. 2014142

VASCO MARIZ

e já prometia muito graças aos seus estudos de ciências matemáticas. Orapaz possuía um físico agradável: era alto, de olhos pequenos, sempre

 polido e sem afetação. D. João V gostou dele e mandou-o estudar em Pa-ris, por interferência de Bartolomeu, que conseguiu a sua nomeação comosecretário da embaixada portuguesa. Estavam em plena idade de ouro deLuís XIV e Alexandre frequentou cursos de matemática e jurisprudência,conheceu pessoalmente personalidades interessantes e estudou francês.Lá passou cerca de cinco anos e em 1720 regressou à Lisboa. Estava com25 anos e já gozava de suciente prestígio para depois ser enviado pelo

rei a Roma para tentar destrinçar várias questões pendentes que Portu-

gal tinha com a Santa Sé. O papa Benedito XIII gostou tanto do jovemAlexandre que lhe deu o título de “príncipe romano”, que ele declinoumodestamente. Só regressou a Lisboa em 1729 e já estava com 34 anos.

D. João V, que o tinha em alta conta, elevou-o a “dalgo da Casa

Real” e “Escrivão de Puridade”, quando ele começou a adentrar-se nossegredos da política exterior do reino. Foi encarregado de conduzir osnegócios com o Vaticano, que já conhecia bem, e pouco depois, também

os do Brasil. Em 1735, ampliou sua área com os problemas europeus dePortugal. Em 1743 foi nomeado conselheiro e ministro do famoso Conse-lho Ultramarino, onde realizaria notável trabalho no setor da administra-ção portuguesa no Brasil. Incentivou a emigração dos Açores e da Ilha daMadeira para o Brasil e colonizou os estados do sul do país com gruposde sessenta casais de agricultores. Araújo Jorge comentou que Gusmãodecidiu animar a exploração do ouro no Brasil, substituindo o imposto

do quinto pelo da capitação, medida depois revogada por Pombal.2

. Oesplêndido livro de Jaime Cortesão sobre o tratado de Madri relata por-menores interessantes de seu cuidadoso planejamento.

 Homem de imensa cultura, Alexandre criou vários bispados em Mi-nas Gerais, São Paulo, Goiás e Pará, incentivou o desenvolvimento daindústria e a exploração do ouro. Camilo Castelo Branco deniu-o como

“o mais avançado espírito do seu século”.3  Esta era a personalidade que

2 – Araújo Jorge –  Ensaios de história e crítica, página 18.3 – Castelo Branco, Camilo – Perfl do marquês de Pombal, Lisboa, 1888, página 82.

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A DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA:OS JESUÍTAS MATEMÁTICOS ITALIANOS DE ALEXANDRE DE GUSMÃO

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D. João V escolheu para negociar com o mundo espanhol os diversos problemas pendentes das fronteiras do Brasil, ao norte e ao sul. Os resul-

tados seriam espetaculares e muito devemos a ele, se olharmos o mapa doBrasil de hoje. Se as negociações do Barão Rio Branco nos deram quase900.000 km2 de novos territórios sem derramamento de sangue, Alexan-dre de Gusmão nos legou mais do que o triplo dessa área. Lembro que oBrasil da sua época, de acordo com a linha do Tratado de Tordesillas, co-meçava na altura de Belém do Pará e terminava em São Francisco do Sul,SC. Graças ao seu Tratado de Madri, Gusmão conseguiu empurrar nossoterritório na Amazônia até as faldas dos Andes. Ao sul, criou uma fórmula

realista para solucionar a questão da Colônia do Sacramento, alargandoconsideravelmente as províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.A sorte nossa é que o marquês de Pombal, apesar de não gostar pessoal-mente de Gusmão, teve a clarividência de apoiar rmemente quase todas

as medidas por ele previstas. Infelizmente, correu muito sangue no terri-tório das Missões, sobretudo por culpa dos jesuítas, que se recusaram aobedecer ao tratado.

Logo após a assinatura do Tratado de Madri, D. João V veio a fa-lecer e seu sucessor D. José I trouxe para o poder o ecientíssimo mas

temível Sebastião José de Carvalho, o marquês de Pombal. O prestígio deGusmão era notável na época e isso não devia agradar muito ao vaidoso primeiro-ministro, que se revelaria esplêndido administrador, mas era in-vejoso e temperamental. O choque entre os dois não tardou a acontecer eAlexandre foi afastado de tudo e até perseguido pelos esbirros do primei-

ro ministro. Ele tentou defender-se com seu documento “Impugnação”,mas o poder de Pombal era tal que o esmagou. Um incêndio suspeito emsua casa destruiu o prédio e lá faleceu sua esposa Maria Teixeira Cha-ves, queimando-se a sua preciosa biblioteca. Um ano depois, pobre e emquase completa desgraça, Gusmão veio a falecer em 30 de dezembro de1753. Tinha 58 anos apenas.

Bem antes dessas importantes atividades de Alexandre de Gusmão,

o governo português já vinha utilizando padres matemáticos e astrôno-mos para xar a verdadeira posição das terras portuguesas no Brasil em

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relação ao meridiano do tratado de Tordesillas. Em 1729, os padres Do-menico Capassi, napolitano (1694-1736), e Giovanni Battista Carbone

foram contratados por D. João V para trabalhar em Lisboa, onde criaramum observatório astronômico e depois vieram para o Rio de Janeiro paramelhor ordenar as cartas geográcas. Construíram um observatório as-tronômico no morro do Castelo e zeram um útil levantamento da costa

sul do Brasil. A seu lado estava também outro competente sacerdote, olisboeta Diogo Simões, cuja atuação também foi notável.

Os padres Soares e Capassi trabalharam nada menos de 18 anos,

em várias partes do Brasil, com a sistemática nalidade de Estado de fa-zer estudos preparatórios para delimitar a soberania política entre os doisimpérios em eventual próxima negociação. Ao preparar a documentação para a defesa da tese lusa nas negociações para o tratado, Gusmão guar-dou completo segredo sobre os trabalhos anteriormente realizados poraqueles dois sacerdotes matemáticos.

Lembro que os mapas dos matemáticos eram segredo de Estado, pois

 por ordem de El-rei havia sempre duas versões desses mapas: a verdadei-ra e a que se deixava ltrar propositalmente para os espanhóis. A elabo-ração desses mapas sempre tinha óbvio propósito político a médio prazo. Na época sabia-se muito bem que a Colônia do Sacramento estava muitolonge do meridiano de Tordesillas, o que dicultava bastante as nossas

 pretensões. Jaime Cortesão armou que até as vésperas do Tratado de

Madri, os jesuítas do Paraguai sabiam da missão dos padres matemáticos,mas ignoravam por completo o seu resultado. O segredo era total. A po-

sição exata do meridiano de Tordesillas era ciosamente escondida pelasautoridades portuguesas.

Durante as negociações do tratado em Madri, a delegação lusa seesforçou sobretudo por encontrar uma solução denitiva para o problema

da Colônia do Sacramento, último bastião português na foz do rio daPrata, bem defronte a Buenos Aires. A fortaleza lusa era um verdadeirodesao ao poderio espanhol no Prata e fonte de continuadas escaramu-

ças militares. Na realidade, os portugueses tinham pouca serventia para

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aquela praça forte, mas insistiam em mantê-la como moeda de troca paraassegurarem a tranquilidade no Uruguai e nas províncias do sul, sempre

vulneráveis a aventuras militares espanholas. Comerciantes portuguesese brasileiros menos escrupulosos utilizavam a Colônia com um centro decontrabando pelo rio da Prata. O momento era oportuno porque em 1746falecera o rei espanhol Felipe V e seu lho e herdeiro do trono, Ferdinan-do VI, era casado com a infanta portuguesa D. Maria Bárbara, que exerciamuita inuência sobre seu marido.

Qual o dever da rainha ? – se pergunta Jaime Cortesão em seu livro4 –

Se o seu real esposo era doente e inepto e ela era mais capaz. Bárbarade Bragança apoiou Alexandre de Gusmão com prudência, sensatez emoderação.

As negociações foram iniciadas e Alexandre enviava ao embaixadorem Madri vários tipos de propostas e contrapropostas a serem submeti-das e aprovadas pelo gabinete espanhol. Alexandre sempre teve o apoioda rainha portuguesa da Espanha. Gusmão aconselhava seus delegados a

mostrarem que “Portugal não procurava ganhar terreno, mas só regularos conns por balizas conspícuas e indubitáveis, para evitar dissensões no

futuro”. Enquanto isso Tomás da Silva Teles, o principal delegado portu-guês, diligente e zeloso embaixador, continuava a tecer e a alargar a suateia. Segundo Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão agia com

frio realismo político e uma franqueza e audácia de pensamento no-táveis. Ele deixava entrever nas negociações com os espanhóis, com

 prudentes negaças, o engodo da cedência da Colônia do Sacramentoe seu território por um câmbio proporcionado. E com que astuciosahabilidade o fez!5

As relações entre os dois países melhoravam rapidamente e na épocaambas as partes estavam cansadas das permanentes disputas sobre a Co-lônia do Sacramento, sempre com gastos consideráveis e sangue derrama-do. Nas negociações houve muita objetividade das duas coroas e o tema

4 – Cortesão, Jaime – Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, tomo II, parte I, pá-

gina 290.5 – Cortesão, Jaime – Op. cit. p. 289.

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foi abordado com vontade de acertar. Alexandre de Gusmão em Lisboaassumiu a direção do litígio, adotando atitude completamente diferente

de como era antes tratada a questão. Ele aceitava a entrega da Colônia doSacramento em troca de concessões substanciais dos espanhóis. Gusmãovisava sobretudo à posse de territórios imensos ocupados esparsamente por missões religiosas, bandeirantes e aventureiros nas regiões de Goiás,Mato Grosso e Amazonas, e suas ambições chegavam até os vales dosrios Negro, Branco e Japurá, na Amazônia. Um bom estudo do neto do barão, Miguel do Rio Branco, descreve bem os preparativos.6

Gusmão trabalhava entre os mapas e as informações recebidas dosgovernadores dessas regiões, das missões carmelitas e de todo e qual-quer funcionário que lhe pudesse enviar algo de positivo. De Lisboa,ele bombardeava o embaixador português com sucessivas cartas, mi-nutas e propostas. Para poder por em prática seu plano, Gusmão re-correu a uma clausula do Tratado de Utrecht, de 1715, segundo a quala coroa da Espanha poderia propor a troca da Colônia do Sacramento

 por qualquer composição territorial.

Em relação à Amazônia, que é o objeto principal de nosso ensaio,Alexandre de Gusmão assim se manifestou nos documentos iniciais parao Tratado de Madri.

“No país que corre entre os rios Amazonas e Orinoco há muitos car-melitas portugueses pelo rio Negro acima e por outros que nele de-ságuam, oito missões. (...) Tornamos a propor que quem os limi-tes pelas vertentes das águas que dividem a sobredita serrania parao Amazonas e para o Orinoco, sem embargo de tocar à repartição daEspanha tanto maior porção de terras desocupadas, quanto vai da mes-ma serrania até as primeiras missões espanholas da banda setentrionaldo Orinoco, o que é um vasto território”.7

Lembro que um pouco antes das atividades de Alexandre Gusmão,D. João IV já incentivara expedições em busca do Eldorado na regiãodo Amazonas. Pascoal Paes de Araújo, saindo de São Paulo, comandou

6 – Rio Branco, Miguel do – Alexandre de Gusmão e o Tratado de 1750, Fundação Ale-

xandre de Gusmão, Brasília, 2010, p. 23.7 – Cortesão, Jaime – op.cit . p. 143.

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um grupo que chegou até o rio Tocantins em busca do Eldorado, lendaque era uma espécie de obsessão na Europa naquela época. Na Amazônia

houve também choques entre missionários e bandeirantes, tanto que olíder religioso Samuel Fritz teve de ser embarcado à força para Lisboa.

Voltando diretamente ao nosso tema, lembro que Gusmão jogousempre com a preocupação básica da coroa espanhola de que a Colôniado Sacramento era uma ameaça constante a sua soberania sobre o valedo rio da Prata, essencial para se obter a continuada tranquilidade da ex- portação da prata da Bolívia pelo porto de Buenos Aires. Gusmão tentou

fazer os espanhóis voltarem as disposições do Tratado de Tordesillas con-tra eles próprios, pois eles haviam superado amplamente, do outro ladodo mundo, nas ilhas Molucas e Filipinas, aquela linha estabelecida pelo papa, ao dividir o mundo em 1494 entre portugueses e espanhóis. PeloTratado de Utrecht a Espanha deveria devolver as Filipinas a Portugal,mas isso era impensável para Madri. A esperteza de Gusmão foi tentarconvencer os espanhóis de que era vantajoso para eles que Portugal abris-se mão das Molucas e das Filipinas em troca das áreas desocupadas do

Goiás, Mato Grosso e da Amazônia, que pouco valiam para Madri. JaimeCortesão, no livro citado, nos traça um quadro preciso dessas extraordi-nárias negociações em que Alexandre conseguiu convencer os espanhóisde aceitar o chamado “Mapa das Côrtes” como base das negociações.Chegamos então à contribuição principal que Alexandre conseguiu nosoferecer, graças à participação de vários especialistas estrangeiros.

O Tratado nalmente foi assinado em Madri em 13 de janeiro de

1750 pelo visconde Tomás da Silva Teles, em nome do rei de Portugal,e por D. José Carbajal y Lancaster, em nome do rei de Espanha. Como bem observou o neto do barão do Rio Branco em seu competente estudoacima citado, “ambos reconheciam ter violado o meridiano de Tordesillase estavam de acordo em abolir a vigência do mesmo.” Foi uma espécie demea culpa comum. No preâmbulo, Gusmão conseguiu aplicar no campointernacional o velho instituto romano do uti possidetis do qual Portugal e

o Brasil se beneciariam espetacularmente. Os dois monarcas realmente

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estavam dispostos “a estabilizar a paz e projetá-la para o futuro”. Comoescreveu também Miguel do Rio Branco,

Chegamos aqui à norma mais importante e mais revolucionária dotratado: a transferência para o direito público da aplicação, até entãoreservada ao direito privado, do principio do uti possidetis, que umséculo e meio mais tarde o barão do Rio Branco faria triunfar em jul-gamentos internacionais.

Pelo artigo XIII do tratado, Sua Majestade Fidelíssima cedeu à Co-roa da Espanha a Colônia do Sacramento e todo o seu território adjacente

na margem setentrional do rio da Prata, bem como a navegação nesseimportantíssimo rio, o qual passava a pertencer inteiramente à Espanha.Madri obtinha assim o que mais a preocupava, mas o preço que Gusmãofez pagar por isso foi enorme. Os próprios espanhóis não avaliavam bemo que perdiam. Eles não tinham a noção exata das distâncias na Américado Sul, mas Gusmão sabia. Por sua vez, no artigo XIV a Espanha entre-gava a Portugal as regiões do Amazonas da margem do rio Guaporé e,ao sul, dos chamados Sete Povos das Missões, devendo as aldeias dosíndios ser trasladadas da margem oriental do rio Uruguai para “aldear emoutras terras de Espanha”. Tal decisão iria criar gravíssimos problemasno futuro próximo, mas isso já é uma outra estória, que agora não temosespaço para abordar. Foi xado o prazo de um ano para efetuar as cessões

que iriam “establecer una sólida y durable armonia entre las dos coronas.” Não seria bem assim.

O Barão do Rio Branco, ao analisar o Tratado de 1750, comentouque “ele deixa a mais viva e grata impressão da boa-fé, lealdade e grande-za de vistas que inspiraram esses ajustes amigáveis de antigas e mesqui-nhas querelas”. O Marquês de Pombal, depois de brigar com Alexandrede Gusmão talvez por motivos fúteis e afastá-lo de todos os negócios políticos, aplicaria com rmeza todas as providencias recomendadas pelo

seu desafeto e nomeou o irmão, Mendonça Furtado, para governador doGrão-Pará, cuja atuação seria decisiva.

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Houve críticas em Portugal de que a cessão da Colônia entregava as chaves

de nossas minas à Espanha, o que era uma imensa asneira, pois nossas Minas

Gerais estavam a mais de mil quilômetros de distância. O próprio Pombal nãoestava convencido e hesitava em ceder a Colônia. O maior opositor era o gover-

nador da Colônia do Sacramento, o brigadeiro Vasconcelos, que teria convencido

o novo primeiro-ministro da inconveniência do tratado. Os jesuítas, interessados

em conservar as missões onde estavam, alegavam que o tratado havia violado a

 bula papal, o tratado de Tordesillas e outros seguintes. Acabaram triunfando e

um novo tratado assinado no Pardo, em Madri, em 1761 restabelecia quase tudo

como dantes. Um desastre. Mas se Pombal cedera em favor dos contrabandis-

tas da Colônia do Sacramento, ele já decidira pôr em prática a demarcação dafronteira da Amazônia e conrmou os planos de Alexandre Gusmão. Agora que

conhecemos melhor a atuação desses padres matemáticos e astrônomos podemos

avaliar até que ponto se formou uma lenda dentro do próprio Brasil à volta de

seus trabalhos, até bem pouco bastante misteriosos.

Os anos passaram e por ocasião da assinatura do chamado Pacto de Família,

de 1761, tratado pelo qual uniu a França, a Espanha e o reino de Nápoles contra

a Inglaterra e Portugal, fez reiniciar as hostilidades. Em consequência, o líder ar-gentino Ceballos saiu de Buenos Aires e ocupou Colônia e boa parte da província

do Rio Grande do Sul. No entanto, dois anos depois o tratado de Paris, de 1763,

encerrando nalmente a Guerra dos Sete Anos, tudo reverteu e os espanhóis fo-

ram obrigados a devolver todas as terras que haviam ocupado ilegalmente no sul

do Brasil. Foi uma grande sorte para nós.

Em 1777 falecia o rei português D. José e chegou a vez de o Marquês de

Pombal ser demitido. E nesse mesmo ano foi assinado o tratado de Santo Ilde-fonso, que era quase uma cópia do tratado de Madri de 1750, conrmando todas

as decisões anteriores. Alexandre de Gusmão estava vingado e o uti possidetis 

voltou a imperar, mas só mesmo em 1898, quando o Barão do Rio Branco ga-

nhou a disputa com a Argentina graças ao laudo do presidente dos Estados Uni-

dos, cou encerrada de vez a questão do território das missões.

Voltemos um pouco para comentar o que foi realmente importante para

Portugal e para o Brasil nascente. O Marquês de Pombal tomou a si executar o

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que Alexandre de Gusmão havia tão cuidadosamente planejado na Amazônia: a

incorporação formal e a demarcação das fronteiras norte e oeste. O planejamento

teve duas etapas: uma anterior, preparatória, à assinatura do tratado de Madrifeita por Gusmão, e outra, posterior ao tratado, de implementação das decisões

tomadas, realizada já na administração Pombal e depois da morte de Alexandre.

Para comentar as providências tomadas é conveniente voltar aos três anos

anteriores à assinatura do tratado. Lembro que Gusmão vivera em Roma vários

anos e lá certamente se relacionou com vários especialistas em matemática e

astronomia, temas que lhe eram caros. Na época eram famosos os padres ma-

temáticos italianos da Universidade de Bolonha, do norte da Itália, cidade queele talvez tenha visitado, ou talvez encontrado esses cientistas em Roma. Ao

 preparar a posição portuguesa para negociar o tratado, Alexandre e sua equipe

contrataram diversos especialistas para vir ao Brasil tentar justicar as preten-

sões portuguesas.

Um nome que vem à baila imediatamente é o do francês La Condamine,

que poucos anos antes havia feito, pela primeira vez, a longa viagem desde Qui-

to, no Equador, até Belém. Era um cientista de primeira ordem e seus depoi-mentos e mapas até hoje despertam a atenção e a admiração dos estudiosos. As

informações que seus trabalhos forneceram a Gusmão sobre o rio Amazonas e

seus maiores auentes foram da maior valia para a preparação da defesa luso -

-brasileira. Foi essencial a utilização desses preciosos mapas de La Condamine

 por Alexandre de Gusmão, pois a intenção de Gusmão era empurrar o domínio

espanhol mais e mais em direção à cordilheira dos Andes e delimitar a fronteira

norte com as Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia.

Em 1735 La Condamine partira de La Rochelle para a América do Sul e no

ano seguinte já estava nas alturas de Quito, Equador, onde após longas obser-

vações conseguiu xar a linha da metade do mundo, isto é, localizou a linha do

equador, em local perto da capital equatoriana. Ele regressaria à França pelo ca-

minho mais complicado, isto é, descendo os rios Napo, Solimões e Amazonas até

Belém, onde chegou em 1743. Foi o primeiro explorador a utilizar este percurso

enorme e no caminho fez observações sensacionais para a época. Outro sacer-

dote francês cujas obras também foram úteis a Alexandre de Gusmão, a partir de

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1748, foi o padre Jean Baptiste Bourguignon d`Anville, que ele conhecera em

Paris anos antes.

Ao regressar a Paris, La Condamine apressou-se a redigir um relatório pormenorizado de sua viagem, encaminhado à Academia Francesa de Ciências,

que causou sensação e foi logo traduzido para o inglês e impresso nas duas lín-

guas. Seu mapa da Amazônia tinha excepcional valor porque ele visitou também

auentes do grande rio, como o rio Negro, e chegou até a região do Cassiquiare,

a interligação da bacia amazônica com o rio Orinoco, da Venezuela. O seu rela-

tório à Academia de Ciências e o seu depois famoso mapa certamente chegaram

às mãos de Alexandre de Gusmão e lhe deram os argumentos de que necessitava para fundamentar seus pontos de vista na preparação da defesa da tese portugue-

sa nas negociações com os espanhóis, que culminariam com o tratado de Madri.

Consta que os delegados espanhóis cavam atordoados com os argumentos lu-

sos e as provas apresentadas pelo brasileiro nas negociações. Não sabiam como

contestá-los e acabaram por ceder facilmente sem maiores discussões.

Logo após a assinatura do tratado, Gusmão continuou a preparar as minutas

do chamados Tratados Anexos. Ele deve ter-se comunicado com a Universidadede Bolonha, solicitando a indicação de dois matemáticos e astrônomos em condi-

ções de realizar o trabalho de demarcação da fronteira luso-espanhola ao norte do

continente. Deviam ser capazes de fazer observações astronômicas, matemáticas

e geográcas, além de ter conhecimentos de botânica. Lembro que Alexandre

instou com El-rei para organizar uma boa escola de matemáticos em Lisboa.

Talvez até ele já tivesse os nomes de dois especialistas que conhecera durante

sua estada em Roma. O que interessava mais a Alexandre era a demarcação da

fronteira luso-espanhola ao norte do Brasil, deixando de lado no momento asfronteiras com as Guianas, que bem mais tarde seriam objeto de disputas com

a Inglaterra e a França, respectivamente defendidas por Joaquim Nabuco e Rio

Branco.

 No entanto, se a briga com Pombal excluiu completamente Gusmão dos

assuntos ociais, é provável que, ao chegar a Lisboa para receber instruções an-

tes de partir para o Brasil, os dois italianos tenham se encontrado discretamente

com Alexandre, já afastado do poder, e dele recebido sugestões pormenorizadas

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sobre como deveriam realizar o trabalho de campo. Curiosamente, apesar da

séria briga com Gusmão, o voluntarioso marquês iria conrmar o planejamento

do brasileiro e nomeou seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado gover-nador da província do Grão-Pará e Maranhão, com instruções precisas para que

ele observasse de perto os trabalhos dos técnicos contratados para a demarcação

da fronteira norte do País. A tarefa seria imensa e, curiosamente, Mendonça Fur-

tado se revelou homem de notável persistência e visão colonial.

Afastado do poder, Gusmão fez a defesa do tratado com a célebre “Impug-

nação,” justicando a entrega da Colônia do Sacramento como “velhacouto de

contrabandistas”, o que era uma reconhecida verdade. Depois dessa defesa, Ale-xandre não mais veio a público, ou talvez, não o permitiram. Membro do podero-

so Conselho Ultramarino, lá ele imprudentemente tentou defender o tratado, mas

uma violenta reprimenda do marquês lhe tolheu a iniciativa. Morreu amargurado

a 30 de dezembro de 1753 e não sabemos se ele chegou a encontrar-se com os

matemáticos italianos que haviam chegado a Lisboa para receber instruções,

adaptar-se ao País e aprender a língua.

Em sua defesa contra objeções, por vezes ridículas, ao tratado de Madri da parte de pessoas interessadas no comércio na região da Colônia, Gusmão durante

as discussões assim respondera a Pombal:

Destas palavras inro que V.S. impugna o novo tratado por informa-ções de ouvida. Se V.S. o tivesse visto, acharia nele que do rio dasAmazonas para o norte nos ca mais terreno do que importa o territó-rio da Colônia dez ou doze vezes mais, e assim se, na opinião de V.S.,devia ser o rio Amazonas a nossa meta, veja V.S. quanto mais do queimagina ca estendido o domínio de Portugal pelo tratado dos limites.

O Barão do Rio Branco, que continuou a obra de Gusmão, quandoministro das Relações Exteriores, mandou fazer um pequeno busto deAlexandre de Gusmão, que ainda pode ser visto em um dos corredores do palácio Itamaraty do Rio de Janeiro.

Em maio de 1750, isto é, pouco mais de três meses após a assinatu-

ra do tratado de Madri, foram contratados o padre matemático Giovan-

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ni Ângelo Brunelli e o arquiteto e desenhista Antônio Giuseppe Landi,ambos da Universidade de Bolonha, provavelmente ainda por iniciativa

de Alexandre de Gusmão. Eles receberiam um elevado salário anual eem agosto de 1751 já estavam em Lisboa. Brunelli fora contratado comoastrônomo e matemático da expedição que iria efetuar a delimitação dafronteira norte e Landi como arquiteto e desenhista, que iria planejar edi-fícios e igrejas, além de desenhar mapas, animais e plantas desconhecidosda região. Os dois caram cerca de um ano em Portugal e, em setembro

de 1752, estavam prestes a partir para Belém.

A primeira expedição era constituída pelos italianos Brunelli e Lan-di, e contava com outros técnicos especialistas nacionais e estrangeiros,a saber os capitães João André Schwebel, Gaspar Geraldo Groseld eGregorio Amaro, tendo por ajudantes Henrique Galluzzi, Adam LeopoldBreunning e Felipe Sturm, o tenente Manuel Goetz e os cirurgiões DanielPanck e Antônio de Matos, constituindo assim uma verdadeira missãointernacional. Não consegui obter informações sobre alguns deles, masdescobri que Schwebel, em 1758, traçou um atlas geográco do rio Ama-

zonas e do rio Negro, localizando as missões dos padres carmelitas, e queconsta de 41 cartas e vistas desdobráveis, que representam uma contri- buição do maior interesse para o estudo da Amazônia do século XVIII. Jána região do rio da Prata, Miguel Antônio Ciera deixou-nos um atlas deconsiderável valor e que está na nossa Biblioteca Nacional.

Os grupos porém eram dois: um deveria delimitar a fronteira nortee o outro a fronteira oeste. Landi e Brunelli zeram observações astronô-

micas em Belém e o segundo escreveu longos e interessantes relatórios.O novo governador do Grão-Pará e Maranhão foi o incentivador dessasduas expedições e Felipe Sturm e Schwebel trabalharam sempre ao seulado e realizaram bons trabalhos técnicos em 1762, pelo alto rio Negro. Oalemão Felipe Sturm visitou o Cassiquiare, mas há poucas informaçõessobre ele . A expedição que viajou para o rio Negro cou de encontrar os

técnicos espanhóis cheados por D. José de Iturriaga em Mariuá e lá a

comitiva portuguesa esperou por vários meses, sem que os espanhóis apa-recessem. Consta que os espanhóis viajaram de Cádiz para Caiena e lá se

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enfermaram e acabaram por desistir de encontrar-se com os portuguesesno alto rio Negro.

Giovanni Ângelo Brunelli (1722-1804) era um bolonhês, presbíterosecular formado em astronomia e matemática. Era o mais bem pago daexpedição liderada por Mendonça Furtado, que viajou para Mariuá, naregião do alto rio Negro, Amazonas. O irmão do Marquês de Pombal nãogostava dele, como se depreende pela carta enviada ao primeiro-ministroa 17 de julho de 1755. Escreveu o governador: “Brunelli é soberbíssimo,avarento em sumo grau e desconado (...) mas sabe muito bem a sua pro-

ssão”. Eles permaneceram em Mariuá esperando os técnicos espanhóisfazendo observações de todo o gênero e como os espanhóis não aparece-ram, decidiram regressar a Belém, onde chegaram a 26 de dezembro de1758. No ano seguinte, Pombal expulsava os jesuítas de Portugal e dascolônias.

Em 1760 ocorreu sério incidente entre Brunelli e o bispo do Pará e,em conseqüência, recebeu ordem de regressar a Lisboa. Em Portugal, em

1761, Giovanni Ângelo foi professor de matemática e geometria na Aca-demia Real da Marinha e professor de matemática no Real Colégio dos Nobres, em Lisboa. Em 1769 voltou a Bolonha, onde só iria falecer em1804, aos 82 anos de idade. Na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro,e no Conselho Ultramarino, em Lisboa, existem três interessantes traba-lhos de sua autoria sobre o rio Amazonas e seus auentes, a pororoca e a

mandioca.

Outro ilustre membro dessa expedição ao rio Negro foi Antônio Jo-sef (ou Giuseppe) Landi, também nascido em Bolonha e contratado pelocarmelita João Álvares de Gusmão, por encargo do rei D. João V, logoapós a assinatura do tratado de Madri. Ignoro se esse Gusmão era parentede Alexandre e se já estava na Itália, sendo por ele encarregado de procu-rar os astrônomos, matemáticos e arquitetos que estivessem dispostos atrabalhar na Amazônia recebendo boa remuneração.

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 Antônio Landi (Bolonha, 1713 – Belém, 1791) era um arquiteto edesenhista italiano de bom nível, que já tinha 37 anos e havia realizado

trabalhos relativamente importantes na Itália, sobretudo em Ravenna eBolonha, onde recebera prêmios e era membro da Academia Clementina.Leandro Tocantins arma que ele era tão competente que, se tivesse -cado na Itália, certamente teria cado famoso mundialmente, como seus

contemporâneos Vanvitelli, Fuga e Dotti. Antônio Landi fora contratado para fazer cartas geográcas, participar dos estudos astronômicos para a

delimitação das fronteiras e desenhar construções, plantas e animais daregião.

Landi e Brunelli chegaram a Belém em 1753 e lá caram outro ano

fazendo observações, ajudando na preparação da expedição e se intei-rando de problemas e diculdades da região amazônica, tão diferente da

Itália. Só viajaram para o alto rio Negro em 1754, onde deveriam encon-trar-se com os técnicos espanhóis para conjuntamente demarcar as novasfronteiras entre os dois impérios. De volta a Belém, Landi casou-se comuma senhora luso-brasileira e lá viveu até morrer em 1791, aos 78 anos

de idade. Foi extremamente atuante como arquiteto e desenhista, pois éo responsável pela planta da bela catedral metropolitana de Belém e tra- balhou em numerosas outras igrejas da cidade. Traçou também o planourbanístico da cidade e até hoje é reverenciado no Pará.

O terceiro grande nome que participou da demarcação das frontei-ras norte e oeste foi o padre astrônomo croata Ignácio Szentmártonyi(1718-1793), cuja atuação é controvertida, pois acabou preso por vários

anos em Lisboa após ter sido condenado pela justiça lusa. Seja como for,ele participou de importantes atividades no terreno da astronomia e car-tograa e era considerado muito competente. Ignácio era croata nascido

em Kotiri, estudou em Zagreb e foi noviço jesuíta e mais tarde professorem um liceu de Viena. O técnico especialista na região oeste do Brasil foiesse jesuíta croata Ignácio Szentmártonyi, que realizou excelente traba-lho como astrônomo, cartógrafo e matemático, mas só recentemente seu

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nome veio à tona e tem sido louvado por suas importantes contribuições para essas expedições na Amazônia.8 

Szentmártonyi fora contratado mais ou menos na mesma época queseus colegas italianos acima citados e chegou a Lisboa pouco depois de-les em 1751. Ele já havia sido condecorado pela rainha Maria Ana, daÁustria, e D. José também o premiou com o titulo de matemático reale astrônomo do tribunal português, com excelente salário. O padre Ig-nácio andou medindo a longitude e a latitude de diferentes coordenadasgeográcas no baixo rio Amazonas, antes mesmo da saída de Belém da

 primeira expedição. Sua missão era estabelecer a situação geográca daslocalidades e dos rios, de modo a que os geógrafos pudessem elaborarmapas precisos de toda a região. Mais tarde, Szentmártonyi recebeu afunção importante de estudar a região ao longo dos rios Guaporé e Ma-deira, e trabalhou também em Macapá na embocadura do rio Amazonas.Foi na base dos estudos do croata que os engenheiros puderam elaborarum grande mapa de excelente qualidade que reconstituiu todo o percursoda expedição de Belém até Mariuá.

  Infelizmente, as relações do croata com o governador MendonçaFurtado não eram boas, o qual reclamava que ele perdia muito tempocuidando de indígenas doentes. A partir de um incidente grave, o padreIgnácio, em vez de se ater ao trabalho para o qual havia sido contratado,teimou em cuidar mais da saúde de indígenas do que de sua atividadecomo astrônomo, o que acabou irritando cada vez mais o autoritário go-vernador. Lamentavelmente, durante a campanha de perseguição iniciada

 pelo Marquês de Pombal contra os jesuítas, ele foi encarcerado junta-mente com outros jesuítas. Esteve detido em Belém e depois em Portu-gal e só conseguiu viajar para Viena em 1777, onde trabalhou por trêsanos antes de regressar à sua pátria. Alguns autores armam que ele era o

mais competente dos astrônomos contratados depois do tratado de Madri.Outro personagem que, em 1762, andou pelo alto rio Negro e visitou o

8 – Vide estudo de Iran Abreu Mendes.

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A DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA:OS JESUÍTAS MATEMÁTICOS ITALIANOS DE ALEXANDRE DE GUSMÃO

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Cassiquiare foi o capitão alemão Felipe Sturm, sobre quem há poucasinformações.

As comissões de demarcação a princípio eram duas, mas criou-sedepois uma terceira: a primeira trabalhou na fronteira dos rios Jauru eParaguai e no curso médio do rio Madeira; a segunda expedição seguiu otraçado da linha Madeira-Javarí e a terceira comissão seguiu o rio Soli-mões abaixo e o rio Juruá acima, estabelecendo as fronteiras pelas cordi-lheiras setentrionais até a foz do rio Oiapoque, na Guiana.

Os inimigos do tratado e a evolução das relações luso-hispânicas nocontexto europeu deixaram em suspenso muitos pontos da implementa-ção do tratado de Madri, anal revogados pelo tratado do Pardo, em 1761.

 No entanto, como dissemos anteriormente, prosseguiram os problemasem relação à Colônia do Sacramento, mas 16 anos depois os dois novosmonarcas, D. Maria I e Carlos III decidiram voltar aos termos do tratadode Madri, às decisões inspiradas por Alexandre de Gusmão, e rmaram

em 1777 outro instrumento bastante semelhante, o Tratado de Santo Ilde-

fonso. Por esse documento os espanhóis cederam as suas pretensões so- bre os territórios por eles ocupados em Santa Catarina e no Rio Grande doSul, e às áreas amazônicas que desde o século XVII eram uma ocupaçãoquase mansa de numerosos luso-brasileiros. Portugal abria mão de seusdireitos às Filipinas e às Marianas, renunciando também aos proventosnanceiros de reembolso a que tinha direito no tocante às Ilhas Molucas.

Para terminar, algumas palavras sobre o importante esforço do Mar-

quês de Pombal para melhor assegurar as conquistas em nossa fronteiraleste dos tratados de 1750 e 1777: a construção de uma série de pequenosfortes na região para protegê-la de possíveis ataques dos espanhóis, tãoespoliados por Alexandre Gusmão. O maior deles, o Real Forte Príncipeda Beira, está situado na margem direita do rio Guaporé, no atual Estadode Rondônia. Construído em 1776, o forte visava à proteção de uma im- portante zona de mineração de ouro, que já estava atraindo muitos colo-nos da região e despertando a cobiça dos espanhóis.

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O Príncipe da Beira foi construído pelo sistema de forticações uti-lizado na França pelo famoso marechal Vauban, em forma de quadra-

do, tendo em cada ângulo um imponente baluarte. O forte tem uma belacor avermelhada devido ao emprego da pedra de canga laterítica, que éabundante na região. Seu estado de conservação atual é razoável, mas oIPHAN e o governo de Rondônia estão investindo em sua restauração,uma vez que a sua imponência já atrai considerável visitação turística.

Enm, essa é a longa história do tratado de Madri de Alexandre de

Gusmão e dos três principais misteriosos padres matemáticos italianos,

que em verdade só eram dois (Landi não era padre) e o outro deles eracroata e não italiano. Quase todos esses competentes cientistas estrangei-ros que tanto ajudaram no estudo e na demarcação de nossas fronteirasteriam sido indicados por Alexandre de Gusmão antes de sua disputa como Marquês de Pombal. A eles o nosso agradecimento pelo notável traba-lho realizado.

Se na Amazônia tão pouco povoada não houve contestação nem san-

gue derramado, no sul foi necessário ajustar fronteiras povoadas e quem pagou altíssimo preço foram os indígenas das missões jesuíticas locali-zadas no atual Rio Grande do Sul. Milhares de índios tiveram de ser des-locados à força das regiões onde viviam para as outras margens dos rios, já que o antigo território espanhol onde estavam instalados passou a serterritório português. Os sofrimentos foram imensos, resultado de comba-tes ferrenhos. A disputa que parecia dirimida pela simples aplicação dostratados de Madri e Santo Ildefonso produziu um verdadeiro banho de

sangue. A obstinada resistência dos jesuítas foi punida pela sua expulsãode Portugal, do Brasil e de outras colônias pelo Marquês de Pombal. Apósa independência da Argentina, seus dirigentes continuaram a criar litígioscom as autoridades brasileiras sobre aquela região, que só foram resol-vidos em denitivo na última década do século XIX pelo Barão do Rio

Branco, que obteve do presidente dos Estados Unidos da América umasentença favorável de arbitragem a nosso favor. As belas e imponentes

ruínas das missões jesuíticas ainda aí estão a testemunhar a importânciadaquelas instalações.

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CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, 9 volumes.Instituto Rio Branco, Rio de Janeiro, 1954. Documentação completa sobre otratado. A FUNAG publicou em 2006 outra edição em dois volumes que é muitoútil, de fácil manejo e está disponível.

MACHADO, Franci Darigo. Historiografa em ensaios, edição privada, Niterói,2011. O livro contém dois estudos sobre “A Amazônia e o Eldorado” e “OHomem e o desenvolvimento da Amazônia.

MENDES, Iran Abreu. A astronomia de Ignácio Szentmartonyi na demarcação

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MENDONÇA, Isabel M. G. Um artista entre dois continentes: Antônio José

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MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era Pombalina, 3 volumes,Brasilia, Editora do Senado, 2008.

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MOURA, Carlos Francisco.  Astronomia na Amazônia no século XVII , Rio deJaneiro, 2008.

PAIM, Gilberto. A Amazônia de Pombal sob ameaça, Editorial Escrita, Rio deJaneiro, 2006.

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 _____. mesmo título , na revista do IHGB, nº 244, Rio de Janeiro, julho/setembrode 1959.

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VASCO MARIZ

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Texto apresentado em fevereiro/2014. Aprovado para publicação emmarço/2014.

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MILITARES, DIPLOMATAS E CIENTISTAS NO PROCESSO DE

DEMARCAÇÃO DE LIMITES COM A GUIANA FRANCESA

SOLDIERS, DIPLOMATS, AND SCIENTISTS IN THE PROCESS

OF DEMARCATING THE BORDER WITH FRENCH GUIANA

LUCIENE CARRIS CARDOSO1

O desfecho favorável ao Brasil no conito com a Argentina impul-sionou o Governo brasileiro a buscar uma solução para outra controvérsiaterritorial, desta vez, a xação dos limites com a Guiana Francesa em1895, conando a contenda novamente ao Barão do Rio Branco.

Cabe acentuar que na primeira disputa os dois países sul-americanosenvolvidos, a Argentina e o Brasil, originam-se de dois territórios que du-

rante longo período pertenceram às metrópoles espanhola e portuguesa,respectivamente. Suas fronteiras ainda que vagas ou imprecisas já eramexpressas nos mapas cartográcos da época. Os limites pactuados nostratados do período colonial serviram como referência geopolítica nadelimitação posterior dos territórios nacionais. Com a emancipação dosantigos domínios latino-americanos vastos espaços foram incorporados,sobretudo, àqueles projetados para uma apropriação futura, os chamados

1 – Doutora em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Estágio do Pós--Doutorado na FFLCH/USP.

161

Resumo:

O desfecho favorável ao Brasil no conito coma Argentina, em 1895, impulsionou o governo brasileiro a buscar uma solução para outra con-

trovérsia territorial, a xação dos limites com aGuiana Francesa. Deste modo, a contenda foiconada novamente a José Maria da Silva Pa-ranhos Junior, o Barão do Rio Branco, que jáhavia defendido os interesses do governo brasi-leiro. A controvérsia territorial envolveu aindadiversos personagens, tais como Henri Coudre-au, Francisco José de Santana Neri, Antônio dePaula Freitas e Emílio Goeldi, além de institui-ções, do porte da Sociedade de Geograa do Riode Janeiro.

 Abstract:

The favorable outcome for Brazil in the conictwith Argentina in 1895 propelled the Brazilian government to look for a solution to another

territorial dispute: establishing the frontier with French Guiana. Once again this was again en-trusted to José Maria da Silva Paranhos Junior,the Baron of Rio Branco, who had previouslydefended Brazilian government interests. Theterritorial dispute also involved important per- sonalities and institutions, such as Henri Cou-dreau, Francisco José de Santana Neri, Antoniode Paula Freitas, Emilio Goeldi and the Geo- graphical Society of Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Amapá. Limites brasileiros.Século XIX.

 Keywords: Amapá. Brazilian limits. Nineteenthcentury

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LUCIENE CARRIS CARDOSO

“fundos territoriais”. Além disso, a extensão espacial, partilhada entreas metrópoles, havia sido plenamente absorvida ao projeto colonial de

ocupação e de exploração econômica. Após a independência, o Estado brasileiro assumiu o regime de governo da sua ex-metrópole, bem como oseu patrimônio territorial, herdando áreas de fronteiras incertas ou zonasfronteiriças, a exemplo do território litigioso com a Guiana Francesa.2 

Ao que tudo indica, no caso com a França pairava o fantasma de uma possível luta armada. Em carta dirigida ao ministro das Relações Exterio-

res, Carlos de Carvalho, o então ministro plenipotenciário do Brasil em

Paris, Gabriel de Piza, demonstrou apreensão com a possibilidade de umconito. Além disso, receava que tal impasse viesse abalar as relaçõesdiplomáticas e comerciais entre os dois países. Para o plenipotenciário, oGoverno francês conhecia profundamente a região contestada, portanto,a criação de uma nova comissão mista demarcatória seria desnecessária.3 

O território contestado pelo governo francês correspondia a umavasta área de soberania indenida em ns do século XIX. Tentativas ma-

logradas de ocupação francesa da faixa entre o Amazonas e o rio da Prataremontavam ao período colonial, quando se estabeleceu a França Antár -tica, de Nicolau Durand Villegaignon, no século XVI, na Baía de Guana-

 bara, e a França Equinocial, de Daniel de la Touche, senhor de La Ravar -dière, no Maranhão, no século XVII. Os dois episódios foram duramentecombatidos pelas forças portuguesas. Apesar de subjugados no litoral,os franceses conseguiram estabelecer sua primeira colônia em 1626, àsmargens do rio Sinamari, posteriormente transferida para ilha de Caiena,

um entreposto comercial francês na parte mais meridional na América.

Tempos depois, estabeleceu-se uma empresa mercantil de origemfrancesa, denominada Companhia do Cabo Norte, com objetivo de ex-

 plorar o litoral que margeava as Guianas. Genericamente a região que seestendia do delta do rio Orenoco até o norte do rio Amazonas foi denomi-

2 –  MORAES, Antonio Carlos Robert. Geograa histórica do Brasil : Capitalismo, terri-tório e periferia. São Paulo: Annablume, 2012, pp. 74-76.

3 –  AIH, Comissão de limites com a Guiana Francesa: ofícios e minutas. Ofício reserva-do de Gabriel de Piza a Carlos de Carvalho, 18 de fevereiro de 1895, lata 542, maço 1.

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MILITARES, DIPLOMATAS E CIENTISTAS  NO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DE LIMITES COM A GUIANA FRANCESA

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nada Guianas, e cada qual seria adjetivada com o nome de sua respectivametrópole de origem: Francesa, Inglesa, Holandesa e até mesmo brasi-

leira, esta última correspondia à região norte do atual Estado do Amapá.4

 

Entre os séculos XVI e XVII, viajantes e missionários se aventura-

vam pela região. Dispersos encontravam-se ainda os fortes militares e os postos de trocas franceses, ingleses, espanhóis, holandeses e portugueses.A região atraía recorrentemente escravos negros fugidos e soldados de-

sertores, que conviviam ao lado de sociedades indígenas, abastecida poruma economia local e conectada por um comércio uvial, assegurado

 pelo emprego das canoas que perfaziam os rios. Como se tratava de umaárea de fronteiras, as disputas territoriais dicultavam o controle efetivodaquela área, assim, os habitantes daquela região gozavam de uma certaliberdade e mantinham o comércio clandestino até então proibido pelo pacto colonial. Qualquer movimento externo em tais “fundos territoriais”causava apreensão por parte da metrópole portuguesa, havia o medo deuma possível invasão estrangeira ou até mesmo de uma insurreição es-

crava.5 Muito embora, por muito tempo, tivesse sido possível transpor

as fronteiras em busca de fugitivos e até mesmo conservar as relaçõescomerciais interfronteiriças.

Em suas origens, a Guiana Francesa foi ocupada na faixa costeira por missões religiosas, postos militares, unidades pesqueiras e criaçãode gado. A empreitada colonial deparou-se com vários empecilhos, comoo relevo acidentado, o subpovoamento, as epidemias, as pragas e as di-culdades de navegação. Faltava-lhes ainda capital para investimentos,

tecnologia e mão de obra que por muito tempo dicultou a ocupação e

4 –  ROMANI, Carlo. “A história entre o ocial e o lendário”, Antíteses, Londrina, UEL,vol. 3. n. 5, 2010, pp. 145-169.5 –  MORAES, Antonio Carlos Robert. Território na geograa de Milton Santos. SãoPaulo: Annablume, 2013, pp. 121-125. Como legado do passado colonial, o território

 brasileiro pode ser caracterizadoa como “território usado” ou como “fundos territoriais”.O primeiro corresponde a uma área efetivamente apropriada. Quanto ao segundo refere--se a determinados espaços da soberania nacional que não foram totalmente aproveitados

 pelo Estado. Neste último caso, situam-se os “sertões”, as “fronteiras” e os lugares ainda

sob soberania incerta, como uma herança típica do expansionismo luso-brasileiro no con-tinente.

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LUCIENE CARRIS CARDOSO

a colonização. A região ainda seria sacudida pelos ecos da Cabanagem,uma revolta marcada pela grande participação popular que eclodiu na

 província do Grão-Pará entre 1835 e 1840. As suas origens remontam ao processo de independência do Brasil, o qual opôs defensores da emanci- pação e determinados setores da elite alinhados com o projeto recoloniza-

dor das Cortes portuguesas.6 

 Neste sentido, variadas eram as rotas de fuga para região que se am-

 pliaram com declaração de extinção denitiva da escravidão pelo Go-

verno francês em seus territórios coloniais e suas possessões em 1848, o

que por sua vez viria atrair uma massa de escravos fugidos do território brasileiro7. A região que corresponde ao Amapá seria povoada por umaleva cada vez maior de desertores, fugitivos e quilombolas. Não passavade um lugar de degredo também para aqueles indivíduos consideradoscriminosos pelo governo francês, a exemplo de Alfred Dreyfus, acusadode traição e condenado à prisão na Ilha do Diabo na Guiana Francesa.8 

Outro fato importante, a livre navegação no rio Amazonas, decre-

tada em 1867, fruto das pressões dos países capitalistas, possibilitou ainternacionalização do rio. Até então, a fronteira norte era praticamentedespovoada e de difícil acesso, a administração imperial conservava amesma política adotada em tempos coloniais, resistia às investidas dosfranceses e dos ingleses em direção ao rio Amazonas, restringindo a suanavegação. A promulgação do decreto de 1867 favoreceu a ampliação demovimentação de pessoas, embarcações e mercadorias, ao mesmo tempoque aumentou a concorrência comercial e econômica dos países estran-

6 –  ENGEL, Magali Gouveia. “Cabanagem”. In: Ronaldo Vainfas (org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, pp. 104-105.7 –  Em 1794, depois da Revolução Francesa (1889), a escravidão foi decretada abolidanos territórios coloniais e nas possessões francesas. Em 1802, Napoleão Bonaparte resta-

 belece o sistema servil, tornando-se denitivamente extinta somente em 1848.8 – Alfred Dreyfus, ocial do Exército francês de origem judaica, foi acusado de es-

 pionagem pelo governo francês e sentenciado a uma pena na Ilha do Diabo em 1894.O episódio polêmico conhecido como “Caso Dreyfus”, que dividiu a França no nal do

século XIX, foi mascarado pela onda de xenofobia e de nacionalismo que se irradiou pelocontinente europeu.

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MILITARES, DIPLOMATAS E CIENTISTAS  NO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DE LIMITES COM A GUIANA FRANCESA

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geiros na região.9 Inserido no processo expansionista e neocolonialistaem curso, o Brasil constituía peça importante no jogo de interesses das

 potências europeias na América Latina, acrescido pela entrada dos Es-tados Unidos que despontava o seu destino manifesto como potência eapregoava a Doutrina Monroe. Neste cenário de corrida por novas áreas para exploração e para investimentos capitais, o Brasil atraía a atençãodas grandes potências.

 Não por acaso, o Barão do Rio Branco consideraria a questão doAmapá mais complexa do que a de Palmas e decidiu, portanto, centralizar

o problema no rio Oiapoque, demonstrando que o mesmo se tratava do rioVicente Pinzón10. Afastava, assim, a pretensão francesa para outro cursode rio da região e que correspondia a uma área de quinhentos mil quilô-

metros, maior que o território do Amapá. Desde o século XVII, Portugale França vinham disputando as terras do contestado. Entre os séculosXVIII e XIX foram rmados variados tratados entre as principais naçõesdaquela época e a Amazônia sucessivamente era o motivo da cobiça. OTratado de Utrecht de 1713 e o Ato Final da Convenção de Viena de 1815

determinavam que o limite entre a Guiana Francesa e a colônia portu-

guesa era o rio Oiapoque ou rio Vicente Pinzón, como era denominado pelos franceses. O formalismo jurídico destes acordos não foi capaz defrear as ambições imperialistas das potências europeias, a proximidadedas colônias francesas e inglesas transferia as rivalidades e a dinâmica doequilíbrio do Velho Continente para a região. Deste modo, a única formade o Governo francês de controlar as terras às margens do Amazonas seria

colocar em dúvida a localização do rio Oiapoque mais ao sul, designadonos mapas como Araguari, desaguando no oceano Atlântico. A contesta-

ção se situava em uma região banhada pelo mar e localizada entre doisrios litigiosos, da nascente principal do Araguari seguindo até a margem

9 –   QUEIROZ, Jonas Marçal de Queiroz; GOMES, Flávio. “Amazônia, fronteiras eidentidades: recongurações coloniais e pós-coloniais (Guianas, séculos XVIII-XIX)”,

 Revue  Lusotopie, Bordeaux, 2002, n.1, pp. 25-49.10 –  Navegador espanhol que acompanhou Cristóvão Colombo na histórica viagem dedescobrimento da América. Vicente Yañez Pinzón foi um dos primeiros navegadores a

 percorrer o litoral norte do Brasil, alcançando a foz do rio Amazonas, apelidado de Mar Dulce ou mar doce.

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esquerda do rio Branco. Além disso, as duas nações tentaram resolver oconito por meio de comissões mistas demarcatórias de reconhecimen-

to do território sem muito sucesso. No palco das negociações, há de sedestacar a participação de uma das guras notáveis da política imperial,Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai.

Em 1887, a chancelaria brasileira anunciava a retomada das nego-

ciações relativas às demarcações de limites com as Guianas Francesa,Inglesa e Holandesa, paralisadas há muitos anos.11 Entretanto, somenteem 1892, as negociações foram realmente formalizadas. Em 1895, em

virtude de um novo tratado, restabeleceu-se a atuação do consulado bra-sileiro em Caiena. Além disso, por ocasião dos sucessivos conitos, deli- berou-se, ainda, a criação de uma comissão mista com efeitos de políciana região.12 Mas antes do comitê misto, em 1895, há o registro de ummemorial do capitão Filinto Alcino Braga Cavalcanti, que realizou umaexpedição pelo rio Araguari.

A sua missão fora designada para investigar a possibilidade do esta-

 belecimento de colônias de acordo com as instruções do governo da cha-mada Guiana Brasileira. Na ocasião, empreendeu o levantamento geo-

gráco e descritivo, ressaltando a ocupação daquela região com intuitode refutar as alegações francesas. Como resultados de suas investigações,criticou o mapa publicado na Sociedade de Geograa de Paris em 1892.A carta organizada por J. Hansen reduzia as Guianas Inglesa e Francesasuprimindo os detalhes dos rios do Maroni e Oiapoque, alterando o cur -so deste último rio. Também censurou o traçado do rio Mapari por ele

também explorado. Além das críticas ao mapa, se ateve na descrição daGuiana Francesa. Em relação ao Amapá, constatou se tratar da área maisrica da região contestada. Para provar sua premissa examinou a economialocal e averiguou a exportação de gado, borracha e peixe, por exemplo.

11 –  MRE, “Limites com a Guiana Francesa”. Relatório do Ministério das Relações Exte-riores, 1887, p. 15. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1602/000013.html Aces-so em 20 de abril de 2013.12 –  MRE, “Guyana Francesa”. Relatório dos Ministério das Relações Exteriores, 1895,

 p. 44. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1610/000074.html Acesso em 20 deabril de 2013.

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Sobre o rio Araguari e seus auentes promoveu também um breve relatogeográco.13 Os resultados da exploração no rio Araguari de Braga Ca-

valcanti foram utilizados, posteriormente, pelo Barão do Rio Branco parafundamentar a memória brasileira.14 Logo em seguida, uma nova missãofoi preparada, desta vez, com a participação do cientista suíço EmílioGoeldi.

O naturalista e zoólogo suíço, naturalizado brasileiro, Emílio Augus-to Goeldi especializou-se em zoologia no país natal. Depois de formado,viajou para Itália e Alemanha. Na cidade de Nápoles, frequentou a Sta-

zione Zoológica, onde desenvolveu estudos ornitológicos e ictiológicos. Na Alemanha, permaneceu por um período nas universidades de Jena e deLeipizig. Em Jena, trabalhou como assistente de pesquisa do célebre zoó-

logo e evolucionista Ernst Häckel no Zoological Institute. Doutorou-seem 1884, e em seguida ingressou como professor universitário na cidadede Jena. No mesmo ano veio ao Brasil, a convite de Ladislau de SouzaMello Netto, diretor do Museu Imperial e Nacional, para trabalhar na Se-

ção de Zoologia. Permaneceu na instituição por cinco anos desenvolven-

do estudos signicativos sobre répteis, mamíferos, aves, insetos, aranhase crustáceos. No âmbito da zoologia agrícola, investigou as pragas queassolavam a agricultura no Brasil, em especial os cafezais. Participou dacomissão encarregada de organizar as coleções cientícas para Exposiçãode Paris em 1889.

Com o advento da República, desligou-se do Museu Nacional. Emseguida, associou-se ao seu sogro Carl Eugen Meyer na administração de

uma colônia de imigrantes suíços em Teresópolis. Sem muito sucesso, achamada Colônia Alpina da Serra dos Órgãos encerrou as suas atividadesem 1892. No período em que viveu naquela região, se dedicou ao estudoe à pesquisa da fauna da Mata Atlântica, além de realizar o intercâm-

 bio com cientistas estrangeiros e com instituições cientícas, do porte da

13 –  AIH, Limites com a Guiana Francesa: Exploração do rio Araguari e outros, FilintoAlcino Braga Cavalcanti, lata 540, maço 1.

14 – MRE, Obras do Barão do Rio Branco IV : questões de limites Guiana Francesa, se-gunda memória. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2012, pp. 75-76.

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Zoological Society of London e da British Ornitholgists Union, além de publicar as obras conhecidas Os Mamíferos do Brasil  (1893) e  As Aves

do Brasil  (1894). Em 1894, recebeu um convite do governador do ParáLauro Sodré para organizar o Museu Paraense, existente desde 1866, mas pouco ativo. Além de contratar uma equipe de cientistas e de técnicos,transformou a instituição num centro de pesquisa cientíca nos moldesdos museus de história natural da época, inserindo a região amazônica nocircuito cientíco internacional.15

Logo após a sua nomeação como diretor do Museu Paraense, o cien-

tista suíço Emílio Goeldi recebeu uma nova incumbência do governo doPará, Lauro Sodré, e do ministro das relações exteriores, Carlos Carvalho.Mais uma vez argumentava-se o desconhecimento brasileiro sobre aquela parte do território: ele e outros cientistas do Museu realizaram duas incur -sões entre 1895 e 1896, pela região do Amapá e a foz do rio Amazonas, ealegava-se que os franceses possuíam um conhecimento superior sobre aregião do que os nacionais. Na primeira expedição, o cientista empenhou-

-se no levantamento geográco e socioambiental da região litigiosa, além

de averiguar os conitos que tiveram lugar naquele ano. As informaçõeslevantadas foram reunidas em dois relatórios ociais entregues ao mi-nistro e ao governador. Naquela oportunidade, refutou os argumentosdo explorador francês Henri Coudreau, que defendia a existência de um população desejosa em se tornar francesa. Quanto à segunda expedição,desenvolveu levantamentos geográcos, botânicos e arqueológicos. O re-

15 –  Em 1895, inaugurou o Parque Zoobotânico do Museu Paraense, com objetivo de

mostrar a fauna e ora regionais para educação e lazer da população. Um ano depois co-meçava a ser editado o periódico cientíco da instituição, o Boletim do Museu Paranaensede História Natural e Etnograa, existente até os dias de hoje. Envolveu-se também naluta contra a febre amarela, mobilizando a instituição para identicar as espécies de mos-quitos e moscas associadas à transmissão de doenças da região amazônica. Durante a suaadministração, o Museu Paraense ganhou renome internacional e desenvolveu pesquisasem diversos campos das ciências, a exemplo da geograa, da geologia, da climatologia,da arqueologia e da etnologia. Foi defensor da preservação da cultura e da identidadeindígenas. Em 1907, com a saúde abalada pela malária, aposentou-se e regressou à Suíça,onde foi admitido como professor de zoologia na Cantonal University, e de zoogeograa e

 biologia animal na Universidade de Berna. Sobre a trajetória de Emílio Goeldi, ver SAN-

JAD, Nelson. Emílio Goeldi (1859-1917): a aventura de um naturalista entre a Europa e oBrasil. RJ: EMC Edições, 2009.

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sultado dessas explorações consistiu na publicação de diversos estudosoriginais, entre 1896 e 1900, que compreendiam descrições geográcas,

descobertas de novas espécies botânicas, além do exame da formaçãogeológica, caracterização dos tipos indígenas da região, produção car -tográca e fotográca, entre outros aspectos.16 Assim como Braga Ca-

valcanti, Goeldi também enfatizou as riquezas naturais então disponíveisna região disputada até os limites do rio Oiapoque, o que legitimava asalegações brasileiras sobre o seu direito sobre a parte litigiosa.17

De todo modo, dois anos depois, o tratado de arbitramento entre os

governos brasileiro e francês foi nalmente aprovado.18

  Neste acordo,estipulou-se o protocolo para criação de uma nova comissão mista “des-

tinada a preparar os elementos necessários, para que, proferida a sentençaarbitral, se proceda de conformidade com ela à demarcação da fronteira”.A comissão mista iniciaria os trabalhos após o laudo arbitral da Confede-

ração Helvética. À esta época, o Barão do Rio Branco havia encaminhadoa memória em dois volumes com os mapas e os documentos ao árbi-tro.19 Integrariam a comissão mista, os militares Augusto Cunha Gomes

e Filinto Alcino Braga Cavalcanti, como primeiro e segundo comissáriosrespectivamente. Além do médico Luiz da França Marques Faria, dos en-

carregados Alfredo Leopoldo de Moura Ribeiro e Leopoldo Rodrigues deSousa, e o ajudante Elias Marinho de Albuquerque Uchôa.20

Além da exploração dos rios, caberia ao comitê misto a manutençãoda segurança do território neutralizado21, com intuito de impedir qualquer

16 – Nelson Sanjad, op.cit , pp. 60-69.17 –  AIH, Relatório de Emílio Goeldi a Lauro Sodré, 29 de janeiro de 1896, lata 542,maço 03.18 –  MRE, “Guyana Francesa: Tratado de arbitramento para xação de seus limites como Brasil”. Relatório dos Ministério das Relações Exteriores, 1897, p. 234. Disponível emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1612/contents.html Acesso em 21 de abril de 2013.19 –  MRE, “Limites com a Guyana”. Relatório dos Ministério das Relações Exteriores,1898, p. 21. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1780/000040.html Acesso em21 de abril de 2013.20 –  MRE, “Limites com a Guyana”. Relatório dos Ministério das Relações Exteriores,1899, p. 40. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1781/000059.html Acesso em

21 de abril de 2013.21 –  O território neutralizado correspondia aos vilarejos de Amapá, Calçoene, Cassiporé,

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episódio que comprometesse a decisão do árbitro e as relações diplomá-

ticas entre os dois governos. Para tanto, um documento fora organizado

 para orientar os trabalhos da comissão brasileira. De acordo com as ins-truções secretas:

Essa missão tem por objeto a conservação da ordem e da tranquilidadeno território neutralizado durante o processo de arbitramento e porisso se estipula nas instruções ostensivas que os primeiros comissá-

rios se conservarão no lugar onde se estabelecer a sede da comissão.As administrações locais constituídas em consequência do regime deneutralização do território litigioso continuarão a ser toleradas, mas a

comissão exercerá sobre elas a inuência com o concurso dos gover -nos do Estado do Pará e da Guiana, os quais pela autoridade dos seusconselhos persuadirão sem dúvida os seus nacionais a se conforma-

rem com os da comissão.22

O documento ainda deliberava sobre os trabalhos de campo a seremcumpridos pela comissão. Previa-se a exploração do território e o levan-

tamento de plantas dos rios intermediários. A comissão realizou com su-

cesso a segunda missão relativa à segurança da região. Os trabalhos dedemarcação de limites foram suspensos, uma vez que de acordo com asentença arbitral do governo suíço a fronteira seria formada basicamente pelo rio Oiapoque, excluindo a obrigação da exploração de outros rios.Depois da decisão arbitral, a comissão foi dissolvida temporariamente.23 

Porém, ao que tudo indica, até 1912, a fronteira não foi efetivamente de-

marcada, conforme consta no relatório anual do Ministério das RelaçõesExteriores.24 Somente entre 1955 e 1962, os trabalhos técnico-geográcos

Uaçá, Arucauá e Curipi.22 –  AIH, Limites com a Guiana Francesa. Missão Francesa: Instruções secretas, reserva-das e ostensivas, 1897, lata 545, maço 04.23 –  MRE, “Limites com a Guyana Francesa: Sentença proferida pelo Conselho Fede-ral Suíço”. Relatório dos Ministério das Relações Exteriores, 1900, p. 6. Disponível emhttp://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1782/000021.html Acesso em 21 de abril de 2013.24 –  MRE, “Resumo e estado atual das questões de limites do Brasil (30 de abril de 1912):

Guyana Francesa”. Relatório do Ministério das Relações Exteriores, 1912, p. 05. Dispo-nível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2313/000029.html Acesso em 22 de abril de 2013.

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foram reiniciados, quando foram colocados sete marcos ao longo da fron-

teira terrestre pela Serra Tumucumaque.25 

O Boletim da Sociedade de Geograa de l’Est, por exemplo, optou por rememorar a contenda. Assinalou que a reivindicação brasileira re-

montava ao período colonial, apesar do registro das negociações e dostratados assinados, a exemplo do Tratado de Utrecht de 1713, o ajustediplomático não apontava “o verdadeiro lugar de certas designações geo-

grácas”. Ressalvava ainda que em 1856, o governo brasileiro ofereceumetade do território reivindicado, porém, o governo francês reivindicava

uma extensão maior do território. Por esta razão, um novo acordo foiestabelecido, em 1883, entre as chancelarias francesa e brasileira. O pre-

sidente do conselho de ministro, José Maurício Wanderley, o Barão deCotegipe26, foi incumbido de regular as contestações entre o Brasil e dosdemais países vizinhos, tendo como parâmetro “(...) ao Brasil o que seacha já sob a inuencia brasileira; a nação limítrofe o que está sob a suainuência; quanto às zonas neutras, partilha amigável depois do estudode uma comissão mista.”27

 A divulgação de memórias e/ou livros que trazia à baila informaçõessobre os recursos naturais existentes, a população, os aspectos políticose econômicos estava na pauta dos periódicos das sociedades geográcaseuropeias. Neste sentido, a Sociedade de Geograa de Lille apontou osmotivos para a ampliação das relações comerciais da França com o Brasil:

25 –  SILVA, Gutemberg de V. e RÜCKERT, Aldomar A. “A fronteira Brasil-França”,Conns: Revista Franco-Brasileira de Geograa  [Online], n. 7, 2009. Disponível emhttp://conns.revues.org/6040 Acesso em 23 de abril de 2013.26 –  José Wanderley Pinho, o Barão de Cotegipe, notabilizou-se como político e diploma-ta durante o regime imperial. Encabeçou diversos ministérios, foi presidente do Conselhode Ministros e do Brasil. Envolveu-se em inúmeras questões políticas que sacudiram oImpério brasileiro. Negociou o Tratado de Assunção em 1872, que encerra a Guerra daTríplice Aliança. Além de relatórios e discursos, foi autor da obra Apontamentos sobre oslimites entre o Brasil e a República Argentina, publicada em 1882, resultado de sua ex-

 periência nas questões fronteiriças com a Argentina como ministro da pasta dos Negócios

Exteriores em dois períodos: 1875-1877 e 1885-1888.27 – SGRJ, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 3, n.1, 1887, p. 74.

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(...) O Brasil atrai hoje mui particularmente a atenção do mundo co-

mercial e nanceiro. Sua situação magnica, o imenso desenvolvi-

mento das suas costas no Atlântico, a fertilidade de muitas de suas províncias, suas inúmeras riquezas naturais, o sucesso repentino e po-

deroso de certos produtos, e o lugar que eles ocupam nos mercadosdo mundo inteiro, a felicidade que teve de encontrar uma forma degoverno, e um príncipe, que há longos anos, lhe têm assegurado paze prosperidade, por entre as revoluções dos países vizinhos, o porvircerto que muitos lhe auguram e as especulações, que se fazem poreste porvir, todas estas coisas excitaram a curiosidade dos viajantes,dos economistas e dos nanceiros e determinaram numerosas e sérias

investigações sobre os seus recursos, e o melhor meio de utilizá-los28.

Se por um lado, o Governo brasileiro buscava desenvolver aquela parte do território atraindo investimentos e promovendo a imigração, so-

 bretudo europeia, por outro lado, tal publicidade causava a cobiça e a con-

corrência das grandes potências. Em ns dos Oitocentos, os conitos entre brasileiros e franceses se perpetuaram. A proclamação de uma repúblicalocalizada entre os rios Oiapoque e Araguari, correspondente ao território

contestado entre o Brasil e a Guiana Francesa, viria a instigar ainda maisa situação. As notícias sobre a instalação da República de Cunani, sob a presidência de Jules M. de Gros, então redator do periódico Explorateur  e um dos fundadores da Sociedade de Geograa Comercial de Paris29,

com a suposta colaboração do geógrafo francês Henri Coudreau, foram

28 –  SGRJ, “As condições presentes no Brasil”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 4, n.

1, 1888, p. 65.29 –  Não é demais registrar que a origem das sociedades geográcas relaciona-se com oexpansionismo europeu na África e na Ásia. A crescente importância das questões econô-micas no continente africano estimulou o surgimento da bandeira comercial com a apro-ximação de empresas comerciais. Em Paris, a seção comercial da Sociedade de Geograatornava-se independente em 1871. Logo em seguida, surgiam as sociedades de geograacomercial em Bordeaux (1874), Nantes (1882) e Le Havre (1884), por exemplo. Nestascidades, proprietários, comerciantes e câmaras de comércio defendiam a geograa “deserviços públicos e comerciais”. O conteúdo dos seus relatórios e boletins reetia estaorientação. As questões abordadas sobre o continente africano apontavam para a constru-ção de ferrovias, navegação em rios, rotas de comércio, produção econômica local, etc.

Sobre o assunto ver CAPEL, Horácio. Filosoa y Ciencia em la Geograa Contempora-nea. España: Editorial Barcanova, 1998.

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divulgadas nos periódicos de repercussão regional e nacional.30 Coudreau

defendia a sua criação, armava que os habitantes da recém-criada nação

almejavam permanecer sob a égide do Governo francês, pois não se iden-ticavam com o Brasil, segundo um plebiscito organizado por ele. O geó-

grafo Henri Coudreau se envolveria em outras polêmicas sobre a regiãocontestada entre o Brasil e a França com o Governo brasileiro.

Antes de Coudreau, outros desbravadores franceses viajaram pelaregião amazônica, a exemplo do médico naval Jules Crévaux. A regiãoque compreendia o território litigioso não atraía apenas aventureiros, de-

sertores ou escravos fugidos. Nomeado para servir na Guiana Francesa,acompanhado do afrodescendente Apatou, da tribo Boni, um notório co-

nhecedor da região, o explorador francês pretendia alcançar a mítica Ser -ra de Tumucumaque. Considerado o pioneiro na exploração do rio Trom-

 betas, identicou seus auentes, saltos e igarapés. Veio a falecer em outraexpedição subsequente a um confronto com os índios Tobas às margensdo rio Pilcomayo na Argentina em 1882. Especula-se que toda a equipetenha sido vítima da prática do canibalismo. Ao todo, Crévaux realizou

quatro expedições: entre 1876 e 1877 pela interior da Guiana; entre 1878e 1879, da Guiana aos Andes; entre 1880 e 1881, da Nova Granada (Co-

lômbia) até Venezuela e entre 1881 e 1882 pelo Grão Chaco, patrocinado pelos governos argentino e boliviano, tais investigações foram reunidasno livro Voyages dans l’Amérique do Sud .

Formado pela École Normale de Cluny em 1877, lho de pais agri-cultores, Henri-Anatole Coudreau ingressou como docente de geograa e

história na École Professionale de Reims por um curto período de tempo.Acompanhado de sua esposa Marie Octavie Coudreau, companheira devárias expedições, veio para a região amazônica em 1881, aos 21 anos deidade, estabelecendo-se em Caiena como professor de um liceu local. Em1883, publicou um trabalho intitulado Richesses de la Guyenne Françai- se, que viria a ser premiado com uma medalha na Exposição de Amster -dam. Neste mesmo ano, por intermédio de Charles Maunoir, secretário

30 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 3, n. 3, 1887, p. 218.

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LUCIENE CARRIS CARDOSO

da Sociedade de Geograa de Paris, Coudreau, a serviço do Ministérioda Marinha e das Colônias, excursionou pela região contestada entre a

Guiana Francesa e o Brasil entre 1883 e 1884. Seguiram-se outras duasexpedições entre 1887-1889 e entre 1889-1891, e ao m de cada viagemrealizada, Coudreau organizou um livro referente com os resultados dassuas investigações.31 Há ainda o registro de uma correspondência de Cou-

dreau ao Imperador D. Pedro II no nal do Império. Em 1884, o jovemexplorador apresentou os objetivos de sua missão na Guiana Francesae ao sul da Amazônia. Informava que dava prosseguimento aos estudosarqueológicos, paleontológicos e linguísticos das sociedades indígenas

iniciados na missão anterior. Além disso, pretendia examinar a situaçãosocioeconômica dos habitantes daqueles povoados. Para tanto, solicitavaao monarca uma embarcação capaz de superar as diculdades da nave-

gabilidade dos rios da bacia amazônica.32 A resposta veio do ministro dos Negócios Exteriores Francisco Carvalho de Soares Brandão, que comu-

nicou a impossibilidade da cessão por parte do serviço público de umaembarcação daquela natureza.33

A defesa da Guiana Independente ou da Nova Guiana, como era no-

meada pelos franceses, apareceu de maneira consistente em  La France Équinoxiale,  de Coudreau, como resultado das expedições realizadasdesde que aportou naquela região. A obra foi dividida em três volumes: Etudes sur les Guyanes et l’Amazonie, publicada (1886), Voyages à tra-vers les Guyanes et l’Amazonie (1887), encerra a coleção um atlas. A pes-

quisa de Coudreau fundamentou Vidal de la Blache na defesa francesa no

Tribunal Arbitral de Berna no litígio franco-brasileiro.34

 A última década31 – Aperçu générale des Tumucu-Humac (1893); Chez nos Indiens: quatre années dansla Guyane Française, 1887-1891 (1893); Dix ans de Guyane (1897); Etudes sur les Guya-nes et l'Amazonie (1886); L’Amazonie (1886);  La France Equinoxiale (1887);  Le terri-toire contesté entre la France e le Brésil  (1885); Les Français en Amazonie (1887); Unhivernage sous l’Equateur, Guyane centrale, 1889-1891 (1891); Voyage à Itaboca et àl’Itacayuna (1898).32 –  AIH, carta de Henri Coudreau ao Imperador, sem data, Manaus, lata 543, maço 03.33 –  AIH, carta do ministro Soares Brandão a Henri Coudreau, Rio de Janeiro, 10 demarço de 1884, lata 543, maço 03.

34 –  O litígio somente acabaria após a pendência jurídica defendida na Suíça entre PaulVidal de La Blache para a França e o Barão do Rio Branco, ganha por este último para

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dos Oitocentos foi um período bem movimento para o jovem exploradorfrancês. Viajou cerca de 2.600 quilômetros em rios, 1.400 em montanhas,

marchou a pé utilizando bússolas e sabres para abertura de picadas, ge-ralmente acompanhado de dois ou três índios. Em uma dessas viagens,seguiu escoltado pelo mesmo guia local que acompanhara Crévaux emsuas expedições.35

Armando-se como um explorador autodidata, Coudreau destacou-

-se como geógrafo, historiador, zoólogo, botânico, etnógrafo e linguista,adquiriu conhecimento suciente das línguas das sociedades indígenas da

região. Organizou uma cartograa precisa da Serra Tumucumaque e os principais rios do norte da Amazônia. Defendia que o controle do espaço pressupunha um conhecimento preciso da região litigiosa, principalmenteda parte contestada pela Guiana Francesa e pelo Brasil. Além de publicardiversas obras importantes sobre a região, principalmente sobre as socie-

dade indígenas, Coudreau pretendia convencer as autoridades francesesda importância da região para emigração europeia e da viabilidade daexploração econômica, defendia a utilização da mão de obra indígena e

negra em atividades agrícolas e extrativistas. Com a intenção de compro-

var a existência de sociedades indígenas no vale amazônico, no boletimda Sociedade de Geograa de Paris, o geógrafo anunciou a existência decinquenta e três sociedades indígenas na Guiana Francesa, cerca de cin-

quenta mil indígenas. Instituições brasileiras também se envolveram nadisputa, a exemplo da Sociedade de Geograa do Rio de Janeiro, cujo pe-

riódico ocial veiculava notícias sobre as atividades de Henri Coudreau

naquele território como explorador, bem como reproduzia as alegaçõesque eram continuadamente publicadas em periódicos estrangeiros.36

o Brasil, decisão denitiva raticada pelo Tribunal Arbitral de Berna, em dezembro de1900.35 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 3, n. 3, 1887, p. 218.36 –  Criada em 1883, a Sociedade de Geograa do Rio de Janeiro dedicou-se no reco -nhecimento, levantamento e sistematização dos recursos naturais e de dados sobre a

 população brasileira. Preocupada com a integridade territorial, a instituição incentivou ex- plorações a regiões remotas e publicou memórias descritivas sobre os rios que compõem ahidrograa brasileira. Alguns destes rios servem como fronteiras naturais de vários países

da América do Sul. Aliás, o processo de demarcação das fronteiras brasileiras envolveua controvérsia de suas reais localizações e das distintas denominações que recebeu pelas

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Aliás, comprometida com a investigação de temas nacionais, a pro-

 blemática da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa começou a ser

veiculada na seção “Noticiário” da Revista da Sociedade de Geograado Rio Janeiro a partir de 1886. Dos periódicos das sociedades congêne-

res europeias, que eram diariamente recebidos, selecionavam-se notícias pelo redator da Revista. Em algumas ocasiões eram resumidas e comenta-

das. Em relação à região amazônica, o discurso denunciava os interessesexpansionistas europeus, bem como as rivalidades interfronteiriças entreos países latino-americanos, o que incitava o patriotismo entre seus as-

sociados.

 Na região litigiosa entre a Guiana Francesa e o Suriname haviamsido encontradas ricas jazidas de ouro. Por esta razão, Coudreau vislum-

 brava a possibilidade de explorar tais depósitos. Segundo uma notícia publicada no Boletim da Sociedade de Geograa Comercial de Bordeaux, 

a descoberta vinha (...) atraindo a atenção de aventureiros e causandoalguns conitos.37 Em sua obra Études sur les Guyanes et l’Amazonie, o

geógrafo francês esclarecia que os habitantes encontravam-se dispersos

em seis capitanias, somando uma população estimada em mil e quinhen-

tas pessoas, cuja idioma principal era o português, mas relatou o uso dodialeto crioulo francês de Caiena. Apesar da efêmera duração, a Repúbli-ca foi extinta pelo Governo francês 1887, mas a sua implantação contri- buiu para divulgar e ampliar sentimentos patrióticos em relação àquelecantão do território brasileiro. Em 1890, Jules Gros pretendia restabelecera República de Cunani, argumentava que o Governo brasileiro não fazia

objeção à ocupação do território pela França, então, reivindicava a posseda margem direita do rio Carsevena.38

metrópoles espanhola e portuguesa no período colonial. Constituindo alvo de inúmerasdisputas e debates, tais episódios eram noticiados e insuavam os sentimentos patrióticosde seus associados. Sobre a trajetória da Sociedade, ver CARDOSO, Luciene PereiraCarris. O lugar da geograa brasileira: a Sociedade de Geograa do Rio de Janeiro entre1883 e 1945. São Paulo: Annablume, 2013.37 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 3, n. 2, 1887, p. 67.

38 –  SGRJ, “O território de Cunani”, Revista da SGRJ, Rio de Janeiro , t. 6, n. 3 e 4, 1890, p.169.

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As notícias sobre a fundação da “pseudorrepública”, “improvisadarepública” ou “Guiana independente” de Cunani rechearam as páginas

dos boletins da Sociedade. Geralmente satírica, a comissão da redaçãocomentava as notícias extraídas de periódicos europeus. Em retrospecto,relatou que a região havia sido alvo de disputa de diversos povos. Os por -tugueses quiserem impor um principado, os poloneses pretendiam estabe-

lecer uma “Nova Polônia”, os ingleses tentaram fundar uma estação navale os norte-americanos pretendiam desenvolver estudos hidrográcos. De-

 pois de criada, o presidente Jules Gros nomeou um gabinete e criou umacondecoração especial, a Estrela de Cunani, e curiosamente estabeleceu a

sede do novo governo em Vannes, nos arredores de Paris.39

Devido à intensa propaganda da imigração francesa na região doAmapá, no Brasil buscou-se também promover a ocupação da área pornacionais em 1891. A ideia partira do chefe da comissão da coloniza-

ção da então chamada Guiana Brasileira, o capitão Felinto Alcino BragaCavalcante, que percorreu o rio Araguari. A discussão ainda envolveu ogovernador do Pará, Justo Leite Chermont, que elaborou um projeto de

colonização brasileira. Demandava o estabelecimento de um orçamentoespecíco destinado ao seu plano, bem como a ampliação da navegaçãoentre Amapá e Caiena, com intuito de estreitar o comércio e impulsionara exportação de gado da Ilha de Marajó. Além disso, previa a abertura deuma estrada entre Óbidos e Campos Gerais, nas proximidades da GuianaInglesa. Podemos inferir que a importância dada à agricultura e à pecuáriainseria-se na constatação de que o extrativismo não promovia a xação

dos indivíduos ao solo e possuía um potencial de destruição dos recursosnaturais da região, liando-se a um projeto civilizador que se opunha aoextrativismo.40 Para Chermont, era fundamental:

aliciar colonos cearenses e de outros Estados da União, mas somente brasileiros, oferecendo-lhes vantagens para se estabelecerem nas co-

39 –  SGRJ, “A pseudorrepública de Cunani”, Revista da SGRJ, Rio de Janeiro, 1891, t. 7,n. 3, 1891, p. 224.40 –  COSTA, Kelerson. “Intervenções humanas na natureza amazônica (século XVII ao

XIX)”.  Revista Ciência e Ambiente, UFSM, História agrária e ambiental, vol. 33, jul.-dez., 2006.

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lônias que se fundarem nas fronteiras e na linha do território em litígiono maior número possível. Os colonos se ocuparão na lavoura do ca-

cau e do café, que já existe nesse região, explorando todos os pontosainda não conhecidos e estendendo a linha das colônias nacionais pelosul das Guianas Holandesa e Inglesa.41

Outra notícia foi extraída do periódico da Sociedade Royale de Geo-

graphie d’Anvers: tratava-se de uma memória do sócio-correspondenteda Sociedade de Geograa do Rio de Janeiro, o vice-cônsul A. Baguet,sobre o território contestado entre o Brasil e a França de autoria. Naquelaoportunidade, o vice-cônsul teceu comentários a respeito de um artigo publicado por Francisco José de Santana Neri, o Barão de Santana Neri,no Jornal do Commércio. Reconhecido especialista da região, o Barão,em seu trabalho, recordou o histórico do contestado franco-brasileiro àépoca das negociações de 1855, na ocasião, o governo francês refutou oacordo proposto por Paulino José Soares de Souza, o Visconde de Uru-

guai42. O diplomata belga compactuava com a política expansionista dogoverno da Terceira República Francesa. Além de enaltecer as potenciali-

dades dos recursos naturais, ressaltava que o território contestado possuíaum m estratégico, seria o destino para aqueles indivíduos considerados“indesejáveis” pela República Francesa. Por outro lado, ponderou sobre a possível eclosão de um conito armado. Neste sentido, recomendou certa prudência por parte do governo francês em relação as relações comer -ciais entre os dois países, uma vez que “(...) a França depende do Brasil pelos seus produtos fabricados; e este país pode procurá-los em outros pontos.”43 Armava ainda que, “(...) se a França recusou a proposta do

diplomata brasileiro, visou naturalmente outros ns mais altos.”44

41 –  AIH, Medidas propostas relativa ao território litigioso do Amapá. Ofício reservadode Justo Chermont ao Ministro da Agricultura, 05 de agosto de 1891, lata 454, maço 04.42 –  Sobre a trajetória do Barão de Santana Neri, Cf. COELHO, Anna Carolina de Abreu. Sant-Anna Nery: um propagandista “voluntário” da Amazônia (1883-1901). Dissertação(mestrado), Universidade Federal do Pará, 2007.

43 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 1, n.1, 1886, p. 44.44 – Idem.

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 Na medida em que se difundiam no Brasil os trabalhos do geógrafofrancês nos jornais locais e em outros periódicos, a imagem de célebre

geógrafo se transformava. Fora acusado pelas autoridades de Manaus deser agente político a serviço da França. Por esta razão, Coudreau decidiuse refugiar durante cinco meses entre os indígenas. Mas o afastamentonão foi em vão, pois naquele período em que conviveu entre as naçõesindígenas, examinou os seus costumes e os seus hábitos. Apesar de ar -gumentar que as suas incursões pela região amazônica não possuíssemns políticos, uma carta de um dos integrantes da expedição de Coudreauhavia sido publicada em solo francês, e divulgada também em terras bra-

sileiras, contrariava as suas proposições, pois armava “(...) que a expedi-ção tinha por objetivo de coletar documentos para esbulhar os brasileirosda margem esquerda do Amazonas.”45 Com o patrocínio nanceiro dogoverno francês ele realizou o mapeamento da região disputada, passan-

do inclusive a residir na vila de Cunani, um lugar estratégico duranteo período da corrida do ouro, onde se tentou fundar a citada repúblicaindependente.46 

 Na defesa da fronteira pátria, membros da Sociedade se manifesta-

ram, além de Antônio de Paula Freitas, dois estudiosos da região amazô-

nica: Torquato Xavier Monteiro Tapajós e Frederico José Santana Nery,o Barão de Santana Nery. O engenheiro Antonio de Paula Freitas, reda-

tor do periódico da Sociedade de Geograa, aproveitou as reuniões daentidade para questionar as pretensões francesas na área contestada noslimites com a Guiana, baseando-se na conhecida obra do diplomata Joa-

quim Caetano da Silva.47

 Ao reportar-se ao trabalho de Henri Coudreau, oengenheiro lembrava a partilha da África, então em curso, armando que“o Amazonas não é continente negro” e que um país não poderia anexar parte do outro somente para ter limites naturais: “(...) a palavra de ordem

45 –  NERI, Frederico José Santana. “O terreno contestado entre a França e o Brasil e amissão Coudreau”. SGRJ, Revista da SGRJ , t. 07, 1891, p. 211.46 –  SGRJ, “A pseudo-república do Cunani”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 7, 1891,

 pp. 224-225.47 –  SGRJ, “Ata da sessão de 22 de outubro de 1891”. Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t.

8-9, 1892-1893, p. 209; SGRJ, “Ata da sessão de 20 de maio de 1902”.  Revista da SGRJ, Rio de Janeiro, t. 15, 1903, p. 94.

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da França atual, da França de 1891 é a da expansão colonial, embora nãoseja dos mais gloriosos o papel daquela nação como potência colonial;

como amante da geograa e das viagens: as descobertas do século XVIforam feitas sem a participação da França.”48 

Além disso, o periódico da Sociedade de Geograa pretendia con-

tribuir trazendo novas informações sobre aquela parte do território commemórias, documentos ou artigos. Neste sentido, o engenheiro AntônioManoel Gonçalves Tocantins relatava uma memória da viagem empreen-

dida ao rio Trombetas. Na ocasião, ele destacou a opulência da fauna

e da ora, uma fonte inexorável de incalculável riqueza nacional.49

 Ou-tros sócios defendiam a intervenção imediata do Governo brasileiro pormeio da criação de um consulado em Caiena, com objetivo de reprimiras atividades francesas na região, evitando o contrabando e a propagandareligiosa.50 

Inicialmente grande admirador de Henri Coudreau, Santana Neri re-

digiu o prefácio da obra La France Équinociale: Études sur les Guyanes

et l’Amazonie51

, publicada em 1886, e posteriormente passaria a criticaras suas pretensões na região amazônica.52 Sócio-correspondente da So-

ciedade de Geograa, o Barão de Santana Neri despontou no cenário in-

telectual no Brasil e no exterior, sobretudo na França. Natural de Belémdo Pará, o Barão, descendente de uma abastada família da região ligadaao ciclo da borracha, iniciou seus estudos como seminarista em Manaus.

48 –  SGRJ, “Ata da sessão de 22 de outubro de 1891”. Revista da SGRJ , Rio de Janeiro,t. 8-9, 1892-1893, p. 216.49 –  Antônio Manoel Gonçalves Tocantins, “Exploração do rio Trombetas”.  Revista daSGRJ , Rio de Janeiro, t. 7, 1891, p. 8.50 –  REIS, José Agostinho dos. “O consulado em Caiena”. SGRJ, Revista da SGRJ , Riode Janeiro, t. 7, 1891.51 – COUDREAU, Henri. La France Équinoxiale : Études sur les Guyanes et l'Amazonie.Paris: Challamel Ainé, 1886. Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00433710#page/1/mode/1up Acesso em 25 de outubro de 2010.52 –  NERI, Frederico José Santana. op. cit . Em 1885, Santana Neri publicou na França a

obra Le pays des Amazones: l’Eldorado, les terres à Caoutchouc. O livro foi prefaciado pelo geógrafo francês Pierre Émile Levasseur, especialista em história econômica.

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MILITARES, DIPLOMATAS E CIENTISTAS  NO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DE LIMITES COM A GUIANA FRANCESA

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Em 1862, viajou para Paris, onde estudou no Seminário de SaintSulpice, formando-se em letras e ciências. Na Itália, doutorou-se em di-

reito pela Universidade de Roma em 1870. O título de barão foi con-cedido pelo Papa Leão XIII em reconhecimento à defesa dos interessesdo Vaticano. Depois de formado, radicou-se em Paris, onde projetou-secomo jornalista e escritor, participando de associações culturais e literá-

rias, construindo um círculo de amizades que incluía Victor Hugo, FranzLizt e o príncipe Roland Bonaparte. A convite de Júlio Constâncio deVilleneuve, o Conde de Villeneuve, ministro do Brasil na Suíça e um dosfundadores da Sociedade de Geograa do Rio de Janeiro, Santana Neri

ingressou como colaborador do periódico Jornal do Commercio.

Apesar de distante da sua terra natal, o Barão de Santana Neri man-

teve estreitos vínculos com a região amazônica, tornando-se o seu repre-

sentante ocial. Envolveu-se na criação da Associação Literária Interna-

cional, da Sociedade Internacional de Estudos Brasileiros e da Sociedadede Tradições Populares. Organizou a Revue do Monde Latin, bem comoidealizou a criação de uma sociedade paraense de imigração, incentivan-

do a imigração europeia para o Pará. Publicou diversas obras, tais como Les Pays des Amazones, Lé Brésil en 1889 e Flok-lore Brésilien. Retor -nou ao Brasil em 1882, quando recebeu diversos prêmios, inclusive amedalha da Ordem da Rosa pelo imperador D. Pedro II.

Subvencionado pelo governo imperial, Santana Neri difundiu a li-teratura brasileira no exterior, bem como procurou expor uma imagem positiva do Brasil e da América Latina por meio de suas publicações e

conferências. A este exemplo, em 1887, realizou uma conferência na So-

ciedade de Geograa do Rio de Janeiro sobre a população da Amazônia,sua riqueza e sua imigração. Com a participação do príncipe Conde d’Eue de outras guras políticas, Santana Neri discorreu sobre as potencia-

lidades da região para imigração estrangeira e para exploração de seusrecursos naturais, sem poupar críticas pontuais ao descaso governamentaldado àquela parte do território brasileiro.53 Compartilhava da visão das

53 –  NERI, Frederico José de Santana. “ O povoamento na Amazônia”. Revista da SGRJ ,Rio de Janeiro , t. 3, n. 3, 1887, pp.193-207.

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elites amazônicas, de que o processo modernizador da região amazônicaocorreria com a entrada maciça de imigrantes estrangeiros e nacionais.

A ideia recorrente era a de que a região amazônica apresentava um vaziodemográco.

Se do lado brasileiro, um dos defensores dos interesses nacionais naregião amazônica foi o já citado Barão de Santana Neri, em relação aosinteresses expansionistas franceses, o sábio Henri Coudreau certamentefoi um de seus expoentes. Segundo o Barão de Santana Neri, mais do querealizar explorações cientícas, o jovem Coudreau seria uma espécie de

agente político do governo francês na região. De todo modo, não seriaestranho pensar o contrário, uma vez que recebeu patrocínio do governa-

dor da Guiana Francesa para desenvolver estudos sobre a fauna, a ora,a geograa e o estudo das línguas das sociedades indígenas, a m deestabelecer a colonização francesa. Explorador de prestígio, ele circulavacom desenvoltura pelas sociedades geográcas europeias e pelas esferasdo Governo francês. Assim, com objetivo de comprovar a premissa, ci-tava dois episódios. O primeiro tratava-se de uma conferência realizada

na sala do Boulevard de Capucines e publicada no Petit Journal , no qualo jovem jornalista Henri Deloncle, integrante da organização nacionalis-ta “Ligue des patriotes”, revelava a facilidade de conquistar o territóriocompreendido entre o Cabo Verde e o Rio Branco. O segundo incidenteconsistiu na descoberta de uma missiva cifrada “inamada e bélica” es-

crita por um dos companheiros da missão Coudreau, Joseph Marie Roche,republicada no Boletim da Sociedade de Geograa Comercial de Paris.

Os dois episódios estremeceram momentaneamente as relações di- plomáticas entre os dois países, promovendo uma troca de explicações“agridoces” entre Jules Ferry, à época ministro das Relações Exteriores eo Barão de Itajubá, chefe da legação brasileira em Paris. Segundo Santana Neri, tais acontecimentos despertaram do “pesado sono as indiferençasdos estadistas brasileiros”. Apesar do comentário mordaz sobre as supos-

tas intenções de Coudreau, o Barão de Santana Neri realizou uma aprecia-

ção prosaica sobre a sua missão, comparando-a “às valentes epopeias dos primeiros conquistadores”. Como resultado de suas explorações na região

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amazônica, o geógrafo francês foi premiado com a medalha de ouro pelaSociedade de Geograa Comercial de Paris.54 

Outra notícia, desta feita, um extrato de uma conferência por HenriCoudreau realizada em Bordeaux, subtraída do periódico da SociedadeComercial de Bordeaux, versava sobre algumas de suas observações rea-

lizadas durante as explorações. Na ocasião, o geógrafo francês salientouas potencialidades naturais da área contestada, a possibilidade da imigra-

ção francesa. Sugeriu, ainda, que o Governo francês estabelecesse “uma proteção moral e econômica”, tendo em vista o pleno desenvolvimen-

to das casas comerciais existentes. Além disso, a competição inglesa efrancesa na região amazônica era marcante, muito embora destacasse a preponderância do comércio francês. Neste sentido, com o objetivo deampliar as relações com a Amazônia, anunciava a criação de uma associa-

ção especializada presidida pelo conde francês Ferdinand de Lesseps.55 

Responsável pela criação dos canais de Suez e do Panamá, o Conde deLesseps foi alvo das atenções do “Noticiário” da Revista. Na ocasião, foi publicada uma síntese de uma palestra realizada na Academia de Ciências

de Paris. O Conde trouxe informações sobre a região onde estava sendoconstruído o canal do Panamá.56

Do boletim da Sociedade de Geograa de Paris, uma síntese de umamemória do geógrafo francês foi publicada no periódico da congênere brasileira. Coudreau avaliou o desenvolvimento econômico, a adaptaçãodos imigrantes, a colonização e o surto de ideias autonomistas, além dis-

so, ressalvou o completo abandono da região pelo Governo brasileiro.57 

 Neste mesmo número, publicado em 1886, a Sociedade de Geograa doRio de Janeiro noticiou a memória L’éveil de économique de l’Amazonie,originalmente publicada no periódico Revue du Monde Latin. Tal publi-cação, idealizada pelo francês Charles de Tourtolon, circulou entre 1883 e1896. Tratava-se de uma revista histórica, literária, cientíca, econômica

54 – NERI, Francisco José de Santana. “Território contestado entre a França e o Brasil ea missão Coudreau”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro,1891, t. 7, n.3.55 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ, Rio de Janeiro, t. 2, n. 2, 1886, p. 115.

56 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 2, n. 2, 1886, p. 120.57 –  SGRJ, “Noticiário”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 2, n. 3, 1886, p. 314.

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e política, cujo objetivo constituía relatar os acontecimentos ocorridosnos diversos países latino-americanos.

 Não é demais destacar que dois representantes brasileiros compu-

nham o comitê da redação da  Revue, o Barão de Santana Neri e Domi-nique Horace de Barral, o Conde de Barral.58 A notícia relatava um con-

gresso de empresários franceses que ocorrera no Palácio do Trocadero,na Argentina. O certame foi dividido em quatro comissões encarregadasde ouvir e aprovar propostas. Um dos palestrantes foi o Barão de Santana Neri, que discursou sobre os países da América do Sul, em especial sobre

a região litigiosa entre a França e o Brasil.59

  Outro extrato da Revue du Monde Latin consistiu na publicação de uma coleção de cartas comerciaiseditada pela Livraria Chaix de Paris, então organizadas pelo engenheiro-

-geógrafo E. Bianconi. Tal compêndio visava divulgar as regiões consi-deradas importantes para o desenvolvimento agrícola e comercial, e umadas regiões escolhidas foi a área da bacia amazônica.60 

Entre 1893 e 1904, ocorreu uma troca de correspondência entre o

Barão do Rio Branco e o casal Coudreau. Ao que parece, havia uma es-treita relação entre Coudreau e Élisée Reclus. Em uma missiva de 1893,Coudreau comentou que Reclus aguardava alguns documentos que o Ba-

rão cara de enviar à Maison Hachette.61 Logo após o anúncio do laudoarbitral pelo presidente do Estados Unidos, o explorador francês ansiavaum encontro pessoal com Rio Branco, e este respondia com vivo interesseem saber quais constituíam os projetos de Coudreau.62 Já em janeiro de1898, às vésperas da derradeira expedição, o sábio francês demonstrou

novamente o mesmo entusiasmo para uma reunião,63 tanto assim que no

58 –  SANTOS, Maria José Ferreira dos. La revue du monde latin et le Brésil (1883-1896). Paris: Cahiers du Brésil Conteporain, 1994, n° 23-24, pp. 77-92.59 –  SGRJ, “ A República do Quanany. Noticiário”,  Revista da SGRJ , Rio de Janeiro,1886, t. 2, n. 4, p. 315.60 – Idem, p. 315.61 –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Henri Coudreau ao Barão de RioBranco, 26 de abril de 1893, lata 543, maço 03.62 –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta do Barão do Rio Branco a Henri Cou-

dreau, 09 de abril de 1895, lata 543, maço 03.63 –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Henri Coudreau ao Barão do Rio

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mês seguinte anunciava a organização de uma nova exploração ao Pará.64 

Já naquele Estado, informou que realizaria uma viagem exploratória até

o nal daquele ano.65

 Sem perder as esperanças de um possível encontro,Coudreau escreveu sua última carta ao Barão às margens do rio Tapajósem 1899. Nesta missiva, avisava que estava incumbido de uma missão pelo governo do Pará no alto Tapajós para estudar as sociedades indíge-

nas daquela região até o nal de janeiro. Como resultado de suas investi-gações, deveria entregar um relatório a Lauro Sodré, governador daqueleEstado. Em seguida, previa uma viagem ao Rio de Janeiro a m de obterautorização para uma nova expedição na região amazônica junto aos re-

 presentantes do Governo federal e do Pará. Adversamente, Coudreau não pôde concluir a missão, pois veio a falecer. Em 1904, quando o Barão jáocupava a pasta do ministério das Relações Exteriores, Octavie Coudreauencaminhou duas missivas solicitando uma audiência. Infelizmente, nãosabemos da resposta do então ministro, mas podemos supor que se tratavada viabilidade do traslado do corpo do Coudreau das terras brasileiras para sua terra natal, pois sabe-se que seus restos mortais foram transferi-

dos para o jazigo de sua família em Angoulome.

66

 

Seja como for, observou-se que instituições do porte da Sociedade deGeograa e intelectuais como Santana Neri acompanhavam as atividadesde Coudreau pela região litigiosa e na França. Não obstante, seus movi-mentos também eram observados com cautela pelos representantes doGoverno brasileiro. Em 1883, Runo Enéas Gustavo Leão, Visconde deMaracaju, presidente da província do Pará, anunciou a chegada de Cou-

dreau ao ministro na Corte imperial. O geógrafo francês apresentou-seformalmente ao representante do governo e justicou o objetivo de suamissão: tratava-se de uma expedição cientíca destinada ao estudo e aolevantamento de plantas, equivalente aos estudos já realizados por Cré-

Branco, 16 de janeiro de 1898, lata 543, maço 03.64 –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Henri Coudreau ao Barão do RioBranco, 19 de fevereiro de 1898, lata 543, maço 03.65 –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Henri Coudreau ao Barão do RioBranco, 29 de março de 1898, lata 543, maço 03.

66 –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco. Cartas de Octavie Coudreau, 03 de maio de1904 e 11 de maio de 1904, lata 543, maço 03.

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vaux e outros exploradores franceses. Devido aos rumores espalhados, oVisconde duvidava das reais intenções do jovem explorador, pois supu-

nha que ele recebera instruções reservadas do Governo francês. Segundoas notícias espalhadas naquela província, Coudreau armou que o litígioseria resolvido “pela ciência ou por meio de um conito violento, o seu papel era conseguir tudo e tudo quanto for necessário sobre o territóriodo Amapá”.67

Desde 1885, correspondências estabelecidas entre a legação do Bra-

sil em Paris e o Ministério das Relações Exteriores (ou Secretaria de Ne-

gócios Estrangeiros no Império) demonstravam certa inquietação sobreas conferências realizadas nas instituições parisienses e os trabalhos pu-

 blicados sobre aquele parte do território. Ministro plenipotenciário emParis, Torquato Fortunato de Brito, o Barão de Arinos, descrevia uma ani-mada conferência de Coudreau na Sociedade de Geograa de Paris sobreas potencialidades do território pleiteado. Naquela oportunidade, ÉmileLevasseur, também ali presente entre a plateia, questionou a salubridadee feracidade da região, bem como ponderou sobre uma possível partilha

daquele rincão, uma vez que poderia vir a enfraquecer as relações entreos dois países.68 

À época em que se almejava estabelecer uma empresa comercial noterritório litigioso, em 1895, o casal Coudreau encontrou-se com Gabrielde Piza, ministro plenipotenciário do Brasil naquele país, na sede da le-

gação em Paris. No encontro, Coudreau relembrou suas atividades comocomissário do Governo francês. Como se achava desencarregado daquela

função, ambicionava a constituição de uma nova atividade. Para tanto,solicitava proteção especial para ele e sua esposa. Argumentava que nãoera um espião ou defensor dos interesses franceses, apenas um empre-

sário movido por interesse pessoal. Lembrava ainda a existência de doisempreendimentos comerciais de revenda de produtos de origem europeia

67 –  AIH, Comissão de limites com Guiana Francesa: ofícios e minutas, Ofício reservadode Barão de Maracaju a Francisco de Carvalho Soares Brandão, ministro de Estado de

 Negócios Estrangeiros, 14 de novembro de 1883, lata 542, maço 1.

68 –  AIH, Comissão de limites com Guiana Francesa: ofícios e minutas. Ofício de Barãode Arinos ao Barão de Cotegipe, 24 de novembro de 1885, lata 542, maço 1.

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na região. Bem informado, Gabriel de Piza possuía conhecimento das palestras realizadas por Coudreau em Paris e em outras cidades franceses.

Além de se dedicar na organização de um empreendimento comer -cial, Coudreau fora contratado pelo governo do Pará para explorar osauentes do rio Amazonas. Naquela oportunidade, explorou sucessiva-

mente os rios Tapajós, Xingu, Tocantins, Araguaia, Itaboca, Itacaiúnas, bem como a região entre os rios Tocantins e o Xingu, e o Yamunda eo Trombetas. Na ordem do dia do periódico  Annales de Géographie de

189769, organizado pelos geógrafos Paul Vidal de Blache e Louis Gallois,

constava um levantamento bibliográco sobre cada região no globo. Naocasião, aludiu-se às explorações de Coudreau no território contestado.Como resultado, as obras Voyage au Tapajoz, Voyage au Xingu e Voya- ge au Tocantins-Araguaya foram editadas. Uma sucinta apreciação sobresuas viagens evidenciava as possibilidades da ocupação daquelas terras por populações aclimatadas, pois a região era ainda deserta, na opiniãodos diretores do periódico.

(...) Le pays est pour ainsi dire désert: quelques tribus d’Indiens, et deloin en loin quelques cabanes de blancs, chercheurs de caoutchouc ouéleveurs. La partie basse de ces euves est moins habitée que celle descochueiras, elle est en effet plus chaude et plus malsaine. Il y a là en

 somme d’immenses espaces qui sont utilisables, mais seulement pourdes populations acclimatées. 70

Assim, Coudreau, assessorado por sua esposa, descobriu cerca devinte tribos indígenas, das quais estudou os costumes, os hábitos e os dia-

letos, bem como realizou um estudo exaustivo sobre o clima, as orestasde cacaueiros e as seringueiras em Tumucumaque.71 O explorador tentava

69 –  Criada em 1891, por Paul Vidal de La Blache e Louis Gallois, o objetivo principaldos Annales de Geográphie era promover a reexão e as conquistas da geograa contem-

 porânea para pesquisadores, professores e estudantes, reunir estudos de geograa física ehumana, observando as relações entre as sociedades e seus territórios.70 –   Guyanes.  In:  Annales de Géographie.  Bibliographie de 1897: Brésil, 1898. p.266. Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/geo_0003-4010_1898_bib_7_35_19762

Acesso em 20 de abril de 2013.71 –  Em 1900, foi publicada obra Voyages au Trombetas de Coudreau, organizada pela

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incentivar a intervenção francesa na área disputada e enfatizar a imigra-

ção de africanos oriundos do Senegal, visto que não almejou sucesso no

 projeto de imigração de colonos franceses. Nas suas andanças pelas ins-tituições francesas, Coudreau levantou cerca de quinhentos mil francosdestinados à exploração de ouro nas cabeceiras do rio Calçoene.72 Nãoé demais recordar que a descoberta de jazidas auríferas precipitou umacorrida de estrangeiros de várias nações para a região, bem como incitouuma série de atos violentos, cujo ápice foi a invasão francesa em maio de1895 na vila do Amapá.

 Inicialmente, as relações entre o explorador francês e as autorida-des locais aparentavam certa plasticidade. O governador do Pará, LauroSodré, que viria a contratar os serviços do geógrafo para uma missão em1898, relatava que o “empresário” Coudreau atuava como um “agente doGoverno francês e grande agitador da questão do território contestado” junto ao governo de Caiena, intervinha incentivando a ocupação de colo-

nos franceses.73 Após um longo período de conitos, principalmente de-

 pois de 1895, os governos da França e do Brasil concordaram em subme-

ter o litígio de fronteira à arbitragem da Confederação Helvética, a Suíça,em 1897, conando a tarefa da defesa da causa brasileira novamente aRio Branco.74 Em julho de 1895, depois do laudo arbitral do presiden-

sua esposa, a partir das anotações de sua viagem ao rio Trombetas em 1899. Disponívelem http://ia600300.us.archive.org/25/items/voyageautrombeta00coud/voyageautrombe-ta00coud.pdf Acesso em 20 de maio de 2013. Sobre a trajetória do sábio francês, verBENOIT, Sébastien. Henri Anatole Coudreau, dernier explorateur de la Guyane. Paris:L’Harmattan, 2000; ROMANI, Carlo Maurizio. “Um Eldorado fora de época: a explora-

ção dos recursos naturais no Pará”. São Paulo, Projeto História, n. 42, 2011.72 –  AIH, Comissão de limites com Guiana Francesa: ofícios e minutas, Ofício reservadode Gabriel de Piza a Carlos de Carvalho, 16 de março de 1895, lata 542, maço 1.73 –  AIH, Comissão de limites com Guiana Francesa: ofícios e minutas, Ofício reservadode Lauro Sodré ao ministro das relações exteriores, 13 de abril de 1895, lata 542, maço 1.74 –  Com a descoberta de jazidas auríferas desdobra-se os conitos entre franceses e bra-sileiros, tendo como estopim a investida militar dos franceses contra o governo triúnviro,cheados pelo o cônego Domingos Maltez na presidência, tendo como vices FranciscoXavier da Veiga Cabral e Desidério Antonio Coelho. A invasão francesa resultou numasequência de atos violentos, um verdadeiro massacre contra a população local. Sob o pre-texto de resgatar prisioneiros que colaboravam com o governo de Caiena, os franceses se

envolveram em um conito armado que resultou no incêndio de residências e assassinatode dezenas de brasileiros.

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te Grover Cleveland, o Barão retornara às atividades como cônsul-geralem Liverpool. No ano seguinte, exonerado da função, transferiu-se para

Paris, onde formou a Comissão Preparatória de Limites com da GuianaFrancesa. Compunham a equipe: o tradutor Charles Girardot, que pes-

quisou no British Museum, Francisco Suárez, nos arquivos de Lisboa,Domício da Gama, seu lho Raul e de Hipólito de Araújo, no escritório.

 Novamente o Barão valeu-se da amizade e contatou diversos estu-

diosos, a exemplo de Rodrigo Vicente de Almeida, bibliotecário do rei dePortugal no Palácio da Ajuda; de João Lúcio de Azevedo, reconhecido

historiador português, especialista na trajetória de Padre Antônio Vieirae nos jesuítas no Pará, bem como um velho conhecido, Capistrano deAbreu. O comitê foi encarregado de compilar e organizar os documentosnecessários e os mapas da região litigiosa anteriores ao Tratado de Utre-

cht. Do outro lado, o Conselho Helvético era composto por sete membros, presididos por Walter Hauser; o relator do processo de arbitramento foiEduard Mller, ex-presidente da Confederação. O Barão contou aindacom o auxílio do cientista Emílio Goeldi como consultor técnico. Entre

1899 e 1900, Goeldi viajou para a Europa, onde visitou diversas cidadessuíças, entre as quais Berna e Zurique. Localizamos as missivas enviadasao Barão do Rio Branco neste período, como veremos a seguir.

Assim que se instalou com sua família em uma casa alugada na ci-dade Berna, no início de dezembro de 1898, Goeldi encaminhou umacarta ao Barão, que se encontrava em Paris. Na ocasião, aguardava asinstruções necessárias para o andamento do seu trabalho. A viagem teria

uma segunda utilidade, visto que sua esposa encontrava-se doente e seriaoperada pelo especialista em epidemiologia Dr. Robert Koch.75 Pretendiano início do ano seguir para Paris ao encontro do Barão, mas fora impedi-do devido à enfermidade da sua esposa e pelo mal-estar que o acometia,resultante de uma expedição realizada ao rio Capim em 1897, aliás issohaveria de ser relatado em outras correspondências. Mencionou ainda adiculdade de se readaptar ao clima europeu, a ponto de solicitar nova-

75 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Berna, 9 de dezembro de 1898,lata 825, maço 1.

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mente adiamento de sua reunião em Paris.76 Coube ao cientista ainda aseleção de uma tipograa para publicação da memória arbitral.77 

Mesmo surpreendido por uma grave pneumonia, Goeldi exami-nou o mapa organizado por Georges Brosseau, que explorou o territóriolitigioso durante onze anos e defendia os interesses franceses sobre o ter -ritório litigioso. Em relação às observações sobre a população apresen-

tadas na obra de Brousseau, Goeldi dizia que “(...) estrangeiros não temsenão no Calçoene. Se o Sr, Brousseau orça seu número em sete mil, cer -tamente nada menos que três quartas partes cabe a imigração nómada dos

mineiros franceses nas cabeceiras do dito rio.”78

 Em outra oportunidade,aproveitou para descrever a impressão da sua reunião com o presidentesuíço responsável pela arbitragem. Deste encontro, percebeu que o presi-dente examinava de perto o caso, pois observou “(...) provas eloquentesde inteligente penetração no meio deste complicado cipoal.”79 Já em julhode 1900, narrou o encontro com o conselheiro do Presidente, responsáveltambém pela arbitragem, Goeldi conava na “completa vitória”, uma vezque “achava que o homem está do nosso lado”.80 

Em outra missiva, identicou os peritos responsáveis pelo exame dasmemórias brasileiras e francesas e a sua relação com cada um deles. Norol, averiguamos que o grupo era formado por cientistas, professores degeograa, etnograa, zoologia e de geologia, além de um especialista naslínguas indígenas da América Central e versado na língua espanhola.81 

Além de assessorar o Barão e cuidar de assuntos familiares, o cientistasuíço envolveu-se no ambiente cientíco e realizou palestras, a exemplo

76 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Berna, 03 de janeiro de 1899,lata 825, maço 1.77 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Berna, 14 de fevereiro de1899, lata 825, maço 1.78 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Berna, 20 de fevereiro de1899, lata 825, maço 1.79 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Berna, 11 de junho de 1899,lata 825, maço 1.80 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Zurique, 19 de julho de 1900,lata 825, maço 1.

81 –  AIH, Carta de Emílio Goeldi ao Barão do Rio Branco, Pará, 02 de fevereiro de 1900,lata 825, maço 1.

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de uma realizada na Sociedade de Ciências Naturais em Berna. Podemosinferir que a assistência de Emílio Goeldi foi profícua: além de ser um

notório conhecedor do território litigioso, ele possuía cidadania suíça eera um respeitado cientista de renome internacional, o que certamente fa-

cilitou a sua circulação pelos ambientes cientícos e políticos na Suíça.82

A defesa francesa coube ao sábio Paul Vidal de la Blache, que re-

digiu a  Mémoire contenant l’Exposé des droits de la France dans laQuestions de Frontieres de la Guyane Française e du Bresil. Parte dessamemória foi publicada, em 1902, sob o título La Riviere Vicent Pinzón:

 Étude sur la cartographie de la Guyane. A obra possui cento e quarentae nove páginas, dividida em dezesseis capítulos, além da introdução e daconclusão. Reconhecido pelo seu papel na renovação da geograa fran-

cesa em ns dos Oitocentos, La Blache examinou a cartograa produzidasobre o rio Vicente Pinzón desde os tempos coloniais, bem como as inter - pretações antigas e contemporâneas do Tratado de Utrecht de 1713. Aoapresentar a obra, advertia que não visava rememorar ou promover novasdiscussões, o seu interesse era puramente cientíco.

 No seu entendimento, as relações entre a Guiana Francesa e a Euro-

 pa constituem um capítulo especial da história do Novo Mundo, que re-

montava à vinda de um dos companheiros de Cristóvão Colombo, Vicen-

te Pinzón. A defesa concentrava-se na argumentação de que o rio VicentePinzón era o rio Araguari, além de interpelar o monopólio da navega-

ção do rio Amazonas. Para ele, a controvérsia fronteiriça entre a GuianaFrancesa e o Brasil poderia ter sido evitada por um exame cartográco

meticuloso. Se por um lado, as cartas antigas possuíam imperfeições emseus detalhes, apresentavam, por outro lado, as relações das distâncias edas posições. O estudo das cartas demonstrava que a exploração da Ama-

zônia e da Guiana ocorreu lentamente por diversos povos. Um outro em-

 pecilho, anotado pelo sábio francês, correspondia à instabilidade físicada parte noroeste até a embocadura do Amazonas: os deslocamentos dos

82 – Nelson Sanjad, op. cit .

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canais uviais, bem como a formação de lagos interiores e de pântanoscomuns em regiões de clima tropical. 83 

Localizamos também um pequeno artigo de três páginas, intituladode “Le contesté franco-brésilien”, elaborado pelo sábio francês, publica-

do no periódico  Annales de Géographie em 1901. Apesar da perda ter -ritorial, La Blache ressalvou a importante contribuição cientíca com a publicação de diversos mapas sobre o Baixo Amazonas e a Guiana Fran-

cesa, proporcionando novas informações sobre aquele território. Nas suas palavras:

(…) Un des résultats du débat auquel ce litige donné lieu est la pu-blication de documents qui intéressent histoire de la cartographie etdes découvertes dans la région du bas Amazone et de la Guyane Tantdu côté brésilien que du côté fran ais des collections de cartes ont été

 produites quelques-unes inédites occasion se présentera sans doute prochainement étudier ces publications La sentence qui vient être ren-due ne leur ôte rien de leur intérêt.84

A memória da defesa brasileira foi organizada em dois volumes. O

 primeiro, dividido em doze seções, enriquecido de dois atlas com no-venta e quatro mapas, acrescidos ainda de um apêndice com vinte e setedocumentos, além da documentação pertinente às negociações de 1855 e1856, em Paris, conduzidas pelo Visconde do Uruguai e da obra de Joa-

quim Caetano da Silva, L’Oyapock et l’Amazonie: question brésilienne et française, em dois volumes, redigida em francês, de autoria do diploma-

ta e cônsul dos Países Baixos, Joaquim Caetano da Silva, publicada em1861, decorrente de suas pesquisas nos arquivos franceses. Tal trabalhoserviu ainda de fonte de investigação também para os franceses e os suí-ços. Originalmente apresentada numa conferência realizada na Sociedadede Geograa de Paris em 1857, como uma resposta às pretensões fran-

83 – BLACHE, Paul Vidal de La.  La Riviere Vincent Pinzón: Études sur la cartographiede la Guyane. Paris: Feliz Alcan Éditeur, 1902. Disponível em http://www.archive.org/stream/larivirevincent00blacgoog#page/n10/mode/2up Acesso em 25 de abril de 2013.84 – BLACHE, Paul Vidal de la. “Le contesté franco-brésilien”.  In:  Annales de Géog-raphie. 1901, t. 10, n. 49. pp. 68-70. Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/

home/prescript/article/geo_0003-4010_1901_num_10_49_4846 Acesso em 25 de maiode 2013.

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cesas no Amapá. Foi lida para o imperador D. Pedro II numa sessão doInstituto Histórico e Geográco Brasileiro. O segundo volume consistia

numa réplica às contestações da Memória Francesa elaborada por Vidalde la Blache. Segundo o Barão, “(...) entre as peças que o Brasil verteagora no processo, há algumas que destroem completamente toda a hábile complexa argumentação da primeira Memória francesa.”85 

A refutação da “Exposição Geográca” de La Blache mereceu umexame mais minucioso, uma vez que se buscava comprovar que o rioOiapoque, citado nos Tratados de 1700 e 1713, era o rio Araguari. Quanto

à “Exposição Jurídica e Diplomática” e à “Exposição Histórica” france-sas, o Barão demonstrou conança na pesquisa realizada, pois armavaque “(...) a evidência dos documentos que precederam e acompanharama assinatura desses dois tratados basta amplamente.”86 Buscou fundamen-

tar seu trabalho na comprovação da ocupação da região pelos portugue-

ses e nas missões cientícas do período colonial, bem como nas diversasexplorações militares. Aproveitou, ainda na segunda memória brasileira, para criticar a dúvida perpetrada pelo Governo francês sobre a extensão

dos poderes do juiz arbitral. Presumiu-se a possibilidade do Compromis-

so Arbitral, assinado em 1897, garantir poderes ilimitadas e soberanos aoárbitro. Em que pesem os protestos do Barão, o governo suíço reconheceua incoerência da pretensão francesa, armou que cabia ao árbitro o examedo artigo oitavo do Tratado de Utrecht baseado em saberes históricos egeográcos, excluindo qualquer probabilidade de mediação internacio-

nal, mas tão somente o arbitramento. Seja como for, o laudo arbitral da

Confederação Suíça consistiu numa alentada obra de oitocentos e trinta eoito páginas redigidas pelo conselheiro Eduardo Mller e assinada pelo presidente Walter Hauser. Respaldado pela história dessa ação, o Barãodo Rio Branco, utilizando-se de seus conhecimentos históricos e da ha-

 bilidade diplomática, obteve, na questão do Amapá, arbitrada pelo presi-dente da Confederação Suíça, o reconhecimento de que os limites com aGuiana Francesa já haviam sido estabelecidos no Tratado de 1713.

85 – MRE, Obras do Barão do Rio Branco IV : questões de limites Guiana Francesa, se-

gunda memória. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2012, p. 21.86 – Idem, p. 23.

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O Barão sustentava seus argumentos baseando-se na defesa da fron-

teira histórica, geográca, política e jurídica pelo talvegue do rio Oiapo-

que ou Vicente Pinzón, que desaguava no Oceano Atlântico, a oeste doCabo de Orange, pela Serra do Tucumumaque – uma superfície banhada pelo oceano e que compreendia dois rios litigiosos, além de uma faixa ter -ritorial interior, o que implicava na xação de um limite marítimo e de umlimite interior, duas linhas de fronteira. Na elaboração de sua memória,desenvolveu uma ampla pesquisa documental. Neste rol, encontramos re-

ferências aos trabalhos realizados em meados dos Oitocentos por José daCosta Azevedo, o Barão de Ladário, além de citações às obras de Émile

Levasseur, Henri Coudreau, Elisée Reclus, Capistrano de Abreu, velhosconhecidos seus, entre outros.

 Não por acaso, em 20 de dezembro de 1900, a Sociedade festejou olaudo favorável ao Brasil na questão dos limites com a Guiana Francesa.Assim, manifestou “reconhecimento e gratidão” ao Barão do Rio Bran-

co “(...) pelos serviços extraordinários que neste litígio secular, assimcomo no das Missões, prestou a nossa Pátria, defendendo brilhantemente

e levando a maior evidência os direitos do Brasil.”87 Propositadamente,o Barão fora convidado para ocupar o cargo de presidente honorário dogrêmio. Em retribuição ao título concedido, o futuro chanceler doou trezeobras sobre o contestado franco-brasileiro, incluindo a consagrada obrasobre o Oiapoque, de autoria de Joaquim Caetano dos Santos, em doisvolumes. Para a instituição, o laudo suíço representava a vitória sobreuma grande potência como a França e a garantia da integridade territorial.

Segundo Rubens Ricupero, os sucessos nas arbitragens com a Argentina ea França signicaram a legitimação do regime republicano, que desde seuadvento em 1889 atravessou sucessivas turbulências políticas, econômi-cas e sociais, tais como a Revolução Federalista, a Revolta da Armada, aRevolta Canudos e a política do encilhamento, por exemplo.88 Além dis-

so, a vitória brasileira contribuiu para transformar o Barão do Rio Branco

87 –  SGRJ, “Limites do Brasil com a Bolívia. Ata da sessão de 20 de dezembro de 1900”, Revista da SGRJ , Rio de Janeiro, t. 14, p. 72.

88 – RICUPERO, Rubens. Rio Branco: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Contraponto,2000.

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em herói nacional, assegurando a sua nomeação como ministro das Rela-

ções Exteriores em 1902.

Constata-se que a controvérsia territorial com a Guiana Francesaconsistia essencialmente na interpretação dos artigos de um tratado r -mado em tempos coloniais. Mas não podemos ignorar as pretensões doexpansionismo colonial francês na América do Sul, especialmente apósa descoberta de metais preciosos na região litigiosa, assiduamente com-

 batida nas sessões da Sociedade de Geograa do Rio de Janeiro, quandoesta armou que o Brasil não era o continente negro. Inspirada em moldes

europeus, a instituição defendeu a integridade territorial e a integraçãocomercial com as nações vizinhas, por meio da navegabilidade dos rios e pela construção de estradas. Como se vericou, uma das estratégias des-

se expansionismo foi a organização de recursos nanceiros disponíveis para dar prosseguimento à exploração econômica em lugares distantes docentro político. O território litigioso, próximo à Guiana Francesa, perma-

necia aparentemente abandonado. A este exemplo, podemos citar o papelde Henri Coudreau e de sua esposa. Além de conquistar reconhecimento

ao explorar a região, defendeu os interesses franceses, promoveu a imi-gração e dedicou-se ao comércio a partir de recursos também garantidos pelas sociedades geográcas comerciais.

Observa-se ainda que os produtos gerados pelas comissões demar -catórias, bem como por seus integrantes individualmente, contribuíram para o reconhecimento e para a formação territorial brasileira, trazendoinformações e promovendo o patriotismo nos primeiros anos da Repú-

 blica. Além da contribuição das expedições militares, há de se destacar o papel de missões de cunho cientíco, do porte da liderada pelo cientistaEmílio Goeldi, diretor do Museu do Pará, conhecedor da região e esco-

lhido como assessor de Rio Branco, que também rendeu resultados para oreconhecimento do território brasileiro.

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II – COMUNICAÇÕES  NOTIFICATIONS

POR UMA NOVA GEOGRAFIA POLÍTICA PARA

A AMAZÔNIA BRASILEIRA

A NEW POLITICAL GEOGRAPHY

OF THE BRAZILIAN AMAZON

R OBERTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE1

QUAL AMAZÔNIA?

Durante o Império e, em grande parte, a República Velha, a geograaregional do Brasil foi simples: havia as províncias, depois Estados, do Norte, do Pará à Bahia; e as províncias, depois Estados, do Sul, do Espí-

1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro, e do Instituto Arqueoló-gico Histórico e Geográco Pernambucano.

Resumo:

A Amazônia brasileira, compreendendo os es-tados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,Pará e Tocantins cobre 3,85 milhões de quilô-metros quadrados, 45% do território do Brasil.Com 16 milhões de habitantes, 8% da popula-ção do País, seu PIB equivale a somente 5% do brasileiro. Este artigo examina várias opções es-tratégicas para o progresso desta rica região tro-

 pical. O ecodesenvolvimento é uma estratégiaglobal, integrada por crescimento econômicoacelerado, inclusão social e o uso e preservaçãodos abundantes recursos naturais. Estratégiasespecícas envolvem a competitividade sistêmi-ca: infraestrurura (transportes, energia, comuni-cações) e capital humano; uma nova economia baseada na ciência e tecnologia; um novo para-digma produtivo voltado para uso sustentável da biodiversidade; o agronegócio e a bioindústria;o ecoturismo; e a proteção da diversidade cultu-ral das comunidades indígenas.

 Abstract:

The Brazilian Amazonian region, comprisingthe states of Rondônia, Acre, Amazonas, Ror-aima, Pará and Tocantins, covers 3.85 million square kilometers, 45% of Brazil’s territory.With 16 million inhabitants, 8% of the Brazilian population, its GDP is only 5% of the country’s.This paper examines various strategic options for this large and rich tropical region. Eco-de-

velopment is a global strategy, covering accel-erated economic growth, social inclusion, andthe use and preservation of the abundant natu-ral resources. Specic strategies involve system-ic competitiveness: infrastructure (transport,energy, communications) and human capital;a new economy based upon science and tech-nology; a new productive paradigm for the sus-tainable use of biodiversity; agribusiness andbio-industry; eco-tourism; and protection of theindigenous communities’ cultural diversity.

Palavras-chave: Amazônia brasileira. Ecode-senvolvimento. Biodiversidade  Keywords:  Brazilian Amazonian Region. Eco-development. Biodiversity.

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rito Santo ao Rio Grande. Nada de Nordeste, de Sudeste e Centro-Oeste,nem de Centro-Sul.2 Muito menos de Amazônia brasileira.

Por Amazônia designava-se a maior região geográca da Américado Sul, estendendo-se por nove países, formada pela bacia do rio Ama-zonas e dominada em grande parte pela oresta tropical úmida. “É semdúvida o maior quadro da terra”, observou há mais de um século Euclidesda Cunha. Adiantando: “a [sua] natureza é portentosa, mas incompleta”,[sendo] “talvez a terra mais nova do mundo”, [nascida] “da última con-vulsão geogênica que sublevou os Andes.” E lembrando, “ainda incom-

 pleta e escrevendo-se maravilhosamente, uma página inédita e contem- porânea do Gênese”.3

Foi somente em 1942 que se deniu a primeira regionalização ocialdo Brasil: com um Norte integrado pelos Estados do Amazonas e Pará e pelo território do Acre e um Nordeste formado pelos Nordestes Ocidental(Maranhão e Piauí) e Oriental (do Ceará a Alagoas). Sergipe e Bahia, queentão pertenciam à região Leste,4 somente foram assimilados ao Nordeste

em 1969-1970.5

Distinto do Nordeste seco, um Norte brasileiro úmido, onde a orestadomina a paisagem e os rios comandam a vida,6 correspondeu, por muitotempo, ao território ocupado pelo Grão-Pará, depois província do Pará.Dela foi desmembrada, em 1850, a província, depois Estado do Ama-zonas. O território, depois Estado do Acre (1962), foi criado em 1904sobre terras disputadas com o Peru e a Bolívia. Os territórios do Guaporé

(denominado Rondônia em 1956 e transformado em Estado em 1982) edo Rio Branco (chamado Roraima em 1962 e tornado Estado em 1988)foram desmembrados do Estado do Amazonas em 1943. O território, de- pois Estado do Amapá (1988), foi destacado do Pará em 1944. E o Estado

2 – Veja-se a propósito, Mello, p. 13.3 – Cunha, pp. 100-12.4 – Juntamente com Minas Gerais, Espírito Santo e o Rio de Janeiro.

5 – Ver sobre o assunto Magnano.6 – Ver Tocantins.

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do Tocantins, criado por desmembramento do Estado de Goiás em 1998, passou também a integrar a região Norte.

É essa grande região Norte, formada por sete estados (Rondônia,Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá e Tocantins), que chamaremosneste estudo Amazônia brasileira. Ela difere, portanto, da chamada Ama-zônia Legal, que também inclui o Estado de Mato Grosso e parte do Ma-ranhão (a oeste do meridiano de 44°).7

Há fundamentos que vão além de considerações político-adminis-trativas ou estatísticas, nessa escolha: fundamentos de ordem geográca,histórica, cultural.

Duas características principais singularizam a Amazônia brasileira:a complexidade de imensa bacia uvial ainda em formação; e a hileia,denominação dada por Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland à por-tentosa oresta tropical úmida, de grande diversidade biótica.

Vindo desde o Hemisfério Norte, a Amazônia brasileira descamba

das alturas do Planalto das Guianas, o relevo granítico atenuando-se parao sul em patamares residuais sucessivos que deságuam na longa planíciealuvial do Solimões-Amazonas. A massa vegetal ombróla, sob climatropical úmido, nivela-se pelo porte desigual das árvores, camuando asondulações da terra. Assombra várzeas alagadiças, mas não encobre dosgrandes rios o excesso das águas. Transforma-se ao sul em cerradões quese degradam nos cerrados transicionais do Planalto Central do Brasil.

A oresta vive soberbamente de si mesma. Desatenta a solos nemsempre férteis e profundos, nutre-se de sóis distantes e águas em con-tínua passagem. Sem o labirinto dos rios, muitos deles ainda cavandoseus leitos, não teria tão cedo sido explorada. Nela, no dizer de Euclides,o homem é “um intruso impertinente”: chegou “sem ser esperado nemquerido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto eluxuoso salão”. E encontrou “uma opulenta desordem”. Uma natureza

7 – A Amazônia Legal, criada pela Lei no. 5.173, de 27.10.1996, estende-se por 5,2 mi-lhões de km2, equivalentes a 61% do território nacional.

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 portentosa, mas incompleta. “Tem tudo e falta-lhe tudo.” “Só aparece aos poucos, vagarosamente, torturantemente.”8

A Amazônia Meridional (a chamada Calha Norte) foi penetrada nasegunda metade do século XX pela fronteira de ocupação humana e pro-dutiva – avançando, em pinças, menos pelos rios do que pelos caminhose estradas do engenho humano. A Amazônia Setentrional, porém, ainda é,em boa medida, um espaço de reserva – fendido fundo apenas pela BR-104, eixo rodoviário que, partindo de Manaus, alcança as terras altas deRoraima e demanda a Venezuela e o Caribe.

Países e regiões existem como categorias ideativas culturalmenteconstruídas. São representações mentais da sociedade, referências simbó-licas, muitas vezes com maior carga de sentimento que de razão. Sem es-sas construções do espírito uma região é um mero território. Não pertenceàs pessoas. As pessoas não se sentem a ele pertencendo.

VISÃO DE CONJUNTO

A Amazônia Brasileira, com 3.853 mil km2, ocupa 45,3% da áreaterritorial do Brasil (ver tabela 1). É quase 2,5 vezes maior que o Nordestee 1,4 vez maior que o Centro-Sul.

Tabela 1 – Amazônia e Brasil: Indicadores Selecionados

Especificação Amazônia BrasilAmazônia/ 

Brasil (%)

Área territorial (mil km2) 3.853,3 8.514,9 45,3

População, 2009 (mil habitantes) 15.363,5 191.475,4 8,0

Crescimento demográfico médio anual, 1970-2009 (%) 3,4 1,9 183,9

Densidade demográfica, 2009 (habs./km2) 4,0 22,5 17,7

PIB, 2009 (R$ milhões de 2011) 188.949,7 3.750.355,7 5,0

Densidade econômica, 2009 (PIB R$ mil de 2011/km2) 49,0 440,4 11,1

Crescimento médio anual do PIB, 1970-2009 (%):

1970-1980 15,2 10,3 147,6

8 – Cf. Cunha, loc. cit .

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1980-2000 3,5 1,9 187,7

2000-2009 5,0 4,0 126,6

1970-2009 6,7 4,5 151,4PIB per capita, 2009 (R$ mil de 2011): 12,30 19,59 62,8

Crescimento anual do PIB per capita, 1970-2009 (%):

1970-1980 9,9 7,6 129,5

1980-2000 0,1 0,1 151,2

2000-2009 3,0 2,6 116,1

1970-2009 3,2 2,5 126,1

Índice de Desenvolvimento Social, IDS, 2010 7,52 8,14 92,4

Crescimento médio anual do IDS (1970-2009), %:

1970-1980 4,4 4,1 107,7

1980-2000 1,2 1,0 112,8

2000-2010 2,3 2,0 116,0

1970-2010 2,2 2,0 110,9

Índice do Capital Humano, ICH, 2010 (Brasil=100) 6,94 100 6,9

Crescimento médio anual do ICH (1970-2011), % 7,2 4,8 147,7

Índice de Inclusão Social, IIS, 2011 5,66 6,87 82,4

Crescimento médio anual do IIS (2001-2011), % 4,1 4,8 85,9

Proporção de pobres (% das pessoas), 2011 24,3 18,4 132,1

Redução na proporção de pobres, 2001-2011, % 16,8 16,7 100,6

Coeficiente de Gini, 2011 0,535 0,526 101,7

Variação no Gini, 2001-2011, % 2,7 6,3 42,9

Fontes: IBGE, Ipeadata, Albuquerque 2011 e 2009; Rocha. Elaboração do autor.

Com 15,4 milhões de habitantes, a região abriga apenas 8,0% da população do País, congurando vazio demográco relativo com, em mé-dia, 4,0 habitantes por km2 (17,7% da densidade brasileira de 22,5 habs./km2). Devido a fortes migrações, o crescimento demográco amazônicofoi, em média, 3,4% ao ano em 1970-2009 (Brasil: 1,9%), embora venharevelando tendência declinante.

O PIB da Amazônia brasileira, de R$ 188,9 bilhões (2009, a preços

de 2011), corresponde a apenas 5% do brasileiro, a despeito do gran-

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de dinamismo recente: crescimento de 6,7% anuais entre 1970 e 2009,desempenho esse 51% superior ao do País. Mesmo assim, a densidade

econômica regional em 2009, de R$ 49,0 mil por km2

, representa somente11% da brasileira. O PIB per capita regional, de R$ 12,3 mil em 2009,equivaleu a 62,8% do nacional nesse ano e cresceu, entre 1970 e 2009, a3,2% anuais (Brasil: 2,5%).

Disparidades semelhantes, embora menos intensas, ocorrem entre osindicadores sociais da região e os do País. Em 2010, o Índice de Desen-volvimento Social, IDS, da Amazônia, com nota 7,52, situa-se no nível

médio-baixo (Brasil: 8,14, nível médio-alto), malgrado venha crescendomais que o nacional (2,2% a.a. em 1970-2010, versus 2,0%). A regiãodetinha, em 2011, 6,94% do capital humano do Brasil, percentual menordo que o relativo à população. Sua nota no Índice de Inclusão Social, IIS,5,66 em 2011, está no nível médio-baixo, sendo menor que a brasileira(6,87). Em 2011, a proporção de pobres na população amazônica alcan-çava 24,3% (Brasil: 18,4%) e o coeciente de Gini, 0,535, era superior ao brasileiro (0,526), e decresceu menos (variação para baixo de 2,7% entre

2001 e 2011 na região e de 6,3% no País).9

A Amazônia ainda é, portanto, economia de pequeno porte relativo(é do tamanho do vizinho Peru, na comparação dos PIBs respectivos),exibindo em geral indicadores econômico-sociais inferiores aos do Brasilcomo um todo.

ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO

A Amazônia brasileira deve buscar o desenvolvimento medianteocupação humana seletiva e descontínua, lastreada em nova geograa re-gional. E orientar o seu projeto de futuro por cinco opções estratégicas básicas.

Uma sugestão de uma nova geograa reparte a região em 24 ÁreasPolarizadas (APs), consideradas espaços de referência funcionais às

9 – Para os cálculos do IDS, IIS e do capital humano (Índice do Capital Humano, ICH),ver Albuquerque, 2011.

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ações de desenvolvimento – em particular a processo de ocupação produ-tiva sempre atento à preservação dos recursos naturais e da diversidade

étnico-cultural remanescente.As opções estratégicas, que objetivam o ecodesenvolvimento,10 são

(ver diagrama):

I – a opção por avanço importante da competitividade sistêmica, com prioridade para: (a) os transportes (de preferência uvial, com balizamen-to dos rios, modernização da frota em estaleiros localizados em Belém,Santarém, Manaus); (b) a energia elétrica (principalmente hidrelétrica,com os necessários cuidados de proteção da natureza e das comunidadesindígenas); e (c) a capacitação dos recursos humanos (educação de bomnível, no mínimo de segundo grau, e qualicação geradora de inserçãoeconômica com renda suciente);

II – a opção por uma economia alavancada pela ciência e pela tec-nologia (voltada, em especial, para a biodiversidade e a bioindústria) eimpulsionadora de processo permanente de inovação;

III – a opção por novo paradigma produtivo voltado principalmente para o uso sustentável da biodiversidade, envolvendo: (a) novo extrativis-mo, associado ao agronegócio; (b) mineração controlada; (c) indústria--bioindústria; e (d) o ecoturismo;

IV – a opção por maior inserção nos mercados nacional e global,mediante incentivo às exportações (a Amazônia, sendo economia ainda

de pequeno porte, precisa exportar mais ao restante do País e ao exterior para acelerar seu crescimento, devendo, portanto, adquirir e manter com- petitividade);

10 –  O termo ecodesenvolvimento, empregado com mais frequência na literatura econô-mica de língua francesa (ecodéveloppement ) e divulgado pelo economista franco-polonês

Ignacy Sachs (a partir de 1972), sublinha a sustentação ambiental do crescimento e dodesenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento permanente.

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V – a opção por processo de modernização social com mais inclu-são e menos pobreza (por meio da educação e emprego, basicamente) e

com proteção aos índios, assegurada sua diversidade cultural medianteintegração harmoniosa na sociedade envolvente – não destrutiva e semrupturas ou traumas.

NOVA GEOGRAFIA: OCUPAÇÃO ORDENADA E SELETIVA

A identicação das Áreas Polarizadas da Amazônia (ver o mapaÁreas Polarizadas) levou em conta que não é uniforme, siográca ou

ecologicamente, o espaço regional. E que a ocupação demográca e pro-dutiva se tornou muito heterogênea, econômica e socialmente, sendo ne-cessário corrigi-la de modo a ajustá-la aos propósitos da nova estratégiade desenvolvimento.

I – São consideradas de primeira ordem as Áreas Polarizadas Beléme Manaus, ocupando juntas apenas 2,7% do território amazônico, masabrigando cerca de 30% da população, gerando quase a metade do PIB

regional e revelando elevado dinamismo econômico-social.

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II – sete APs – Tucuruí-Marabá (PA), Madeira-Guaporé (RO, comPorto Velho), Gurupi-Porto Nacional-Palmas (TO), Leste Rondoniense,

 Norte Roraimense (com Boa Vista), Sul Amapaense (com Macapá) e oVale do Acre (com Rio Branco) – são consideradas de segunda ordem.Elas têm porte médio e exibem em geral dinamismo econômico e socialsuperior ao amazônico;

III – dez APs, de porte médio mas apresentando desempenhos eco-nômicos medíocres (inferiores ao da Amazônia), são de terceira ordem:Itaituba-Altamira (PA), Sul Roraimense, Castanhal-Bragança (PA),

Itacoatiara-Parintins (AM), Miracena-Formoso (TO), Baixo Amazonas(PA), Tefé-Coari (AM), Norte Amapaense, Bico do Papagaio-Araguaína(TO) e Purus (AM);

IV – e cinco APs de menor porte demográco-econômico e com ní-veis e dinâmicas de desenvolvimento inferiores aos regionais estão naquarta ordem: Alto Solimões-Japurá (AM), Vale do Juruá (AC), Jalapão--Dianópolis (TO), Rio Negro-Japurá (AM) e Marajó (PA).

A cada uma das 24 Áreas Estratégicas corresponde ao menos ummunicípio-cidade tomado como centroide. São ao todo 30 polos, que con-guram o sistema regional de cidades e devem nuclear a transmissão e promoção do ecodesenvolvimento. Esse sistema se estrutura em dois sub-sistemas urbanos: um deles encabeçado por Belém, o outro por Manaus.Belém exerce dominância sobre a Amazônia Oriental; Manaus, sobre aAmazônia Ocidental. O médio-baixo Amazonas é o divisor de águas en-

tre as duas áreas de inuência.

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Fonte: ALBUQUERQUE, 2009, p. 300.

As funções de comando do desenvolvimento, exercidas por Belém eManaus – em interação principalmente com São Paulo –, são comutadas para dentro da região pelos oito centros regionais: Porto Velho, Rio Bran-co, Boa Vista, Santarém, Macapá, Bragança, Marabá.11

A rede urbana amazônica, essencial ao êxito de uma estratégia orde-nada de ocupação demográca e produtiva, é ainda fragmentária e poucoarticulada, além de estar dispersa em imenso território. Ela é servida porinfraestrutura de transportes e comunicações ineciente, que comprometea expansão dos uxos de pessoas, bens e serviços, tanto interna quantointer-regional e globalmente (ver o mapa Polos Urbanos).

A ocupação demográca e produtiva da Amazônia deve ser espacial-mente seletiva e descontínua, evitando dispersão capaz de comprometera preservação, a conservação e o aproveitamento sustentável dos recursosnaturais, bem como a proteção das populações, culturas e terras indígenas,

11 – Devido à proximidade, o oitavo centro, Palmas, está mais referido a Brasília e aGoiânia.

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resguardando-se de pressões antrópicas excessivas ao realizar desconcen-tração concentrada do povoamento. Assim, reduzindo as migrações para

as maiores cidades e estimulando centros urbanos interiorizados, inclusi-ve os localizados nas faixas de fronteira (com Peru, Colômbia, Venezuela,Guiana, Suriname e Guiana Francesa).

Fonte: ALBUQUERQUE, 2009, p. 300.

Esse processo enfrenta constrangimentos decorrentes do que se po-deria chamar bloqueio da fronteira de ocupação. Estima-se que sofrem bloqueios, totais ou parciais, de uso 31% do território da Amazônia bra-

sileira, equivalentes a 1,3 milhão de km2

. São áreas legalmente preser-vadas, com limitações diversas para usos produtivos: constituindo ter-ras indígenas, unidades de conservação, federais e estaduais (orestas e parques, estações ecológicas). Essas restrições são maiores em Roraima(51% de do território do Estado) e no Amazonas (38%).12

12 – Dados coligidos por este autor com base em estatísticas do Ibama e do IBGE (2007-8).

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Para ser efetivo, esse bloqueio de recursos supõe rigor na gestão ter -ritorial: votando-a, de um lado, ao objetivo de conservação dos recursos

naturais em geral e da oresta tropical úmida em particular; e, de outrolado, à proteção das terras, populações e culturas indígenas.

 Não há como negar que essas restrições podem opor-se, em maior oumenor grau, à ocupação demográca e expansão produtiva, gerando con-itos que podem vir a constranger o crescimento (ou as formas mais des-trutivas dele), conitos esses que devem ser tempestivamente arbitrados.

É importante que a Amazônia continue se beneciando, para viabi-lizar o crescimento e o desenvolvimento, da abundância e variedade deseus recursos naturais. Eles são ainda pouco conhecidos, escassamenteavaliados, em boa medida inexplorados. Integram-no rica base mineral;ampla disponibilidade de solos, nas várzeas e em terra rme; formidáveldotação de recursos hídricos; ora e fauna de grande diversidade. Nenhu-ma região do mundo dispõe hoje de patrimônio natural equivalente. Éeste o grande capital de que a região dispõe para sobre ele construir o seu

 progresso. Aliando conhecimento – ciência, técnica – e gestão eciente.Inovando permanentemente.

USO SUSTENTÁVEL DA BIODIVERSIDADE E AVANÇO DABIOTECNOLOGIA

O domínio do conhecimento, determinando processo permanentede inovações tecnológicas e técnico-gerenciais, é hoje um dos requisitosmais importantes de qualquer estratégia de desenvolvimento.

Para que possa continuar a progredir no século XXI, a Amazônia de-verá mobilizar todo um conjunto de condições sucientes para viabilizaresse objetivo: por meio das universidades e outros institutos de ensino e pesquisa, hoje localizados principalmente em Belém e Manaus.

Esse conjunto de instituições deve assumir a forma de sistema regio-nal de ciência, tecnologia e inovação e manter-se em articulação perma-

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nente com centros mais avançados de investigação cientíco-tecnológica, brasileiros e estrangeiros.

Três fatores antecipam o êxito dessa iniciativa: o fato de Belém eManaus já disporem de certa massa crítica em algumas áreas avançadasdo conhecimento; o interesse nacional e mundial pela Amazônia, em es- pecial em relação à imensa diversidade de seu patrimônio biótico; e acapacidade, atual e potencial, de entidades nacionais – como o Ministériode Ciência e Tecnologia, o BNDES, a Finep – e regionais – como a Su- perintendência da Zona Franca de Manaus, Suframa, a Sudam e o Basa –

 para encetar esforço conjunto, de entidades públicas e privadas, com vis-tas a consolidar importante base de conhecimento cientíco-tecnológico.Essa base de conhecimento deve preponderantemente:

I – aprofundar o inventário cientíco dos recursos naturais e do patri-mônio cultural indígena (em especial o conhecimento da ora e fauna re-gionais, adquirido ao longo dos séculos), pré-investimento que se revestede grande importância e urgência (são cada dia mais elevadas as perdas

dessa memória);II – avançar na pesquisa da biodiversidade e das ocorrências mine-

rais da região, que importam tanto ao avanço da ciência quanto à identi-cação de oportunidades produtivas referidas a essas dotações de recursos;

III – promover estudos e pesquisas em biotecnologia orientados paraatividades produtivas envolvendo, no primeiro caso, o extrativismo, asilvicultura, a piscicultura, o agronegócio, a indústria de transformação(inclusive a bioindústria), a saúde humana, animal e vegetal e a própriaconservação ambiental. E conferindo ênfase, no caso da minerotecnolo-gia, aos novos materiais, metálicos e não metálicos;

IV – utilizar a informática-telemática e a mídia eletrônica na dispo-nibilização, disseminação e processamento de informações tecnológicas,gerenciais e mercadológicas sobre as oportunidades produtivas nessasáreas, mantendo-as permanentemente atualizadas e sob rigoroso acompa-nhamento, controle e avaliação de resultados;

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V – estimular a aplicação na economia – e, em geral, na sociedadee nos governos – de novas técnicas de gestão, entre elas o planejamento

estratégico com visões de curto, médio e longo prazos, bem como a ca- pacidade de empreendimento e inovação, ferramentas básicas para queos investimentos em capital material e humano e o próprio esforço de preservação e conservação ambiental logrem os resultados desejados.

Uma área, dentre as citadas, merece tratamento especial, em nível deelevada prioridade: a utilização da biotecnologia na expansão, em basescompetitivas, de atividades produtivas referidas à dotação regional de re-

cursos naturais. Esse emprego produtivo do conhecimento tem potencialde expansão:

I – no extrativismo e silvicultura: manejo e adensamento orestal;extração e reno de óleos, essências e aromáticos empregados como ali-mentos, fontes de energia e nas indústrias farmacêutica, de cosméticose perfumes; beneciamento de madeiras secundárias e preservação das biodeterioráveis;

II – no extrativismo animal e na pecuária: ampliação controlada da pesca e caça; criação de mamíferos, quelônios e jacarés; cultivo de peixesainda não introduzidos na piscicultura; aproveitamento do potencial lipí-dico dos fígados e outros tecidos residuais de peixes;

III – no agronegócio: cultivo e industrialização de frutas tropicais e peixes regionais; produção de cultivares de maior resistência tossintéti-ca ou pouco propensos a enfermidades; desenvolvimento de fertilizantesalternativos;

IV – na saúde humana, animal e vegetal: a produção de extratos esubstâncias ativas, de efeitos terapêuticos, provenientes da ora e fauna;desenvolvimento de tomedicamentos, inseticidas naturais, antibióticos,aminoácidos, enzimas, proteínas, vitaminas (é o caso das vitaminas A eC, extraídas do fruto camu-camu, abundante na região; ou a pesquisa denovos avonoides extraídos das folhas de gincgo-biloba);

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V – na preservação e conservação do meio ambiente: biointervençãoem solos; biorreciclagem de lixo e resíduos agroindustriais; emprego de

 bioindicadores no controle da poluição.Todo isso depende crucialmente do desenvolvimento e integração,

na Amazônia como um todo, de base cientíco-tecnológica. E do refor -ço dos elos de interação dessa base com as matrizes nacional e inter-nacional de conhecimento. Depende também, para a transformação doconhecimento acumulado em inovações produtivas e organizacionais, deecaz intercomunicação entre essa base e os agentes econômicos, sociais

e políticos. Daí a necessidade de uma coordenação, em nível regional,dessas atividades, estruturadas em sistema de grande efetividade geren-cial. Sistema capaz de inserir-se de forma criativa e ecaz no processo dedesenvolvimento.

O Centro de Biotecnologia da Amazônia, CBA, instalado em Ma-naus e vinculado à Suframa, é entidade-chave para articular e aglutinaresforços nesse campo, em especial nas áreas de bioprospecção (com vis-

tas a inventário da biodiversidade), conservação da biodiversidade, bio-tecnologia (processos e produtos) e no desenvolvimento de polo de bio-tecnologia e bioindústria adiante antevisto.

SUSTENTAÇÃO DA BIODIVERSIDADE

As orestas tropicais úmidas são os ecossistemas terrestres de maio-res complexidade e diversidade biológica. Elas abrigam entre 70% e 80%

de todas as espécies de plantas e animais. Cerca de 1/3 dessas orestasencontra-se no Brasil, particularmente na Amazônia, que detém hoje amaior extensão contínua de oresta tropical úmida – um imenso banco biótico natural, com 30% do estoque genético do planeta. São cerca de 60mil espécies de plantas, 2,5 milhões de espécies de artrópodes (insetos,aranhas, centopeias etc.), duas mil espécies de peixes e 300 de mamíferos.Muito pouco conhecidos e caracterizados cienticamente, seus potenciaisenquanto recursos genéticos são praticamente ignorados.

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A emergência, na agenda mundial de desenvolvimento, do conceitode biodiversidade – a biodiversidade diz respeito à variedade da vida, em

várias dimensões: a variedade genética, dentro de populações e espécies;a variedade de espécies, da ora, fauna e micro-organismos; a variedadede funções dos organismos nos ecossistemas; a variedade de ecossiste-mas, habitats, comunidades – deu mais vigor à defesa das orestas tropi-cais úmidas, naturalmente frágeis e de difícil regeneração. Destruí-las oudanicá-las pode signicar perdas irremediáveis de biodiversidade. Per -das incalculáveis, dado o desconhecimento de seu valor, ou seja, da biodi-versidade enquanto recurso genético. Conservá-la in situ, em especial as

espécies vegetais, geralmente de maior diversidade genética, é prescriçãoatualmente impositiva.

A conservação supõe o estabelecimento de áreas protegidas, capazesde assegurar a diversidade interna de populações de vegetais e animais.Áreas de dimensões maiores do que as voltadas à conservação de espé-cies e ecossistemas.

Foi nesse contexto que surgiram os chamados corredores ecológicos,ou seja, amplas faixas contínuas de áreas protegidas, onde se representemdiferentes níveis de organização genética e se torne possível a livre cir-culação de genes.13 

Considerando-se mais amplamente a questão da sustentabilidadeambiental do desenvolvimento, cabe ressaltar a importância de zonea-mento ecológico com medidas efetivas de proteção e conservação dos re-

cursos naturais em geral e do patrimônio genético em particular. A buscadesses objetivos deve assentar-se:

I – no controle das pressões antrópicas exercidas sobre os espaços,de preferência descontínuos, onde existam, ou venham a ocorrer, povoa-mento e expansão concentrados de atividades produtivas;

13 – Foram estabelecidos para a Amazônia cinco corredores. O mais importante deles é

o Corredor Central da Amazônia, com 245 mil km2, que se estende pelas bacias dos rios Negro e Solimões.

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II – em concepção e execução de ordenamento territorial de toda aregião.

 Nesse entendimento, é mais que necessário dispor, para cada ÁreaPolarizada, de um zoneamento ecológico que mapeie os espaços de pre-servação, identique aqueles onde existem pressões antrópicas, escalo-nando-as por graus de intensidade. Bem como delimitar aquelas áreasque, em decorrência da estratégia proposta, devem ter ocupação tópicaintensicada ou ampliada, devidamente mensurados os possíveis impac-tos socioambientais.

O zoneamento ecológico deve fugir do comumente preconizado, queé demasiadamente complexo, exigindo levantamentos minuciosos e en-volvendo altos custos. Ele deve tomar como base os dados e informaçõesdisponíveis, sendo concebido como um processo contínuo de produção eanálise de informações, em constante ampliação e aperfeiçoamento. Ouseja, deve ser uma atividade permanente, que oriente decisões e se autoa-limente pelos resultados delas decorrentes. Assim, corrigindo rumos, sub-

metendo os projetos de desenvolvimento ao crivo de análises de impactoambiental (estas também descomplicadas e menos custosas, em tempo erecursos).

O Projeto Sipam-Sivam (Sistema de Proteção da Amazônia e Siste-ma de Vigilância da Amazônia), em funcionamento, é instrumento im- portante de vigilância também ambiental. Outros meios de produção tem- pestiva de informações sobre a evolução dos vários processos antrópicos

(imagens orbitais de sensoriamento remoto, por exemplo) continuam ten-do grande utilidade.

O avanço do conhecimento (da ciência e da tecnologia, difundidose aplicados na região), bem como consciência ecológica compartilhada por toda a sociedade, a par de grande esforço de educação ambiental, éinstrumento importante para o constante aperfeiçoamento do processo dedesenvolvimento amazônico verdadeiramente sustentável.

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MUDANÇA DE PARADIGMA PRODUTIVO

 Nas últimas décadas, o crescimento econômico da Amazônia, mais

acelerado nos anos 1970, foi impulsionado sobretudo pela indústria in-centivada da Zona Franca de Manaus e por grandes projetos: minerome-talúrgicos (ferro, cassiterita, bauxita); de produção de energia (hidrelétri-cas, gás natural); madeireiros (madeira, carvão, celulose); agropecuários.Dele resultaram importante expansão da produção, bom contributo à for-mação de recursos humanos, avanços na infraestrutura de transporte eenergia elétrica, modernização urbana, em especial das maiores cidades,estímulo à capacidade de empreendimento.

 No caso do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, a estrutura produtiva existente deve ser mantida, aperfeiçoada e ampliada – de prefe-rência ao longo das cadeias produtivas e com vistas à exportação para osmercados nacional e internacional. Deve também ampliar suas relaçõescom a base de recursos naturais da região, buscando seu beneciamentoindustrial.

Os novos projetos minerometalúrgicos, hidreléticos, madereiros,agropecuários devem subordinar-se aos objetivos do ecodesenvolvimen-to, evitando repetir, ampliando-o, o paradigma predatório dos recursosnaturais adotados no passado, pois, na Amazônia, eles devem ser conser-vados como fonte e reserva de grandes riquezas.

O novo paradigma de crescimento e desenvolvimento que emergiuno nal do século XX envolve a aplicação do conhecimento como ins-

trumento de uma nova relação entre o homem e a natureza. Bifronte, eleintegra e harmoniza duas fronteiras: a fronteira dos recursos e a fronteirado conhecimento. Não impõe pressões desordenadas, muitas vezes des-necessárias, sobre o meio ambiente.

É no encontro dessas duas fronteiras, em permanente movimento,que se deve buscar uma nova estratégia de expansão e transformação pro-dutivas da Amazônia. Pondo a ciência e a técnica a serviço do ecodesen-

volvimento, ela subverte os modos pretéritos de ocupação do espaço ao

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incorporar a necessidade de sua conservação e reprodução sustentadas.Comanda uma forma mais intensiva e descontínua de uso do território,

dando mais valor à diversidade e à qualidade do que à homogeneidade eà quantidade.

 Nesse contexto, é imperioso reexaminar criticamente a experiência passada, utilizando a ciência disponível para desenhar os caminhos deexpansão, diversicação e desconcentração concentrada das atividadeseconômicas onde se revelem vantagens competitivas.

NOVO EXTRATIVISMOO extrativismo tradicional, em sua forma mais amena, a de cole-

ta, pode ter sua sustentabilidade agronômica e ecológica. A sustentaçãoeconômico-social de longo prazo, no entanto, é precária. Sendo lento o processo de reprodução natural de que ela depende. Decresce a produti-vidade da mão de obra à medida que se estendem ou se tornam rarefeitasas áreas de extração. Imobilizam-se, em repetição rotineira, os métodos emeios de trabalho.

Ademais, por depender da oresta, o extrativismo não resiste à ex- pansão rápida, homogênea e compacta da fronteira agropecuária. Nessaalternativa de ocupação econômica, indesejável na Amazônia brasileira,é a terra, e não a oresta, que é o fator de produção, quando é na oresta,e não no solo, que reside a riqueza.

 Não é à toa, portanto, que o extrativismo tradicional vem perdendo

sua importância na região. Ele tende a determinar situações de virtualestagnação econômica e lento progresso social. Impõe-se sua reestrutura-ção, tirando-se proveito de experiências exitosas em curso.

Para propor as bases dessa reestruturação, cabe primeiro consideraro extrativismo predatório (casos da madeira, palmito, pau-rosa, pesca,caça). Nele, se o ritmo da extração for maior do que o da regeneração bió-tica natural, caminha-se, cedo ou tarde, para o aniquilamento da espécie.

Trata-se, portanto, de controlar dois uxos, denidos os limites de preser -

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vação dos estoques conhecidos, além de manter as áreas de conservaçãonecessárias à sobrevivência das espécies. As técnicas, os métodos para

tanto são sobejamente conhecidos e estão disponíveis: manejo sustentá-vel das orestas e não desorestamento indiscriminado; abate apenas dosespécimes vegetais adultos; espaçamento do abate; tempos próprios decaça e pesca; e outros.

Tem sido, entretanto, difícil sua implementação e controle.

Cabe destacar alternativa viável: a combinação da extração e do cul-tivo agroorestal ou agropecuário: seja em suas formas combinadas (oadensamento de espécies vegetais plantadas na oresta, ou o repovoa-mento de áreas excessivamente exploradas), seja em suas formas puras: amigração do extrativismo para o cultivo, que já ocorre, por exemplo, noscasos do pau-rosa, da piscicultura.

 No extrativismo de coleta (látex da seringueira, castanha-do-pará),ou na forma mista (de coleta e aniquilamento: caso do açaí, de que secolhe o fruto e se retira todo o palmito, com o sacrifício do vegetal),cabe promover extração racional, evitando as práticas sabidamente pre-datórias. Mas a grande procura de alguns produtos recomenda o cultivo:casos do guaraná, cultura hoje praticada em larga escala; e do cupuaçu,castanha-do-pará, açaí, dentre outros. Ou o cultivo em larga escala dodendê para a produção de biodiesel, por exemplo.

O objetivo de sustentação econômico-social, porém, quase sempreaconselha sistemas extrativo-produtivos consorciando extrativismo e cul-tivo, ambos envolvendo espécies de ciclos produtivos diferentes. Ou seja, poliextrativismos e policulturas: açaí, bananeira, seringueira, por exem- plo; ou castanha-do-pará, cupuaçu, pupunha; e muitos outros.

Os arranjos organizacionais para essas atividades podem envolvermicro e pequenas empresas: cooperativadas para a comercialização emescalas condizentes aos mercados nacional e mundial; ou com o objetivode fornecimento de matérias-primas para beneciamento industrial local.

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O extrativismo está disseminado por todas as Áreas Polarizadas daAmazônia. Cabe, em particular, destacar: no Rio Negro-Japurá, o açaí, o

dendê, a pupunha e a pesca; no Alto Solimões-Juruá, o açaí, a madeira e a pesca; em Itacoatiara-Parintins, a madeira, o guaraná e a pesca; no BaixoAmazonas, a castanha-do-pará, a madeira e a pesca; no Amapá, o açaí e acastanha-do-pará; em Marajó, a pesca.

Essa mera exemplicação já sugere como recomendável (além denecessária) a consorciação, em níveis subregional e local.

MINERAÇÃO CONTROLADATem-se hoje por aceito que o impacto ambiental da mineração, quan-

do praticada por empresas submetidas à atual legislação sobre a ativida-de, embora seja devastador, é pontual, isto é, espacialmente restrito. Etem sido remediado mediante, por exemplo, a reconstituição da coberturaorestal (nem sempre exitosa, é verdade). A atividade na Amazônia bra-sileira pode, entretanto, tornar-se aceitável, mormente naqueles casos emque a relação custo-benefício econômico-social for amplamente favorá-vel.

É grande a riqueza mineral da Amazônia. Além de gás natural e pe-tróleo, a região tem reservas importantes: de minerais metálicos: ferro, bauxita, cassiterita, cobre, níquel, titânio, manganês; de não metálicos:salgema, potássio e materiais oleiro-cerâmicos; de metais e pedras pre-ciosos e semipreciosos: ouro, diamante, ametista, zircônio, cristal de ro-

cha.Algumas das ocorrências minerais de aproveitamento atual e poten-

cialmente mais relevante para a Amazônia são o gás natural, o petróleo, oferro-manganês, o estanho metálico e os minerais oleiro-cerâmicos.

As reservas estimadas de gás natural (53 bilhões de m3) e petróleo(204 milhões de barris) localizam-se às margens do rio Urucu, a oeste deManaus (AP Tefé-Coari). O transporte de gás para a capital amazonense,

feito pelo gasoduto Urucu-Coari-Manaus, inaugurado em 2009, está en-

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sejando mudança signicativa na matriz energética do Estado do Amazo-nas: ao propiciar a substituição do óleo diesel e do óleo combustível pelo

gás natural (para geração de energia elétrica, principalmente).O gasoduto, de 661 km, tem capacidade para transportar 5,5 milhões

de m³/dia. Ele disponibiliza ao mercado o gás natural da segunda maiorreserva do País, a Bacia do Solimões (as reservas do estado do Rio deJaneiro são da ordem 144,8 bilhões de m³).

Em Coari poderá vir a localizar-se usina de processamento dos miné-rios de ferro e manganês, existentes em importantes jazimentos no Estadodo Amazonas. Nesse mesmo município estão sendo exploradas reservasde petróleo e gás liquefeito de petróleo, GLP, sucientes ao abastecimen-to de toda a Amazônia, devendo esses produtos ser processados pela re-naria da Petrobras localizada em Manaus, o que abre possibilidades dacriação, no futuro, de um polo petroquímico na Amazônia.

A mina de Pitinga, localizada no município de Presidente Figueiredo(a 265 km ao norte de Manaus, pela BR-174), possui o maior depósitode cassiterita hoje existente no País, com longevidade estimada em 100anos. Produz concentrado de estanho, que é enviado para reno em SãoPaulo, além de extrair a columbita (concentrada em Pitinga) e outros mi-nérios, ricos em nióbio e tântalo. A instalação em Pitinga de usina paraa produção do estanho renado e diversas ligas metálicas é investimentoque se reveste de economicidade e valor social, em especial se vier a uti-lizar energia proveniente do gás natural, de baixo custo relativo, e a criar

mais empregos na região.As atividades oleiro-cerâmicas têm potencialidades de desenvolvi-

mento nas Áreas Polarizadas Rio Negro-Japurá (para o abastecimento deManaus, principalmente), e nos Estados de Roraima, Amapá e Pará (paraemprego local).

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AGRONEGÓCIO: MAIOR VALOR 

São vastas as potencialidades do agronegócio regional. Para viabi-

lizá-lo em escalas adequadas, com elevada agregação de valor e orien-tação para os mercados nacional e global, há de adotar-se o enfoque decadeias produtivas integradas, de eciência e produtividade, envolvendodesde o extrativismo, o cultivo e o criatório até a comercialização e onanciamento, sendo necessário conceber projetos especícos com essesobjetivos e prover-lhes o apoio técnico, as linhas de crédito e outros me-canismos de fomento.

Cabe considerar o agronegócio primeiro no beneciamento da pro-dução extrativo-vegetal e animal sustentáveis: madeiras (laminados, mó-veis); pescado (enlatados, fatiados, peixes secos, farinha de peixe, entreoutros), frutas (sucos, poupas, doces, sorvetes), óleos e essências vege-tais, produtos farmacêuticos e outros. São essas atividades hoje presentes,em maior ou menor escala, em quase todas as Áreas Polarizadas.

Em segundo lugar, no beneciamento de produtos da silvicultura e

do criatório: sejam considerados isoladamente, sejam articulados ao ex-trativismo: o dendê, a pupunha (palmito) e a piscicultura (na Área Po-larizada Rio Negro-Japurá, por exemplo); a fruticultura, a mandioca, odendê, a piscicultura e carcinicultura (em Japurá-Solimões, no Estadodo Amapá); as frutas, hortaliças, mandioca, guaraná, plantas medicinaise cosméticas e a pecuária bovina connada (em Manaus e Sul Rorai-mense); as frutas cítricas (entre elas, o camu-camu) e a mandioca (emItacoatiara-Parintins); o dendê (para a produção de biodiesel), o guaranáe a pecuária (no Baixo Amazonas); a soja, o milho, o café, o arroz (noslavrados do Norte Roraimense); a piscicultura de águas doce e salgada, oscrustáceos e a pupunha (no Amapá).

Cabe ainda referir a possibilidade de se implantar em Itacoatiara(Área Itacoatiara-Parintins) polo de beneciamento da soja que, oriundado Centro-Oeste, por lá transitar rumo aos mercados externos, associadoao beneciamento de grãos ou tubérculos (soja, arroz, mandioca), prove-nientes da própria Amazônia.

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A BIOINDÚSTRIA

São importantes as perspectivas do emprego da biotecnologia em

geral e da engenharia genética em particular nos processos industriais queutilizam como matérias-primas os recursos bióticos da Amazônia.

Importa, nesse campo, tanto progredir no conhecimento da biodiver-sidade regional quanto procurar assegurar direitos de propriedade sobre ouso de espécies naturais de elevado valor econômico. E também evoluirno inventário das biotecnologias referidas à base de recursos identicada, bem como em seu emprego no desenvolvimento de novos produtos inten-

sivos em conhecimento e com múltiplas aplicações: na agropecuária, nono agronegócio, nas indústrias química, farmacêutica e de cosméticos, nocontrole do meio ambiente.

Para tornar realidade um polo de bioindústrias na Amazônia – loca-lizado, por exemplo, em Manaus; ou ao longo de um eixo interligandoManaus, na foz do rio Negro, a Itacoatiara, à margem esquerda do rioAmazonas –, é importante que o Centro de Biotecnologia da Amazônia,

CBA, de Manaus, tenha condições de ir preenchendo o hiato tecnológicoexistente entre a região e os centros nacionais e mundiais mais avançadosem biotecnologias economicamente promissoras.

Para o êxito dessa tarefa, que envolve grande capacitação cientíca etécnica, impõe-se o estabelecimento de parcerias com os grandes gruposnacionais e globais que se encontram na fronteira do processo de geraçãoe aplicação desses conhecimentos, forma de atraí-los para participação

ativa na região.

Com efeito, a bioindústria na Amazônia tem, em médio prazo, opor-tunidade de desenvolver-se nas seguintes áreas:

I – na cosmética farmacêutica, contemplando óleos nos de casta-nha-do-pará e de polpas de frutos diversos; sabonetes nos; óleos essen-ciais e perfumes; pilocarpina (extraída do jaborandi);

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II – nos inseticidas, insetífugas e assemelhados, contemplando: osderivados da raiz de timbó, da madeira de quina, das sementes de andiro-

 ba; das folhas de pimenta longa;III – na produção de alimentos, contemplando óleos vegetais (buriti,

tucumã e pupunha); aromas e sabores (de plantas e frutos regionais; co-rantes naturais, gomas de marcar naturais, nutrientes especiais, derivadosde frutos e de peixes).

A importância econômica dos recursos genéticos da Amazônia, be-neciados pelas novas biotecnologias, ainda é de difícil mensuração.Admite-se que sua importância será estrategicamente maior na indústriafarmacêutica, pois cerca de ¼ dos toterápicos mundialmente comercia-lizados origina-se de espécies vegetais das orestas de climas quentes. Etambém, conforme já indicado, na indústria de cosméticos.

 Nessas áreas, algumas iniciativas empresariais, embora limitadas, podem ser referidas:

I – a produção de bixina (pigmento do grão de urucum), utilizada nafabricação de batom (envolvendo empresa norte-americana de cosméti-cos e indígenas do Vale do Juruá, Acre);

II – parceria com os índios Caiapós-Acure, Pará, que vendem óleo bruto de castanha-do-pará para a indústria cosmética inglesa;

III – a utilização, por empresas brasileiras de cosméticos, de princí-

 pios ativos provindos da ora da Amazônia brasileira, entre elas a Natura,a Chamma, a Phebo, a Extracta.

A Suframa poderia ser a entidade encarregada de promover a bioin-dústria na região, sem prejuízo de seu papel atual de promotora do Distri-to Industrial de Manaus.

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ECOTURISMO

O turismo, embora venha evoluindo, ainda não tem a importância

econômica que pode vir a ter para a Amazônia brasileira.

São boas as potencialidades do turismo ecotropical na região, sobre-tudo do turismo internacional.

O Estado do Amazonas tem em Manaus polo turístico já relevante.Os atrativos são a oresta e o labirinto dos rios. Os hotéis de selva já sedisseminam pelo rio Negro e Médio Amazonas.

Manaus, sobretudo, por seu porte urbano, facilidade de acesso aéreoe os atrativos naturais circunvizinhos, tem meios para motivar, além doturismo internacional, também o turismo interno. As atrações culturaisvinculadas ao ciclo da borracha: o Teatro Amazonas (1896), novamentecasa da ópera, o Mercado Municipal (1883), a Alfândega (1912), benstombados pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, são contrapon-tos à natureza exuberante. O encontro das águas do rio Negro com as do

Solimões, os passeios de rio, as caminhadas na oresta são atrações eco-turísticas. Parintins, situada em ilha no meio do rio Amazonas, produz,em junho, o seu já famoso Festival Folclórico, inscrito no calendário doseventos populares nacionais.

Belém já é polo de turismo interno relevante. E há boas possibili-dades para o ecoturismo no Pará (a partir de Belém), no Amapá e emRoraima.

Uma estratégia de promoção do turismo receptivo para a Amazôniadeve enfatizar duas ideias-força. A primeira delas está contida no próprionome Amazônia, com sua carga de mito e mistério, despertando um amál-gama de percepções díspares, ou mesmo contraditórias, como o  Inferno

Verde  e a Visão do Paraíso. A segunda está no enlevo contemporâneo pelo  Retorno à Natureza, responsável pelo crescente vigor, em escalamundial, do ecoturismo, em especial o ecoturismo tropical, pois a Ama-

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zônia é o Trópico Anfíbio, mistura ainda incerta de terra e água. É o sole é a oresta.

O futuro do ecoturismo tropical amazônico depende, porém, de umagrande campanha de marketing  junto aos grandes mercados potenciais:os Estados Unidos e Europa, a Ásia (Japão, China e Coreia do Sul, prin-cipalmente) e o Centro-Sul brasileiro; de reforço da infraestrutura e dosserviços turísticos: transportes, aéreo e uvial, hotelaria, agências de via-gem; da capacitação dos recursos humanos locais para apoio mais ecien-te e diversicado ao turista; da valorização das manifestações culturais

(inclusive a culinária e o artesanato); de maior acessibilidade aos sítiosecoturísticos mais distantes das maiores cidades; de conforto, previsibili-dade e segurança; de trabalho coordenado e conjugado das esferas públi-ca e privada da sociedade.

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

 No processo de transformação social da Amazônia três questõesdestacam-se pela grande relevância: as questões da educação, da pobrezae do índio.

RECURSOS HUMANOS

A despeito dos progressos obtidos nas últimas décadas, ainda é mais baixo o nível de desenvolvimento humano alcançado pela Amazôniaquando confrontado ao brasileiro.

Um índice sintético, o Índice do Capital Humano, ICH, conrmaessa assertiva. Para a Amazônia brasileira, ele foi, em 1970, 0,44 (Bra-sil=100,00), tendo alcançado 6,9 em 2010. Ou seja, o ICH cresceu, naAmazônia, a 7,1% anuais entre 1970 e 2010; evolução bem superior àdo Brasil (4,8% ao ano). Na região, no entanto, esse crescimento se de-veu mais ao componente demográco do ICH (a população de 15 anos emais), que se expandiu a 4,3% anuais no mesmo período, impulsionado pelas imigrações. O componente educacional cresceu menos: 2,8% ao an,o que determinou participação da Amazônia no ICH brasileiro (os já refe-

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ridos 6,9%) maior do que a parcela regional no PIB do País, de apenas 5%(tabela 1). Sugerindo “produtividade” do capital humano relativamente

menor que a brasileira.14

 Exame do componente educacional do ICH enseja uma comparação

de interesse entre a qualicação dos recursos humanos na Amazônia eno Brasil. Em 1970, a taxa de alfabetização regional, de 66,7%, supera-va em 1,00% a brasileira (66,2%). Ela se elevou, em 2010, para 88,8%,tornando-se inferior à nacional (90,4%) tendo, portanto, crescido menosnesse período: a 0,72% anuais (Brasil: 0,78%). Mais favorável à Ama-

zônia brasileira foram os desempenhos dos anos médios de estudo da população amazônica. Em 1970, a população amazônica de 15 anos oumais tinha, em média, 3,8 anos ou mais de escolaridade; no Brasil, essenúmero era 4,6 anos, ou seja, era 21,1% maior. Em 2010, a média de anosde estudo regional alcançou 6,9 anos, inferior em apenas 5,8% à brasileira(7,3 anos).

Persistem, portanto, os hiatos em educação entre a região e o País

como um todo, mas houve uma importante redução de sua amplitude nasúltimas décadas.

 Na formação de recursos humanos da Amazônia, o objetivo deve sera universalização da educação média (primeiro e segundo graus), acom- panhada de qualicação para o trabalho.

Para alcançá-lo, cabe, em primeiro lugar, elevar a qualidade do en-sino médio (primeiro e segundo graus) e universalizá-lo, de modo a as-segurar a todos a aquisição das competências a partir das quais se torna possível desenvolver habilidades técnico-prossionais mínimas.

 Não se trata, portanto, de continuar a reproduzir, quantitativamente,a escola que se tem hoje. Nem apenas de dotá-la de mais recursos nan-ceiros, obtendo, com eles, melhorias apenas marginais no ensino e no produto educacional.

14 –  Para o cálculo do ICH, cf. Albuquerque, 2005, pp. 107-14.

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Trata-se, por um lado, de dar um grande salto na qualidade da educa-ção. E, por outro, de aproximar a escola do mundo do trabalho, rompendo

sua dissociação da ocina, da empresa, em geral das tarefas da produção,sem com isso descaracterizá-la ou fundir institucionalmente educação equalicação.

O paradigma técnico e gerencial compatível à economia moderna,aberta e competitiva não pode prescindir de educação geral de bom nível.

Ela deve propiciar, no primeiro grau, formação que assegure rápi-do desenvolvimento cognitivo, racionalidade instrumental, autonomiaindividual e solidariedade social, capacidade de empreendimento e ino-vação. Deve estar dotada dos requisitos básicos da oferta educacional:instalações, equipamentos, material didático, capacidade docente. E sergerida ecientemente, de forma descentralizada, com a participação dacomunidade. Assegurando processo contínuo de atualização pedagógicae curricular, avaliando permanentemente resultados, estimulando o me-lhor desempenho e a sadia emulação entre professores e entre alunos.

 No segundo grau, deve enveredar, sem prejuízo de seus conteúdosgerais, pela educação aplicada, especíca, de natureza técnico-gerencial,compreendida como o processo pelo qual o conhecimento é referenciadoao trabalho.

Concluída sua educação básica, o aluno deve estar capacitado tanto para continuar sua formação nas universidades quanto para adquirir, nosistema de qualicação, treinamento prossionalizante complementar.Ele deve ter, em particular, a capacidade de autoaprendizado; as habili-dades para inserir-se em organizações produtivas complexas que exijamdele decisão, iniciativa, organização, interação criativa, inovação.

 No curto-médio prazo, o esforço para superar o hiato educacionaldeve ter como público-alvo a população subeducada mais jovem (entre14 e 35 anos) e orientar-se pragmaticamente pelas demandas do mercadode trabalho.

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R OBERTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

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Essa tarefa deve associar, com exibilidade, a suplementação daeducação geral minimamente necessária com qualicação prossional

especíca que permita avanços posteriores nos níveis de especialização.

COMBATE À POBREZA

A Amazônia brasileira abrigava 3,8 milhões de pessoas em situaçãode pobreza em 2011: o terceiro maior contingente de pobres segundo asregiões (depois do Nordeste e do Sudeste), correspondente a 24,3% da população (a segunda maior proporção regional de pobres depois do Nor-deste).

O combate à pobreza na região deve procurar viabilizar inserção dos pobres no trabalho que lhes proporcione superar os níveis de subrendafamiliar e a situação de exclusão econômica e social em que eles se en-contram.

Para tanto, faz-se mister considerar a pobreza no contexto da socie-dade envolvente, procurando compreendê-la a partir das variáveis que

determinam a expansão da renda e da riqueza e sua distribuição entre pobres e não pobres.

 Nesse contexto, é fora de dúvida que a gradativa inclusão dos pobresna economia regional depende da capacitação dos recursos humanos e dacriação de oportunidades de sua utilização produtiva.

Capacitar os pobres a maior participação no produto da região equi-

vale a elevar seus níveis de educação geral e de qualicação para o tra- balho, de modo a habilitá-los à inserção na economia que assegure rendasuciente à satisfação das necessidades básicas.

O trabalho, em sentido amplo (isto é, não apenas o emprego for-malmente contratado), deve operacionalizar o enlace entre a qualicaçãoe seu uso produtivo, de que deverá resultar, para o pobre, mais renda e bem-estar.

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As precondições necessárias desse encaixe são, de um lado, a capaci-dade da economia de gerar sucientes oportunidades de inserção produti-

va. De outro, agenciamento ecaz no mercado de trabalho ou estímulo àsatividades por conta própria, individuais ou associativas.

 Nas cidades, os investimentos em infraestrutura urbana (saneamen-to, drenagem, sistema viário e outros), os serviços púbicos (limpeza urba-na, coleta de lixo, segurança pública) e o turismo constituem opções paragerar ocupação.

 No meio rural e menores núcleos urbanos, deve-se procurar reduziro grau de dependência das famílias pobres do extrativismo tradicional,seja transformando-o em atividade economicamente sustentável, seja pormeio de programas de colonização e assentamento em áreas destinadas àsilvicultura e à pecuária em pequena escala. O acesso das famílias extre-mamente pobres à terra, à eletricação, ao crédito; à assistência técnicae a formas não espoliativas de comercialização é muito importante comoforma de elevar a renda por elas retida.

PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS

Avance-se a ideia de que, na Amazônia brasileira, o ecodesenvolvi-mento deve ter como objetivo não apenas a conciliação do crescimentocom a conservação da diversidade biológica, mas também com a diver-sidade cultural: representada pela multiplicidade de modos e formas devida e práticas sociais das populações indígenas ali remanescentes.

A conservação dessa rica sociodiversidade estriba-se em visão inter-temporal do progresso humano, com signicado tanto pragmático comoaltruísta: de um lado, o de assegurar às atuais e futuras gerações expe-riências e conhecimentos milenarmente acumulados; de outro, o de pro-teger culturas ancestrais e assegurar integração harmoniosa dos índios àcomunidade nacional. Sem prejuízo da opção por processo dinâmico decrescimento e desenvolvimento e melhoria dos níveis de vida e bem-estar

de toda a população amazônica.

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Cabe, em particular, postular uma escola para o índio inserida nosistema educacional brasileiro, mas – pelo menos no ensino fundamental

 – diferenciada. Que seja bilíngue (com o uso concomitante do portuguêse da língua nativa); que organize os conhecimentos e valorize as cul-turas tradicionais; que incorpore a participação da comunidade; ensejeinterculturalidade harmoniosa; e tenha currículos, calendários e ritmo deaprendizado adequados a esses objetivos e às vivências e práticas sociais

Igualmente complexa, e delicada, é a relação entre mineração naAmazônia e a questão indígena, na medida em que muitas riquezas mine-

rais encontram-se em terras demarcadas.Constrangimentos associados a essa questão impedem hoje, por

exemplo, a exploração do ouro e do diamante em Roraima e no nortedo Estado do Amazonas (Rio Negro-Japurá). É possível que, no futuro,essas minas possam vir a ser exploradas empresarialmente: mediante cui-dadoso arranjo institucional que resguarde a cultura e o patrimônio das populações indígenas e lhes assegure legítimo retorno econômico.

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POR  UMA  NOVA GEOGRAFIA POLÍTICA PARA A AMAZÔNIA BRASILEIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):199-234, abr./jun. 2014 233

do professor José Raimundo Vergolino e equipe do Instituto Superior deAdministração e Economia, Isae, da Fundação Getúlio Vargas, FGV].

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Texto apresentado em setembro/2013. Aprovado para publicação emdezembro/2013.

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VISÕES DO SERTÃO: O INTERIOR DAS TERRAS NO BRASIL

COLONIAL E NA ÁFRICA PORTUGUESA

VISIONS OF THE SERTÃO: HINTERLANDS IN COLONIAL

BRAZIL AND PORTUGUESE AFRICA

A NDRÉ R ICARDO HERÁCLIO DO R ÊGO1

Os homens que, a partir da expansão ultramarina ibérica, “deram no-vos mundos ao mundo”, viviam numa fase de transição entre a Idade Mé-dia e o Renascimento. O próprio infante dom Henrique, o grande respon-sável pelo desenvolvimento cientíco e tecnológico que permitiu as gran-

1 – Doutor em História pela Universidade Paris X-Nanterre. Diplomata. E-mail: [email protected].

Resumo:

Os sertões eram, ou são, o Outro, diferente eimprevisível, mas também muito próximo e se-melhante, moldado quase à imagem dos que os

viam, europeus acostumados com o imagináriomedieval. A visão desse Outro e a percepção deuma imagem especíca e peculiar desse mundonovo, mas de certa forma familiar, moldarama realidade histórica e o espaço geográco, econtribuíram para melhor se conhecerem ossertões, de além e d’aquém mar. A geograamaravilhosa e mítica, tão fundamental na épocados descobrimentos, e que era fruto das leiturase tradições, ou seja, de uma experiência indi-reta, mesclada em grau maior com a experiên-cia direta, com o “saber da experiência feito”,

que sobretudo portugueses e espanhóis vinhamadquirindo, cedeu pouco a pouco espaço parauma geograa imaginária que, embora ainda in-uenciada pelo maravilhoso, adquiria cada vezmais um componente cientíco. As fases desse processo se interpenetram, não há linearidade.O maravilhoso permaneceu até bem avançadoo século XVIII, em pleno Iluminismo. Mas aterra ignota era cada vez mais uma imagem do passado; e a terra incógnita, ou pouco conheci-da, via suas fronteiras cada vez mais recuadas para o interior das terras, para dentro dos sertõesremotos.

 Abstract:

The sertões were, and are, the Other, distinctand unpredictable, but also close and familiar,according to the image of those who observed

them, mainly Europeans used to the medievalimagination. This vision of Otherness and the perception of a peculiar and specic image ofthis completely new world, but still familiar in acertain way, had a great inuence on historicalreality and on the geographical space, also con-tributing to improve knowledge of the sertões inthe Americas and in Africa. The wonderful andmythical geography, so important in the ageof discoveries, which was a result of literatureand tradition, that is, of an indirect experience,became mixed with direct experience, with ‘the

knowledge gained through experience,’ ac-quired mainly by Portuguese and Spaniards,was gradually replaced by an imaginary geog-raphy which, although still inuenced by myths,increasingly acquired a scientic nature. Thereis no linearity in this process. Myths persistedeven until the end of eighteenth century, duringthe Enlightenment. However, the terra ignotahas become an image of the past, while the terraincognita saw its borderlines pushed back fur-ther and further to the backlands, to within theremote sertões.

Palavras-chave: Brasil. África. História. Inte-rior das terras. Sertões. Imagem. Representação.

 Keywords: Brazil. Africa. History. Hinterlands.Sertões. Image. Representation.

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des navegações, e que antecipou as inovações renascentistas, foi criadonum ambiente medieval, e segundo uma visão de mundo correspondente.

E, como ele, todos os outros que se aventuraram por mares e terras desco-nhecidos. Com efeito, muitos dos marinheiros que embarcavam vinhamdo interior, dos sertões portugueses e espanhóis que, mais do que o lito-ral, sempre mais aberto às novidades, eram extremamente conservadores.Desse modo, os portugueses da época caracterizar-se-iam, segundo Sér -gio Buarque de Holanda, por uma adesão ao real e ao imediato e por umacapacidade de observação meticulosa eivada de interesse pragmático, quese vincularia a um tipo de mentalidade arcaizante2. Esse pedestre realis-

mo, próprio da arte medieval tardia, contrastaria “com o idealismo, coma fantasia e ainda com o senso de unidade renascentistas”3. Eles seriam,assim, típicos representantes de uma continuidade entre Idade Média eRenascimento, na qual haveria um estranho conluio de elementos tradi-cionais e expressões novas; a avassaladora preponderância da Coroa seriasem dúvida uma expressão da modernidade, mas não passaria de uma fa-chada “que mal encobriria os traços antiquados, sobretudo a forma mentis 

vinculada ao passado e avessa, por isso, à especulação e à imaginaçãodesinteressadas do humanismo renascentista”4.

Essa visão do mundo, a par de uma religiosidade que nem sempreseguia os cânones estabelecidos pela Igreja Católica, notabilizava-se poruma grande intimidade com o maravilhoso e o sobrenatural, seja na vidacotidiana, como na grande proximidade que havia, por exemplo, com ossantos, considerados quase membros da família – característica que se

2 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobri-mento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 36.3 – Idem. “Nada fará melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao por-menor e ao episódico, avessos, quase sempre, a induções audaciosas e delirantes imagina-ções, do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e ainda com o sensode unidade dos renascentistas, o pedestre "realismo" e o particularismo próprios da artemedieval, principalmente de ns da Idade Média. Arte em que até as guras de anjos pare-cem renunciar ao voo, contentando-se com gestos mais plausíveis e tímidos (o caminhar,

 por exemplo, sobre pequenas nuvens, que lhes serviriam de sustentáculo, como se fossemformas corpóreas), e onde o milagroso se exprime através de recursos mais convincentes

que as auréolas e nimbos, tão familiares a pintores de outras épocas!”. Ibidem.4 – Ibidem, p. 207.

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reetia sobretudo na religiosidade popular 5, seja nas discussões losó-cas e históricas das reduzidas elites intelectuais. Se os portugueses não se

seduziam tanto com o maravilhoso, era também porque este fazia partedo cotidiano.

 Nesse sentido, a imago mundi, a imagem do mundo medieval, erauma tentativa de conciliação entre os ensinamentos dos antigos gregose latinos e os cânones bíblicos e os relatos dos viajantes – reais ou ima-ginários6. Criou-se assim uma geograa maravilhosa, na qual realidadee mito seguiam lado a lado, e que envolvia tudo o que fosse não euro-

 peu, e mesmo alguns aspectos da própria realidade europeia, nas brumasda incerteza. Ela focou-se, em primeiro lugar, na Ásia, no Oriente mis-terioso, em função de relatos como o de Marco Polo; depois na Áfricae, nalmente nas Américas, no Novo Mundo. Os responsáveis por estageograa fantástica dispunham de informações sobre o mundo que eram,de sua natureza, esparsas, desencontradas e contraditórias, grandemen-te condicionadas pelos conhecimentos dos antigos e pela Bíblia, como já dito7. Nelas predominavam alguns topoi, entre os quais a busca pelo

 preste João, príncipe cristão que viria em socorro da cristandade europeia para derrotar os inéis muçulmanos e recuperar a Terra Santa, a Jerusa-lém terrestre; a busca do Paraíso Terreal; e a zona tórrida, entre outros.

5 – “Impossível conceber-se um cristianismo português ou luso-brasileiro sem essa inti-midade entre o devoto e o santo. Com Santo Antônio chega a haver sem-cerimônias obs-cenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se peteca em festas de igreja dos temposcoloniais. Em Portugal, como no Brasil, enfeitam-se de teteias, de jóias, de braceletes, de

 brincos, de coroas de ouro e diamante as imagens das virgens queridas, os dos Meninos

Deus como se fossem pessoas da família. Dão-se-lhes atributos humanos de rei, de rainha,de pai, de mãe, de lho, de namorado. Liga-se cada um deles a uma fase da vida domés-tica e íntima” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Edição crítica de GuillermoGiucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca. Coleção Archivos. Madri;Barcelona; La Habana; Lisboa; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Guatema-la; San José: ALLCA XX, 2002, p. 245.6 – Cf. ROUX, Les explorateurs du Moyen Age, Paris, Seuil, 1961, apud  MIX, MiguelRojas. América imaginaria, Barcelona: Editorial Lumen, 1992, p. 10.7 – FLECK, Eliane C. Deckmann, O imaginário dos séculos XVI e XVII – suas mani-festações e alterações na América. In: SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.). DoTratado de Tordesilhas – 1492 – ao Tratado de Madrid – 1750. Comunicações apresenta-

das no XV Congresso Internacional. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do SéculoXVIII, 1997, pp. 349-360, p. 349.

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 Na verdade, num mundo desconhecido, diferente e incógnito, o que se buscava era o conhecimento de si mesmo: os mitos eram assim reexo

do sistema europeu de valores8

. As terras desconhecidas, ou pouco co-nhecidas da Ásia, da África e das Américas eram percebidas, ou pelomenos o deviam ser, segundo visões já consagradas e de acordo com asexpectativas daqueles que se aventuravam por esses novos mundos9. Umdos exemplos mais evidentes disto é Cristóvão Colombo, cuja descriçãoda selva tropical não seria mais que a réplica da divina foresta spessa eviva’, que o poeta,  prendendo la campagna; lento lento, viria penetrar para atingir nalmente o paraíso terrestre10.

As descobertas de novas terras e de novos mares, de certa forma,representaram um processo de autodescobrimento da Europa11. Nem porisso, esses mundos novos deixavam de ser, ademais de maravilhosos,suspeitos e inquietantes, em que céu e inferno, Deus e o diabo se con-trapunham; em que havia uma humanidade nova, que aliás não era tãonova assim, porque capaz de pecar e de ser salva; enm, onde estava o

8 – Idem, p. 349.9 – Ibidem, p. 349. Sérgio Buarque de Holanda resume essa situação à maravilha: “Pre-sos como se achavam aqueles homens, em sua generalidade, a concepções nitidamentemedievais, pode supor-se que, em face das terras recém-descobertas, cuidassem reconhe-cer, com os próprios olhos, o que em sua memória se estampara das paisagens de sonhosdescritas em tantos livros e que, pela constante reiteração dos mesmos pormenores, jádeveriam pertencer a uma fantasia coletiva. Ao descortinarem o espetáculo do aquém--mar, não faltavam certamente os que julgassem ver enm realizadas visões tais como asque oferece, por exemplo, a narrativa devota de um anônimo português, do século XV, oséculo dos grandes descobrimentos, quando pinta um “campo mui formoso, comprido demuitas ervas e ores de bom odor” ou um “bosque mui espesso de árvores mui formosas

em que criavam muitas aves que cantavam mui docemente…” (Visão do paraíso, pp. 262e 263)10 – HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 55. Trata-se de citação da  Divina Co-media, Purgatório, XXVIII, I: “Vago, già di cercar denteo e dintorno/La divina forestaspessa e viva,/Ch’agli occhi temperava il nuovo giorno,/Senza più aspettar lasciai la riva,/Prendendo la campagna lento lento/Su per lo suol che d’ogni parte oliva./Un’aura dolce,senza mutamento/Avere in sè, mi feria per la fronte,/Non di più colpo, che soave vento;Per cui le fronde, tremolando pronte,/Tutte quante piegavano alla parte/U’la prim’ombragitta il santo monte...”ALIGHIERI, Dante. La divina commedia. Illustrata da GustavoDoré, e dichiarata con note tratte dai migliori commenti per cura de Eugenio Camerini.Milano: Società Editrice Sonzogno, 1904, p. 467.

11 – BECHTOLSHEIM, Delia. Mitos da América do ponto de vista europeu. RevistaHumboldt, Munique, nº. 46, 1983, p. 41. apud, FLECK, Eliane, op. cit ., p. 351.

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VISÕES DO SERTÃO: O INTERIOR  DAS TERRAS  NO BRASIL COLONIAL E  NA ÁFRICA PORTUGUESA

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Paraíso, ou o Inferno12. Nesses mundos novos, ou nem tanto, localizava--se o império do preste João, do Presbiter Johanes medieval, reino mara-

vilhoso e inacessível, que fazia fronteira com o Paraíso terreal13

; nessesmundos, viviam monstros e outras criaturas maravilhosas. E aqui ocorreuum fenômeno interessante: a migração do maravilhoso. Este, localizadosempre em regiões longínquas e incógnitas, ora estava no Oriente, ora naÁfrica, ora no Novo Mundo. É o caso, entre outros, do Paraíso terrestre.Os descobridores do Novo Mundo, fossem eles anglo-saxões, castelhanosou portugueses, obedeciam, geralmente, a um paradigma comum de mo-tivos edênicos; mas esse paradigma admitia duas variantes, que se teriam

 projetado no desenvolvimento posterior do continente: de um lado, osanglo-saxões “vinham movidos pelo afã de construir, vencendo o rigor dodeserto e selva, uma comunidade abençoada, isenta das opressões religio-sas e civis”; já os ibéricos “se deixavam atrair pela esperança de achar emsuas conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste,que a eles se oferecia sem reclamar labor maior…”14.

Os colonizadores castelhanos encontraram no Novo Mundo um ce-

nário “animado pela expectativa de um  plus ultra de maravilha, encan-tamento e bem-aventurança”; os portugueses, mais prudentes e contidos,ainda assim não fugiam “à tentação de idealizar o mundo novo e seusaspectos”, mas o faziam com mais realismo e naturalismo. “Se parecemacolher aqui e ali notícias inverossímeis e fabulosas sobre os segredos dosertão, fazem-no de ordinário com discreta reserva, admitindo até uma possível indelidade das testemunhas invocadas, mormente os índios da

terra.”15

  Não os inquietava, como aos castelhanos, o que Sérgio Buar-que de Holanda chamou “a insopitável esperança de impossíveis”16. Suacuriosidade era, geralmente, temperada, prosaicamente utilitária. Analde contas, de que servia “querer penetrar a todo o transe esses segredos

12 – FLECK, Eliane, op. cit ., p. 350.13 – Carta do Preste João das Índias versões medievais latinas. Prefácio e notas de ManuelJoão Ramos; tradução de Leonor Buescu. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 8.14 – HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit. Prefácio, p. 22.

15 – HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 353.16 – Idem, p. 443.

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importunos? Muito mais do que as especulações ou desvairados sonhos,é a experiência imediata o que tende a reger a noção do mundo…”. A

experiência, “madre das coisas”(Fig. 1)17

.Assim, os descobridores, povoadores e aventureiros, o que muitas

vezes vinham buscar e, não raro, acabavam encontrando, nas ilhas e terrarme do Mar Oceano, era uma espécie de cenário ideal, feito de suasexperiências, mitologias ou nostalgias ancestrais. Nesse sentido, a desco- berta e a conquista destes mundos desconhecidos e sua integração no sis-tema de representações europeu foi também um trabalho do imaginário,

sob a égide do maravilhoso. E o lugar deste era, por denição, as terrasincógnitas ou pouco conhecidas. Entre essas terras incógnitas ou poucoconhecidas, merecem especial destaque os sertões, o interior das terras.Se o litoral desses novos e misteriosos mundos já era motivo de assombroe alumbramento, como se pode constatar, por exemplo, da leitura da cartade Pero Vaz de Caminha, que dizer do interior desconhecido?

Os sertões têm, assim, o seu imaginário, fruto do encontro entre a

terra, umas vezes virgem, outras ocupada por civilizações antigas, e a tra-dição cultural europeia, marcadamente medieval. Essas visões do sertãosão marcadas por percepções e sentimentos contraditórios de encanta-mento maravilhado e de desprezo incontornável por um mundo desor -denado; de assombro pela novidade e de certo reconhecimento familiar,mesmo nostálgico, de um mundo que, apesar das diferenças, fazia partedo imaginário europeu havia já muito tempo.

Três dimensões merecem destaque nessa imagem do mundo dos ser-tões, nessas visões do sertão. A primeira delas, a da terra incógnita, oumesmo ignota, a dos sertões vastos, desertos, remotos, perigosos e ma-ravilhosos, onde habitavam seres monstruosos e bárbaros, mas tambéminocentes e puros como os nossos primeiros pais; enm, uma humanidadenova, o que nos leva à segunda dimensão. E a terceira, fruto das duasanteriores, refere-se à denição da identidade, da natureza mesma dessessertões: Inferno, Purgatório ou Paraíso, ou os três simultaneamente.

17 – Ibidem, p. 40

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VISÕES DO SERTÃO: O INTERIOR  DAS TERRAS  NO BRASIL COLONIAL E  NA ÁFRICA PORTUGUESA

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Terra incógnita, terra ignota, sertões vastos, assustadores, remotos edesertos

Imagem recorrente durante o processo da expansão europeia pelomundo era a da terra incógnita e suas variantes18: terra desconhecida, pou-co conhecida, não descoberta, ou mesmo ignota. Terra ignota era aquelaque não pode ser conhecida pela ciência e que pertence portanto ao do-mínio do maravilhoso. Nesse sentido, a distinção básica entre os termos‘terra ignota’ e ‘terra incógnita’ seria que, a primeira pertenceria ao do-mínio do maravilhoso, a segunda já pertenceria ao domínio da ciência: “odesconhecido é tão só a etapa prévia e vencível do conhecido”19.

Houve assim uma fase de transição entre o maravilhoso e o cientí-co, em que ainda coexistiam elementos dos dois: o maravilhoso, nessesentido, ajudou a assimilar as novas realidades, as novidades do mundo.Essa transição pode ser constatada na cartograa, não só da época daexpansão ultramarina, mas ainda bem avançado o século XVIII. Ocorriaentretanto que a terra incógnita, desconhecida ou pouco conhecida, como avanço da ciência e do conhecimento, internava-se cada vez mais pe-los sertões. Isso ca evidente no caso africano, onde foram necessáriosquatrocentos anos para se cartografar ecazmente os sertões, enquanto olitoral já estava razoavelmente retratado desde o século XVI20.

Assim, no Atlas de Diogo Homem, produzido em meados do séculoXVI, mais precisamente em 1558, na carta relativa à América Meridional,a terra incognita estava próxima ao litoral, abaixo da terra Brasilis e daterra argentea, no que seria hoje a Patagônia (Fig. 2). Já em outra carta

18 – O alemão Richard Hennig fez levantamento minucioso das incursões, não somenteeuropeias, mas também árabes, das civilizações antigas e orientais, pelas terrae incog-nitae. Trata-se de obra em quatro volumes. Ver: HENNIG, Richard. Terrae Incognitae

 – Eine Zusammenstellung und kritische Bewertung der wichtigsten vorcolumbischenEntedckungsreisen an Hand der daruber vorliegenden Originalberichte. 4 Baender. Lei-den: E.J. Brill, 1936-1939.19 – LIMA, Luiz Costa. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 1997, p. 151.20 – SANTOS, M. Emília Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses

em África. Lisboa: Junta de Investigações Cientícas do Ultramar/Instituto de CulturaPortuguesa/Centro de Estudos de Cartograa Antiga, 1978, p. 7.

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do mesmo autor, a incognita regio situava-se mais acima, e mais para ointerior, acima da terra argentea, ou seja, nos sertões do que seria hoje o

Paraguai e o sul do Brasil (Fig. 3)21

.Em carta francesa do século XVII, e início do XVIII, essa terra in-

cognita confundia-se com o próprio Brasil: ce vaste pays est appellé Bré- sil dont les cotes seulement sont connues des européens e situava-se nossertões interiores, nos sertões de dentro entre o Ceará e a Bahia (Fig. 4).Essa terra incógnita era o “país dos tapuias”, situado nos sertões maisafastados do litoral, englobando o interior das capitanias do Maranhão, do

Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco e de Sergipe,na margem superior do rio São Francisco. Essa representação, com muito poucas variantes, é repetida em vários mapas franceses setecentistas (Fig.5).

 Na África, no século XVIII, em 1789, ainda em mapa francês, re- presentava-se, abaixo da Etiópia Inferior, la terre des nègres inconnu,ou selon quelques uns Negrétie deserte, nos sertões da Guiné (Fig. 6).

 Na mesma época, um ano depois, em 1790, o Mapa geográco da costaocidental de África representava como terras pouco conhecidas os sertõesdo reino de Angola e de Benguela (Fig. 7).

As terras incógnitas deslocavam-se, assim, cada vez mais, para ossertões de dentro: este era o espaço desconhecido, vasto, deserto, despo-voado, áspero, traiçoeiro, calamitoso e isolado, nas expressões contempo-râneas; espaço da desordem e do imprevisível, mas também de imensas

riquezas. Esses sertões eram, de sua natureza, vastos como um mar, com- paração que tem sido recorrente na sua representação. A ideia da grandezae vastidão dos sertões do que seria o Brasil já estava presente na própriacarta de Pero Vaz de Caminha, na passagem na qual, após descrever acosta, conjetura-se que “pelo sertão nos pareceu do mar muito grande por

21 – ADONIAS, Isa, et. alii. Mapa: Imagens da formação Tterritorial brasileira. Rio deJaneiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1993, p. 36.

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VISÕES DO SERTÃO: O INTERIOR  DAS TERRAS  NO BRASIL COLONIAL E  NA ÁFRICA PORTUGUESA

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que a estender os olhos não podíamos ver se não terá arvoredos que nos parecia mui longa terra”22.

Pero de Magalhães de Gândavo, no Tratado da terra do Brasil , deucontinuidade a essa imagem de grandeza, ao descrever a Província deSanta Cruz, “situada naquela grande América”, que se estendia entre osdois e os quarenta e cinco graus para a banda do sul, desde a zona tórridaaté a zona temperada:

E pela do ocidente conna as altíssimas serras dos Andes e fraldasdo Peru, as quais são tão soberbas em cima da terra que se diz terem

as aves trabalho em as passar. E até hoje um só caminho lhe acharamos homens vindos do Peru a esta Província, e este tão agro, que emo passar perecem algumas pessoas caindo do estreito caminho quetrazem [...] Destes e doutros extremos semelhantes carece esta pro-víncia Santa Cruz: porque com ser tão grande não tem Serras, aindaque muitas, nem desertos nem alagadiços que com facilidade se não

 possam atravessar 23.

E a grandeza do Brasil ganhou tons mais dramáticos e épicos na pena

de frei Vicente de Salvador. Em sua  História do Brasil , esse religiosochegava mesmo a aconselhar, “se alguma hora acontecesse (o que Deusnão permita) ser Portugal entrado, e possuído de Inimigos estrangeiros”,“passar-se El-rei com seus Portugueses a outra terra e a nenhuma o podiamelhor fazer, que a esta”:

 porque passar-se às Ilhas (como diziam fez o senhor dom Antônio pre-tendente do Reino no ano do senhor de mil quinhentos, e oitenta) alémde serem mui pequenas estão tão perto de Portugal que lhe iriam osInimigos no alcance, e antes de se poderem reparar darão sobre eles. AÍndia ainda que é grande é tão longe, e a navegação tão perigosa, queera perder a esperança de poder tornar, e recuperar o Reino. Porém oBrasil com ser grande ca em tal distância, e tão fácil a navegação,

22 – CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha., Obras Completas - 7. Lis- boa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1994, . 13v, p. 147.23 – GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da terra do Brasil . 5. ed.; ver. E atual;História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. 1576, 12. Ed.

Ver. e atual.. Edição conjunta organização e apresentação de Leonardo Dantas Silva. Re-cife: FUNDAJ. Editora Massangana, 1995, pp. 53 e 54.

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que com muita facilidade pode cá vir, e tornar quando quiserem, oucar-se de morada, pois a gente cabe em menos de cem léguas de

terra, que tem todo Portugal bem caberá em mais de mil, que tem oBrasil, e seria este hum grande Reino tendo gente [...] que de outrosReinos estranhos viriam cá buscar [...] a troco das suas mercadorias,que cá não há; e da mesma maneira as drogas da Índia que daqui camais vizinha e a viagem mais breve, e fácil.24

As referências à vastidão dos sertões são, desse modo, recorrentes:em 1590, o “grande sertão” de Francisco Soares, onde havia imensasminas de metal e de alabastro; no século XVII, um “vastíssimo sertão”,

 percorrido pelos jesuítas; e os “dilatados sertões deste Estado do Brasil”,do século XVIII25. No Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí , o autor informava, a respeito do interior daquelas capitanias:

Deste vasto e dilatado País foi descobridor Domingos Afonso Sertão.Criador de gado nas fazendas, que possuía nas margens do rio de SãoFrancisco a Casa da Torre da Bahia. Dela auxiliado, depois de atraves-sar trinta, ou quarenta léguas de sertão aspérrimo, entrou pelas cabe-ceiras do rio Piauí, onde estabeleceu as primeiras fazendas com gados

que trouxe do rio de São Francisco, E daqui vem o nome de Piauí, queconserva ainda hoje a dita Capitania26.

Em 14 de junho de 1773, o governador e capitão general da capitaniade São Paulo, dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, o morgadode Mateus, queixava-se ao governador e capitão general de Angola, domFrancisco Inocêncio de Sousa Coutinho “das diculdades que vinha ten-do em seu governo motivadas pelas enormes distâncias, pela dispersão

da população, pelos rios caudalosos e também pelas feras e doenças quegrassavam no sertão”27. Tais diculdades não eram, entretanto, motivo

24 – VICENTE DO SALVADOR, frei.  História do Brazil . Rio de Janeiro: Versal; SãoPaulo: Odebrecht, 2008, . 53v e 54.25 – MELLO, Ceres Rodrigues. O sertão nordestino e suas permanências (séc. XVI-XIX).Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro, vol. 148, jul./set. 1987, Rio deJaneiro, 1990, pp. 283-438, p. 295.26 – Roteiro do Maranhão pela capitania do Piauí. Revista Trimensal do Instituto Históri-co e Geográco Brasileiro, tomo LXII, parte I, 1900, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,

 pp. 60-161, pp. 75 e 76.27 – AHU, 376-1773, cx. 14, São Paulo-AHU-São Paulo, cx. 6, doc. 3; AHU-CU-023,

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 para desistir: se era difícil ocupar esse “espaçoso e dilatado continente”,que poderia ainda ser maior se “cuidara a nação portuguesa em senho-

rear e conservar o quanto a fortuna na América lhe tributou”, a DivinaProvidência, em compensação, quis, “além das preciosidades que pro-duz, a enriquecer não só com minas de diamantes, topázios e mais pedras preciosas…”28.

Também os sertões africanos eram dilatados. Assim a eles se referiuo Conselho Ultramarino, em consulta de 20 de novembro de 1694, aotratar da escassez de escravos oriundos do “dilatado sertão daquele reino”

de Angola29

. Também Antônio de Oliveira Cadornega, em sua  História geral das guerras angolanas, mencionou os “jagas que saem à conquis-ta deste dilatado sertão”, bem como referiu-se aos rios Cuanza, Zaire,Cunene e Congo, que rodeavam “uns e outros este dilatado sertão”; e aos“sovas arrinconados no interior de seus dilatados matos, persistindo emnão se quererem sujeitar debaixo da vassalagem portuguesa”, entre outrasmenções30.

A ideia da vastidão também está presente na cartograa. É o caso do Mapa de todo o vasto continente do Brasil ou América Portuguesa”(Fig.8), produzido em 1778 por ordem de dom Luís de Albuquerque Melo,com os resultados das viagens de exploração realizadas antes do iníciodas demarcações decorrentes do Tratado de Santo Ildefonso31. E da Carta

CX. 6, D.376.28 – História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas minas,casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e ereção das suas vilas. In: Códice Cos-

ta Matoso – Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América quefez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que to-mou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. Coordenação geral de Luciano Raposode Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. 2 volumes. Belo Horizonte FundaçãoJoão Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999, vol. I, p. 270-293, p. 276.29 – Consulta do Conselho Ultramarino (20-11-1694). In: BRÁSIO, padre Antônio. Mo-numenta Missionaria Africana –África Ocidental (1685-1699), coligida e anotada pelo

 padre Antônio Brásio, C.S.Sp. Vol. XIV, Lisboa: Academia Portuguesa de História,MCMLXXXV, pp. 380-381, p. 380.30 – CADORNEGA, Antônio de Oliveira. Historia Geral das Guerras Angolanas – 1680 –Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1972,

respectivamente: tomo III, pp. 229, 230; 393 e 394; e tomo II, p. 127.31 – ADONIAS, Isa. Mapas e planos manuscritos relativos ao Brasil colonial conservados

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topográca de uma parte da vasta capitania do Mato Grosso, de 1780(Fig. 9).

Os sertões eram, tanto na África quanto na América, uma imensidãoa ser explorada. Imensidão esta pouco conhecida, trabalhosa, imprevisí-vel, áspera e calamitosa, quase um outro mundo que devia ser conquis-tado. Esses sertões podiam ser desertos, tanto no sentido populacionalquanto no climatológico, e é por isso que Barléus chamava os sertanejos“habitantes dos desertos”32. Mas este deserto nem sempre era despovoa-do; era o que alegava Leonor Pereira Marinho, herdeira da Casa da Torre,

que havia mantido os seus sertões “sempre povoados”33

. Os sertões eramdesertos, em certa medida, porque eram isolados pelos campos gerais, pelas montanhas, pela semiaridez e pelas distâncias, mas também pelalentidão dos transportes34. Em ofício de 3 de dezembro de 1770, o gover -nador e capitão general de São Paulo, dom Luís Antônio de Sousa Bote-lho Mourão, informava ao ministro e secretário de Estado dos Negóciosda Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, que osertão de São Paulo era “todo fechado, com serranias na parte do rio do

Registro, e pântanos enormes na do Paraná”35.

O isolamento desses sertões remotos, além da solidão, das solidõesvastas e assustadoras de que falava Martinho de Nantes, levava à desor-dem, ou melhor dizendo, à falta de controle por parte das autoridades. Neles, como os da capitania de Minas Gerais, por exemplo, viviam “fa-cinorosos e vadios”36, impunes, sem lei nem rei, para usar uma expressãooriginalmente aplicada aos gentios bárbaros, tanto da América quanto da

África. Tratava-se do que o vice-rei Vasco Fernandes César de Menezes

no Ministério das Relações Exteriores e descritos por Isa Adonias para as comemoraçõesdo quinto centenário da morte do Infante Dom Henrique (1500-1822). Brasília: Ministériodas Relações Exteriores – Serviço de documentação, 1960, pp. 348 e 349.32 – MELLO, Ceres Rodrigues, op. cit ., p. 298.33 – Idem.34 – Ibidem, p. 344.35 – Informação de de dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, de 3.12.1770, AHU,São Paulo, 2525 – dezembro 3, e AHU-CU-023-01, cx. 27, d. 2527, AHU São Paulo –MC

Gouveia.36 – AHU-Minas Gerais, cx. 89, doc. 8; AHU-CU-011, cx. 89, d. 7220.

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denominava o “indulto do sertão”37. As desordens nesses sertões remotose desabridos eram assim provocadas tanto pelos índios quanto pelos va-

dios, vagabundos e facinorosos, protegidos pela vastidão e pelas dicul-dades de transporte. Aplicava-se ao caso, e talvez seja esta a sua origem,emblemático provérbio: “Deus é grande, mas o mato é maior.” O sertão,diria mais tarde Euclides da Cunha, era o homízio38.

Também nos sertões africanos havia “inumeráveis vagabundos”,como aqueles do sertão de Benguela, que o governador Francisco Ino-cêncio de Sousa Coutinho reduziu a povoações xas, mandando-lhes “in-

troduzir a Religião”39

.Os sertões eram ademais ásperos, rigorosos e calamitosos. Tais ad-

 jetivos foram empregados recorrentemente por Antônio de Oliveira Ca-dornega na sua História geral das guerras angolanas. Mencionou ele, emdiversas ocasiões, as “calamidades do sertão”, que não perdoavam nemaos homens nem aos animais40, mas poupava o mulherio, que era “o queneste reino se conserva melhor, que como não experimentam as calami-

dades do sol, e rigores do sertão, se guarecem melhor…”41

.

37 – MELLO, Ceres Rodrigues, op. cit ., p. 285.38 – CUNHA, Euclides da. Os Sertões: (campanha de Canudos); edição, prefácio, crono-logia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, ImprensaOcial do Estado, Arquivo do Estado, 2001. “O sertão é o homízio. Quem lhe rompe astrilhas, ao divisar a beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do

crime. Tira o chapéu, e passa” (p. 735)”. 39 – Documento Nº 9. Informações prestadas por D. Franc.º Inocêncio de Sousa Couti-nho sobre o governo de Angola ao seu sucessor D. Antônio de Lencastre.  In: FELNER,Alfredo de Albuquerque. Angola – Apontamentos sobre a colonização dos planaltos elitoral do sul de Angola. Extraídos de documentos históricos por Alfredo de AlbuquerqueFelner (obra póstuma). I Tomo. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca da AgênciaGeral da Colônia, 1940, pp. 188-207, p. 199.40 – CADORNEGA, Antônio de Oliveira. Historia Geral das Guerras Angolanas – 1680

 – Tomo II. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência Geral do Ultra-mar, 1972, p. 409.41 – CADORNEGA, Antônio de Oliveira. Historia Geral das Guerras Angolanas – 1680

 – Tomo III. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência Geral do Ul-tramar, 1972, p. 29.

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Os sertões e o Outro

Mas o que havia nesses sertões vastos, remotos e imprevisíveis?

Uma Natureza igualmente imprevisível, capaz de gerar uma ora e umafauna exuberantes e estranhas, cuja observação era caracterizada, de umlado, pela expectativa do maravilhoso e, de outro, pela realidade do quese via. Nesse sentido, houve uma verdadeira migração de seres maravi-lhosos entre os sertões da África e os da América, condicionada pelo olhardos europeus. De fato, tanto a descoberta das Américas quanto a gradualrevelação do continente africano permitiram uma circulação imagináriacada vez mais intensa entre as duas costas do Atlântico. Essa viagem parao desconhecido pautava-se pela imagem do mundo que possuíam os des-cobridores que, como já dito, era ainda essencialmente medieval e que sedestacava pela visão de terras estranhas, reinos maravilhosos e civiliza-ções grandiosas (Fig. 10).

 Nesses sertões viviam raças monstruosas, tanto de animais quantode homens, que conviviam, na sua disformidade, com animais estranhos,é verdade, mas que podiam ser enquadrados dentro da normalidade. Decerta forma, a monstruosidade fazia parte da própria natureza humana,enquanto expressão da fragilidade em face da insídia do pecado, adqui-rindo um valor instrumental na economia do plano divino42. A identi-cação desses monstros, aqui entendidos como seres que escapavam aos padrões da normalidade, seja do ponto de vista da virtuosidade ou damalignidade, era dada, em alguma medida, pela dieta: desde a prática docanibalismo até a total ausência de alimentação; desde a sobrevivência à

 base de odores até o consumo de leite de cão, de alimentos crus, etc. (Fig.11)43.

42 – ALMEIDA, Carlos José Duarte. Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dosAfricanos na Literatura Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séculoXVI – primeiro quartel do séc. XVIII). Dissertação apresentada para cumprimento dos re-quisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Antropologia, realizada sob orien-tação cientíca da professora Jill R. Dias, e co-orientação da professora Maria Cardeira daSilva. Faculdade de Ciências Socais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, julho de

2009, p. 57.43 – Idem, pp. 52, 53 e 54.

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Por monstros, assim, designavam-se duas realidades distintas: a pri-meira, oriunda do Direito romano, referia-se aos nascimentos anômalos44;

a segunda referia-se a homens de aparência estranha, bizarra até, por ve-zes, e costumes excêntricos que, acreditava-se, habitavam em regiões si-tuadas para lá dos conns do mundo conhecido dos europeus45.

Os seres fantásticos e de aparência excêntrica, os dragões e canibais,os lugares incartografáveis e extraordinários com que os geógrafos

 preenchem os espaços que as visões do mundo construíam são, aomesmo tempo, imutáveis e extremamente móveis. A sua existênciadecorre da visão do mundo que pré-existe à sua representação gráca,

e por isso a sua identicação é necessária e obrigatória, mas, ao mes-mo tempo, porque cumprem a função conceptual de organizar inter -namente um espaço vazio, a sua localização precisa é muito variável.

 Nessa sua dupla condição, esses seres vão perdurar durante muitosséculos no imaginário europeu ao ponto de constituírem recursos fun-damentais com que, a partir do século XV são assimilados os dadosdo desconhecido46.

O sentimento predominante na percepção dessa outra humanidade

era o estranhamento: nesse sentido, era difícil descrever os indígenasamericanos, já que eles não seriam monstros no sentido estrito do termoe, como não tinham pelos, não podiam ser equiparados aos homens sel-vagens; e tampouco eram negros ou mouros, mais conhecidos dos euro-

44 – Com efeito, o ser humano disforme, para o direito romano, podia ser um monstroou prodígio. Santo Isidoro de Sevilha, na suas  Etimologias, especicou: “Varrón llama

 portentos a los nacidos contra la ley de la naturaleza; pero en realidad no son contra lanaturaleza, porque se hacen por voluntad divina, y la naturaleza de toda cosa creada es lavoluntad del creador sobre ella”(SEVILLA, San Isidoro de. Etimologías. Versión caste-llana total, por vez primera e introducciones particulares de don Luís Cortés y Góngora,Licenciado en Derecho Canónico y párroco de san Isidoro de Sevilla. Introducción gene-ral e índices cientícos del Prof. Santiago Montero Díaz, catedrático de Historia AntiguaUniversal de la Universidad de Madrid. Madrid: La Editorial Católica, MCMLI, p. 279).E continua: “El portento, pues, no es contra la naturaleza, sino contra la naturaleza co-nocida. Así, pues, los portentos, los ostentos, los monstruos y los prodígios se llaman así

 porque  portendunt , anuncian; ostendunt , maniestan; monstrant , muestran;  praedicunt , predicen algo futuro” ( Idem).

45 – ALMEIDA, Carlos, op. cit ., pp. 52, 53 e 54.46 – Idem.

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 peus…47. A solução seria procurar adaptar a imagem desse indígena ao já conhecido, o que os transformava em caricatura do mal ou sublimação

dos antigos modelos de perfeição48

, aplicando-se um sistema conceitualvelho de séculos a um meio e a uma cultura distintas49. Essa visão ambi-valente do indígena caracterizava essa outra humanidade, essa humanida-de nova, que não conhecia a fé cristã e, pior, não se importava com essedesconhecimento. Os seres humanos estavam assim divididos em duascategorias: os que possuíam escrita, e consequentemente História, e os povos sem escrita, privados de História, e consequentemente da salvaçãode suas almas, porque não tinham acesso às verdades da Bíblia. Mas a

sua condenação não era absoluta, pois dispunham do livro da Natureza,francamente aberto aos olhos dos simples e das crianças50.

Essa humanidade nova era, entre outros atributos, bárbara. Bárbarano sentido de gentio, idólatra, de gente de linguagem incompreensível –travada, como se dizia dos tapuias –, que não compartilhava dos valores eatributos característicos da própria condição humana. O bárbaro, na con-cepção aristotélica, era um ser irrealizado, “pela incapacidade revelada

de promover a organização de sociedades políticas estruturadas em tornode valores, como a si mesmo se denia a pólis”51. Bárbaros eram assimos não cristãos, mas também os que, sendo ou não cristãos, seguiam cos-tumes, hábitos e regras que não se adequevam à condição humana52. Essaambiguidade foi utilizada para dar conta da diversidade cultural e humanarepresentada pelas novas populações com as quais os europeus entraramem contato53.

47 – FLECK, Eliane, op. cit ., p. 351.48 – BECHTOLSHEIM, Delia, op. cit., p. 41, apud. FLECK, Eliane, op. cit ., p. 351.49 – UGARTE, Auxiliomar Silva. Sertões de Bárbaros – O mundo natural e as sociedadesindígenas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos (séculos XVI-XVII). Manaus: Edi-tora Valer, 2009, pp. 162 e 163.50 – LESTRINGANT, Frank. Léry ou le rire de l’indien. In: LÉRY, Jean de. Histoire d’unvoyage faict en la terre du Bresil (1578). 2e ed., 1580. Texte établi, présenté et annoté parFrank Lestringant. Paris : Le Livre de Poche, 1994, pp. 15-43, p. 36.51 – ALMEIDA, Carlos Almeida, op. cit ., p. 79.

52 – Idem, p. 81 e 82.53 – Ibidem.

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Um dos motivos, ou pelo menos um dos pretextos da expansão ul-tramarina portuguesa, nomeadamente na época do infante dom Henri-

que, era “trazer à Igreja de Deus santa e à nossa obediência aqueles bár - baros povos a que nunca por mar nem por terra cristãos alguns chegarousaram”54 e, para converter essa bárbara gente era necessário conhecê--la, nos seus costumes e nas “cousas principais deles”55.

 Nas descrições que os viajantes e cronistas deixaram, é recorrentea comparação dos habitantes dessas terras, no caso os africanos, a bes-tas feras, que viviam nos matos, “sustentando-se da caça e sevandijas

dele”56

. Os da terra, os cafres, que mais se podiam chamar feras do quehomens57, eram tão “barbaríssimos” que matavam “levemente e com le-ves ocasiões”58, e trajavam vestes tão curtas que lhe cobriam “pouca partedo corpo e é vergonha de ver como andam sem terem um pano com quevistam”59. Outros bárbaros, os jagas, matavam os lhos que nasciam den-tro dos seus quilombos e arraiais60. Mas a maior barbaridade de todas eratirar “o devido conhecimento e adoração a Deus, Senhor dos Céus e daterra, e darem-no ao demo”, que se manifestava nos abusos, costumes e

ritos da nação dos jagas (Fig. 12)61.

54 – Carta de doação à Ordem de Cristo, da administração espiritual e jurisdição da Gui-né, Núbia e Etiópia, nos termos em que era já exercida pela dita Ordem na administraçãoe jurisdição de Tomar. Doc. 12, de 7 de junho de 1454. ANTT, Ordem de Cristo, códice235, s. 12-12v; BNL, F.G. códice 737, . 20.55 – MONCLAIO, Padre. Relação da viagem que zeram os padres da Companhia deJesus com Francisco Barreto na conquista de Monomotapa no ano de 1569, feita pelo

 padre Monclaio, da mesma companhia. Boletim da Sociedade de Geograa de Lisboa. 4ª

série – nº 7 Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, pp. 492-563, p. 542.56 – CADORNEGA, Antônio de Oliveira. História Geral das Guerras Angolanas – 1680 – Tomo I. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. Lisboa: Agência Geral do Ultra-mar, 1972, p. 26.57 – MIRANDA, Antonio Pinto de. Memória da África Oriental e da Monarquia Africa-na. In: Fontes para a História, Geográa e comércio de Moçambique (séc. XVIII), prefa-ciadas e coligidas por Luiz Fernando Carvalho Dias. Anais da Junta de Investigação doUltramar. Famalicão: Tipograa Minerva, 1956, p. 60.58 – MONCLAIO, Padre., op. cit ., p. 504.59 – Idem.60 – CADORNEGA. Antônio de Oliveira. História Geral das Guerras Angolanas – 1680

 – Tomo III, p. 228.61 – Idem, p. 222.

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A barbárie também era característica dos habitantes do outro ladodo Atlântico. Para o cronista Fernão Cardim, esta era mesmo um atributo

dos sertões. Assim, as nações bárbaras, geralmente tapuias, estavam nes-sa condição devido à rudeza do lugar em que viviam62. Tanto quanto osafricanos, os trajes desses bárbaros era “viverem nus, tanto homens comomulheres, e o seu maior exercício é serem corsários de outros gentios”63.Ficou consagrada assim a imagem do índio brabo, selvagem e bestial,ademais de canibal (Fig. 13). Prova disso é a expressão de Gabriel Soaresde Sousa, segundo a qual aos indígenas, especicamente os tupinambás,faltavam “três letras das do ABC, que são F,L,R” (Fig. 14):

cousa muito rara para se notar; porque se não têm F, é porque não têmfé em nenhuma cousa que adorem […] E se não têm L na sua pronun-ciação, é porque não têm lei nenhuma que guardar, nem preceitos parase governarem […] E se não têm esta letra R na sua pronunciação, é

 porque não têm rei que os reja, e a quem obedeçam, nem obedecema ninguém, nem ao pai o lho, nem ao lho o pai, e cada um vive aosom de sua vontade64.

Bárbaros entre os bárbaros, selvagens entre os selvagens, eram ostapuias, os de língua travada: “todas estas setenta e seis nações de tapuias,que têm as mais delas diferentes línguas, são gente brava, silvestre e in-dômita, são contrárias quase todas do gentio que vive na costa do mar,

62 – MALHEIROS, Márcia. “Homens da fronteira”. Índios e capuchinhos na ocupaçãodos Sertões do Leste, do Paraíba ou Goytacazes. Séculos XVIII e XIX. Tese de Doutoradoapresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Flumi-nense, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em História. Orienta-

dor: profa. dra. Maria Regina Celestino de Almeida. Niterói, 2008. Universidade FederalFluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosoa, Programa de Pós-Graduação emHistória, p. 73.63 – CAMPOS, Capitão Antônio Pires de. Breve notícia que dá o capitão Antônio Piresde Campos do gentio bárbaro que há na derrota da viagem das Minas de Cuiabá e seurecôncavo, na qual declara os reinos que chegou e viu por maior, sendo em tudo diminuto

 porque seria processo innito, se quisesse narrar as várias nações, nos mesmos usos, ecostumes, trajos e vantagens que fazem. Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geo-gráco do Brasil, Tomo XXV, 1862. Rio de Janeiro: Kraus Reprint, 1973, pp 437-449,  p.440.64 – SOUSA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. 2º tomo. Introdução, comentários e

notas pelo professor Pirajá da Silva. Biblioteca Histórica Brasileira (direção de RubensBorba de Moraes), nr XVI. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d, p. 244.

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vizinhos dos portugueses”65. Os tapuias, assim, habitavam os sertões, ex- pulsos que haviam sido da costa pelos tupis. Eram, pois, estrangeiros na

 própria terra, distantes da sociedade, da lei, e da fé: sem lei, nem rei, nemfé. Essa imagem do estrangeiro na própria terra será retomada por Eucli-des da Cunha em relação ao sertanejo de Canudos.

Esses gentios, tal como o demônio, eram legião. Pero de Magalhãesde Gândavo comentava que não se podia numerar e compreender a mul-tidão do bárbaro gentio porque era impossível ir pelo sertão dentro emcaminhar seguro nem passar por terra onde não haja povoações de índios

armados contra todas as nações humanas66

 (Fig. 14).Os sertões, dessa forma, tanto na África quanto na América Portu-

guesa, eram o território da barbárie, dos canibais, de gente sem lei, nemrei, nem fé. Cafres, jagas e tapuias eram a representação mais apuradadessa visão: estrangeiros entre os próprios nativos, gentios entre os gen-tios, praticando o canibalismo, viviam nas margens das regiões conheci-das.

Essa visão também vem representada na cartograa. No caso daÁfrica, além das menções recorrentes à Barbaria, como no caso do mapafrancês L’Afrique revue corrigée et publiée par M. Moithhey, ingénieur--géographe du Roi, etc., em 1789, onde foram retratados a  Barbarie e odesert de Barbarie, mencione-se o Mappa geográco da costa Ocidental

de África, de 1790, em que consta a região de  povos bárbaros, que sechamam mucibumdos, de vida vagabunda e pastoral , também retratados

na Carta geographica da costa ocidental da África, do tenente-coronelengenheiro Pinheiro Furtado, do mesmo ano (Fig. 6 e 7).

65 – CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil . Introdução de Rodolfo Gar-cia. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980, p. 106.66 – GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da Província do Brasil. Reprodução fac--similar do ms. 2026 da Bibl. Sloaniana do Museu Britânico; introdução; leitura; comen-tários e índice de vocábulos. Edição preparada pelo professor Emmanuel Pereira Filho.

Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro – Ministério da Educação e Cultura, 1965, p.179.

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 No caso da América Portuguesa, no mapa  Brasil Nova Tabula, de1561, de Girolamo Ruscelli, a população dos sertões centrais era assim

descrita: gli indi natif di questi paesi mangiano carne humana (Fig. 15).Mais eloquente ainda é o Recens Elaborata Mappa Geographica Regni Brasiliae in America Meridionali, de George Mathaeus, de 1740, no qualtodos os sertões centrais, onde viviam diversas tribos, entre as quais ostapuias, receberam a denominação Brasilia barbarorum (Fig. 16).

Esses bárbaros, entretanto, ainda tinham salvação, e podiam ser con-vertidos. À imagem dessa gente bestial, contrapunha-se a de seres ino-

centes e puros, como os nossos primeiros pais ainda no Paraíso. É o caso,entre outros, daqueles indígenas retratados na obra dos cronistas france-ses André Thevet e Jean de Léry, inspiradores do mito do bon sauvage67.Essa ambiguidade, mesmo paradoxo, na imagem dos nativos africanos eameríndios, que os representava ora como seres puros e inocentes, dignosdo Paraíso, ora como criaturas bárbaras, bestiais e diabólicas, condenadasao Inferno, pode ser estendida aos sertões. Com efeito, a representaçãodesses sertões sempre variou entre dois polos: uma visão edênica, que

neles chegava a localizar o Paraíso Terreal; e outra infernal, que os com- parava à própria habitação do demônio.

Inferno, Purgatório ou Paraíso?

Desde que começaram a andar por novas e diversas terras, os portu-gueses e outros europeus incluíram entre seus objetivos a busca do Paraí-so Terreal. Primeiro localizado no Oriente, conforme indicado na Bíblia,

aos poucos este se foi deslocando até alcançar o Novo Mundo. As descri-ções eram as mais interessantes: assim, na Ymago Mundi, de Hygden, doséculo XIV, aparecia no Oriente, dele saindo três rios que desembocavamno Indo; ali habitariam homens que se sustentavam do simples perfumedas frutas; que encaneciam na mocidade e criavam, na velhice, cabelos pretos, as mulheres concebendo aos 5 anos de idade e perecendo aos 8,

67 – LESTRINGANT, Frank. Introduction a THEVET, André. Le Brésil d’André Thevet

 – Les Singularités de la France Antarctique (1557). Edition intégrale établie, présentée &annotée par Frank Lestringant. Paris: Éditions Chandeigne, 1997, pp. 7-38, p. 8.

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 para não falar dos hermafroditas com o peito direito de homem e o es-querdo de mulher 68. O Paraíso Terreal não seria um “mundo intangível,

incorpóreo, perdido no começo dos tempos”, mas sim “uma realidadeainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessível”69. A crençana sua realidade física não se fazia sentir apenas em livros de devoção ourecreio mas ainda nas descrições de viagens, reais ou imaginárias, comoas de Mandeville, e sobretudo nas obras dos cosmógrafos e cartógrafos70(Fig. 17).

Essa tópica do Paraíso, para usar expressão de Sérgio Buarque de

Holanda, havia tido início no século IV, num poema latino, aparentementede Lactâncio, e mais tarde foi desenvolvida por santo Isidoro de Sevilha.

Entre os topoi inseparáveis das descrições medievais do Éden, oriun-dos em geral da elaboração que receberam de Lactâncio ou de quemfosse o autor do poema latino Phoenix, redigido em ns do século IIIou começos do IV de nossa era, destaque-se, para citar um exemplo,o da perene primavera e invariável temperança do ar, que prevalece-ria naquele horto sagrado. Sob a forma que duzentos anos depois de

Lactâncio lhe dará santo Isidoro de Sevilha - a do non ibi frigus nonaestus –, atravessa a imagem toda a Idade Média e chega a alcançaros tempos modernos. É de notar como até mesmo a ordem em que naversão do autor das Etimologias são dispostas as referências à tempe-ratura, ou seja, o non frigus primeiro, depois o non aestus, mantém-sedurante todo esse tempo com poucas exceções.71

Com efeito, para santo Isidoro de Sevilla, o Paraíso era um lugar si-tuado nas regiões do Oriente. Denominado em latim hortus, e em hebreu

 Eden, “que en nuestra lengua signica delícias, y uniendo ambos nom- bres forman Hortus deliciarum,  jardin de delícias”. E tal denominaçãose justicava pela abundância em todo gênero de árvores frutíferas, “te-niendo también el lignum vitae, árbol de la vida”. Não havia ali nem frio,

68 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso, p. 57.69 – Idem, p. 12.

70 – Ibidem, p. 226.71 – Ibidem, pp. 24 e 25.

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nem calor, senão a constante temperança do ar”72. Esse esquema foi repe-tido pelos navegantes e cronistas, entre os quais Cristóvão Colombo, frei

Bartolomeu de Las Casas e Pero de Magalhães de Gândavo. Este últimoarmava “que nesta província de Santa Cruz de tal maneira se comediu anatureza na temperança dos ares, que nunca se sente frio, nem quenturaexcessiva. Para Sérgio Buarque de Holanda, seria esta uma ressonânciadaquela visão do Paraíso que, em ns do século XV ou no começo doseguinte, vemos aparecer no texto do Orto do esposo, onde se lia, namesma ordem em que apareciam as referências à temperatura em Isidorode Sevilha, que “em ele não há frio nem quentura”. Também Anchieta e

 Nóbrega repetiram o refrão em suas cartas, para não falar de outro jesuíta,Rui Pereira, que em carta de 1560 armou que “se houvesse paraíso naterra eu diria que agora o havia no Brasil”73.

Mencione-se ainda, a esse respeito, a referência que João de Bar-ros faz, nas suas  Décadas, que nas entradas da África havia “um anjo percuciente com uma espada de fogo de mortais febres, que nos impe-de de penetrar no interior”74. O mesmo anjo que protegia as portas do

Paraíso Terrestre da entrada dos mortais. O imaginário deslocara assimo Paraíso do Oriente para o Ocidente: em primeiro lugar, na Índia; de- pois, na Etiópia, onde era vizinho aos domínios do preste João; depoisna África Ocidental, e por m do outro lado do Atlântico. Em qualquerdesses três continentes, havia uma forte possibilidade de que o ParaísoTerreal se localizasse na chamada zona tórrida. Essa região, considera-

72 –  SEVILLA, San Isidoro de. Etimologías. Versión castellana total, por vez primera e

introducciones particulares de don Luís Cortés y Góngora, Licenciado en Derecho Ca-nónico y párroco de san Isidoro de Sevilla. Introducción general e índices cientícos delProf. Santiago Montero Díaz, catedrático de Historia Antigua Universal de la Universidadde Madrid. Madrid: La Editorial Católica, MCMLI, SEVILLA, p. 339.73 – Ibidem, pp. 25, 26 e 27.74 – BARROS, João de. Ásia de João de Barros. Dos feitos que os portugueses zeramno descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. Primeira Década. Edição fac--similada, 4ª edição revista e prefaciada por Antônio Baião, conforme a edição princeps(Coimbra . Imprensa da Universidade, 1932. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda,1988, p. 120. Segundo santo Isidoro, um querubim, “ou seja, a fortaleza dos anjos”, estavadisposto para apartar os maus espíritos, ou seja “as chamas apartavam aos homens e os

anjos [bons] apartavam aos anjos maus, a m de que a entrada do Paraíso não esteja abertaà carne nem ao espírito de transgressão” (SEVILLA, santo Isidoro de, op. cit ., p. 339).

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da inabitável com base nas conjeturas de Aristóteles, se havia revelado,com a experiência das navegações ibéricas, não somente habitável, mas

ideal para a vida, devido ao fato de sobre elas incidirem os raios do Sol perpendicularmente, o que evitaria a ocorrência de calores extremos75. Deinabitáveis, as zonas cortadas pela equinocial passaram a ser “frutíferas edeleitosas”76. Estas terras, tão negadas ou injustamente denegridas em ou-tros tempos, eram, na verdade, sobretudo em sua maravilhosa louçania eabastança, muito superiores às outras mais ao Norte77. Mesmo os vegetaistrazidos do setentrião cresciam mais rápido e mais fortes do que em suaterra de origem; a natureza nativa se traduzia, por seu lado, em excessos,

em árvores colossais que doze homens não conseguiam abraçar 78. Estateoria, naturalmente, foi endossada pelos viajantes e cronistas que haviamadotado essas novas terras, ou que nelas haviam nascido: frei Vicente deSalvador e Ambrósio Fernandes Brandão, bem como os já mencionados Nóbrega, Anchieta e Rui Pereira79.

Se a zona tórrida na verdade era tão propícia, nada mais justo quelocalizar nelas o Paraíso Terreal. Foi o que fez Simão de Vasconcelos,

que situou o Éden na região amazônica, louvando-se, entre outros, notestemunho de santo Tomás de Aquino, no qual se mencionava a opiniãode alguns autores segundo os quais haveria “sob o círculo equinocial umlugar temperadíssimo, por isso congruente ao homem, de compleição na-turalmente temperada. Pela contínua igualdade entre dias e noites e pornão se achar muito distante o sol, não sofreriam os homens ali de exces-sos de frio, e nem padeceriam de demasiado calor”80.

75 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso, p. 408.76 – Idem, p. 410.77 – Ibidem, p. 412.78 – Ibidem, p. 412 e 413.79 – Para maiores detalhes, Visão do Paraíso, pp. 412-416.80 –  Idem, nota. 32, p. 494. Com efeito, santo Tomás de Aquino, na Suma teológica,quaest. CII, art. II, ao concordar com santo Isidoro de Sevilha ( Est ergo Paradisus, ut Isi-dorus dicit in libro Etymol., locus in Orientis partibus constitutus), arma: convenienterautem in parte orientali dicitur situs. Quia credentur est quod in nobilissimo totius terrae

 sit constitutus(Aquino, Tomás de. Suma teológica – a criação – o anjo – o homem. Volume

2. Parte I – questões 44-119. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 694). E este lugar no- bilíssimo não seria, segundo alguns autores, um lugar temperado: Sed locus paradisi non

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Em terras americanas, esse Paraíso localizava-se, de preferência, nossertões, fossem eles centrais, fossem eles amazônicos. Os sertões para-

disíacos revelavam-se por sinais, por suspeitas de tesouros ocultos queexistiriam naquele interior vasto, misterioso e inexplorado. As maravilhasobservadas ou suspeitadas conrmavam a visão edênica, pois se confor -mavam aos topoi que tradicionalmente indicavam a sua presença: tem- peratura amena, vegetação luxuriante, terra fértil, entre outros81. Flora efauna exuberantes, homens que andavam nus, sem sentir vergonha, e queviviam num mundo de fertilidade e abundância, tanto na África quanto naAmérica, eram indícios da presença, ou proximidade do Paraíso terreal82.

Muitos dos mitos geográcos dos sertões brasileiros e africanos,nesse sentido, eram derivados das tradições ligadas ao Paraíso Terreal.É o caso da crença que indicava como nascente dos principais rios ame-ricanos e africanos uma lagoa central, o que remete à descrição dos qua-tro rios oriundos do Paraíso Terrestre. No caso africano, a crença de queas águas do Senegal provinham das mesmas nascentes do Nilo: ambosseriam ramos do Gion, um dos quatro rios que nascem no Éden, como

deixou escrito Cadamosto em sua narrativa, do século XV83. Criou-se as-sim a imagem de uma África insular, abraçada, em grande parte de seuterritório, pelos dois ramos de um mesmo rio, crença que os portugueseshaviam herdado dos antigos e dos árabes, e não haviam duvidado emaceitar, tanto mais que limitavam suas explorações ao litoral. Da mesma

est locus temperatus: dicitur enim esse sub aequinoctiali circulo, qui locus videtur essecalidissimus ( Idem, p. 696). Santo Tomás, entretanto, tendia a concordar com Aristóteles,

quod regio illa est inhabitabilis propter aestum. Quod videtur probabilis: quia terrae perquas nunquam sol pertransit in directum capitis, sunt intemperatae in calorem propter solam vicinitatem solis ( Ibidem, p. 698). De todos os modos, e esta é a sua conclusão,credendum est Paradisum in loco temperatissimo constitutum esse, vel sub aequinoctiali,vel alibi ( Ibidem).81 – DELVAUX, Marcelo Motta. As Minas Imaginárias – O maravilhoso geográco nasrepresentações sobre o sertão da América Portuguesa – séculos XVI a XIX. Dissertaçãode mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade deFilosoa e Ciências Humanas da universidade Federal de Minas Gerais. Orientação: prof.Júnia Ferreira Furtado. Belo Horizonte: Faculdade de Filosoa e Ciências Humanas daUFMG, 2009.

82 – FLECK, Eliane, op. cit ., p. 351.83 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso, p. 44.

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forma, haveria uma Índia insular, “tendo em conta que, para o gentiodaquelas partes, era fama, segundo refere João de Barros, que o Indo e o

Ganges saíam de uma veia comum”84

. Note-se que essa imagem insularnão deixaria de ser sugestiva para um povo dado à navegação85. Nadamais normal que ser ela transferida para o Novo Mundo, onde deu origemà teoria da Ilha Brasil: a ligação entre o rio da Prata, o rio São Franciscoe o rio Amazonas, pela lagoa Eupana seria, assim, uma sobreposição dassimilitudes com o Nilo, e em certa medida com o Ganges e o Indo, o que permite perceber a geograa do continente americano a partir de referên-cias edênicas86.

Outro dos indícios que denunciavam a presença ou a proximidade doParaíso era a fertilidade, a bondade do terreno, que parecia ainda retenirdes restes de la benédiction que Dieu y repandit 87, sendo de origem tantonatural quanto sobrenatural88. Essa constatação estava presente nas des-crições dos cronistas do século XVI: “terra abundante de tudo que nadalhe falta”; “muito fresca de ribeiros de água, laranjeiros, cidreiras, limoei-ros, canas de açúcar…”89. Terras “fertilíssimas, e nelas se podem fazer

engenhos de açúcar, e grandes algodoais…”90; sertão “abundantíssimo de

84 – Ibidem, pp. 46 e 47.85 – Ibidem, p. 46.86 – DELVAUX, Marcelo, op. cit ., p. 131.87 – HUET, Pierre-Daniel, Traité de la situation du paradis terrestre a messieurs de l’Aca-démie Françoise. Paris: Chez Jean Anisson, Directeur de l’Imprimerie Royale, MDCXCI(edição digital), pp. 206 e 207.

88 – Idem.89 – ALMADA, Capitão André Alvares d’. Tratado Breve dos Rios de Guiné do CaboVerde des do Rio de Sanagá até os baixos de Santa Ana de todas as nações de negros quehá na dita costa e de seus costumes, armas, trajos, juramentos, guerras. Feito pelo capitãoAndré Álvares d’Almada natural da Ilha de Santiago de Cabo Verde, prático e versado nasditas partes. Ano de 1594. In: BRÁSIO, Padre Antônio. Monumenta Missionaria Africana

 – África Ocidental (1570-1600), coligida e anotada pelo padre Antônio Brásio, C.S.Sp.Segunda série, Vol. III. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, MCMLXIV, pp. 229-378, p.376.90 – Carta do Padre Baltasar Barreira ao conde meirinho-mor (13-5-1605). In: BRÁSIO,

 padre Antônio. Monumenta Missionaria Africana –África Ocidental (1600-1622), coligi-

da e anotada pelo padre Antônio Brásio, C.S.Sp.. Segunda série, vol. IV, Lisboa: AgênciaGeral do Ultramar, MCMLXVIII, pp. 67-69, p. 68.

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carnes e mantimentos de toda a sorte, e tão fresco e regado de boas águas,que todo parece um jardim”91.

Do outro lado do Atlântico, a terra era “sem contradição a melhor para a vida do homem, que cada uma das outras da América, por sercomumente de bons ares e fertilíssima, e em grande maneira deleitosa eaprazível à vista humana”, onde era certo “haver nela muito ouro e pedra-ria, de que se tem grandes esperanças”92. Nesses sertões, havia “serras decristal níssimo, que se enxerga o resplandor delas de muito longe”; e tan-to ouro e prata “quanto se pode imaginar: do que pode vir à Espanha cada

ano maiores carregações do que nunca vieram das Índias Ocidentais”93

.Era, ademais, “muito salubre e de bons ares. De sorte que sendo muitaa nossa gente e mui grandes as fadigas, e mudando da alimentação comque se nutria, são poucos os que enfermam e estes depressa se curam”94.

A região era, enm, tão grande que “de três partes em que se dividis-se o mundo, ocuparia duas”; além disso, “muito fresca e mais ou menostemperada, não se sentindo muito o calor do estio; tem muitos frutos de

diversas qualidades, e mui saborosos”. Nela, “semelham os montes, gran-des jardins e pomares”, onde havia “animais de muitas diversas feituras,quais nunca conheceu Plínio, nem deles deu notícia, e ervas de diferentescheiros, muitas e diversas das de Espanha”; o que bem “mostra a gran-deza e beleza do Criador na tamanha variedade e beleza das criaturas”95.

Melhor descrição do Paraíso Terreal, do que esta de Manuel da Nó- brega, em carta de 1549 ao doutor Navarro, seu mestre em Coimbra, não

 poderia haver. A tradição de localizar o Paraíso em terras brasileiras foi,91 – Carta de um padre ao provincial de Portugal (15.12.1587), vol. III, p. 349. Note-se,aqui, o contraste com o litoral: “contudo para a banda do mar, na distância que disse, é tãoestéril de mantimentos e águas que não se pode caminhar por ele sem levar tudo o que serequere para sustentação da vida…”92 – GANDAVO, Pero de Magalhães de, op. cit ., pp. 53, 54 e 125.93 – SOUSA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. 2º tomo. Introdução, comentários enotas pelo professor Pirajá da Silva. Biblioteca Histórica Brasileira (direção de RubensBorba de Moraes), nr XVI. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d., p. 319.94 – NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil, 1549-1569 (Cartas jesuíticas 1). Belo Ho-

rizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988, p p. 89 e 90.95 – Idem, pp. 89 e 90.

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entretanto, prosseguida e sublimada por outro jesuíta, o padre Simão Vas-concelos. Este situava o Paraíso na Amazônia, com base em diversos teó-

logos, inclusive santo Tomás de Aquino, como já visto.A localização do Paraíso Terreal nessas terras teria seguidores até o

século XVIII, quando o médico José Rodrigues Abreu, em sua Historio-logia médica, fundada e estabelecida nos princípios de George ErnestoStahl  (Lisboa, Ocina de Antônio de Sousa da Silva, 1733), dava a enten-der que as riquezas das Minas Gerais, guardadas enterradas, e na super -fície da terra, aproximavam-nas do Paraíso terreal. Além disso, no sertão

 brasileiro nascia o notável Lago Dourado ou Xarais que, “como coraçãodesse corpo, situado quase no centro dele, reparte os senhorios em dois braços, ou dois rios, servindo-lhe de barreira pela parte do Norte, o dasAmazonas; e pela do Sul, o da Prata”96.

Mas os sertões não eram somente paradisíacos. O próprio Nóbregaestranhara “haver Deus entregue terra tão boa, tamanho tempo, a gentetão inculta, que tão pouco o conhece”; e que não tinha conhecimento nem

de “Glória nem Inferno”97

. Conviviam representações diferentes, mas nãoexcludentes, dos sertões como Paraíso, Purgatório e Inferno. Se o sertão paradisíaco era oriundo do encantamento do mundo, o sertão infernal era produto do desencantamento da realidade98. Essa dimensão vinha de certaforma expressa no provérbio divulgado por Antonil, segundo o qual oBrasil seria o Inferno dos negros, Purgatório dos brancos e Paraíso dosmulatos e das mulatas99, que foi objeto de glosa por historiadores brasilei-ros do século XX, que consideravam o Brasil como Paraíso Terrestre pela

96 –  FURTADO, Junia Ferreira. As Índias do conhecimento, ou a geograa imagináriada conquista do ouro. Anais de História de Além-Mar Centro de História de Além-Mar,Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. IV: Ano 2003,

 pp. 155-212, pp. 184, 199 e 200.97 – NÓBREGA, Manoel da, op. cit ., pp. 90, 91, 100 e 101.98 – DELVAUX, Marcelo, op. cit ., p. 58.99 – ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas;

introdução e notas por Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Editora da Universidadede São Paulo (Documenta Uspiana II), 2007, nota 3, p. 184.

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natureza; Inferno por seus habitantes, e Purgatório na sua relação com aMetrópole100.

De todos os modos, a realidade dos sertões era muitas vezes incom- patível com uma visão edênica: fome, doenças e morte não eram indícios paradisíacos. Essa dimensão estava presente nas descrições de Gândavo, para quem, no primeiro momento, a terra em si era “lassa e desleixada,acham-se nela os homens pelo primeiro algum tanto fracos e minguadosde forças”; somente depois que se acostumam as gentes à terra, é que elaadquiria seus contornos paradisíacos101.

Também nos sertões africanos havia essa dimensão diabólica. Ade-mais do anjo percuciente que protegia a entrada de um suposto Paraíso,de que falava João de Barros, e que representava a malignidade do clima,caracterizados pelos ares pestilenciais que provocavam febres mortíferas,eram recorrentes as descrições de terras “muito doentias e secas”, atingi-das por “grandes calmas”102; habitados ademais por negros que portavam“guras do Inferno” e “outras coisas mui fedorentas”, para não falar dos

dentes limados e dos beiços furados103

; ou da terra estéril, habitada porgente preguiçosa, invejosa e maldizente104, enganada pelo Diabo e “muitoincapaz para receber o batismo”105. A imagem diabólica pode ser com- pletada pela descrição que Cadornega fez de um lago infernal, em certa parte alagadiça daqueles sertões, caracterizado “pela confusão, fumo e

1001–  “Paraíso Terrestre pela natureza, inferno pela humanidade peculiar que abrigava, oBrasil era purgatório pela sua relação com a metrópole. Homens danados podiam alcançar

os céus através do esforço honesto, do trabalho diário, da sujeição à vontade metropolita-na. O sistema colonial perpetuava a purgação: lançava sobre a colônia os elementos inde-sejáveis, prometendo-lhes o Éden […] e iniciando sua puricação através do exílio ritualrepresentado pela travessia atlântica”. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra deSanta Cruz – feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial . São Paulo: Companhiadas Letras, 1995, p.84.1011– GANDAVO, Pero de Magalhães de, Tratado da Província do Brasil, pp. 147 e 149.102 – Descoberta de Angola e Congo – relações de Angola, tiradas do cartório do colégiodos padres da Companhia. Conclusão da p. 352. Boletim da Sociedade de Geograa deLisboa. 4ª série – nº 8 Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, pp. 364-386, p. 376.103 – MONCLAIO, Padre, op. cit ., p. 503.

104 – Idem, p. 545.105 – Ibidem, p. 547.

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fogo, fedor da podridão das águas ali encharcadas, alarido das balsas,representando demônios em carne humana, sendo idólatras e gentios, que

vem a ser quase o mesmo; com que faziam a representação do próprioInferno”106.

Os sertões eram, por m, o Purgatório, lugar de passagem e traves-sia107, dimensão que cará bem patente em todo o processo de descobri-mento, exploração e ocupação desse grande sertão; enm, para usar uma palavra cara tanto aos navegantes portugueses que desbravaram o marquanto aqueles que desbravaram a terra, a de travessia, termo consagrado

também por Guimarães Rosa. — 

Os sertões, então, eram, ou são, o Outro, diferente e imprevisível,mas também muito próximo e semelhante, moldado quase à imagem dosque os viam, europeus acostumados com o imaginário medieval. A visãodesse Outro e a percepção de uma imagem especíca e peculiar dessemundo novo, mas de certa forma familiar, moldaram a realidade histórica

e o espaço geográco, e contribuíram para melhor se conhecerem os ser -tões, de além e d’aquém-mar.

A geograa maravilhosa e mítica, tão fundamental na época dos des-cobrimentos, e que era fruto das leituras e tradições, ou seja, de uma ex- periência indireta, mesclada em grau maior com a experiência direta, como “saber da experiência feito”, que sobretudo portugueses e espanhóisvinham adquirindo, cedeu pouco a pouco espaço para uma geograa ima-

ginária que, embora ainda inuenciada pelo maravilhoso, adquiria cadavez mais um componente cientíco. As fases desse processo se interpe-netram, não há linearidade. O maravilhoso permaneceu até bem avançadoo século XVIII, em pleno Iluminismo. Mas a terra ignota era cada vezmais uma imagem do passado; e a terra incógnita, ou pouco conhecida,

106 – CADORNEGA, Antônio de Oliveira. Historia Geral das Guerras Angolanas –1680 – Tomo II, pp. 28 e 29.107 – OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento

 brasileiro. In: Brasil ser tão Canudos. História, Ciências, Saúde: Manguinhos. Volume V – Suplemento, julho 1998, pp. 195-215, p. 200.

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via suas fronteiras cada vez mais recuadas para o interior das terras, paradentro dos sertões remotos.

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FIG. 4. La Terre Ferme et le Pe-

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FIG. 5. Carte du Brésil, prem. Par-tie, depuis la Riviere des Amazones

 jusqu’à a la Baye de Tous les Saints, pour servir à l’Histoire Généraledes Voyages. Antoine François Pré-vost, 1757. Fonte : CDU : 918.1.-

11(084.3), BNP.

FIG. 6. L’Afrique revue corrigée et pu- bliée par M. Moithhey, ingénieur-géo-graphe du Roi, etc., em 1789, onde sãoretratados a Barbarie e o desert de Barba-rie.Fonte:MOITHEY,Maurille-Antoine,1752-1810L’Afrique [Material cartográ-co] / revue et corrigée et publiée par M.Moithey ingénieur-géographe. - Escala

[ca. 1:15 000 000]. - Paris : [s.n.], 1789.- 1 carta : color. ; 83 x 110 cm. - (Mapasde África) COTA:CA8 IGP

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FIG.7. Mappa geográco da costa Ocidental de Áfri-ca, de 1790, em que consta a região de povos bárba-ros, que se chamam mucibumdos, de vida vagabundae pastoral.

Fonte:FURTADO, Luís Cândido Cordeiro PinheiroMappa geograco da costa ocidental de Africa... [Ma-terial cartográco] / pelas notícias dos mais inteligen-

tes e práticos certanejos e pelas observações do ten.ecor.el engenheiro Luiz Candido Cordeiro PinheiroFurtado. - Escala [ca. 1:2 250 000], 30 léguas = [8,2cm]. - [S.l. : s.n.], 1790. - 1 carta : ms., color. ; 86x62cm.-(CartasdeÁfrica)COTA: CA569IGP

FIG. 8. Mapa de Todo o vastoContinente do Brasil ou Ameri-ca Portuguesa coma s Fronteirasrespectivamente constituídas pe-los Domínios Espanhóis adjacen-tes. Oferecido junto do SoberanoTrono da Muito Alta e muito Po-derosa Rainha Nossa Senhora d.Maria Iª Por Luis d’Albuquerque

de Mello Pereira e Caceres, doConsleho de Sua Majestade. Go-vernador e Capitão General doMato Grosso e Cuiabá, debaixode cujos exames e direção sereduziu e congurou o mesmoMapa no ano de 1778. Fonte:GARCIA, João Carlos. A maisdilatada vista do mundo – inven-tário da coleção cartográca daCasa da Ínsua. Lisboa: Comissão

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FIG. 9. Carta Topográca de uma parte da Vasta

Capitania do Mato Grosso, na qual se mostramdiferentes as Picadas, e Exames antecipados queo Governado, e Capitão General atual dela Luísd’Albuquerque de Melo, mandou fazer em uma

 parte também a mais principal, das Frotneirasque se pretendem segundoa Ideia Geral de 290de agosto de 1780, que formou, e pôs muitohumildementre na Presença de Sua Majestade,com carta de 25 do referido mês, e ano, par oILL.mo e Ex,mo Senhor Martinho de Mello equatro, Secretario de Estado da Repartição daMarinha, e Dominios Ultramarinos: dando todaa possível execução ás Reias Ordesn que rtec-

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Paulo: Editora da Unicamp, 2012, p. 73.

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A NDRÉ R ICARDO HERÁCLIO DO R ÊGO

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FIG. 11 . Tabula geogrpahica novaomnium oculis exibens et proponensveríssima descriptionem potentissimiet aurifen Guiana sub línea aequinoc-tiali inter Brasiliam et Peru. Fonte:MICELI, Paulo. O desenho do Brasilno teatro do mundo. São Paulo: Edi-tora da Unicamp, 2012, p. 156.

FIG. 12. Nessa ilustração do manuscrito de Cavazzi(ms. Araldi, c. 1667-1771), representa-se o sacrifí-cio dos jagas, em que um come a carne, e o outrosuga o sangue da vítima. Fonte: CASTRO, Xavier;ABZAC, Alix du Cheyron d’. Njinga, Rainha deAngola – a relação de Antônio Cavazzi de Mon-tecuccolo (1687). Lisboa: Escolar Editora, 2013,

 p. 37.

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VISÕES DO SERTÃO: O INTERIOR  DAS TERRAS  NO BRASIL COLONIAL E  NA ÁFRICA PORTUGUESA

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FIG. 13. Cena de canibalismo de ín-dios brasileiros. Fonte: Mapa – ima-gens da formação territorial brasileira,

 p. 63.

FIG. 14. Gravura de Teodoro deBry para a narrativa de Hans Sta-den, desta vez representando asaparições do diabo aos indígenas,umas vezes em forma de besta, ou-tras em forma de pássaro, e outras

 por m “com diferente e espantável

aspecto”. Fonte: América de Bry, p. 149.

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A NDRÉ R ICARDO HERÁCLIO DO R ÊGO

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FIG. 15. No mapa Brasil Nova Tavola, de Giro-lamo Ruscelli, os sertões são representados comum espaço praticamente despovoado, com a in-

dicação: gli indi natif di questi paesi mangianocarne humana. Fonte: O tesouro dos mapas, p.237.

FIG. 16. No mapa de George MatthaeusSeutter, Recens Elaborata mapa geogra-

 phica regni Brasiliae in America Meri-dionali, de 1740, os sertões centrais sãorepresentados como Brasilia barbarorum.Fonte: O desenho do Brasil no teatro domundo, p. 217.

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VISÕES DO SERTÃO: O INTERIOR  DAS TERRAS  NO BRASIL COLONIAL E  NA ÁFRICA PORTUGUESA

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FIG. 17. Representação do Paraíso Terreal por

Jan Brueghel, o Jovem, c. 1620. Fonte: Ru- bens, Brueghel, Lorrain – A paisagem nórdicado Museu do Prado. Catálogo da exposição doMuseu Nacional de Arte Antiga, de Lisboa.Lisboa, 2013, p. 49.

Texto apresentado em março/2014 Aprovado para publicação emabril/2014.

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O IHGB E A FUNDAÇÃO DO INSTITUTO HISTÓRICO DE

PETRÓPOLIS

IHGB AND THE FOUNDATION OF THE

HISTORICAL INSTITUTE OF PETRÓPOLIS

ARNO WEHLING1

Recentemente o Instituto Histórico e Geográco Brasileiro partici- pou, com o estímulo e o apoio, do momento fundador de dois InstitutosHistóricos municipais: o de Tapajós e o de Campina Grande. Aquele com-

 preendendo não apenas um, mas vários municípios tendo como eixo o deSantarém.

 Não foi, porém, um fato inédito. A casa da Memória Nacional, comoPedro Calmon denominava o IHGB, participou em outra conjuntura his-tórica da fundação de um Instituto municipal, o de Petrópolis, instituídoa 2 de dezembro de 1938.

Que circunstâncias levaram à fundação e qual o papel do IHGB?

O momento fundador do Instituto Histórico de Petrópolis, 1936-1938

O que podemos denominar “momento fundador” do Instituto Histó-rico de Petrópolis estende-se por quase dois anos, de novembro de 1936 asetembro de 1938. Suas balizas são a moção apresentada por Alcindo So-dré, então vereador, em 28 de novembro daquele ano, para que se criasseuma Comissão destinada a realizar estudos sobre a História da cidade, no

1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro.

Resumo:

O texto estuda a fundação do Instituto Históricode Petrópolis, suas relações com as comemora-ções do primeiro centenário de Petrópolis e o

 papel do Instituto Histórico e Geográco Brasi-leiro nesse processo.

 Abstract:

The text studies the foundation of the Historical Institute of Petrópolis, its relations with com-memorations of the centenary of Petrópolis, and

the role of the Brazilian Historical and Geo- graphical Institute in this process.

Palavras-chave: Instituto Histórico de Petrópo-lis. Instituto Histórico e Geográco Brasileiro.Memória. História.

 Keywords:  Historical Institute of Petrópolis. Brazilian Historical and Geographical Insti-tute. Memory. History.

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ARNO WEHLING

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âmbito das comemorações do centenário de Petrópolis e a instalação do próprio Instituto, em 24 de setembro de 1938.

 No dia 28 de dezembro de 1937 o prefeito Yedo Fiuza baixou atoque instituiu a Comissão do Centenário, inicialmente com 26 membros,aos quais foram acrescentados outros. Mas foi somente no dia 10 de se-tembro do ano seguinte que um de seus membros, Henrique CarneiroLeão Teixeira Filho, sugeriu a criação do “Instituto Pedro II de EstudosHistóricos”. A denominação foi logo alterada para Instituto Histórico dePetrópolis, pois assim já se denominava no que é considerada sua sessão

de instalação, realizada em 24 de setembro.Os 15 dias entre as duas reuniões foram utilizados na elaboração do

estatuto, por uma comissão constituída de Max Fleuiss, Leão Teixeira, Nireu Rangel Pestana, Alcindo Sodré e Américo Jacobina Lacombe. Doscinco, dois já eram sócios do IHGB e outro dois o seriam em breve. Des-tes, Américo Lacombe, eleito em 1945, teria importante papel na históriada Casa, tendo chegado à sua Presidência.

A sessão de 24 de setembro de 1938 foi simultaneamente de fundaçãoda nova entidade e aprovação do estatuto, constituindo-se uma comissãodiretora provisória até o dia 2 de dezembro, aniversário de D. Pedro II,quando foi instalado de forma solene o Instituto Histórico de Petrópolis.

Cem anos antes, quando de criação do Instituto Histórico e Geográ-co Brasileiro, o processo foi semelhante, embora mais rápido: propostana sessão de 21 de agosto de 1838 na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional a criação de um Instituto Histórico e Geográco, ele foi insta-lado em 24 de outubro, tendo seu estatuto denido em 19 de novembroseguinte. No caso do Instituto Histórico de Petrópolis, foram 40 os fun-dadores; no IHGB, 27.

A fundação do Instituto Histórico de Petrópolis, como o IHGB noséculo anterior, não pode se entendida como mero ato de vontade de umgrupo de intelectuais, a maioria deles vinculada ao IHGB. Precisa sercontextualizada no momento de vigorosa armação do nacionalismo e da

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O IHGB E A FUNDAÇÃO DO I NSTITUTO HISTÓRICO DE PETRÓPOLIS

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identidade nacional que correspondam à transição do regime democráticoda Constituição de 1934 para a ditadura do Estado Novo.

 Nesse mesmo contexto, com maior ou menor presença estatal, foicriado o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),a partir do decreto n. 25, que dene a política de preservação e tomba-mento de bens que representavam a memória nacional; foram instaladosos cursos de história e geograa em nível superior, nas faculdades delosoa, com o objetivo precípuo de formar professores para o então de-nominado ensino secundário; e já se gestavam os currículos padronizados

nacionais, que se tornariam obrigação legal em 1942 a partir da orienta-ção do Ministério da Educação e Saúde e dos quais constava a valoriza-ção da História do Brasil, que deveria ser ensinada na 1ª e na 4ª série docurso então ginasial.

 No âmbito do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro, realiza-vam-se as comemorações de seu centenário, no mesmo ano de 1938, deque a principal expressão foi o Segundo Congresso de História Nacional.

 Neste Congresso, aliás, Américo Jacobina Lacombe apresentaria a pri-meira versão de  Paulo Barbosa e a fundação de Petrópolis, mais tarde publicado em livro.

 No âmbito petropolitano, deve ser lembrada a circunstância de que acidade continuava a ser com Getúlio Vargas o que fora à época do 2º Rei-nado e da República Velha, o local para onde se transferia o chefe de Es-tado durante os meses de verão. Mantinha-se assim sazonalmente como

 polo político, social e cultural do País. Além da fundação do Instituto His-tórico de Petrópolis, em 1938, a posterior fundação do Museu Imperial,em 1940, fruto da mobilização de quase todos os mesmos personagens,assinalaria a importância atribuída à cidade como um dos emblemas damemória nacional no momento em que se comemorava o centenário daMaioridade e a consequente consolidação do Império.

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ARNO WEHLING

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A atuação do IHGB

O exame da relação dos quarenta fundadores do Instituto Histórico

de Petrópolis mostra que treze já eram membros do Instituto Histórico eGeográco Brasileiro e que cinco o seriam nos anos subsequentes, alémde com ele já terem relações estreitas.

 No primeiro caso estavam Max Fleuiss, Manoel Cícero Peregrinoda Silva, Pedro Calmon, D. Pedro de Orleans e Bragança, José Carlos deMacedo Soares, José Wanderley de Araújo Pinho, Rodrigo Otávio Filho,Henrique Carneiro Leão Teixeira Filho, Herbert Canabarro Reichardt,

Leopoldo Feijó Bittencourt, Elmano Cardim, Luiz Castro.

 No segundo caso, isto é, de fundadores do Instituto Histórico de Pe-trópolis que ingressaram depois nos quadros do IHGB, estavam AméricoJacobina Lacombe, Alcindo Sodré, Claudio Gans, Edmundo da Luz Pintoe Paulino José Soares de Sousa Neto.

Fundadores do IHP

Pertencentes ao IHGB 13

A incorporar-se ao IHGB 5

Não pertencentes ao IHGB 22

Total 40

A presença institucional do Instituto Histórico e Geográco Brasilei-ro formalizou-se no estatuto da nova entidade em dois pontos: no art. 1º,ao estabelecer-se que “o Instituto Histórico de Petrópolis fundado nestacidade (...) sob os auspícios do Instituto Histórico e Geográco Brasi-leiro...”, e no art. 3º, que denia em seu corpo social uma categoria de presidentes de honra composta na ocasião pelo Príncipe D. Pedro de Or -léans e Bragança, por Manoel Cícero Peregrino da Silva, então presidentedo IHGB, pelo ex-prefeito Yedo Fiuza e pelo ex-prefeito Mario AloisioCardoso de Miranda.

O autor da proposta de criação do Instituto Histórico de Petrópo-lis, Henrique Carneiro Leão Teixeira Filho, sócio do Instituto Históricoe Geográco Brasileiro desde 1931, tornou-se o primeiro presidente do

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O IHGB E A FUNDAÇÃO DO I NSTITUTO HISTÓRICO DE PETRÓPOLIS

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órgão, sendo reconduzido à Presidência até 1946 e a ele retornando nadécada seguinte.

Em meio ao processo de fundação do Instituto de Petrópolis, reuniu--se a quinta sessão ordinária do IHGB do ano de 1938, no dia 19 de se-tembro. Presidida por Manoel Cícero Peregrino da Silva, que acabara deassumir a presidência em substituição ao falecido conde de Afonso Celso,nela Leão Teixeira Filho anunciou a proposta de fundação do Instituto pe-tropolitano, reiterando que se fazia “sob os auspícios do Instituto Históri-co e Geográco Brasileiro”. O presidente do IHGB agradeceu em nome

da Casa a comunicação e felicitou a iniciativa, interpretando a atribuiçãodo patronato como “signicativa homenagem” à instituição que presidia. Não submeteu a proposta a voto, entendendo que os aplausos recebidosimplicavam a homologação por aclamação conforme se registra na ata publicada na Revista do IHGB.

A leitura dos estatutos do Instituto Histórico de Petrópolis demonstracomo seguia de perto seu paradigma, o IHGB. No âmbito dos objetivos,

os de fomentar pesquisas, velar pelas tradições e vultos da cidade, coletarmaterial relativo à sua história, divulgar trabalhos sobre o segundo Impe-rador, promover conferências públicas, divulgar os estudos apresentadosem suas sessões e “promover o adiantamento de Petrópolis”. A estruturado corpo social era semelhante, com os membros distribuídos em efeti-vos, correspondentes e honorários, bem como a da diretoria, composta por presidente, vice-presidente, primeiro-secretário, orador, segundo--secretário, tesoureiro e bibliotecário e das comissões, embora estas se

reduzissem a três (Contas, História, e Estatutos e Admissão de Sócios).

Em todo o processo de fundação e na sua implementação inicial des-tacou-se a gura de Henrique Carneiro Leão Teixeira Filho, que represen-tava simultaneamente o papel de principal elo entre as duas instituições.

 — 

A fundação do Instituto Histórico de Petrópolis apresenta-se como

um momento de armação da memória social, para além do interesse na

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ARNO WEHLING

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):279-286, abr./jun. 2014284

 pesquisa histórica pura, como aliás aconteceu um século antes na funda-ção do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro.

Embora municipal, o Instituto tinha um projeto em tudo sintonizadocom a memória nacional, dada a preeminência de Petrópolis no SegundoReinado e que prosseguia no período republicano. Fazia-se assim semmaiores diculdades o trânsito da memória e história locais para a me-mória e a história nacionais. Essa identicação era facilitada também,de uma forma que à primeira vista poderia parecer paradoxal, pela valo-rização da gura do Imperador D. Pedro II, um dos objetivos expressos

estatuariamente. É que a esta altura o Imperador, já plenamente conso-lidada a forma de governo republicano, não representava apenas o prin-cípio monárquico, mas se mesclava ao estado e à nação, com um papelinstitucional supraideológico.

Por outro lado, examinadas as pessoas e entidades mobilizadas paraa fundação do Instituto, percebe-se a atuação de uma elite política e cul-tural que se situava na então capital da República, mas que se articulava

a expressões petropolitanas, numa simbiose que mostrava a proximidadedessas duas elites ao centro de poder nacional, – que aliás periodicamentese deslocava para Petrópolis. Numa dessa ocasiões, já mais tarde, em1950, o próprio presidente Eurico Dutra presidia uma das sessões da IHP.

A ligação com IHGB explica-se pela semelhança de objetivos entreas duas entidades e o papel de cultor da memória e de história a ele atri- buído tradicionalmente. Superados os bias ideológicos do republicanis-

mo, além da própria insegurança política inicial do regime, pelo menosdesde a presidência do Barão do Rio Branco (1907-1912), o IHGB já es-tava plenamente identicado com os projetos nacionais relativos àquelesdois aspectos. Podia assim o Instituto Histórico e Geográco Brasileiroatuar, às vezes, por iniciativa própria, como se deu com a fundação doInstituto Histórico de Petrópolis, em outras por solicitação governamen-tal, em iniciativas de caráter cientíco ou cultural, sem que estas se tor -nassem suspeitas de lomonarquismo – não obstante as simpatias quer

 pela forma de governo, quer pelo modo como existiu concretamente com

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O IHGB E A FUNDAÇÃO DO I NSTITUTO HISTÓRICO DE PETRÓPOLIS

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o segundo Imperador, de vários daqueles intelectuais que participaramdo processo. De qualquer modo, a fundação do IHP demonstra também

a possibilidade de outro tipo de iniciativa a desenvolver – o da ação dosinstitutos históricos municipais como elementos de pesquisa, preservaçãoe coleta de materiais referentes à história local.

Texto apresentado em março/2014. Aprovado para publicação emabril/2014.

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III – DOCUMENTOS  DOCUMENTS

AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”:

ENTRE A DEVASSA DE 1822

E O PROCESSO DOS CIDADÃOS DE 1824

RECOLLECTIONS OF THE ‘BONIFACIA’:

BETWEEN THE ‘DEVASSA’ OF 1822

AND THE ‘PROCESSO DOS CIDADÃOS’ OF 1824

IARA LIS SCHIAVINATTO1

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA2

1 – Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas – professora titular doDepartamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do Instituto de Artes da Universida-de Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

2 – Mestre em História pela Universidade de São Paulo e doutoranda em História naUniversidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

287

Resumo:

A devassa ora transcrita foi publicada no Rio deJaneiro em 1824, pela Tipograa de Silva Portoe com o nome de  Processo dos cidadãos. Esta

foi aberta pelo decreto do ministro Bonifácio,em 1822, com o intuito de investigar a organiza-ção de um “conluio republicano” que envolvia,dentre outros, liberais como Joaquim GonçalvesLedo, Januário da Cunha Barbosa, José Cle-mente Pereira e João Soares Lisboa, sujeitos quese empenharam em protagonizar o processo deindependência do Brasil. Esses liberais e todosos outros réus da devassa foram absolvidos dasacusações, com exceção de João Soares Lisboa.Agora, esta publicação do Processo dos cida-dãos nos desperta para alguns sentidos políticos

da sua publicação em 1824, atentando aos signi-cados deste gesto que a torna pública, e a inse-re nos debates históricos acerca do documento“devassa” no século XIX no Brasil.

 Abstract:

The ‘devassa’ described below was publishedin 1824 in Rio de Janeiro by the Silva Porto Printing House, under the name ‘ Processo dos

Cidadãos’. It was opened in 1822 by a decree from Minister Bonifacio, with the purpose ofinvestigating the organization of a republicanconspiracy which involved, among others, liber-als such as Joaquim Gonçalves Ledo, Januárioda Cunha Barbosa, José Clemente Pereira and João Soares Lisboa, men who had a role in the process that led to the independence of Brazil.Those liberals and all the other defendants ofthe ‘devassa’, with the exception of João Soares Lisboa, were acquitted from the accusations.This publication of ‘Processo dos Cidadãos’

awakens us to some of the political meaningsof its publication in 1824, emphasizing the sig-nicance of making it public and inserts it in thehistorical discussions of the ‘devassa’ documentin XIXth Century Brazil.

Palavras-chave:  Opinião Pública. Imprensa.Independência. Liberalismo Constitucional.Cultura Política. Bonifácia.

 Keywords:  Public Opinion. Press. Indepen-dence. Constitutional Liberalism. Political Cul-ture. Bonifacia.

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014288

VOLUME II

Testemunha 3

O Excelentíssimo Antônio Teles da Silva, natural de Lisboa &c.

E perguntado pelo conteúdo no Auto da devassa e referimento quenele fez a testemunha Nº 2, disse: que noticado pelo ofício que dirigiua ele testemunha em data de 2 do corrente3 ele Ministro para comparecerneste Juízo, vinha sem constrangimento, levado pelo zelo, pelo bem daOrdem e com a liberdade que a lei e o Governo lhe oferecem, depor o quesabia relativamente à conspiração que se tramava contra o Estado, e quesendo felizmente descoberta fora completamente malograda pelos feli-zes acontecimentos do memorável dia 30 de Outubro próximo passado.Com quanto ele testemunha se julgue animada de puros sentimentos doamor da Pátria, julgava todavia conveniente declarar que ele testemunhaé suspeito a respeito dos indivíduos contra quem vinha depor, por issoque eles o atacaram e pretenderam macular a reputação dele testemunhasem outro algum motivo, é certo do que a discordância de opiniões políti-cas o separaram.4 Disse que dava princípio ao depoimento declarando as

3 – Esta maneira não vulgar de exprimir data do Ofício que chamou esta testemunha aJuízo, pois que jurando no mesmo dia 9 em que lhe foi expedido, fora mais próprio dizer,em data de hoje; a classicação sistemática com que este depoimento foi traçado, o seuexórdio, divisão de matérias, transações, e premeditadas digressões sobre diversas maté-rias políticas estudadas, a correção do seu estilo elucubrado, o artifício mesmo com quemuitas coisas se dizem, a coleção, nalmente o grosso volume de diversos Periódicos poresta testemunha apresentados como parte do seu juramento, provam sem questão que omesmo depoimento foi trabalhado em casa, reduzido a escrito e entregue ao Escrivão parao copiar; muitos dias depois do dia 9 de Novembro, em que se diz inquirida; e tiram todaa dúvida a este respeito as Gazetas de 12, 14, 16, 19, 21, e 23 de Novembro, 3, e 5 de De-

zembro, que se encontram entre os mais impressos pela mesma testemunha apresentadosno sobredito dia 9 de Novembro; fornece nalmente outra prova da falta de formalidadecom que este depoimento se tomou a única da assinatura da Excelentíssima testemunhamanifestadamente diferente da tinta do Meritíssimo Juiz, e pouquíssimo Escrivão.4 – Que tais são os remorsos de consciência desta testemunha, que chega a declarar queé suspeita em tudo quanto depuser a respeito dos indivíduos contra quem vem depor? E omais é, que no rigor da Lei o seu dito ca sendo nenhum; visto declarar que discorda delesem opiniões políticas; porque estando conhecido que aqueles são verdadeiros Constitu-cionais, e confessando a testemunha onde é Realista absoluto, e provando-se com efeito

 pelo longo contexto do seu discurso que é um declarado inimigo do sistema Constitu-cional, provado ca que é inimigo dos sujeitos de quem depõem, e que estes são na sua

opinião conspiradores, porque o sistema Constitucional é no seu conceito uma verdadeiraconspiração contra o Governo; e eis a razão porque esta testemunha, e os da sua sucia, do

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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 provas que tivera da existência de uma conspiração contra o Estado. Queestando estabelecida no Brasil a forma de um governo Monárquico, por-

que sempre fora governado, e residindo na Augusta Pessoa do Imperador,ainda antes de ter tomado o novo título que por Aclamação geral lhe foideferido no dia 12 de Outubro, desde o dia 9 de Janeiro do corrente ano,a plenitude do Poder Real e Soberano que exerce segundo as Leis subsis-tentes com expresso aprazimento destes Povos, e (de-) [p. 17] devendoconsiderar-se reunidos em sua Augusta Pessoa porque tais foram os votosdos Povos, e porque sem isso seriam importantes seus esforços para adefesa deste Império até a instalação da Assembleia Representativa doBrasil que ade coordenar as Leis fundamentais do Estado; e tendo S. M.I. posto à testa das duas mais importantes repartições o ExcelentíssimoJosé Bonifácio de Andrada e Silva, e seu irmão o Excelentíssimo MartimFrancisco Ribeiro de Andrada, a quem a opinião pública designou para al-tos ministérios, em que eles a tem justicado, e em cujos serviços, luzes,talentos e virtudes a Pátria tinha a mais sólida garantia e de que já recolhiaos maiores proveitos, observou ele testemunha todavia que existia um partido composto de homens a quem a mesma opinião pública tinha mar -cado com o vil ferrete de sediciosos (Praça do Comércio, dia 22 de Abril

de 1821) ambiciosos (Nóbrega e Ledo, ambos pediram diferentes coisasa Sua Majestade para si e suas famílias) venais (perdão dos criminososde S. Paulo, presente dado por Fração a Ledo, pela baixa do Soldado) eorgulhosos, (Jactou-se Ledo de não saber de que cor era o chão, e Nóbre-ga de ter a tropa debaixo do seu mando e inuência) os quais pondo emdúvida a manifesta e assaz provada Constitucionalidade do Imperador ,e o liberalismo dos dois ciados Ministros, (é público e notório quanto osdemagogos pretendiam desacreditar os dois Excelentíssimos Andradas, e

outro tanto o pretenderam fazer o redator suposto, ou redatores reais doCorreio Nº 7, 16, e 24) que tanto hão fortalecido as retas intenções de S.M. I. pretendiam malignamente introduzir entre os habitantes desta Corteque S. M. e os seus dois Ministros inventavam reestabelecer o velho des- potismo, procurando ao mesmo tempo estes perversos partidistas comoúnicos mantenedores (era constante que Ledo e Nóbrega se jactavam deserem os mantenedores do sistema Constitucional, o que combina com

coração se persuadem que todos os amantes do sistema Constitucional são conspiradores,

Demagogos, Republicanos, Carbonários, & & & porque na realidade o são contra o poderabsoluto, único que aqueles amam, e reconhecem.

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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a representação impressa que dirigiu a S. M. o dito Ledo e isto se de- preende também do Correio números)5 do sistema Constitucional, cujo

verdadeiro espírito inteiramente ignoravam, preparando assim os ânimosdos encantos para a projetada adoção de princípios quiméricos, absurdos,inconjugáveis com a forma de um Governo Monárquico, e que apresen-tando uma aparente perspectiva de beleza considerados teoricamente sãorealmente inexequíveis na prática e sobremaneira perigosos pelas funes-tas consequências que apôs de si trazem; como uma triste e bem recenteexperiência tem mostrado no quadro medonho de  Portugal e Espanha.Disse mais que ele testemunha soube que estes indivíduos mal intencio-nados se ajuntavam frequentemente em Clubs secretos, e que disfarçadoscom as roupas e nomes de Pedreiros Livres se ocupavam de negóciosque deviam ser somente objetos do Governo, o que é ma nifestadamentereprovado por todas as Leis e Estatutos da Franc Maçoneria, e só per-mitido nas abomináveis seitas de Carbonários, Comuneiros, Radicais, eCavaleiros da liberdade, nomes da mesma Seita em diferentes países, que parecendo-se com a Sociedade dos (Pedrei-) [p. 18] Pedreiros Livres naexterioridades diferem sumamente nos ns e alvo a que tendem. Dissemais que sendo esta circunstância comunicada condencialmente ao Go-

verno por pessoas bem intencionadas, urgia que ele procurasse e pusesseos meios que tentou para ser cabalmente informado do que se passavanos ditos Clubs. Que via em m ele testemunha um jornal com o título deCorreio do Rio de Janeiro cujo editor proprietário sendo geralmente tido por ignorante e estúpido, apresentava quase diariamente em suas folhascontinuas investidas contra os dois citados Ministros de Estado, insultosà Pessoa do Imperador, ataques a sua legítima autoridade, e à Soberania Nacional do Brasil, e defesa da infame sociedade dos Carbonários, tendo

 publicado, notória, e provada a intimidade e ligações que existiam entreo dito editor proprietário do Correio do Rio de Janeiro e os referidos par-tidaristas, conhecidos pelos seus princípios exaltados; os quais a opinião pública indicou e denunciou ao Governo de S. M. Disse mais que de tudoo que tem expendido depreendeu a fatal existência de um nefando partidocujos infames membros tinham por m a destruição do Governo Monár -quico no Brasil pela introdução dos princípios demagógicos e anárquicos,

5 – Estes parênteses são notas que o Escrivão pôs à margem por sua auto-recreação...Quem lhe daria esta autoridade?

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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que se contem nos Estatutos das mencionadas sociedades dos Carboná-rios, Radicais, Comuneiros, e Cavaleiros da liberdade........ Disse que vai

agora expor o princípio da conspiração. Ainda que não é fácil determinarcom certeza anes de serem ouvidos os réus, ou de serem apreendidos seus papeis o começo de uma conspiração tão abominável, está ele testemunhaintimamente convencido que o princípio desta horrorosa trama data detempo anterior ao dis 26 de fevereiro de 1821 pelos motivos que passaa apontar: sendo natural ao homem no estado de civilização a que temchegado o mundo o aborrecimento ao despotismo e o amor à liberdadecompatível com o estado social, e sabendo pela História universal e mais particularmente pela História Portuguesa, que por muitas vezes os Povosrequereram aos Senhores Reis que atalhassem os passos que o despotismodava, sendo um dos meios a providente convocação dos Representantes Nacionais, que atrelando-se à Monarquia Portuguesa no ano de 1820 emuma dessas temerosas crises em que só uma boa Lei fundamental adap-tada aos usos dos Povos e acomodada aos usos dos tempos, bem como anecessária cooperação da representação nacional podiam vantajosamenteobstar ao triste resultado de abusos inveterados, foi com tudo evidente,e bem se pode confessar, que uns poucos de homens mal intencionados

que pertenciam à sociedade dos Carbonários aproveitando-se das circuns-tâncias fatais em que se achava a Monarquia Portuguesa, e desprezandoindignamente os meios legais de que sempre serviram, e de que só devemservir-se os Povos para obter mudanças saudáveis e duradouras, urdiramem escuras trevas, como eles mesmos manifestaram, a obra da supostaregeneração da Monarquia Portuguesa proclamada na Cidade do Porto....

Disse mais que a credulidade de uns, a malignidade de outros, e odescontentamento de todos produziram o assentimento que as Provínciasforam dando à projetada regeneração, acrescendo a isto o apoio que acha-vam na força armada, que seduzida ou arrastada por Chefes infames ouloucos sustentou com as armas o auxílio dos (nova-) [p. 19] novadores....Disse mais que estabelecido em Portugal o novo sistema, foi fácil comu-nicar-se o contágio ao Brasil onde pela má Polícia os traidores tinham penetrado e achado proteções e onde o descontentamento tinha chegadoao seu auge. Puderam os novadores conseguir abrir a primeira brechano Pará e logo depois uma muito mais danosa na Bahia, onde pela fácilcomunicação com o Rio de Janeiro, e pela correspondência de alguns dos

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membros do novo Governo com indivíduos residentes nesta Corte, secomunicou a peste em Clubs secretos, em que guravam pessoas contra

quem a opinião pública hoje se explica, se prepararam os funestos acon-tecimentos do fatal dia 26 de Fevereiro.

Disse mais que é para notar que nesse turbulento dia, em que o Im- perador, então Príncipe Real, por ordem do seu Augusto Pai compareceuna Sala do Teatro, como medianeiro entre S. M. e os que loucamenterepresentaram a necessidade de se adotar o sistema de Portugal, um dosAutores dos acontecimentos daquele dia instou e propugnou fortemente pelo juramento provisório e absurdo da futura Constituição das Cortes.

Disse mais que é notório quando nestes infelizes dias inuiu o SargentoMor Manoel dos Santos Portugal, hoje Coronel.......Disse mais que che-gando o desgraçado dia 21 de Abril em que os Eleitores de Província se juntaram por convite do Senhor Rei Dom João VI para o m de lhes serapresentado um projeto do Decreto das nomeações das pessoas que S. M.com aprazimento do público queria deixar para servirem no Gabinete eConselho de seu Augusto Filho, um tumultuoso bando de Povo amotina-do....... assomou às portas da Praça do Comércio aonde a Assembleia dos

Eleitores estava reunida, e entrando naquele recinto impedia com gritos,vozinhas, e apupadas que se lesse a mensagem de S. M. passando os di-retores do tumulto a clamar pela necessidade.... de se adotar inteiramentea Constituição Espanhola.......Soube ele testemunha por lhe referir o Ca- pitão Mor José Joaquim da Rocha, que era um dos Eleitores presentesno dia 21 de Abril, que os Eleitores a saber: o Excelentíssimo JoaquimGonçalves Ledo, N...., e o Ilustríssimo José Clemente Pereira, ocupavamnesse dia 21 de Abril de seu motu próprio e sem preceder o necessáriovoto da Assembleia Eleitoral, os melindrosos Cargos de Escrutinadorese Secretários da mesma Assembleia; fato este que junto a outros dá bemfundadas e ainda não removidos indícios de que aqueles três indivíduosquiseram ter ingerência nos negócios que se houvessem de tratar naquelaAssembleia....

Disse mais que enquanto a experiência nos manifeste hoje um clara-mente o entusiasmo com que as luzes da Constituição das Cortes de Por-tugal foram recebidas, juradas e defendidas pelos periodistas da anarquia,

como eles mesmos publicamente confessam, e o jornal daquele partido

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inculque....hoje mesmo com a maior publicidade o público pouco ins-truído nos mistérios arcanos daqueles tenebrosos Clubs atribuiu então os

mencionados acontecimentos à Tropa de Portugal e aos seus satélites, visinstrumentos das indignas e facciosas Cortes.

Disse mais que vai depor acerca da Conduta dos conspiradores à che-gada dos decretos das Cortes datadas de 29 de Setembro de 1820. Umanova época veio manifestar ao público que os facciosos que se denomi-nam amigos da Constituição, que não há; do [p. 20] Povo que os aborrece;e do Imperador em cuja presença faziam bajulações, mas a quem mortal-mente odiavam, se preparavam a lançar mão de uma ocasião favorável

 para prosseguirem em seus infames desígnios. Disse mais que chegandoo Impetuoso dia 8 de Dezembro de 1821 a esta Corte os execráveis De-cretos das Cortes de Lisboa, de 29 de Setembro, que ordenavam o regres-so de S. M., e produzindo...... a mais cruel sensação nos ânimos dos bonse leais habitantes do Rio de Janeiro, muitos Cidadãos levados do Zelo queos caracteriza e anima pelo bem da Pátria, conceberam a ideia de obstar aterrível execução dos ditos furiosos Decretos, uns escrevendo razões fun-dadas nos princípios de sã justiça.... e outros querendo executar o expe-

diente indicado pelos bons escritores, que era de dirigirem uma represen-tação respeitosa a S. M. I. para o m de obter a sua cada neste Reino....que o projeto da representação foi apenas concebido e imediatamenteaprovado; sendo porém comunicado pelo atual Procurador Geral destaProvíncia o Excelentíssimo José Mariano de Azevedo Coutinho, de quemele testemunha obtivera esta comunicação ao Padre Januário da CunhaBarbosa, a quem queriam encarregar da redação da mesma representação,e ao Juiz de Fora o Ilustríssimo José Clemente Pereira, que pelo seu Car-go podia ser de mais útil cooperação, ambos eles no primeiro momentomostraram desaprovar a projetada medida, que lhes inculcavam, pedindoum escusa de redigir a representação debaixo do pretexto pouco airosode recear ser comprometido, e declarando o segundo já após de muitasreexões que conviria em que o Príncipe casse, mas com a condição deque se instituiria uma Junta de Governo, de que S. A. seria Presidente, eobjetando-se-lhe a inconveniência, a indecência mesmo de um semelhan-te proposto que nenhum Cidadão honrado se atreveria fazer ao herdeiroda Coroa, respondeu “que em tal caso poderia S. A. car esperando pela

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decisão das Cortes, retirando-se para a sua Quinta de Santa Cruz. 6 As-segurou a ele testemunha o mesmo mencionado Rocha que Antonio de

Menezes, atual moço da Câmara de S. M. I. lhe dissera que o Excelentís-simo Ledo festejara em um brinde especial a pretendida mas felizmenteanulada partida de S. M., dizendo na mesma ocasião, que era convenienteque se efetuasse quanto antes a saída do Leãozinho, que era o nome ouepiteto que ele sacrilegicamente dava aquele que já era a única esperança,assim como hoje é o objeto de adoração dos bons Brasileiros; e mais nãodisse nem do costume e assinou com o dito Ministro. Eu João Neponu-ceno Cantice o escrevi7 digo objeto da adoração dos bons Brasileiros, [p.21] assim falava José Clemente Pereira quando falava individualmente equando era duvidoso qual seria o êxito da grande causa em que estávamosempenhados; se depois mudou linguagem deve isto somente atribuir-seà preponderância que sobre ele exerceu o grande concurso dos leais ha- bitantes do Rio de Janeiro que o constituíram órgão de seus sentimentos.Disse mais que assim vendo-se que aumentando-se com os dias o grande partido dos bons desta Província, e chegando a ela a notícia de que os deS. Paulo, e de Minas estavam animados de iguais sentimentos ele se viucomo impelido a decidir-se pelo interesse geral e a apresentar aos pés do

Trono as súplicas dos povos eis que pediam a cada de S. M. neste Im- pério..... Conheceram eles a necessidade que tinham de um Periódico que publicasse as suas ideias, e que contrariasse diariamente com capciosossosmas as opiniões sensatas dos verdadeiros amigos da Pátria. Estas as-tuciosas e malignas considerações zeram aparecer o Correio do Rio deJaneiro... tinha por aparente Redator um João Soares Lisboa, ex-espião eex-vivandeiro no Rio Grande do Sul, homem ignorante e quase estúpido,enm tal qual é sempre testa de ferro; seus Colaboradores, não diz bem,

6 – No Depoimento da testemunha Nº 71 se explica este fato como ele passou na verda-de.7 –  Faríamos atenção de não interromper o o do eloquente discurso da Excelentíssimatestemunha dando-lhe em resposta o justo desprezo que merece, quando, vendo que aca-

 bara de falar, e que logo levantando de novo a cicenica voz, apresenta sobre um “digo” odobro do que deixava dito, não podemos deixar de fazer esta notinha para admirar a ligei-reza do Senhor Escrivão em dar por acabado o depoimento de uma testemunha que aindanão estava no meio... E ainda mais para admirar a pouca memória da testemunha, queacabando de falar de Ledo, continua “Assim falava José Clemente Pereira”... mas isto são

 batelas; dizem os que são ex-ilis, bônus quandoque dormitat Homerus. Mas nós [p. 21]chamamos a isto velhacada, despotismo, e conspiração infame contra cidadãos inocentes!

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os únicos Redatores daquele periódico, os demagogos do Rio de Janei-ro, foram pouco a pouco manifestando-se...com o tempo se descobriu no

Correio do Rio a venenosa intriga... com que indispunha os Povos contrao Governo por meio de falsas, injustas e virulentas recriminações contraàs Sábias e Saudáveis providências do Ministério, passando a estabelecercom capa de Liberal, e com um tom magistral e decisivo princípios muitocontrovertidos em países e por autores muito Constitucionais... sendo as-sas manifestas ao público a perniciosa manifestação destes princípios nãoo era menos a ligação e intimidade com que viviam os seus propagadores.

A ocina tipográca de Silva Porto e Companhia era o ponto de

união dos mais exaltados demagogos; ali ajustavam o que haviam de es-crever, ali se concertavam no que haviam de fazer, ali combinavam osmeios do que lhe convinha saber, e aí nalmente deprimiam sós ou coma maior publicidade as pessoas de opiniões contrárias: ele testemunha foiuma das vítimas acusadas e condenadas por este supremo Tribunal revo-lucionário no dia 28 de Outubro próximo passado. Disse mais que alémdeste ponto central haviam outros em que os demagogos se juntavamcomo é a casa do Padre Januário, a casa do Ex-Ministro da Guerra, a de

Gouveia na rua da Ajuda, a de N.... na rua da Ajuda, a de Luiz Manoelna rua Santo Antônio e a de N... na rua da Quitanda.8 Que para disfarçara intimidade que ligava a tantos imaginaram eles estabelecer um clubcom o nome de Loja maçônica e com o fundamento aparente de servi-rem à causa do Brasil pelo juramento particular com que se ligavam.....Conhecendo o perigo que podia ter uma semelhante associação e levadodo zelo que tem pela pessoa do Imperador e pelo verdadeiro bem [p. 22]deste Império a que ele testemunha pertence se propôs a vigiar os passosdesta sociedade. Que as suas indagações zeram-no descobrir que o lugarda associação era adiante das casas do Barão de S. Simão; os dias emque se juntavam os sócios eram incertos, as horas do ajuntamento eramdesde Ave Marias até as nove da noite, e as pessoas que compunham aLoja perto de sessenta, ( Engana-se a testemunha, que eram mais de 200)entre as quais estavam algumas de reconhecida probidade.... Soube eletestemunha que os cargos principais da sociedade eram dados às pessoas

8 – É de notar que esta testemunha, morando na Quinta da Boa Vista saiba estas coisas,

e nenhuma das outras testemunhas, que moravam na Cidade delas tiveram conhecimento!Grande espiã devia ser Sua Excelência.

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conhecidas por seus princípios exaltados como por exemplo ( José Bo-

nifácio de Andrada, que ocupou o cargo de Grão Mestre) Ledo do que

ocupava o cargo de Primeiro Grande Vigilante, padre Januário de GrandeOrador, N... o de Grande Chanceler, que além dos Dignatários na classedos Mestres José Clemente Pereira, João da Rocha Pinto, N... e N... o ex--Ministro da Guerra Nóbrega...Gouveia, Joaquim Valério Tavares, sendoo referido Gouveia o Escrivão do Crime na rua da Ajuda, Domingo AlvesBranco e outros menos notáveis..... Disse mais que as comunicações deletestemunha,9 e outras decidiram o Governo a tomar pessoalmente conhe-cimento do que se fazia naquela tenebrosa sociedade entretanto que o público supunha que o Governo entrando nela lhe dava a mais decidida proteção, e não concorria pouco para o fazer acreditar a cessação dostrabalhos d’outra mais bem organizada, e perfeitamente composta, queexistia com o nome de Ordem dos Cavalheiros de Santa Cruz com o mlouvável e útil de reunir os homens sensatos para a defesa da sagradacausa em que estamos empenhados. Que eles manifestaram de então poradiante a sua impudência e como por um efeito da Providência mostra-vam os seus maus designíos, já exigindo que o Governo zesse sair deste país um Cidadão tranquilo (La Combe)10 já requerendo que o Governo

 justicasse o motivo de algumas medidas.... já nalmente processandoe chamando à Loja para ser repreendido Fr. Francisco de Santa TeresaSampaio, Redator do Periódico intitulado Regulador, no qual apresen-tara uma compilação das opiniões de vários Publicistas constitucionais,e de diferentes Oradores conhecidos das Câmaras Francesas, e Inglesas,que estabelecem como princípio concederem-se nos Grandes Estados amesma amplicação de Prerrogativas Reais, que se acham concedida aosSoberanos de Inglaterra, e de França.... Que era este o Crime do referido

Redator, o qual comparecendo e sendo repreendido, e ameaçado julgouconveniente remeter-se ao silêncio com o que a boa causa perdeu neleum dos seus mais zelosos e eloquentes defensores11 Desenvolvimento daConspiração: Disse que a chegada de S. M. I. (de São Paulo) vericando-

9 – Bravo! Eis o denunciante! Fez bem em se retirar para fora deste Império, para nãosofrer o prêmio dos falsos Denunciantes... Ora pois, Sua Excelência, já não podia sertestemunha por ser inimigo daqueles contra quem veio depor, agora camos saben-do que menos o podia ser por ter disso o Denunciante.

10 –  A testemunha está sonhando, que acordado não podia armar estas mentiras!11 – No depoimento da testemunha Nº 53 se explicará este fato.

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-se mais cedo em consequência as notícias que tinham vindo de Portugal,e sendo festejada por todos os que conheciam que a sua Presença na Corte

era [p. 23] indispensável para o bom acerto da execução das medidas quese houvessem de tomar contra os nossos agressores, foi duplicadamenteaplaudida pela notícia que logo se espalhou de haver S. M. declarado aIndependência do Brasil pela adoção de um Distintivo que S. M. tomouestando ainda na Província de S. Paulo, onde publicamente foi aclamadocom o título de Imperador do Brasil em dias do mês de Agosto passado.Iguais transportes moveram os habitantes desta Corte a romper as mes-mas vozes tanto no dia imediato ao da chegada de S. M. como naquele emque foram proclamados os novos Deputados... Disse mais que sabe queem Pernambuco no dia em que se instalou o novo Governo temporário, aTropa e o Povo saudara a S. M. com o título de Imperador do Brasil. Por parte do Governo e do Povo da Província das Alagoas haviam seus Depu-tados expressado a S. M. I. iguais sentimentos. Que era bem visível portanto a vontade geral a este respeito, restava unicamente dar aos desejosdos Povos uma forma legal....

Disse mais que a Câmara do Rio de Janeiro onde a Corte se acha

 parecia dever ser a primeira que rompesse os vivas manifestando às ou-tras os motivos do seu procedimento; se o Magistrado que a presidia seregulasse somente pelos ditames da razão e como se pratica em tais casos,não há dúvida que seguiria esta vereda, e que satisfazendo assim as obri-gações do seu cargo não daria azos ao partido dos demagogos a jactar-sede pender....da sua cooperação o que era efeito dos desejos de todos edos votos públicos. Que acordou o partido demagógico, que o ex-Presi-dente na Câmara do Rio de Janeiro propusesse em sessão ordinária aosVereadores a necessidade que havia de se conferir ao Príncipe Regente plenitude do Poder Real não por delegação mas devendo essencialmenteresidir em sua Pessoa com o título de Imperador, passando igualmente a propor um convite às diversas Câmaras para obrarem de acordo com ado Rio de Janeiro; nesse convite ia a notável cláusula (que não foi lidaaos vereadores)12 de dever o Imperador jurar previamente a acentuaçãoque houver de fazer a futura Assembleia Geral do Brasil, sendo que lidaesta clausula e reparando nela alguma das pessoas da vereança o ex Juizde Fora respondeu que S. M. assim o queria..... Que além desta medida

12 – Vide Nota 30.

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assentou o partido demagógico, com a capa de querer prestar serviços aoGoverno, o enviar para as diferentes Províncias emissários da Aclamação

de S. M. I. para o dia 12 de Outubro. Que as pessoas a que se encarre-gou esta missão foram o Padre Januário da Cunha Barbosa para Minas,João Mendes Viana para Pernambuco, e José Egídio Gordilho de Barboda para a Bahia....Que o outro expediente de um grande amor pela pessoado Imperador foi a comissão nomeada no club e encarregada de abrir aSubscrição para os Arcos triunfais, para celebrar a Aclamação de S. M....Que ao mesmo passo..... circulavam indecorosamente no Público umasseis linhas impressas segundo disseram a ele testemunha na Tipograa deSilva e Porto e Comp. e atribuídas a Ledo que continham o desnecessárioconvite aos Povos.... (seguin-) [p. 24] seguindo-se a isto um Edital doex-Juiz de Fora, que pregava aos Povos moderação no seu ardor a favorda aclamação geral muito desejada, e que o mesmo Juiz de fora assegu-rava dever ter lugar no dia 12 de Outubro.....13 Que apresentando nessedia (10 Outubro) o dito ex-Juiz de Fora... a cópia da carta de convite queescrevera às diferentes Câmaras, e interrogando a vontade do numerosoAuditório a cerca das duas questões I. se era vontade geral que o PríncipeRegente fosse aclamado com o título e dignidade de Imperador do Bra-

sil para si e para seus descendentes; 2. Se devia impor-se-lhe a cláusulaou condição de prestar no ato de sua aclamação solene o juramento pré-vio da aceitação pura e simples da Constituição que houvesse de fazer aAssembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil, o numeroso con-curso unanimemente respondeu pela armativa e com vivas ao primeiroquesito, e negativamente ao segundo, dando bem manifestos sinais desua indignação ao sobredito ex-Juiz de Fora. Que não é fácil de exprimira sensação que este acontecimento produziu nos ânimos dos malvados

demagogos que não se pouparam desde então a todos e quaisquer meiosde desacreditar o Governo na opinião dos Povos. Que levados deste abo-mináveis princípios e também d’outros não menos indignos que tinhamorigem na notória venalidade e comprovada corrupção dos partidistas in-dicados, apareceram eles cobrindo-se com a capa da sinceridade que nãotem, reclamando a Clemência de S. M. a favor de pessoas que lhe erammuito suspeitas e complicadas nos tristes acontecimentos que espoliaram

13 – Ora vejam como é maligna esta testemunha, que até está produzindo para prova de

crime, e conspiração fatos que provam sumo amor à Pessoa do Imperador, decidida cons-tância no sistema constitucional, e puro interesse pela independência do Brasil!

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do Governo da Província de S. Paulo ao Excelentíssimo Martim Francis-co Ribeiro de Andrada, não sendo totalmente inútil a sua intercessão, mas

não se contentando eles com o justo e adequado sinal da clemência de S.M. anunciado pelo mesmo Augusto Senhor; à saída do Conselho de Es-tado saíram dele Conselheiros a revelar não só o que se havia anunciado,se não também uma extinção ou amplicação completa de perdão que S.M. não havia acordado, induzindo o Redator do Correio a anuncia-lo ea analisa-lo ao Público no dia seguinte, comparecendo no mesmo dia oex-Juiz de Fora com os Vereadores em corpo de Câmara no Palácio deS. Cristovão a agradecer afetadamente a S. M. uma mercê cujo Decretonão estava ainda lavrado. 14 Que estes dois fatos (mos-) [p. 25] mostraram bem a falta de segredo que os demagogos que desgraçadamente se acha-vam no Conselho de Estado guardavam das coisas que ali se tratavam,mas ainda além disto a série dos acontecimentos nos apresenta outro que

14 –  Não poderíamos dar neste ligar uma prova clara que zesse envergonhar esta teste-munha se o Correio do Rio Nº 35, de 12 de Setembro deste ano, não tivesse publicado osseguintes Decretos.

DECRETOSEi por bem, e para Honrar o dia 22 do corrente, Mandar que cesse, e que de nenhumvigor a devassa, a que Mandei Proceder na Província de S. Paulo pelos sucessos do diavinte e três de Maio passado, que Ordeno quem em eterno esquecimento, podendo re-verter livremente para as suas casas todos aqueles, que delas por esse motivo se haviamausentado, e pondo-se em liberdade os que estiverem presos. Caetano Pinto de MirandaMontenegro do Meu Conselho de Estado, e do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima oSenhor Rei Dom João Sexto, e [p. 25] Meu Ministro e Secretário de Estado dos Negóciosda Justiça, o tenha assim entendido, e o faça executar com os Despachos necessários. Paçoem vinte e três de Setembro de mil oitocentos e vinte e dois – Com a Rubrica de S. A. R.O PRÍNCIPE REGENTE – Caetano Pinto de Miranda Montenegro.Querendo corresponder à geral alegria desta Cidade, pela nomeação dos Deputados paraa Assembleia Geral Constituinte e Legislativo, que há de lançar os gloriosos e inabaláveis

fundamentos do Império do Brasil; Hei por bem, que cesse, e que de nenhum efeito adevassa, a que Mandei proceder na Província de S. Paulo, pelos sucessos do dia vinte etrês de Maio passado, e outros, que a este se seguiram; pondo-se em liberdade os queestiverem presos. Caetano Pinto de Miranda Montenegro, do Meu Conselho de Estado, edo Conselho de S. Majestade Fidelíssima o Senhor Rei D. João Sexto, e Meu Ministro eSecretário de Estado dos Negócios da Justiça o tenha assim entendido, e o faça executarcom os Despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro em vinte e três de Setembro demil oitocentos e vinte dois. – Com a Rubrica de S. A. E. o PRÍNCIPE REGENTE – Cae-tano Pinto de Miranda Montenegro.E porque parecia à Excelência Testemunha, que ir beijar a Mão de S. M. I. por este Ato deJustiça, e Benecência era um crime de Conspiração contra o Governo estabelecido! Mas

não admira, que tendo mentido, quando disse, que não havia Decreto lavrado da sobreditagraça, lançasse veneno em uma ação, que o não tinha.

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 podia ter consequências mais graves, e que mostra até que ponto chegavaa inquidade de Joaquim Gonçalves Ledo.

Reunindo-se extraordinariamente o Conselho de Estado no dia 11de Outubro para o m de S. M. ouvir o parecer dos Conselheiros a cercada representação das Câmaras que pediam a S. M. que assumisse o títulode Imperador do Brasil, e conformando-se unanimemente os votos emreconhecer a imperiosa necessidade que havia de S. M. aderir aos votos públicos, acrescentou Ledo, que fora coerente com os princípios de libe-ralismo que S. M. tinha mostrado o deferir para tempo posterior à Insta-lação da Assembleia Geral o uso daquele título, parecendo-lhe adequado

que S. M. recebesse a investidura de Dignidade Imperial das mãos dosRepresentantes da Nação.... Que iam-se aproximando os sucessos e porconseguinte a explosão da trama urdido pelos malvados. Corria espetá-culo de um tumulto semelhante aos que desgraçadamente temos experi-mentado para o m de eliminar do Ministério os Excelentíssimos JoséBonifácio de Andrada e Silva, e Martim Francisco Ribeiro de Andrada,substituindo-lhe indivíduos tais como Ledo, José Clemente, e Padre Ja-nuário, e outros cujos nomes se liam em listas espalhadas pela cidade com

antecipação. Que além das demissões dos Ministros apareciam nas listasdemissões de muitas outras autoridades sendo uma delas a do IntendenteGeral da Polícia que devia ser substituído pelo alfaiate N...15 [p. 26] Nestetempo disse-se a S. M. e disse-o um homem da maior probidade, cujonome ele testemunha não declarava por melindre, que o club dos conspi-radores pretendia aproveitar a ocasião de uma ausência de três dias que S.M. contava fazer com Excelentíssimo J. B. de Andrada para nesse tempoter lugar o tumulto que havia de eliminar os dois Ministros, sendo o dia23 de Outubro o aprazado para se fazer esta desordem.

Que em tal estado de coisas era de necessidade absoluta que o Go-verno tomasse as mais sérias medidas, e que não só os Ministros do Impe-rador e do Império instantaneamente as solicitassem. Que sabe hoje com

15 – Para que vem aqui falando em Listas? Acuso não sabe toda esta Cidade, que as Listassaíram da mesma casa donde saíram os Pasquins, e representações de 30 de Outubro?Foram os acusadores, e não os acusados, quem levantou tal embuste... estes nunca tiveramtais punições; foram eles, mesmos, porque sempre as tiveram, quem armou tais enredos e

inexericos para pescarem nas [p. 26] águas turvas....felizmente que hoje já estão claras, eos tais enredatores nada pescaram se não descréditos!

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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toda a certeza que os dois irmãos os Excelentíssimos Andradas propuse-ram a S. M. quanto lhes cumpria as medidas vigorosas que deviam tomar-

-se. Desconou-se, não sem razão, que ele testemunha aproveitando-seda familiaridade que o seu longo serviço, o exercício do seu cargo, e ofavor com que S. M. o honrava facilitava, que ele testemunha Lhe falasseno mesmo sentido e por mui repetidas vezes por isso se achava entãoresidindo no Paço. Que entre muitas ocasiões que se apresentaram paraele testemunha falar nesta matéria a S. M. lembra-se ele testemunha es- pecialmente de uma em que lançando mão de uma das folhas do Correioque nesse dia aparecera, e lendo de vagar e com ponderação um elogio ouuma sátira em forma de elogio em que o redator armava ser S. M. porcúmulo de mérito um puro democrata passando mais adiante a avançar oualguém por ele que os Imperantes só deviam ser considerados como Pre-sidentes das Nações, e pouco depois sustentando que os Reis sendo merosadministradores do Tesouro das Graças poderiam ser arguidos e até repu-tados réus pela Nação quando se demasiassem na distribuição das Graças,e outras proposições que coadunam com o título de puro democrata eexplicam o sentido e a força com que essa expressão foi escrita, além deoutras que escandalizaram os olhos dos leitores honrados, tais como Pe-

dro 1º sem segundo, que é suspeitável de dois sentidos bem diferentes, eletestemunha mostrou evidentemente a S. M. a necessidade de optar entre perder a Coroa que há poucos dias lhe tinham dado, ou conserva-la dig-namente para si e para seus sucessores como o Império do Brasil queria e precisava16 sabendo na noite do dia 26 que o Excelentíssimo J. B. de An-drada e seu Irmão o Excelentíssimo M. F. R. de Andrada tinham pedidoe obtido..... a demissão dos lugares que ocupavam.... soube no dia 27 queos partidaristas perversos estavam mui contentes com as demissões dos

dois Ministros posto que não aprovassem os que os substituíram... Queisto que ele testemunha acaba de referir.... nos depoimentos relativamenteao club da monstruosa sociedade pseudo-maçônica soube-o por um dosmembros cujo nome oculta pelo ter assim prometido (de-) [p. 27] debaixode palavra de honra ao mesmo indivíduo; que conhece quando seja difícil

16 – Viva Sr. Antonio Teles! Não se contentou com ser Denunciante, (nota 71) agora de-clara também que foi o intrigante! Para que se foi embora? Ora volte, volte, venha recebero pago, que merece por ter enganado a seu Amo o Imperador! Inimigo dos Acusados,

Denunciante, Testemunha falsa, e Intrigante... ah! Quem o não conhecer, que o compre,mas saiba mais que ele é calvo!

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

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que os Juízes obtenham provas destes fatos por isso que não podendocomunica-los de ciência certa não os membros da referida sociedade e

estando todos eles em geral e cada um em particular comprometido pelo juramento que prestaram a guardarem segredo de tudo o que se passa nasLojas com a cominação de certas penas, e a não acusarem seus irmãos,não só se não apresentaram para denuncia-los, mas cuida ele testemunhaaté que sendo chamados diriam que ignoram tais fatos, e nestes termos só pode valer a deposição dele testemunha tanto quanto vale o testemunhoindividual que merece a ele testemunha a pessoa cujo nome é obrigadoa ocultar, e ser o dito dele testemunha conrmado bem que vagamente

 pela opinião pública; que assaz se tem explicado e que em tal caso in-voca o testemunho que merece a opinião pública, o da própria consciên-cia de todos os implicados, e daqueles que não o sendo presenciaramtais fatos.17 Cumpre que ele testemunha declare neste ato que não é nemfoi da intenção dele testemunha acusar a Sociedade da franc-maçoneria,cujo catecismo apenço mostra bem que ela se não entremete em matérias políticas, nem tão pouco denegrir a reputação dos Pedreiros-livres, oudaqueles que suposto sê-lo estavam inocentemente congregados com osdemagogos, cujas doutrinas expressa ou tacitamente reprovaram, e mais

não disse nem do costume18 e assinou.

Testemunha 4.

O Tenente Coronel da segunda Linha João Ferreira Couto de Mene-zes, natural da Cidade de Braga &c....

Disse que tendo em sua casa um hóspede do Rio Grande, por nome,João Alves de Oliveira Salgado, (Testemunha Nº 10) e concorrendo estealgumas noites em casa de um Ouvires defronte da Sacristia de S. Pedro,cujo nome ignora (Testemunha Nº 23) e em cuja casa de juntavam umPadre Tesoureiro da Irmandade de S. Pedro, e outros cujos nomes ignora,

17 –  Até que nalmente vai acabar: Sat prata biberunt! Mas é notável a voz dos desconso-lado Jeremias com que Sua Excelência se despede da cena, lamentando a falta de fé, que

 já prevê há de merecer o seu depoimento! É pena que a Lei não tenha providenciado estecaso; decretando que às testemunhas tão eruditas, tão intrigantes, e tão... se desse inteirafé, ainda que, como Sua Excelência, nada soubesse, se não por assim parecer a Sua Exce-lência fundado em cálculos do que pode ser, e não em provas do que na verdade é.18 – Olá! Nem do costume? Pois falou à verdade, porque devia dizer assim – e ao Costu-

me disse ser inimigo dos Cidadãos honrados contra quem caluniosamente (nota 47) e peloter intrigado, e posto de má fé na Presença Augusta de S. M. I. (nota 55).

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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vinha o dito seu hóspede para casa sempre dizendo que os tais sujeitosali se juntavam costumavam dizer sobre a causa do Brasil que isto não ia

avante sem que todavia explicassem ao dito seu hóspede a razão porque;até que na noite do dia 25 do mês próximo passado indo o dito seu hóspe-de à mesma casa, e encontrando-se lá com o tal Padre, e os mais sujeitos,declararam estes em conversação que tiveram entre si, que se tratava dearranjar uma república, e que o agente e cabeça desta ideia era o Conse-lheiro Joaquim [p. 28] Ledo;19 que ouvindo ele testemunha isto resolveu--se a ir denunciar ao Ministro de Estado dos Negócios do Império., comode fato foi na manhã do dia 28, e não achando em casa o dito Ministrodeu o seu bilhete de denuncia ao Ocial de Secretaria e do Gabinete paralhe participar......

Testemunha 10 a f.

João Alves de Oliveira Salgado, natural de Porto Alegre, morador naCorte na rua S. Pedro &c.

E perguntado pelo referimento que nele fez a testemunha Nº 4 quelhe foi lido disse: que vindo a esta Corte a negócio contraiu amizade com

um ourives de nome Amaro, morador na rua dos Ourives, passando a ruado Sabão à esquerda da segunda Loje, aonde ia muitas vezes; em algumasdelas principalmente pouco antes da demissão do Excelentíssimo J. B. deAndrada ouviu ele dizer a diferentes pessoas que ali concorriam também,e especialmente a um Bonifácio Ourives que haviam pretensões de se for-mar uma república no Brasil e que o Cabeça disto era Joaquim GonçalvesLedo, e que queria ser o Presidente da mesma república.

Testemunha 14 f. 68.

Joaquim Dias da Costa, natural desta Corte que vive de ser Ourives&c.....

E perguntado pelo auto da Devassa, e referimento que nele fez atestemunha Nº 4 disse: que estando ele testemunha em casa do OurivesJosé Gomes Ferreira, e outras pessoas no dia 4 ou 5 do corrente mês apa-recendo ali Bonifácio José Sérgio que mora na rua dos Ourives e ouvindo

19 –  Como o fato denunciado por esta testemunha é o único que convêm examinar, não

 parecerá estranho que se juntem neste lugar os depoimentos das testemunhas Nº 10, 14,15, 23 e 25 que todas tem relação com o dito desta testemunha.

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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a conversa em que estavam, que era dizendo que se era verdade que Ledoera cabeça de uma república que se dizia estava organizando devia ter um

severo castigo, e quanto antes; o dito Bonifácio disse: homem, eu agoravenho da Misericórdia, e ouvi a N..... dizer que isso não é assim....

Testemunha 15 f. v.

O Tenente José Gomes Ferreira, natural desta Corte, morador à ruaOuvires &c...

E perguntado pelo auto da Devassa, e referimento que nele fez atestemunha Nº 4, e Nº 15 (aliás 14) que estando na sua casa em conversa-

ção com algumas pessoas que todos eram de opinião que Ledo devia ser punido quanto antes se era verdade que o Cabeça de uma república comose dizia, apareceu Bonifácio José Sergio e disse que ouvira a FranciscoJosé Pereira das Neves dizer, que se Ledo andava falado era porque seopunha a que se deitasse a Constituição abaixo. Disse mais que o Majorde Macacú Francisco Dias Lopes disse a ele testemunha que o dito Ledotivera com Manoel dos Santos Portugal em casa deste uma conversaçãode mais de 4 horas no interior da casa e que quando vieram a sair para

fora o dito (Ma-) [p. 29] Major ouviu ao dito Manoel dos Santos dizer‘os Pernambucanos já são republicanos’ e disse mais que é voz públicae constante que do partido dos ditos Ledo e Manoel dos Santos são JoséClemente, e Nobrega...

Testemunha 23, a f. 79

Amaro Antônio Freire, natural desta Corte, morador à rua Ourives&c...

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento das teste-munhas Nº 10, 14 e 23, disse que os referimentos em parte não são verda-deiros; porquanto o que ele disse e ouviu dizer foi somente o ter-lhe ditoFrancisco José Pereira das Neves, na Misericórdia, queixando-se de queas coisas e o negócio ia mal, que não se ganhava nada acrescentara nessamesma ocasião que o que ele sentia era a Constituição ir-se, fazendo sinalde que tinha acabado....20

20 –  Do exame das cinco testemunhas últimas, se conclui que tudo quanto existiu relativa-

mente ao caso de que fala a sobredita Testemunha Nº 4, se reduz ao que depõem a última Nº 25, que é igual a nada; e se bem de observar todas as testemunhas da presente Devassa

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Testemunha 5

Luiz de Meneses de Vasconcelos de Drumont, natural desta Corte

&c...Disse que constante que Joaquim Gonçalves Ledo, Luiz Pereira da

 Nóbrega, Padre Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira, Ma-noel dos Santos Portugal, Padre Lessa, e N...... N...... pretendiam mudara forma de Governo21 e que tramavam, como quer que seja, para esse mem dia 10 de Outubro quando se convocou o Povo à Câmara, o que bemse infere de uma carta que José Clemente quis apresentar em Câmaranesse dia, anônima, e que o Povo não quis consentir que se lesse, 22 e bem

assim do empenho que o dito José Clemente zera para que S. M. juras-se antes da Sua Aclamação a Constituição que as Cortes futuras desteImpério houvessem de fazer tal qual 23 escrevendo cartas para algumasCâmaras a esse m, as quais nas suas atas chegaram a por essa condição.Disse mais que os mesmos sujeitos acima referidos pretendiam removerdo Ministério aos Excelentíssimos Ministros de Estado J. Bonifácio e [p.30] Martim Francisco24 a título de que queriam estabelecer o despotismo,como eles publicamente assoalhavam, mas a verdadeira razão era porque

queriam estabelecer o seu sistema, a que os ditos Ministros se opunham.Disse mais que ouviu dizer ao Excelentíssimo José Mariano que quandochegara aqui o Decreto das Cortes de Lisboa, em que se mandava retirar para lá S. M. I., José Mariano foi a casa e falando com ele à respeito dodito Decreto, e à respeito da opinião em que estava o Povo já naqueletempo, disse o dito José Clemente, que o Decreto das Cortes se havia decumprir, e que a Junta Provisória se havia instalar; e opondo-se a isso odito José Mariano depois de alguma disputa disse José Clemente ‘pois

 bem; instale-se o Governo, e seja o Príncipe o Presidente’ e como o ditoJosé Mariano respondesse que não convinha nem ao Povo, nem ao Ca-

se acham no circulo vicioso de referências de umas e outras, com alteração sempre de tudoquanto disseram aquelas primeiras que deram ocasião ao referimento das ouras.21 – Até aqui esta testemunha vai de perfeito acordo com a testemunha Nº 2 e por isso lhedamos a mesma resposta (nota 24).22 – Como a doença é a mesma não podemos deixar de lhe aplicar a mesma medicina quereceitamos à testemunha Nº 1 na nota 12.23 – Esse – tal qual – é da testemunha.

24 – E se tal soube porque não produziu os fatos? Imaginada quimera, que a tana gente foifunesta!

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014306

rater de S. M. I., e que se pretendia requerer às Cortes a revogação desemelhante Decreto, respondeu-lhe o mesmo José Clemente ‘pois bem;

requeriam e no entanto se ele quer esperar a decisão das Cortes, que vá para a sua Fazenda de Santa Cruz’ ao que José Mariano lhe tornou ‘que para semelhante ato precisavam dele José Clemente, e que ainda que elenão estivesse na Câmara haviam de ir à mesma e arrombar a caixa do Es-tandarte para o tirar, e fazerem a representação que intentavam. 25 Dissemais que Joaquim Gonçalves Ledo estando aqui Antonio Carlos, dera um jantar para o qual se empenhara com o Padre José Cupertino para o mde levar lá ao mesmo Excelentíssimo Antonio Carlos, que estava entãonomeado Deputado para as Cortes de Portugal, e conseguindo que este láfosse disse o dito Ledo ao mesmo na ocasião do jantar, que ele ia para asCortes de Portugal, e que zesse muito por tirar quanto antes daqui a estetigre lho de outro tigre, porque só assim o Brasil teria sossego e seriafeliz, o que contou a ele testemunha Filipe José Ribeiro.26 Disse mais queJoaquim José de Mello, no dia seguinte ao da deposição dos Excelentís-simos Andradas dissera a ele testemunha, que Ledo seu Compadre lhedissera ‘agora sim estão as coisas como eu quero; foram depostos aquelesdois homens, faça o requerimento e me traga que a de ser despachado na

forma que quiser. 27 Disse mais que é constante, e disse a ele testemunha oPadre Januário que ele e Ledo escreviam, bem como o Padre Lessa, parao Periódico intitulado ‘Correio do Rio de Janeiro’ , de que se gurava re-dator João Soares Lisboa, e tanto assim, que o mesmo Padre Januário lhemostrou duas Cartas, que haviam de sair no dito periódico, as quais eramde seu punho, e de fato saíram, as quais eram, uma sobre as eleições, eoutra sobre o Regulador. E perguntado pelo conteúdo ao referimento quenele fez a testemunha José Joaquim da Rocha e lhe foi lido disse: que é

verdadeiro na forma que tem deposto28. E mais não disse.Testemunha 6, f. 59

O Reverendo Padre Mestre Frei Francisco de Sampaio, ReligiosoFranciscano, natural desta Cidade &c.....

25 – No Depoimento da testemunha Nº 71 se dirá a verdade a este respeito.26 – Vide nota 28 e testemunha Nº 67 que desmente este fato, expondo-o de outra manei-ra.

27 – Vide nota 40.28 – Este referimento é relativo ao caso da nota 23 e 64.

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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E perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento dastestemunha primeira Teodoro Fernandes Gama disse: que há muito tem-

 po conhecia em Joaquim Gonçalves Ledo uma indisposição manifestacontra o Ministro de Estado dos Negócios do Interior desejando vê-loapartado de S. M. I. porque em quanto se reulasse por ele haveria despo-tismo no Rio de Janeiro, e as Províncias se não ligariam. Disse mais queS. M. levara a tal ponto o seu liberalismo que se conhecesse que o Brasilqueria ser uma República, ele seria o primeiro Cidadão dela; o que o mes-mo Ledo publicou em casa de Antonio José Loureiro, estando presente oConselheiro José Mariano, e outras pessoas que o mesmo Loureiro terálembrança.... Disse mais que ele testemunha por ter anunciado no seu periódico “Regulador” a opinião de alguns Publicistas da melhor notasobre o Veto e Sanção Real foi por isso julgado Réu de Lesa-Nação pelomesmo Ledo, e alguns do seu partido e descomposto publicamente pelo periódico intitulado “Correio” que era o veículo das suas opiniões revo-lucionárias.... Disse mais que ele testemunha tendo feito a carta em que pedia a Cau declarasse quem era o sujeitinho que estava no poleiro, fora julgada a mesma carta como contrária à liberdade de imprensa, da qual setinha servido Cau, e dali a poucos dias apareceu no Correio outra carta,

em que eles testemunha e todos os do seu Convento, foram publicamenteatacados, referindo-se o insulto a um artigo da mesma carta antecedenteem que ele testemunha dizia que S. M. tinha mil espadas para defender.Disse mais que é verdade que no dia seguinte ao em que se publicaram asinstruções para a eleição de Deputados fora a Cela dele testemunha JoséClemente Pereira, e ali publicara o seu ressentimento por car excluí-do da Assembleia Nacional,29 segundo o espírito das mesmas instruções.

29 – Mais probidade era de esperar no Reverendíssimo Padre Mestre Sampaio; contar ofato sem o comentar é próprio do homem honrado e de caráter; compô-lo a seu jeito é dequem não possuí esta qualidade. J. C. Pereira é verdade que chamou injusto o artigo dasInstruções que excluía de Deputados os Brasileiros Europeus que não tivessem doze anosde residência no Brasil; mas não proferiu uma só palavra relativa à exclusão individual,que dali lhe resultava; falou da Classe em geral, e ainda não mudou de opinião a esterespeito; porque a obrigação que reconhece de cumprir uma Lei, não o pode obrigar a quea ache justa; mas se falando da Classe em geral ele queria falar de si, é interpretação quenem a testemunha nem ninguém podia fazer sem expor-se a julgar temerariamente... Elembre-se a testemunha que ela foi o primeiro a notar a sobredita falta de justiça; e quemse ofereceu a escrever contra ela; bem sei que dirá agora, que foi por achar a Pereira; mas

este lhe responde, que fez muito mal, porque nunca se iludiu com adulações, e sempreamou a verdade pura, crua, e nua; Sua Reverendíssima bem o sabe.

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014308

Disse mais que ele testemunha tem toda a certeza de que o mesmo JoséClemente fora arrastado para a Representação que a Câmara fez apresen-

tar a S. M. I. no dia 9 de Janeiro deste ano; porque a ele testemunha disseo mesmo José Clemente Pereira que o Decreto das Cortes de Portugal quemandava retirar do Brasil a S. M. e instalar a Junta Provisória do Governose devia (cum-) [p. 32] cumprir, mostrando uma grande tendência as ditasCortes, e dizendo que formado o Governo Provisório, havia S. M. carcomo um mero particular aqui ou na sua fazenda de Santa Cruz; e emcasa do Excelentíssimo José Mariano estando a ler-se a Representaçãoque se havia de fazer no dito dia 9, e estando ali o dito José Clementemostrou grande diculdade em anuir, e só depois de grandes instânciasde José Marino e de outros é que concordou na Convocação do Senado para aquele m; 30

Testemunha 7 

O Capitão do Estado Maior do Exército Justino José Ferreira de Me-nezes, natural da Cidade de São Paulo &c...

E perguntado pelo conteúdo no auto da devassa, e referimento que

nele fez a segunda testemunha, disse ter ouvido a um amigo seu o TenenteCoronel de Artilharia Francisco Carlos de Moraes que também tinha ou-vido ao seu Coronel Luiz Antonio de Oliveira Bulhões que Luiz Pereirada Nóbrega viera a Cidade em uma noite depois da sua deposição, e aosair de um beco, que ca quase fronteiro à sua casa encontrou-se aqui como dito Coronel Luiz Antonio, e lhe dissera “homem, que tropa tão falta decaráter! 31E que motivo para estas luminárias! Adeus, adeus que deixei aliumas cômodas abertas e vou arranjá-las” Disse mais que o Ex Ministro daGuerra dito Nóbrega não era amigo dos Excelentíssimos José Bonifácio,e Martim Francisco; do primeiro conheceu ele testemunha por um fatoacontecido com ele mesmo coisa de cinco dias antes da sua deposição, em

30 – J. C. Pereira diz ao Reverendíssimo Padre Mestre Sampaio, que falta à verdade noque diz, e para prova lhe oferece a Atestação Documento Nº 31 que contestará, parecendo--lhe, o caso passou-se na forma que se dirá no depoimento da testemunha Nº 71.31 – É digno de notar como todas as testemunhas desta Devassa adulteram o que ouviram!E para que m? Não sabiam eles que as testemunhas referidas haviam de ser perguntadas,e falar a verdade? Tanto acontece com a presente; e para se a testemunha Nº 8 e Nº 12,

aonde as palavras de Nóbrega nada se assemelham com a expressão de que esta testemu-nha o acusa! Velhacorum autem innitus est numerus.

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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que indo participar-lhe que tinha entregado a S. M. I. um requerimentoseu, e pedindo-lhe ao mesmo tempo a sua proteção para o mesmo reque-

rimento; respondeu-lhe o dito Nóbrega que ele já não protegia ninguém,que estimava conhecer as pessoas de merecimento para os apresentar aoImperador. Que se ele testemunha queria proteções procurasse aos Exce-lentíssimos José Bonifácio que tinha uma proteção muito grande, e quetudo queria governar...32.... Disse mais que tem ouvido dizer geralmente amuitas pessoas, de que se não lembra, que Ledo, José Clemente, Manoeldos Santos Portugal, os Padres Januário, e Lessa, e o mencionado Nó- brega, e também N.... e João da Rocha Pinto pretendiam mudar a formado Governo e estabelecer uma República; que outros porém dizem que a pretensão destes homens não era fazer a dita República, mas somente dei-tar abaixo os Excelentíssimos Ministros [p. 33] de Estado José Bonifáciode Andrada, e Martim Francisco, para meter em lugar do primeiro a JoséClemente, e outro que havia ir para o Ministério da Fazenda, e fazer sairdentro em pouco tempo, do Brasil aos ditos dois Ministros depostos assimcomo ao Excelentíssimo Antonio Teles, e ao Capitão Mor José Joaquimda Rocha, porque, eram perigosos ao pé do Imperador....

Testemunha 8O Coronel Luiz Antônio de Oliveira Bulhões, desta Corte &c....

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa, e referimento que nelefez a testemunha Nº 2 e Nº 7 disse: que é verdade que recolhendo-se eletestemunha para sua casa em uma das noites em que se puseram luminá-rias pela restituição ao Ministério dos Ministros de Estado dos Negóciosdo Império, dos da Fazenda, e dos da Justiça, encontrou ele testemunhacom o Ex-Ministro de Estado dos Negócios da Guerra Luiz Pereira da Nóbrega, que sabia de sua casa, e ia-se encaminhando pelo Beco da BoaMorte, e disse para ele testemunha “Vens de ver as luminárias?” e dizen-do-lhe ele testemunha que não, respondeu-lhe “Que dizes a isto? Com

esta Tropa é que nos havemos de defender? Fica-me o prazer de ter feito

 grandes serviços à minha Pátria; vim hoje à Cidade arranjar a minha

32 – Logo era Conspirador, Republicano, Demagogo, Carbonário?... Desgraçadamenteassim o ensinava a lógica daquele tempo, que Deus permita não volte.

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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casa, e vou-me agora para a minha Fazenda” o com isto retirou-se. Emais não disse.33

Testemunha 12, f. 67 

O Tenente Coronel Francisco Carlos de Morais morador na rua daBatalha, natural da Vila de Atalaia &c...

E perguntado pelo conteúdo no referimento da testemunha Nº 3 e 7e conteúdo no auto da Devassa disse que desembarcando em um dos diasem que se puseram luminárias, e que cuida ser no sábado depois da depo-sição de Luiz Pereira da Nóbrega, encontrou com este que ia a embarcar

de capote, e como o viu nestes trajes não lhe quis falar; chegando poréma casa e falando no dia seguinte com o seu Coronel que mora paredesmeias, contou a este que tinha encontrado a Nóbrega na noite anteceden-te; e o dito seu Coronel lhe contou igualmente que também o tinha vistoao sair da sua casa e que ele dissera “então vem de ver as luminárias?Pois eu vim arranjar alguma roupa, que fui ontem sem coisa alguma paraa minha Fazenda” e que acrescentara mais em ar de admiração “Com esta

Tropa é que nos havemos de defender?” Dando a entender que estava

aito; e mais não disse nem de costume.Testemunha 17 f. 71

Antônio José da Silva Loureiro, natural da Ilha de S. Miguel, mora-dor na rua da Cadeia &c....

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa e pelos referimentosdas testemunhas Nº 1 e Nº 6 disse: que era verdade (quan-) [p. 34] quantodepôs a testemunha Nº 1 sobre a disputa que tivera Ledo com a dita tes-

temunha no Convento de Santo Antonio, defendendo ele com largas ra-zões o procedimento de Cau na carta que publicou no periódico intituladoCorreio, e na qual atacava, ou pretendia atacar a inviolabilidade da Pessoade S. M. I. e tão certo está disso que até se lembra que foi em o dia de S.Antônio. Disse mais que quanto ao outro referimento da testemunha Nº 6não se lembra se foi assim ou não..... Disse mais que nesse mesmo dia ao

33 – Compare-se o depoimento original desta testemunha de caráter reconhecido coma referência que nela zeram as testemunhas Nº 2 e 7, e tire-se daqui um argumento da

grande vontade de converter em crime expressões de inocência sem equívoco! E podetolerar-se tanta imprudência!

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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almoço, falando-se em questões políticas e defendendo Carlos Taunay oestabelecimento de duas Câmaras Legislativas como meio de fazer per-

manentemente a Constituição do Brasil, e até fazendo a esse respeito umasaúde, Ledo revoltou-se muito com isso, e disse logo, pondo-se de pé,que era melhor deixarem-se questões políticas que não tinham lugar entreamigos. Disse mais que sendo o mesmo Ledo convidado por ele testemu-nha para de mãos dadas com o Padre Januário, Padre Mestre Sampaio eoutros estabelecerem uma espécie de Academia Literária e fazerem um periódico mensal (verb. Grat. O Regulador) a m de instruir ao Público, odito Ledo lhe repeliu logo a proposição dizendo que o Povo tomaria issocomo um club secreto.... Disse mais que achando-se uma vez em casa doExcelentíssio J. B. de Andrada em uma manhã com o Padre Lessa, tido ehavido pela opinião pública como colaborador desta facção, lhe disse omesmo Padre que ele era um republicano dos quatro costados, e que sódeixaria de o ser por uma Constituição democrática.34

Testemunha 19 f. 72 v.

O Reverendo José Cupertino de Jesus, natural da Cidade de S. Paulo,morador na rua do Príncipe desta Cidade &c...

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa, e pelo referimentodas testemunhas Nº 2 e 5, disse: que no dia 12 de Outubro indo ele tes-temunha ver a Aclamação entrou em casa do Conselheiro Ledo que es-tava à janela, e entrando a falar na fertilidade do gênio que mostrava oDesembargador José Clemente Pereira no manejo de todos os negócios,e fazendo ele mesmo a apologia dos seus grandes talentos, disse enfatica-mente “ Eu e José Clemente podemos revolucionar o mundo inteiro pela

analogia de Sentimentos”35

Que quanto ao jantar que a testemunha referente diz ser dado porLedo ao Excelentíssimo Antônio Carlos não fora dado em casa daquele,

34 – Como desta expressão se não pode tirar outra prova que não seja de que o PadreLessa possui ideias democráticas, e possuir ideias democráticas não seja prova de cons-

 pirador, porque conspirações provam-se por fatos, e não por ideias; acrescendo que estassão propriedade de cada um, no gozo da qual ninguém pode ser perturbado sempre quedelas não abuse em dano do Governo estabelecido; é evidente que da mesma exposição,ainda quando verdadeira fosse, nenhuma prova se pode deduzir de que o Padre Lessa

fosse chefe ou sócio da imaginada conspiração, único objeto da presente Devassa.35 – Vide Alegação dos Exterminados.

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mas sim em casa do Padre Januário a que Ledo assistiu: ali entre ou-tras conversações agitou-se a questão de qual Governo convinha mais ao

Brasil nas circunstâncias atuais; disseram Ledo, e Januário que por horaconvinha outro Governo que [p. 35] não fosse o Monárquico Constitu-cional, e que só depois de aclarado o Povo poderia admitir-se o Governofederativo à imitação do da América setentrional, atenta a nímia distânciaentre umas e outras Províncias......36

Testemunha 20 f. 73 v.

O Reverendo Cônego Thomas José de Aquino, natural desta Corte,morador na rua de S. José &c...37

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa disse que enjoado dever ser eleito Procurador de Província Joaquim Gonçalves Ledo, homemsem proibidade com quem nunca teve inteligência mas que o antipatiza-va......... querendo evitar que para Deputado fosse eleito este biltre falou amuitos eleitores da sua amizade e conança para o não nomearem Depu-tado, chegando mesmo doente a vir à Cidade tratar sobre este objeto comalguns eleitores aos quais fazia ver as maldades deste monstro. 38 Disse

mais ele testemunha que no dia 29 ao meio dia estando ele testemunhadoente teve notícia por visitas de que se haviam deposto lamentavelmenteos Excelentíssimos Ministros do Interior e Fazenda, e os outros com oque se consternou ele testemunha, e passando logo depois de jantar a sair para a casa do Excelentíssimo Antonio Vieira do Soledade, Procurador pela Província do Rio Grande para melhor se informar daquela infaustanotícia, foi instado ao passar pela rua da Cadeia por N. para que subisse,e subindo ele testemunha o dito N. lhe disse “Te Deum Laudamus, gra-

36 – Compara-se esta testemunha com as maneiras porque se expressaram as testemunhas Nº 2, e 5, que a ela se referiram, e digam os Leitores imparciais se estas não mostraram umempenho decidido de fazer com a cor de crime uma conversação, que além de se limitara um objeto em questão, reconheceu que o Governo Monárquico Constitucional é o queatualmente convêm mais ao Brasil.37 – Vide Portaria D e nota 7.38 – Que se pode esperar de uma testemunha enjoada, e antipatizada? Ao ver roncar a tre-voada muitos raios parecem ameaçar... mas não se assustem os Leitores, que tudo se reduza carmos sabendo que o Sr. Cónego Thomas Joze d'Aquino é tudo aquilo que chama aLedo; contra o qual obrou hostilmente, sem nunca ter visto nem conhecido, constituindo--se, para lhe fazer mal, criminozo subornador de votos; e oferecendo-se para ser o seu

assassino! Discile a me quia m-tis sum ; lhe ensina o Evangelho, mas o Sr. Cónego écapoeira, e por consequência rompedor de entranhas!

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ças ao Imperador pela deposição de José Bonifácio, e Martim Francisco,dois tiranos, dois Déspotas e que até não se devia querer saber a razão,

que bastava tê-lo feito o Imperador para lhe dar-nos Coroas Cívicas”39

 aoque respondeu ele testemunha que infeliz seria o Brasil sem aqueles doishomens; 40 e velhaco Ledo: ao que acodiu de pronto ele Bandeira dizendo,que ele testemunha não pensasse assim, pois que tudo devíamos a Ledoque era muito honrado Brasileiro..... de sorte que ele testemunha se [p.36] enojou e saiu sem lhe responder coisa algnma, e foi para a casa desti-nada do Excelentíssimo Soledade onde estando presentes N..... N.....N....,e um Padre do Rio Grande ali apelidado por Padre António, tratou-se comamargura da depozição dos ditos dois Ministros ao que ele testemunha pondo-se de pé e em altas vozes gritou, que se era necessário para salva-ção da sua pátria e dos seus concidadãos a morte do ladrão do Ledo, eletestemunha naquele mesmo instante lhe ia romper as entranhas, 41 umavez que lhe perdoassem o assassinato e nessa mesma ocasião contou oque ouvio a N. cujo noine só descobriu ao dito Coronel, e Conselheiro para evitar intrigas.42

Disse mais que nessa mesma noite estando só com o Excelentíssi-

mo Soledade o aconselhou que deveria em conselho patentear a S. M.o mal caráter de Ledo, e pedir providências para a salvação do Brasil,e que no caso dos Conselheiros seus Colegas não anuirem a isto ele sóem presença do mesmo Ledo representasse ao Imperador encarando suasmaldades; ele Conselheiro Soledade respondeu que lhe não desagradavao parecer; 43 e recolhendo-se para casa depois de onze da noite se en-

39 – Como escaparia este atrevido falador ás muralhas de Santa Cruz, e Ilha das Cobras,tendo mais justos motivos para lá ser guardado, visto o Te Deum, que em tão boa voz

entoou, que outros muitos, que lá foram depois de chorar por o Misere? De boa se livrou,Sr. Bandeira, mas não caia n'outra, que se pode sair mal da função.40 – Sr. Cônego; isto é caso de injúria atroz, Ledo está a chegar, e fará muito bem se dera V. S. a lição que merece.41 – Bravo! Não só tem má língua, mas além disto é rompe tripas! De tais capoeiras Li-

 bera nos Domine Imperator.42 – Ora vejam como é mavioso! Que bom modo de evitar intrigas! Só o disse a suas

 pessoas, e mais ao Senhor Juiz sindicante, e ao seu Escrivão, v. g., que se escrevesse ad perpetuam na memoriam! E agora se imprimisse... mas que desaforo, imprimir-se umaDevassa tirada em segredo, e debaixo de palavra de ninguém ver o que se jurasse!43 – Eis aqui uma atestação de bons serviços que Sua Senhoria se passou a si mesmo: e

 porque faltando mal de si é bem de crer que não mentisse, quem sabendo todos, que oReverendíssimo Sr. Cónego Thomas Jozé de Aquino foi (segundo ele confessa) o primeiro

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controu com João Pedro de Carvalho, e António Jozé da Silva Loureiro,que deplorando a de posição dos beneméritos Ministros ele Conselheiro

dissera que aca bava de ouvir um parecer que lhe não desagradava, e oqueria pôr em prática no dia seguinte, e disse qual era o parecer, que é oque ca referido, e que para isso queria convocar os seus colegas, foi istoaprovado pelos dois e por ser tarde se ofereceu ele Loureiro a ir falar aoExcelentíssimo Jozé Mariano, e logo no dia 30 de manhã cedo trouxeLoureiro a resposta que aquele Procurador anuira, e o vinha buscar nasege: com efeito veio ele Conselheiro Jozé Mariano a casa do Conselhei-ro Soledade, e embarcados ambos na sege se derigiram ao ConselheiroResende, que nem anuio nem cedeu a persuasões: dirigiram-se a outrosProcuradores mais que aderiram, e se acharam todos na Quinta.... Dissemais que sabendo a noite no dia 30 de Outubro por cia do ExcelentíssimoSoledade tudo quanto ca referido, e que os três beneméritos Ministrosestavam restituídos aos seus lugares, ele testemunha mandara logo deitarluminárias, e no dia seguinte apesar de estar de cama se esforçou e foi áCâmara assinar a Ata respetiva; sendo esta assinatura a única que prestoudesde o dia 26 de Fevereiro do ano passado,44 e mais não disse.

[p. 37]Testemunha 21 f. 77 v.

O Coronel de Milícias Manoel da Silva Freire, natural da Bahia, mo-rador na rua Alecrim &c....

Disse ... que sabendo que o Dezembargador J. C. Pereira tinha convi-dado como Presidente da Câmara ao Povo desta Cidade para comparecernos Paços do Conselho ao dia 10, dois dias antes da Aclamação, e ouvin-

do rosnar 45

 que ele pretendia apresentar condições para se anexar à ditaAclamação, foi ele testemunha aos referidos Paços do Conselho a ver oque se passava, e chegando lá leu o dito Presidente umas cartas dirigidas

motor da Bonifácia de 30 de Outubro, no que não há dúvida, porque a Excelentissima tes-temunha Nº 40 assim o reconhece quando depõem ser verdadeiro o referimento que nelefez.44 – Por esta conssão mostra esta testemunha que lhe mereceu mais a recondução dedois Ministros de Estado, que a cada de S. M. I. neste Império, e [p. 37] que sua Acla -mação, pois que aliás tivera ido assinar os Autos dos Faustos dias 9 de Janeiro, e 12 de

Outubro de 1822. E que tal é o sujeitinho!45 – Isto de rosnar na boca desta testemunha que será? Vide Morais.

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às Câmaras desta Província convidando-as para o dito ato da Aclamaçãodebaixo da condição de jurar primeiro S. M. I. a constituição que houves-

se de fazer as Cortes do Brasil.....Testemunha 24 f. 27 v.

Joaquim José de Melo, natural da Cidade de Braga, morador na ruade Alecrim &c....

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa, e referimento da tes-teniunha Nº 5 disse: que o referimento não era verdadeiro,46  porque ocaso difere, pois tendo ele testemunha já a muito pedido a Ledo para que

guiasse um requerimento que pretendia fazer para segurar o Emprego queexerce e isto porque o dito Ledo era Deputado de Cortes e podia protegê--lo, passou-se tempo sem que Ledo mais nisso falasse; e no dia em foramdepostos os Excellentíssimos Andradas, encontrando-se Ledo com eletestemunha, lhe disse “agora que isto está mais socegado vá lá por casa para lhe fazer o seu Requerimento e dirigi-lo” e mais não disse.

Testemunha 26 f. 80 v.

Antônio de Menezes Vasconcelos de Drumont, natural desta Corte,morador à rua do Conde &c....

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa e referimento quenele fez a testemunha Nº 2 disse: que é verdade ter ouvido ao Padre JoséCupertino, que Ledo se gabam, de que ele e José Clemente eram capazesde revolucionarem um Reino, quanto mais esta Corte, 47 e que isto mes-mo estava tão público que ninguem ignorava; Disse mais que era públi-co e constante nesta Corte o projeto de vários indivíduos entre os quais

eram cabeças os ditos J. G. Ledo, Desembargador José Clemente Pereira,o ex-Ministro da Guerra Luiz Pereira da Nóbrega Souza Coutinho, Pa-dre Januário da Cunha Barbosa, o Coronel Manoel dos Santos Portugal, N.....N......, e o Padre António João de Lessa, de mudarem a forma doatual Governo...... fazendo para esse m Sessões secretas, e pondo emmovimento os meios que (adota-) [p. 38] adotavam: infundir nos Povos

46 – Há certas testemunhas nesta Devassa que são muito infelizes nos seus referimentos, porque sempre as testemunhas referidas, lhes respondem “é mentira, tal não dissemos” E

 para que se expuseram a car por mentirosas? Foram velhacos ...47 – Vide alegação dos Exterminados.

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receios de despotismo para chamar o ódio público contra o Imperador foium dos expedientes de que eles se serviram para desta maneira obterem

não só a desafeição ao Imperador, como para minarem a queda e a ruínados Ministros e Secretários de Estado José Bonifácio de Andrada e Silvae M. Francisco R. de Andrada que percebendo o plano dos demagogos seopunham à execução dele, duvidando quanto podiam que eles pudessemrealiza-lo. Que para melhor derramar a discórdia e nutrir nos ânimos dosPovos a doutrina que pregavam puseram à sua disposição o periódicoque corria impresso na Ocina de Silva Porto e Companhia denominadoCorreio do Rio de Janeiro, de que aparecia como Redator o mascate JoãoSoares Lisboa, sendo os ditos acima indicados os que escreviam a maior parte dos papéis transcritos deste periódico; e os explicaram ao Povo a sãdoutrina que o dito periódico continha, retorquindo, e defendendo a testade ferro do papel quando algum sensato desabonova as máximas revolu-cionárias que com honestas cores apareciam na Folha; e que é isto tantaverdade que a ele testemunha mostrou e leu o referido Padre Januário nomês de Setembro em sua própria casa uma carta que tinha escrito e quedepois apareceu inserida na dita Folha, na qual muito atacava o Ministé-rio, por cujo procedimento sendo chamado à Polícia o intitulado – Reda-

tor – este se ocultava e encontrando-se na Rua dos Pescadores, esquinada rua da Quitanda o dito Padre Januário com ele Ministro Sindicante perguntara em ar de mofa, se a Polícia ainda pretendia saber quem tinhasido o autor da Carta inserida e que neste caso casse na inteligênciaque ela tinha sido escrita e mandada imprimir por uma sociedade secreta.Tudo isto foi referido a ele testemunha pelo mesmo Padre Januário, sendotambém pérda e subversiva da boa ordem a doutrina que espalharam ostais demagogos tanto de viva voz como por meio de tal Correio, que basta

ler os de 18 e de 19 de outubro próximo passado para se car convencidoda existência do partido destruidor plantado entre eles.

Que ele testemunha sabe por ver, e ouvir que no m do ano passado e princípio deste, quando se tratava de implorar a S. M. a sua cada no Bra-sil, ouvira em Casa de José Joaquim da Rocha entre muitas pessoas dizero Brigadeiro Luís Pereira da Nóbrega, que Ledo era inimigo da Causa doBrasil, que trabalhava com o Padre Januário para destruir o plano que seestava pondo em prática de obter de S. M. I. a sua cada no Brasil.... Queao Procurador Geral desta Província José Mariano de Azeredo Coutinho

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ouvira ele testemunha dizer que o Padre Januário lhe respondera quandoo convocara para ter parte nos trabalhos que gloriosamente appareceram

no dia 9 de Janeiro, que ele já estava complicado com o Povo, que não seopunha aos Decretos das Cortes de Lisboa, e que por isso se retirava paracima da Serra, como com efeito se retirou. Que ao mesmo ProcuradorGeral José Mariano de Azeredo Coutinho, ouvira ele testemunha dizerque procurando ao Dezembargador J. C. Pereira para que como Presi-dente da Câmara obrasse de concerto com ele na representação do Povodesta Província para a cada de S. M. I. no Brasil, este lhe responderaque os Decretos das Cortes de Lisboa se havião de cumprir, e que S. M. I.só quisesse que casse como Presidente do Governo que se instalasse aoque retorquindo o dito Azeredo (Cou-) [p. 39] Coutinho dizendo que eratão indigna semelhante lembrança que ele julgava que não haveria quemfosse capaz de a propor a S. M. I. ele lhe tornara “pois se S. A. R. não qui-zer ser Presidente que vá passear para a Fazenda de Santa Cruz, que a dehaver quem governe” Disse mais que o mesmo empenho que zeram osditos Padre Januário, e José Clemente, fez também Ledo em se cumprir osdesorganisadores Decretos das Cortes de Lisboa de 29 de Setembro, porque eles se dispunham para membros do Governo sendo Secretário o dito

Ledo, para o que já tinham espalhado Listas contendo os nomes daquelesque deviam ser eleitos.48

Disse mais ele testemunha que chegando a esta Corte nos ns do mêsde Agosto, da sua viagem de Pernambuco, e Bahia fora procurado peloreferido Ledo, o qual conhecendo que ele testemunha desprezava a suaamzade; pediu ao Tio dele testemunha Manoel Frazão de Souza Rondon, para o convidar uma noite para a sua Casa ..... e comparecendo ele teste-munha ao convite recebeu um recado de Ledo trazido pelo Padre Januáriodizendo que negócios urgentes pediam a sua assistência até ás onze horasda noite depois de cuja hora ele compareceria..... Que encontrando-se nooutro dia com o dito Ledo este lhe travara conversara a cerca dos negócios públicos, empenhando-se mais que tudo em saber qual era o espírito dasProvíncias do Norte a respeito do Sistema Democrático, e ouvindo deletestemunha que era forma de Governo que jamais se estabeleceria naque-

48 – Como tudo quanto até aqui tem deposto esta testemunha é cópia el do depoimento

da Testemunha Nº 2, salva alguma pequena alteração de palavras, na redação, remetemosos Leitores ao que ca observado a respeito desta dita testemunha Nº 2.

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las Províncias pela aversão que os Povos do interior conservavam a tudoquanto era oposto à realeza, ele mostrou o seu despraser dizendo “como

é possível, que os Povos da Cidade não tenham instruído aos miseráveisdo interior no Sistema mais liberal.” Que saltando desta conversa dissea ele testemunha que estando destinado um sujeito para ir a Pernambuco promover a brevidade da Aclamação de S. M. I. que esperava receberdele testemunha algumas Cartas de recommendação à favor da pessoaencarregada da cornissão ao que acedeu gostoso ele testemunha ....... 49 Que nesta ocasião da entrega das Cartas lhe dissera Ledo que os negóciosestariam todos perdidos se ele não tivesse tornado sobre seus ombros omaior peso deles; que o Ministro J. Bonifácio era um trapalhão, e quequando se perguntava por alguma coisa em conselho respondia sempreque tudo estava feito, e que assim que tudo ia perdido. Que o MinistroMartim Francisco era um maquiavélico e que ninguém o percebia, e quenalmente só o Ministro Nóbrega era capaz e honrado e a quem o Brasilainda havia levantar uma estátua e que ele testemunha devia desprezartoda a entrada com aqueles Ministros e só dirigir-se pelo dito Ministro Nóbrega, de quem receberia sempre bom expediente, (po-) [p. 40] poisdo contrário que os negócios de Pernambuco irião todos confusos e per-

didos, pois que ele e Nóbrega se ofereciam para prestar os seus serviçosaquela Província ....... Que ele testemunha ouvira dizer a Ledo em De-zembro do ano passado que a felicidade do Brasil consistia na criação deJuntas Provisórias e retirada de S. M.......

Que no mês de Dezembro do ano próximo passado fora pú blico econstante nesta Corte que Ledo saudara os Decretos das Cortes de Lisboa,que ordenaram a retirada de S. M. I. para Portugal com uma saúde em um jantar entre os seus comensais em que bebeu à retirada do leãozinho. 50 Que Felipe José Ribeiro disse a ele testemunha em Setembro do ano pró-ximo passado, que Ledo em urn encontro que procurou ter com o ilustreDeputado pela Província de S. Paulo António Carlos Machado Ribeiro deAndrada, antes da sua partida para Lisboa lhe pedira com o Padre Januá-

49 – Ora aqni tem como elas se armam! Quem acreditará nestas contradições! Como quera testemunha fazer crer que Ledo tinha pena de que Perrnambuco não possuísse ideiasDemocráticas, e que ao mesmo tempo, no mesmo dia, e occasião solicitasse Cartas de

 protecção para que se acelerasse a Aclamação de S. M. I. em Pernambuco?

50 – Esta invenção, cujo autor ainda se não conhece, está desmentida pela Ilustre Teste-munha presencial Nº 65.

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rio que zesse todo o possível para que o Congresso de Lisboa mandasseretirar o Imperador, pois que era um tigre lho de outro tigre..... pois que

só com a ausência do mesmo Augusto Senhor seria possível recolonizara ventura do Brasil ....51

Que ele testemunha conhecia tão bem a tendência de Ledo para orepublicanismo que estando em Pernambuco quando lá apareceu nos papéis públicos a eleição de Ledo para Procurador Geral desta Provín-cia escrevera logo uma carta a José Joaquim da Rocha dizendo, que poraquela nomeação não se podia convencer se não que o Rio de Janeiroqueria destruir o Poder Real, e fundar uma República; pois do contrário

não nomearia semelhante homem para um Procurador Geral, e que eramelhor desenganar o mundo do que iludirem a ele testemunha em andarem tão áspero trabalho reconciliando e chamando em um centro de su- bordinação aos Povos do Norte para ver as expolsões de tantas fadigas amina revolucionaria que por aquela nomeação estava preparada no Riode Janeiro. Que não podendo Ledo mesmo no último momento encobriros seus desejos acaba de publicar na Ocina de Silva Porto e Compa-nhia uma representação que dirigiu a S. M. I. Na qual, além do ataque

grosseiro que vomita contra o Povo do Rio de Janeiro, sustenta que osPovos querem ser bem governados, e que não se importam com a formade Governo. Finalmente que é tão público e notório o trama urdido pelosreferidos indivíduos contra o Brasil e S. M. I. Que deu lugar a que todaesta Cidade se reunisse no dia 30 de Outubro para clamar altamente nas portas do Paço do Conselho pelo castigo dos perversos. 52 Disse mais queele testemunha indo cumprimentar ao ex-Ministro Nóbrega poucos diasdepois da sua chegada, este o recebera carinhosamente e lhe dissera asmesmas coisas que depois Ledo lhe disse, e que cam referidas lançandotodos os seus ódios contra os Ministros Andradas e S. M. I. porque osouvia; e concluiu dizendo que era precizo mudar tudo, fazendo a ele tes-temunha muitos (of-) [p. 41] oferecimentos e pedindo que frequentasse asua casa, o que elle testemunha nunca fez........ Disse mais ele tesmunhaque indo a casa do Dezembargador J. C. Pereira poucos dias depois da suachegada a esta Corte a m de lhe entregar uma carta que de Pernambuco

51 – A Ilustre testemunha referida Nº 65 e a Testemunha Nº 69 desmente a esta asserção.

52 – Hoje o mesmo Povo clama pela absolvição dos inocentes, e castigo dos seus opres-sores.

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trazia para a Câmara desta Corte, e outra para o mesmo Desembarga-dor este lhe interrogara sobre o estado daquela Província patenteando os

mesmos sentimentos que depois Ledo lhe manifestou e ca referido: Quedeste Desembargador recebera ele testemunha muito agasalho e que -nalmente lhe disse que era preciso que ele testemunha se reunisse aoshomens de bem a m de cooperar para a Salvação do Brasil e de suacompleta liberdade: por cuja ambiguidade53 nunca mais ele testemunhaquis ter intervenção alguma com o dito Desembargador, não obstante ser para isso solicitado.54 Que queixando-se ele testemunha ao Vereador daCâmara desta Corte, Bulhões, das perfídas que a mesma Câmara estava praticando solapadamente, 55 para extorquir de S. M. I. prévio juramentode manter, conservar, e defender a Constituição tal qual 56 zer o CorpoLegislativo que se vai congregar, este lhe respondera que a Câmara sótinha crime de omissão e boa fé, por assinar em branco as cartas que apre-sentou o Presidente da Câmara, José Clemente, para convocar as Vilasdesta Província, e das mais Províncias coligada, para na Aclamação deS. M. I. imporem o tal decantado prévio juramento, e que não se tendoconseguido tal perfídia o Presidente tratara de escrever as mesmas Vilas eProvíncias para o que apresentara em Câmara as cartas escritas a primeira

linha, e o mais tudo em branco, e que requerendo os vereadores que seconcluísse as cartas para depois eles as assinarem o Presidente com ef-teito concluiu dizendo em seu teor que S. M. I. não tinha dado o prévio juramento porque cara reservado para o dia da sua inauguração, ao queopondo-se alguns dos Vereadores tornara-se a escrever outras Cartas quesimplesmente diziam ter sido gloriosamente Aclamado S. M. I.57

53 – Por homens de bem entendia o acusado Desembargador todos os Constitucionais; enesta inteligência não podia haver ambiguidade, por ser a todos conhecido que ele semprefoi decidido amante do sistema constitucional.54 – A testemunha dirá quem cometeu o desacato de para isso o solicitar; porque o sobre-dito Desembargador o não solicitou, nem deu comissão.55 – Alto lá, à ordem... O que se faz em cartas impressas, e em Atos Públicos a face detodo o Povo não pode dizer-se feito solapadamente: e muito menos quando esse juramento

 prévio tinha sido aprovado por um dos Ministros de S. M. I. Vide Alegação dos Extermi-nados §.56 – Este – tal qual – é irmão do tal qual – da testemunha Nº 5. Irmão desta Testemunha

 Nº 26, e lho dos dois irmãos por obra da sua maldizente e caluniadora vontade.

57 – Os improvisos desta testemunha e de outras contra ela, acham-se desvanecidos naAlegação dos Exterminados §.

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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Que estes demagogos tinham um rancho de satélites que andavam pregando esta mesma depravada doutrina subversiva da boa ordem e que

entre estes satélites se distinguia mais João da Rocha Pinto que publicae descaradamente andava pelas Praças, Corredores do Teatro e ruas pú- blicas gritando e vociferando a favor do partido dos desorganizadores,impondo em público da grande dignidade que lhe guardava a mudançaque ele esperava nas coisas públicas, a ponto de dizer ao Francês Marolleque guardasse (al-) [p. 42] algumas dúzias de garrafas de Champagneque era para a função que se havia de dar com a completa mudança dosistema político do Brasil, este que havia de seguir com a decisão dosMinistros. Que ele testemunha ouvira isto de seu irmão Luiz de Menesesde Vasconcelos Drumont, a quem Marolle havia contado assustado daterrível pretensão58 e que este João da Rocha Pinto é o mesmo que havia já dito, que quando se tratasse de enforcar o Ministro José Bonifácio eleestava pronto para lhe ir puxar a corda. Finalmente e como é fama publicadisse: que este conluio era destinado destruir e aniquilar a atual forma doGoverno Monárquico Constitucional59 para se celebrar uma Democracia pura, em cuja extraordinária mudança ele pretendia fartar a sua demasia-da ambição e engrossar a fortuna de seus apaniguados, o que felizmente

não teve lugar; porque os seus planos foram assaz conhecidos por estaCidade inteira, que assustada dos males que lhe aguardava se reunirão osseus habitantes no dia 30 de Outubro. &c...................

Testemunha 31, f. 92 v.

José Marolle, Francês, morador na rua do Ouvidor &c.

Perguntado pelo conteúdo no referimento da testemurfha Nº 26 dis-se: que unicamente dissera a Luiz Menezes de Vasconoellos de Drumont,que João da Rocha Pinto recomendara seis dúzias de garrafas de VinhoChampagne para um jantar, mas qne não disse sobre que objeto era, e queMenezes foi quem disse qua seria por causa do jantar que talvez quizes-

58 – Rogamos aos nossos Leitores, que antes de passarem adiante leiam esta testemunha,que é a primeira que segue em Nº 31; e tenham a bondade de nos dizer, se à vista do seudepoimento não pode muito bem dizer-se que os Senhores Menezes são uns famosos Ca-luniadores?

59 – Tudo o que quiser, menos destruir e aniquilar a atual forma de Governo MonárquicoConstitucional!

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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sem dar pela mudança que queriam fazer da nova forma do Governo. Emais não disse.

Testemunha 34 f. 96 v.

João Soares de Bulhões, natural da Província de Minas Gerais, Ve-reador do Senado da Câmara desta Corte &c.

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa e referimento da teste-munha Nº 20 disse: que o ex-Presidente da Câmara J. C. Pereira apresen-tou em Câmara uma circular para as Câmaras desta Província e das maiscoligadas convocando-as para ser S. M. I. aclamado no dia 12 de Outu-

 bro, na qual se declarava a condição de que o mesmo Augusto Senhor prestasse prévio juramento de sustentar, manter, e guardar a Constituiçãoque zesse a Assembleia Nacional do Brasil, e nesta occasião disse o ditoex-Presidente que aquela condição fora-lhe exprcssamente ordenada porS. M. I. e pelo Excelentíssimo José Bonifácio60 em cuja suposição assi-naram todos os Vereadores. Que depois da feliz Aclamação de S. [p. 43]M. I. quis o mesmo ex-Presidente fazer participar às mesmas Câmaras,e para isso apresentou em Câmara a Carta para se assinar, a qual tinha só

escrita a primeira linha,

61

 e como todos unanimemente exigissem quese enchesse a carta porque em branco a não assinavam o ex-Presidentefez ali uma grande carta em que dizia que S. M. não prestará juramento por que o Procurador do Ceará tinha escrito uma fala em que em sumademonstrava que o juramento era próprio para o dia da coroação:62 esta

60 – Falta à verdade esta testemunha quando depõem que o ex-Presidente da llustríssimaCâmara disse que o Juramento prévio era expressamente ordenado por S. M. L, ou peloseu Ministro: o mesmo ex-Preridenta só disse então, e ainda hoje diz, que este juramento

era da aprovação do ex-Ministro José Bonifácio de Andrada, por lho ter assim aançadoJoaquim Gonçalves Ledo, por via de que aquele consultou a vontade do dito ex-Ministroa tal respeito.61 – Permitia o Sr. ex-Vereador, que o seu ex-Presidente lhe diga que ou se enganou, ou

 pretendeo enganar quando depôs que este lhe apresentou a carta circular, de que trata paraser assinada em branco; e para o desmentir basta o documento N° e considerar que todasas Cartas circulares que a Ilustríssima Câmara dirigiu às outras foram impressas; e comonão podiam ser assinadas se não depois da impressão é manifesto o engano, ou maldadedo Sr. ex-Vereador.62 – Continua a dormitação do llustre ex-Vereador, pois que o contexto da carta repudiadaa que se refere é hera diferente do que ele diz; e felizmente ela existe em documentos N. ° ,

e à vista deste decidiram os sensatos se foi repudiada com justiça, se era inocente, sincera,e franca, ou se continha crime.

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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carta foi geralmente reprovada por este motivo, enm foi acordado quese escrevesse simplesmente às Câmaras dizendo se-lhes qne S. M. fora

gloriosamente Aclamado no dia 12 cuja carta bem como a primeira foramimpressas.63 Disse mais que no dia 10 de Outubro estando-se em Verea-ção pública e extraordinária quando chegou o dito Procurador do Cearáo ex-Presidente o chamou e fez assentar na Cadeira debaixo do espaldarao seu lado esquerdo, e neste mesmo ato abriu o ex-Presidente uma Cartaque ele testemunha pôde ver, e era escrita de letra toda ngida e torta paratrás, e a primeira linha que ele testemunha pôde ler por ela conheceu que principiava reprovando o passo do dia 9 de Janeiro, e nada mais pôde ver porque o ex-Presidente fechou a carta dizendo que talvez zesse susurrono Povo, e que o mesmo ex-Presidente foi quem explicou o conteúdo da-quella primeira linha da carta que ele testemunha mal pôde ler. 64 E mais,não disse.

Testemunha 36 f. 97 v.

Braz Martins Costa Passos, morador na rua da Cadeia &c.

Perguntado pelo conteúdo no auto de Devassa disse que sa be por ter

sido voz pública nesta Corte no dia 10 do Outubro próximo passado se pretendia em Câmara fazer que se jurassem as Bases da Constituição deLisboa, ou a Constituição que as Assembleia Nacional do Brasil zesse, eque depois disto obtido pretendiam a deposição dos Ministros dos Negó-cios do Império e Fazenda, substituindo-se para o da primeira repartiçãona pesssoa de José Clemente Pereira, e para o da Fazenda Joaquim Gon-çalves Ledo. Em consequência destas vozes ele testemunha compareceuna Câmara naquele dia, e faltando ao Coronel Francisco de Lima ele lheraticara estas mesmas vozes por assim lhe ter constado; e nalmente quetinha para abonar esta presunção muitos dias antes algumas pessoas que pureciam ser da parcialidade de José Clemente, e Ledo, terem falado osdois ditos Ministros de Estado........

63 – Esta circular é a do Documento Nº64 – O Documento Nº 3 explica esse negócio.

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[p. 44]

Testemunha 40 f. 100 v.

O Excelentíssimo e Reverendíssimo Antônio Vieira da Soledade, na-tural de Portugal &c.

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa e referimento da tes-temunha Nº 20 disse: que é verdadeiro o referimento, e que a razão que ti-vera ele testemunha para organizar a representação que ele e seus colegaszeram,65 fora porque tendo chegado aqui soube logo que Ledo, PadreJanuário, Padre Lessa, José Clemente, Nóbrega, e o autor do Correio e ou-

tros se lembravam de estabelecer um sistema de Governo Republicano,66

  procurando a cada passo detrair alguma coisa da Autoridade Real, e queaté tratavam nas suas Lojas maçônicas67  com muita particularidade deobjetos políticos chegando a ponto de censurar nas mesmas Lojas os De-cretos e Portarias do Governo e todas as mais medidas que lhe não agra-davam e continuando a servir no seu Cargo com este desgosto sucedeunalmente que o partido destes facciozos chegasse a ponto, abusando da bondade de S. M. I., de poder derrubar os Excelentíssimos Ministros

de Estado J. Bonifácio, e M. Francisco

68

  o que eles preveniram pedindo65 – E com esta são já três testemunhas que se tem denunciado como autores primários,diretores, e corifeus da violência e engano que no famoso dia 30 de Outubro se fez s S.M. I., a saber a de Nº 2 António T eles da Silva , e a de Nº 20, o Cônego Thomas José deAquino, e este de Nº 40 Excelentíssimo e Reverendíssimo António Vieira da Soledade.66 – Que um homem vulgar, e sem critério acreditasse esta quimera, merecedor de des-culpa seria porque a sua inexperiência fazia fácil o seu enguno: mas que Sua ExcelênciaReverendíssima Padre Mestre de Prossão, Procurador Geral e Conselheiro, caisse nestaligeireza, erro é na verdade que não merece perdão, porque devendo saber julgar os ho-mens pelos fatos da sua vida, e não por vozes falsas dos seus inimigos, era obrigado a

reconhecer que aqueles a quem tão atrevida e temerariamente caracteriza de Republicanoo não eram, e para isso lhe bastava fazer o raciocínio seguinte — quem promove a Acla-mação de um Imperador não é Republicano, porque os republicanos não querem Impera-dores. Ledo, J. C. Pereira, Padre Januário, Nóbrega, Padre Lessa, e outros que por fortunaou por acaso não tiveram a sorte destes, distinguiram-se como primeiros promotores daAclamação de S. M. I. Logo não são republicanos. Diga Sua Excelência Reverendíssimaque este silogismo é falso.67 – Sua Excelência Reverendíssima sabe muito bem, porque também é Pedreiro Livre,que nas Lojas Maçônicas desta Corte se promoviam e sustentavam, os Direitos da RealezaConstitucional, e que nunca nelas se detrairam: e se sabe o contrário, que nos produza

 provas positivas.

68 – Sua Excelência Reverendíssima está mal informado, e cumpre que sai ba, qne ne-nhum dos sujeitos que nomeia aconselhou a S. M. I. a demissão dos ex-Ministros Andra-

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a sua demissão; e como ele testemunha considerava que esta demissãovinha a causar um vácuo69 mais sensível na administração pública, por

isso se resolveu a fazer a dita representação convocando para isso osProcuradores das mais Províncias, para representarem como representa-ram a reintegração daqueles Excelentíssimos Ministros, crendo que comela se destruiria o partido faccionário de republicanismo de que aliás eletestemunha tinha provas que referiam os ditos faccionários como autoresdeste infernal sistema, e uma que declarou ele testemunha foi dizer quelhe constava muito notoriamente que estes facciosos eram inimigos doTrono, por que eles mesmos pertenderam que se desse Cumprimento nes-ta Corte [p. 45] aos Decretos das Cortes de Lisboa que mandaram retirardo Brasil a S. M. I. para cujo efeito banquetiando-se em 19 de Setembroem casa de Padre Januário, ou de Ledo; ali se brindaram mutuamentecom saúdes a m de fazerem sair pela Barra fora a S. M. I. chamando-lhetigresinho lho de outro grande tigre que já tinha saído do Brasil. 70 Dissemais que este mesmo rancor ao Trono o tinhão eles mesmos anunciadotão publicamente que o Conselheiro de Estado José Mariano de AzeredoCoutinho entendendo ser de absoluta necessidade à conservação do Bra-sil a cada de S. M. I. então Príncipe Regente contra cuja opinião achava

Ledo, José Clemente, e Januário e alguns outros de que se não recorda, osconvidou em certo dia a jantar em sua casa,71 a m de os resolver não só aque se não opusessem à representação do Povo, mas até que a auxiliassemo que com muito custo conseguiu, e ele testemunha ouviu do sobreditoConselheiro de Estado José Mariano que só obrigados consentiram masaparentemente até que se desenvolveu a resolução das Províncias de S.Paulo, e Minas. E disse mais elle testemunha que nada é mais notório econstante nesta Corte do que proclamarem Ledo e seus consócios o siste-

ma de Democracia ouvindo-se dizer a todos eles72 de ser republicano até

das.69 – Non datur vacuum...70 – A ilustre testemunha Nº 63 desmente esta asserção.71 – Continua Sua Excelência Reverendíssima a estar mal informado: J. C. Pereira achou--se no jantar de que fala, por casualidade, não por convite: o que faz alguma diferença

 para o caso de que se trata.72 – É digno de notar-se que esta testemunha não rera as pessoas a quem ouviu estaatrevida expressão; e porque nenhuma outra testemunha a refere, nem ao menos de voz

vaga, ca bem evidente que é invenção de Sua Excelência Reverendissima, e assim deviaser, por que tendo ele sido o principal motor que solicitou “a queda desta gente” como ele

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014326

aos ossos, e que todos estes motivos resolveram ele a representar com osmais Procuradores das Províncias a queda desta gente com a rientegração

daqueles beneméritos Ministros de Estado muito principalmente porqueseria duplicadamente desgraçado o Brasil se chegam a montar o Governo público estes facciosos a quem acompanham crimes os mais nojentos. Emais não disse.

Testemunha 43 a f. 103 v.

O Coronel Francisco de Lima e Silva, natural desta Corte &c.

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa e referimento da tes-

temunha Brás Martins da Costa Passos: disse que é verdadeiro, o referi-mento; porquanto nesse dia, que se declara, ele testemunha ouvira o quediz a testemunha referente ao Coronel Joaquim José de Almeida.......

Testemunha 41 a f. 107 v.

Felizardo Joaquim da Silva Moraes, natural da Província de Minas,morador à rua da Candelária, Administrador da Tipograa de Silva Portoe Companhia &c....

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa disse que é verdade serAdministrador da dita Tipograa originais por letra dos acima referidos,entre os quais o Padre Januário escreviam alguns papéis para se inseriremno Periódico Correio do Rio de Janeiro porque ainda existem os [p. 46]originais por letra dos acima referidos, entre os quais o Padre Januário eraum dos que mais frequentava a dita Tipograa em razão de rever e exami-nar as folhas do seu Reverbero. Que a carta circular da Câmara desta Cor-te às outras províncias é de Letra de José Clemente, e existe também; que

a Proclamação Anônima que principiava “Cidadãos, o Deus da Naturezaetc” foi mandada imprimir por Joaquim Gonçalves Ledo por conta dele ede sua Letra, cujo original também existe. Que a Proclamação que JoãoMendes Viana levou para Pernambuco fora lá mesmo mandada imprimir pelo dito Ledo, mas que não se lembra de quem era a letra, nem pode ar -mar se existem os originais pois que nesse tempo não era administrador.

mesmo mais abaixo diz, cumpria-lhe fazê-los parecer o que não eram para ele não cartido pelo que era e é ... mas enganou-se porque a verdade sempre triunfa.

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Disse mais que J. G. Ledo depois da representação do dia 2 destemês ainda mandou aquela tipograa um papel para imprimir-se, “Agra-

decimento ao Povo”, cujo conteúdo em substância e segundo a lembrançadele testemunha era agradecer ao mesmo Povo o conceito que dele zera,e participar-lhe que se pretendiam mandar emissários para as diferentesProvíncias a im de o desabonarem na opinião pública, e fazerem comque elas pedissem a sua demissão, cujo papel não se chegou a imprimir. . .

Testemunha 48 f. 108

José Pedro Fernandes, natural da Cidade do Porto, morador na ruaS. Pedro &c.

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa e referimento da tes-temmnha supra disse que Ledo ia muito poucas veses á tipograa, e que para o resto do tempo que existiu João Soares Lisboa, quase nunca lá ia;que o Padre Januário ia com mais frequência em consequência do Rever- bero e que José Clemente Pereira quando tinha obras da Câmara. Que os papéis que se inseriram no Correio existem os originais. Que a proclama-ção que começa “Cidadãos, o Deus da natureza” fora lá impressa, e que

existe a original: Que a que levou João Mendes Viana para Pernambuco,segundo dizem, ignora por quem fora feita.

Testemunha 49 f. 109

Joaquim José de Almeida, natural da Província de Minas, moradorna rua da Ajuda &....

Perguntado pelo conteúdo no Auto da Devassa e referimento da tes-temunha Nº 43 disse que é verdadeiro o referimento, por quanto no dia 10

de Outubro ouvio ele testemunha com a maior publicidade o Povo clamarque estava traído, e que se pretendia naquele dia fazer depôr os Excelen-tissimos Andradas e que S. M. I. jurasse previamente a Constituição quezessem as Cortes do Brasil, e que os Autores desta facção eram o ex--Juiz de Fora José Clemente, o ex-Ministro Nóbrega, Joaquim GonçalvesLedo, os Padres Lessa, e Januário, e Manoel dos Santos Portugal, cuja ca-sa era club, onde ele testemunha muitas vezes os viu73 ajuntarem-se alémde outros. E mais não disse.

73 – Pela atestação junta em Documento N° 32 só prova que esta testemunha jurou falso,quando disse que viu entrar J. C. Pereira em casa de Manoel dos Santos Portugal, porque

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[p. 47]

PORTARIA E

Tendo S. M. o Imperador, para se descubrirem e punirem os Réus,que maquinavam ocultamente contra a segurança e tranquilidade pública,e manter-se melhor o Sistema Monárquico Constitucional, que abraçoue jurou o Brasil, mandado por Portaria de 2 do Corrente mês proceder auma Devassa Extraordinária so bre os indivíduos acuzados pela opinião pública, como autores da Conspiração ultimamente tramada contra o Go-verno do Império, e sua paz e segurança, e devendo dar-se a esta Devassaa extenção necessária para se fazerem todas as averiguações, que exi-ge tão importante objeto: Manda de novo pela Secretaria de Estado dos Negócios do Império participar ao Desembargador Francisco de FrançaMiranda, que se acha encarregado desta Diligência que há por bem queela como extraordinária não que sujeita aos dias que requer a Lei para asDevassas ordinárias, mas que se conserve aberta por todo aquele tempoque for necessário para se conhecerem todas as tramas e maquinaçõesdos réus.74

Palácio do Rio de Janeiro em 26 de novembro de 1822 “José Bonifá-cio de Andrada e Silva”

 Acha-se no App. n. 2

 Assentada de 6 de Dezembro a f. 109 v.

Testemunha 53 f. 112 v.

O Padre mestre Frei Francisco de Sampaio &c.

Perguntado pelo conteúdo no referimento da testemunha Nº 3 disseque é verdadeiro o referimento, por quanto no dia Domingo 15 de Setem- bro estando ele testemunha no Convento de Santo António lhe entre-gou Luis Manoel morador à rua de Santo António uma carta de letra deJoaquim Gonçalves Ledo concebida nestes termos pouco mais ou menos

nunca ali entrou.74 – Esteve com efeito aberta quatro meses e meio! Inquiriram-se 73 testemunhas de queconsta nos Autos, além das que se arrancaram deles; foram pronunciados 14 réus e destes

 já 13 se acham declarados inocentes e livres por falta de prova e isto depois de terem sofri-do uns a dura prisão de cinco meses, outros um bárbaro extermino para fora do Império!!!

7/17/2019 Ri Hg b 2014 Numero 0463

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014 329

“Que havendo-se de fazer uma Assembleia geral a bem da grande causado Brasil, exigiam que ele testemunha como Orador comparecesse para

deliberar sobre o mesmo objeto. Gabinete do Silêncio 5822. Assinado“Graco” em consequência do que ele testemunha à noite com o dito LuisManoel em uma sege se dirigiu ao lugar indicado e foi adiante da casado Barão de S. Simão, aonde achou-o dito Ledo com quase toda a As-sembleia, e eram Padre Januário Orador, Secretario o Escrivão Gouveiada rua da Ajuda, Primeiro vigilante N......, segundo dito Pedro José daCosta Barros, Experto Tinoco Ocial da Secretaria da Justiça, DomingosAlves Branco, José Clemente Pereira, João da Rocha Pinto, João Fer-nandes Lopes, e outros; e ali sendo ele testemunha acusado como réude Lesa Nação e de espalhar ideas revertiginozas pela publicação de suaopiniões sobre o veto e sanção real que ele exigia que se dessem ao Chefedo Poder Executivo, sofreu do dito Ledo as últimas ameaças dizendo-lhe por último que se continuasse a tratar daqueles objetos (fa-) [p. 48] fariagrande mal à causa do Brasil, porque desconariam as Províncias que noRio de Janeiro onde se publicava tais ideias haviam projetos de se instalardespotismo, motivo porque ele testemunha não desejando de maneira al-guma cooperar para a desgraça do país e tendo toda a conança no que na

mesma ocasião lhe assegurou sobre as atribuições com que S. M. I. haviaser honrado na Assembleia Geral deixou de parte as referidas opiniões por algum tempo passando a tratar da independência política do Brasil.

Foi então que disseram que pela docilidade dele testemunha ca-va absolvido por aquela ocasião na qual ele testemunha viu os horroresda morte, porque se viu fechado com sentinelas à vista dos mesmos daAssembleia sem poder escapar de maneira alguma ao golpe que via emi-nente. Disse mais ele testemunha que Manoel Inocêncio, ocial de Secre-taria, lhe dissera que o dito Luis Manoel e Joaquim Valério Tavares eramos mais empenhados em assassinar com um punhal a ele testemunha.75

Disse mais ele testemunha que nessa mesma ocasião pediu-se lheuma proclamação que devia ser publicada em Pernambuco para a Acla-mação de S. M. papel que ele fez enchendo uma folha de papel toda, mas

75 – Pedimos aos nossos Leitores que queiram fazer o contraste deste depoimento coma oração Documento Nº 33 que a mesma testemunha recitou por ocasião deste aconteci-

mento, e à vista de tudo concluam que tal é o caráter do Reverendíssimo Padre MestreSampaio!

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PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014330

depois viu que foi esta desprezada e substituída por outra revolucioná-ria.....

 Assentada em 11 de Dezembro a f. 114

Testemunha 57 a f. 116 v.

Segnier Seigneuret, natural de Paris, morador às cabeceiras de Ma-caé &c...

Disse que sabe por diversos indícios positivos76 sobre a conduta po-lítica de um certo Padre chamado Lessa do termo de Cantagalo que esteindivíduo é um dos principais Chefes que pelas suas conversações e força

moral busca promover a guerra civil nesta país paralisando a ação doGoverno, e corrompendo o espírito público procurando desviar o Povodo respeito e amor que tem seu Augusto Imperador Pedro I, e que dosmesmos um Padre N.....morador no..... e um certo N....

 Pronuncia em 8 de janeiro de 1823 f. 118

Obrigam as testemunhas até aqui inqueridas a prisão e livramentoaos Réus Joaquim Gonçalves Ledo, Luiz Pereira da Nóbrega, José Cle-

mente Pereira, Padre Januário da Cunha Barbosa, Padre João AntonioLessa, João Soares Lisboa, o Escrivão José Joaquim de Gouveia, PedroJosé da Costa Barros, Thomas José Tinoco de Almeida, Ocial da Se-cretaria de Justiça, Domingos Alves Branco, João da Rocha Pinto, JoãoFernandes Lopes, Luiz Manoel, Ocial do Tesouro Público, Joaquim Va-lério Tavares. [p. 49] O Escrivão os passe ao rol dos culpados e as ordensnecessárias para serem presos e prossiga-se na Devassa. Rio 8 de Janeirode 1823. “França”77

76 – Esta testemunha não fez culpa ao Padre Lèssa, por que não especíica estes “diversosindícios postivos” para que se possa conhecer o peso que eles devem merecer; e porqueindício não iam prova da existência de crimes.77 – Para mostrar a iniquidade que ditou esta injusta pronúncia, basta considerar que osPronunciados se acham todos, menos um , declarados inocentes por feita de prova, comose mostra pelas duas Sentenças ao diante juntas. E quem paga aos pronunciados os danosque sofreram por culpa da maldade do Sr. Juiz da Pronúncia?.... Oh! responsabilidade dosEmpregados Públicos, como tardas que não vens ! Mas além da injustiça manifesta quese fez aos Pronunciados, obrigando-os a uma prisão, que sofreram, e a um livramento,

 por que passaram, sem terem cul pas, há outra relativa, porque deixaram de ser pronun-

ciados muitos nomes contra quem se deposeram na Devassa ditos piores que contra osPronunciados, e especialmente João Fernandes Lopes, Pedro da Costa Barros, e Thomas

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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 Assentada de 8 de Janeiro de 1823 f. 118 v.

Testemunha 59 f. 49 v.

Manoel Inocêncio Pires Camargo, natural da Província de Minas Ge-rais, Ocial da Secretaria da Justiça &c.

Perguntado pelo conteúdo no Auto da devassa e pelo referimento daTestemunha Fr. Francisco de Sampaio disse que é verdade que achando--se uma noite em uma sociedade, bastantemente numerosa se lembrouLedo d’arguir ao Padre Mestre Fr. Sampaio d’algumas faltas que ele tinha para com a mesma Sociedade não aparecendo quase nunca lá, tratando de

resto as suas funções, e sobretudo de uma doutrina que elle estava espa-lhando no seu Regulador, e a que chamaram subversiva da prosperidadedo Brasil e dos princípios liberais: a isto levantaram-se outros muitosMembros da Sociedade de cujos nomes não se recorda agora e acusaramao mesmo Padre pelas mesmas causas, de maneira que uns eram de pa-recer que fosse expulso, outros seguiram o parecer de Ledo que se lhemandasse no dia seguinte lhe o Regulador de que eram assinantes, noque concordaram todos os que ali estavam; nalmente levantou-se Luiz

Pereira da Nóbrega, e foi de voto que se não condenasse ou punisse oPadre sem o ouvir primeiro, e sendo apoiado neste parecer N..... e outrosmuitos, assentou-se de lhe mandar uma Carta, para levar a qual se ofere-ceu Luiz Manoel a pretexto de [p. 50] morar perto, e nada mais se tratou. No dia seguinte ele testemunha não foi lá... mas passados dias indo ao

José Tinoco, que foram lembrados somente pelo bom Ofício que lhe quis fazer seu irmão,ainda que indigno, o Reverendíssimo Padre Mestre Sampaio ! Mas esta circunstância é

 bagatela, porque só quer dizer, ou para falar mais claro, só prova que o Meritíssimo Sr.

Desembargador França pronunciou os nomes que achou escritos na Lista Negra que lhedeu não, sabemos quem! ! ! Iniquidade difícil de acreditar ! Assim se ofende impunemente por um empregado do Poder Judiciário a liberdade individual de Cidadãos inocentes , e . .. sim, e beneméritos ? Oh! responsabilidade dos Empregados Públicos; como tardas , quenão vens ! E vê-se agora que os três Pronunciados Nóbrega, Pereira, e Padre Januário fo-ram mandados embarcar, e sair da Fortaleza de Santa Cruz para fora do Império no Mês deDezembro de 1823 como se prova pelo Passaporte documento N ° 26 sem pronúncia porconsequência, que esta foi fulminada em 8 de Janeiro de 1823. Justiça dicil de acreditarem tempos Constitucionais! Assim se ofende impunemente por um Ministro do PoderExecutivo a liberdade individual de três Cidadãos inocentes, notoriamente beneméritos dasua Pátria por seus relevantes serviços... Oh! responsabilidade dos Empregados Públicos,

como tardas, que não vens! Mas deixemos tanta iniquidade! Quis talia fando temperet alacrimis!

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PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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Convento a faltar com o mesmo Padre Sampaio lhe contou este que tinhasido conduzido por Luiz Manoel; que o deixaram em uma sala muito

escura aonde sofreo um susto mortal, e que entrando fora repreendidofraternalmente por Ledo, não só por motivo das faltas, como por causa dadoutrina que escrevia no Regulador; mas que pedindo ele Padre perdão,acabara tudo em abraços. E mais não disse.78

 Assentada de 15 de Janeiro de 1823 f. 120.

Testemunha 62 a f. 121.

O Sargento Mor de Milícias Francisco Dias Lopes, natural desta Cor-

te, morador em Macaé &.Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento da teste-

munha Nº 15 disse que estando nesta Corte de hospede em casa de Manoeldos Santos Portugal no mês de Outubro antes da Gloriosa Aclamação deS. M. I. em um dia entrou a falar ao dito Santos Joaquim Gonçalves Ledo,e estiveram a conversar bastante tempo no interior da casa e depois à horade jantar disse o dito Santos que agora que as coisas se iam endireitandoe que tinham esperanças de um geral socego, era quando Pernambuco se

rebelava e não queria aderir para o Brasil; ao que dizendo-lhe ele testemu-nha qne de tal se não persuadia porque não via que Pernambuco tivesseforças; o dito Santos se calou. E mais não disse.

 Assentada de 31 de Janeiro de 1823 f. 121 v.

Testemunha 63 f. 122 v.

O Ilustríssimo e Excelentíssimo Antônio Carlos Ribeiro de AndradaMachado &.

Perguntado pelo conteúdo no auto da Devassa que nele fez a teste-munha Nº 2 e pelas do Nº 5, e 26 disse que é verdade ter assistido a um jantar em casa do Padre Januário, o qual não sabe se fora dado por Ledo, porém julga o contrário: que ai se tratara sobre a Constituição própria,e organização do Governo do Brasil, e que os mencionados Ledo, e Pa-dre Januário assentando que a forma Monárquica era a precisa nas atuaiscircunstâncias, todavia teoricamente se inclinavam para um Governo Fe-

78 – Esta testemunha foi noticada para ir jurar por ofício datado em 19 de Fevereiro, e jurou em 8 de Janeiro . . . que cabeça de Juiz, que velhaca do Escrivão?

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deral uma vez que as circunstâncias o permitissem, ao que replicou eletestemunha demonstrando a impossibilidade de toda a casta de Governo

Republicano no Brasil, não só pela experiência que tinha do Brasil, como pelos princípios gerais teóricos, é certo que os mesmos pareceram anuira isto. Demais na mesma ocasião mostraram os mencionados desconan-ças sobre a tendência de algumas medidas tomadas por S. M. o Imperador para o estabelecimento do poder [p. 51] absoluto, e ao mesmo tempoalgum desejo de escaparem deste perigo pela remoção de S. M. para Por-tugal para o que esperavam concorresse ele testemunha com o seu votoe inuência nas Cortes, como porém ele testemunha lhes mostrasse quede semelhante medida maior era o perigo do que aquele que eles mesmossuspeitavam pareceram aquiescer e não instar mais, que tem ideia de al-gumas saúdes feitas, mas não como os termos e frases que se referem e sóse lembra que todas elas sabiam ao sistema então adotado de um Governosobre as bases da Constituição portuguesa. E mais não disse.

Testemunha 65 f. 123 v.

Isidoro José da Silva Torres, natural desta Corte &c.

Perguntado pelo conteúdo no Auto disse que é voz Pública e cons-tante que Joaquim Gonçalves Ledo, e outros pretendia mudar a forma doGoverno de S. M. por um Governo republicano .... Que ouviu mais a N.e seu irmão N. censurarem fortemente do mesmo Sampaio por causa doseu Periódico Regulador, e o chamavam de doudo ....

Testemunha 67 a f. 123.

Felipe José Ribeiro, natural de Lisboa morador à rua da Princesa.

Perguntado pelo conteúdo no Auto da Devassa e referimento da tes-temunhu Nº 2 disse que o que disse a testemunha referente é que lheconstara que achando-se o Excelentissimo António Carlos em um jantarcom Ledo antes da ida daquele Exceletíssimo para Lisboa, tratando-se dematérias de Governo dissera Ledo que lhe parecia que o que convinha aoBrasil era o Federativo, vista a prosperidade da America Inglesa.79

79 – Continuam as provas da indelidade com que as testemunhas referentes desta de-vassa depoern aquilo que ouviram dizer: no que provam a boa vontade com que se empe-

nharam na perdição d'aquelles contra quem falsamente depuseram ... tudo se paga nesteMundo ! Mas o caso não ca aqui. . . sendo esta testemunha noticada para ir jurar por

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Testemunha 71 f. 126 

O Excelentíssimo José Mariano de Azeredo Coutinho &c.

Perguntado pelo conteúdo no Auto da Devassa e referimento das tes-temunhas Nº 2, 5, 6, 17, 26, e 40 disse ser certo o ter dito à testemunha Nº2, 5, 6, 17, 26, e 40 o que elas mencionam a respeito da fala que teve como Desembargador José Clemente Pereira até ao ponto de lhe dizer que senão necessitava dele na qualidade de Presidente da Câmara, e menos dasua pessoa para se fazer a Representação que deveria a mesma Câmaraou o mesmo Povo na sua falta, levar à Presença de S. M. I. então Alteza, pedindo a suspensão dos Decretos em quanto o mesmo Povo desta Pro-

víncia, e das outras, como era de esperar, representavam às Cortes e a S.M. o Sr. D. João VI as ponderosas razões que [p. 52] concorriam paracontinuar a Regência do mesmo Senhor 80..... e disse mais que igualmente

ofício datado em 19 de Fevereiro, aparece jurando em Assentada de 31 de Janeiro ! E quetal! Querem uma prova mais clara da boa fé do Sr. Dezembargador Francisco de Françae Miranda?80 – Como todas as testemunhas que tem deposto sobre este fato, absolutamente estranhodo caso de que se mandou devassar, se referem a esta testemunha é manifesto que todasaquelas somadas valem o mesmo que esta.  O ex-Presidente da Ilustríssima Câmara conhece que Sua Excelência não desgurouuma conferência, que passou de diferente maneira, com o m de lhe fazer mal, pois quede tudo quanto disse nenhum lhe podia resultar mas só com o m de se passar a si mesmouma atestação de bons serviços: seja assim, mas o caso passou da maneira seguinte: foiSua Excelência a casa de J. C. Pereira, e ali lhe falou sobre a necessidade de que S. M. I.casse no Brasil, e de se não criar junta Provisória; Pereira respondeu a Sua Excelênciaque reconhecia a necessidade de que O Mesmo Senhor casse no Brasil, mas que julgavaindispensável a criação da Junta Provisória, porque do contrário podiam resultar gravesmales ao Rio de Janeiro, por se não saber da vontade das outras Províncias, e por terdentro uma força considerável de Tropas de Portugal. – Sua Excelência instou Mas S. A.

 para onde hade ir neste caso, em quanto não chega a resolução das Cortes de Lisboa, porque Elle não pode car aqui com o Governo Provisório? – Pereira respondeu – O Príncipe pode ir para a Fazenda de Santa Cruz; e será melhor que vá viajar pelas Províncias deMinas e S. Paulo; porque estas apenas o virem O Aclamarão Regente, e nós aqui faremosimediatamente o mesmo – E no caso das Cortes não annuirem à nossa Representação, oque se há de fazer, tornou Sua Excelência? – Nesse caso, respondeu Pereira, S. A. R. Nãodeve ir por nenhuma forma – Esta é a verdadeira conferência que houve entre Pereira e atestemunha com alguma pequena alteração de palavras: e lenbre-se Sua Excelência quena mesma ocasião lhe leu aquele duas cartas acabava de escrever às Cortes de Lisboaem que desenvolvia sentimentos iguaes aos que cam ditos; sendo fora de dúvida quequem acabava de escrever dois escriptos de tanta consideração como as cartas sobreditas,

Documento Nº 34 e 35, não podia falar da maneira que Sua Excelência refere no seu de- poimento. Acresce para desmentir formalmente a Sua Excelência o Documento Nº 36, por

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é verdadeiro o referimento que nele faz a testemunha Nº 26 à cerca doPadre Januário da Cunha Barbosa. Que quanto ao que diz a testemunha

 Nº 6 à cerca do Ledo é verdade que ele testemunha jantou com Ledo emCasa de Loureiro, mas não se recorda que Ledo dissesse o que mencionaa dita testemunha.

E mais não disse.

 Assentada em 2 de Abril de 1823 f. 127 

Testemunha 72 f. 127 v.

Antônio Manoel Correa da Câmara, Cavaleiro da Imperial Ordem do

Cruzeiro, Cônsul e Agente do Império do Brasil no Governo de BuenosAires &c.

Diz que sabe que Ledo é um “inimigo declarado não só de S. M.Im. mas ainda mesmo do Brasil que fez quanto pode por perturbar a boaharmonia felizmente subsistente entre o Governo de Buenos Aires e o [p.53] do Brasil. Logo depois da sua chegada aquela Capital derramou entreo Povo dela perigosas suspeitas, fazendo crer que o Governo do Brasiltinha em vistas estender a sua dominação até aquela Província que logoque chegou foi apresentado ao General Alviar, nosso inimigo e chefe dafacção da banda oriental em Montevidéu, com quem continua a tratar econjurar-se contra os negócios do Brasil, que é Autor de um libelo infa-matório contra a pessoa de S. M. I. que principia “D. Ramon, primeirosem segundo, Imperador etc” e colaborador de mais dois libelos publi-cados contra S. M. I. depois da saída dele, testemunha, de Buenos Aires.Que é hospede e íntimo Amigo de José Rodrigues Braga, bem conhecido pela parte que tem tomado contra o Brasil a favor da facção de Monte-

vidéu e Alviar. Que ele testemunha ouvira da boca do próprio Ledo serinimigo mortal de S. M. I. ........ Que ouvira igualmente ao mesmo Ledo

ser evidente que quem em 5 de Junho de 1821 resistiu à poderosa força armada que quiscolocar S. M. I. na Presidência da Junta de nove Membros, que pretendeu criar, não podiaconvir neste absurdo em Dezembro do mesmo ano, desapoiado de força para o poder ve-ricar. Saiba nalmente Sua Excelência que se Pereira lhe falou na necessidade de se criaro Governo Provisório, foi porque tendo posto na Presença de S. M. I. dias antes da con-ferência sobredita que se tratava de Lhe pedir que casse no Brasil, o Mesmo Senhor LheHavia Respondido – que sesse criar sem demora o Governo Provisório, porque assim

convinha – e cumpre advertir que a Pereira, como Juiz de Fora na ausência do Ouvidor daComarca, se tinham já expedido as ordens para o dito m.

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dizer que nunca tornaria ao Rio de Janeiro enquanto existisse o Governoou o Sistema atual do Governo Imperial.

Que sabe mais com toda certeza que Ledo se entende com certo fac-cioso de certa Província nossa com quem trama novas conspirações, deque ele testemunha tem feito as necessárias declamações à autoridadecompetente e que quanto lá esteve viu que Ledo tinha íntima amizade evivia com João Soares Lisboa que era íntimo de Braga e Alviar, com oqual Braga se correspondia com antecedência.

E mais não disse.81

PORTARIA F.Manda S. M. o Imperador pela Secretaria de Estado dos Negócios

do Império remeter ao Desembargador Francisco de França Miranda aRepresentação inclusa de Antonio Manoel Correia da Câmara, Cônsule Agente Commercial do Império junto do Governo de Buenos-Aires,em que expõe a necessidade de ser intimado o Vice-Almirante RodrigoJosé Ferreira Lobo para depôr na Devassa contra os Anarquistas e Dema-gogos, de que o mesmo Desembargador se acha encarregado, o que lhe

consta sobre os factos apontados na mesma Representação, ou quaisqueroutros relativos ao facioso Joaquim Gonçalves Ledo: E Há por bem que, juntando-se esta à Devassa, proceda o dito Desembargador na forma re-querida, a m de se conhecerem por meio das necessárias averiguaçõesos enormes crimes daquele malvado. Palácio do Rio de Janeiro em 10 deAbril de 1823 “José Bonifácio de Andrada e Silva” App. Nº 2.

A Representação inclusa é a Seguinte:

Senhor “Diz António Manoel Corrêa da Caâmara, Cônsul e AgenteComercial do Império junto do Governo de Buenos-Aires, atualmenteresidente nesta Corte com licença de V. M. I. que chamado pela Lei, e pelo seu Patriotismo a depôr ante o Tribunal [p. 54] competente con-tra a pessoa de Joaquim Gonçalves Ledo; pelas hostilidades, que faz emBuenos-Aires contra os interesses, e contra a estabilidade deste Império,em cuja ruína trabalha; cumpriu o Suplicante com este dever sagrado;constando-lhe porém da própria boca do Vice-Almirante Rodrigo José

81 – Esta testemunha está declarada mentirosa e falsa pelo Acórdão Nº 6 em conseqüênciados Documentos Nº 4, 5, 6, 7, 8, e 9.

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Ferreira Lobo que Joaquim Gonçalves Ledo se ocupa depois da partidado Suplicante de Buenos Aires em recrutar os Soldados europeus que ali

acham licenciados para os enviar ao Chefe revolucionário de Montevidéue que aquele Brasileiro degenerado foi causa por suas Brigas e Intrigas deque recrutasse a Praça de Buenos Aires negociar as Letras que o GovernoCisplatino lhe oferecia com enormes vantagens para acudir às urgênciasdaquele Estado, que Joaquim Gonçalves Ledo levava o seu ódio contra aCausa Sagrada do Brasil até ao ponto de impedir que passassem de Bue-nos Aires para a Banda Oriental certa quantidade de chumbo, de pólvorae de outras provisões necessárias ao serviço do nosso Exército: requer oSuplicante humildemente a V. M. I. a m de que se Digne ordenar a bemda Causa Pública, e em obséquio da verdade deposta pelo Suplicante queo Vice-Almirante deponha à cerca dos crimes do faccioso Ledo quantolhe conste ou saiba; antes que se feche a Devassa ainda aberta contraaquele grande culpado. 82 por tanto. “Pede a V. M. I. haja por bem assim oMandar” Rio de Janeiro 7 de Abril de 1823 “E. R. M.” O Cônsul e Agentedo Império junto do Governo de Buenos-Aires, António Manoel Correada Câmara.

Conclusos em 5 de Abril de 1823Aberta a Conclusão em 14 de Abril dito

 Assentada de 14 de Abril de 1823 f. 120

Testemunha 73 f. 129 v.

Rodrigo José Ferreira Lobo, natural de Guimarães, residente no Ar-senal da Marinha &c.

Disse que lhe constara por um Ocial inferior que está ao serviço daotilha residindo na Colônia que Joaquim Gonçalves Ledo havia solici-tado a vários Soldados Europeos que se achavam em Buenos-Aires com

82 – Quando se combina o relatório infame que António Manoel Corrêa da Câmara fazneste requerimento contra Joaquim Gonçalves Ledo, com o juramento que a testemunha

 Nº 73 deu em consequência dele, fundado em vozes vagas, e presumções falsas, é forçosoconcluir, que ou o Sr. Câmara não tem critério por que acredita em petas, ou é um perversoqua arma o que não sabe com o m sinistro de perder um Cidadão Benemérito da suaPátria. Em todo o caso a Carta Documento Nº 9 manifesta o seu caráter, e a qualicação

de – evidentemente desmentida – que lhe faz o sobredito Acórdão, lhe deu o princípio da paga que merece.

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 baixa para tornarem a assentar a praça, e juntarem-se à Divisão Portu-guesa residente em Montevidéu, e que o número destes Soldados andaria

até ao presente por 14 e 15: Que era igualmente certo que as Letras doGoverno Cisplatino se não puderam negociar em Buenos-Aires, e queem consequência disso [p. 55] veio a sofrer a Flotilha precisões muitograndes, e foi necessáio recorrer a um rebate de trinta e três por cento para prover às necessidades da mesma Flotilha; e que consta a ele testemunhaque este inconveniente procedia das insinuações de Ledo aos negociantesde Buenos-Aires, aos quies persuadia que tais Letras não seriam aceitas por este Erário: Que era igualmente certo que de Buenos-Aires não con-sentiam que passasse para a Banda oriental quantidade alguma de chum- bo, pólvora, ou outras provisões necessárias para o serviço do Exército,e tanto assim que precisando ele testemunha de uma porção de pólvorafoi mister faze-la embarcar em pequenos barris dentro de pipas e por alto preço, e é de presumir, quase com certeza, que este último inconveniente procedesse das insinuações do mesmo Ledo; porque antes da sua chegadaa Buenos-Aires nunca houve embaraço na venda de semelhantes gêneros paru a Banda oriental. Emais não disse.

Concluso a 14 de Abril.f. 131 Acresce aos Réus a Culpa que lhes resulta do resto da Devassa.

Rio 10 de Abril de 1823 “ França”

Entregues os Autos ao Escrivão Castro em 23 de abril

de 1823 f. 131 v.

A f. 127 o Seguinte Acórdão

Acórdão em Relação &c; qne com o parecer de sou Presidente eservindo de seu Regedor suprem a nulidade da falta do corpo de delito,83 que na Devassa ocorre para efeito de julgar-se o Processo pela verdadesabida, e atenta a gravidade de delito e provas resultantes da Devassa eapensos, fazem estes autos Sumários aos Réus Joaquim Gonçalves Ledo,Luiz Pereira da Nóbrega, José Clemente Pereira, Januário da Cunha Bor- bosa, António João de Lessa, João Soares Lisboa, José Joaquim de Gou-vêia, Pedro José da Costa Barros, Thomas José Tinoco de Almeida, Do-

83 – Fizeram o que Deus com toda a sua onipotência niío podia fazer; e para não repetirmatérias veja-se a Alegação doa Exterminados Parte 1ª Nulidade 1ª.

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mingos Alves Branco, João da Rocha Pinto, João Fernandes Lo pes, LuizManoel, e Joaquim Valério Tavares, pronunciados a f. 118 e lhes assinam

cinco dias para dizerem de fato e de Direito,84

 nomeando para curador aosRéus o Advogado Joaquim Gas par de Almeida, e dão comissão ao Escri-vão para o juramento, passando-se quanto aos Réus ausentes a Carta deÉditos ordenada na Lei, e cando por esta forma não só o requerimento f.134, mas os que o réu João Soares Lisboa fez nas respostas aos (interro-)[p. 56] interrogatórios que lhe foram feitos e constam do apenso, por sermenos Legítima a pretendida separação e remessa no delito porque ele emais réus são processados privativamente competente a este Juízo. Rio deJaneiro, 6 de maio de 1823. “Como Presidente França.” “Veiga.” “Nabu-co.” “Cirne.” “Garcez.” “Campos.” “Cruz.” “Cunha.”

 A f. 146 a Seguinte Portaria.

S. M. o Imperador conformando-se com a informação e parecer doChanceler que serve de Regedor da Casa da Suplicação, e Atendendo aque devem ser deferidos na forma da Ord. L. l tit 69 § 31, e L. 5 tit 124 §11 os que requerem acusar ou defender-se do mesmo crime em processosseparados, não havendo Lei expressa que proíba praticar-se o mesmo nos

 processos Sumários, quando não resulta inconveniente à boa Administra-ção da Justiça e antes também ao direito do Cidadão de não ser demorado preso sem justa causa, e ao interesse que tem a sociedade no seu prontocastigo ou absolvição; Manda pela Secretaria de Estado dos Negócios daJustiça que o mesmo Chanceler passe as Ordens necessárias para seremadmitidos a dizer de fato e direito, os Réus presos compreendidos na De-vassa, a que procedeu o Desembargador Francisco de França Miranda emobservância da Portaria de 2 de Novembro de 1822 , sem esperarem ses-

senta dias pelos Correios ausentes, alguns dos quais estando em França, éimpossível que compareçam no termo que lhes foi assinado.

Palácio do Rio de Janeiro em 2 de Junho de 1823.

“Caetano Pinto de Miranda Montenegro.”

84 – Chama-se a isto sustentar a Pronúncia: ora sustentar a Pronúncia é reconhecer que osRR. são culpados: mas eles foram declarados livres por falta de prova, e isto quer dizerque nunca foram culpados. Logo, os RR. nunca foram culpados, e então tanta injustiçareceberam do Juiz que os Pro nunciou, como daqueles que sustentaram a Pronúncia: ou

estavam realmente culpados, e neste caso zeram uma injustiça à Lei em que os declararlivres por falta de prova.

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Mandada Cumprir e Registar em 2 de Junho 1822 pelo Regedor Ve-lozo.

 Acórdão Nº 01

Acórdão em Relação &c. Que na presença de seu Presidente servin-do de Regedor que em conformidade da Portaria a f. de dois de Junho docorrente, da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, mandam quese assinem os cinco dias aos Réus que se acham presos, compreendidosna Devassa junta e nela pronunciados para que digam de fato e de Direi-to sem esperarem pelos sessenta dias de Éditos assinados aos Ausentes,Correios, e nesta conformidade lhes hão por assinados; havendo assim

 por declarados os Acórdãos f. e f. que em tudo o mais cam em seu vigor:e que o Escrivão assim lhes intime. Rio de Janeiro 10 de Junho de 1823.“Campos.” “Cruz.” “Garcez.” “Cunha.” “Doutor Araújo Tavares.”

Aqui tinha lugar a Alegação dos 9 Cidadãos Presos sobra a qual se proferiu o seguinte

 Acórdão Nº 2

Acórdão em Relação &. vistos estes Autos que pela Portaria a f. daSecretaria de Estado dos Negócios da Justiça foram (remet-) [p. 57] re-metidos para proceder como for de Direito e que na presença e com o pa-recer do seu Presidente que serve de Regedor, suprimindo-se a nulidadeda falta de Corpo de delito para o efeito de julgar-se pela verdade sabidae atenta a gravidade do delito se zeram sumários aos réus presos JoãoSoares Lisboa que diz ser natural da Cidade do Porto, casado e moradorque era nesta Corte, e nela vivia de Comércio e da redação do periódico“Correio do Rio de Janeiro” de trinta e sete anos de idade ; José Joaquim

de Gouvêia, casado, e natural desta Corte, onde servia o Ofício de Escri-vão da Correição do Crime da Corte e Casa, de idade de quarenta e oitoanos; Thomas José Tinoco de Almeida, solteiro, natural desta Corte, O-cial da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, de idade de quarentaanos; Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Brigadeiro dos ImperiaisExércitos, casado, natural da Cidade da Bahia, de idade de setenta e cincoanos; João da Rocha Pinto, solteiro, natural da Cidade do Porto, Seladorda Alfandega desta Cidade, de idade de trinta anos; Luiz Manoel Álvares

de Azevedo, solteiro, natural desta Corte, Escriturário da Tesouraria Mor

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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do Tesouro Público de trinta e quatro anos de idade; Joaquim ValérioTavares, casado, natural da Cidade de Lisboa , ocial da Secretaria do

Tribunal da Mesa da Consciência e ordens, de trinta anos de idade; PedroJosé da Costa Barros , casado, natural do Aracati, Tenente Coronel doBatalhão de Artilharia da Marinha , e ora nesta Corte, de quarenta e trêsanos; e João Fernandes Lopes, solteiro, natural desta Corte, Escrivão dosSeguros, e de quarenta e oito anos de idade; estes dois últimos em home-nagem por virtude das Portarias da Secretaria de Estado dos Negócios daJustiça de 10 de Março que estendeu a de 18 de Fevereiro a f. 3ª e f . 6ª doAp. Nº 2 e de 2 de Maio a f. l do Ap. Nº 8. Os quais todos além de outrosde que agora neste processo se não trata, se acham pronunciados a f. 118na Devassa junta a qual, e mais Perguntas, Acareações e Papéis juntosconstantes de 10 Ap. e Alegações em defesa dos mesmos Réus, vistos eexaminados.

Mostra-se que constando ao dito Senhor, que haviam desorganiza-dores da boa ordem, que inquietavam o sossego Público, e intentavamencher de luto esta Capital, conspirando contra o Governo estabelecido,espalhando contra ele atrozes calúnias, fomentando enm a anarquia e

guerra civil, como se fez até notório, e pela representação que a Câmaradesta Capital em o dia 30 de Outubro do ano próximo passado de 1822,levou à Augusla Presença do Mesmo Senhor, assinada pela grande partedo Povo que para esse m e nesse mesmo dia tendo concorrido ao Largoe Casas da Câmara, requerido em altas vozes não só a conservação doseu Ministério, mas o extermínio, o processo, e a punição dos Autores,cooperadores de tais atentados: o que se fez notório e público, como semostra pela mesma Ata da Câmara, que por cópia autêntica e Ocial seacha junta no Ap. Nº 3 f. 8 e 9 até f. 12, e da mesma representação im- pressa, que juntamente com outra semelhante da Tropa da Capital se achano Ap. Nº 7 a f. 35;

E havendo o Mesmo Senhor anuido aos requerimentos ditos do Povodesta Capital e como cumpria a bem da segurança (Públi-) [p. 58] Pública,e o exigia a Justiça, e a Salvação do Império, para qne não cassem impu-nes os facciosos e inimigos da tranquilidade Pública, traidores do Impé-rio, como se manifesta pela Proclamação do Mesmo Senhor a f. Mandara

 por sua imediata Ordem expedir a Portaria da Secretaria de Estado dos

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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 Negócios do Império de 2 de Novembro do mesmo nno passado 1822 af. ao Desembargador Francisco de França Miranda, para proceder a uma

rigorosa Devassa sobre as pessoas acuzadas pela opinião pública e seus partidistas, fazendo logo aquele Ministro publicar por Editais que se íaabrir a sobredita Devassa para que todos os Cidadãos honrados e zelosos,sem exceção de pessoa pudessem ir depôr com imparcialidade e toda asegurança sobre quisquer artigos ou circunstâncias que ilustrassem e pro-vassem tão importante ob jeto, e zesse aparecer a verdade com toda a sualuz. Mostra-se que sobre a referida Portaria a f. e Proclamação do MesmoSenhor a f. xados os Editais se formou o Auto pelo qual se procedeu aDevassa, que foi espaçada sem limitação, além do termo que a Lei marca pela Portaria de 20 de Novembro do mesmo so bredito ano, que se achano Ap. Nº 2 a f. 2 e na qual tendo deposto 73 testemunhas, foram os RR.compreendidos na pronúncia.

  Mostra-se pelo depoimento das testemunhas da mesma Devas-sa Nº l, 2, 3, 7, 26, 36, 40, 49, 63, e 67, que se falava e maquinava emmudança no Governo estabelecido, e no seu Ministério, servindo-se paraisso de sociedades secretas, de Emissários, e escritos incendiários com a

capa de Constitucionalidade, já fazendo os Povos recearem-se do Gover-no pelo terror de um futuro despotismo, desacreditando para isso o Minis-tério, increpando e caluniando os seus procedimentos, já intimando-os eao mesmo Ministério com repetidas ameaças de separação das Provínciascoligadas; mostrando-se também pelas testemunhas 2, 7, 26, 36, 40, e 65que esta mudança era para a intrusão de certos indivíduos que haviam dedar-lhe uma outra forma de Governo. O que tudo prova a existência deuma Facção nos termos da Ord. Liv. 5 tit 6 § 5 e tt. 7 e do Decreto de 18de Setembro de 1822.

  Mostra-se que o R. João Soares Lisboa além da união e acordocom outros da mesma Facção acusados pela Opinião Pública em propagardoutrinas revoltantes e pelos mais fatos de que depõem as testemunhas1,2,3,6,9,26,40,47 fora também o réu no dia 30 de outubro pelo Povo queconcorreu à Casa da Câmara, chamando com altas vozes “fora Redatordo Correio” por este modo indicado perturbador o sossego Público, comodepõem a testemunha 9 af. 64 v. presencial.

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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E ainda que esta testemunha seja singular, com tudo conrmado pe-las respostas do mesmo réu nas Perguntas Judiciais a f. [p. 59] do Ap.

 Nº 185

 chegando a escrever de seu próprio punho a Joaquim Rodriguesda Costa Simões, Alferes do Batalhão de Caçadores, na Colônia, a cartaque se acha na f. do Ap. Nº 3 a f. na qual não só o réu acusa a condutado Governo e Ministério existente buscando atrair-lhe a indisposição quesempre lhe atribuirá despotismo e crueldade, mas até positivamente poruma provocação direta excita mão das armas e a revoltar Tropa contra aCausa deste Império, acabando de conrmar por esta carta que ele réu nasPerguntas a f. do Ap. Nº 1 sendo-lhe apresentada reconhece e confessa sersua, o que faz uma plena prova de seu crime.86 

Mostra-se mais que o réu Lisboa não obstante o referido termo a f.que assinou voltara a esta Corte, continuando a escrever as mesmas dou-trinas subversivas e acusações contra o Ministério e o Governo, como sevê da Folha de seu Periódico já conhecido, que pela Portaria da Secretariade Estado dos Negócios da Justiça de 28 de maio foi mandada para ser junta a este processo e se acha no App. Nº 9.

Mostra-se que o réu tanto nas suas respostas como na sua Defesa não

se pode evadir ao crime de que é arguido com as coartadas que dá acercada sua conduta e correspondência ainda depois da saída desta Corte edas suas íntimas relações com outras pessoas suspeitosas do partido hojeinimigo do Império. Mostra-se porém quanto aos RR. José Joaquim deGouvêia, Thomás José Tinoco, Domingos Alves Branco, João da RochaPinto, Luiz Manoel Alves de Azevedo, Joaquim Valério Tavares, PedroJosé da Costa Barros, e João Fernandes Lopes, dos quais só falam astestemunhas da Devassa 3, 7, 23, 31, 34, 53, 59, 65, e 68 que nenhuma

 prova conveniente deles lhe resulta para imposição de pena: combinan-do as perguntas e respostas feitas aos mesmos Réus, com as acareaçõesdas mesmas testemunhas que desvaneceram quaisquer suspeitas de crimeimputado aos Réus, acrescendo a favor dos mesmos, as irregularitlades,

85 – Esta testemunha está hoje declarada mentirosa no que depôs relativamente a JoaquimGonçalves Ledo (nota 119) e se jurou falso a respeito deste, como pode ser acreditada arespeito do Redator do Correio?86 – Este réu se confessou que tinha relações em Buenos Aires com alguns desses espa-

nhóis que a testemunha chama de inimigos do Brasil e será este fundamento prova bastan-te para se julgar que conspirou contra este Império?

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014344

defeitos e incoerências que na mesma Devassa se encontra, e pelos Réusna sua defesa apontados.

Portanto e o mais dos Autos e Disposições de Direito com as quais seconguram condenam ao réu João Soares Lisboa em dez anos de prisãosegura, 87e em cem mil réis para as [p. 60] despesas da Relação; e aosmais Réus José Joaquim de Gouveia, Thomás José Tinoco, DomingosAlves Branco, Muniz Barreto, João da Rocha Pinto, Luiz Manoel Alvesde Azevedo, Joaquim Valério Tavares, Pedro José da Costa Barros, e JoãoFernandes Lopes, absolvem por falta de prova, mandam se lhes dê baixana Culpa, e sejam relaxados da prisão em que se acham, e pague o Réu

condenado as custas. Rio de Janeiro 5 de Julho de 1823. Como Presidente“França.” “Cirne.” “Navarro.” “Mata.” “Campos.” “Cruz.” “Garcez.”

Termo a f. 178 v.

Aos 21 do mês de Outubro do ano de 1822 compareceu João SoaresLisboa, Redator do Correio, perante o Conselheiro Intendente Geral daPolícia, João Ignácio da Cunha, e pelo mesmo Conselheiro foi determi-nado por ordem de S. M. I. que assinasse o presente Termo pelo qual ele

87 – Esta carta, cujo teor abaixo se transcreve não contém a provocação a Armas contra oBrasil que o Acórdão lhe atribui, é um escrito particular de amizade era o que o autor faloucom a sua costumada franqueza de um Ministério que acabava de fazer o mais violentoataque à sua liberdade pessoal...mas nada disso é ser conspirador. Acresce que esta Cartanão está autuada, achando-se por consequência junta sem declaração de dia, deve supor-seque foi juntada de 20 de março, porque neste dia foi ela reconhecida pelo Tabelião Perdi-gão. Logo está o réu sentenciado por um crime por qual não podia ter sido pronunciado, oque se prova pelo seguinte raciocínio.[p. 60]Contra o Redator do Correio só se alega que propagava doutrinas revoltantes, que em

Buenos Aires continuou a ser uma conduta mais criminosa e que escreveu a Carta quese acha no Ap. Nº 3 a f. Pelo primeiro caso não foi condenado por pertencer o seu co-nhecimento ao Tribunal dos Jurados, como reconheceu o Acórdão Nº 6 e porque outroscompreendidos no mesmo fato foram absolvidos, também não podia ser condenado pelosegundo fundamento não só porque sendo apoiado no dito da testemunha Nº 72 esta porsingular e por mentirosa não faz prova (nota 124), mas também porque depondo-se omesmo contra Joaquim Gonçalves Ledo este foi absolvido. Logo foi o Redator do Correiocondenado só pelo fato da Carta. Mas esta apareceu em Março, e a Pronúncia tinha sidoem Janeiro. Logo foi o réu condenado por um crime por que não foi pronunciado. O quese conrma pelo fato de se não ter provado a existência da conspiração que deu objeto aeste Processo, porque se não houve conspiração, como podia o Redator ser autor ou sócio

nela? Vamos adiante, que é tempo perdido produzir razões para convencer a quem se nãoquer dar por convencido!

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

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Redator ca de ora em diante proibido de mais escrever 88e intimado parasair dos Estados do Brasil nas primeira Embarcações que deste Porto se

zerem à vela com a pena de que continuando a escrever ou deixando desair dentro de oito dias será remetido a uma Fortaleza onde será conduzi-do para Bordo da Embarcação que o deverá transportar.

E para constar em como desta intimação cou ciente e se obrigou acumprir o determinado, debaixo da pena cumprida, assinou o dito Reda-tor com o mesmo Conselheiro e Intendente [p. 61] comigo João Machado Nuñes Ocial da Secretaria da Intendência Geral da Polícia o escrevi eassinei. “Cunha.” “João Machado Nunes.” “João Soares Lisboa.”

À f. 191 estão os Embargos do Lisboa.

E segue a f. 196 a seguinte Portaria.

Faltando ainda decidir-se a sorte dos réus ausentes pronunciados nadevassa a que procedeu o Desembargador Francisco de França Miranda,em observância da Portaria que lhe foi expedida pela Secretaria de Estadodos Negócios do Império em 2 de Novem bro do ano passado: Manda S.M. o Imperador pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, que o

Chanceller da Casa da Suplicação que serve de Regedor faça ultimar estacausa, procedendo na conformidade das Leis. Palácio do Rio de Janeiroem 25 de Julho de 1823. “Caetano de Miranda Mointenegro.”

Cumprida pelo Regedor Velozo no mesmo dia 25 &.

 Acórdão Nº 3

Acórdão em Relação &. na presença de seu Presidente que serve deRegedor: que sem embargo dos Embargos cumpra-se o Acórdão embar-

88 – Quando a lei é pisada aos pés por vias de Polícia com tão violenta injúria como no presente caso a indignação dos Povos não pode deixar de se levantar com toda a força noseu alcance, e de exemplo pode servir este mesmo caso, principal origem dos desgostos

 públicos que se manifestaram na época em que este termo se assinou. É este mal mais ter -rível em tempos de revoluções políticas pela facilidade com que a opinião pública dividi-da em partidos se exalta, e longe de segurar a estabilidade dos Ministros que ordenam taismedidas, antes a fazem tremer, não só porque dão a conhecer a sua franqueza e receio quetem em cair, mas muito mais porque irritam os ânimos fazendo-os temer que renasçam ostempos do antigo despotismo que deu causa à revolução. Os Ministros que quiserem ser

duráveis façam executar a Lei com energia que se forem justos e ativos a opinião públicaos defenderá contra o ódio e a calúnia dos perturbadores da ordem.

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IARA LIS SCHIAVINATTO E 

PAULA BOTAFOGO CARICCHIO FERREIRA

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gado, com a declaração porém que o tempo de dez anos de prisão segurae os cem mil réis para as despesas da Relação em que fora condenado,

reduzem a oito ano de extermínio para fora do Império do Brasil com a pena da Lei no caso de transgressão e em cinquenta mil réis para as des- pesas da Relação, e mais pague o Embargante as custas.

É deferindo em conformidade da Portaria junta a f. 196 mandam quendo que seja o Processo quanto ao R. Embargante se prosiga seus ter -mos: pelo que toca aos Ausentes, juntando o Escrivão então a Certidãode estarem ndos os Éditos, e fazendo-os conclusos para os mais ter -mos, visto o estado dos Autos. Rio de Janeiro 29 de julho de 1823. Como

 presidente “França.” “Cirne.” “Navarro.” “Mata.” “Campos.” “Garcez.”“Cruz.”

Segue a f. 200 os Embargos de restituição do Lisboa sobre os quais af. 205 se proferiu o Seguinte

 Acórdão Nº 4

Acórdão em Relação &. e na presença de seu Presidente que servede Regedor: que sem embargo dos Embargos f. 200 que pela sua matéria

não recebem, e a vista dos Autos, cumpra-se o Acórdão f. 197 embargado,e pague o Embargante as custas. Rio de Janeiro 26 de Agosto de 1823.Como presidente “Carneiro.” “Cirne.” “Navarro.” “Mata.” “Campos.”“Garcez.” “Cruz.”

Segue a f. 206 o Edital de Éditos de 60 dias a chamar os RR. ausentes pnra se defenderem e logo depois o

[p. 62]

 Acórdão Nº 5

Acórdão em Relação &. na presença de seu Presidente que serve deRegedor que vistos os termos dos Autos corram os cinco dias assinadosno Acórdão f. 137 aos Réus Ausentes declarados no mesmo Acórdão, in-timado o Curador já nomeado e debaixo do mesmo juramento; e por quedo Ap. Nº 11 destes Autos consta achar-se já presente e em homenagemo R. José Clemente Pereira, seja-lhe intimada pessoalmente, correndo-lheo mesmo termo assinado, havendo-se assim por declarado, e em cumpri-mento o referido Acórdão f. 137. Rio de Janeiro 2 de Setembro de 1823.

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AS REMEMORAÇÕES DA “BONIFÁCIA”: ENTRE A DEVASSA DE 1822E O  P  ROCESSO  DOS  CIDADÃOS  DE 1824 – VOLUME II

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):287-348, abr./jun. 2014 347

Como presidente “Carneiro.” “Cirne.” “Navarro.” “Mata.” “Campos.”“Garcez.” “Cruz.” “Doutor Araújo Tavares”

Texto apresentado em julho/2013. Aprovado para publicação em ou-tubro/2013.

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 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014 349

 “INFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA

NO FIM DO SÉCULO XVII“INFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”: A REPORT

ABOUT THE PORTUGUESE AMAZON AT THE END OF THE 17TH 

CENTURY

K ARL HEINZ ARENZ1 FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS2

I – Introdução

Miguel da Rosa Pimentel, o autor da Informação do Estado do Ma-

ranhão3, ocupou, no nal do século XVII, o cargo de ouvidor-geral no Es-tado do Maranhão e Grão-Pará. Pouco se sabe de sua trajetória, mas tudo

indica que foi nomeado em 16874, no início do mandato do governador

1 – Doutor em História pela Universidade Paris 4-Sorbonne. Professor de História daUniversidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected] – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Uni-versidade Federal do Pará – UFPA.3 –   Ver  Biblioteca da Ajuda [BAL], Lisboa, cód. 50-V-34, n.º 43, . 198r-205r(04/09/1692).4 –  Ver Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT], Registro Geral de Mercês B (D.Pedro II), liv. 4, . 183 (20/11/1687 e 20/03/1688). O documento trata das tenças anuais.

Ver, também, MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e.  Fé e Império: as Juntas das Missões nas conquistas portuguesas. Manaus: EDUA, 2009, p. 319.

349

Resumo:

A  Informação do Estado do Maranhão  é umarelação redigida pelo ouvidor-geral Miguel daRosa Pimentel em 1692, no nal do primeiroséculo da colonização portuguesa. O manuscri-to reete, sobretudo, as turbulências da décadaanterior, marcada pelo levante de Beckman e as polêmicas acerca da administração das missões.O autor visa à consolidação socioeconômica dacolônia mediante uma estreita colaboração en-tre capitães e ouvidores no sertão e a integração

gradativa dos índios à sociedade colonial.

 Abstract:

 Informação do Estado do Maranhão  is a re- port written by the ouvidor-geral (head judge) Miguel da Rosa Pimentel in 1692, at the end ofthe rst century of Portuguese colonization. Themanuscript especially reects on the turbulenceof the previous decade, marked by the Beckmaninsurrection and controversies about the ad-ministration of missions. The author envisagesthe socioeconomic consolidation of the colonythrough close collaboration between captains

and judges in the hinterlands and the gradualintegration of the Indians into colonial society.

Palavras-chave: Amazônia. Sertão. Segurança.Índios.

 Keywords: Amazon Region. Hinterlands. Secu-rity. Indians.

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K ARL HEINZ ARENZ 

FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014350

Artur de Sá Meneses, permanecendo durante “quatro annos sete mezes”(. 198r) na longínqua Amazônia, até meados de 16925. Logo no início,

sua assinatura consta em dois manuscritos referentes à distribuição de panetos contra os jesuítas, no contexto das querelas entre missionários ecolonos acerca da implantação do Regimento das Missões6. Outro docu-mento assinado pelo ouvidor-geral é o interrogatório de um índio acusadodo assassinato de dois padres jesuítas no Cabo Norte, região disputadaentre portugueses e franceses7. O índio foi condenado à morte por Miguelda Rosa Pimentel, mas, sendo “mudo por natureza”, não foi executado8.Estas informações, embora dispersas, evidenciam o quanto o autor estava

implicado nas turbulências que marcaram a década de 1680 na Amazônia.

Diferentemente dos documentos supracitados, a Informação do Es-

tado do Maranhão ultrapassa a esfera estritamente administrativo-judi-ciária. Na verdade, trata-se de uma relação nal, escrita após o retornode Miguel da Rosa Pimentel à metrópole. O conteúdo evidencia o quantoa tripla função de “auditor de guerra, chanceler da Ouvidoria e juiz dosfeitos da Coroa”, que incumbiu o ouvidor-geral de “visitar as capitanias

desse Estado” e “fazer uma relação de estado em que se encontrar a ad-ministração da Justiça”9, dotara-o de amplos conhecimentos acerca daregião.

5 – O fato de a Informação ter sido redigida em Lisboa e a alusão do ouvidor-geral aotempo passado na Amazônia permitem datar seu mandato entre 1687 e 1692.6 –   Ver  Arquivo Histórico Ultramarino [AHU], ACL-CU-013, cx. 3, doc. 00268

(10/12/1687) e 00274 (19/06/1688).7 –  Ver interrogatório do índio Guajacama. Archivum Romanum Societatis Iesu [ARSI],Roma, cód. Bras 26, . 166r-167v (12/02/1688). Ver, também, consulta acerca do relatóriodo ouvidor-geral sobre a morte dos padres António Pereira e Bernardo Gomes. Lisboa,21/05/1688. AHU , ACL-CU-013, cx. 00271; relatório nal do inquérito sobre a morte dos

 padres. São Luís, 20/07/1690. BAL, cód. 54-XIII-4, n.º 44.8 –  Ver BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no

 Estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves/Secretaria de Estado deCultura, 1990, pp. 432-435.9 –  Regimento do ouvidor-geral do Maranhão (18/07/1644). In: SALGADO, Graça (co-ord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil  Colonial. Rio de Janeiro: Arquivo

 Nacional/Nova Fronteira, 1985, pp. 251-252 (§§ 2 e 5). O cargo de ouvidor-geral doMaranhão foi criado em 07/11/1619. Ver ibid ., pp. 201-202.

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014 351

O documento começa com uma alusão ao marco erigido, em 1639, por Pedro Teixeira na “Boqayna [bocaina] do Rio do Ouro” (. 198r)

 por ocasião de sua expedição para Quito. Miguel da Rosa Pimentel partedessa façanha enquanto armação da soberania portuguesa sobre a baciaamazônica, para, em seguida, fazer um balanço das cinco décadas de colo-nização lusa passadas e, também, um prognóstico para os anos vindouros. No entanto, o enfoque principal do ouvidor-geral é a conjuntura na viradada década de 1680 para 1690. Três processos históricos, complexos e im- bricados, caracterizam aquele período: primeiro, a grave crise econômicaque se abatera sobre o mundo colonial desde o decênio de 1670; segundo,

as iniciativas de D. Pedro II em favor do Maranhão e Grão-Pará, dentroda crescente “atlantização” do Império luso; e, terceiro, a reformulaçãodas relações sociais entre os principais agentes coloniais no contexto darebelião de Beckman (1684) e da implantação do Regimento das Missões(1686). Diante deste pano de fundo intricado, a Informação visa armar aconsolidação socioeconômica da colônia amazônica mediante uma admi-nistração mais diligente e uma scalização mais eciente.

Para compreender a Amazônia no último quartel do século XVII éimprescindível analisá-la dentro da macroconjuntura do Império Luso.Portugal viveu, desde a Restauração (1640), uma profunda crise políti-ca e econômica, tanto em razão das lutas constantes contra os vizinhoscastelhanos quanto pela perda de numerosas feitorias na Ásia aos concor-rentes neerlandeses e ingleses. Estes eventos impactaram diretamente naAmazônia onde ocorreram uma primeira delimitação frente ao domínio

espanhol, por Pedro Teixeira, e a ocupação temporária do litoral mara-nhense pelos holandeses. Além disso, o declínio do controle sobre as re-des comerciais no oceano Índico levou a Coroa a considerar as drogas dosertão amazônico (cacau, salsaparrilha, baunilha e óleos vegetais) como possível compensação pelas rentáveis especiarias asiáticas (canela, cravo, pimenta e noz-moscada)10.

10 –  Ver CORTESÃO, Jaime. História da expansão portuguesa. Lisboa: Imprensa Na-cional/Casa da Moeda, 1993, pp. 462-463; AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no

Grão-Pará. 2ª ed., Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, pp. 153-157. Relativo àimportância das especiarias asiáticas para a economia portuguesa, ver CHAUNU, Pierre.

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Contudo, esta substituição da Índia pelo Maranhão não vingou, vistoque a coleta e exportação dos produtos da oresta diferiram das práticas

de cultivo e comercialização da Ásia11

. De fato, na Amazônia, todas asatividades extrativistas dependiam do saber e fazer dos índios. Ante arápida dizimação da mão de obra nativa por epidemias e fugas, a Coroaviu-se forçada a promulgar, no nal dos anos 1640, leis indigenistas espe-cícas para o Estado do Maranhão e Grão-Pará12. As disposições jurídicasvisaram uma maior exibilização, no sentido de restringir a inuênciados religiosos e possibilitar o emprego “livre” dos índios por colonose autoridades. Camuando práticas escravistas, estas leis criaram uma

situação ambígua que só fez atiçar os atritos entre missionários e morado-res que alastrar-se-iam até meados do século XVIII13.

Com o m da Guerra da Restauração contra os espanhóis em 166814,a perspectiva de paz nas fronteiras peninsulares e, também, nos connscoloniais, favoreceu uma política voltada para as possessões ultramarinas.Todavia, o aumento da produção açucareira dos concorrentes ingleses,franceses e holandeses nas ilhas caribenhas e a já mencionada diminuição

do comércio asiático, levaram a Coroa a focalizar seus esforços econômi-cos no espaço sul-atlântico15. Nesta perspectiva, a metrópole promoveu

Conquête et exploitation des nouveaux mondes: XVIe siècle. 5ª ed., Paris: Presses Univer -sitaires de France, 1995, pp. 315-323.11 –  O padre Vieira continuou insistindo na rentabilidade do cultivo das “drogas” da Índiano Brasil. Ver VIEIRA, Antônio. Memorial feito ao Príncipe Regente D. Pedro II pelo p.António Vieira sobre os seus serviços. Bahia, 23/05/1689. In: LEITE, Seram. Históriada Companhia de Jesus no Brasil . Vol. 4. Rio de Janeiro/Lisboa: Livraria Portugalia/

Instituto Nacional do Livro, 1943, pp. 23-24.12 –   Ley por que S. M. mandou que os Indios do Maranhão sejão livres. Lisboa,10/11/1647; Provisão para os Governadores do Maranhão nem outra pessoa alguma ocu-

 parem os Indios forros. Lisboa, 09/09/1648. Anais da Biblioteca Nacional [ABN], Rio deJaneiro, vol. 66, pp. 17-19, 1948. Ver, também, KIEMEN, Mathias Charles. The Indian

 Policy of Portugal in the Amazon Region: 1614-1693. Washington: Catholic University ofAmerica Press, 1954, p. 65.13 – Ver ARENZ, Karl Heinz & SILVA, Diogo Costa. “Levar a luz de nossa Santa Fé aos

 sertões de muita gentilidade”: fundação e consolidação da missão jesuíta na Amazônia Portuguesa (século XVII). Belém: Açaí, 2012, pp. 21-58.14 –  Ver COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração 1641-1668. Lisboa: Livros

Horizonte, 2004, pp. 109-120.15 –  Ver ALENCASTRO, Luiz Felipe de. L’économie politique des découvertes mari-

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a implantação de diversos projetos agrícolas no Maranhão e Grão-Pará,sobretudo, açúcar, arroz, fumo e anil. Contudo, os projetos fracassaram,

 principalmente em razão do clima e da inexperiência de funcionários etrabalhadores16. Lançando uma iniciativa mais ampla, o príncipe-regenteD. Pedro enviou, em setembro de 1676, uma carta às câmaras de SãoLuís e Belém. Esta missiva instaurou o “estanco do ferro”, pondo a im- portação e comercialização de ferro, aço e ferramentas sob o controleda fazenda real. Ao mesmo tempo, deniu-se a taxação das drogas dosertão destinadas à exportação17. A metrópole visou, sobretudo, às safras promissoras de baunilha e cacau, produtos muito apreciados na Europa

do Seiscentos18.

Duas leis complementares, inspiradas pelo padre Vieira e promul-gadas em 1680, objetivaram estimular, ainda mais, o intercâmbio transa-tlântico e a dinamização econômica interna. A primeira regulamentou aintrodução de “negros da Costa de Guiné” para “a cultura de searas [plan-tações] e novas drogas [do sertão]”, além de exibilizar as repartiçõesanuais dos índios e conar o controle sobre os descimentos e a fundação

de novos aldeamentos aos inacianos19. A segunda lei decretou a liberdadedos índios de toda forma de cativeiro e servidão. Porém, a nova condiçãorestringiu-se à escolha dos serviços, visto que a mão de obra indígena foimeramente conformada às novas dinâmicas econômicas20.

times. In: NOVAES, Adauto (dir.). L’autre rive de l’Occident . Paris: Métailié, 2006, pp.

67-76.16 –  Ver BETTENDORFF, op. cit ., pp. 141 e 296-297. Referente à diversicação da eco-nomia na Amazônia colonial, ver CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, ocupaçãoe agricultura na Amazônia colonial (1640-1706). Belém: Açaí, 2010, pp. 121-169.17 –  Ver cartas régias às câmaras de São Luís e Belém, 19/09/1676. ABN , vol. 66, pp. 39-40.18 –  Ver cartas régias concernentes à baunilha e ao cacau, 1677-1679. ABN , vol. 66, pp.41-48.19 –  Provisão sobre a repartição dos Indios no Maranhão e se encarregar a conversãod’aquella gentilidade aos Religiosos da Companhia de Jesus. Lisboa, 01/04/1680.  ABN ,vol. 66, pp. 51-56.

20 –  Ley sobre a liberdade do gentio do Maranhão. Lisboa, 01/04/1680. ABN , vol. 66, pp.57-59.

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Enm, a fundação da Companhia Geral do Comércio do Estado do

 Maranhão e Grão-Pará, em setembro de 1682, intentou viabilizar a ense-

 jada importação de escravos africanos e exportação de produtos orestaise agrícolas, ligando os portos da Amazônia à costa da Guiné21. No en-tanto, para garantir os investimentos necessários neste empreendimentode grande envergadura, as concessões comerciais foram conferidas, deforma monopolista, a mercadores lisboetas22.

Este complexo “pacote socioeconômico”, introduzido entre 1676e 1682, ao invés de satisfazer os colonos, gerou um clima de revolta,

 principalmente em São Luís. Os objetivos metropolitanos revelaram ser pouco condizentes com a situação dos moradores que possuíam fazendase engenhos de pequeno e médio porte e controlavam o modesto comérciolocal. Para se ter uma ideia, João Francisco Lisboa descreveu a principalcidade do Maranhão às vésperas da sublevação assim: localização aper -tada numa ilha entre o mar e a oresta, medo constante de incursões e re-voltas indígenas, sentimento de isolamento em razão da chegada irregulardos navios, falta de uma mão de obra especializada e inventiva, métodos

agrícolas inadequados, ausência de planejamento urbano (casas de pa-lha, ruas irregulares e intransitáveis), alimentação rudimentar, comércio à base de produtos “grosseiros” (pano de chita, farinha de mandioca, peixesecado) e engenhos de açúcar abandonados no entorno23.

Em fevereiro de 1684, deagrou-se a insurreição sob a liderança dosirmãos Manuel e Tomás Beckman e Jorge Sampaio24. Segundo RafaelChambouleyron, os moradores viram seu acesso à mão de obra indígena

21 –  Ver Bando pelo qual do governador Francisco de Sá e Meneses, em atenção ao mi -seravel estado em que encontrou o Maranhão, mandou formar uma Companhia de assen-tistas, para que metessem na cidade de Belém e na do Maranhão, quinhentos negros cadaano. São Luís, 28/10/1682. BAL, cód. 51-V-43, . 22r.22 –  Ver SIMONSEN, Roberto Cochrane. História econômica do Brasil (1500/1820). 8ªed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 358.23 –  Ver LISBOA, João Francisco. Obras de João Francisco Lisboa. Vol. 3. São Luís:Typ. de B. de Mattos, 1865/1866, pp. 174-179.24 –   Ver LIBERMAN, Maria. O Levante do Maranhão: “Judeu cabeça do motim” –

 Manoel Beckman. São Paulo: Centro de Estudos Judaicos/USP, 1983, pp. 69-80; COUTI- NHO, Milton. A revolta de Bequimão. São Luís: Geia, 2004, pp. 111-183.

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severamente restrito pelas novas leis, pois havia menos repartições. Alémdisso, os escravos recém-introduzidos da África estavam fora de seu al-

cance devido ao preço elevado; e, enm, sua implicação, já mínima, nointercâmbio com a metrópole foi “sufocada” devido ao caráter mono- polista da Companhia de Comércio25. Mas, incapazes de compreendera complexa lógica da nova dinâmica comercial, os colonos inculparamunicamente os jesuítas, acusando-os de abuso de privilégios e enrique-cimento ilícito. Neste novo “confronto entre dois projetos irredutíveis”,conforme uma formulação de Laura de Mello e Souza26, os moradoresexigiram a supressão imediata da administração temporal dos padres so-

 bre os índios27. Postos em prisão domiciliar, os inacianos acabaram sendoexpulsos da cidade de São Luís, em março de 168428.

Entre os missionários exilados, o luxemburguês João Felipe Bet-tendorff, bacharel em direito e antigo superior da Missão, foi escolhido procurador ad hoc e enviado à metrópole. Recebido em audiência por D.Pedro, foi-lhe indicado como interlocutor o secretário Roque MonteiroPaim, favorável à restituição dos jesuítas29. Para levar a cabo as negocia-

ções, que se estenderam por dois anos, até o nal de 1686, foi constituídauma junta especial, composta por conselheiros régios e altos funcioná-rios30. A nomeação de Gomes Freire de Andrade ao cargo de governador

25 –  Ver CHAMBOULEYRON, Rafael. Em torno das missões jesuíticas na Amazônia(século XVII). Lusitania Sacra, Lisboa, vol. 15, pp. 177-178, 2003. Ver, também, BET-TENDORFF, op. cit ., pp. 648-649.26 –  SOUZA, Laura de Mello e. La conjoncture critique dans le monde luso-brésilien audébut du XVIIIe siècle. In: BETHENCOURT, Francisco (dir.). Le Portugal et l’Atlantique.

Lisboa/Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 13.27 –  Ver declaração dos citadinos. São Luís, 19/03/1684.  ARSI , cód. Bras 3 II, . 174r --175r.28 –  Ver BETTENDORFF, João Felipe. A informação a S. Magestade sobre o succedidono Maranhão em Fever.o de 1684. Biblioteca Pública [BPE], Évora, cód. CXV/2-11, .77r-79v; relato do visitador Barnabé Soares, 25/03/1684.  ARSI , cód. Bras 3 II, . 172r --173v; relato do padre Aloísio Conrado Pfeil, 1684. ARSI , cód. Bras 9, . 322r-339r; cartado padre Jódoco Perrret (Peres), 18/06/1684. ARSI , cód. Bras 26, . 97r-98v; BETTEN-DORFF, op. cit ., pp. 359-395; BERREDO, Bernardo Pereira de.  Annaes historicos do

 Estado do Maranhão. Lisboa: Impr. de F. Luiz Ameno, 1749, pp. 592-599.29 –  Ver BETTENDORFF, op. cit., p. 378-381 e 391-400; LEITE, op. cit., p. 88-90.

30 –  Ver MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. O Regimento das Missões: poder enegociação na Amazônia Portuguesa. Clio – Revista de Pesquisa Histórica, Recife, v. 27,

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do Maranhão, ainda em 1684, foi fundamental, haja vista o papel de in-termediário exercido por este militar experiente. A repartição tripartite

anual da mão de obra indígena revelou ser o ponto mais polêmico. Os jesuítas, que não cessaram de apontar a instabilidade demográca dasmissões, conformaram-se, anal, com uma repartição bipartite – entreos moradores e os aldeamentos propriamente ditos – e uma exibilidademaior quanto aos trabalhos fora das missões. Em seguida, quando foiabordada a questão da administração temporal, os moradores insistiramna sua abolição completa, alegando que os padres deveriam dedicar-seexclusivamente à catequese. Incisivo, Bettendorff reclamou ou o controle

completo dos padres sobre os índios ou a supressão imediata da Mis-são.31 Diante deste novo impasse, aprovou-se, enm, o restabelecimentoda “dupla administração” – temporal e espiritual32.

Com base nestes compromissos, foi promulgado, em 21 de dezembrode 1686, o Regimento das Missões. Esta lei, segundo Mathias Kiemen ummasterpiece of legislation33, é fundamental para entender a conjuntura daAmazônia no nal do Seiscentos. O Regimento garantiu aos aldeamen-

tos uma expressiva autonomia sob a supervisão dos religiosos. Previu-se,também, o reagrupamento das missões em lugares estratégicos para faci-litar as repartições e eventuais intercâmbios demográcos e econômicos.Quanto aos serviços fora dos aldeamentos, os períodos de ausência foramadaptados ao ritmo sazonal das coletas. Além disso, necessidades urgen-tes dos moradores, como a requisição de índios para transportes maioresou de índias como amas de leite ou ajudantes na produção de farinha de

mandioca, foram expressamente reconhecidas34

. Em suma,

n. 1, pp. 48-55, 2009.31 –  Ver carta de João Felipe Bettendorff ao superior geral, 01/01/1686.  ARSI , cód. Bras26, . 129r.32 – Ver MELLO, op. cit ., pp. 56-67.33 – Ver KIEMEN, op. cit ., p. 163; MATOS, Yllan de (com.). Regimento das missões doEstado do Maranhão e Grão-Pará. Revista 7 Mares, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, pp. 112-116, out. 2012.

34 –  Regimento & Leys das Missoens do Estado do Maranham, & Pará, 21/12/1686. BPE ,cód. CXV/2-12, . 120r-127r.

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apesar da aparente vantagem para a Companhia de Jesus, o Regimentodas Missões constitui um modus vivendi aceitável e viável que con-

templou os maiores interesses das principais partes envolvidas. Osreligiosos recuperaram, assim, a “dupla administração” e voltaramfortalecidos ao Maranhão como gerenciadores de aldeamentos autô-nomos. Os moradores conseguiram um acesso mais amplo à mão-de--obra, pois a bipartição e os prazos prolongados de serviço lhes forne-ceram mais trabalhadores por mais tempo. As autoridades metropoli-tanas estavam conscientes de que a conciliação destes dois grupos eraimprescindível para o desenvolvimento da colônia que revelou ser, atéaquele momento, pouco rentável. Quanto aos índios aldeados – sem

 participação nenhuma nas negociações –, eles obtiveram uma relativa proteção em razão da interdição de entrada de “brancos” e mestiços,e das disposições especiais para mulheres e grupos recém-descidos35.

 No entanto, a aplicação do Regimento revelou ser difícil devido à persistência da falta crônica de mão de obra e à reticência crescente dosoutros religiosos (franciscanos, mercedários e carmelitas)36. Assim, em1688, a organização de tropas de resgate foi readmitida37; e, em 1693, a

rede de aldeamentos foi dividida entre as ordens atuantes na colônia38

.Embora retivessem as missões da margem meridional do Amazonas39,uma região fértil e densamente povoada, os inacianos perderam sua pre- ponderância tradicional em assuntos socioeconômicos e indigenistas.

35 –   ARENZ, Karl Heinz. Entre supressão e consolidação: os aldeamentos jesuíticosna Amazônia portuguesa (1661-1693).  In: ALMEIDA, Suely Creuza Cordeiro de et al .(org.). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editora Uni-versitária da UFPE, 2012, p. 334.

36 –  Ver KIEMEN, op. cit ., pp. 173-179. Referente às outras ordens religiosas, ver MO-REIRA NETO, Carlos de Araújo. Os principais grupos missionários que atuaram na Ama-zônia Brasileira entre 1607 e 1759.  In: HOORNAERT, Eduardo (coord.).  História da

 Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes/CEHILA, 1990, pp. 63-120.37 –  Alvará, que deroga a Ley do 1º de Abril de 1680, que prohibia totalmente os resgates,e captiveiros dos Indios, 28/04/1688. BPE , cód. CXV/2-12, nº. 2, . 20-26. Referente aosresgates, ver PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípiosda legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII).  In: CUNHA, Ma-nuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil . 2 ª ed. São Paulo: Companhia dasLetras/Fapesp/Secretaria Municipal de Cultura, 1998, pp. 127-128.38 –   Carta real ao governador demarcando novamente os distritos a cada Religião,

19/03/1693. BPE , cód. CXV/2-18, . 178r-180r.39 – Ver BETTENDORFF, op. cit ., pp. 544-547.

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Assim, o próprio documento de Miguel da Rosa Pimentel, de 1692, dámenos destaque aos jesuítas, realçando claramente as competências juris-

dicionais do bispo diocesano (. 198r-199r).Ademais, a Coroa pretendeu controlar os religiosos mais de perto.

Em 1692, ano da redação da  Informação, D. Pedro II ordenou um in-ventário geral, objetivando o registro dos bens imóveis dos padres paraonerá-los com impostos. Os inacianos ameaçaram de recorrer à excomu-nhão, alegando seu direito de isenção scal, além do dever da Coroa defornecer-lhes regularmente subsídios. Os colonos, empregando um tom

virulento, insistiram no consco dos bens jesuíticos como medida pararelançar a economia40. Seja como for, as expectativas de conciliar mora-dores e missionários, mediante o Regimento, não se cumpriram41.

De forma implícita, a Informação reete este impasse que ameaçouentravar o projeto colonizador nos anos 1690. Miguel da Rosa Pimentel,no intuito de inectir uma conjuntura marcada por relações sociais ex-tremamente tensas e um território em grande parte inocupado, adverte

religiosos e colonos da obrigação de obrar em prol da expansão e conso-lidação lusa ao invés de cuidar do benefício próprio. Assim, ele observaque “Nesta occupação Santa [evangelização] não devem os Missionariosdivertirse em outras q’ lhe sirvão de impedimento aquella, somente tra-tarem das suas doutrinas e reduçoeńs” (. 198v); mas, também admoestaos moradores, pois “quando chegão a parte de sua negociação [no sertão],..., uzão de viollencias e tiranias e fazem pouca escrupolla de matar” (.199r). Diante da prevalência de interesses particulares e da inecácia da

 justiça no vasto interior, o ouvidor-geral aconselha a instalar “em todos osrios principaes” um capitão e um ouvidor para porem um termo ao exces-so de impunidades e (re)aproximar os índios (. 199v-200r).

Estas duplas administrativas deveriam também zelar para que “todoo sertão [esteja] sogeito a sua [do rei] obediência, e com elle se segure

40 – Ver LEITE, op. cit., p. 202; ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: the Soci-ety of Jesus in Portugal , its Empire, and Beyond (1540-1750). Stanford: Stanford Univer -

sity Press, 1996, pp. 465 e 471-472.41 – Ver ibid ., pp. 490-499.

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de toda a invasão” (. 201v). Neste contexto, o autor indica que “o ponto principal p.ª a segurança do Estado são indios” (. 201v), pois os conhe-

cimentos e braços indígenas, imprescindíveis para a coleta das drogas, oseriam também para o rechaço de eventuais invasores. De fato, ao longodos anos 1680 correram boatos relativos a ataques iminentes dos france-ses de Caiena no estuário do Amazonas e no litoral do Maranhão. Naque-la década, muitos índios foram requisitados para reforçar as muralhas dosfortes de Macapá e Paru, no Cabo Norte, e forticar o cais do porto de SãoLuís42. Para frisar a urgência de medidas de segurança, Miguel da RosaPimentel evoca amplamente as invasões holandesas ocorridas no início

dos anos 1640 (. 201r/v)43.

Além disso, o autor propõe uma (re)distribuição sistemática da po- pulação branca. O “sertão” – termo largamente empregado para designaro interior não ocupado – deveria ser habitado por pessoas adaptadas aomeio ambiente, familiarizadas com os costumes da região e conáveis emcaso de conitos. Assim, para o serviço militar, o ouvidor-geral, cientedas diferenças na maneira de fazer a guerra na Europa e na Amazônia,

favorece tropas compostas por índios, “mamalucos” e brancos da terra(. 200v-201v). Já referente ao plano de fundar “nos rios povoaçoens”,ele sugere o deslocamento de moradores das cidades. Ademais, a dimi-nuição do número dos habitantes urbanos reduziria o risco “de qualquersublevação” (. 201v). O ouvidor-geral alude, assim, aos levantes prota-gonizados pelos colonos de São Luís e Belém em 1661 e 1684. Tambémos novatos vindos do Reino deveriam logo ser mandados “para os rios”,

apressando sua adaptação ao meio ambiente tropical. Subentende-se queesta transplantação de grupos populacionais para diferentes ambientesnão proporcionaria somente mais segurança contra eventuais invasões,mas facilitaria também uma exploração mais lucrativa das potencialida-des do interior.

Em última análise, toda a argumentação de Miguel da Rosa Pimentelvisa à rentabilidade econômica da colônia. Os diversos cálculos acerca

42 – Ver BETTENDORFF, op. cit ., pp. 507, 663 e 671.43 – Ver ARENZ & SILVA, op. cit ., pp. 16-19.

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K ARL HEINZ ARENZ 

FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

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dos benefícios régios e dos preços de produtos e escravos, apresentados pelo magistrado, revelam sua preocupação com o assunto (. 202r-203v).

Ele aponta também as despesas das diferentes incursões ao sertão, recla-mando a falta de scalização, sobretudo na hora da repartição dos índios,da coleta das drogas e da organização dos resgates. Miguel da Rosa Pi-mentel denuncia expressamente os tripulantes das otilhas que vão àsdrogas. Estes, após o registro obrigatório das canoas no forte de Gurupá,comportar-se-iam como “Rey[s] do Sertão” (. 199r), sequestrando ín-dios e abusando sexualmente das índias. O ouvidor-geral, temendo tantoo despovoamento dos aldeamentos, devido à incessante burla das leis,

quanto o aumento de violência, em razão das retaliações desesperadasdos índios, insta que “sem Cappitaens e ouvidores nos rios não pode ser”(. 202v)44. O autor até alista os vales onde as duplas administrativas de-veriam ser instaladas (. 205r). Por sinal, a maioria dos rios mencionadossitua-se no oeste amazônico, região que mais sofreu investidas no naldo século XVII.

O próprio ouvidor-geral entusiasmou-se ante a descoberta de diver -

sos minérios naqueles rios. Segundo Bettendorff, ele “mandou fazer umaforja em que se ocupavam com elle dois Negros seus” para averiguar ovalor das provas extraídas. Esta ocupação teria absorvido a atenção deMiguel da Rosa Pimentel “todo o tempo que lá [Amazônia] assistio”,a ponto de negligenciar suas obrigações administrativo-jurídicas, sendoque “muitas causas se acharam indecisas para seu sucessor, que logo lhesdeu vasão a todas ellas”45. As informações do padre Bettendorff corro-

 boram o teor da  Informação que dá, conforme elucidado acima, amploespaço a assuntos econômicos.

Por m, convém salientar a representação geral dos indígenas aolongo da relação. O ouvidor-geral realça o papel central dos índios comoguias e guerreiros durante as incursões e mão de obra na coleta e no trans-

44 –  Ver Alvará em forma de Ley sobre as Canoas que forem a saque do páo cravo e cacáodo Sertão do Maranhão; Regimento de que hão de usar os Capitães da Capitania o Gurupá.

Lisboa, 22/03/1688. ABN , vol. 66, pp. 87-91.45 – Ver BETTENDORFF, op. cit ., pp. 416-417.

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

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 porte das drogas do sertão (. 202v). Por isso, ele exige categoricamenteque, de um lado, sejam tratados em conformidade com a lei, e, de outro,

integrados à sociedade colonial com meios mais ecazes. Neste contexto,o autor insinua que a experiência missioneira não teria conseguido o su-ciente “dar forma aos Indios”, alegando que estes continuariam “uzandode seus Ritos gentillicos e como não conhecem outra forma, se concide-rão ainda nos Matos, matandosse e comendosse huńs a outros” (. 199r).Esta argumentação lembra o Diretório das Povoações, introduzido seisdécadas depois, por iniciativa do Marquês de Pombal, para “civilizar” osíndios 46.

Segundo Miguel da Rosa Pimentel, uma maneira para acelerar a in-tegração dos mesmos seria a substituição gradativa da língua geral, dematriz tupi, pelo português47. Nisso, o ouvidor-geral é um dos poucosfuncionários setecentistas que evocam a situação linguística. Ao proporque os índios fossem logo doutrinados em língua portuguesa, no sentidode “tirarlhes a tapuya”, sem passar pela aprendizagem da língua geral (.203v), o magistrado advoga a superação do complexo trilinguismo exis-

tente na época. De fato, a maioria dos índios descidos no nal do séculoXVII era de “língua travada” (não tupi) e pouco ou não familiarizada coma língua geral. Para o ouvidor-geral, a tarefa de ensinar logo a língua por -tuguesa não seria exclusiva dos religiosos, valendo-se da ideia que, nesteensejo, “todos podem ser Missionarios” (. 204r).

Miguel da Rosa Pimentel até presume a impossibilidade de transmi-tir a fé católica em língua geral, pois o recurso constante a termos portu-

gueses seria inevitável por falta de vocábulos equivalentes. Com efeito, palavras de teor abstrato, como “graça” ou “santo”, foram comumente

46 –  Ver Directório que se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará, e Mara-nhão, 03/05/1757. Lisboa: Impr. de Miguel Rodrigues, 1758.47 –  Ver BARROS, Maria Cândida Drumond Mendes. Notas sobre a política jesuíticada língua geral na Amazônia. In: FREIRE, José Ribamar Bessa & ROSA, Maria Carlota(orgs.). Línguas Gerais: políticas lingüística e catequese na América do Sul no período

colonial . Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, pp. 85-106; FREIRE, José Ribamar Bessa. LínguaGeral Amazônica: a história de um esquecimento. In: ibid ., pp. 197-202.

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FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

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empregados nos catecismos escritos em língua geral48. Para reforçar seusargumentos, o magistrado alega que os índios falantes do português, como

os do Maranhão, seriam mais assíduos na devoção, pois conheceriam a fémais a fundo. Para ele, a língua é o principal meio de integração, fazendoque os índios “se afastão de seus ritos Gentílicos” (. 204r/v).

Antes de tudo, Miguel da Rosa Pimentel objetiva mostrar o lado prá-tico do uso exclusivo do português por facilitar as tarefas de missioná-rios, administradores e militares que requerem uma comunicação clarae precisa com os indígenas. Além disso, o ouvidor-geral observa que os

 próprios índios, caso tivessem a ocasião, fariam questão de seu conheci-mento do português por quererem diferenciar-se dos “tapuyas do Mato”(. 204v). Contudo, ciente do forte enraizamento da língua geral, Miguelda Rosa Pimentel defende uma difusão gradativa do português, a começar pelos índios recém-descidos. Ele mostra-se convencido que, dentro de poucos anos, a situação linguística mudaria por completo, unicando acomunicação e, por conseguinte, intensicando a interação entre índiose brancos. Para alcançar este objetivo, precisar-se-ia só de “alguńs an-

nos sem innovaçoeńs de Leys” (. 204v), visto que a constante mudançada legislação indigenista nas décadas anteriores impediu uma política decaráter contínuo. Não obstante, a promoção do português por parte dasautoridades não embargou a constante difusão da língua geral, inclusiveentre os colonos, durante todo o século XVIII49.

Em suma, a Informação do Maranhão, embora redigida em lingua-gem complexa, é um documento fundamental para entender as caracte-

rísticas e dinâmicas que marcaram a sociedade colonial da Amazônia nom do primeiro século do domínio português, sendo, portanto, de granderelevância para historiadores, linguistas e antropólogos.

48 –  Ver AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro cate-quético-ritual americano-tupi (sec. XVI-XVII). São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2007, pp.21-116.49 –  Ver Sobre se lhe [superior jesuíta] ordenar que os Indios da sua repartição se facão

 praticos na Lingua Portugueza. Lisboa, 12/02/1727.  ABN , Rio de Janeiro, vol. 67, pp.214-215, 1948.

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

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II – TRANSCRIÇÃO

[. 198r]

Informação do Estado do Maranhão50

Tem este Estado outo centas Legoas de Comprimento

q’ os portugueses pello Rio das Amazonas asima tem

navegado ate a Boqayna [bocaina] do Rio do Ouro adonde puze-

rão hum marco com hũa crus e ao Sitio o nome de S. Franc.°

  Todo este distrito esta o mais delle por cultivar 

com o gram [grão] do Evangelho, e por q’ esta materia he mais, im= portante della primeyro tratarey.

  Nas Cidades Maranhão e Pará há quatro Relligi=

oens e só os P.es da Comp.ª de JESUS asistem nas Misso=

eńs destá tão dillatada Monarchia e a querem abreviar 

a obediencia de sete P.es q’ se ocupão nesta cultura;

sendo q’ todos q.tos tem a sua relligião em toda a Europa

não são bastantes p.ª estas Missoeńs pello Inumeravel Gen=tio q’ povoa aquella grandeza e como são tão poucos | e ainda

q’ o seu desejo he grande | não pode o fruto ser m.to com o q’

 parece deve S. Mag.de ser servido, olhar p.ª esta necessida=

de mandando á remediar com mais obreiros q’ cultivem esta

vinha, e com entrevenção do Bispo escolher das mais Re=

ligioeńs alguńs de melhor capacidade pª q’ se empreguem

neste Santo Serviço por não esprimentarem tantos Milho=eńs de Almas a sua perdição.

  Os motivos por q’ se tem denegado as mais

Relligioeńs este serviço, são a má opinião de seus Relligi=

osos, deponho q’ em quatro annos sete mezes q’ lá asis=

ty não sey q’ nenhũ obrasse couza contra o Credito, da Sua

50 – A transcrição segue estritamente a ortograa e pontuação do manuscrito original, preservado em bom estado.

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FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

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Relligião, mas no caso q’ haja algũ desemcaminhado, este

não deve prejudicar aos mais beńs procedidos; e S. Mag.de

desemcarrega sua conciencia na do Bispo e a elle, comoPrincipe da Igr.ª e Pastor daquellas ovelhas, Incumbirá

[. 198v]

Mandarlhes subgeito capaz q’ as pastoreê, e q.do haja

algũ tão esquecido da obrigação de Catholico, o Bispo

com, o seu perllado [prelado] o poderão tirar e castigar, e como

os mais virem estes exemplos se emcaminharão

a proceder bem.  O Summo Pontice fes graça

a S. Mag.de daquelles dominios com obrigação de os cultivar 

com Missionarios e p.ª S. Mag.de os pessuir [possuir] parece, q’ não

 basta q’ os tenha, mais q’ he obrigado a por os q’ for possi=

vel e havendo no estado tres Relligioeńs, q’ desculpa

 pode haver p.ª q’ destes os melhores se não occupem,

tendo as suas fundaçois edicadas só a este m. Nesta occupação Santa não devem os Missio=

narios divertirse em outras q’ lhe sirvão de impedimento

aquella, somente tratarem das suas doutrinas e reduçoeńs

e havendo algũa ovelha mal encaminhada, conta se

ao Bispo p.ª q’ elle tenha cuidado, de a tornar ao reba=

nho, e nos dillitos, os Ministros de Justiça q’ os casti=

guem, por serem estes meyos indecentes aos Missio=

narios, e livrãosse de escrupullos q’ lhes podem pre[-]

 judicar as suas conciencias.

Conhecendo os Missionarios dos dilitos Ec=

Cleziasticos, poem no perigo aos Indios | como gente bru=

ta | negarem suas culpas, vendo q’ não tem remedio p.ª

as confessarem a outro P.e, q’ de ordinario distam

cem e duzentas Legoas huńs de outros, e ainda q’

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

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[. 199r]

Os P.es os não castiguem pelas noticias q’ pellas con=

soeńs elles lhes dão, he o seu natural tão barbaro q’ o prezu[-]mem e publicão, com q’ pª se lhes tirar este erro, se deve

encarregar ao Bispo mande proceder a Sua Just.ª eccle-

ziastica contra os desemcaminhados, como Juis ordinario

daquellas ovelhas, e ao secullar, contra os criminosos como

vassalos de Sua Mag.de.

  Todo o Governo do estado consiste em dar forma

aos Indios e para o acerto deste se tem feito varias Leys,tem mostrado a expiriencia pouca utilidade por se lhe

quererem introduzir differentes meyos aos com q’ neste Reyno

se governão os vassalos, e por esta causa, se achão todas

as Aldeas sem nenhũ, uzando de seus Ritos gentillicos

e como não conhecem outra forma, se conciderão ainda

nos Matos, matandosse e comendosse huńs a outros, sem

q’ do tal experimentem castigo, o q’ he muito prejudici=al.

  Da Cid.e do Pará e Maranhão vão todos os a-

nnos as drogas trinta quarenta canoas com outros tantos

e mais brancos, estes tanto q’ passar a fortalleza do Gurupa

cada hum se constitue Rey do Sertão. Chegão a hũa

Aldea chamão ao principal intimidamno, p.ª q’ lhe tragão

á sua prezença todos os índios, e índias, tomão os q’ lhes

 parecem levamnos com sigo. Usão das índias, e as levão

 p.ª o mato, p.ª estas sensuallidades, dispendem a fazenda

q’ levão dos Moradores, de tal sorte q’ quando chegão

a parte de sua negociação, senão achão ja com fazenda

 p.ª ella, uzão de viollencias e tiranias e fazem pouca es=

crupolla de matar so am de q’ por aquelle meyo lhe dem

as drogas. Opprimidos, os Mizeraveis vem no q’ pedem

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FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

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e algũas vezes sucede não poderem soportar o rigor e matallos

[. 199v]

A treiçao [traição] como no meu tempo zerão a m.tos. Es=tes insultos de ordinario acontecem trezentaz

quatrocentas e mais legoas das Cid.es, como he possivel=

os Ministros poderem em tão grandes distancias castigar

estas desordens, por q’ ainda q’ o queirão fazer como

são obrigados e tenhão estas noticias por, ellas não

 podem proceder e sempre hão de formar culpas p.ª o castigo

com provas judiciais e p.ª se averiguar a verdade ou sehá de hir devassar nas mesmas partes aonde se come[-]

terão os crimes, ou nas Cid.es p.ª hirem aquellas necessi=

tão de canoa e indios[,] mantimentos e dinhr.º p.ª

o pagam.º delles, se isto for por conta da fazenda Real

não chega o patrimônio, se pella dos Ministros não

 podem com esta despeza, por ser necessar.º andar sem=

 pre no Certão[;] se tirarem devassas nas Cid.es o não podem fazer senão com os mesmos cumpleces nos

dilitos, p.ª se perguntarem, os indios he necessar.º in=

terprete q’ os pratique este sempre há de ser

dos mesmos moradores, e em lugar de dizer o que

o indio jura[,] declara o q’ lhe parece, e q.do se concide[-]

ra sahir da devassa criminoso, se acha hum Santo, e ca

servindo este meyo de ludibio [ludíbrio] a Just.ª.

  E no caso q’ possa acontecer culparsse

algũ e q’ o seu crime seja tão patente q’ senão possa

occultar recolhesse ao mato e nelle vive seguro de

 poder ser preso, ainda q’ os Governadores e Ministros

se empenhem a buscallo, e obra tais couzas no Sertão

q’ he o mais conveniente perdoarlhe de q’ deixallo conti=

nuar em seus erros, e com a noticia delles lhes dão

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014 367

[. 200r]

Os Governadores perdoeńs Reays so a m de q’ se

recolhão: e entre muitos exemplos de q’ tenho noticia;no meu tempo deu Artur de Sá ao Cabo da Tropa dos

resgates Andre Pinheiro, tres perdoeńs p.ª q’ os leva[-]

sse ao sertão a tres deliquentes q’ nella havia sete

annos andavão: estes excessos não tem nenhum reparo,

e só poderão ter sendo, S. Mag.de servido, mandar 

 por em todos os rios principaes hũa pessoa q’ sirva de

Capp.am e ouvidor, p.ª q’ administre Just.ª como no Re-gimento incluso se declará.

  Pondosse nos Rios ouvidores e Cappitaeńs

ca mais pronta a Just.ª p.ª a adveriguação dos delitos, e o

medo della tão vezinha os fara abster de os cometerem e a[-]

te os proprios indios vivem mais ajustados e seguros,

 por terem summo resp.to aos Ministros e a rezão [razão] desta

obediencia he porq’ como elles entre sy são todos os mês[-]mos huńs q’ outros, entendem q’ os brancos he o mesmo

e como vem q’ há hum q’ tem jurisdição sobre elles p.ª os

castigar, o conciderão por grande pessoa, e por isso não fo-

gem nem se ofendem de q’ este mesmo os castigue:

esta razão não melita [milita] nos Missionarios por que

se lhes dão fogem p.ª o mato, e no meu tempo vy suceder

isto muitas vezes, a hũa Aldea inteira mandey

acudir por João de Almeyda Pd.or  [Procurador] dos Indios p.ª que os

 praticasse da minha parte p.ª q’ não fugissem p.ª o mato; es=

tando rezollutos a fazello, pello p.e [padre] de Murtigura ter dado

no principal e ter mandado açoutar hũa índia, obrigou os

a dezistir de tal prepozito o respeito da Justiça.

  Desta sorte segura Sua Mag.de o estado

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FREDERIK  LUIZI A NDRADE DE MATOS

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014368

[. 200v]

E povoa sem despeza de sua fazenda os sertoeńs:

emquanto da segurança havendo des ou doze milArcos he inconquistável, e com este meyo de se porem

Cappitaeńs e ouvidores nos rios, se pode consseguir

haver cem e duzentos mil. Este Capp.am deve

alistar todos os Annos mandando o pe de lista

aos Governadores, sabe os q’ as Aldeas tem, e pellos q’

 pode puxar nas occasioeńs, nellas mandando hũa

canoa de avizo em menos de vinte dias, se pode, a=char socorrido com vinte trinta mil Arcos, por q’ a estes

tanto q’ lhes fallão em guerra | na comp.ª de hum branco |

vem com g.de gosto, e não se tem por aballissado [abalizado] entre

elles o q’ falta, e so por matarem hum branco, p.ª terem

a fortuna de entre elles se Armarem cavalleiros

vem com g.de vontade, e os q’ o são já, não faltão as gue[-]

rras por entre elles ser descredito.  As guerras do Estado são m.to differentes

das da Europa, por q’ a senão briga com formatura,

e so cada hum o fas como lhe parece, detras das

Arvores escondendosse de hũas em outras.

  Os soldados q’ vão a esta guerra descalssos

e nus a emprendem, por q’ se encontrarem no mais calssa-

dos, e molharem os pes | q’ por força o hão de fazer | não

lhe perguntão de q’ morrem, o q’ não melita [milita] descal-

sandosse por q’ em lugar de ser danoso he sadio. He

o mato tão fechado, e cheo por baixo de espinhos q’ com

responde [corresponde] as nossas rozeiras, q’ alem de não poderem

[. 201r]

Aturar a quentura vestidos, com elles se embaração no mato pª

 poderem correr e andão ja tão destros os indios e mama-

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014 369

lucos neste emprego, q’ o não tem por danoso, o q’ he p.ª os solda-

dos do Reyno, pella falta da criação dos matos, e so tem

serventia p.ª o presidio das fortallezas e no tempo q’ láasisti so esta casta de gente hia as guerras do sertão, e os

Governadores, nomeavão por Cappitaeńs aos mesmos

Mamallucos e dos pagos nenhum vay e os soldados

Reynois servem p.ª goarda das Cayssaras [fortins], canoas e Ba-

gayeńs.

  As Cid.es e villas do estado todas estão situadas

dentro dos matos, e no caso q’ o inimigo vay invadiralguma, bem o podem ver desembarcar; e tanto q’ o esti=

ver sahir de sua casa p.ª o mato, e ja esta seguro por q’

ninguem pode entrar, nelle q’ possa sahir p.ª fora sem

indio q’ o governe, com q’ por muitos q’ vão a invadillo

havendo índios[,] podem matar a todos sem q’ possão

ser ofendidos. No Maranhão, sucedeu quando

os olandezes tomarão aquella Cid.e hum so homem q’ nãoquis jurar ao Principe de Orange, dizendo q’ não conhe-

cia por seu Rey mais q’ ao Serenissimo S.r  Rey de Por=

tugal, executarão nellee [ sic] varios rigores ate o senten=

ciarem a Morte, estando a vista do supplicio, dizen=

do lhe q’ jurasse senão q’ o justiçavão, elle o não quis fazer 

estando sempre constante no q’ havia dito, envergonha-

dos os olandezes de q’ houvesse hum Portugues, q’ não quize[-]

se jurar, o tornarão a Cadea p.ª ver se o tempo obrava

o q’ não pode o rigor, teve occasião de fogir p.ª o Rio Ita=

 pecuru. Convocou a sy cousa de vinte brancos, e com

duzentos indios q’ catequizou, vinha todos os dias pello

mato a casa dos olandezes e do mato na mesma

7/17/2019 Ri Hg b 2014 Numero 0463

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[. 201v]

Cid.e os matavão, e em poucos tempos destruirão dous

mil olandezes q’ na Cid.e estavão de prezidio, e a restau=rarão, com q’ o ponto principal p.ª a segurança do Estado

são indios, com q’ sem elles por m.to grande prezidio q’

haja he nada, e com elles o piqueno presidio he m. to.

  Sendo Sua Mag.de servido mandar estabe-

lecer esta forma de Cappitaeńs e Ouvidores, tem todo

o sertão sogeito a sua obediência, e com elle se segure

de toda a invasão, a sy pellos socorros q’ os Cappitaeńs podem mandar, como de estar o sertão todo forti=

cado p.ª o inimigo o não poder emtrar, e no caso o queira

fazer, acha em todas as p.tes [partes] rezistencia q’ lhe hão de custar 

muitos milhoens de gente p.ª o vencer.

  Deste meyo se segue em brevez annos

Haver nos rios povoaçoeńs, e por estas podersse conhecer 

todo o pricioso q’ o estiver o intrinseco do mato pella vezi=nhança dos habitadores, e tirãosse das Cidades p.te

dos moradores q’ p.ª ellas são ja m.tos, deminuindoos

vivesse com segurança de qualquer sublevação, o q’ os

muitos podem causar, por q’ são amigos de novidadez

e acrescer deste Reyno mais p.ª que vivão nas Cid.es 

sempre he prejudicial, e qd.º se mandem alguńs | exce-

 pto os necessarios | p.ª os prizidios | devem hir moradores

 p.ª os Rios, por q’ se não forem com esta obrigação será

difcultozo, conduzillos lá, pello pouco conhecimento q’ tem

do Estado, e das conveniencias q’ lhes podem rezultar,

o q’ não millita nos naturais q’ vão de boa vontade

 pello conhecim.to que tem.

[. 202r]

 Nesta occupação são necess.rios hum Ouvidor e Capp.am

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):349-380, abr./jun. 2014 371

Meirinho, escrivão, ajudante, e des soldados, toda

esta gente devem ser dos payzanos cazados e os sol=

dados, dos q’ tiverem dado baixa.  Para o pagam.to destes sem Sua Mag.de dispender 

 Nada da sua fazenda lhes deve pagar, somente mandan-

do q’ do gentio do mato se ponhão duas Aldeas de Admi=

nistração, p.ª a segurança do Reduto q’ se zer e q’ destes

tenha o Capp.am todos os annos, doze, o Ajudante Mei=

rinho escrivão cada hum seis, e os soldados a tres, | tendo

acensso [acenso] aos postos, | ca pagando Sua Mag.de, e elleshão de se dar, por muito contentes, por q’ hũa canoa q’ se

havia com doze indios p.ª o sertão p.ª as drogas delle

o menos q’ tras são seis centos mil Rs51 [réis], e ainda q’

gaste cento e sincoenta, no pagam.to dos indios e drogas

q’ mandar sempre cão livrando quatro centos e sin-

coenta, os ofciais e soldados juntos huńs com outros

fazem o mesmo e rezultalhe o proprio interesse, e aS. Mag.de o dos dizimos e sse [ sic] os indios hão de estar 

no mato comendosse huńs a outros e iremsse sem remedio

ao Inferno, mayor serv.º de Ds’. [Deus] he tirallos delle ainda

q’ seja com esta obrigação, por ser provavel o poderemsse

salvar, e como o Capp.am[,] Ouvidor[,] ofciais e soldados

sabem q’ estas Aldeas estão destinadas, p.ª suas

utillidades, porão todo o cuidado e mas [mais] conservar, não

conssentindo, q’ nellas se fação desmanchos, e com este

meyo se evitão os gastos das tropas, p.ª irem ao mato

a descer ao Gentio, q’ não servem de utillid.e algũa e so-

da despeza da fazenda, e em todo o tempo q’ la asisty

não vy rezultar fruto algum desta diligencia, poupasse

51 – No original, a abreviação “Rs” para “réis”, a moeda colonial, é reproduzida por umsinal estilizado.

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o trabalho aos p.cos por q’ o não tem mais q’ dispois de elles

[. 202v]

Aldeados ir instruillos na nossa santa feé.  Foy S. Mag.de servido rezolver q’ so a metade

dos indios das Aldeas servissem | o q’ he m.to

 justo | e sendo, esta ley tão pia, e santa, e justa, |

na forma em q’ esta o estado senão pode praticar,

 pedem os moradores ao G.or  indios p.ª irem as

drogas, q’ precizam.te lhes hão de dar por q’ não falte

o rendimento do Patrimonio Real, vay este coma licença do G.or  ao certão, e se lhe concedem coatro

indios das Aldeas, tira outo, e o mesmo fazem

todos, e desta sorte, como não ha nos rios quem lhes

 peça as licenças q’ levão, e lhos reparta, despovoão

as Aldeas, p.ª se evitar este danno, e guardasse

esta ley, sem Cappitaens e ouvidores nos rios não

 pode ser, e ainda asim havendo os, deve o G.or  fazerdeclarar nas petiçoens de licença, as p.tes aonde que-

rem hir as suas negociaçois mandando ver nos pez

da lista os indios q’ do tal rio tem dado, e os q’ ainda

 pode conceder, fazendo lhe declarar por seus nomez

os indios q’ lhe dá, indo remetidas estas licenças

aos Cappitaeńs p.ª por os seus ofciais mandar ti=

rar, e havendo algum impedido dos nomeados,

que em Arbitrio do Capp.am dar outro em seu

lugar fazendo o prezente ao G.or  na pr.a [próxima] ocazião,

e se acontecer, o tal morador, mudar de prepozito

no rio, e quizer ir a outro, o Capp.am lhe dará li=

cença p.ª o outro aonde for, mandando goardar

a do G.or , e voltando para bayxo com as drogaz

do sertão será obrigado, a trazer licença, do Capp.am,

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[. 203r]

P.a a vir registar, aonde pr.o [próximo] foi, e trazer a do G.or , com os

indios nomiados q’ vierem com elle, p.ª com ellas, sa-tisfazer aos registos, dos Ministros da fazenda, e sa-

 berem os Governadores os indios q’ tras, e desta sorte

não podem trazer, escravos, nem ocultar nenhum

indio nas suas rossas, o q’ ordinario estão fazendo.

  Foy S. Mag.de servido, mandar na Ley

dos Resgates que fazia m.ce [mercê] dos dir.tos [direitos] dos escravos p.ª

q’ se pudessem aplicar a despeza da tropa as missoeńs,entradas dos certoeńs, parece q’ deve S. Mag.de ser=

servido, mandar, q’ só este dr.º se gaste na redução

do Gentio baxandoo e Aldeandoo e q’ p.ª este m,

somente se reparta pellos Cappitaens dos rios, com

receita e despeza p.ª elles darem conta a forma em q’

foi gastado, e o fruto q’ rezultou, p.ª asy lhe ser levado

em conta, e sendo mal despendido pagaremno desuas cazas, e p.ª este m me parece deve S. Mag.de

ser servido, mandar acrecer a cada escravo mais

tres mil Rs [réis] de direitos, e em nada cão os vassallos

 prejudicados.

  A p.te que toca p.ª a despeza da tropa dos

Resgates se escusa, por q.to hum escravo no sertão e seu

 preço serto são quatro machados, q’ valem quatro

mil Rs, com tres q’ se pagão de direitos são sete, tres

mil Rs q’ se lhe acrecem mais são des, des testois [ sic] q’

 podem acrecer da despeza da tropa são onze, e des

tostois pellos q’ podem morrer são doze, este he o mayor 

custo que desta sorte pode fazer hum escravo, e sse

o morador a q.m [quem] he concedido, o quizer logo vender

sem entrar em sua cazâ, como eu vy fazer a m.tos,

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[. 203v]

Dão lhe cem mil Rs por elle, com q’ com todo este acrecen-

tam.to não ca sendo, a graça de S. Mag.de pequena, e osvassallos se darão por m.to contentes, terem por aquelle

 preço m.tos e antigam.te no tempo em q’ os houve,

o seu preço serto era trinta mil Rs, porponho este

meyo pellas m.tas expiriencias, q’ s neste p.ar  [parlamentar] aos

moradores do Estado.

  A segunda p.te q’ Sua Mag.de manda

aplicar p.ª as Missoens, gastão os missionários, nasidas e vindas q’ fazem a Cid.e, ou seja a negocio

de suas rezidencias, ou de sua Relligião, isto mesmo

fazião antes de os ter, e como nesse tempo, passavão

o podem fazer agora, pois se lhe não tem acrecido

nada de novo, e a mesma rezão millita nos

supriores [ sic], q.do vão ou mandão vizitar seus subditos,

Acrecem estas duas p.tes p.ª a redução e em havendocuidado, nos Governadores há de rezultar g.de utillid.e

ao serv.º de Ds’ [Deus], parece, se deve mandar aos Gover=

nadores q’ mandem em todas as embarcaçoeńs certi=

dão da despeza deste dr.º e do fruto q’ se seguio

 por q’ desta sorte todos se irão atento em o gasto

delle.

  Tambem pareceu reprezentar q’ os Missiona=

rios devem doutrinar aos indios na Lingoa Portugueza

e tirarlhe a tapuya.

  Todos os sertoeńs constão de varias Lingoas

[. 204r]

A que chamão travadas, os Missionarios reduzem estas

com interpetres [ sic] a hua geral, isto lhe serve de grande traba=

lho, e emquanto não sabem a geral de nenhum fruto, e sse

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o hão de ter muito melhor he ir logo ensinando os p. la

Lingoa portugueza, por q’ ainda q’ com brevidade a não

 precebão [ sic], o tempo os fara praticos, e o mesmo lhes rezultade ensinarem a geral, e desta sorte todos podem ser 

Missionarios, e se animarão m.tos a quererem ir asistir neste

emprego, o q’ não fazem por verem q’ necessitão tres ou mais

annos p.ª aprenderem, a Lingoa, e neste tempo não fazem

fruto: e os q’ quizerem ir carregados de annos, ainda que o seu

espirito os chame, se hão de obster [abster] pella difculdade

apontada. e os indios q’ são doutrinados pella Lingoa portugueza tem melhor crença q’ os mais, porq.to pella Lingoa

geral nunqua [ sic] se pode explicar bem os misterios de nossa

santa fee, e sempre lhos hão de explicar com algũas pa=

lavras portuguesas, e como elles o não sabem ignorão, o que

lhes esplicão.

  Provo esta opinião com hũa observação

e expiriencia que s, estando no Para aonde todos brancose indios de ordinario fallão a Lingoa G.al, m.to poucos erão

os indios q’ via nas Igr.as com contas [terço] a ouvir missa e os q’ asisti=

ão com seus Senhores sem nenhuão atenção. No Mara=

nhão aonde todos os indios fallão portugues se achão as=

Igr.as todas cheas de indios com suas contas, ouvindo Missa

e com m.ta devoção, sendo huńs e outros do mesmo sertão e pa-

rentes, q’ rezão [razão] pode haver desta deverssidade, poder se há dizer

q’ huńs serão mais bem doutrinados q’ outros por seus senhorez,

 porem a meu entender me parece esta differença de sabe[-]

rem pello portugues os misterios de Nossa Santa fe, e como, os

entenderem cresce nelles a devoção e se afastão de seus

[. 204v]

De seus ritos gentillicos.

  Fis a expiriencia em duas índias, que

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mandei chamar p.ª jurarem em hua devassa, dizendo ao Meiri=

nho diante dellas, que fosse buscar hum morador, q’ soubesse

a Lingoa p.ª lhe servir de interpetre, logo se levantarãodizendo me q’ ellas sabião fallar Portugues e q’ não erão

tapuyas do Mato, q’ as perguntassem q’ ellas responde-

rião o q’ soubessem, asy o s e jurarão como qualquer por=

tugues, o q’ não há no Para que sempre necessitão de interpe-

tre: com esta forma rezulta grande utillidade ao gentio,

menos trabalho aos missionários, melhor administração da

 justiça, por não Andar o segredo della por varios interpetres,e se evitão os escrupullos destes declararem mais ou menos

de q’ o Gentio jurar.

  Podersse há duvidar desta novidade, e q’ sera dicultoso

introduzirlhe por estarem estas Missoens criadas e doutri=

nadas pella Lingoa G.al. Nenhua causa seg.da he impossi=

vel, aos homens, e tudo o tempo facillita, e esta rezão podera

millitar p.ª os ja doutrinados, porem p.ª os do Mato q.do delle vememtão se principia, logo bem se lhes pode enssinar, a Lingoa

Portugueza, os lhos dos ja doutrinados q.do nascem não

a trazem consigo, tambem estes podem ser doutrinados pello

 portugues, aos doutrinados introduzindosse lhes, e vendo q’ seus

lhos a sabem pello amor delles, lhes crescera o dez.º [desejo] de apren-de[-]

rem tambem, e o tempo os fara a todos sabella [sabê-la], e desta sorteserão

mais leais aos portuguezes do q’ aquelles, q’ não sabem.Pondosse em

 praticas estes apontam.tos, guardandosse por alguńs annos seminnovaçoeńs

de Leys, o tempo mostrará a utillidade.

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[. 205r]

  Rios em q’ se devem por os Cappitaens e

OuvidoresParte do Sul Rio das Amazonas Parte do Norte

Rio de Chingú [Xingu] Rio do Garupatuga [Gurupatuba]

Rio dos Tapajós Rio dos Gemundazes [Nahmundá]

Rio dos Coriatos Rio de Matri

Rio dos Tapinãobaranas Rio do Othomá [Uatumã]

Rio dos Abacaxis Rio de Urubu

Rio da Madeira Rio NegroRio das Autonas [Autazes] Rio dos Guapizes

Rio dos Corlhaparazes Rio dos Solimoens [Solimões]

Rio dos Cochigoaras Rio dos Cambebas

Rio dos Incabilhados [Encabelhados]

Todos estes rios comprehendem pello Rio das Amazonas

asima outocentas legoas athe onde se pos o marco,

q’ dito ca pondosse Cappitaens e Ouvidores como se temapontado, ca S. Mag.de uzando da posse em q’ está

 p.ª não ser della perturbado por outro qualquer principe

catholico, sem que emcorra na penna de Calisto terceiro52.

Isto he o que pude dizer do estado no breve deste

 papel, e por não causar fastio me não dilatey mais nelle.

  Sua Mag.de mandara o q’ for servido[,] Lisboa 4 de se [ sic]

Septembro de 1692.

  Miguel da Rosa Pimentel 53

52 – O papa Calisto III (1455-1458) criou o padroado mediante tratados com as coroascastelhana e portuguesa. O “outro qualquer príncipe catholico” é uma referência ou aos

reis espanhol e/ou francês.53 – A assinatura difere da caligraa do texto.

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III – Referências Bibliográcas

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 Archivum Romanum Societatis Iesu, Roma.

 Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.

 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.

 Biblioteca da Ajuda, Lisboa.

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 sertões de muita gentilidade”: fundação e consolidação da missão jesuíta na

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 In: Id. & ROSA, Maria Carlota (orgs.).  Línguas Gerais: políticas lingüística e

catequese na América do Sul no período colonial . Rio de Janeiro: Eduerj, 2003,

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“I NFORMAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO”:UMA RELAÇÃO SOBRE A AMAZÔNIA PORTUGUESA  NO FIM DO SÉCULO XVII

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CHAMBOULEYRON, Rafael.  Povoamento, ocupação e agricultura na

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KIEMEN, Mathias Charles. The Indian Policy of Portugal in the Amazon Region:

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LIBERMAN, Maria. O Levante do Maranhão: “Judeu cabeça do motim” –

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MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e Império: as Juntas das Missões

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PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios dalegislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA,Manuela Carneiro da (org.).  História dos índios no Brasil . 2 ª ed. São Paulo:Companhia das Letras/Fapesp/Secretaria Municipal de Cultura, 1998, pp. 115-132.

SALGADO, Graça (coord.).  Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil

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SOUZA, Laura de Mello e. La conjoncture critique dans le monde luso-brésilienau début du XVIIIe  siècle. In: BETHENCOURT, Francisco (dir.).  Le Portugal

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Texto apresentado em outubro/2013. Aprovado para publicação emfevereiro/2014.

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IV – RESENHAS  REVIEW ESSAYS

PIRES, Daniel. O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755

em Setúbal e o Padre Malagrida. Setúbal: Centro de Estudos

Bocageanos, 164 págs.

ADELTO GONÇALVES 1

Marquês de Pombal e padre Malagrida:as entranhas de um confronto

I

Depois de publicar Padre Malagrida: o último condenado ao fogo

da Inquisição (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2012), o pesqui-sador Daniel Pires ainda dispunha de tantos documentos sobre o assuntoque resolveu escrever O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em

Setúbal e o Padre Malagrida  (Setúbal, Centro de Estudos Bocagenos,2013), que traz maiores detalhes sobre o confronto entre Sebastião Joséde Carvalho e Melo (1699-1782), conde de Oeiras e, depois, Marquês dePombal, secretário de Estado dos Negócios do Reino, com os jesuítas queteve o seu epílogo com a condenação do padre Gabriel Malagrida (1689-1761), já demente, ao fogo da Inquisição.

Como se sabe, o que estaria em causa seria uma pretensa ajuda que

os missionários jesuítas teriam dado aos índios guaranis, levando-os ouincentivando-os a uma guerra contra os portugueses e os espanhóis naregião hoje ocupada pelo Paraguai e pelo Estado do Mato Grosso do Sul.É de lembrar que a Companhia de Jesus, instituição fundada em 1534 porInácio de Loyola e outros religiosos, constituiu um Estado dentro de umEstado, a partir de 1540, quando se radicou em Portugal a convite de D.João III. Três décadas depois, estava instalada em Portugal e em partes

1 – Professor Titular da Universidade Santa Cecília e da Universidade Paulista (UNIP).E-mail: [email protected] 

381

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ADELTO GONÇALVES 

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):381-386, abr./jun. 2014382

do mundo lusófono uma rede de ensino que se tornou hegemônica pelosdois séculos seguintes.

E que, justiça seja feita, apesar das críticas dos iluministas, produziutalentos como o padre Antônio Vieira (1608-1697), lósofo, escritor e

orador de renome, Fernão Mendes Pinto (1509-1583), explorador e aven-tureiro, autor de Peregrinação (1614), uma das mais extraordinárias nar-rativas de viagem escritas em língua portuguesa, e o diplomata Alexandrede Gusmão (1695-1753), nascido na vila de Santos, na América portu-guesa, que representou Portugal em vários países, inclusive em Roma,

e notabilizou-se pelo seu papel fundamental nas negociações do Tratadode Madri, assinado em 1750, que deniu os limites entre os domínios

 portugueses e espanhóis na América do Sul, criando assim as bases doBrasil de hoje.

II

 Nascido em Menaggio, na Itália, Malagrida, lho de um médico,

depois de estudar Teologia, entrou em 1711 para a Companhia de Jesus,

onde fez sólida carreira, a partir de sua instalação em São Luís, entãocapital do Estado do Grão-Pará e Maranhão, na América portuguesa.Começou, então, a estudar a língua dos índios tupinambás, guaranis e barbados com o objetivo de convertê-los ao cristianismo. Em 1727, lecio-nava Literatura no Colégio de São Luís e, em 1730, Teologia no Colégiodo Maranhão. Em 1735, radicou-se na Bahia, onde fundou a Casa dasUrsulinas, que abrigava mulheres desamparadas. Depois, transferiu-se para Pernambuco, onde igualmente abriu na vila de Igaraçu um local derecolhimento para mulheres. Em 1749, estava no Pará quando decidiuretornar a Portugal, onde desfrutava de grande fama, a ponto de ter sidorecebido pela rainha Maria Ana da Áustria.

Místico, costumava atrair multidões com suas orações. A ele nãoraro atribuíam-se curas milagrosas. Tamanha auréola o fez se aproximarde D. João V, a quem teria assistido em seus últimos dias ao nal de ju-lho de 1750, e de muitas mulheres da nobreza, o que o permitia circularcom desenvoltura na Corte. Em 1751, à época de D. José I, foi nomeado

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O MARQUÊS DE POMBAL, O TERRAMOTO DE 1755 EM SETÚBAL E O PADRE MALAGRIDA

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conselheiro real nas possessões do ultramar, tendo viajado para o Brasilno mesmo navio em que seguia Francisco Xavier de Mendonça Furtado,

irmão do futuro Marquês de Pombal, que viria a incompatibilizar-se coma Companhia de Jesus.

Em 1753, fundou no Pará outro asilo e, em janeiro de 1754, a pedidoda rainha, retornou a Lisboa, com o objetivo de fundar mais um recolhi-mento. Voltou a ter presença constante ao lado da rainha Maria Ana deÁustria, que veio a falecer em agosto de 1754. Com o terremoto de 1º denovembro de 1755, escreveu um livro que, a princípio, foi elogiado pela

censura, mas que interpretava o cataclismo como uma vingança de Deuscontra as iniquidades da Corte. Essa interpretação, obviamente, contra-riou o ministro Carvalho e Melo, que começava a consolidar seu poderdepois de sua atuação decidida para recuperar o País da hecatombe de1755.

Malagrida foi mandado ao exílio na vila de Setúbal, onde continuoua pregar com fervor nas igrejas, atraindo muitos éis, além de escrever e

fazer representar peças de teatro. Como conta Daniel Pires, a ligação deMalagrida com damas da primeira e da segunda nobreza portuguesa – asmarquesas de Távora e de Angeja, as condessas da Ribeira e de Atouguia,a duquesa de Aveiro, entre outras – manteve-se intensa durante o seu exí-lio em Setúbal, o que lhe rendeu valores consideráveis em dinheiro e joias, como se pode depreender da leitura das cartas e documentos que o pesquisador recolheu neste livro.

Tudo isso veio à tona depois que ocorreu a tentativa de assassinatodo rei D. José I, a 3 de setembro de 1758, atribuída ao duque de Aveiro eaos marqueses de Távora, com o apoio da Companhia de Jesus. Acusado por Carvalho e Melo de autor moral do atentado, Malagrida viveu emcondições abjetas de janeiro de 1759 a janeiro de 1761, no Forte da Jun-queira, em Lisboa, o que – ao lado dos interrogatórios que sofreu noscárceres da Inquisição, no Palácio dos Estaus (hoje Teatro D. Maria II,nos Restauradores, em Lisboa) – contribuiu para que o seu temperamento

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ADELTO GONÇALVES 

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exaltado chegasse rapidamente à insanidade. Foi condenado ao fogo emfogueira armada na Praça do Rossio e suas cinzas disseminadas pelo mar.

III

Depois de devassar as entranhas do confronto entre Carvalho e Meloe Malagrida, Pires lembra ainda que a animosidade do ministro contraos jesuítas não diminuiu depois da condenação do missionário ao fogo.Contra a ordem religiosa e seus seguidores, o ministro mandou escrever panetos, acusando-os de exercício de atividades comerciais, traição aos

reis, luxúria, desvirtuamento da religião, desobediência, incitamento dos

guaranis à guerra contra os portugueses, inaptidão no domínio da docên-cia, difamação do Estado português no estrangeiro, impostura e hipocri-sia. Escritas na maioria em francês, essas obras breves foram distribuídasnas cortes europeias e entre intelectuais. A campanha deu resultados, poisem 1773 o papa Clemente XIV mandou expulsar a Companhia de Jesusde todos os países católicos da Europa e suprimi-la.

A ira de Carvalho e Melo, já nomeado então Marquês de Pombal, era

tanta que, em 1771, a Real Mesa Censória mandou queimar na Praça doComércio a obra de Malagrida, Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto

que Padeceu a Corte de Lisboa no Primeiro de Novembro de 1755, queteria sido “concebida com um espírito infame, fanático, malicioso, teme-rário e herático”. Para o pesquisador, a biograa de Malagrida reete a

 precariedade da natureza humana: “Idolatrado, senhor de amplos poderesnuma determinada fase; acossado, a ferros, humilhado, demente, conde-nado ao garrote e queimado, na velhice; ideais humanitários e sobriedadeconviveram com o messianismo, o anticientismo e, alegadamente, com aapetência por bens materiais.”

Ao nal do livro, o pesquisador reúne ainda cartas que Malagrida

escreveu em Setúbal, das quais 16 foram dirigidas à marquesa de Távo-ra, cujos originais se encontram no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.As demais tiveram como destinatários o padre Eckart, missionário comquem Malagrida conviveu no Maranhão, o papa Clemente XIII, José Rit-

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O MARQUÊS DE POMBAL, O TERRAMOTO DE 1755 EM SETÚBAL E O PADRE MALAGRIDA

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ter, confessor da rainha, e um conde não identicado, eventualmente o de

São Lourenço.

IV

Daniel Pires (1951), doutor em Cultura Portuguesa pela Universi-dade de Lisboa, é mais conhecido por suas pesquisas sobre Bocage, sua paixão literária, o que o levou a fundar o Centro de Estudos Bocageanos,em Setúbal, além de defender tese de doutoramento sobre a obra do poeta.Foi responsável pela edição da Obra Completa de Bocage, publicada porEdições Caixotim, do Porto, entre 2004 e 2007.

Licenciado em Filologia Germânica, já deu aulas de inglês no ensinosecundário e foi professor em Setúbal. Sua paixão pela pesquisa e seugosto pelo conhecimento já o levaram a trabalhar em São Tomé, Angola,Moçambique, Macau, China, Goa e Escócia. Em Macau viveu por trêsanos, entre 1987 e 1990, onde atuou na Universidade local, e, mais tarde,ensinou na Universidade de Cantão, a cerca de 120 quilômetros de HongKong.

É autor de importantes trabalhos de divulgação da obra de Bocage,como o livro Fábulas de Bocage (Setúbal, Centro de Estudos Bocagea-nos, 2000) e a organização e publicação da brochura da Exposição Bio- bibliográca comemorativa dos 230 anos de nascimento e dos 190 anos

da morte de Bocage (Setúbal, Câmara Municipal de Setúbal/BibliotecaPública Municipal de Setúbal, 1995). Com Fernando Marcos, preparou aedição de uma pasta com 15 belos postais (sépia) sobre Bocage na Prisão 

(Setúbal, CEB, 1999).

Publicou ainda o Dicionário da Imprensa Periódica Literária Por-

tuguesa no Século XX   (Lisboa, Editora Grifo, 1996), constituído portrês volumes. Colaborou no  Dicionário de História de Portugal   e no Dicionário de Fernando Pessoa, além de fazer parte da comissão queorganizou as comemorações do bicentenário da morte de Bocage, em2005. Tem pronto para publicação o  Dicionário da Imprensa de Macau

do Século XIX , trabalho iniciado em 1990 em que descreve todos os

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ADELTO GONÇALVES 

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 periódicos que foram publicados em Macau no século XIX, incluindo os jornais ingleses que, durante a Guerra do Ópio, saíram simultaneamente

em Macau e em Cantão.

Texto apresentado em fevereiro/2014. Aprovado para publicação emmarço/2014.

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 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):387-390, abr./jun. 2014 387

STEFAN & LOTTE ZWEIG – Cartas da América: Rio, Buenos

 Aires e Nova York 1940-42

Original inglês: “Stefan and Lotte Zweig’s South AmericanLetters: New York, Argentina and Brazil 1940-42”

Organização e introdução de Darién J. Davis e Oliver Marshall

Tradução da versão inglesa: Eduardo Silva e Maria das Graças de

S. Salgado

Rio de Janeiro: Versal Editores, 2012, 282pp, il. incl. índice

ISBN 978-85-89309-45-5

CARLOS WEHRS1

Foi, certamente, com muito agrado que os leitores e estudiosos daobra de Stefan Zweig viram surgir nas livrarias, traduzidas para o ver-náculo, as cartas que o casal Stefan Zweig (1881-1942) e Lotte Zweig(1908-1942) redigiram entre 1940 e 1942, durante seu exílio voluntáriona América: Rio de Janeiro (Petrópolis), Buenos Aires e Nova York. Des-

tinavam-se a parentes, amigos e conhecidos. Esta correspondência, agoravinda a lume, destinada ao público lusófono, encerra parte importanteda história do festejado e numerosas vezes traduzido escritor austríaco, projetando mais luzes sobre sua biograa deste período, até então exigua-mente divulgada.

Essas cartas, em geral muito pessoais, até então inéditas, foram co-letadas pelos historiadores Darién J. Davis e Oliver Marshall e reprodu-

zidas em livro. Stefan e Lotte habitualmente utilizavam-se do alemão, elecom sua mestria. No exílio, porém, escolheram o idioma inglês, a m de

facilitar e agilizar o controle na censura das mesmas pelas AutoridadesAliadas. Assim, algumas vezes, tropeçaram na gramática e nas rulas lin-guísticas da língua inglesa, o que os tradutores para nossa língua tiveramde enfrentar. Mesmo assim a leitura é aprazível e plena de informações.

1 – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro (IHGB)

387

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CARLOS WEHRS 

 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):387-390, abr./jun. 2014388

O livro compõe-se de partes distintas: agradecimentos dos autores,nota dos tradutores para o português, relação das abreviaturas emprega-

das no miolo. A interessante introdução explicativa contém os seguintesitens: Zweig e sua reputação literária; ambivalência política; duas vidasse cruzam em Londres; a viagem de 1936 à América do Sul; o retorno para os Estados Unidos; Brasil: país do futuro; as cartas da América doSul; Stefan e Lotte Zweig, celebridades na América do Sul; pacismo e

ativismo: ajudando os amigos e vivendo o exílio em um lugar seguro;ingenuidade ou conveniência; liminaridade e desespero; a volta para ovazio; a vida em Petrópolis; para entender o duplo suicídio; organização

e apresentação das cartas. O leitor se benecia também das 162 notasexplicativas distribuídas ao longo do texto. O livro está estruturado daseguinte forma:

PARTE I: Cartas do Brasil e da Argentina (14 de agosto de 1940 a 22de janeiro de 1941)

PARTE II: Interlúdio em Nova York (24 de janeiro a 15 de agosto

de 1941)PARTE III: Cartas do Brasil (24 de agosto de 1941 a 22 de fevereiro

de 1942)

PARTE IV: Pós-escrito. Carta de Gabriela Mistral, de 3 de março de1942. Carta de Ernst Feder, de 5 de março de 1942.

PERSONAGENS DO DRAMA: 51 minibiograas das pessoas ci-

tadas no texto.

Índice remissivo.

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STEFAN & LOTTE ZWEIG – CARTAS DA AMÉRICA:R IO, BUENOS AIRES E NOVA YORK  1940-42

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 NOTAS DO RESENHISTA

I – A prefeitura de Petrópolis encarregou ao Dr. Annibal RodriguesMonteiro, dentista e escultor local, a feitura da máscara mortuária de Ste-fan Zweig que, anos depois, foi doada pelo próprio artista ao Museu doIHGB.

II – A tradução da obra literária de Stefan Zweig do alemão para o português foi feita pelo psiquiatra Odilon Gallotti, de quem Stefan eracliente. Dr. Gallotti estudara na Alemanha e conhecia bem o idioma.

Texto apresentado em fevereiro/2014. Aprovado para publicação emmarço/2014.

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Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro

INSTRUÇÕES AOS AUTORES

1. A Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro é uma publicação de caráter cientico,voltada para a difusão do conhecimento histórico, assim como de outras disciplinas e áreas ans, no

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resenhas, comunicações, notas de pesquisa, bem como documentos de valor histórico acompanhados

de comentários críticos. A Revista pode ainda publicar dossiês temáticos ou seletivos, elaborados por

especialistas nacionais e/ou estrangeiros.

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7. A Revista privilegia os seguintes tipos de contribuições:7.1. Artigos: textos analíticos ou ensaísticos resultantes de estudos e pesquisas concernentes a

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7.3. Notas de Pesquisa: relatos preliminares e resultados parciais de investigações em curso (atécinco mil palavras).

7.4. Documentos: fontes históricas, de preferência inéditas ou que receberam tratamento recente

(até dez mil palavras).7.5. Resenhas críticas, balanços bibliográcos, bibliograas temáticas, seletivas ou comentadas

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• Exceto os trabalhos dirigidos à seção Bibliograa, os autores deverão, obrigatoriamente, apresentar

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este não esteja em português ou inglês, acrescentar resumo na língua original, não podendo ultrapassar

250 (duzentos e cinqüenta) palavras, seguidas das palavras-chave, mínimo 3 (três) e máximo de 6 (seis),

representativas do conteúdo do trabalho, também em português e inglês, e no idioma original quando

for o caso.

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• A Revista reserva-se a oportunidade de publicação de acordo com o seu cronograma ou interesse,

noticando o autor a aprovação do mesmo ou a negativa para a publicação. Não serão devolvidosoriginais.

• No caso de aprovação para publicação, o autor terá quinze dias para a devolução do termo de autorização,

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Federal.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS• Digitação original em disquete de alta densidade ou CD, devidamente identicado com o título do

trabalho e nome (s) do (s) autor (es), e três cópias impressas, inclusive tabelas e referências; em formato

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haja imagens, identicar no texto os locais das guras ou outras formas de ilustração.

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quem se encaminhará a correspondência. Somente nesta página constará a identicação do autor, para

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do livro: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. nn-nn.

• Artigo em periódico: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do periódico, Cidade: Editora, v.

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• Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tese (Doutorado em...)- Instituição.

Cidade, ano, nnnp.• Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www......

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Somente serão aceitos os trabalhos encaminhados de acordo com as normasacima denidas.

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Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro

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1. The Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro is a scientic publication, focusing onhistorical knowledge diffusion, as well as other subjects and related areas, in the scope of Brazilian

Studies. It receives contributions, such as: articles, essays, notications, review essays, research notes, as

well as documents of historical value with critical comments. It can also publish thematic and selective

dossier, organized by Brazilian and foreign specialists.

2. The management organs of the Revista are the Editorial Board, the Advisory Board and Editorial

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selective and commented bibliographies are emphasized, (up to two thousand words,

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• Documents sent to publication have to be transcribed and have the codex or archival indication from

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