DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO...

288
% DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO RESTITUÍDO, PREFACIO E NOTAS PELO PROF. M. RODRIGUES IAEA LIVRARIA SA DA COSTA f| EDITORA LISBOA II y yvv P* « rfV >' '

Transcript of DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO...

Page 1: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

%

DIOGO DO COUTO

O SOLDADO

PRÁTICO

TEXTO RESTITUÍDO,

PREFACIO E NOTAS PELO

PROF. M. RODRIGUES IAEA

LIVRARIA SA DA COSTA f| EDITORA LISBOA II

■y yv v P* « rfV >' '

Page 2: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e
Page 3: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e
Page 4: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

. -

Page 5: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

■ ■ »

r /

Diogo do Couto

O SOLDADO PRÁTICO

Page 6: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Autores portugueses Autores estrangeiros

Director: Prof. M. RODRIGUES LAPA

• A venda :

SA DE MIRANDA OBRAS COMPLETAS, em 2 volumes

FRANCISCO MANUEL DE MELO CARTAS FAMILIARES, selecção

JOÃO DE BARROS PANEGÍRICOS

TOMAS A. GONZAGA MARÍLIA DE DIRCEU (as três partes)

DESCARTES DISCURSO DO MÉTODO. AS PAIXÕES

DA ALMA, 1 volume DIOGO DO COUTO

O SOLDADO PRATICO A seguir :

FREI LUÍS DE SOUSA ANAIS DE D. JOÃO III

HOMERO ODISSEIA

M.me DE SÉVIGNÉ CARTAS ESCOLHIDAS

Cada volume 12$50 Tiragem especial de 100 exemplares, de

grande íormato 60$00

Peça o plano da colecção e as condições da inscrição que permitem disfrutar dum preço

especial e de facilidades de pagamento •

LIVRARIA SÁ DA COSTA—EDITORA 24, L. do Poço Novo — LISBOA

Page 7: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

.

Page 8: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

=,

LJ&&-

Page 9: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

DEP. LEG.

n>

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Diogo do Couto

O SOLDADO PRÁTICO r

Texto restituído, prefácio e notas

pelo

prof. M. Rodrigues Lapa

l» *

£ 134399

LIVRARIA SÁ DA COSTA —EDITORA

24, L. do Poço Novo LISBOA

Page 10: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

Tiragem especial de 100 exemplares impressos em papel Leorne, da Companhia do Papel do Prada, numerados e rubricados.

N.°

Propriedade da

LIVRARIA SA DA COSTA — Editora

1937 Composto e impresso na secção de «Linotypes» de O Jornal do Comércio e das Colónias'— Rua Dr. Luiz de Almeida e Albuquerque. 5 LISBOA

Page 11: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

PREFÁCIO

Quem percorrer os livros das chancelarias reais vê-se um pouco embaraçado com a presença de dois homens contemporâneos com o mesmíssimo nome — Diogo do Couto. Um, mais velho, vem desde o tempo de D. João III até Filipe II e, depois de ter exercido vários cargos, como almoxarife de Lisboa, guarda da Casa da índia, escrivão da alfândega de Ormuz, etc.,»vamo-lo encon- trar em Tânger como cavaleiro fidalgo. Os registos das chancelarias falam longamente dêste tilustre desconhecido*, enumerando os muitos e vários ofícios de que disfrutou. Ao contrário, para o Diogo do Couto que real- mente nos interessa, o escritor notável dos feitos da Índia, são dum laconismo verdadei- ramente desesperador. Já veremos as razões porquê.

Diogo do Couto nasceu em Lisboa em 154.2. Sua mãi era Isabel Serrão de Calvos;

IX

Page 12: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

seu pai, Gaspar do Couto, andava ao serviço do infante D. Luís, filho de D. Manuel. Natu- ral de Amarante, onde casara, tinha acom- panhado seu amo na expedição de Túnis, em I535> onde se distinguira e fôra armado cava- leiro. Era pois fidalgo de fresquíssimo data e feito um pouco à pressa.

Por uma carta de 5 de Março de 15Q8, dirigida ao vice-rei da índia, vemos com efeito que Couto tinha tf alt a em seu nasci- mento*, quere dizer, não era fidalgo de costado, o que lhe servia de impedimento a entrar numa ordem como a de Cristo. O nosso autor tem presente esta tf alta*, quando, mais tarde, em 1600, desafoga numa carta, farto de ingratidões: tE, se por ua certidão dos Con- tos de como acrescentaram dez réis lhe dão tantos hábitos e tantas tenças e tantos alvarás de fidalgos, não vendo eu na fazenda del-rei nenhuas crecenças, senão tudo mingoantes, ou me a mi hão de fazer mercê ou eu não hei de servir e largar tudo e meter-me num canto, onde ninguém me veja*.

Em 16 de Dezembro de 1607, no final da vida, pranteava com amarga ironia estas coisas dolorosas: *Eu não peço a S. Majes- tade que me faça fidalgo nem que me dê o hábito de Cristo, porque o mundo está tão

x

Page 13: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

cheio deles, que inda hei de ser conhecido por homem que não tem hábito».

Também no Soldado prático emite opi- niões, que visam a demonstrar a superiori- dade dos méritos e serviços pessoais sobre a fidalguia do nascimento (págs. 131-132) e insurge-se contra a perigosa mania do tempo, que define nos seguintes dizeres: thomem que não é fidalgo, não é chamado pera nada» (pág. Ç2). Temos pois em Diogo do Couto o exemplo do servidor, que se vê embaraçado na vida e tolhido de medrar por não ser de casta fidalga. Toda a sua obra do- cumenta o bom senso popular, a rude since- ridade, o amor do trabalho. São êsses os per- gaminhos da sua origem plebeia. E isso, como havemos de ver, dá ao seu labor, tecido de corajosas verdades, um carácter, que o eleva acima da literatura artística e cortesã do seu tempo.

0 jovem Diogo foi criado no palácio do Infante, que aos onze anos o mandou fre- quentar o colégio dos jesuítas de Santo An- tão. Foi seu mestre de latim o famigerado gr.amático da Companhia padre Manuel Ál- vares, e de retórica e de Esfera os conhecidos padres Cipriano Soares e Francisco Rodri- gues, o Manquinho. Depois de se ter embe-

XI

Page 14: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

bido na lição da antiguidade clássica, foi re- ceber lições de filosofia no mosteiro de Bem- fica, por Fr. Bartolomeu dos Mártires, um dos homens mais sábios e virtuosos do seu tempo. Nesse estudo era acompanhado pelo filho do Infante, D. António, mais tarde Prior do Crato.

Entretanto, morre D. Luís, seu amo e protector. Diogo do Couto é transferido para o Paço, onde serve o rei como moço de câ- mara. Sentia-se porém aí como desamparado, naquele meio maior, mais buliçoso, onde a insignificância do seu nascimento se tornava ainda mais reparada. O rapaz de grandes olhos vivos que era Couto, ouvia por vezes nas práticas do Paço falar das coisas do Oriente: a sua imaginação representava-lhe um mundo novo, cheio de estranhos encanta- mentos, onde um rapaz pobre e não fidalgo poderia tentar fortuna. Tendo-lhe falecido o pai, sentindo-se só, abalou para a Índia em Março de 7559, na frota de Pero Vaz de Se- queira. Alistara-se como soldado por três anos. Começou então o seu duro aprendizado da vida.

Não se conhecem bem todos os pormeno- res da sua existência neste tempo; sabemos porém que tomou parte na campanha de

XII

Page 15: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

t

Surrate, em fins de Março de 1560, sob as ordens de D. António de Noronha, que era, ao que parece, aquele herói culto e ardido, a quem Camões endereçou as célebres oitavas Quem pode ser no mundo tão quieto. Em 1563 encontramo-lo em Baroche. Depois, à míngua de notícias, podemos conjecturar que a sua vida foi aquela áspera vida de soldado, que tão impressivamente nos conta no seu Soldado prático (pág. 214.-7). Conhecido por homem culto, teria ainda sido encarregado de algumas missões, naquela política compli- cada do Oriente.

Em 1368 já o vemos na expedição de D. Antão de Noronha contra Mangalore. A cidade foi tomada de assalto, e a visão das enormes cutiladas que então se deram perdu- rou longamente na imaginação de Couto: thouve golpe que cortou um mouro pelo om- bro até à cinta, e outros que cortaram pernas cérceas e que abriram as entranhas a muitos» — diz-nos êle na Década VIII.

Quando o viso-rei D. Antão partiu para o reino, em 2 de fevereiro de 156Ç, Couto acompanhou-o. Foram invernar a Moçambi- que. Aí encontrou Couto, segundo nos refere em um manuscrito da Década VIII, o seu tespecial amigo» Luís de Camões, de quem

XIII

Page 16: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

fôra contemporâneo nos estudos em Portu- gal e ao depois, na Índia, companheiro de casa e mesa. Luís de Camões, que viera da China e naufragara na costa de Sião, encon- trava-se reduzido à miséria. O governador da capitania, Pedro Barreto Rolim, quis favo- recer o poeta; mas o génio estranho de Ca- mões, a sua unatureza terrível> tornou-se- -Ihe insuportável; resolveu abandoná-lo. O grande incompreendido via-se pois obrigado a tviver de esmolas de algumas pessoas*, e calcula-se o alvoroço com que teria recebido o amigo e companheiro, a quem saudou num soneto, por acaso medíocre, revelador da sua triste situação. Passaram os dois esse inverno tratando de poesia: Camões, retocando o poema, e dando início ao seu Parnaso; Couto, fazendo, a seu pedido, o comentário histórico dos Lusíadas, que levou ao 4..0 ou j.° cantos, e de que foi depois interrompido pela sua nomeação de cronista da Índia.

Em novembro de ijóç partiu Couto para Portugal na nau Santa Clara, vindo com êle Luís de Camões. Chegado a Cascais em abril de 1570, com peste em Lisboa, Couto foi ter com o rei a Almeirim, a dar-lhe conta dos sucessos e negócios da Índia. Pouco tempo se demorou na corte, a que o seu tempera-

XIV

Page 17: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

mento era radicalmente avêsso e onde via já nitidamente o progresso do mal, que havia de dar com Portugal tde pernas acima*, para empregar uma sua expressão. Em 1571 dei- xou novamente Lisboa, com rumo à Índia, na armada do vice-rei D. António de Noro- nha. Fez com êle os preparativos para irem socorrer a fortaleza de Chalé, sitiada pelos mouros e defendida por D. Jorge de Castro. Chegaram tarde: o velho fidalgo entregara a praça. O soldado assistia mais tarde, em Gôa, ao infamante suplício dêsse velho de 80 anos, que afinal não era tão culpado como parecia.

Diogo do Couto estava agora instalado em Gôa, depois de ter casado com Luísa de Melo, irmã de Frei Adeodato da Trindade, que passou a ser uma espécie de agente seu e seu procurador em Lisboa para todos os seus negócios, inclusivamente para a impres- são dos seus livros.

Era empregado nos armazéns de manti- mentos, cargo importante que o obrigava a estar em contacto com a gente de negócios. /Is suas relações com os vice-reis flutuavam à medida das verdades que dizia e da paciên- cia com que o liam e ouviam. Ele próprio dizia que «antes queria ser acanhado que

xv

Page 18: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

aborrecido» e não era thomem que se an- dasse oferecendo e importunando os vice- -reis».

Claro que com um ou outro governador mantinha boas relações, por exemplo com D. Duarte de Meneses, homem culto, que fa- leceu em 1588 e a quem Couto deveria mui- tas finezas. O mesmo sucedeu com o seu amigo D. Francisco da Gama, bisneto do descobridor, a quem escreveu algumas curio- sas cartas, que não teem sido devidamente utilizadas pelos seus biógrafos.

A êssse tempo, não só pelos bons serviços que prestara na índia, como soldado e fun- cionário zeloso e honesto, Diogo do Couto era conhecido no reino pelo incompleto comentário histórico de Os Lusíadas, que Poucos conheceriam, pelas suas poesias por- tuguesas, latinas e italianas e possivelmente ainda por uma obra de envergadura, em que analisava com desenfado e independência os vários problemas da governação da índia e a que dera o título de Soldado prático. Era ainda uma primeira redacção, que Diogo do Couto havia mais tarde de desenvolver e en- cher de mais literatura, mas que já dava a medida da sua suficiência e profundo conhe- cimento das matérias indianas.

XVI

Page 19: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

Mas, por uma coisa particularmente se recomendava ao monarca. No intuito de o lisonjear e de se jazer notado, tinha dado comêço à Década X da Ásia, que principiava justamente desde que o soberano espanhol tinha sido aclamado na Índia rei de Portugal. Em 15 de Novembro de 7595 anunciava ao rei a terminação do seu primeiro trabalho histórico. Evidentemente Diogo do Couto preparava-se de longe, carreando documen- tos, para suceder a João de Barros na con- tinuação da História do Oriente. Era uma sucessão pesada. Filipe II de Espanha, que pressentia em Diogo do Couto um bom e activo funcionário, encarregou-o por carta de 28 de fevereiro de 7595 de organizar o Arquivo de Gôa e continuar a Crónica da Índia, interrompida pelo falecimento de Bar- ros em 1570.

O novo guarda-mór do Tombo de Gôa, com o natural entusiasmo do seu honroso cargo, meteu logo ombros à tarefa; mas encontrou as dificuldades burocráticas do costume e a própria má-vontade das altas esferas, renitentes na cedência dos documen- tos. Com a sua habitual tenacidade Diogo do Couto foi arrumando toda aquela papelada. A 20 de novembro de 7595 dava conta ao

XVII

Page 20: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

rei dos seus trabalhos e pedia-lhe que man- dasse para o Arquivo as Décadas de Barros e a História do descobrimento e da conquista da índia de Castanheda, porque «iam aca- bando esses volumes e na índia já os não havian.

O duplo emprego de guarda-mór e cro- nista era uma tarefa muito absorvente e até muito arriscada. O trabalho de passar certi- dões, sobre enfadar não pouco, criava cons- tantes conflitos e inimizades: todos queriam parecer o que não eram, e Couto era um homem duro e honesto, preocupado de dar o seu a seu dono. Por isso, o gosto de escrever a história era envenenado por <muitos des- gostos que tinha com soldados e capitães, por fazer verdade, como S. Majestade quere, e desterrar as falsidades, abusos e peHuxida- des das certidões e estromentos passados».

Se o ofício de tabelião das escrituras lhe criava muitos inimigos, o de cronista dos fei- tos do Oriente não menos, pela surpresa que causou a linha austera da sua história, onde se notava o só empenho da informação e da verdade. A Década IV, em que narrava se- veramente os vergonhosos incidentes da briga entre Pero Mascarenhas e Lopo Vaz de Sam- paio para a governação da índia, deveriam

XVIII

Page 21: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

ter desagradado e muitos homens da côrte. Começou pois a urdir-se uma conspiração surda contra êsse vilão incomodativo, que lá de Gôa cuspia vergonhas e desaires sôbre fidalgos portugueses. O resultado da conjura não tardou a revelar-se. Em 5 de março de

1598- escrevia Filipe II uma carta ao vice-rei em que lhe dizia textualmente: «£ porque sou informado que o dito Diogo do Couto não é tão suficiente como o entendi pela pri- meira informação que dele me foi dada e que tem falta em seu nascimento, o que tudo de- veis já ter sabido, depois de chegardes à Ín- dia, pelo que sôbre esta matéria vos escrevi nas vias do ano passado, advertir-vos-eis nes- tes particulares, que praticareis com o arce- bispo de Gôa. E achando ambos que não convém entregar-se nem Casa do Tombo nem a escritura da História, ou pelo menos algua destas duas cousas ao dito Diogo do Couto, ireis dissimulando com êle no melhor modo • que vos parecer até me avisardes e vos man- dar o que houver por meu serviço>.

Duas circunstâncias salvariam Diogo do Couto de ser apeado e demitido dos seus car- gos. Em primeiro lugar, as negridões que lan- çava sôbre os feitos de alguns fidalgos iam lisonjear o bando contrário; depois, por feli-

XIX

Page 22: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

cidade, estava agora no Governo da Índia um bisneto do descobridor, D. Francisco da Gama, que era seu amigo e teria desfeito aquela tormenta que se levantou sobre a ca- beça do pobre historiador. Ainda bem que tinha sido nomeado escrivão da alfândega de Diu, em 28 de janeiro dêsse ano de 15Q8. Se tardasse um pouco, é provável que lhe fôsse negado êsse benefício. D. Francisco da Gama continuou a sua protecção, na índia e no reino, e a êle dirige Couto a mór parte das suas cartas, no último quartel da vida, sal- teada de cuidados.

Êsses cuidados cifram-se nisto: o esforço que fazia para ganhar honestamente a vida, dada a sua canseira e as despesas que lhe acarretava a impressão das Décadas, e a má- goa com que aos seus olhos de soldado e historiador se lhe representava a vergonhosa decadência dos portugueses no Oriente, per- seguidos incansàvelmente por ingleses e ho- landeses. i4s suas cartas reflectem uma ver- dadeira obsessão a êsse respeito.

Como guarda-mór e cronista, recebia Couto ço.ooo réis de ordenado anual, o que era evidentemente pouquíssimo e indigno da rua categoria. Conseguiu, após solicitações, que lhe aumentassem a ninharia de 30.000

xx

Page 23: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

réis, cousa que, como dizia, a se não dava nem a um escrivão dos Contos». Pede ao rei que lhe acrescente mais 80.000 réis, ihavendo respeito ao muito trabalho que tinha no negó- cio de que o encarregara ao passar as certi- dões dos serviços dos homens, em que mere- cia mais que por tudo o em que servia, pelo muito que sofria aos soldados em guardar verdade e justiça e não lhes dar o que não era seu». A inutilidade das suas queixas exas- perava-o e, revoltado das ingratidões a que era votado, prometia queimar todos os seus papéis e lembranças, para que outrem se não lograsse do suor do seu trabalho e recebesse

• as mercês, que lhe tinham recusado. Na sua sepultura mandaria inscrever o letreiro de Fabrício: Ingrata pátria, não possuirás meus ossos. ê

A impressão das Décadas também preo- cupava Couto, porque era feita à sua custa e a despesa tinha de ser tirada do seu parco ordenado. Lembrou-se de pedir que lhe fôsse dado o título de conselheiro do rei, honra que pertencia ao guarda-mór do Tombo do reino, com o qual estava equipa- rado, spar a assim ficarem os seus livros mais acreditados com o título sDo Conselho de Sua Majestade>. Além disso, afim de juntar di-

XXI

Page 24: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

nheiro para a impressão, pedia em 1608 que os soldados lhe pudessem comprar os livros, descontando-se-lhes automaticamente no soldo. Animá-lo-ia a mandar imprimir os outros e andariam as Décadas espalhadas Pelas fustas das armadas, incitando os sol- dados a imitarem os heróis antigos. £ que a publicação das Décadas estava sendo um negócio ruinoso para o escritor. De 300 volu- mes que seu cunhado lhe mandara, apenas vendera 30 e dera mais de quarenta. Presen- teara os capitães das fortalezas e o arcebispo de Gôa. E — acrescenta ironicamente o ve- lho historiador — como retribuição nem se- quer recebera uma caixa de marmelada! Para que se visse quão ruim era o ofício de historiador naquele tempo! — rematava o po- bre intelectual de 1608.

Tudo lhe recusaram. E então Diogo do Couto chama a atenção dos dirigentes para a Índia, que se perdia. Historiador dos seus feitos, o velho escritor considerava-a como uma espécie de coisa sua. A bem dizer, as suas fortunas corriam paralelas: tconsola-me que, pois a Índia padece tantos naufrágios e tribulações, que é justo que o seu cronista corra com ela uma mesma fortuna». O apêlo das suas cartas é aflitivo e patético. Em de-

XXII

Page 25: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

zembro de 1608, exclamava:—Enfim, já o nome português é acabado! Os indianos, em vez de frangues, nome que antigamente da- vam aos portugueses, passavam a chamar- -Ihes frângãos: «assi o somos, tão tristes e tão molhados que todos nos ameaçam!».

Foi neste estado de espírito, nesta rabu- gem patriótica, agravada de reumatismo go- toso, que a morte o veio buscar em 10 de dezembro de 1616. Em 6 de janeiro desse ano, escrevera ainda ao seu amigo D. Fran- cisco da Gama: tFico velho, e, inda que assi, todavia espero em Deus que hei de ficar de fora daquela regra, tão geral neste Estado, que é: todo o homem que nêle enve- lhecer não escaca ou de pobre ou de deson- rado. Pobre sou, mas muito honrado espero em Deus de acabar, porque me não pode tirar o mundo deixar nêle impressos seis ou sete livros, tão acreditados pela Europa que, se não fôra tão humilde, pudera-me tocar uma pequena de altivez».

* * *

0 singular destino dos seus livros é das coisas mais extraordinárias da literatura por- tuguesa. Tudo se conjurou para o prejudicar;

XXIII

Page 26: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

mas o homem era de uma rara tenacidade e conseguiu, em parte, salvar a sua obra. Com- pletas, temos hoje as Décadas 4.*, 5.*, 6.*, 7.* e 10.\ A 5.* apresenta esta particularidade significativa: a aprovação do Santo Ofício e licença para imprimir datam de abril e maio de 1602; a impressão só se efectuava dez anos depois, em 1612, prova de que a cen- sura do Paço achou nela que debicar.

Quando se acabou a impressão da 6A, ar- deu a casa do impressor e foram-se no incên- dio quási todos os volumes; escaparam uns poucos, que estavam já depositados no con- vento de S. Agostinho de Lisboa. Com res- peito à 7.*, que Couto mandara para o reino na nau S. Tiago, da frota de 1601, perdeu-se com a tomada do navio pelos ingleses, pelo que o escritor a teve de mandar reformada, em 1603.

Com os dois manuscritos das Décadas 8A e çA sucedeu caso mais grave. Diogo do Couto tinha-as prontas e preparava-se para as mandar para Portugal, quando alguém, a coberto da sua velhice e de uma doença que então o assaltou, lhas furtou de sua casa. O historiador, em carta ao rei, atribui a mal- dade ao desejo de se locupletar com o suor alheio; mas o móbil do crime poderia ter sido

XXIV

Page 27: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

outro: alguém teria empenho em ocultar as verdades, sonegando os manuscritos do velho escritor. No que se enganou, pelo menos em parte. Uma vez restabelecido, Couto, com a ajuda da memória e de alguns apontamentos que lhe tinham ficado, deitou mãos ao tra- balho e fez um resumo das duas Décadas, que mandou para Portugal em janeiro de IÓIÓ.

A Década XI não lhe foi roubada em Gôa; mas, enviada para o reino, levou tam- bém sumiço. Dela apenas restam capítulos, com que formaram uma obra à parte: a Vida de D. Paulo de Lima Pereira, aproveitando Parte da 10/ e parte da n* Décadas. Da 12.* restam apenas cinco livros, que foram editados em 164.5 em Paris por Manuel Fer- nandes de Vila-Real. Claro que, vasculhando em arquivos e bibliotecas poder-se-ia hoje, se não completar, pelo menos melhorar em qua- lidade e quantidade a obra do infatigável tra- balhador. Ainda ninguém pensou nisso. É dívida em aberto, de inegável alcance na- cional.

Com o Soldado prático, que escreveu ainda em tempo de D. Sebastião, também sucedeu um caso extraordinário. Dêmos so- bre isso a palavra ao ilustrado chantre de

XXV

Page 28: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

Évora, Manuel Severim de Faria, que man- teve cordiais relações epistolares com Couto e nos deu uma valiosa biografia do escritor: tPorém, antes de aperfeiçor esta obra lhe foi furtado o original dela e, sem mais o poder haver às mãos, chegou a êste reino sem nome do autor, onde se trasladaram algumas có- pias, que foram tidas em grande estima dos que as puderam haver. Sendo disto adver- tido no ano de 1610 por um amigo seu, tor- nou a reformar esta obra ou quási fazê-la de novo... Esta obra dedicou ao marquês de Alenquer e o original está na livraria de Ma- nuel Severim de Faria, chantre de Évora, a quem êle a mandou». (Discursos vários polí- ticos, fl. 155-156).

Tal é, em suma, a história dessa obra considerável, presa cobiçada de ladrões e so- negadores. Alguns dos elementos que a com- punham, o seu livro de Poesias, o Epílogo da História da Índia, o Comentário dos Lusía- das, perder-se-íam, talvez para sempre. Um arguto crítico da literatura portuguesa, o sr. Aubrey Bell, referindo-se a esta «fatalidade> que pesou sobre o labor literário de Couto, exprime a opinião de que esses contratempos foram de certo modo benéficos, porque obri- garam o escritor a ser mais pessoal e espon-

XXVI

Page 29: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

tâneo, embora menos ordenado. Este juízo, que poderá ser verdadeiro no conjunto, não é aplicável contudo, ao Soldado prático. Aqui Diogo do Couto, para frustrar as esperanças dos que se tinham apropriado do original, quiz fazer mais e melhor.

0 manuscrito primitivo, que, por felici- dade nos foi conservado e anda impresso, tinha um carácter e disposição predominan- temente burocráticos. Os dois únicos interlo- cutores, o vice-rei de abalada para a índia e o soldado veterano, falam em linguagem chã, sem citações de autores antigos, mistu- rando nos seus dizeres pitorescos rifões popu- lares. O diálogo tem vivacidade, porque a personagem do soldado não obscurece total- mente a do vice-rei. Na redacção posterior, que é verdadeiramente uma obra nova, Couto introduziu três personagens: o soldado, velho de 6o anos, de volta da índia a tratar de seus requerimentos, o secretário do rei e o fidalgo, que fôra em tempos governador da índia. A modificação não aumentou fôrça dramática à narrativa; antes pelo contrário: o soldado ocupa agora totalmente a cena e o papel dos comparsas é secundaríssimo. O texto ficou sobrecarregado de erudição, por vezes abor- recível. Mas a experiência dos negócios, as

XXVII

Page 30: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

amarguras pessoais, a visão pavorosa da de- cadência dão um calor, uma violência paté- tica à narração, que o primeiro texto não conhecia.

O Soldado prático é dos livros mais hon- rados da literatura portuguesa. Deverá ser lido depois de Os Lusíadas. Os dois amigos, Camões e Couto, fizeram duas obras que se completam: uma canta as glórias antigas da pátria, num frenético esquecimento do pre- sente; outra analisa impiedosamente as ver- gonhas dêsse presente e mostra-nos o país e o Império afundados num tremedal de infâ- mias: por tôda a parte a ambição da riqueza, o amor do luxo, a concussão e o roubo. Tudo estava pôdre e afistulado! — exclama o aus- tero escritor nesse impressionantíssimo do- cumento da crise. Note-se que a tremenda decadência da Índia era apenas o reflexo da derrocada material e moral da nação. 0 pró- prio soldado tem ocasião de dizer que as coi- sas não corriam mais puras em Portugal (pág. 12, l. 4-5); e na primeira redacção ainda é mais explícito, quando diz: tvai a cobiça neste reino de maneira que não escreve de cá outra cousa à índia o pai aos filhos, o irmão ao irmão, o amigo ao amigo senão: — Fazei por trazer dinheiro, que o mais é

XXVIII

Page 31: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

vento!* (pág. 95 da ed. de 1790). Enfim, Couto usa esta imagem admirável, para ex- primir aquela corrida às riquezas: o funcio- nário cixnl ou militar ia à Índia como quem ia vindimar sua vinha.

Diogo do Couto não se contenta em apon- tar o mal, com todos os seus pormenores e com o profundo conhecimento do homem que tcursou os negócios»; indica os respon- sáveis da espantosa decadência do Império; e no primeiro lugar da escala encontra natu- ralmente o rei. Não se conhece em toda a literatura portuguesa texto algum, em que com tanta liberdade e nobre coragem se ouse atacar tão cara à cara o rei. Naturalmente o escritor usa de certa prudência: os ataques ao soberano eram disfarçados pelo facto de Couto pôr o diálogo em tempos de D. Sebas- tião. Para dourar a pílula tem mesmo o cui- dado de fazer o elogio de Filipe II, não por bôca do Soldado mas pela do Fidalgo e do Despachador (pág. 226). Todavia ninguém tinha ilusões sôbre isso: a verdade atingia em cheio os próprios Filipes, que por isso mesmo, avisados por alguém das audácias do plebeu, se não desentranhariam em mercês para com êle.

De resto, o próprio Couto, já no final da

XXIX

Page 32: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

vida se descobriu, acrescentando ao texto aquela alusão à derrota de Alcácer-Quibir (pág. 14.Ç, l. 4.-8), que origina um curioso anacronismo, colocando provàvelmente o diá- logo no tempo do primeiro Filipe. Desespe- rado com o desprezo sistemático de que estava sendo vítima, sem filhos, {que lhe importa- vam agora as iras do próprio rei? A sua preo- cupação suprema era dizer a verdade; di-la-ia custasse o que custasse.

O amor da verdade é em Couto uma es- pécie de vício. Há homens assim; por mais que lhes façam, não cessam de dizê-la; faz parte da sua natural respiração, é instru- tivo, a êsse propósito, o que nos diz sobre um honrado historiador, que o precedeu no relato dos feitos da índia, Fernão Lopes de Casta- nheda: sÊste homem andou na índia quási dez anos, correndo a mór parte dela, até che- gar a Maluco, escrevendo as cousas daquele tempo mui diligentemente, que recopilou em dez livros, acabando o seu décimo com o governador D. João de Castro. Êste volume nos disseram algúas pessoas dignas de fé que el-rei D. João mandara recolher a requeri- mento de alguns fidalgos, que se acharam naquele raro e espantoso cerco, porque falava nêle verdades. A êstes e a outros riscos se

XXX

Page 33: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

põem os escritores que as escrevem, enquanto vivem os homem de que o fazem; e por isso com menor receio escrevemos aos cousas pas- sadas (como el-rei nos mandou) que as pre- sentes, que também temos escrito; e assi em uas com em outras nem por respeitos nem por temor deixaremos de as falar. E, posto que também em algum tempo se mande re- colher algum volume dos nossos, outro virá em que se elas manifestem> fDécada lV. liv. V, cap. i.). Era assim o homem; assim é o escritor, cidadão enérgico, que não receia pelo que diz e teima sempre em dizer o que sente. A sua dura vida de soldado ensinou-lhe a

* encarar a verdade com a mesma indiferente serenidade com que se encara a morte. De aí, * o grande valor da sua obra.

• *

♦ *

A nossa edição tomou por base o manus- crito n." 463 da Biblioteca Nacional de Lis- boa. Tem a garantia de ser revisto (até certa alturçL) e parcialmente escrito pelo próprio Couto. O texto é agora restituído, com grande diferença da única edição de 1790, dirigida por António Caetano do Amaral, que desi-

.gnamos pela letra B, e que aproveitámos de-

XXXI

Page 34: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

vidamente. Infelizmente não pudemos incluir a i." redacção, que, como dissemos, é uma obra diferente. Note-se que ambas as redac- ções teem isto de comum: não trazerem de- pois de certa altura epígrafe nas cenas. Não ousámos forjar títulos nossos.

Conservou-se à linguagem o seu sabor popular, apenas com as diferenças sinaladas em nota final: o copista nem sempre era cui- dadoso, e Couto, com setenta anos, nem sem- pre tinha pachorra de emendar as faltas. É esse um trabalho delicado, que sempre nos merece muita atenção. Como princípio fun- damental, evitamos a chamada uniformiza- ção do texto, que equivale sempre para os autores clássicos mais antigos a uma mons- truosa deturpação da linguagem. Cada autor é tratado de per si, não perdendo contudo de vista certas normas gerais, a que obedecia a evolução do idioma. O texto que apresenta- mos é pois, em nossa consciência, o verda- deiro texto de Couto: traz a sua marca popu- lar, a sua rudeza, a sua sinceridade, o tom vivo e por vezes não gramatical da conversa- ção. É a êsse respeito um documento de pri- meira ordem para a história da língua.

RODRIGUES LAPA

XXXII

Page 35: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

ê

CARTA DE DIOGO DO COUTO

ao Conde de Salinas e Ribadeo, Duque de

Franca-Vila, do Conselho Supremo do Estado

de S. Majestade

5 Aquele famoso, eloquente capitão Alcibíades ate- niense parece que, por querer reprender e vitupe- rar os Jogos Silenos, que representavam as figuras torpes de Baco, ordenou outros jogos, a que cha- maram depois Silenos de Alcibíades, nos quais,

io debaixo de figuras grosseiras e pouco polidas, se encerravam outras obras de muito artifício, dou- trina e invenção: cousa que era muito estimada en-

* tre os gregos. Ass» êste prove soldado, ou sileno, que se vai

IS lançar aos pés de V. Excelência em figura tão rús- tica, mal ordenada, e que parece avorrecerá a quem o ver. Abata-o V. Excelência sem o julgar polo trajo e achará debaixo daquela rustiqueza muita doutrina

2-3, Duque de França Villa em A, Vila-Franca em B. io, debaxo. É a grafia usual do manuscrito (A),

que representa uma pronúncia vulgar. Vejam-se outros exemplos: paxão, embaxador, etc.

12, envenção em A. É geralmente a grafia do ma- nuscrito. O copista, e pode ser que o mesmo Couto, mu- dava por via de regra o prefixo in em en, por exemplo: encorrer. enterromper, enteresse, mantendo contudo in. quando negativo. São sobretudo modos correntes de falar.

I

Page 36: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

política, moral, muitos exemplos, muitas verdades e muitas cousas, que, se se remediarem, farão úa república, como esta de que trata, tão próspera e tão felice, como foi aquela de Atenas, que com êste arti-

5 fício foi o seu Alcibíades reformando e ordenando, até a pôr em suma perfeição.

Tudo o que V. Excelência quiser saber dele, ouça-o, que êle o dirá sem importunação, sem adu- lação e sem paixão; e eu fico que se satisfaça dele,

io porque ouvirá cousas, que pode ser não ouvisse da bôca doutro soldado; e não quer outra satisfação maior do trabalho, que leva nesta jornada, que ser ouvido de V. Excelência, porque então cuidará que podem ter remédio os males de que se queixa.

15 Nosso Senhor a vida de V. Excelência conserve e acrecente por muitos anos para remédio dêste sol- dado e dos outros. Gôa, 2 de Janeiro de 1612.

Diogo do Couto

9, fico: estou seguro, convencido.

2

Page 37: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

DIALOGO DO SOLDADO PRÁTICO

QUE TRATA DOS ENGANOS E DESENGANOS DA fNDIA

PRIMEIRA PARTE

ARGUMENTO

Estando um fidalgo, que fôra governador da India por sucessão, em casa de um despachador de Portugal, entrou um soldado velho da India, que ía a dar sua petição e papéis; e entre todos

três se passou o diálogo seguinte:

CENA I

Soldado — Ja'gora meus negócios não podem deixar de ter muito bom fim, pois tiveram tão bom princípio, como êste, de achar a Vossa Mercê neste tempo e nesta casa; de quem, como testemunha de

5 meus serviços, me espero agora valer para ser co- nhecido do senhor secretário, porque sou tão só neste reino que não tenho cousa a que me possa arrimar que a êstes papéis que aqui trago dos muitos anos e muitos serviços que nas partes da índia te-

i e segs. A cópia é feita pelo próprio Diogo do Couto. 8, senão a estes papéis no texto impresso pela Aca-

demia das Ciências (B).

3

Page 38: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

nho feitos, ornamentados e esmaltados muitas vezes com o sangue dêste corpo, que espargi pela lei e pelo rei, de que me não tenho arrependido; por- que, quando aqui me faltar o galardão de minhas

5 obras, lá em cima está aquele, que com mão libe- ralíssima satisfaz tudo melhor que os reis da terra.

Fidalgo — Folgo de vos ver neste reino e tirado daquela confusão de Babel; e sei de certo que sereis muito bem respondido e despachado por vossa ida-

10 de e serviços, sem outra aderência e favor; porque, depois que el-rei, nosso senhor, elegeu a Sua Mercê para juiz destas satisfações, não tendes necessidade de mais que de apresentar vossos papéis e serviços, porque o tempo que se despachava por favores e

15 aderência é passado: porque, como o coração dos reis está nas mãos de Deus, ordenou êle agora, para remédio dos desemparados, fazerem tão boa elei- ção, como foi esta, com que nem meus favores são necessários, nem vossos serviços deixarão de ser mui

20 bem satisfeitos. Mas, já que viestês a êste tempo, sentai-vos: sereis

testemunha das cousas que da índia tratávamos, da qual vós poios muitos anos que dela tendes, - conhecimento dos homens e do tempo, bem sei que

25 podereis dar muito boa rezão de tudo com aquela liberdade e desengano de soldado veterano, que nem recea mal pelo que disser nem espera bens pelo que lisonjar.

a, lei: religião. 8. confusão de Babel: a Índia, ou, mais propria-

mente, Gôa, a capital do império. 10, aderência: parcialidade, favoritismo.

4 I

Page 39: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Sold. — Beijo as mãos a V. M. por tamanha honra e pela opinião que tem de mim: já'gora hei por bem empregados todos os trabalhos da viage e dos anos de minha perigrinação, pois mereci ser

5 admitido a esta conversação. Despachador — Té'gora estive calado, por não

interromper S. M., e por não tirar os olhos de vós, em cujas cans, idade e mais cousas, que pela fiso- nomia em vós estive notando, me parecestes dife-

io rente de muitos outros soldados que diante de mim trazem requerimento, tão outros da vossa quieta- ção e maneira, que lhes parece que a hora que se lhe tarda em acudir a seus negócios, já lhe roubam sua honra e merecimentos; e assim representam suas

15 cousas com aquele ímpeto e furor, como se estive- ram pelejando com os imigos; e eu, em vez de os ouvir e responder, estou com os olhos buscando al- gum lugar onde me esconda de suas cóloras.

Sold. — Nunca vi cousa mais para se lhe poder *0 relevar que essa (quando êles são cheos de mere-

cimentos, digo), porque andaram té'gora tão des, favorecidos do tempo e atropelados dos despachado- des que se não sabiam determinar; porque assaz de

* bem remediado parte um soldado da Índia, que 25 pode sustentar-se nesta côrte de uas naus a outras,

para se poder tornar; e se virem que lhe respondem

x. No ms. da Biblioteca Nacional de Lisboa (A) o ditongo ei anda geralmente reduzido a ê: bejo, dexo. etc.

9-10, deferente em A. £ a grafia mais usual. Con- tudo, também aparece a forma diferente.

ir, tão outros à vossa quietação em A. 18, cóloras: cóleras, iras. Forma que perdurou até

ao século XVIII.

5

Page 40: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

devagar, não sente mór desesperação que lembrar- -lhe que está em terra onde não tem remédio; e que o que ajuntou por seus amigos para vir requerer, parte se lhe foi na Casa da índia, pelos excessos dos

5 contratadores, que até das camisas que levam ves- tidas lhe tomam dereitos; sendo tantos anos isto tão favorável aos soldados, que nunca lhe buliram em seus caixões, em que traziam um quintal de cra- vo, dous de canela, e outras pouquidades; e parte

io gastou em seu requerimento; e que não vê donde se possa valer, e que ou será forçado morrer de fome neste reino, ou deixar tudo e tornar-se para a ín- dia, sem ser respondido: o que se tem por tamanha infâmia, que o prove a que isto acontece não ousa

15 de aparecer ante aqueles do seu tempo, porque ou hão que o tiveram para pouco, ou que lhe não acha- ram merecimentos para o despacharem; o que tudo fica à conta do despachador, que lhe dilatou seu ne- gócio, do que entendo deve de dar larga conta a

20 Deus, assi de não dar o seu a seu dono a tempo, como da honra que lhe roubou, na infâmia em que incorreu em se tornar, afrontado e sem despacho; e „ não digo isto para os desculpar do modo com que se hão, senão pelas misérias e desaventuras, que a

25 muitos dêstes vi passar. Desp. — Folgo muito de vos ouvir falar neste

negócio; e V. M. tenha ponto no que tratávamos, que eu determino de desculpar os homens que té' gora estiveram neste lugar; e pois entramos nesta

30 matéria, folgaria de discorrermos por ela um pouco,

11, forçado morrer em A e B. Note-se a falta da preposição a.

6

Page 41: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

porque me servirá o que se tratar de aviso para muitas cousas. E saiam-se esses moços para fora, porque, como muitas destas hei de apontar em Con- selho, não é bem que andem primeiro pelas bocas

5 dos rapazes. Sold. — Nunca cousa me caiu mais a pêlo que

essa, porque toda esta noite estive cuidando no pouco segrêdo que na India se tem, assi nos conse- lhos árduos da guerra, como nos da justiça e fazen-

10 da, porque quási se não acabam de resumir, quando já anda pelas praças o segrêdo dêles, que não sinto cousa na vida em que mais vá; e inda o feito está em casa do juiz por publicar, já se sabe quem tem a sentença; e inda digo mais: que não sai da Rela-

15 ção, quando há desembargador que dá sinal ao seu moço para ir pedir alvíçaras à parte, o que eu vi alguas vezes, e o tenho polo maior modo de injustiça da vida.

q Desp. — Valha-me Deus ! Sabeis quanto nisso 20 vai; que vai tudo, principalmente nas cousas da

guerra: porque não queria o imigo mais que saber o desenho de seu imigo, porque só nisso está a vi- tória. Onde isso há, não pode haver cousa boa.

Sold. — Inda mal porque é tanto assi! e por- 25 que o Samorim, Idalcão, Melique e outros sabem

logo o que se determina no Conselho e o regimento

12, em que mais vá: que tenha maior importância. 22, desenho: desígnio, plano. 25, Samorim, que significa «rei do mar», era o título

que se dava aos reis de Calecut; Idalcão o nome que se dava aos reis mouros da dinastia de Bijapur ou Bala- gate; emíim, Melique é o título que se dava aos pequenos reis muçulmanos da Índia.

7

Page 42: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que leva a armada que vai ao Malavar e a outras partes, por que disso tem resultado infinitos males; e porque em Dabul e Surrate se soube logo da arma- da que vai esperar as naus, assi à saída como à en-

5 trada, que vem e vão para Meca; por que, se logo as podem lançar fora, o fazem, e se não, recolhem- -nas e envasam-nas, e nós ficamos com os gastos fei- tos e com o crédito perdido.

E o que é muito gracioso: que alguns fidalgos do io Conselho tomam por passatempo zombarem uns dos

outros: «Foão disse bem, mas disse mal Foão»; em- baraça-se o outro, que sempre se vai pelo parecer do que votou diante dêle: de sorte que se trazem ao terreiro os defeitos dos homens, não lhe lembrando

15 quanto maior é descobrir o que se ali passa. Leam-se os filósofos antigos, verão em quanto es-

timavam o segrêdo; que a mór pena que os atenien- ses tinham em suas leis era a que se dava ao que descobria o segrêdo; e em tanto se guardava que,

20 tendo um tempo guerra com Filipo de Macedónia, tomaram acaso flas cartas, que êle mandava a sua mulher Olímpias, e lhas tomaram a mandar cer- radas e sem tocar nelas, podendo pela ventura achar dentro alguns avisos de que se pudessem

2j) aproveitar; mas tinham em muito mais a guarda do segrêdo que a mesma vitória.

Diodoro Sículo escreve que entre os egípcios era cousa crime descobrir o segrêdo; e traz por exem-

2, 5, por que: pelo que. Construção freqflente em Couto.

7, envasam-nas: metem-nas na vasa para as abri- gar dos ataques.

11, Foão: Fulano. 28, cousa crime: caso criminoso; causa crime em B.'

8

Page 43: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

pio um sacerdote, que viu outro com ua virgem no templo de Isis, que logo descobriu, tendo-se fiado dêle; e, presos todos os concubinários, morreram pela lei, e o que descobriu o segrêdo foi desterrado

5 para sempre. Anaxilo, capitão ateniense, sendo ca- tivo dos lacedemónios, foi metido a tormento, para que dissesse o que el-rei Agesilau tinha determinado; ao que respondeu que bem o podiam fazer pedaços, mas que os segredos do seu rei nunca descobriria.

10 Na guarda dos segredos eram os atenienses tão puros, que conta Plutarco no livro De Exilio que, passando um egípcio por ua rua de Atenas, com não sei quê debaixo da capa, lhe perguntara um ate- niense que era o que levava. Ao que lhe respondeu:

15 — És ateniense e perguntas isso ? Não vês tu que por isso o levo coberto, polo tu não saberes ? Gran- de zelador dêste segredo foi Demóstenes, ao qual perguntando-lhe um seu amigo porque lhe cheirava

• mal o bafo, respondeu: que porque no estômago lhe 20 apodreceram grande cantidade de segredos. «

O filósofo Pitágoras, os primeiros dous anos en- sinava a seus discípulos a ter silêncio, por se costu-

• marem a guardar segrêdo, e afirmava não haver mais alta filosofia que a bondade do silêncio e guar-

25 da do segrêdo. Conta-se que, chegando o divino Platão à porta de Dionísio Siracusano, perguntara a Brias, seu camareiro, o que fazia". E êle respon- dera que estava pintando. Soube-o el-rei, mandou- -lhe logo cortar a cabeça, porque descobriu o se-

50 grêdo do que fazia.

2. Entenda-se: «tendo-se o outro, o profanador, fiado dêle.

16, polo tu não saberes: para o tu não saberes.

9

Page 44: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

O filósofo Filípides, quando se determinou a ser- vir a el-rei Lisímaco foi com condição que lhe não descobriria segredo algum, porque entendia quanto ia na guarda dêle, pelo haver por cousa divina. E

5 assi é tanto, que importa todo o nosso remédio, porque no segrêdo da confissão pôs Deus Nosso Senhor todos os tesouros e riquezas da glória; e só por êste segrêdo podemos subir a ver aqueloutros maiores, que viu o glorioso Paulo, que nem olhos

io viram, nem orelhas ouviram, nem nos corações dos homens se imaginaram.

Já'gora na índia nem inda neste vosso Portugal há já discípulos de Pitágoras, que guardem silêncio, porque tudo o que se faz é ao som de campas tangi-

75 das; os segrêdos dos conselhos pelas praças ao som de trombetas, e assi as mais cousas; e, o que é pior: que até as maldades, adultérios, torpezas, infâmias, malícias, os mesmos que as cometem são seus pró- pios pregoeiros, porque em o capitão, fidalgo e não

20 sei se viso-rei acabando de deshonrar a casada, logo se gaba disso a todo o mundo; como houveram a moça donzela e pela ventura com capa de casar com ela, logo o pelourinho o sabe; o que enganou a viuva rica com a mesma côr e o casado néscio com

25 promessas de lhe casar com a filha, as peças que lhe dão logo as andam mostrando pelas ruas: de modo que de seus própios segredos e maldades êles só são

14, ao som de campas tangidas: divulgado a toque de sino.

21, como: logo que. 23, logo o pelourinho o sabe: logo consta na praça

pública. Em A, pilourinho. 24, com a mesma côr: fazendo-lhe iguais promessas

de casar com ela.

IO

Page 45: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

os pregoeiros; por que cuido que tem estas cousas por honra e cavalaria e a virtude e continência por fraqueza.

Ora vejam Vossas Mercês como há Deus de fazer 5 mercê à terra, onde esta moeda corre. E já que

estou com isto entre as mãos, hão me de dar li- cença para acabar esta matéria do pouco segrêdo, com outras cousas que de novo me lembraram agora, que são mui prejudiciais ao serviço del-rei

io e à república; e dêm-me atenção. Manda el-rei nosso senhor devassar na Índia dos

oficiais da justiça, desembargadores e capitães de fortalezas, e que lhe mandem as devassas mutra- das, e no mór segredo que puder ser. Em se come-

15 çando a tirar esta devassa, logo os que se temem dela sabem os que vão testemunhar e inda o que disseram as testemunhas; ei-los vão com suspeições

^ às pessoas que testemunharam nos casos de que se temiam, as quais provam às suas vontades; por-

20 que tudo o que na Índia ficar em prova, sobejam as testemunhas pelos telhados, e assi fazem as de-

f vassas nulas; e naqueles casos particulares só aque- las testemunhas suspeitas o sabem, e tirando-se ou- tra devassa não se lhe acham culpas e ficam absol-

2j tos, e os homens que testemunharam odiados com as partes, que todas as vezes que se podem satisfazer não deixam passar ocasião.

1. Ê freqflente em A a forma cudar, cudado, que corresponde à redução dos ditongos, observada no ma- nuscrito.

11, devassar: inquirir do procedimento do funcio- nário durante o tempo que exerceu o seu cargo.

13-14, mutradas: seladas. Têrmo usado na Índia.

II

Page 46: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Outra: Acaba um viso-rei; vai-se para o reino; manda-lhe el-rei tirar sua residência por Ga pessoa de confiança; se na índia se tem segrêdo nela, o que acontece poucas vezes, cá neste vosso Portugal,

5 onde isto não é mais puro, logo se descobre o se- grêdo, e por peitas dão vista das devassas: e assi houve viso-reis que se vingaram de homens que tes- temunharam contra êles. Eu conheci alguns; e o que é peor — que houve senhor dêstes, que escreveu

io à índia a seus amigos: «Foão testemunhou tal cou- sa e Foão tal e tal, mas êles me cairão nas mãos».

Esta é a rezão, por que muito poucos homens querem ir às devassas; ao menos eu sempre fugi disso, porque de duas cousas sempre me guardei

15 muito: de praguejar dos meus viso-reis em público, e de testemunhar contra êles, porque me arrimei sempre àquela regra de viver em paz: A teu rei nunca ofendas, nem sejas testemunha nem parte.

Emfim, quero concluir com ua cousa que eu acon- 20 selhara, se para isso tivera autoridade; que por duas

rezões não houvera el-rei de mandar tirar estas de- vassas e residências: ua, por evitar êstes males e ódios, e outra, porque nunca se procede contra os criminosos, e sempre se livram, e Deus sabe o como.

25 Desp. — Muito folguei de vos ouvir essa maté- ria, que não é de tão pouca sustância que não vá nela muito; mas não tenho a isso que dizer senão que êsses senhores viso-reis, desembargadores, ca-

2, tirar sua residência: inquirir do seu serviço, tirar devassa do seu procedimento.

7. Couto usa geralmente a forma visos-reis, quando intervém na redacção do manuscrito.

21, não houvera de: não deveria.

12

Page 47: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

pitães e mais oficiais, que bem o pagam, deixemos lá na outra vida; mas inda nesta vemos que a muito poucos vimos lograr o que tiram de suas governan- ças e capitanias; porque, se puserem os olhos por êste

5 reino, não acharão dous, de cento que de lá vieram, terem que comer nem fazerem morgados; nem sei por onde se vão os tantos centos de mil cruzados, como alguns trouxeram de suas governanças e ca- pitanias; parece que lhe leva o diabo tudo, porque

10 uns morrem sem os lograr, e outros vivem para lhe faltar.

Fid. — Isso que dizeis é santo: parece que êste dinheiro da índia é excomungado, porque não luz a nenhum de nós. Quero-me meter nesta conta, por-

15 que também não sei por onde se foi o que tirei da minha fortaleza, e dêsse pouco tempo de minha go- vernança.

Sold. — É dinheiro de encantamento, que se converte em carvões; o mais dêle vai por onde

20 veio: Donde o diabo traz a lebre lá lhe leva a pele', e veio por canos infernais, poios mesmos se torna a ir. O mais dêle é de sangue de inocentes; e assi como o dinheiro, por que foi vendido o Filho de Deus, se não comprou com êle mais que um pedaço

25 de chão infructuoso, que não servia de mais que pera sepultura de mortos e pera cama de bichos, assi estoutros nunca lhe vereis morgados feitos com

5, cento: cem. 9, lhe: lhes. O emprêgo de lhe por lhes é freqflen-

tíssirao em Couto. io-ix, para lhe faltar: para sentirem a falta do dinheiro

que mal gastaram. li. Acaba aqui a letra de Couto.

13

Page 48: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

o seu dinheiro: todo vai a parar num campo de mortos, em bichos e sujidades, em que por derra- deiro o mais dêles vem a parar.

Desp. — Deixemos isso; lá se avenham. Nisso 5 não há emenda; e onde a não há, o melhor é calar.

Sold. — Sabe V. M. quanto a não há?: que es- tando eu um dia em um convento de religiosos, veo um fidalgo, que ia entrar em ua das melhores forta- lezas da Índia, a despedir-se dêles; e na conversa-

io ção, em que me eu achei, lhe disse um religioso da- queles estas palavras: — Senhor, lembre-vos que ides entrar na mercê que el-rei vos fez por vossos serviços, e que nela podeis ganhar o céu, como eu neste hábito, com estas cousas. Contentai-vos com o

15 que é vosso, deixar viver os pobres, e fazei justiça. Ao que lhe respondeu o fidalgo: — Padre meu, eu hei de fazer o que os outros capitães fizeram; se êles foram ao inferno, lá lhe hei de ir ser companheiro; porque eu não vou à minha fortaleza, senão pera

20 vir rico. Houve o padre que era escusado repetir- -lhe mais: e, posto que o êle dissesse a modo de cor- tesania, fê-lo como o disse; e assi lhe levou o diabo tudo em breves dias.

Desp. — Valha-me Deus ! São muito roins ga- 25 lantarias essas ! Com as cousas da alma não pode-

mos galantear, que custam muito. Fid. — Deixemos nós a alma; cuido que tinha

rezão em desejar de tirar muito dinheiro; porque vir um fidalgo a êste reino cheirando a pobreza,

30 não há quem lhe não vire o rosto; o bom é vir rico,

3, o mais dêles: a maior parte dêles. 21-22, cortesania: gracejo, brincadeira.

Page 49: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

porque então vos bailam as trepeças, como lá di- zem; tudo achais fácil, rogam-vos pera tudo, e vós não rogais pera nada, e inda pera aquilo que dese- jais vos chamam; que esta calidade tem o dinheiro,

5 com outras muitas cousas que calo. Emfim, bom é vir rico.

Sold. — Não está nisso a riqueza—em ter muito dinheiro; nos feitos e obras heróicas e de virtude, aí si; a êstes são os que se haviam de buscar pera

10 tudo. Desp. — Muito nos fomos divertindo da matéria

que começávamos a tratar acerca dos despachos e requerimentos dos homens. Por isso, senhor solda- do, por amor de mim, que tornemos a ela, e que

/j tudo o que houverdes de tratar o façais com tanta j liberdade e isenção, como se não faláreis diante de

mim: porque, como todos não podemos tudo, nem 0 há homem tão perfeito que não erre, dos avisos dos

bons juízos e dos conselhos dos experimentados se 20 vem as mais das vezes a cair no conhecimento das

cousas, que os que estão neste lugar deixam de al- , cançar, tanto polas não verem como polas não ou-

virem praticar. Sold. — Assi é, senhor, e daí vem os reis não

25 serem sabedores de muitas cousas importantes ao bom govêmo de seu reino, assi polas não verem, porque não pode ser verem tudo, como polas não praticarem com quem as tratou, viu e apalpou; porque o que mais falta aos reis é quem lhe fale

1, vos bailam as trepeças. Em B a lição é dife- rente: o bom é vir rico e deixar das trepeças.

11, divertindo: afastando.

'5

Page 50: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

verdade nestas cousas. E se lhes a êles acontecesse aquilo del-rei Antíoco, quando ua noite foi perdido e desconhecido a casa de um lavrador: vindo a fa- lar em el-rei, lhe disse quantos defeitos se dêle di-

5 ziam; e vindo outro dia os seus, querendo-lhe pôr as insígnias de rei, as não quis, dizendo: que tanto que se desconhecera, logo achara quem lhe falara verdade ! Porque quási sempre, ou a autoridade real está pondo receo pera um homem lhe poder

io dizer quanto entende, ou também se teme que fique tido por jogral; porque, verdades em côrte, avor- rece, e é seu costume que quem lhe não fala à von- tade, lhe não responda ela também à sua.

Fid. — Tudo assi é: je sabeis de que isso vem? 15 De quererem os homens já agora viver mais pera si

que pera outrem. Sold. — A culpa ponho aos reis, porque vieram

a gostar mais de lisonjeiros que de filósofos e sabe- dores; porque se assi não fôra, víramos cada dia fa-

20 zer a muitos privados o que fez o grande Alexandre a um filósofo, que havia muito trazia consigo; o qual, como nunca o reprendesse de cousa algua, lhe dis- se: — Eu sou homem e como tal devo de errar em muitas cousas; e tu sendo filósofo não me reprendes

35 nem avisas de nada: ou é que não entendes meus erros, ou, se os entendes, não és meu amigo, pois mos dissimulas e não reprendes; por isso vai-te em- bora, que me não quero servir de ti.

li, jogral: bobo, trapaceiro. ri. Entenda-se: «verdades em côrte, isso aborrece».

12-13, & vontade: ao sabor das suas paixões e ca- prichos.

16

Page 51: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Desp. — Se os reis isso fizerem, de quem se ser- virão ?

Sold. — De muitos que lhe falem verdade; por- que então, quando o privado vir o aborrecimento

5 que o rei tem a lisonjeiros, mudará a pele e far-se-á da côr da condição do rei; porque sempre, ou as mais das vezes, folgam e se afeiçoam aos homens que em algua cousa se lhe querem parecer: como o emperador Aureliano, que, sendo afeiçoado a be-

io ber vinho tinto, um Torcato não só não bebia outro vinho senão êste, mas inda todas as vinhas que mandava prantar eram de uvas pretas, o que satis- fez tanto a el-rei, que o fez censor em Roma e guar- da da Porta Salária. Por onde não está em mais

15 falar-se verdade aos reis que sintirem os privados que é êle afeiçoado a ela, e que por isso lhe farão o que fez o emperador a Torcato.

Fid. — Estais nêsse negócio um pouco enganado, porque os reis, por sua dignidade, são mui grandes

20 amadores das verdades e sempre folgam de lhas fa- larem; mas isso que quereis dizer é outra cousa que eu entendo, e me não convém dizer.

Sold. — Digo «minha culpa», se minha tenção foi culpar a pessoa real neste negócio em mais que

25 em lhe não aborrecerem lisonjeiros e se descuidarem nesta parte da alteza de sua dignidade; porque os atenienses, segundo Plutarco, na Vida de Teseu, chamam aos reis anaces, como aqueles de cuja pru-

14, Porta Salário: uma das entradas fortificadas da cidade de Roma.

28. Em grego ánax significa o «príncipe», o «domi- nador». Desde a linha 28 até 28 da pág. seguinte Couto limita-se a traduzir a versão castelhana da Vida de Teseu

2 J7

Page 52: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

dência e vigilância pendem muitos negócios muito importantes; e assi são obrigados a os ministrar com tanta moderação e providência, que os bons e vir- tuosos tenham diferentes lugares dos maus.

5 Outros dizem que não vem por esta via a deriva- ção do vocábulo de rei, senão que é ua similhança tomada da sublimidade e altura das estrêlas, que so- bem conforme ao ordenado curso da natureza, até

io chegar à suprema altura do céu; e porque em lín- gua ática esta distância de lugar sublime e excelso se chama anekás, e anékathen se diz ao que de alto procede; dando a entender, por esta apelação, que o rei, que por ordenação divina está colocado na

15 altura do estado humano, não deve inclinar seu pen- samento a cousas baixas e abatidas, senão que se lembre que está naquele lugar sublime como ôa ex- celsa atalaia da virtude e da verdade, para que seja exemplo de toda a honestidade, religião e mais vir-

20 tudes a todo o povo, que nêle, como em um espelho claríssimo, tem postos os olhos, cuja claridade com nenhua cousa se há-de escurecer; lembrando-lhe também que, quanto é mais sublime o lugar que tem de todo o mais povo, tanto com maior vigilân-

25 cia deve procurar que não diga nem fale cousa que não seja digna do céu; pois o lugar tão alto em que está colocado lhe mostra ser tanto mais perto do céu sua dignidade que a baixeza da gente vulgar.

Isto não é meu, que é de muitos e abalisados filó- 30 sofos que disto tratam. Por onde, torno-me a decla-

de Plutarco, por Castro de Salinas (Colónia. 1562), fl. 42- -43. Aliás, êle próprio diz que essa explicação lhe não per- tence (Pág. 18, 1. 29-30).

30 e seg. declarar: insistir com mais clareza.

18

Page 53: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

rar no que tinha dito, em dizer que a culpa era dos reis, que lhe inda agora ponho, mas só em não ve- rem e vigiarem os que tratam mais de lhe falar à vontade que verdades, como tem por obrigação de

5 vassalos leais; porque àqueles que eles põem neste lugar, e sôbre os quais deixam todo o pêso do govêr- no e negócios do reino lhes fica a mesma obrigação que a pessoa real tem por sua dignidade, como já tratei; por isso vejam os despachadores o em que se

10 metem, que naquele negócio são obrigados a tratá- -los com aquela verdade e amor que o mesmo rei tem por obrigação a seus vassalos, tão arriscados tantas vezes por êles à bôca da bombarda, à seta, ao pelouro, à fome, frio, e a trezentas outras des-

15 aventuras em que se cada dia vêm por seu serviço. Êste exemplo lhe deixou Cristo Nosso Senhor

quando subiu ao Padre, que deu o cargo do despa- cho dós homens a seus discípulos, os quais assi se houveram com êles como o mesmo Deus, dando

20 vida a mortos, vista a cegos, fala a mudos e obran- do todas as mais maravilhas de seu mestre; e assi ficavam sendo deuses: o que isso mesmo fica obri- gado a fazer o despachador, que há de despachar como rei, e, fazendo como tal, conforme a sua obri-

25 gação, fá-lo como Deus, porque os reis o lugar de Deus tem na terra, e assi ficarão-seus ministros fa- zendo ofício de deuses.

Desp. — Essa profissão é já mais que de puro soldado, como vós dissestes que éreis; porque vejo

30 que vos ides mostrando filósofo, humanista, e inda teólogo, para o que se requere mais quietação que de soldado, que não pode trazer a espingarda às

22, isso mesmo: igualmente, do mesmo modo.

19

Page 54: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

costas e os livros da outra parte; porque sempre, ou as mais das vezes, ua cousa impede outra.

Sold.—Nunca a pena embotou a lança. Soldado e capitão era César; e, conquistando a Gália, de dia

5 pelejava e de noite escrevia nos seus Comentários. Alexandre, conquistando o mundo, sempre comuni- cava com filósofos e trazia a Ilíada de Homero à cabeceira. Epaminondas lacedemónio trazia no exér- cito sempre a sua livraria, e não se determinava de

io qual tinha mais, se de esforçado, se de sabedor; e tre- zentos outros capitães, a quem as armas não escusa- ram o engenho. E não digo isto porque haja em mim o que Vossa Mercê diz; porque sómente o amor das letras me ficou daquela primeira idade, em que

15 gastei alguns anos nas artes liberais, de que só me ficou a inclinação dos livros, com que comunico as horas que me restam, porque natural é ao homem desejar de saber, como afirma Aristóteles no pri- meiro da Metafísica.

CENA II

Do modo que correm os despachos das cousas da índia no Reino; em que se tocam muitas cousas sobre algOas desordens que nisso há.

20 Despachador — Tornemos à matéria de pri- meiro, que era irdes culpando os homens que té'gora estiveram neste cargo; porque eu, como sou homem e está certo errar, ficarei sabendo o de que me hei de emendar. Quanto ao que dissestes que se podia rele-

9, e não se determinava: e as pessoas não sabiam. 21-22, de primeiro: do princípio.

20

Page 55: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

var aos soldados aquele brio e isenção, ou quási soberba, com que requerem seus merecimentos, por andarem atropelados dos despachadores passados, por certo que, se soubessem o modo de como cor-

5 rem os negócios, que se não escandalizassem tanto; porque, como os reis tenham suprema dignidade sôbre todos os homens, um isento senhorio e Ga vontade, que se não contradiz, com outras muitas cousas, que deixo de dizer, não parece rezão que

io estejam a todo o tempo preparados para todos os negócios que os homens dêles quiserem; porque, como tem repartidos os tempos pêra êles, a saber: tantos meses pera os de África, outros para os da India, e outros pera aquelas cousas pera que os apli-

15 caram,—não parece rezão que, quando se tratarem os negócios de África ou da fazenda e justiça, que vá um despachador apresentar papéis do soldado da Índia, fora do tempo e conjunção, porque assi em vez de lhe fazer bem, lhe poderá muitas vepes

20 fazer mal; então, se lhe não tomais sua petição, a qualquer tempo que vo-la der, já parece que lhe roubam sua justiça, e arrebentam com seus despa- chos, para o que há mister ua paciência de Job para os ouvir e sofrer.

25 Sold. — Inda mal, porque assim é tudo e por- que os reis tem tempos repartidos por êsse modo; porque pera dar o seu a seu dono não é necessário aguardar tempo, que a tôda hora o é, e o menos que o bom e cristão rei há de ter, é tempo para si.

50 Cousa leo de príncipes gentios, que tomara achar em alguns dos havidos por católicos: ^qual dêstes teve o que Dario, rei da Pérsia? que tinha um cama -

6, como os reis: ainda que os reis.

21

Page 56: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

reiro deputado para todos os dias em amanhecendo entrar livremente na sua câmara e lhe dizer: — Le- vanta-te, rei, e vai curar dos negócios que Deus quis que curasses!

E do Evangelho temos que a Cristo Nosso Senhor nunca se lhe ofereceu requerimento, que o não des- pachasse, porque, como veo ao mundo todo pera os homens, não tratou mais que o que lhe a êles cumpria; porque à borda d'água despachou a S. Pe- dro e S. Felipe; estando comendo, à Madalena; no caminho, a Zaqueu; à entrada da cidade, ao filho da viuva; bebendo, à Samaritana; e ainda à hora da morte, ao ladrão; de modo que a tôda a hora, e em todo o tempo e lugar despachava petições, dava cargos e ofícios; o que houvera de ficar por exemplo aos reis da terra para o imitarem, pois naquele lugar os pôs êle mais para os homens que para si.

Desp. — Vêdes vós, isso é assi como dizeis; mas os reis da terra não podem tanto: são de carne, e hão de ter seus dias de passatempos; também são sujeitos a paixões e infirmidades, polo que não pode ser estarem todo o tempo à pá, como lá dizem: o arco, se lhe não afrouxam a corda, fácilmente que- bra. Tudo seu tempo tem, como diz o sábio; baste ter dado o mais dêle para os negócios, o menos lhe fica para seus desenfadamentos, que se não es- cusam.

23, todo o tempo na praça em B. Supomos melhor a lição de A, que exprime melhor o que Couto quere significar: «o trabalho duro e absorvente dos reis».

24, aflouxam em A. 27-28, que se não escusam: que são necessários, de que

não podem prescindir.

22

Page 57: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Sold. Não sinto eu pera as infirmidades mór antídoto nem melhor meizinha que despachar nelas a viuva pobre, o soldado desemparado, o cavaleiro velho e de merecimentos; porque êstes são os que

ç rogam a Deus pela vida do rei, e isso é o que lhe dá saúde; que as mèzinhas são ervas e raízes, que nunca a dão perfeita. E o glorioso Luis, rei da França, dizia que os pobres que despachava eram os cães com que caçava os céus; que esta é a verda-

10 deira caça que os reis hão de desejar. Desp. Por essa e por tôda a outra via caçam

os reis, como dizeis, o céu. Mas, tornando aos ne- gócios da Índia: como o tempo que lhe é dado não são mais que três meses, e êles sejam muitos, e os

15 requerentes acodem todos, muitas vezes por falta de tempo e segundo se os negócios vão encapelando, e as matérias que se trata serem de muito conselho, como: se se oferecem novas de galés e outras cousas desta calidade, polas quais cessam essoutras, que são

20 de menos importância; e que suceda por isso man- dar el-rei sobrestar os requerimentos para o ano, que há de mandar viso-rei; ou que outros negócios de fora e de outra calidade gastem o tempo, e fi- quem os homens sem responder—^que culpa dareis

25 ao despachador, se não foi em sua mão mais, nem as cousas deram outro lugar?"

Sold. Já que me Vossa Mercê tem dado li- cença para responder livremente a tudo, há me de ouvir um pouco. Digo, senhor, que estava isso

30 muito bem, se nesse tempo não saísse despachado

2, meizinha: remédio, mèzinha. Boa forma portu- guesa, um pouco antiquada.

16, encapelando: amontoando.

23

Page 58: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

o criado do mordomo-mór, que nunca serviu el-rei, o do veador da fazenda, o do secretário, o do conse- lheiro e o apaniguado de Vossa Mercê e outros muitos desta estofa, que, com as mãos na cinta e a

5 perna alçada, comendo os mira-olhos e figos berja- çotes, levam o melhor da Índia; senão quanto a êstes, lhe serve a minha petição, que está em poder do despachador, de alvitre para pedirem o que nela tenho apontado; e quási sempre acontece, res-

10 pondendo a um dêstes que digo, ou a um soldado como eu, envelhecido na guerra, ua mesma cousa: fica êle posto diante; e o prove, que passou poios mêdos dos estreitos, poios frios e chuivas na ensea- da de Cambaia, pelos pelouros e setas dos mala-

ia vares, achéns e turcos, que se vá estar esperando que acabe seu tempo o que pola ventura não fez outra cousa que traquejar as calçadas de Lisboa e servir seu amo de muitas cousas que calo.

Desp. — Algua rezão tendes nisso, mas são cou- 20 sas essas que se não podem escusar, porque, como

lá dizem, faço-te a barba, por que me façais o ca- belo. Meu amigo, já que falais verdades, eu as não hei de negar. Sucede isso assi porque o despachador que está neste lugar tem necessidade dos homens:

5, mira-olhos: pêssegos de forma grande e rosados. 5-6, berjaçotes: figo miúdo de polpa avermelhada.

Em certas regiões do país chamam-lhe hoje «baxaxotes». 8, alvitere é a grafia usual em A.

9-10, respondendo: pelo que respeita. 11, ua mesma cousa: sempre esta cousa. 15, achéns: habitantes do Achém, na ponta seten-

trional da ilha de Samatra. 17, traquejar: frequentar, pisar constantemente.

Page 59: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

uns por que, se começam a medrar, os vão favore- cendo; outros por que, se tem já subido a sua valia, os sustentem nela; e assi não se faz nada sem nada.

Sold. — Por essa conta rogarei muito más Pás- 5 coas a meu pai, que na mocidade me trouxe no

Paço, servindo el-rei de tocha e prato e dormindo polas caixas de sua guarda-roupa; e depois de ho- mem me mandou à índia, como todos vem a fazer, havendo que, com alguns anos de serviço, poderia

10 vir a ter remédio e ser bem despachado. Igual fôra que me dera a um dêsses validos da côrte; pudera muito bem ser que já nesta idade, em que venho requerer, tivera colhido o fruito a tempo que me pudera lograr alguns anos dêle, do que já agora

y 15 desconfio, porque sou velho. E o com que me podem responder, Deus sabe para

0 quando será, e pode ser que venha a morrer poios hospitais da índia, sem me entrar o prove cargo que me derem; e assi fica gastada a vida tôda sem lo»-

20 grar aquilo que estoutros que digo, à pema alçada, , em quintãs compradas com o suor de meus traba-

lhos, estão há muitos anos logrando; e o que é peior, que a êstes, a tempo de lhe entrarem seus cargos, fa- zem os governadores da índia dobrados favores e

25 mercês que ao prove soldado, que êle viu na guerra matar muitos mouros, só por terem grangeados os amos, por cujos respeitos foram despachados, inda que seja muito à custa da fazenda do rei.

18. Sem me entrar: sem tomar posse, sem me iniciar.

21, quintãs: quintas, fazendas. Forma arcaica. Couto usa geralmente «quintas».

23-24, Note-se a construção «dobrados... que».

25

Page 60: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Fid. — A isso digo «minha culpa». Folgo que faleis verdades tão claras. Isso passou também por mim; mas jque há um governador de fazer, se não pode viver tão puro que não haja mister os homens,

5 e lhe é necessário tê-los grangeados para seus negó- cios?

Sold. — Folgo de ouvir isso a Vossa Mercê, por- que assi o tive sempre para mim no modo com que vi aos governadores tratar a fazenda del-rei, não

io como ministros senão como imigos, sem lhe lembrar, quando a dão por êsse modo, que ficam em resti- tuição dela, porque por essas desordens sucedem in- finitas necessidades ao Estado, que se remediaram

. com êsse dinheiro, polas quais se deixam de prover 15 as armadas e fortalezas como é necessário. E Vossa

Mercê há de ter paciência, porque eu hei de falar nisto muito largo.

CENA III

De como os móres imigos que a fazenda do rei tem são os ministros; e de como na índia se cumprem mal os regimentos e mandados *

del-rei; e trata de outras matérias.

Soldado — Entrando um dia a mulher de Dario na tenda de Alexandre Magno, depois de ter sujeita

20 toda a Pérsia, estava junto dêle o seu grande amigo Eféstion, a quem ela fez sua humilhação, cuidando ser el-rei; 'e, depois que soube qual era, teve com Alexandre suas desculpas do êrro em que caíra.

2, falais em A; faleis em B. 13, se remediaram: se remediariam.

26

Page 61: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Ao que êle respondeu estas palavras: — Não er- rastes em nada, que meu amigo é outro eu.

Donde se vê claro que os amigos do rei, seus viso- -reis e governadores e mais ministros hão de ser

5 outro êle, hão de administrar, governar e despender como o mesmo rei o fizera, que isto é ser verdadeiro amigo; mas quando a cousa vai por outro rumo, que o governador e ministro não pretende mais que governar para si e pera os seus, então não sinto eu

io mór imigo do rei que êste, porque poderá êle dizer polo tal governador: — Este que aqui está é outro si, ou outro para si. Em toda a parte isto tem lugar.

Mas deixemos os ministros dêste reino, vamos-nos à índia. Dai-me um viso-rei que deixe perder polo

ij serviço do seu rei um cruzado de sua fazendo pera lhe acrecentar outro: isto é cousa que se não costu- ma; antes acrecentar em sua fazenda com muita perda da do rei, e Deus sabe por que meios; isso si.

# Vereis um governador ou viso-rei chegar àquele 20 Estado tão zeloso do serviço del-rei e do proveito

de sua fazenda, que parece a todos que vem remir a India, e que tomará as capas aos homens pera lhe acrecentar em sua fazenda; mas daí a quatro dias se muda isto, porque a má natureza da terra e infer-

25 nal inclinação dos homens o muda de feição que, se lhe toma as capas assi a el-rei como aos homens, é para si e para os seus. Muitos exemplos pudera dar disto, mui vistos e apalpados, mas trarei dous.

Quer um governador pagar-se de seus ordenados, 30 que sempre andam adiantados, e nunca vereis fica-

rem-lhe devendo em seu título cousa algua; e se a algum lhe fica, e tiram disso certidões, eu o hei

7, causa em A.

27

Page 62: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

por grande engano; no que agora me não meterei por me não sair da matéria. Esta paga não se faz em qualquer moeda em que se aproveite a fazenda do rei, senão logo lhe dão por alvitre que quebre

5 os pagamentos para Ormuz, onde a moeda é mais grossa; e por xerafins pagam patacões, que vem a montar muito contra a fazenda del-rei, que êste é o proveito que lhe fazem.

Outro exemplo é: ordena-se mandarem um em- 10 baixador ao Balagate ou ao Mogor; êstes hão de le-

var seus presentes, como é costume; fazem rol do que há de ser, entram nêle quatro, seis ou dez cava- los; êstes vende-os o viso-rei da sua estrebaria a el-rei a preços exorbitantes: cavalo que vai duzen-

15 tos por seiscentos e mais; e carregam-se em nome de outrem em receita, e tiram conhecimento para a parte requerer seu pagamento, o qual há Vossa Mercê entender que se faz d'ante-mão, e em moedas em que ganha. E inda aqui entra outra injustiça,

20 que é: que vindo as naus d'Ormuz com êstes cava- los, mandam os governadores tomar polas estreba- rias e casas dos homens os que lhe melhor parecem, e ao pôr do preço sempre é à vontade dos gover" nadores — o que tem escandalizado a índia tôda.

25 Ora passemos avante, pera vermos o como apro- veitam a fazenda do rei com detrimento da sua.

4, senão: mas sim. 6, xerafins: moeda corrente na India com o valor

de 300 a 360 reis. 10. Balagate e Mogor eram dois reinos, o primeiro

a leste de Goa, o segundo própriamente o reino do Indus- tão ou Deli.

25-26. Isto é dito em ar de ironia; o contrário é que é o verdadeiro.

28

k.

Page 63: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

Na despesa dela não entra veador da fazenda, que é sacrilégio tocar no dinheiro, nem o tesoureiro tê-lo em seu poder; êle o tem, e às vezes se entrega a seus criados, e as despesas dêle são à sua vontade, e os papéis delas se entregam ao feitor e tesoureiro, que isso só guarda, e às vezes mal correntes, o que de- pois lhe dão trabalho; e Deus sabe por onde foi este dinheiro e por onde se consumiu, porque sempre a mór parte dêle vai em dívidas velhas, de que adian- te tratarei, e estes repartidos por mãos de seus apa- niguados e criados, que todos ficam com elas bem untadas; e senão, vêde o seu apaniguado, que levou cincoenta mil cruzados, o pagem da campainha ou- tra pancada, o outro criado seu quinhão; o que tudo sai da bolsa do rei, que paga até os serviços dos criados dos governadores.

Fid. — A isso tinha muito que dizer: bem sabeis vós que, tanto que dei a homenagem da índia, assi por isso como polo regimento que me el-rei dá, te- nho licença pera fazer tudo o que me bem parecer, no que dá consentimento a tudo o que os governa-* dores quiserem fazer: com o que, e com os muitos biscatos que a índia dá de si, posso fazer os meus ricos, porque me servem, e com êles represento a dignidade do meu cargo.

Sold. — Vossa Mercê é que alevanta a lebre para eu correr, que bem desejo eu de passar por algíias cousas que tem bem escandalizado o mundo, e essa que Vossa Mercê tocou mais que tôdas. Vós sabeis, senhor, o que jura um viso-rei ou governador nas

io, e estas em B. 23, biscatos: pequenos negócios, mais ou menos

fraudulentos.

29

Page 64: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

mãos del-rei, quando lhe dá essa menagem? Por certo que, se isso trouxessem na memória, que não comeriam nem beberiam, porque cuido que os mais dêles perjuraram gravíssimamente. Falo dêste modo,

5 porque Vossa Mercê me tem dado liberdade para tudo.

Dizei-me, senhor, <;qual é o viso-rei ou governador tão puro (não digo que não haja alguns), que na homenagem que dá não se arrisque a mil perjúrios?

o Primeiramente juram que não solicitaram aquele cargo por si nem por outrem, nem deram, peitaram, nem por outra algua via o pretenderam, sendo tão sabido de muitos os modos com que o solicitaram.

Vamos mais aos juramentos que fazem de guar- 5 dar regimentos, fazer justiça às partes e outras cou-

sas que deixo, o que muito poucos cumprem, por- que regimentos não se executam senão nos pobres; leis e provisões não se guardarão senão contra os desemparados: emfim, por não me cansar, muito

o poucos governadores cumprem o que lhe el-rei manda, sendo contra seu proveito e apetite; por onde afirmo que em nenhua parte é o rei obedecido menos que na India; porque cousas faz um gover- nador que o mesmo rei não houvera de fazer.

5 E o que mais escandaliza é que sempre acha letra- dos em todas as faculdades, que dão entendimentos às leis e regimentos para poder fazer aquilo que pre- tende, inda que seja ua injustiça exorbitante, como-

o eu vi em um caso que importava ua das fortalezas a da India, em que quis persuadir um letrado não

x, menagem: homenagem, juramento de fidelidade. 18, leis e prisões em B.

18-19, contra desemparados em A.

30

Page 65: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

leigo a um desembargador que podia votar naquele caso polo que o governador queria, porque a lei lhe dava lugar para isso, e que êle lhe daria um escrito seu que o podia fazer; mas como o desembargador

5 temia a Deus, não o pôde levar, nem o governador conseguiu o que esperava, porque por aquele voto ficavam vencidos os de sua parte.

Pois jque vos direi dos perjúrios que comete um governador contra o que jura, quando lhe entregam

10 a governança da India?: que com as mãos sôbre o missal promete de guardar os previlégios da cidade, e na primeira cousa que lhe cai nas mãos põe os pés por cima de tudo e não guarda senão o que lhe releva. E acham letrados que também lhe dizem

15 que aquele previlégio se entende de tal maneira; e por um exemplo me declararei melhor.

Prenderam um fidalgo velho, honrado, casado em Gôa, dentro no tronco, por ua cantidade de dinheiro

q que devia a el-rei, a quem sempre os governadores tem olho; e certo que cuido que se fôra pola morte de um homem, que não houvera de ter prisão tão- estreita. E primeiro que conte o caso, direi o que sôbre isto ouvi a um homem bem avisado, tratan- do-se sôbre outras matérias desta essência.

Estando autualmente alguns homens presos por dívidas, sucederam alguns crimes na cidade de Gôa de mortes de homens, a que se não acudiu tão de- pressa como era rezão, ao que dixe um homem: — Não deva ninguém dinheiro a el-rei neste tempo, e mate quantos homens quiser, e passêe livre-

8, nos prejuros em A. 18, tronco: casa da cadeia. 28, dixe: disse. Forma antiga e popular.

31

Page 66: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SX DA COSTA

mente, que eu seguro que não entendam com êle.

E tornando ao exemplo que ia dizendo: preso o fi- dalgo, acudiu a cidade com seus previlégios, nos quais

5 manda el-rei que nenhum cidadão de Gôa possa ser preso em ferros senão por caso que haja de morrer, nem por dívidas, inda que sejam suas; e como pretendiam haver o dinheiro à mão, que era o crime que tinham contra êle, saiu por despa-

10 cho da Relação que não fôsse preso em ferros, como o previlégio dizia, mas que ficasse no tronco sem grilhões, onde esteve alguns tempos sem lhe valer previlégio nenhum.

Ora vêde, senhores, se o demónio podia dar êste 15 entendimento à provisão del-rei? E que quer dizer

ser preso em ferros senão em troncos, onde tudo são ferros? jQue soma de exemplos vos pudera trazer dêstes, que puderam fazer engulhos de vomitar, que de nojo calo!

20 Ora quanto ao que Vossa Mercê diz que el-rei lhe dá poderes pera tudo na partícula que lhe põe no cabo do regimento: que sobre tudo façais o que vos parecer mais seu serviço, isso é mal entendido de muitos, porque antes com isso vos amarra as mãos

25 e limita o poder; porque as cousas que el-rei há por seu serviço, primeiro que tudo é fazer justiça e dar a cada um o seu; e fazerdes armadas pera onde se vos oferecer ocasião, e proverdes nas cousas da" guerra como fôr mais necessário e comprir mais à

30 reputação do Estado e defensão dos vassalos; por- que el-rei não pode adivinhar os casos futuros, con-

20, partícula: frase, passo do texto. 22, meu serviço em B.

32

Page 67: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

tingentes, pêra mandar prover nêles, e então o dei- xa ao juízo do governador, com os do seu con- selho.

Mas no despender de sua fazenda não há de ser 5 senão pera estas mesmas cousas e pera outras ordi-

nárias, porque pera o mais vos dá tantos mil cruza- dos pera poderdes fazer mercês, e inda a homens beneméritos que andam no serviço, dos quais a mór parte levam vossos criados, que lho não podeis

io dar, porque a tenção do rei é repartirem-se com os que o servem; e dêstes hão de ser primeiro fidal- gos e moradores de sua casa, a que tem mais obrigações que aos outros; e inda nisto se usa outra injustiça muito grande, que é fazerem mer-

15 cês dêste dinheiro a homens fantásticos, que nunca houve, e os governadores ou os seus apaniguados engolirem-no, a que não posso pôr nome senão de furto.

* Pois nos despachos voS digo eu que ides por me- io lhor caminho. jQuem vos disse que na provisão

que vos el-rei passou pera despachardes na fndià certos homens de ofícios, de feitorias para baixo,

, que os podíeis dar a vossos criados, quando a provi- são expressamente o não declarar, porque a tenção

25 del-rei é que se repartam com homens beneméritos e de serviços? E sabeis quanto é isto?: que, se não sou mal lembrado, na Mesa da Conciência dêste rei- no se deu ua sentença, em que declarava que não devia el-rei satisfação de serviço senão aos morado-

30 des de sua casa; e que aos que não viviam com êle lhe satisfazia com lhe pagar a soldada em que se com êles concertou, de tanto por mês; e assi êste soldo se lhe deve e se lhe há de pagar, sem se lhe dever nada.

3 33

Page 68: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

Mas os proves compre-se-lhe tão mal isto, que de quatro quartéis que lhe devem cada ano, lhe pagam dous, um de verão e outro de inverno, sem ficar disso escrúpulo nenhum ao governador ou viso-rei,

5 que, se eu fôra seu confessor, houvera-o de obrigar a lho pagar; porque o que lhe disser que o Estado o não tem, engana a Deus, que bem sabe que o há; porque muito dinheiro del-rei, que se despende em outras cousas desnecessárias, pudera suprir a isto:

io por onde concluo em afirmar que os governadores e viso-reis não tem ourelos nem biscatos na índia, como, senhor, dissestes, pera poderem fazer ricos seus criados, como muitos os fazem à custa da fa- zenda do rei, que se tira da bôca da viuva, do órfão,

15 do casado pobre e do soldado, a que não pagam o que se lhe deve por não haver dinheiro, sobejando pera os seus.

E chega isto a tanta desordem, que por ua e outra parte, em necessidades, que se oferecem por estas

20 cousas e outras, andam pedindo o dinheiro empres- tado pera armadas e socorros, e dêsse mesmo se pas- sam muitas provisões de mercês a seus parentes e„ criados, sem entrar nisto temor de Deus nem pejo dos homens que o emprestam.

25 Desp. — Isso passa dessa maneira? Por certo que estou espantado de quanta cousa lá vai, sem cá se saber, nem se temerem os governadores que poderá isso algua hora chegar às orelhas del-rei! . Sold. — Disso lhe dá a êles ora nada. jQue cna-

1, compre-se-lhe: cumpre-se-lhe. A forma comprir alterna em Couto com cumprir.

4, viso-reis em A. 16, sobrejando em A.

34

)

Page 69: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

ma Vossa Mercê el-rei? Eles são os reis e os deuses, como lá estão, epera isso lhe passa o mesmo rei muitas provisões; principalmente ua, que levam to- dos, pela qual manda que não sejam citados nem

5 demandados na Índia por cousa algua. Por certo, senhor, que cuido que o rei não vê a

tal provisão, quando a assina, nem sabe dela; por- que, se a vira, não cuido eu que haja rei que queira que se faça tamanha injustiça; e que polo mesmo

10 caso que um viso-rei lhe pedir tal provisão, o pode logo renfover e eleger outro, de maneira que hão de levar salvo conduto pera me tomarem o meu navio, o meu cavalo, a minha fazenda, sem o eu poder requerer: isso é fia cousa que só se pode es-

15 perar entre os tiranos de Sicília, e não entre prínci- pes tão católicos e cristãos, que sempre querem que se faça justiça té de si; porque na Crónica del-rei D. João, o segundo, lemos de alguas sentenças, que

# se deram contra o mesmo rei, que sôbre isso fez 30 mercês aos juízes que as deram; que esta é a ver-

dadeira cristandade. Ora vêde quão mal entendido é isto, e como el-rei

2. como lá estão: logo que lá se encontram. 9-12. A redacção dêste lugar não está muito clara, e

menos clara ainda se encontra em B: de maneira que uma há de levar salvo-conduto.

14, requerer: chamar aos tribunais. 17. O caso vem contado em Garcia de Resende,

Vida e feitos del-rei D. João Segundo, cap. 94. O rei teria premiado o vigário de Tomar por ter, com outros juizes da Relação, dado uma sentença contra o rei na demanda em que andava com o contador João Roíz Pais. Isto, o que diz o cronista oficial. No geral porém os juizes faziam o que o rei mandava, pois era senhor absoluto.

35

Page 70: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

não sabe de tal provisão; se êle passa tantas a quem quer, que possa citar o procurador de sua fazenda, como cada dia sucede neste reino, e inda na Índia, e as partes hão sentença contra êles, e executam a

5 fazenda del-rei por elas, jcomo há de mandar nem querer que se não cite, nem demandem o seu go- vernador ou viso-rei? Não creo tal. E crea Vossa Mercê que sôbre isto me hei de fazer doudo neste reino, té chegar às orelhas del-rei, porque mais justo

io é, mais imitará a cristão o viso-rei ou governador, depois que acabar seu tempo, estar a juízo com as partes e satisfazer a tôdas o que lhe dever que êssou- tro; mas como êles nas mais destas cousas cuidam que enganam a Deus e ao rei, andam tão ensaiados

15 em certas cousas com que cuidam que o fazem, que pasmo de como não caem nisso; mas cuidam que «cobrem o céu com ua joeira», como dizem as velhas.

Desp. — jQue manhas e ardis são êsses, e que 20 enganos?

Sold. — Di-lo-ei a Vossa Mercê: depois de o vi- so-rei ou governador acabar seu tempo, como está - com aquela provisão no seio, ninguém o demanda; e então quatro ou seis dias antes da embarcação,

25 mandam pôr grandes escritos pelas partes da cidade

xo, imitará a Christo em B. 24, embarcação: partida do navio. Em B: antes do

embarque. 25, mandam, em vez de manda. O plural explica-se

pela duplicidade do sujeito (viso-rei ou governador) e ainda porque exprime melhor a idéia constante em Couto: a generalidade sem excepção dos abusos da índia. Come- çado pois no singular, o autor vê-se obrigado a empregar em seguida o plural, que imprime mais energia ao discurso.

Page 71: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

e igrejas, que tôda a pessoa a que deverem algua cousa a requeira, que lha pagará; e como isto é já com o pé no estribo, ninguém lhe sai, e então lhe passam os escrivães mil certidões dos tais escritos,

5 com as quais vão tapar os olhos aos cegos, ficando tôda a fndia escandalizada e por pagar dêles e de seus criados.

Fid. — Já me tenho arrependido da licença e li- berdade que vos dei; porque não cuidei que falás-

10 seis tanta verdade tão livremente, porque isso não são cousas que chegam a soldados, que não tra- zem mais pensamento que nas suas armas e nas suas pagas. Cruzo-me a tudo, porque nas mais des- sas cousas me sinto culpado; e certo que podíeis

15 servir de rol de confissão pera um viso-rei, e alguas cousas me lembrastes, que me esqueciam; mas já que estamos com esta matéria antre as mãos, dei- xando as outras cousas, a que não vos sei dar des-

* culpa, quero acudir pela honra dos governadores 20 no que dão a seus criados, que não sai tudo da fazen-

da del-rei, como vós dizeis, mas a mór parte do que se com êles reparte, são alvitres, que cada dia suce- de que, já que se hão de dar aos estranhos, parece mais rezão que se dêm aos seus.

25 Sold. — A isso me não posso ter, já que Vossa Mercê tocou a tecla dos alvitres, que não descubra o segrêdo dêles, que pela ventura nunca chegou ao rei nem aos despachadores, pera mandarem pro-

13, Cruzo-me: resigno-me, conformo-me. 22, alvitres: lembranças, espórtulas, estratagemas

para conseguir dinheiro. 25-26, já que Vossa Mercê até dos alvitres se dá em B.

Grosseiro êrro de cópia.

37

Page 72: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

ver em ua cousa tão injusta e tanto contra a fazen- da do mesmo rei.

Desp. — Folgarei muito de ouvir êste negócio, porque isso é lá outro mundo, e cá não se pratica

5 nas cousas que relevam a el-rei, senão nas que re- levam aos homens.

Sold. — Em toda aparte isso é: e posto que esta matéria seja mui comprida, eu a encurtarei o mais que puder, por não enfadar Vossa Mercê.

CENA IV

Dos modos que há de alvitres na índia, e do dano e prejuízo que fazem.

io Sold. — Na índia dalguns tempos pera cá que se costumam quatro maneiras de alvitres: primeiro, contra o rei; segundo, contra os homens; terceiro, contra Deus; quarto, contra todos. O primeiro, que é contra o rei e com que os governadores enrique- cem seus criados, é de muitos modos, a saber: Mor- reu o homem ab intestado, não tem herdeiros, per- tence sua fazenda à Corôa; esta logo é repartida e levada pelos ares, sem o rei dela ver um tostão.

A fazenda do mouro ou do gentio, que se houve 20 por alevantado, e que se confiscou pera a câmara •

real: a sentença foi hoje assinada, amenhã já o seu

15, são de muitos modos em A. 16, ab intestado: sem deixar testamento. Rigorosa-

mente, em latim, ab intestato, que se aportuguesou por ser locução corrente em linguagem forense.

20, alevantado: rebelde, revoltado.

&

Page 73: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

palmar anda em leilão, que o manda vender o ca- mareiro, a quem se tinha dado d'ante-mão.

Queimou-se o judeu ou o herege; pertence a fa- zenda ao fisco real, também se logo queimou; por-

5 que um criado leva mil cruzados, outro leva as casas, outro a horta, de modo que deu o fogo na fazenda como no dono, e nem cinza se achará.

Deu o feitor ou almoxarife conta: ficou devendo quatro mil cruzados à fazenda do rei; primeiro que

io a conta se encerre, já o camareiro tem o alvitre e a provisão dêles, que os leva poios ares.

Morreu o feitor sem dar conta: lançam-lhe mão de sua fazenda; primeiro que saibam se a deve ao rei, deu a tormenta nela: pera ua parte vai o di-

15 nheiro que se acha, pera outra os bens de raiz, pera a outra os escravos e as jóias, de sorte que a prove da mulher fica posta na rua, e seu marido, se lhe tomaram conta, não deVia nada; e depois, se a dão, deve-lha el-rei, e o criado do governador tem-na

20 engolida; e ela anda quebrando as escadas e as ore- lhas do governador sem lhe dar o seu, até que se concerta com que lhe faça pagar a quarta parte, e assi torna el-rei a vomitar o que o criado do go- vernador engoliu.

25 O rendeiro da alfândega, que no cabo de seu ar- rendamento ficou devendo dez mil cruzados, são seus fiadores levados nos ares, porque dQa banda

3, o judeu ou negro em B. 15, para outra a raiz em A. 18, se lhe tomaram conta: se lhe tivessem tirado

bem as contas. 19, devem-lha el-rei em A. 22, com quem em A.

39

Page 74: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

lh'afuzila o sobrinho do governador c'ua provisão de mercê de três mil, da outra o camareiro com dous mil, da outra por outra via outros tantos, e assi em dous dias não fica pedra sôbre pedra dos proves

5 fiadores. E se depois o rendeiro põe na Relação suas cousas, e prova que as perdas que houve foram por causa da guerra e de infortúnios, ou de lhe quebra- rem os seus contratos, por onde se lhe mande tor- nar a sua fazenda,—como ela é já levada em papos

io d'abuitres, passam-lhe provisão pera se pagar em outro arrendamento novo, que a essa conta se faz; e assi fica el-rei dando sua fazenda aos criados do governador, porque, por derradeiro, êle é o que paga tudo.

15 Ficou o casado por fiador de parente de mil cru- zados a ir comprir o degrêdo em que foi condenado pera Maluco; fugiu no caminho; ao outro dia lhe são as casas postas no leilão, e vai engolido o di- nheiro, como todo; e outras cem mil cousas por

20 êste modo, nas quais, se o rei quisesse prover e atasse as mãos a seus governadores pera as dar, e se carregassem sôbre o tesoureiro e se metessem no * cofre, eu fico que monte a S. Alteza passante de

1, afuzila: apresenta de modo súbito, fulgurante, que provoca mêdo.

5, Ralação em A. 10, em papos d'abuitres: em papos de abutres. Ima-

gem admirável para exprimir a rapacidade do funciona- lismo indiano e especialmente dos apaniguados do vice-rei ou governador.

11, a essa conta faz em A. 17. Maluco: as ilhas Molucas. 19, como todo: como tudo o mais. Em B: como

todo o outro.

4.0

Page 75: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

trinta mil cruzados cada ano; que serão melhores para se dar no inverno quatro mesas aos soldados, que se recolhem das armadas, que não a criados dos viso-reis sem nenhum merecimento.

5 Fid. — Pois jcom que hei de pagar aos meus os serviços que me fizeram desde meninos, senão com os fazer ricos, emquanto tiver a governança?

Sold. — Isso é logo governardes vossa fazenda e a de vosos criados, e desgovernar a del-rei, que

io a fia de vós cuidando que lhe aproveitareis, assi por obrigação de bom vassalo como pola de vosso cargo e juramento; porque se, como diz Massúrio Sabino, grande jurisconsulto, estamos obrigados a favorecer sôbre todas as cousas, três: primeira, os

15 órfãos, que se nos encomendam, aos hóspedes que se vão curar a vossa casa, e aos homens que vos encomendam suas fazendas,—quanto maior obriga- ção é logo a do governador de olhar muito pola do

* rei, assi por estas rezões como por todas as mais, e 20 não desbaratar-lha? Que lhe pagueis, senhor, do

vosso, que por isso vos dá muitos ordenados e vos dá grossas comendas e outras mercês, com que po- deis repartir com vossas obrigações e deixar a fa- zenda do rei pera suas necessidades, que são muitas.

25 Fid. — Isso será vir eu logo à índia pera os meus e não pera mim, se lhe hei de dar do que me el-rei dá. E deixando isso: aí há outros muitos alvitres com que possa enriquecer os meus, que não se- jam dos que vós apontastes.

' 2, quatro mesadas em B. 12. Massúrio Sabino foi um grande juisconsulto ro-

mano do tempo de Tibério. 12, Maurucio em A, Maurício em B.

Page 76: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Sold. — Nesses não queria eu falar por honra dos governadores; mas já que Vossa Mercê me pica, eu hei de gritar, se todavia o senhor secretário me der licença e não estiver já enfadado de me ouvir,

5 ou de lhe ocuparmos o tempo, porque terá negócios mais importantes pera que o haja mister.

Desp. — Muitos dias há que me não veo às mãos cousa mais importante a meu cargo que esta; por- que o que vos vou ouvindo são matérias cá a nós

tu muito escondidas; e pola ventura que por falta de se elas não praticarem, como agora, deixa el-rei de prover em muitas cousas que lhe importam; e do que vos vou ouvindo faço na memória uns breves apontamentos, que bem sei que hão de ser de muito

15 serviço del-rei. Por isso, senhor, ide com a prática por diante, porque emquanto ela fôr desta maneira, não posso dizer que me gasta o tempo, senão que mo aproveita.

Sold. — Estas cousas tôdas, que me Vossa Mercê 20 ouve, são toscas, mas verdadeiras, e resistadas por

um soldado idiota, que, tirado de sua espingarda, não sabe falar mais que verdades chãs. E se isto que digo fôra dito por outro entendimento e estilo diferente do meu, então vira Vossa Mercê melhor

25 as cousas em que el-rei é bem enganado. ^Donde e por que rezão o Estado da India padece faltas, tendo rendimento pera não passar nenhua? E isto sei eu muito melhor entender que praticar.

- Desp. — Essas são as verdadeiras verdades; que 30 as outras, ornamentadas de retóricas, muitas vezes

20, registradas em B. 21, idiota: inculto, ignorante.

4*

Page 77: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

por afermosentar as palavras virá ua pessoa embicar nelas: por isso, senhor soldado, procedei no que começastes, que pode muito bem ser que vos seja essa isenção melhor que as certidões que trazeis.

5 Sold. — As verdades faladas por interesses já o não são, e eu polas falar não quero nenhum galar- dão, porque o maior da vida é dizê-las; mas, Já que Vossa Mercê mo manda, irei prosseguindo no come- çado.

CENA V

Do segundo alvitre, que é contra os homens; e das desordens que se nêles cometem.

io Sold. — Os famosos tiranos Fálares Agregenti- no, Dionísio Siracusano, Jugurta Numidiano, e ou-

^ tros muitos desta sorte, que sustentaram seus rei- nos, não foi com virtudes que tivessem, porque eram cruéis e deshumanos, mas foi com liberali-

75 dades que em suas tiranias usavam com seus natu- , rais, não lhe tomando o seu, porque entendiam que,

se tiranizassem vassalos própios, ou os não consen- tiriam por reis, ou se lhes degradariam e ficariam sendo senhores das cidades e vilas despovoadas;

20 porque obrigação do bom rei é trabalhar por enri- quecer vassalos, porque não há rei de vassalos po- bres que se possa chamar rico.

Esta foi a causa, por que o grande Alexandre mandou castigar um hortelão, porque dum jardim

18, se lhes degradariam: se desterrariam voluntá- riamente.

43

Page 78: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

seu arrancava hortaliça e ervas com raízes; dando nisso a entender que os reis não haviam de des- truir seus vassalos tanto que viessem por isso per- der seus reinos, e que, assi como hortelão sábio, não

5 havia de arrancar as raízes, por que por tempo tor- nassem a brotar; nem o pastor prudente havia tros- quiar tanto suas ovelhas, que lhe cortasse a pele: assi o rei sábio e prudente não havia de tiranizar tanto seus povos e vassalos que viessem a estancar.

io E entendendo isto os nossos primeiros reis de Por- tugal, achamos que até o tempo del-rei D. Dinis, que foi o que nisto mais se abalisou, emprestavam dinheiro a seus vassalos pera tratarem, porque assi os enriqueciam, e suas alfândegas engrossavam. E

15 posto que os de agora isto não façam, todavia que- rem que se tratem bem seus vassalos, e que se não aperte tanto com êles com costumes e imposições novas, como alguns governadores fazem; porque por derradeiro nas grandes necessidades nunca fal-

20 taram os verdadeiros portugueses; antes, quanto mais agravados, então se apura sua fidelidade; pelo m que digo que êssoutros alvitres que são contra os homens, e que Vossa Mercê disse que não saíam da fazenda do rei, êsses tenho eu por mais prejudiciais

25 a essa mesma fazenda que os primeiros. E Vossa Mercê perdôe-me, que inda que governou o Estado da índia, eu hei de dizer o que entendo.

Depois que passaram os governadores cristãos, por cuja mão e orelha passavam os negócios dos

6. Note-se a omissão de preposição de em «havia trosquiar».

7, que as esfolasse em B. 21, se apura mais em B.

44

Page 79: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

vassalos del-rei, e que se punham determinada- mente a ouvir a viuva pobre, o casado necessitado, o preso atribulado e o soldado aleijado, aos quais davam breves despachos no joelho (porque estes

5 são os verdadeiros e bons despachos), introduziu depois o Diabo de alguns anos pera cá fecharem-se os governadores e viso-reis; que, pera justiça e re- zão, haviam de ser como Lívio Druso, tribuno do povo romão, do qual se conta que, vivendo nuas

10 casas na praça mui devassas de todas as partes, se lhe ofereceu um grande arquitecto pera lhas mu- dar, de sorte que ficassem encobertas; ao que lhe respondeu: «Que lhe faria mais amizade se lhas fizesse mais devassas, porque o ministro havia de

15 estar em lugar púbrico, e verem todos como vivia e acharem-lhe a tôda a hora portas abertas».

Estes haviam de ser os viso-reis da India e ofi- ciais da fazenda e da justiça, e também os dêste reino, que não haviam de ter portas nem janelas

20 fechadas, pera que fôssem vistos de todos, e pera a toda a hora lhe requererem justiça; mas agora, por gravidade, a que eu quisera pôr outro nome, se fe- cham os governadores a cinco portas, por furtarem o corpo a negócios alheos, para entenderem só nos

25 seus; e se acertam algua hora de darem dous dias no mês audiência às partes, inda assim é pera dano

10, devassas: devassadas, sujeitas à vista de todos. Em B: devassadas.

12, que ficasse mais recolhido em B. 13, que antes lhe faria em B. 13, faria mais amizade: seria mais seu amigo. Ex-

pressão arcaica. 24, entenderem: se ocuparem.

26 e seg. é por amor do dano diles em B.

45

Page 80: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

delas; porque não sei qual foi o primeiro infernal que remeteu a petição do negócio, que dantes se despachava no joelho, à mesa da Relação, onde alguns desembargadores, por se mostrarem grandes

5 juristas, lá lhe saem com dúvidas, que do negócio que não é nada o fazem mui grande e duvidoso; e quando o prove requerente espera polo seu despa- cho, que o acha tão diferente e embaraçado, reme- te-se ao mais certo: vai ter ao apaniguado do go-

ro vernador ou viso-rei, e lá o satisfaz de feição que a outro dia lhe dá a petição despachada como queria, sem as dúvidas de Bártolo lhe fazerem nojo, por- que o dar tira as dúvidas, aplaina os caminhos, faz as leis claras e as vontades certas.

15 Mais: quer o feitor ou juiz d'alfândega e todos os mais oficiais ir entrar em seus cargos; hão mis- ter do governador as provisões, que se concederam aos mais, gastam muitos dias e muitos meses por casa do governador e do secretário sem ser respon-

20 dido; porque o que não sabe a pancada ao vinte nem a moeda que corre, quer-se negociar ordinária-

1, infernal: homem diabólico. Adjectivo substan- tivado.

12. Bártolo era um grande jurista italiano da Ida- de-média muito em voga até ao século XVII.

12, lhe fazerem nojo: o embaraçarem. 16, irem em A; ir em B.

19-20, sem ser respondido, em vez de «sem serem res- pondidos». O autor tem em mente cada um dêles. Esta irregularidade na concordância, chamada silepse em gra- mática, é freqflente no texto.

20-21. Entenda-se: «o que é inexperiente no jôgo e não conhece a corrupção burocrática».

21, quer-se: quere.

tf

Page 81: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

mente apresentando sua petição, que é logo reme- tida ao secretário, a qual, como lá cai, é como alma perdida; porque, como os governadores e viso-reis deram nesta estocada, e por aqui determinaram en-

5 riquecer os seus, furtarão também a água ao secre- tário, e, quando vai com seus papéis, não lhe falam a propósito às petições das partes.

E vendo os homens a dilação, e sendo aconselha- dos do caso, fazem novos apontamentos, guarneci-

10 dos de alcatifas finas, colchas ricas, cadeas d'ouro, e outras cousas desta sorte, com que se vão ao ca- mareiro e privado, que os festeja e lhe diz que em tudo pede justiça; e assi ao outro dia lhe dão os apontamentos despachados como êle quer, e os mais

15 dêles em prejuízo da fazenda do rei; porque as pe- ças que deram hão de trabalhar depois polas forrar; porque inda que meta a mão na fazenda do rei

0 tudo o que quiser, tem entendido que, como chegar com mãos pesadas, que se lhe hão de despejar as

20 portas. Esta estocada entra mais na fazenda do rei, quan-

, do se despacha um capitão pera ir entrar em sua fortaleza, e assi também lhe custa mais, porque lhe

2, como lá cai: apenas lá cai. . 4, deram nesta estocada: descobriram êste golpe,

esta manha. 5, furtarão a água: enganarão ? Couto parece alu-

dir aqui a uma superstição popular, que a Câmara de Lisboa procurou abolir em 1385. Cf. Fernão Lopes, Cró- nica de D. João I, Parte II, cap. 41. Em B: furtando também a Goa ao secretário.

7, prepósito é a lição corrente em A. 13, pede. em lugar de pedem. Logo a seguir usa o

verbo e sujeito no singular.

47

Page 82: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

monta mais; levam duas resmas de papel de pro- visões, uas contra el-rei, outras contra o povo; e assi as desordens, tiranias e opressões que com êles usam, só entre bárbaros se acharam, das quais

5 adiante melhor trataremos. As provisões que lhe passam são que lhe fazem

mercê de três e quatro mil cruzados nos dereitos de suas fazendas, à volta dos quais findam dez e doze mil. Fazem contratos de cousas que há na terra

io para onde vão, e no preço dêles lá vão outros tan- tos mil pardaus del-rei, que êles logo tomam d'ante- -mão; e o que compram pera el-rei sempre é o peor. Pedem que ninguém possa mandar nau ou navio pera tal porto senão êles, como se o mar e navega-

15 ção não fôsse comum a todos; com o que impedem o comércio dos moradores que sustentam as forta- lezas.

Emfim não sei pera que me canso: passam-lhe, senhores, provisões pera tiranizarem ao próprio rei

20 e a seus vassalos, que nunca vi outros mais aper- reados que os que vivem pelas fortalezas, porque, té de suas própias mulheres não usam sem licença do seu capitão, porque alguns querem só usar de algõas; e eu me achei em ua fortaleza, onde me afir-

25 maram que, porque um morador se queixava que um capitão lhe tomava sua mulher por fôrça, o mandou êle chamar a sua casa, e com ua cana lhe dera muitas pancadas, porque o infamava do que

6-7, que lhe fazem ainda três em B. 11, pardaus: moedas de ouro (360 réis) e de prata

(300 réis) correntes na Índia. 28 e seg. Entenda-se: «porque dissera o que era sabido

por tôda a gente».

48

Page 83: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

estava na praça. Ora por aqui poderá Vossa Mercê julgar o que será tudo o mais.

Fid. — Não vos posso negar tudo o que dizeis; mas dcomo quereis vós que negue eu a um fidalgo,

5 com que me criei, e que tem servido o rei muitos anos com despesas de sua fazenda, as mais dessas cousas que apontastes ? — pois vejo que é rezão que no colher do fructo de seus trabalhos, um gover- nador os favoreça, inda que seja um pouco contra

io a fazenda do rei,porque não é êle tão enganado que não saiba tudo isso, nem será tão pouco amigo de seus vassalos, que não folgue de enriquecerem em suas fortalezas, pois vê que muitas vezes tornam a gastar muita parte em seu serviço, pelo que dis-

15 simula com tudo; porque por derradeiro são fidal- gos, a que êle tem obrigação.

Sold. — A tudo hei de responder a Vossa Mercê: 4 quanto ao que diz, que se não pode negar o que

apontei ao fidalgo, que serviu muitos anos com des- 20 pesa de sua fazenda, estava isso muito bem, quando

êles em Portugal venderam muitas quintãs e moios , de renda pera vir gastar nêsse serviço; mas os mais

dêles vem de Portugal sem um cruzado, e inda sem ua capa, e logo começam a puxar pela mercê do

25 governador, pelo empréstimo do casado, que foi da obrigação de seu pai, ou pelo dq outro, que pre-

8, fructo em A e B. Não se sabe se seria um lati- nismo ou se aquele c representaria antes um t. Inclinamo- -nos para a primeira hipótese. Por isso mantivemos o c, porque poderia ser pronunciado.

25 e seg. que foi da obrigação de seu pai: que deveu favores a seu pai.

26 e seg. pelo do outro, que pretende de lhe casar com a filha: pelo empréstimo de dinheiro do outro, com cuja filha pretende casar.

4 49

Page 84: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

tende de lhe casar com a filha, a cuja conta lhe gasta tôda a fazenda, não em sustentar soldados nem ter casas d'armas, senão em passear por Gôa

5 em cavalos gordos a mór parte do ano; porque, qua- tro meses que andam no Malavar, lhe dão logo fla fusta com ordinária e mercês que lhe sobejam.

Por onde pode Vossa Mercê dizer que o rei é o que gastou, e o casado néscio, que lhe deu o seu

10 à conta de lhe casar com sua filha, que fica com ela infamada e sem dinheiro; e o que peor é: que cuidam estes senhores, como põem os pés na Índia, que o mundo é só pera eles, e que tudo é seu, e que o em- préstimo que os outros lhe fizeram lho deviam por

15 fidalgo. E sucede aqui Qa cousa muito graciosa: que al-

guns dêstes são bastardos, filhos de algum fidalgo criado lá na Beira, que nunca o viu o rei nem lhe souberam o nome, os quais êle toma, por via de

20 algum parente, por fidalgo; e, tirado da casa de um vilão lavrador, donde se criou, vem cá em quatro dias monarquiar; e eu, que tive muito melhor cria- ção que êle, e que passei a mocidade pelas caixas da guarda-roupa del-rei, que me soube muito bem

25 o nome, se me despacham de ua feitoria, dua forta- leza, em que êle vem a ser capitão, trata-me como se eu fôra o vilão que o criou e tudo é que «roubo el-rei» à bôca chea, e êle é um ladrão desaforado, que, pelo menor insulto que comete, merece mil

7, ordinária: ordenado, pensão estabelecida. 22, monarquiar: fazer figura de rei, basofiar.

26-28, em que êle é um ladrão desaforado em B. Fal- tam-lhe pois duas linhas.

50

Page 85: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

mortes onde houver justiça; porque nunca pagam dereitos de suas fazendas e vendem a el-rei o arroz, o salitre, a madeira, e tôdas as mais cousas desta sorte por preços excessivos, sem serem comprados

5 por seu dinheiro, porque as mais destas cousas as tomam por fôrça aos mercadores que vão às suas fortalezas pelo preço que êles querem; e com tudo o que vem a seu porto não poder comprar senão êle e de sua mão haver o rei e o povo pelo que êles

io querem, sem haver temor de Deus nem do rei, com outras infinitas tiranias, que eu direi à orelha, se me preguntarem.

E o prove de feitor, se cuspiu na igreja, o tem por excomungado, e não querem que ao sol, que

15 naceu pera todos, se aquente a êle, nem que beba água de fonte comua o que pola ventura lhe ajudou a ganhar a fortaleza, com muitas feridas e com

• ser o primeiro que se lançou na galeota dos mala- vares; e o fidalgo da briga ficou são, que não quer

20 Deus que se derrame o sangue dêstes senhores. E tanto vai isto em crescimento, que hão de vir

• os homens a não aceitarem feitorias, porque é acei- tar infâmias, deshonras e afrontas de um capitão, que eu depois não posso matar, não porque me

25 falte pera isso ânimo, senão porque acabo meu car- go, vou dar minha conta: um se vai pera França, outro pera Alemanha, vão-se gastando os anos, fa-

6, moradores em B. 7, e com: e junte-se a isto o facto de.

14-15, que o sol que nasce para todos o aquente se- não a êle em B.

16, fonte comua: fonte pública. 19-20. Note-se a soberba ironia' dêste passo.

51

Page 86: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

zendo-me velho, e esquecendo-me tudo por viver. Isto baste quanto a esta matéria, pola qual, se al- gum dia me preguntarem, direi o que agora calo, por certos respeitos.

5 Ora quanto a Vossa Mercê dizer que o rei não é enganado nas mercês desordenadas, que fazem os viso-reis aos fidalgos e capitães, que vão entrar em suas fortalezas, e que, pois o consente, o há por bem, a isso respondo que em nenhua cousa o é êle

io mais; porque, se me vós disséreis que era tanto o cabedal da Índia que abrangia pera tudo, então po- deria isso ser; mas quando êle é tão estreito, que muitas vezes por êstes desmanchos vem a padecer tantas necessidades, que muitas vezes vi deixar de

15 fazer armadas muito importantes por falta de di- nheiro, pelo que então se socorre aos casados po- bres e desbaratados em tirar empréstimos e tomar mantimentos do terreiro sem o pagarem, a que tudo se pode mais chamar tirania que necessidade,—então

20 fôra muito bom que se acharam no cofre os dez mil cruzados que se deram de alvitre ao capitão d'Or- muz, outros tantos ao de Malaca, e outros a outros das mais fortalezas, porque êsses não fazem aos fidalgos ricos e ao Estado muito pobre.

25 Donde nace que por estas faltas se socorrem os governadores a novos trebutos e imposições, e, dei- xando as cousas da guerra à ventura, fazem gran- des armadas à custa dos homens, em que alguns dêles se embarcam, não a fazer fortalezas em Chalé

30 ou em Calecut, nem a tomar Surrate, mas a escalar

17, a tirar em B; em A própriamente: e tirar. 18, terreiro: depósito de mantimentos.

5*

Page 87: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

as fortalezas do norte, xaquear os vassalos do rei, pôr-lhe mais dereitos em suas fazendas, acrescen- tar-lhe imposições novas no arroz e bate das aldeas, que pagam o fôro; e assi por ua parte tiram do san-

5 gue do povo vinte mil cruzados, que cada ano acre- centam à renda do rei, e por outra despendem na armada em que vão destruir cristãos cem mil cru- zados; e, o que peor é, que desacreditam o Estado, porque melhor sabem os imigos estas cousas que

ro nós próprios; e assi não fazem já mais conta de um viso-rei que de um pau.

Diferente fôra, o dinheiro que se despendeu nesta armada estar no cofre do tesouro; porque as tais jor- nadas nem Deus as consente nem o rei as quer,

75 antes estranhará muito, sabendo as necessidades de seu povo, porque obrigação de honra é desalivar os vassalos de trebutos e imposições.

• Gentio era Dario, rei da Pérsia, e, constituindo certos trebutos a seus povos, chamando os prinçi-

20 pais lhe preguntou se eram grandes. Repondendo- -lhe que eram honestos, lhe mandou ainda tirar a

• metade; porque era tal sua bondade, que aquilo que a seus vassalos parecia moderado, lhe parecia a êle muito. Pois êste reino mui ricos tinha, em que

25 podia pôr largos tributos; mas entendeu a grande obrigação que os reis tem de sustentar seus vassalos, como temos da Escritura em ua fala, que Acab, rei de Samária, fez aos israelitas,na qual lhe disse

1, xaquear: causar prejuízo, destruir. Têrmo do jôgo do xadrez.

3, bate: arroz em casca. 16, desalivar: aliviar. Formação parecida à do po-

pular desinquietar.

53

Page 88: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

não havia cousa mais conveniente pera o rei que sustentar e defender seus vassalos e povos, inda que fôsse à custa de seu própio sangue.

E assi por êste amor e bondade lhe aconteceu 5 que, estando cercado del-rei Adado da Síria e del-rei

de Damasco com muitos'grandes exércitos, e posto em grandes desconfianças, que, sintidas por 6eus vassalos, querendo arriscar a vida por salvar o seu rei, saíram trinta esforçados mancebos a vigiar ao

io arraial dos imigos, e, sintindo-os dormindo, deram nêles com tanto esfôrço, que com morte de muitos os puseram em tamanho desbarato, que quando el- -rei Acab saiu, já os imigos eram todos perdidos: que desta maneira se arriscam os vassalos favore-

15 eidos! De que pudera dar outros muitos exemplos, que deixo, por não enfadar.

E, concluindo na matéria dos alvitres contra os homens, digo que quem quer ser despachado de algua cousa fale com a bolsa; e chegou isto a tanto,

20 que pôr um cumpra-se em ua patente a um homem meu parente pera ir entrar em um cargo, de que era provido, nunca o pôde alcançar senão com dar Oa colcha a um privado de um governador, sendo obrigação sua pôr aquele cumpra-se na patente de

25 el-rei a todo tempo que lha apresentarem. Desp. — Estou pasmado de ouvir tanta cousa,

de que cá estamos todos bem inocentes! Peço-vos, por mercê, que vades por diante, por vos não inter- romperdes do discurso que leváveis.

20, patente: carta de nomeação para um cargo civil ou militar.

27, inocentes: ignorantes.

54

Page 89: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

CENA VI

Do terceiro alvitre, que é contra Deus, e de muitas cousas outras, em que os governado-

res são dissolutos.

Sold. — Agora me cabe o terceiro alvitre, que é contra Deus, porque em muitas cousas encontra sua divina bondade e justiça: no qual me deterei o menos que puder, porque em outros lugares, se

5 tiver tempo, tratarei do que agora me faltar. Primeiramente, tanto que um viso-rei chega à ín-

dia que começam a correr os alvitres a seus apani- guados: os primeiros são as ouvidorias das forta- lezas, a que acodem logo muitos devotos mais das

10 mangas da justiça que dela; e lá se metem com quem os pode negociar, e, prêço apreçado, con- forme para onde se requerem, são despachados; de

• modo que estas varas renderam ao camareiro ou apaniguado três, quatro, cinco mil cruzados, senão

15 quanto me afirmaram que houve vara que montou mais de dous mil, afora peças e brincos.

• E com tanta facilidade vão estes julgar, sem o chanceler os examinar, como se tiveram cursado muitos anos o Dereito, e alguns pola ventura que

20 não sabem bem lêr e escrever; e coitada da justiça, em que poder se vê! Porque o que compra a vara há de tirar a limpo o que deu por ela e o com que se há de sustentar três anos, e inda há de ajuntar

2, encontra: vai de encontro a, é contrário a. 14-15, senão quanto: além de que, e até mesmo. O

sentido desta locução, muito da maneira de Couto, não está ainda bem determinado.

55

Page 90: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

pêra quando vier outro viso-rei acudir àquela ga- lhofa; porque há alguns tão grandes negociadores disto, que ficam tendo estas varas de juro, e correm todas as fortalezas, como quem vai a vindimar suas

5 vinhas, e a qualquer que chegam com a vara na mão, são os compadres tantos, os empréstimos pera China, as peças e presentes, que não cabem em casa; e mal polo que não tem que dar, que êsse é o que vem pagar o pato!

io Deixemos as desordens e injustiças que aqui suce- dem, que é nunca acabar; porque nestas cida- des quem mais pode tem mais justiça e nunca nesta tea de aranha se prendem senão os mosquitos; por- que baneane, que orinou em cócoras, é logo conde-

15 nado; o gentio que pelejou com outro e lhe disse ua ruindade, é logo metido em ferros; e o compadre e o rico, que quebraram os bofes a êsse gentio e lhe tomaram sua fazenda por fôrça, e o tiveram preso em casa, é cousa leve, pode-o fazer, que tem licença

20 pera tudo. O mouro, que no seu Moçafo jurou falso, que seja preso e que pague pera as obras da justiça; e o compadre, ou o que lhe fez o empréstimo, que

6, compradores em B. 9, pagar o pato: ficar prejudicado, pagar as favas.

Em B: pagar o fato. Veja Sá de Miranda, Obras. II, 84, 1. 12 («Clássicos Sá da Costa»),

10, Dissemos em B. A redacção primitiva seria dixemos?

14, baneane: comerciante indiano, que segue a seita religiosa do jainismo, célebre pelo seu grande amor para com os animais.

17, quebraram os bofes: cansaram com demandas judiciais.

20, Moçafo: Alcorão, livro religioso dos árabes. Em A: Mosafo.

50

Page 91: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

perjurou no juízo nos Santos Evangelhos, que não pague ua tanga nem o que devia a quem o deman- dou.

O feito do mouro nacodá, ou capitão da sua nau, que está pera ir pêra Ormuz, e que por ventura não tem justiça contra o mercador sôbre os fretes ou ou- tros contratos que antre êles há, com duas alcatifas que lhe dá, com lhe levar algua fazenda fôrra de fretes, lhe sobeja a justiça poios telhados. E isto inda em feitos de muita importância, a que o pa- ciente não pode falar, e vai com sua apelação à mór alçada gastar sua fazenda, onde pola ventura e sem ela lhe fazem pouca justiça, ou ao menos vagarosa; de maneira que o que demandava dous mil cruza- dos, que lhe deviam, quando por fim vem haver sentença e faz conta com a bôlsa, não lhe ficaram quinhentos líquidos, que a demasia lá se foi em gas- tos e em peitas.

Mais: nas inquirições e devassas do amigo, que matou o homem, ou em que foi adúltero, como o ouvidor e o inqueridor, em lugar que a testemunha diz vi, dizem êles ouvi; onde há de dizer sim, dizem não; e na defesa lhe recebe todos os artigos dela, os quais se provam como êle quer; e quem morreu, morreu, e o matador passea logo, e o que é pior:

a, tanga: moeda indiana, que valia cêrca de três vinténs.

4, feito: processo. 4, naeodá: capitão de navio; necodá em B.

4-9. Note-se o irregular da construção dêste período, aliás cheio de enérgica expressão. Estas irregularidades, anacolutos e silepses, devem-se em grande parte ao carác- ter vivo, oral, da linguagem de Couto nêste livro.

57

Page 92: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que se dizeis a um dêstes que olhe o que faz, e lhe perguntais como deu aquela sentença tão injusta, responde-vos muito desagastado: — Lá estão os desembargadores, que a farão, que eu não entendi

5 mais. E não se lembra o infernal que tôdas as per- das que deu à parte e tôdas as despesas que lhe fez fazer nas apelações, que lhas deve, sô pena de se ir ao inferno.

Basta que êste é o mór sinal que eu tenho da fn- 10 dia não prevalecer: venderem os governadores os

cargos da justiça a quem a há de vender tão clara- mente; porque nunca o Império Romão começou a declinar, senão depois que o imperador Cómodo Antonino XIX, que sucedeu a Marco Aurélio, cento

15 e oitenta anos depois da vinda de Cristo, começou a vender os magistrados e ofícios públicos por di- nheiro, que foi o primeiro que ensinou êste caminho pera se os reinos perderem.

Fid. — Isso não pode ser menos, porque na ín- 20 dia não há tantos desembargadores ou letrados ju-

ristas, que possam servir tantas fazendas; e já que hão de dar essas varas a Pedro, que não é letrado," jque monta mais dar-se a Joane? Que essas injusti-

3, desagastado: agastado, ofendido. Compare-se com o têrmo desalivar. a pág. 53, 1. 16.

4, que a farão: que farão justiça. 7, sõ: sob.

" 14-15. Cómodo Antonino, filho de Marco Aurélio An- tonino, foi própriamente o 18.0 imperador a contar de Augusto.

15, cento e oitenta e dous anos da vinda de Cristo em A.

18, para seus reinos se perderem em B. 23, Joane: João. Forma antiga. Em B: João.

58

Page 93: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

ças que dizeis, o governador não lhas manda fazer, nem êle quer que se meta ninguém no inferno. E quanto ao que se dá ao meu camareiro e ao meu criado, que são duas colchas, outras tantas alcati- fas de bofatás e outros brincos de ouro ou de prata, isso é nada, pode-os levar, que eu tenho teólogos, que me aconselham e dizem que é vender privança e não cargos; mas é não haver outros homens mais suficientes que os sirvam; que, quando os houvera, inda nisso tinham algua rezão.

Sold. — Oh! de quanto privado dêsses e de quanto teólogo, que isso aconselha (se assi é, o que eu não cuido) está o inferno cheo! Que quer dizer vender privanças? Em que lei divina ou humana se achará que, por me fazerem pagar a minha nau, que me compraram pera el-rei por cinco mil par- dáus, que hei de dar ao privado três mil? Isso é in- famar os teólogos e fazê-los autores de roubos. Fa- çam os governadores embora suas sem-justiças, e não dêm por autores os religiosos, que é outro pe- cado sobre si; e assi ficam fazendo dous de mui grande restituição, um do dinheiro e outro da fama.

Ora, quanto a dizerdes que se repartem essas va- ras por êste modo, por não haver outros homens mais suficientes, a isso respondo que há muitos anos que se não costuma buscar homens pera os car- gos, senão cargos pera os homens. E quem os quiser

5, bofatás: tecidos finos de algodão, fabricados principalmente em Baroche. Em B: bofetás, que é a forma mais usual.

9, quando os houvera: ainda mesmo que os hou- vesse.

27, senão: mas sim.

59

Page 94: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

buscar, achá-los-á; mas não se acham, porque se perdem os privados dos viso-reis em se êles acha- rem; porque êsses não hão de peitar, mas hão-lhe de rogar e fazer muitas mercês, por que a neces-

5 sidade lhes não seja ocasião de cometerem em seus cargos ua desordem. O que entendendo bem os car- taginenses, ordenaram que todos a que se dessem os magistrados fôssem ricos; porque, sendo pobres, não poderiam fazer justiça verdadeira, por que pola

io ventura, forçados da necessidade, não fizessem al- gum desatino.

Busque o governador homens ricos, que os há desinteressados, faça-lhe honras e mercês, achará quem administre justiça aos pobres, queêstessãoaos

15 que ela falta, e em que o rei há de ter mais o ôlho: em os prover, administrar e defender dos grandes, porque os pobres e pequenos são os falcões e açores, com que os reis caçam e roubam os céus.

Conta Rafael Volaterrano de Amadeu, duque de 20 Sabóia, casado com ua filha de Carlos VII, rei de

França, que foi príncipe que mais olhou e susten- tou pobres que todos os do seu tempo, e com êles, gastava a mór parte de sua fazenda, que, preguntan- do-lhe um dia um embaixador polas aves e cães

25 com que caçava, porque em Sabóia havia grandes montarias e volatarias, que, levantando-se com êle a ua janela, lhe mostrara muitos pobres, a quem seus esmoleres andavam repartindo esmolas, e lhe " dissera que aquelas eram as aves e cães, com que

30 esperava de caçar os céus: palavras de cristão e de

8, magistrados: cargos da magistratura. 19. Rafael Volaterrano, humanista da Renascença.

60

Page 95: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

príncipe justiçoso! Porque pera os pequenos há de estar o rei e governador sempre aparelhado pera os favorecer e lhe fazer justiça; porque os poderosos e soberbos todo o mundo é seu, não tem para que

5 haverem mister quem olhe por êles, nem quem lhe faça justiça; que a êstes a costumam fazer tanta, que ficam sendo injustiças contra os pobres.

Vamos a algum exemplo de reis favorecedores de pobres. Flávio Suintila, filho de Recáredo, rei dos

io godos, foi tão favorecedor e amador de pobres, tão caridoso e humano com êles que não teve outro no- me senão pai de pobres: nome mais alto e grandioso que de rei, e de mais majestade que de emperador, que são títulos que homens da terra inventaram; mas

15 pai de pobres, título do céu, apelido de Deus, a quem só chamamos pai, e ao qual nome se êle move mais de misericórdia que a todos!

Pois a êste rei pai, de que imos tratando, fez Deus • Nosso Senhor tantas mercês que lhe deu vitória 20 contra os rucones, venceu e desbaratou os romãos,

e os deitou fóra de tôda a Espanha, por onde me- receu de ser senhor de tôda ela, até do reino de Por-

• tugal; e assi viveu nêste império muitos anos em paz e concórdia, porque desta maneira paga Deus a

25 quem o agasalha e favorece em seus pobres. Suce- deu-lhe seu filho Richimiro, mau, perverso, desca- ridoso pera com os pobres; polo que veo logo a per- der os reinos, que Sesinando com o favor dos france- ses lhe tomou.

30 Ora zombai com desfavorecer os pobres! E pode

20, romãos: romanos. 23, e ai viveu em A, que nos parece êrro.

'6l

Page 96: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

muito bem ser que por isso castiga Deus Nosso Se- nhor o Estado da Índia: polo pouco caso que os governadores fazem dêles; de maneira que pelas de- vassidões e injustiças que contei, parece que abre

5 Deus Nosso Senhor sua mão daquele Estado, pela soltura com que vejo viver a todos; porque assi vivem todos à sua vontade, tanto me dá mouro, como gentio, ou judeu, que se lhes não dá de come- terem culpas, porque sabem que logo se remirão

io delas com dinheiro. E por outras injustiças e devassidões como estas

esteve o reino de Castela quási perdido em tempo del-rei D. Henrique, quando aquele excelente filó- sofo e insigne poeta Fernão de Pulgar fez aquelas

15 graves e sentenciosas trovas, chamadas Mingo Re- vulgo, que por ver ir tudo perdido e viverem todos à sua vontade, sem temor de Deus nem obediência da lei, de que o rei tinha tôda a culpa, o reprende naquela trova, que diz assim:

20 Modorrado con el sueno, no lo cura de almagrar, como quien no espera dar cuenta dello a ningun dueno;

15. O Mingo Revulgo é uma sátira politica e social aos desmandos do tempo de Henrique IV de Castela. Foi ' muito conhecida em Portugal, e até a primeira edição conhecida parece ter sido impressa no nosso país.

19 e segs. A trova alude ao povo, representado sob figura de um rebanho abandonado pelo seu pastor, e no qual já se não distinguiam as ovelhas cristãs das judias e mouras.

20, moderado em B. 21, almagrar: pôr sinal de almagre nas ovelhas, para

as distinguir.

62

Page 97: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

quanto yo, no amoldaria lo de Cristóval Mexia ni dei outro tartamudo, ni dei meco moro agudo: todo va por una via.

Em lhe chamar modorrado ao rei dá bem a en- tender que o rei que não cura de seu povo, e que lhe não faz administrar justiça, que está dormindo um sono de descuido e com femesis de doudo; por- que natural é do doudo romper-se e estragar-se: assi o rei ou governador, que deixa estragar e des- baratar o seu povo, está doudo e franético; porque se os reis houveram de dar conta a alguém de seus descuidos, não houvera tantas desordens; ou se castigassem um governador pelas que faz na índia, esperaram os homens haver algua emenda.

Querendo os lacedemónios prover nas desordens dos reis, pera que governassem com mêdo dos ho- mens, quando o não tevessem de Deus, ordenaram aqueles éforos, que eram uns magistrados novos, como ditadores de Roma, que tinham inteiro domí- nio e potestade sobre todos os outros príncipes e governadores; os quais serviam de desagravar os pequenos e acudirem às injustiças que os reis fizes- sem a seu povo. E o primeiro que teve êste cargo foi Elato, cento e trinta anos depois de Licurgo, sendo rei de Lacedemónia Teopompo; o qual era tão bom e moderado que consentiu êste novo ma- gistrado, tendo mais ôlho ao bem e quietação de seus vassalos, que a seu particular gôsto e inte-

i, amoldar: o mesmo que almagrar, distinguir.

63

Page 98: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

resse. E sendo reprendido de sua mulher, porque consentia em seu reino outrem que mandasse mais que êle, que seria causa de o deixar abatido a seu filho, respondeu que antes lhe ficaria mais seguro

5 e durável quanto fôsse mais confirmado em boas leis e seus vassalos menos avexados.

Estes eram os reis, que se podiam chamar pais do povo; e não menos de louvar são os nossos cris- tianíssimos reis de Portugal, que, com o mesmo zêlo

10 de pais, ordenaram também juízes de sua conciên- cia pera desagravarem seus vassalos, que também respondem aos éforos dos lacedemónios. E em- quanto êste bom santo costume durou, tinham os vassalos sempre aquele último remédio, ao menos

15 na Índia, onde é mais necessário que no reino, por- que nela os viso-reis e governadores são supremos. E emquanto nela houve esta Mesa de Conciência, estavam êles algua cousa enfreados, e não viviam tão livres.

20 E tornando à trova de Fernão de Pulgar: dava a entender andar naquele tempo tudo tão confuso que se não atrevia a diferençar os cristãos, a que êle chama Cristóval Mexia, porque adoram o ver- dadeiro Mexia, já vindo, nem os de outro Tarta-

25 mudo, pelos judeus, que entende por Moisés, que

17. A Mesa da Consciência era uma Junta Consul- • tiva do rei, composta de eclesiásticos e que se pronun-

ciava sôbre os costumes e a ortodoxia. 20 e segs. Couto segue nesta explicação o comentário de

Hernan de Pulgar, que não foi talvez o autor da sátira. 23-24, porque adoram o verdadeiro Mexia não vem

em B. 24, Mexia: Messias.

^4

Page 99: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

era tartamudo, nem do meco mouro e agudo, pelos mouros, que seguem Mafamede, que é venerado na casa de Meca; de sorte que se não diferençavam uns dos outros, porque todos andavam e viviam a seu gôsto.

Ora tornemos às sem-justiças dos governadores. Direi outra, que hei por mór que todas as que se fazem contra Deus. Morreu o cidadão rico e honra- do: deixou a filha com doze, quinze e vinte mil cru- zados; faz o criado do governador disto alvitre e pede-lhe que o case com ela, o que êle faz com mui- tas fôrças que usa e com grandes promessas que faz ao juiz dos órfãos e ao tutor, senão quanto houve um, que prometeu o cargo ao juiz por outros três anos, e lá teve modo com que o meteu na eleição, e o fez sair nos pelouros, contra os previlégios e li- berdades da cidade; e assi a moça, filha do cavaleiro muito honrado, que pudera casar com outro rico e remediado, fica casada com um criado seu lá do mato, sem partes nem calidades; e muitas vezes por esta causa vem a fazer mil desmanchos.

Mais: fica outra órfã rica em poder do tutor, com outra pancada de dinheiro; vem outro criado a pe- di-la; e tanto anda o governador sôbre êsse negócio que entra em partido com o tutor, que, de quinze mil pardaus que a moça tem, lhe dará dous mil; e por aqui a leva. E nunca até agora vi nenhum viso- -rei tomar a filha do cavaleiro honrado muito pobre (que há muitos na Índia sem remédio), e casá-la

1-2, nem os mouros em A. 13, senão quanto: e ainda, e até mesmo. 23, pancada: grande porção.

65 5

Page 100: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

com o seu criado rico pela emparar, porque não tratam senão de o fazer ao seu criado. E o mesmo que digo destas órfãs, digo da viuva rica, que lhe ficaram aldeas de dous mil pardaus de renda, a qual

ç o governador casa com o criado e lhe abate no fôro e tira a obrigação do cavalo; e além da ofensa que comete contra Deus em usar de fôrça, faz furto con- tra o rei, no que lhe abateu no seu fôro; de ma- neira que nestes casamentos não há livre alvedrio,

10 que até dêle são os governadores senhores absolu- tos.

Desp.— Muito me contastes; graves cousas vos ouvi: não sei como Deus Nosso Senhor dissimula tanto com tanta torpeza! E assi corre isso? Digo-vos

15 que tão escandalizado fico dessas cousas, que a pri- meira vez que delas posso fazer lembranças a el-rei, não deixarei de o persuadir a que rijamente castigue tamanhas dissoluções, principalmente nesta cousa dos casamentos; porque não é justiça que a filha do

20 cavaleiro mui honrado e com muito dinheiro case dessa sorte com criados pobres e tanto além de- las. Realmente, que não sei como os não remorde a conciência.

Sold. — Perdôe-me Sua Mercê: assi como ospoe- 25 tas contam que os que passam aquele rio Lete per-

dem a memória de tudo, assi os mais dos viso-reis em passando o Cabo de Boa Esperança a perdem

I, rico. E o mesmo em B. 3, de o fazer: de fazer rico. 6, a obrigação do cavalo: a obrigação de servir na

guerra com o seu cavalo. 21, tanto além. Hoje diríamos: «tanto aquém». Em

A: a ri delas.

66

Page 101: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

de tudo, e não sei se diga que o temer a Deus e ao rei.

Fid. — Folgo que pera nenhua dessas cousas que tratastes tive tempo; porque nesses poucos meses

5 que governei, não me veio nada disso ter às mãos; e que me viera, nisso que dizeis dos casamentos, também o fizera, porque eu sou obrigado a honrar os meus e fazê-los ricos.

Sold. — Isso é verdade; mas honrá-los com des- 10 honrar o próximo não pode Vossa Mercê fazer; por-

que assaz de afronta se faz ao homem, inda que já morto, em lhe tomarem sua filha e a darem a quem a êle não houvera dar, se fôra vivo, com a fazenda que êle adquiriu com tanta lançada, com tanto in-

15 fortúnio e trabalho, pera a dar a sua filha e casá-la a seu gôsto com quem a honre e com que se honrem os parentes. E se aquela lei, que fez Sólon, como Plutarco em sua vida conta, defende com tanta rigo- ridade que nenhum vivo seja ousado a dizer mal de

20 nenhum morto, [quanto mór pena terá logo, não-o que diz dêle mal, senão o que lhe faz mal na honra e na fazenda!

Deixemos a ofensa que faz contra Deus, que é o principal, pois vai contra os santos Concílios, prin-

25 cipalmente o Tridentino, que defende que se não use de fôrça nem poder em nenhum casamento; porque há de ser com consentimento de ambas as partes; e muitas vezes nem a órfã tem idade para consentir nêle, nem lhe dão lugar pera isso. E por-

30 que cuido tenho já enfadado, deixarei a matéria do quarto alvitre pera outro dia, porque também terei tempo de correr alguas cousas pola memória.

16, e com que se honrem os parentes não vem em B.

67

Page 102: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

Desp. — Não são as cousas que tratais pêra en- fadar, senão pera chorar; por isso, por amor de mim, que vades por diante com o que tratais: por- que, segundo o gôsto e proveito que tenho de vos

5 ouvir, parece que me vai fugindo o tempo. Sold. — Pola bôca dos pequenos descobre Deus

muitas vezes grandes segredos, que encobriu aos grandes e sabedores. Aí não há mais alta filosofia que a verdade. Esta, dita pola bôca de um tão pê-

ro queno como eu, faz os mesmos efeitos que houvera de fazer sendo pronunciada pola dos sabedores da terra; e neste negócio não me fundo em mais que na verdade; que ela é a que dá fala a mudos e ensina os ignorantes; e por isso irei com as matérias por

15 diante.

CENA VII

Do quarto alvitre, que é contra todos; e que cousa são dívidas velhas.

Sold. — Quando tratei dos alvitres contra os ho- mens, toquei das desnecessárias idas dos governado- res ao norte, e da grande opressão que com isso dão aos povos, e das injustiças que se usam, de que

20 algíias deixei pera esta parte, em que determinava tratar dos alvitres que são geralmente contra todos, convém a saber: contra Deus, contra o rei e contra os homens. jQue lhe parece a Vossa Mercê que torpezas e fealdades se cometem nas míseras cidades

25 que eles vão visitar? Em se o governador aposentando em qualquer

delas, se não fôr muito continente, não faltam curio-

68

Page 103: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

sos que lhe dêm por alvitre que Foão tem ua filha fermosa; e que Foã, que traz requerimento com êle, que é cortesã e bem disposta; que a outra, que tem seu marido preso, que é muito bem parecida. E

5 êstes alvitres não os traz por aí qualquer coitado; mas acontece alguas vezes ser pessoa tão grave e de tal hábito e estado, que por temor de Deus me calo.

A mim me afirmaram que houve governador ou viso-rei, que pediu de rosto a rosto a um homem

io pobre, que lhe pedia um ofício, ua filha sua que tinha mui bem assombrada; a que lhe o prove res- pondeu : — i Isso hei eu de fazer, senhor ? Nunca Deus tal queira! Minha filha não tem outra cousa de seu mais que ser honrada. Ora vêde que bofetada esta

75 pera um governador e pera se não meter logo capu- cho, ou ao menos dar um bom casamento a tal pai pera tal filha! Não me lembra o que nisso passou; que eu me achei naquela cidade, e assi ouvi contar a pessoas graves: não quero ficar em restituição de

20 nada. E se o governador ou viso-rei da índia não tiver

tanto resguardo em si como Alexandre, que não quis ver as filhas de Dario, segundo a maldade é grande, ficará rendido e desbaratada a rezão; e o

25 entendimento ficará prostrado aos pés de seus apeti- tos, que é o mais abatido estado que pode ser; por- que mór glória é vencer-se um homem a si própio que tomar grandes e poderosas cidades. E se os sol- dados virem que o seu capitão se deixa vencer da

1, Foão: Fulano. 2, Foã: Fulana.

11-12, a que lhe respondeu o pobre: Que minha filha não tem outra cousa... em B.

69

Page 104: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

moça de Cápua, como o seu Anibal, também se dei- xarão esquecer de sua obrigação.

Tanto resguardo tinham nisto os antigos capitães, e tanto trabalhavam por desviar os seus soldados

5 destas torpezas que aqueles bens que se ganhavam de boa guerra, lhe chamavam castrenses, que em latim se diz castrum; porque os soldados, segundo Vegécio escreve, haviam de ser tão castos, como se foram castrados. E de verdade que foi bom aviso

io êste dêstes antigos guerreadores; porque mais demi- nue as fôrças um acto de luxúria que a falta de um membro, como vemos que muito mais se menos- caba a virtude de ua árvore com um muito pequeno dano na raiz que com lhe cortarem toda a rama.

15 E poios obrigar a estas obras e a outras grandes de virtudes, costumavam os antigos a dar a seus soldados escudos brancos, pera que, fazendo faça- nhas tão notáveis, que merecessem ficar na memó- ria dos homens, as pudessem pintar nêles, por que

20 não imaginassem que lhes bastava a glória de seus antepassados; porque, segundo Ovídio, nem a linha- gem nem as façanhas dos avós eram bastantes pera os ennobrecer, se êles por si não eram virtuosos e esforçados.

25 Êste costume d'escudos brancos pera se nêles pin- tarem as façanhas significou Virgílio no seu livro

4, quanto trabalhavam em B. 7-9. Note-se o jôgo de palavras entre castrum (cas-

telo, fortaleza), castum (casto, pudoroso) e castratum (castrado).

8. Vegécio, escritor latino, autor de uma obra sô- bre Arte Militar.

15-16, grandes virtudes em B.

70

Page 105: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

IX, falando de Helênor, onde diz que morreu com seu escudo branco sem glória, porque o mataram tão mancebo que não teve tempo pera ganhar por sua pessoa algua cousa que nêle pudesse pintar. A

5 êste escudo branco chama Pérsio na quinta Sátira candidus umbo, dizendo que já saía da sujeição do aio o escudeiro que recebera escudo branco.

E pois tanto trabalhavam naqueles tempos os capitães de trazerem seus soldados ao caminho da

io virtude, parece que haviam êles também de obrar de feição que lhe fôssem exemplo delas; porque, se- gundo muitos filósofos, o mais certo caminho pera os grandes fazerem ir os pequenos às vertudes, é por exemplo: aquele continente e valeroso capitão

15 Cipião Africano, sendo-lhe no cêrco de Cartago presentada ua moça cativa, muito fermosa, natural numidiana, a não quis ver e a libertou e casou; a qual vitória de si mesmo engrandecem mais os escri- tores romãos, que vencer Numidia, libertar a pátria,

20 destruir Cartago, com todos os ilustres feitos que mais fez.

Polo qual, querendo os poetas engrandecer isto muito, fingem que Minos, que é no inferno juiz da ordem dos cavaleiros e inquisidor dos delitos, con-

25 tendendo diante dêle Cipião, Alexandre e Anibal,

1. Helênor, filho dum rei da Meónia e duma es- crava, foi enviado pela mãi a combater em Tróia. Guer- reiro sem nomeada, tinha por armas apenas uma espada simples e um escudo branco. Eneida. IX, 548. Em A e B: Heleno.

5. Pérsio Flaco, poeta romano, autor de sátiras. 13, vertudes em A. Forma antiga e popular. 14, por exemplos mais que preceitos; e por dar de

si iste heróico exemplo em B.

71

Page 106: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

sôbre quem levaria o primeiro carro, deu a sentença por Cipião, porque mais valeu com êle sua clemên- cia que a potência de Alexandre nem as fôrças de Anibal, visto como Cipião conquistara tôda a Afri-

5 ca juntamente com a língua e com a lança, e nunca cometera guerra, que não fôsse justificada; nem mostrara aos imigos a potência dos romãos, sem os convidar primeiro com a clemência; e nunca der- ramou sangue no campo que primeiro não derra-

10 masse lágrimas de piedade; e que não somente ven- ceu os imigos, mas a si mesmo com a rezão na moça de Cartagena.

E que, posto que Alexandre fôra humano e esfor- çado, e não quisera ver as filhas de Dario, por não

15 cair em concupicência, todavia foi vencido da cólo- ra e do vinho, de tal maneira que matara seus móres amigos. O que tudo em Anibal se nota; porque, inda que suas façanhas foram maravilhosas, todavia cheiraram a crueldade e a tirania, e com isso fôra

20 vencido, em Cápua, de Marfisa, sua cativa; e por fim se matara, por não ver o rosto aos romãos.

Antíoco o III, estando em Éfeso, viu Oa sacer- dotisa de Diana muito fermosa; e por entender de si que folgava de a ver, se foi logo daquela cidade;

25 porque antes quis cortar por seus apetitos e deixar muitos negócios importantes em aberto, que chegar a fazer ua cousa injusta e deshonesta. El-rei Age- silau, estranhando-lhe um seu privado por que não

1, o primeiro carro: o primeiro carro do triunfo. 12. O caso passou-se na tomada de Nova Cartago,

hoje Cartagena. 27 c segs. A história vem contada por Erasmo nos

Apotegmas (Envers, 1549). fl. 21 v.; mas dá-se Mega- bata como filha de Espitrídates. Em A e B: Megabuto.

72

Page 107: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

quisera ver a Megabata, filha de Antipater, que estava cativa, lhe respondeu: — «que mais queria vencer a si e ser superior em semelhantes cousas, que ganhar por fôrça de armas ua poderosa cidade;

5 porque mais é de estimar em um capitão conservar em si sua própria liberdade, que tirá-la a outros».

Gentios eram êstes todos, que trabalharam tanto por conservar a pureza, sem preceitos que a isso os obrigassem mais que os da rezão. j Confusão grande

io pera um governador cristão, estragado em seus ape- titos! Porque não somente ofende a sua honra e obrigação, mas ofende gravíssimamente a Deus, ao marido da mulher que deshonra, e afronta ao pai, irmãos e ao mundo todo que o sabe. E não só êle

rj caiu em tamanhas pecados, mas foi ocasião de seus criados cairem em outros muitos: porque por apre- sentarem a petição da viuva pobre e da órfã desem-

• parada, pera que lhe abatam no foro ou lhe pa- guem o que deviam a seu marido e a seu pai; e da

20 casada, que tem o marido preso por caso crime, ou porque deve o quartel, — lá o fazem por têrmos

« tão infames e diabólicos, que me pasma; e o que pior é, que não sei se se prezam destas cousas.

Desp. — Vós estivestes um prègador; mas não 25 me esquece que falastes em dívidas velhas. Folgara

de me dizerdes o que é. Sold. — Di-lo-ei a Vossa Mercê: é dinheiro que

el-rei deve a Pedro, a Joane e a outras pessoas, de fazenda que lhe tomaram do arroz, do trigo, do

30 bréu, do cairo, da madeira, da pregadura do navio,

30, cairo: filamentos de côco, com que se fazem cordas.

30, pregadura: pregaria.

73

Page 108: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

emfim, de todas as cousas que se hão mister pera as ribeiras das armadas e almazéns, das quais el- -rei não paga a mór porte. El-rei não, que falo mal; que êle não manda tomar o alheo; mas o governador

5 e viso-rei, que lhas tomou pera as necessidades, que por ventura se puderam escusar, porque sempre êles mesmos são causa delas; e depois dos proves dos homens andarem muitos anos requerendo o seu pagamento, sem se doerem de suas misérias, tomam

io por derradeiro remédio venderem o papel da dívida ao criado e valido do governador e ao fidalgo seu parente pola quarta parte.

Mais: vai o fidalgo entrar na sua fortaleza: entre os favores que os viso-reis lhe fazem, é provisão

15 pera se pagar de dez, doze e quinze mil pardaus de papéis velhos, os quais compra polo mesmo prêço do quarto; e em chegando à sua fortaleza, logo se paga do dinheiro por em cheo; e polo papel de quatro mil pardaus dá mil, e perde o prove ho-

20 mem três mil, com que se podia remediar, os quais o capitão ou o apaniguado do governador lhe co- mem sem escrúpulo.

Desp. — Valha-me Deus! Grande roubo, grave destruição da fazenda del-rei, e espantosa injustiça

23 das partes! Caso pera se prover e castigar rigorosa- mente !

Sold. — (Vê Vossa Mercê quantas fortalezas há na Índia? Pois cada três anos embebem nisto pas- sante de cincoenta mil pardaus, roubados às partes

30 e tomados também a el-rei e ao Estado, os quais depois vem a faltar pera cousas mui necessárias; ainda que o mais justo e necessário fôra pagarem-se às mesmas partes.

Fid. — (Que amizade quereis logo que faça ao

74

Page 109: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

fidalgo meu amigo e que tem serviços, senão essas e outras? Porque também não lhe dar é crueza; e eu não fui o primeiro que isso usou; e terão rezão de se queixar do governador, que lhe negou o que se concedeu aos outros.

Sold. — Mouro morreu meu pai, mouro quero eu morrer: de modo porque o primeiro governador isso fez a seu parente, ficou logo em costume faze- rem-no todos! Não tem êsses fidalgos ordenados? Não grangeam empréstimos de vivos, mortos e de órfãos? Não compram e vendem à sua vontade? Não são na sua fortaleza deuses? Não tiram de al- guas duzentos, cento, oitenta mil cruzados? Pois pesar de São... os dez mil del-rei de papéis velhos não se puderam escusar? porque quem tem cem mil, que tenha noventa, cincoenta mil, que tenha qua- renta; também podem viver assi como assi; e êsses a el-rei por ua banda, e outros tantos pela outra suprem muitas faltas do Estado: pois iporque senão poupa para isso?

Emquanto a me dizerdes que não podeis negar isso a um fidalgo vosso amigo, que vai entrar em sua fortaleza, amigo muito da alma era Anti- pater do grande Fócion; e pedindo-lhe ua cousa como esta, lhe respondeu; — Olha cá, Antipater, não podes usar comigo d'amigo e lisonjeiro; porque o amigo não pede a outro senão o que é justo; e o lisonjeiro tudo o que quer. Assi o fidalgo, que vê o Estado endividado e pede ao governador que lhe

7, de modo porque: de modo que, porque. 14, pesar de São... Ê o comêço de uma praga. O

soldado não concluiu por escrúpulo religioso.

75

Page 110: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mande dar na sua fortaleza a fazenda dei-rei, mais lhe podeis chamar cruel imigo que vassalo leal: porque o bom vassalo mais pretende o aumento e acrecentamento da honra e fazenda do rei que da

5 sua própria. Ora jem que lei e rezão está que a dívi- da do prove homem, que vendeu ao rei sua fazen- da, que em cinco e seis anos lha não paguem, por dizerem que não havia dinheiro, a venham os viso- -reis depois a pagar ao seu apaniguado, que Deus

io sabe que se vão forros e a partir, e que pera isso não falte o dinheiro? E praza a Deus que o não to- mem a uns pera o pagar a outros, que também de- pois lhe fique em dívida velha!

Quão fora estão êstes de serem como o mesmo ij Fócion, de que inda agora falei, o qual governando

Atenas e tendo feito alguas dívidas ao Estado pera cousas necessárias, pedindo-lhe Lámaco algum di- nheiro pera certas festas e sacrifícios, que se costu- mavam fazer de certos em certos tempos, lhe res-

20 pondeu assi: — Pelos deuses te juro que teria ver- gonha, se desse dinheiro, inda que fôsse pera êsses - e outros sacrifícios, e o deixasse de dar àquele Cali- des (apontando num homem que ali estava, a quem se devia Qa cantidade de dinheiro, sôbre o qual

25 andava em requerimento). Pois se êste bom gover- nador deixava de fazer sacrifícios aos deuses, pera pagar antes suas dívidas, quanto mais justiça será a do governador, que deixasse de dar ao parente e criado, nem inda pagar-se de seus ordenados, por

30 pagar à prove viuva e órfã a fazenda que tomaram ao pai e marido pera o serviço del-rei?

Deixo outras muitas injustiças e destruições, que padece o povo e a fazenda do rei com estas idas dos viso-reis a visitar as fortalezas do norte, por-

4

Page 111: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

que já canso e me magôo; que bem tinha inda que dizer das idas dos veadores da fazenda, que êles fazem pera irem visitar aquelas fortalezas; o que hei por um dos grandes des-serviços do rei. De ua só cousa me espanto; que não vejo viso-reis curiosos de irem visitar as fortalezas do Canará, Malavar, até Ceilão, que também são del-rei, senão só as do norte; nem sua cobiça lhe deixa ver que devem os homens de ter notado a rezão disto; mas de tudo lhe dá bem pouco; e bem poderão êles vir delas cheos de peças, brincos e louçainhas; mas também sei dizer que não vem pobres de pragas; porque, em virando as costas, as rogativas que tem de todo o povo grosso e miúdo são: que nunca passem o Cabo de Boa Esperança, que não logrem o que lhe tomaram, que por hospitais venham a morrer seus filhos; e não sei se tem a alguns abrangido estas pragas, porque Deus não dorme e sempre ouve a voz do justo, e o sangue de Abel contino pede jus- tiça de Caim.

FiD. — A tudo que tendes dito me rendo: tudo o que dissestes são bocados d'ouro. Eu fico fora dêsse jogo, porque não tive tempo pera fazer essa jornada.

Sold. — Se o houvera, também a Vossa Mercê houvera de fazer; porque seus apaniguados, que de- sejam de gostar os bofatás de Baroche e as colchas de Dio, o houveram de persuadir a isso.

a, veadores: inspectores, fiscais. Em B: veedores, forma mais antiga, de onde procedeu veadores e vidores.

13. rogativas: preces, rogos a Deus. 27, gostar: tomar o gôsto, apreciar.

77

Page 112: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Fid. — Pola ventura que o fizera; porque jmal-pecado! — mais depressa imitamos o mal que o bem.

Sold. — Isso estava pera dizer; porque o pri- 5 meiro viso-rei que passou ao norte, não foi buscar

brincos, senão pelouros, que achou em Dabul, quan- do o destruiu, e na soberba armada de Mir-Hocém, que em Dio desbaratou, com que vingou a morte do filho, e alevantou e engrandeceu tanto o nome por-

ro tuguês, que começou com isso a dilatar e estender êste Estado. Lopo Vaz de Sampaio ao norte foi; mas a buscar a armada de Agãmamude, e a pelejar com ela, como fez, destruindo-a de todo; andando com as armas às costas, a espada ensanguentada té a em-

25 punhadura, acrecentando a fazenda do rei, não com imposições postas aos vassalos, mas com mui- tas presas dos imigos.

Nuno da Cunha ao norte foi três vezes; mas a to- mar Baçaim, a fazer fortaleza em Dio, e a destruir o_ Estado de Cambaia. D. Garcia de Noronha tam-

20 bêm fez essa jornada; mas a reformar Dio e a bus- car a armada do turco, que lhe foi fugindo, sem ou- sar a o esperar. O viso-rei D. João de Crasto ao norte foi duas vezes, mas a descercar Dio, destruir o Estado de Cambaia, té se presentar nos campos

25 de Baroche àquele poderoso rei, oferecendo-lhe ba- talha, que êle não ousou aceitar; e, ao recolher, vir destruindo a costa do Idalcão e a pôr-lhe por terra a sua famosa cidade de Dabul.

2, mal-pecado! : infelizmente, ai de nós! 4-11. Hefere-se a D. Francisco de Almeida, qne der-

rotou o célebre almirante Mir-Hocém e vingou a morte de seu filho, D. Lourenço de Almeida.

Page 113: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

E a outras cousas como estas, a que muitos fo- ram, no que então punham sua bem-aventurança; e os soldados, acesos daquele primeiro furor e brio português, obravam cousas dignas de eterna memó-

5 ria; por que também eram honrados e favorecidos dos viso-reis, que se sangravam nos braços para êles. E assi naqueles tempos não os acháveis polas porta- rias e alpênderes dos mosteiros a comer dos sobejos dos frades, como depois vi; e também por isso já os

io não há, porque, desenganados do tempo e cobiças dos governadores, se lançaram a outra vida: uns pela China e Japão, outros por Bengala e Melinde.

E quatro soldados que andam no serviço já se fizeram à natureza da terra, que se não querem em-

15 barcar sem os capitães lhe encherem as mãos de di- nheiro, e cuido fazem bem: porque já que as mer- cês, que se com êles repartiam, se dão aos criados

6 dos viso-reis, e os soldos lhe não pagam senão quan- do se embarcam, negoceam-se por outra via; por-

20 que êles hão de comer, e já os fidalgos que lho davam são mortos, e tudo se vai acabando, e inda

, mal porém, porque cada dia há de ir isto de mal em peor; porque já se não pretende senão levar, e vindi- mar cada três anos esta vinha; então lá virá outro,

25 que em vez de a remediar a destrua mais; e, o que é peior: que lhe dá tão pouco disso, que eu ouvi dizer a um viso-rei, que não estava inocente: que bem via que a fndia se perdia; e que não poderia durar muito; que, onde quer que estivesse, lhe des-

30 sem novas ser tudo acabado, o sentiria.

5, por que: pelo que, e por isso. 8, alpanderes em A.

25, destruía em A.

79

Page 114: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Desp. — Segundo isso, só Deus pode remediar essas cousas polo modo que vão: que o rei não pode fazer mais que buscar fidalgos ilustres e expe- rimentados, que lhe parece o servirão mui bem,

5 e mandá-los por viso-reis.Se êles tem tão má con- ciência, que fazem essas cousas, e em vez de enri- quecerem o rei e desalivar o povo, o empobrecem e carregam de trebutos, e em vez de acrecentar o Estado, o desacreditam—de quem logo se há de

10 fiar? que cá na terra não há anjos; e do céu não os hão de eleger pera isso.

Sold. — Muitos remédios há; mas êsses não que- ro eu dizer agora; e só a el-rei os dissera, e com lhe custar ainda algua cousa; porque já que tudo o

15 mais digo de graça, essa só lhe hei de vender muito bem.

Desp. — Eu serei de parecer que vo-la paguem a vosso gôsto, pois tanto importa; mas ouvi-vos dizer que os veadores da fazenda que também vão ao

20 norte, fazem nêle injustiças e des-serviços a el-rei: folgara saber como e em quê, porque os mais dos- viso-reis escrevem o contrário a el-rei.

Sold. — Não vi cousa mais contra seu serviço; e logo o mostrarei, se Vossas Mercês não estiverem

25 já enfadados de me ouvir. Desp. — Bofé, senhor soldado, não estou; antes

me dais a vida em me alumiar nestas cousas, pera delas saber dar no Conselho melhor rezão; por isso não largueis o intento que leváveis.

8, acreditar em B. 26, Bofé: palavra de honra, juro-vos por minha fé.

80

Page 115: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

CENA VIII

De como os veadores da fazenda, que vão às fortalezas do norte, são muito desnecessários; e das desordens que se cometem na fazenda

del-rei.

Sold. Ora tenham Vossas Mercês tento, por- que por alguas rezões hei de mostrar como estas idas dos veadores da fazenda às fortalezas são con- tra o serviço del-rei. A primeira, nenhum veador da fazenda dêstes, ou poucos, vão à sua missão, que primeiro o não solicitem e o não peçam de mercê; e inda não sei se peitam pera isso grossa- mente a alguém. Do que se vê claramente que já não vai pera servir o rei, senão pera se servir a si.

Outra rezão: o fim e intento destas idas dêstes homens às fortalezas, é não se fiarem os governado- res dos feitores que nelas estão, o que parece caso de lesa-majestade, pois se não fiam de quem el-rei fia seus cargos; por que o a que êstes homens vão, é a mandar dinheiro, madeira, taboado, cifa, azeite, cotonias, arroz, trigo, navios, e tôdas as mais cou- sas pera as armadas e almazéns; e pera só fazerem êste serviço lhe dão mil cruzados de ordenado, vinte homens pera os acompanharem e lhe pagarem quar- téis e mantimentos, um navio armado emquanto por lá andarem, cinco pardaus mais cada dia pera sua mesa, e provisões pera todas as mais despesas que lhe forem necessárias e pera certos alvitres de

15, cifa: óleo de peixe usado antigamente para un- >arcos. 16, cotonias: panos de algodão, linho e sêda.

8l

Page 116: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

quinhentos pardaus de soldos velhos, e outros qui- nhentos nas dívidas dos feitores, se ficarem devendo no balanço que lhe derem; e outras cousas como estas.

5 O proveito que fazem nestas idas à fazenda del- -rei, é comprar a madeira ao capitão de Baçaim polo prêço que êle quer; e o trigo e arroz, a quem lhe manda mais capões e esquifes jaspeados,. senão quanto, se o compraram a cinco pardaus, praza

io a Deus o não carreguem a seis, e o um para êles. E por esta maneira tôdas as mais cousas à vontade de seus donos, porque também o serviram à sua vontade. Fazer despesas ordinárias e extraordiná- rias, cada hora fretar naus e navios pera levarem

15 a Gôa estas cousas a gôsto de seus donos,—qtie essas são suas mangas. De sorte que empregou el-rei dez, quinze mil cruzados nestas cousas, e o veador da fazenda que foi a isso, gasta e faz despesas de três, quatro mil pardaus; pola qual rezão fôra de mais

20 proveito comprar esta cousa em Gôa a mór valia. E o que é muito gracioso: que se entrais em casa

dêstes veadores da fazenda, achar-lhe-eis a sala, a varanda cheia de alfaiates: uns a fazer colchas de sêda e de bofetás, outros, acolchoados ricos; e lá

8, esquifes: camas para dormir a sesta ou para ser transportado; barcos pequenos.

8-9, senão quanto: se é que... não. xo, e a um em B. A forma o um não é estranha em

português antigo. 13, faiem em B. 14, fretam em B. 16, mangas: espórtulas, dádivas, presentes. 20, a mór valia: mais cara.

82

Page 117: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

mais dentro, na câmara, ourívezes a bater e fazer garrafas de prata, pichéis de obra da China, cadeas e braceletes pera as filhas e mulheres; guarnecer cofres de tartaruga, de prata e cascas de côco das

5 ilhas; e, em baixo, nas lojas, dareis em torneiros e carpinteiros a fazer esquifes de muitas feições, e es- critórios marchetados, guarda-roupas de mercená- ria; de maneira que entrais em ua casa de contra- tação, e não já de veador de fazenda. E há alguns

io tão correntes nisto, que levam provisões pera devas- sarem dos oficiais das alfândegas e capitães mouros das naus, no que lhe untam as rodas de feição que nenhum oficial, por culpas graves que tenha, o vê- des castigar, e todos são soltos e livres.

75 E sabe Vossa Mercê quanto é isto assi?: que ouvi a um fidalgo meu amigo, capitão de ua destas forta- lezas, que no seu derradeiro ano havia de mandar pedir de alvitre ao governador ua provisão pera devassar dos oficiais d'alfândega, porque lhe havia

20 de montar mais de três mil dobras, polo que sabia que os oficiais de seu tempo deram a um veador da fazenda, que lá foi devassar dêles, ficando todos em seu cargo, havendo entre êles um que desem- barcava das naus de Meca de noite os caixões d'ou-

25 ro e prata, e em sua casa fazia os dereitos que lhe ficavam, com o que engrossou muito; e por derra- deiro o diabo lhe levou tudo.

E alguas vezes ouvi queixar a êste fidalgo dêstes veadores da fazenda; e cuido que assi o escreveu a

30 el-rei, que no primeiro ano de sua fortaleza, em que um governador acabou e outro começou, tinham

11, capitães móres em B. 26, negociou muito em B.

83

Page 118: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

vindo a ela três veadores da fazenda, que fizeram de despesa à fazenda del-rei mais de doze mil par- daus. Ora, o serviço que fazem nas alfândegas é: as peças curiosas e ricas, que a elas vão, avaliarem-

5 -nas em muito menos do que valem, pera as toma- rem polo prêço; e desta maneira se enchem de pe- ças baratas, que custam a el-rei bem caras.

Em ua alfândega destas sucedeu ua vez êste caso: um mercador mouro levava pera Meca um fardo pê-

ro queno de bofatás, os mais ricos que podiam ser, que os fez de encomenda em Baroche pera os ba- xás do Turco; e indo à avaliação, lhos puserão cada um em oito pardaus, valendo a doze e a quinze, só por lhe tomarem alguns por aquele prêço; e enten-

15 dendo o mouro o caso, começou a gritar, que os seus bofatás valiam mais de quinze pardaus, que el-rei de Portugal ficava enganado na avaliação; que êle queria pagar os direitos à sua alfândega por como sua fazenda valesse. Entendendo os ofí-

20 ciais o caso, lhos puseram em dez pardaus cada um» e não lhe tomaram nenhum, de vergonha: porque antes o mouro queria pagar os dereitos, inda que foram em dobro, que tomarem-lhe os que os oficiais quisessem por menos muito do que valiam. Com

25 outras cem mil cousas, que deixo, por haver nojo de tanto roubo; porque tudo o que os veadores de fazenda vão fazer, o farão os mesmos feitores, a quem o rei dá os cargos por seus serviços, que são tão honrados como êles, e muitas vezes mais, sem

30 êsses gastos e despesas, que serão melhores poupa- rem-se pera as necessidades.

11-12, baxús; governadores de província entre os turcos.

84.

Page 119: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

Fid. — Oh! que isso não pode ser! Porque êsse feitor quer ter o dinheiro del-rei pera tratar com êle; e quer-se pagar de seus ordenados o capitão, e de outras dívidas, que cada dia faz fantásticas; e assi

5 não se fará nada, nem virá o que é necessário pera a Ribeira e almazéns del-rei.

Sold. — Êsse é o maior engano da vida. Bem sei que só por êste respeito o fazem, — de se os capitães não pagarem; mas nunca se êles pagam melhor que

io quando lá vão êsses veadores da fazenda; o porquê, êles se entendem, e eu, que não posso falar tudo; quanto mais que os veadores da fazenda já levam por lista tudo que hão de pagar e comprar, as quais cousas se puderam mandar aos feitores, que sempre

ij hão de fazer tudo a menos custo e mais barato; mas os viso-reis querem fazer essas mercês a seus apa-

0 niguados e darem-lhe êsses cinco e seis mil pardaus como por alvitre.

Desp. — Cuido que tendes rezão; porque os fei- 20 tores, que el-rei tinha na Mina e em Flandes, não

ia lá nenhum veador da fazenda comprar-lhe as cousas que se haviam mister pera os almazéns do reino; assi aos feitores das fortalezas lhes podem mandar ordem e lista do que se há mister pera o

25 terem comprado ante-tempo, e quando valer mais barato. Mas ouvi-vos falar nos soldos velhos, e que por êles se ia muita parte do rendimento da Índia; folgaria de saber o como: e deve de ser isso como as dívidas velhas, de que já falastes.

3o Sold. — Mas peor ! Saiba Vossa Mercê que isso

8, o jazem por não pagarem aos capitães em B. 26, soldados velhos em B.

I

Page 120: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

é tia lima surda, e um cano, por onde se vasa a mór parte da fazenda do rei, e o suor das partes, que o dão como quem o dá ao diabo, por mais não po- derem; e se o não dão, tomam-lho por fôrça. E eu

5 não queria descobrir mais eivas que as que tenho já dito.

Desp. — Destes-me a vida nisso; porque êsse ne- gócio da matrícula muitas vezes se praticou de se desfazer, ou de se pôr algum remédio pera não se

io ir a fazenda del-rei por êsses soldos velhos. Agora folgarei de ouvir vosso parecer, pera saber dar re- zão de mim, se se praticar neste negócio. E pois té' gora fôstes tão liberal das cousas que comprem ao serviço de S. Alteza, nesta, que não é de menos

15 importância, vos não mostreis escasso; que eu vos prometo que se vos satisfaça muito bem, e que el- -rei saiba os serviços que nisto lhe fazeis.

Sold. — Não queria mór galardão que aprovei- tar algua cousa o que disser, pera se remediar; por-

20 que quem vê ir as cousas da índia tanto de cabeça, como eu entendo que vão, assaz fará obra de bom cristão se lhe puder acudir, inda que se faça como outro Sólon, o qual, vendo a ilha de Salamina (don- de era natural) tomada e possuída dos megarenses,

25 e porque se praguejava muito dos atenienses con-, sentirem possuirem-lhe os imigos a sua ilha, escan- dalizados disso os governadores fizeram ua lei: que todo o que falasse em se cobrar a ilha Salamina,

1, lima surda: lima que vai roendo sem se sentir. Óptima comparação para o contínuo e insensível desgaste que fazia a corrupção na fazenda do rei.

5, eivas: falhas, defeitos. Em B: defeitos. 8-9, desse desfazer em A. v- ' 13, comprem: cumprem.

86

Page 121: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

«

o SOLDADO PRÁTICO

morresse por isso,—e porque a Sólon lhe doía tanto a quebra do Estado ateniense, e não ousava de fa- lar por mêdo da lei, fíngiu-se doudo; e, enchendo-se de carvão, se foi pela cidade de Atenas cantando

5 uns versos, que por prolixidade não digo, sôbre a afronta que se fazia àquele Estado, em lhe possuí- rem os megarenses sua ilha; os quais tiveram tanta fôrça que, desfazendo-se a lei, o elegeram por ca- pitão pera cobrar outra vez aquela ilha; porque

io quem lhe dóe a honra do Estado, todos os meios busca pera pôr remédio em suas cousas. Mas pois Vossa Mercê me manda que lhe diga que cousa são soldos velhos, tratarei dêste cano da matrícula, por onde se todos vasam; a qual, pelos roubos, que os

15 governadores e capitães e oficiais das fortalezas fa- zem, se tratou alguas vezes de se desfazer.

• CENA IX

Do que são soldos velhos; e do roubo que se • faz a el-rei e às partes nêles; e do remédio

que haverá pera se evitarem.

Sold. — Primeiramente, tratando de soldos ve- lhos, por que Vossa Mercê me pregunta, dar-lhe-ei informação dêles. Soldos velhos são aqueles que

20 el-rei me deve a mim, a Pedro e a Joane, dos quais haverá nos livros da matrícula mais de um milhão d'ouro; e a causa é porque todos os que passam de Portugal a estas partes, quer sejam soldados, quer casados, quer oficiais mecânicos, todos vem

22-23. Couto, que escrevia o livro em Gôa, esqueceu-se aqui que o soldado estava falando desde Lisboa.

87

Page 122: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

assentados em soldo, e vencem onde quer que este- jam, tirado Bengala ou Melinde. E dêstes são infi- nitos mortos, que tem sua matrícula em pé e seu soldo corrente; e mortos de vinte anos vencem sol-

5 do, e paga-lho el-rei, não já a êles, mas a outros, que lho tomam por esta maneira.

Vai um capitão entrar em sua fortaleza; passa- -lhe o governador provisão pera lhe pagarem quar- téis a cincoenta criados e a doze parentes; aos pa-

ro rentes, que são soldos grandes, a alguns paga, e outros recolhe pera si; mas dos criadês jámais tem consigo dez e doze, os mais recebe pera si, deitando no seu caderno o homem que já é morto, que anda por Melinde e Bengala; e outros fantásticos,

15 que depois o governador manda que se lhe levem em conta, sem embargo de se não achar título; e o escrivão da feitoria, ou por medo, ou por má con- ciência, lhe passa ao pé do caderno certidão «que teve todos aqueles homens que estão lançados».

20 Pola mesma maneira o feitor tem certos homens pera se lhe pagarem quartéis: tem consigo dous; todos os mais recebe e lança em títulos alheos. Nas fortalezas fronteiras, onde há por regimento trezen- tos, quatrocentos homens, pagam seiscentos e setor

25 centos; e nelas de maravilha se acham duzentos, e todos os mais são praças mortas; e fazem cada dia homens novos fantásticos; e depois, quando vem os cadernos à matrícula pera se descontarem ao

9-12. O texto em B tem diferente redacção: a estes . são soldos grandes que paga, e aqueles recolhe para si,

deitando no seu caderno o homem que jd é morto, que anda pela Melinde.

25, de maravilha: dificilmente.

88

Page 123: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

feitor os homens que o capitão pagou, não acham título à quarta parte dêles. E como os capitães lhe passam assinados de lhos fazerem levar em conta, apegam por êles; os quais se socorrem ao viso-rei

5 ou governador, que lhe passa provisão pera leva- rem em conta todos os que não tiverem título. Eu sei dous ou três capitães, que lhe mandaram levar em conta mais de quarenta mil pardaus a cada ua destas praças mortas. Ora se cada três anos isto

io há em ua só fortaleza jque fará em tantas? Por certo que nisto se despende a mór parte do rendi- mento.

Mais: em ua fortaleza, onde se armam todos os verões seis e sete navios, pera andarem dando guar-

15 da às cafilas, aos quais se manda pagar a vinte e cinco, e não levam mais que doze ou treze, e os mais repartem em três partes: ua pera o capitão da fortaleza, outra pera o feitor, outra fica ao capitão do navio, e a essa conta os mantimentos dêles; e

20 assi andam sem gentè estas armadas, e, se dão os • cossairos nêles, tomam-nos, como já aconteceu al-

guas vezes. . Ora veja Vossa Mercê que tal anda o serviço del-

-rei, e suas armadas como andam arriscadas. Dei- • 25 xo outras muitas sopas, que se molham nesta por-

celana de mel da fazenda do rei, que são infinitas, em que entram os oficiais da matrícula e dos con-

3, assinados: documentos, certidões. 4, o pagam por eles em B; «apegam por eles», si-

gnificará: estribam-se nêles. 15, cáfilas: combóio de navios, que tinham de ser

escoltados. ai, cossairos: corsários, piratas. 21, neles: nos navios.

89

Page 124: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

tos, que sempre tem lá com os feitores seus tratos, e lhe lançam certas matrículas, que êles fazem com muito gôsto, porque lhe hão de cair nas mãos, a uns para os descontos e a outros pera darem suas

5 contas; mas com êstes os desculpo, porque se isto não fizerem, coitados dêles, que lá hão de ir purgar suas culpas; porque a Casa dos Contos é o purgató- rio dos feitores e tesoureiros da India; e onde tam- bém há dela e dela — como lá dizem; porque já na

io índia não há cousa sã: tudo está podre e afistulado, e muito perto de herpes; e, se se não cortar um membro, virá a enfermar todo o corpo e a corrom- per-se.

E tornando à matéria dos soldos velhos: dá um 15 feitor ou tesoureiro sua conta; ficou devendo dous

mil cruzados; alcança logo provisão que pague os mil, e que os outros se lhe descontem em soldos ve- lhos de pessoas que apresentar, e já a essa conta vem com a dívida feita, e assi ajunta o soldo por

20 amigos e por os que o não são, a que sabem as ma- trículas, e são ausentes e mortos, e se lhe descon- tam. Vai um criado do governador às fortalezas do norte a fazer algua diligência de seu amo, ou quan- do chega de Portugal a levar recado às cidades de

25 sua vinda e da saúde do rei, o que lhe não monta tão pouco que não passem de duas mil dobras; e com isso leva provisão de trezentos ou quatrocen- tos pardaus de soldos velhos pera Dio ou Ormuz; e já os leva descontados pela maneira acima, e ês-

30 tes se lhe pagam em mui boa moeda. Mais: pediu o físico do governador ou viso-rei

6-7. PaRar suas culpas em B. 31, físico: médico.

90

Page 125: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

provisão pera lhe pagarem todo o soldo velho que lhe derem os soldados que êle curar; e êles, sem visitarem nenhum, porque todos vão parar no hos- pital, ajuntam cinco e seis mil pardaus por matrí-

5 cuias alheas. E um escrivão da matrícula geral me disse, falando nesta matéria, que a um físico de um viso-rei descontara por esta ordem vinte ou vinte e dous mil pardaus nos seus três anos.

E por que me não esqueça ua cousa que me pa- io rece injusta, não passarei por ela: e é que nas for-

talezas, nas pagas que se fazem aos soldados, lan- çam de dez em dez, e no cabo fazem um têrmo que fiquem uns por outros, se não tiverem dinheiro nos títulos; e se falta nêles dinheiro a algum pera se lhe

15 descontar, o fazem no título daquele que está mais perto dêle; e assi fica o paciente pagando dous quartéis: um que lhe tomam, porque lhe sabem lá na matrícula que êle nunca foi a Ormuz nem a Dio; e outro, que mais lhe descontaram, como fiador do

20 que estava mais perto dêle, que não tinha título. E isto me aconteceu a mim já; e por isso como ma- goado falo.

E por êstes exemplos se verão todos os mais meios, por onde o rei é roubado; e quando o Esta-

25 do padece necessidades, não tem donde se valer, porque a mór parte do rendimento de suas alfân- degas se vai por estas desordens.

Desp. — Folgo de ouvir essas cousas tão claras, porque nunca mas disseram senão marchando: polo

jo que nos pareceres, que sôbre isso se tomaram, nun- ca me soube determinar, como já'gora farei; pois vós com o zêlo do bom português tratais mais do que releva a vosso rei que a ninguém. Mas já que estamos nesta matéria, folgaria de me dizerdes vos-

Page 126: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

so parecer sôbre êste negócio, e o remédio que se lhe pode pôr; porque além da vossa experiência e bom juízo, havíeis de ouvir lá praticar isto a homens avisados e velhos na Índia, que dariam

5 muito boa rezão nisto. Sold. — Alguns há que a podem dar muito boa

em todas as matérias; porque as trataram e viram mais anos e melhor que os fidalgos que são chama- dos a conselho, que muitos dêles não tem experiên-

10 cia de nada; mas é esta maldição portuguesa tal, sua desconfiança tamanha, que homem que não é fidalgo não é chamado pera nada: tendo exem- plos em todas as outras nações, em que se tem mais respeito à idade e experiência de guerra que ao

15 sangue e nobreza. Mas, deixando esta matéria, em que havia bem

que dizer. jPedir-me Vossa Mercê parecer no negó- cio que tratávamos! É êle tal, que era necessário pera isso outro saber diferente do meu e de mi-

20 nha profissão; porque isso é pera homens, que cur- saram a fazenda e negócios dela mais; mas jquem há, que possa dar melhor informação disto que Sua Mercê, que cursou na Índia muitos anos de capi- tão, capitão-mór, e depois de governador da Índia,

25 diante de quem todos os negócios se trataram? Êstes e todos os mais lhe correram pela mão, junto ao diferente juízo que do meu tem, por sua ilustre ge- ração e diferente criação.

Fid. — Não consinto isso: porque não é argu- 30 mento bastante essa criação e geração que dizeis,

26-27. Entenda-se: «além da superioridade de juízo que tem sôbre mim».

92

Page 127: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

pera poder dar melhor rezão que vós, e mais em cousas, que os largos anos de experiência vos tem muito claramente mostrado o bom e o mau. Por isso ide por diante, e dai-nos vosso parecer; porque

5 o meu darei eu quando Sua Alteza mo preguntar; e pode ser que me alumieis em muitas cousas, que me terão esquecido.

Sold. — Melhor é obedecer que sacrificar. Eu inda agora sou vassalo de Vossa Mercê, como quan-

ro do o era sendo meu governador: polo que farei o que me manda. Direi o que me parece pela ordem da soldadesca; que da fazenda eu a não entendo.

Primeiramente: sou de parecer, se Sua Alteza pretende de pagar algua hora o que deve, que se

15 tirem a limpo todas as dívidas dos soldos que se de- vem a vivos em um livro e dos mortos em outro; os quais, fechados, se metam no cofre do tesoureiro, ou em ua tôrre de tombo, que na India houvera de haver pera todas as antiguidades, e se lança-

20 rem nela todas as cartas del-rei, de capitães-móres d'armadas e das fortalezas; cartas de reis vizinhos e repostas delas; formas de embaixadas; pareceres que se tomam sobre as cousas do Estado; canhe- nhos d'armadas que se fazem, com os nomes dos

25 capitães, com todas as mais cousas que podem ser- vir pera se os cronistas aproveitarem pera suas es- crituras, pera de todo se não apagar e extinguir o nome português, tão celebrado e famoso por todo o Universo; de cujo descuido pudera fazer um

50 muito largo capítulo e envergonhar tantos gover- nadores, quantos na índia houve tão pouco curio- sos do que lhes a êles mesmos cumpre; porque nesta tôrre houveram seus feitos de ficar perpétuamente em memória.

93

Page 128: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mas, tornando a nosso propósito: tiradas estas dívidas em livros separados, e feita ua matrícula dos moradores da casa e fidalgos que recebem con- tinos soldos e moradias, todos os mais livros velhos

5 sejam logo queimados; e não se use mais do modo da matéria, senão por esta ordem: Fazerem-se na cidade de Gôa seis bandeiras de ordenanças, nas quais se matriculem todos os soldados da índia por esta forma: os soldados que residirem em Gôa

io que se assentem nas bandeiras que quiserem, de que serão capitães os mais velhos e honrados fidal- gos da índia, que as ordenaram com seus sargen- tos, caporais e mais oficiais; e terá um escrivão com seu livro, em que assentem o soldado que se

15 fôr pera a sua bandeira, nome, terra e ano em que veio; e passará o governador que fôr provisões pera todas as cidades e fortalezas da índia, pera que os capitães delas com grandes penas façam assentar os soldados todos, que nas tais fortalezas ao pre-

20 sente se acharem, de que será escrivão um dos mais honrados vereadores da terra.

E quando se fôrem assentar, lhes dirá o dito es- crivão os nomes dos capitães das bandeiras de Gôa, pera que escolham em qual delas se querem assem

25 tar; e tanto que nomearem a que quiserem, o as- sentarão num livro, que pera isso terão, por êste modo: Foão, filho de Foão, veo em tal era e assen- tou-se na bandeira de Foão; e por êste modo todos os mais. E ao assentar, se lhes notificará a tais solda-.

2, soparados em A. Ê redacção de Couto. 13, caporal: posto entre cabo de esquadra e sar-

gento.

9*

Page 129: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

dos que, tanto que chegarem a Gôa, se recolham a suas bandeiras; e como em todas as fortalezas se cerrarem estas matrículas, mandarão o treslado delas à Índia, convém a saber: a cada capitão seu

5 rol, em que lhe mande as matrículas dos soldados, que nas suas bandeiras assentaram; os quais capi- tães os assentarão logo nas matrículas dos solda- dos de suas bandeiras, pera saberem a gente que tem, assi presente como ausente. E depois destas

io matrículas das fortalezas chegadas, irá cada capi- tão seu dia no mês à matrícula geral, onde haverá um livro grande, em que se assentem os soldados de suas bandeiras, de que farão matrícula de cada bandeira por si.

15 E servirá isto do viso-rei saber nua hora os solda- dos que na Índia tem, e onde residem; e serão obri- gados os soldados que em Gôa residirem a, tanto que quiserem ir pera fora, fazerem-no a saber a seus caporais ou ao escrivão de sua bandeira, pera lhe

20 pôr por cota: êste Foão foi-se pera fora da armada, * ou a outra cousa. E os que vierem de fora se irão

logo apontar nas bandeiras, em que se matricula* ram aonde residiam; e ao fazer das armadas irão os soldados receber a matrícula com os seus capi-

h5 tães, e no seu livro do ponto lhe porão seu recebi- mento; e assi o soldado que recebeu em Dio ou em Damão, que o feitor vem descontar, se buscará no mesmo ponto da bandeira em que se lá assentou; e assi se pagará aos que servirem, e não haverá

30 poder o capitão pagar a cincoenta homens sem_ os ter consigo, nem o feitor e os outros oficiais aos seus;

19, capitães em B.

95

Page 130: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

e por êste modo ficam não havendo soldos velhos, nem os soldados podendo dar o seu a ninguém, porque o não tem senão quando recebem.

Mas pera isto era muito necessário que lhe pa- 5 gasse Sua Alteza aos que em Gôa residissem seu

mantimento cada mês pera comerem, porque me- nos se há de despender nisto que nos soldos velhos, que se cada ano pagam a quem já disse; e os casa- dos de Gôa e de todas as demais cidades se aponta-

io rão num livro, que os capitães das tais fortalezas pera isso terão, por suas matrículas, e os treslados se mandarão ao viso-rei, pera mandar fazer um li- vro de matrícula de casados, e os nomes das ter- ras onde residem, aos quais se não pagará soldo,

15 senão quando se embarcarem d'armada; porque estão os livros cheos de dívidas de soldos dêstes casados, que muitos há trinta, quarenta anos que se não embarcam, e seus títulos estão em aberto e vencendo soldo; e muitos que são mortos, há

20 muitos anos, que vencem como vivos, e outros que se foram pera a China e pera o reino, sem se descontarem, que inda estão vencendo; e dêstes que digo são a mór parte das dívidas que Sua Alteza deve dêstes soldos. •

25 E tanto que um soldado casar ou em Gôa ou em qualquer outra fortaleza, será obrigado ir-se ao es- crivão dos soldados e apontar-se por casado, se está escrito neste livro; mas, se se casou em Chaul e escreveu em Dio, será obrigado a ir ao escrivão,

30 que em Chaul é deputado, apontar-se de novo, e dizer: Foão, filho de Foão, da bandeira de Foão,

6, pera comerem, porque menos falta em B.

çó

Page 131: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

casou-se nestá fortaleza; e assi se apontará por ca- sado no livro do capitão; e o escrivão de tal forta- leza será obrigado a mandar a Gôa certidão ao ca- pitão da bandèira ou escrivão dela, em que certi-

5 fique de como Foão de sua bandeira se casou, pera. que, quando fôr à matrícula apontar-se a tal ban- deira, faça declaração no livro da matrícula de como se casou aquele Foão, o qual logo será pas- sado ao livro dos casados no título da fortaleza

io em que casou. E assi se saberá sempre quais são os soldados

. e casados, e os que são mortos é vivos. E pera isto serão obrigados os escrivães das Misericórdias das fortalezas todas a, tanto que nos hospitais entrar

15 soldado enfermo que falecer, mandar seu nome à matricula, e de que bandeira é, pera que o escri- vão de tal bandeira lhe ponha em seu título verba de morto; e assi, tanto que no comêço do mês se forem apontar à matrícula, fará o tal escrivão de-

^20 claração dos que se foram pera fora e dos que casa- ram e morreram, por que não haja andar morto por vivo, casado por soldado, nem ausente por . presente; e com isto ficará a cousa tão desembara- çada, que um não possa receber na matrícula de

'25 outro, nem o que se foi pera a China ter o título corrente, nem.receber Pedro por Joane, nem os capitães pagarem mais homens dos que tem, e os viso-reis não fazerem mercês de soldos velhos — no que se poupará mais de vinte mil pardaus cada

30 ano, que se pagam polo modo que disse. Isto que tenho dito é o que me parece sôbre êste

negócio, no qual poderá haver outros melhores pareceres que o meu, que eu não desgabarei, por- que não sou tão afeiçoado ao meu, que qualquer

7 97

Page 132: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

outro me não pareça melhor; e quem quer acertar, assi o deve fazer em tudo; porque doutrina é de Platão no seu Timeo que nunca vira errar homem afeiçoado ao parecer alheo, e que muitos vira per-

5 der por seguirem o seu. S. Paulo, vaso d'eleição, não se quis afeiçoar a seu parecer, estando determi- nado de ir a Roma, e seguiu o de seu discípulo Fi- lémon. E na Escritura Divina temos que David fôra muito mór profeta que Natão, e sôbre o negó-

10 cio da edificação do Templo não se afeiçoou tanto a seu parecer que não aceitasse o de Natão. Deus Nosso Senhor teve grandes queixas com Moisés sôbre os filhos de Israel serem tão afeiçoados ao que lhes parecia, que em tudo enjeitavam o conse-

15 lho alheo, por cuja causa andaram toda sua vida perdidos e assombrados dos cutelos dos imigos.

Assi que digo: também nisto me someto ao pare- cer alheo; e se o que dou nisto fôr bom, faça-se o que fizeram aqueles éforos de Lacedemónia, que,

20 estando em um conselho, deu um homem simples como eu um muito bom parecer em um negócio muito árduo; e, quadrando a todos, lançaram êste homem fora do Senado, e elegeram outro muito gra- „ ve, a quem mandaram dissesse aquele mesmo pare-

25 cer com as mesmas palavras, como quem de um vaso ruim muda o licor pera outro melhor.

Mas, todavia, em tudo isto que tenho dito acho um só inconveniente, que é não sofrer a índia estas companhias; porque, se os soldados se virem uni-

3. O Tint eu é um dos Diálogos de Platão, dedicado à filosofia da natureza.

17, someto: submeto. 22, quadrando: agradando.

98

Page 133: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

dos, xaquearão as cidades, roubarão os povos e fa- rão outras exorbitâncias: por onde não sei qual é peior — antes el-rei perca o seu, que haver estas desordens.

5 Desp. — Por certo que não sinto eu nenhum desses atenienses que melhor parecer pudera dar nisso que vós, como fareis em todas as outras cou- sas mais; que eu vos vou sintindo um fervor e espí- rito pera outras maiores e de maior sustância.

io Fid. — Não pode parecer mal isso que dissestes, e assi se rastejou já em tempo del-rei D. Sebastião; porque, quando mandou a primeira vez à índia D. Luis de Taíde, já levava por regimento fazer essas ordenanças e assentasse os soldados em ban-

15 deiras; o que êle usou alguns dias, porque as cou- sas boas nunca se vai com elas a cabo. E quanto ao que receais das desordens dos soldados, se êles tiverem capitães de honra, não haverá nada disso; porque o dia que um fizer um desarranjo, o man-

•eo dará passar polas alabardas; e como o fizer a qua- tro, os mais se refrearão; e o capitão que dissimi- lar com algua cousa destas, que o viso-rei o mande logo com grilhão ao rei.

• Desp. — Inda que estive muito atento a êste ne- 25 gócio da matrícula, não me esquece que tocastes

nos Contos, como que também há nessa casa mangueiras; por amor de mim que, emquanto se o

11, rastejou: tentou, ensaiou. 13, de Taíde em A. 20, passar polas alabardas: executar, passar pelas

armas. 21-23, e 0 capitão... com grilhão ao rei falta em A.

27, mangueiras: actos de venalidade, de corrupção.

99

Page 134: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

sol vai pondo,.trateis essa matéria, que não há de ser pouco importante: porque, como entro nova- mente neste cargo, quero saber tudo e haver lín- gua das cousas da índia, pêra poder dar rezão de

5 tôdas. Sold. — Pera isso havia mister mais tempo; e

quando toquei êsse negócio de passagem, não cui- dei que Vossa Mercê lançasse dêle mão; mas já que me embaracei nestas cousas, irei acabando o serão

io com essa matéria, pois mo Vossa Mercê manda.

• CENA X

Em que se tocam algúas cousas dos Contos de Côa e outras diferentes matérias.

Sold. — A Casa dos Contos de Gôa é a mais im- portante pera a fazenda del-rei, que há na índia; à qual concorrem todos os feitores das fortalezas, d'armadas, naus e navios, almoxarifes e rendeiros

15 de todas as rendas, que são muitas;.pera o que era necessário que estivesse esta Casa provida de homens" muito honrados e de muita verdade, muito bons oficiais e de conciência, que de tudo isto está falta. Há nesta Casa dez contadores com seus escrivães,

20 dous revedores, um guarda, um recebedor de res- tos com seu escrivão, e um provedor-mór. Dêstes oficiais o provedor-mór tem de ordenado trezentos

20-21, dous revedores. um recebedor de restos com seu escrivão, que tem duzentos e dezóito mil réis. e um pro- vedor dos Contos. Dêstes oficiais... em B. ' .

IOO

Page 135: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

e trinta mil réis; os contadores a cento e vinte mil réis e a 140 mil; os escrivães, cada um a setenta mil réis.

Alguns dêstes oficiais conheci eu muito ricos, 5 que na Casa engrossaram, sem terem mais que

o que disse; e se não fôr por meos ilícitos, não podem fazer mais que sustentar-se piadosamente, como faziam os antigos que eu conheci, que viviam com verdade e faziam justiça; mas alguns dos de

10 hoje tem quintas, palmares, casas curiosas, e tra- zem muito dinheiro ao trato; e os meos por onde engrossam, apontarei alguns como soldado e não como oficial.

Primeiramente: vai entrar um feitor em Ormuz 15 ou em qualquer outra fortaleza, já fica concertado

com o contador, que lhe há de tomar sua conta; e assim lhe manda, emquanto lá está, suas enco- mendas, peças, brincos e muito dinheiro à conta de seu ordenado; e assi, quando acaba seu tempo,

•20 que vem dar sua conta, deixa o tal contador a que está tomando de outro oficial pobre, que há dous anos que ali anda e que não teve que lhe dar ou que roubar pera isso, e toma a do outro em qua-

• tro dias, sem lhe lançar papel fora, porque todos 25 lhe achou correntes; e se algum tem algõas dúvi-

das, êle lhas tira e faz na mesa do despacho tudo franco; e o dinheiro que lhe tem mandado lhe mete na fôlha; e na arrecadação dous papéis velhos da

1-2, os contadores a cento e quarenta mil réis, e treze escrivães, cada um a sessenta mil réis em B. Em A algumas quantias foram postas depois, como se vê da tinta diferente.

7, piadosamente: dificilmente. 17, e a essa lhe manda em A.

IOI

Page 136: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

contia que tinha recebido; e o seu ordenado paga- -se depois dêle por em cheo.

Mais: promete um contador a um viso-rei da conta de um oficial tantos mil pardaus, à conta

5 dos quais lhe faz logo mercê; e, revolvida a conta ou dado balanço ao oficial, saem-lhe com cinco e seis mil pardaus de dívidas, que êle não deve, e é logo executado e sua fazenda vendida; e depois que vai dando sua conta, que alega dos

io êrros e o ouvem de justiça, dizendo que foi a dívi- da mal executada, fica el-rei devendo aquela conta, que nunca paga, e os outros logrando-se da sua casa e do palmar, que lhe venderam. E sabem Vos- sas Mercês quão prejudiciais são estas execuções

15 desta sorte, sem se dar encerramento à conta; que a êsse respeito vem os feitores das fortalezas com muito dinheiro em punho, e vão dando hoje dous mil, e amenhã mil, e o outro dia quinhentos; e assi vão preparando os caminhos à sua vontade e

20 encerrando-lhe suas contas com todas as dúvidas, que os papéis trazem, sem lhe preguntarem por elas.

Outra hei de dizer, que é de mais dano ao viso-, -rei, tão esquecido da sua alma e de sua honra:

25 que todos os restos que ficam destas contas, que se hão de carregar sôbre o executor, conforme a seu regimento, arrecadam pera si e metem nas contas papéis velhos comprados à quarta parte, como já contei no capítulo dos alvitres. E desta maneira e

27, arrecadam para si; além de outras cem mil tira- nias em B. Falta pois em B uma porção grande de linhas. Veja-se página seguinte, linha 29.

I02

Page 137: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

por esta via se consume grande parte da fazenda del-rei, em que todos vão forros e a partir.

E tem mais: vem o feitor que serviu feitoria po- bre; presenta-se nos Contos com mãos vazias, en-

5 trega seus papéis, dão-lhe por contador o mais mo- derno da Casa e o mais fraco oficial. E como en- trou com mão fechada, botam-lhe os papéis em car- neiro, escrevem nêles como por demais, saem-lhe com ■mil dúvidas, sem haver quem lhas deslinde. E assi

io anda o mártire purgando dez anos, sem haver quem lhe faça justiça; de sorte que lhe fôra melhor o que havia de gastar em dous ou três anos dá-lo junto ao contador, e em um mês fôra aviado.

E o que é mais pera magoar e pera el-rei casti- 15 gar: que, se acerta de estar um contador com esta

conta nas mãos, se chega de fora outro, de que espera mais proveito, se lha dão, larga a primeira e lança a do prove fora e põe as mãos à outra, de feição que em pouco tempo conclue com ela. E

• 20 disto tudo quanto Vossas Mercês quiserem, em que as partes recebem grandes opressões e muitas in- justiças, porque muitas vezes uns pagam o que não devem e outros ficam com o que devem.

• Outra cousa me esquecia, muito digna de casti- 25 gar: e é que tem o provedor daquela Casa sempre

contadores apaniguados, com os quais reparte as contas de mór importância e de que esperam al- gum proveito, e as outras nunca acaba com elas, como acima disse; e outras cem mil tiranias, que

jo se não castigam; os que o hão de fazer andam tam-

7, botam-lhe os papeis em carneiro: atiram-os para o sítio das cousas mortas, dos papéis velhos.

I03

Page 138: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

bém interessados naquelas matérias e puxando por dinheiro por qualquer via que fôr: por onde não lhe sei remédio mais que o de Deus; que se cá al- gum pudera ter, era um provedor, homem livre,

5 de honra e verdade, e tão inteiro que a não leva- ram pareceres de contadores interessados, o qual com seu ôlho vira tudo; e faça despachar os pobres e castigue o contador que lhe dilatar a conta do pobre. E faça el-rei honras e mercês aos homens

10 que o servirem com verdade e justiça e achá-los-á; e não dê o tal cargo a quem rogue, senão a quem êle rogue; porque, de se não fazer isto, nacem todas as desordens das .cousas.

Fid. -— Apontastes bem nessas cousas; que eu 15 alguas vezes que fui aos Contos vi essa casa des-

baratada e. prove de contadores; e desejei de prover nisso, que não é de tão pouca importância, que

'não vá muito ao rei e às partes, como dissestes. Sold. — Bem desejei de passar por muitas cou-

20 sas, mas acusa-me a conciência, porque me diz que, se as não manifestar a quem as pode remediar, que ficarei em restituição; e por isso me não posso ter, já que comecei. E Vossas Mercês estejam aten- tos, porque lhe importa isto tanto e é necessário da-

25 rem conta a Sua Alteza. Tomou-se naquela Casa ua conta a um feitor;

sairam-lhe com ua dívida de doze ou quinze mil cruzados, que o prove do oficial sábia não ter em

11, o tal negócio em B. 22, em restituição: em divida, com sobrecarga na

consciência. 28, pardaus em B.

104.

Page 139: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

si; polo que clamou e pedia justiça, que se lhe não fez. Foi executada a dívida, vendida a fazenda e repartida; e o paciente veo a morrer pobre e de- sapossado de sua fazenda. Vieram depois os herdei-

5 ros daí a muitos anos a revolver a conta e acharam o êrro; e pedindo revista, o apontaram; e achando-o claramente, lhe passaram papéis pera requerer a el-rei seu pagamento, que nunca houve, nem ha- verá.

io E dêstes exemplos há alguns que eu pudera tra- zer; e escusam-se os oficiais com dizer que não sou-

.» beram mais; e o regimento os desculpa, pois lhe ; não dá nenhua pena: por onde eu era de parecer

que o contador que sair com dívida que não seja 15 muito averiguada e vista pelos revedores muitas

vezes, que, achando-se depois o êrro, paguem de sua casa assi o contador como o revedor aquilo que a parte pagou mal; porque pola experiência que tenho daquela Casa e das malícias da Índia, sem-

§0 pre hei de cuidar que lhe quiseram fazer dívida, pu pera a darem por alvitre aos viso-reis, que conj

•' ela folgam muito, ou pera a repartirem entre si os oficiais.

* Porque, depois que os viso-reis despiram as ar- 25 mas e trataram de fazenda, folgaram de lhe ver

as mãos por todas as vias; e há alguns que a essa conta trazem os contadores tão mimosos, que não há quem possa com êles; polo que* tem pouco es-

. crúpulo de lhe cavarem dinheiro devido e não de- 30 vido de boa e má parte, e de lhe levarem alvitres

; de fazendas alheas, que não devem nada; e o que peor é: que às vezes são de homens mortos, que

' suas mulheres e filhos pagam sem dever, ou lho tomam sem se elas saberem defender, porque da-

105

Page 140: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

quelas cousas puderam seus maridos dar muito boa rezão.

Tem mais: deu outro feitor conta de ua grande soma de dinheiro; e como êle tinha muito em si,

5 lá se negociou com o contador, que parece que lhe não duvidou nada, e encerrou sua conta e lhe pas- sou sua quitação, sem lhe sair com dívida, ficando desta bolada as mãos bem cheas a êle e a outros oficiais. Daí a tempos foi revista a conta, e achou-

10 -se-lhe de êrro contra el-rei ua grande soma de di- nheiro, polo qual o oficial foi executado em sua fazenda e pessoa; e os contadores que entraram na bolada ficaram de fora comendo o que o prove pa- gou. Emfim, que destas quantas Vossa Mercê qui-

15 ser, e de outras, que de cansado não falo. Desp. — Oh! não canseis, senhor, dizei-me mais! Sold. — Pera que ouvir tanta maldade? Sabe

Vossa Mercê a quanto chegam? Que eu sei tempo, segundo ouvi queixar a alguas pessoas, que das con-

20 tas que já estavam encerradas tiravam muitos papéis, lançados à linha de muitos anos, e os faziam de novo correntes pera outros oficiais, mudadas ver- bas e tudo o mais, dos quais se pagavam logo. E " pode ser sucede isto em conta de feitor morto que

2. A seguir a rezão B trás o seguinte trecho: Tempo sei eu. segundo ouvi queixar a algumas pessoas, que - das contas que dos oficiais mortos estavam por tomar, tiraram muitos papéis e os faziam de novo correntes para outros oficiais, mudadas verbas e tudo o mais, dos quais se pagavam logo; e se os herdeiros do morto os quiseram acabar, acharam os papéis menos, que podiam ser de muita contia. Como se vê, é, com pouca diferença o passo que vai de 1. 18 a 3 da página seguinte.

16-18. Falta em B.

IOÓ

Page 141: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

estivesse por tomar; e se os herdeiros a quiserem acabar, acharão os tais papéis menos, que podiam ser de muita contia.

Desp. — Muitas cousas ouvi, de que estava bem j inocente, e que é forçado acudir-se-lhe; mas esta

dos Contos me parece a principal; e foi lembrança muito necessária e merecedora de se satisfazer. Eu vos prometo que, de tôdas, esta seja a primira de que faça lembrança a Sua Alteza; e espanto-me

io muito dos governadores não escreverem sôbre isso, ou de proverem em cousa tão importante.

Sold. — Tem outras que lhes revelam mais a êles; e por isso se esquecem das que relevam ao rei, pois estas são mais da sua jurdição, porque já'

15 gora são mais veadores da fazenda que capitães da guerra. Com que eu pior tomo é que a êstes conta- dores que tecem estas meadas, e que andam com estas emburulhadas dos alvitres, fazem êles mais mercês, escrevem melhor dêles a el-rei, dizendo que lhe acrecentaram em sua fazenda tanto e mais tanto. .

E certo, senhores, que me quisera deter nêste negócio destas crecenças, em que cada dia os mais

' dêles enganam o rei,e desejo de lhe dizer que man- 25 de em segrêdo inquirir destas crecenças; porque

em aquele mesmo ano, em que êles escreveram que lhe acrecentaram, achará que passou o Estado mais necessidades e misérias que nunca; e que se pediu empréstimo ao povo, e que se não pagou aos

jo mercadores o arroz, o trigo, o bréu, a madeira;

16, e o que eu peior tomo em B. 18, emburulhadas: enredos, embrulhadas.

107

Page 142: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

emfim tudo o que se compra pera as armadas. E se o que se toma forçosamente aos vassalos pera el-rei por êste modo chamam acrecentar, posso-lhe

' eu chamar furtar, do que os ministros devem dar 5 larga conta a Deus em não mandarem saber destas

cousas. Que vos hei-de dizer mais? Quero concluir com

isto: Saem nos Contos com dívidas entre os capitães, feitores e outros oficiais: carregam-se logo sôbre o

10 executor dos restos e tiram certidões, que mandam ao reino, de como ficam cincoenta, sessenta e cem mil pardaus para arrecadar. Depois alegam as par- tes de sua justiça, mostram sua inocência, são absoltos das dívidas e lá no reino cuidam que tem

15 cá um poço d'ouro e tudo é aire. Ora, senhores, quero-vos desenganar: poucos ofi-

ciais dêstes e inda alguns viso-reis houve que es- crevessem verdades a el-rei; e afirmo que menos crédito havia êle de dar a muitas cartas destas

20 que a outras de particulares, porque êstes, como desinteressados, com' mêdo de seu rei e amor de

4 e segs. os ministros... Recomeça a letra de Couto. 8 e segs. Em B o texto é um pouco diferente: Saem

com dividas contra as partes, e logo as carregam sôbre o executor dos restos e tiram certidões disso, que man- dava ao reino, que montam muito. Depois livram-se as partes; não devem nada; e Id no reino cuidam que tem cá um poço d'ouro." E mais, senhores, quero-vos dizer uma verdade e descobrir um segredo, e Sua Mercê, que gover- nou a índia, confessará: afirmo-vos que alguns viso-reis . houve que não disseram verdades aos reis, e que menos crédito havia ele de dar por justiça às cartas dêstes que às dos particulares, porque estes, com medo do rei e amor da pátria não trouxeram nada.

108

Page 143: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO P R A T t C O

sua pátria não trouxeram nada: mas os que já não tem nenhum do rei, nem sei se de Deus, £que ver- dades lhe podem falar?

Faça el-rei fia experiência: depois que um dês- 5 tes viso-reis que digo (nos puros não falo) vier pera

êste reino, mande el-rei Qa das contas que lhe es- creveram, à índia à mão de um prelado grave, que inquira sôbre aquelas cousas de pessoas honradas e sem suspeitas; achará as móres falsidades do mun-

10 do e então se desenganará. E castigue muito rija- mente quem lhe escreveu tais cartas, pera ficar por exemplo aos outros e não fiar-se tanto delas, que a nada mais dá crédito. E se de fora escrevem ou- tra cousa a el-rei e lhe dão outras informações,

75 sempre se reportam às cartas que os viso-reis lhe escrevem.

E se não, vejam Vossas Mercês quantas vezes escreve a cidade de Gôa a el-rei queixas dos seus

q viso-reis lhe quebrarem seus privilégios e liberdades, 20 a que não responde mais senão que lá escreve a

seus viso-reis sôbre aquele negócio! Ora vejam que fará nêle o viso-rei que agravou a cidade, e que justiça e emenda lhe fará! Mas sabem Vossas Mer- cês de que isto vem? De Sua Alteza não mandar

23 ver as cousas da India com tempo pera nelas pro- ver; porque está já em costume guardar-se tu(Jo pera Janeiro e Fevereiro, em que se as naus fazem prestes; e então, como o tempo é curto, não fazem mais que responder como por demais, e meter o

30 jôgo na mão do viso-rei, que sempre faz o que quer.

1, skíj pátria. Acaba a letra de Couto. 6, contas: relações, informações. Em B: cartas.

109

Page 144: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mas pera isto não ser assi, houvera de haver neste reino um tribunal separado pera as cousas da Índia de homens muito inteiros e zelosos do bem comum, que viram os negócios da Índia todos e res-

5 pondessem a êles com tempo, dando primeiro conta a el-rei; e assi, quando as naus partirem, estará tudo provido e desagravar-se-á a cidade das sem-rezões que os viso-reis lhe fazem, e os homens particulares das sem-justiças que recebem; porque, senhores,

io pera um estado tão apartado do rei, e onde os viso- -reis e ministros de justiça e fazenda são tão livres, parece sem-justiça, quando ua pessoa escreve agra- vos do viso-rei, responderem-lhe: — Lá está o viso- -rei, que vos fará justiça. E se êle é o que me faz

15 as injustiças, como as emendará? O que não posso deixar de sentir, e falar nisto como bom português.

Por certo, senhores, e olhai que vo-lo afirmo assi, que não teve el-rei na Índia móres imigos de sua fazenda e alma que alguns viso-reis; e não vos

20 enganeis com mostras de virtude, porque não sei que tem a India, e debaixo de que planeta está, que assi muda os pensamentos e desejos bons, que é pasmar. E não quero mór exemplo que em Sua Mercê, que aí está, que governou aquele Estado

25 por sucessão, tão amigo antes dos soldados, tão zeloso da justiça, tão avorrecedor das desordens dos viso-reis, que nenhua cousa tratava nas con- versações mais de como não fazia mercês aos ho- mens; de como se governava por criados e paren-

30 tes; de como não deixava fazer justiça aos minis- tros; de como tomava as cousas pera os alma?^^ e armadas sem as pagar.

2, soparado em A.

IIO

Page 145: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Diga êle o que fez em governando; eu hei de fa- lar verdade; e Vossa Mercê me mande por isso matar, que sou de sessenta anos e já não perco nada. Nunca em vosso tempo vi justiça, nem se

5 pagou a soldado nada, nem a mercador o que se tomasse; tudo era vendido por dinheiro polas pra- ças: clamores e prantos, sem haver quem os pudes- se remediar!

Aqui me cai a propósito um caso que sucedeu o a um fidalgo, o qual estando por capitão em ua

fortaleza, vivia nela outro muito honrado, casado e pobre; e estando êste capitão um dia em práticas com sua mulher, lhe disse: — Por certo, que não sei qual é o governador ou viso-rei de tão má con-

5 ciência, que não dá de comer a êste fidalgo. E estas queixas fazia em público. Acertou aquele mesmo inverno de morrer o governador, e suceder êste capi- tão na governança; estando já de posse dela, lhe lembrou a mulher as queixas que fazia de não da-

'b rem de comer àquele fidalgo, pedindo-lhe que, pois agora estava em sua mão, que o remediasse;, ao que lhe respondeu estas palavras: — Olhai cá, senhora, então falava como Foão, agora hei de fazer como governador da India. E assi lhe não

(5 deu nada. Guarde-vos Deus, senhores, dêstes que blasonam das cousas dos viso-reis, que, se se virem naquele lugar, hão-no de fazer muito pior.

Fid. — Pois não me perdoareis essas verdades só por estar presente?

to Sold. — Não, senhor; que, de se elas não fala- rem, está o mundo no estado em que está. Sabeis

16, Acertou: sucedeu, calhou.

III

Page 146: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

de que me escandalizo, e de que os reis hão de dar grande conta a Deus? Disso que dizeis,' e de êles vos não terem castigado a vós e a outros gover- nadores e viso-reis. E se vós, senhor, quando suce-

5 destes na governança vos receáreis que el-rei vós havia de castigar, não andáveis e governáveis mais registado? Por'certo, si; mas como sabeis que tudo passa por alto, e que o mais que vos fazem é pren- der-vos na vossa quinta, nada vos dá de nada: não

io temeis ao rei nem a Deus. E não queirais que fale mais; que me farei doudo, e andarei pedindo polas ruas justiça contra quem tem a culpa de todas estas cousas.

Desp. — Oh! prouvera a Deus que dêsses doudos 15 vira eu alguns! Mas sabeis porque o mundo está

perdido? Porque tudo são sesudos, e tratam mais de si que de ninguém, não lhe dá de nada mais que do que lhe releva.

Sold. — Sabem Vossas Mercês o que eu cuido? 20 — hei de dizer esta verdade, e tenham-no Vossas

Mercês por temeridade, e custe-me o que me cus- tar: que não lhe dá aos ministros de cá e de lá mais da India que daquela palha que ali está; e que me parece que folgarão d'ela se acabar por vos de-

23 sobrigardes dela; porque, poios descuidos com que a provêm de cá, entendemos os de lá isto.

jQue quer dizer escreverem-vos um ano as cida- des, fidalgos, religiões e particulares que a índia

6-7, mais registado: com mais acêrto e moderação. 27 e segs. Veja-se o nobre desassombro com que o escri-

tor ataca o próprio rei, servindo-se embora duma forma indirecta.

28, religiões: ordens religiosas.

112

Page 147: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

está perdida, e que é necessário que lhe acudam, que o viso-rei que é frouxo e pouco zeloso do bem comum? Êsse mesmo ano, quando esperamos por um viso-rei com muitas naus, dinheiro, bom-

5 bardeiros e soldados e munições, mandardes mais um ano de govêrno ao viso-rei, de que tivestes tan- tas queixas, e acudirdes à Índia com quatro naus sem gente e sem nenhua cousa das que apontei? Não é isto dizerdes que vos não dá .nada de nada,

io ou que não lestes as cartas que vos escreveram, e, se as lestes, que vos esqueceram os clamores que iam nelas?

Por certo que, se naquele Estado houvera um rei cristão, a quem os homens puderam ir servir, que já

15 o houveram de fazer, e não se cansar com as cou- sas da Índia; mas lá não temos mais que imigos de tôdas as partes, que nos desejam beber o sangue, os quais sabem tão bem como nós os procedimentos dos viso-reis, e das queixas que dêles escrevem, e

20 quando chegam as naus do reino, a gente e socorro que trazem, e o pouco que a todos dêste reino dá daquele Estado, e os desgostos que todos os da Índia temos da pouca conta que dela se faz; polo que já nos não estimam; e se êles puderam e não

25 tiveram as mãos atadas, entendei, senhores, que já o negócio havia de estar concluído; mas, graças a Deus! que os tem enfreados com o mêdo do Grão- -Mogor, que deseja de lhe tomar os Estados, e por cuja vida nos convém fazer orações; porque, se êle

30 morre, e êstes bárbaros se vêm fora dêstes receos,

5, mandardes. Entenda-se: «Que quere dizer o facto de mandardes?».

8 113

Page 148: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mêdo hei que descarreguem sua potência contra nós, e que nos tomem às mãos; porque o tempo do viso- -rei D. Luís de Taíde é acabado, que, com aquela sua grande prevenção se sustentou contra todos,

j Vêde que será hoje, sem artelharia, sem munições, sem armadas, e inda sem soldados e sem capitães, porque tudo é acabado!

Desp. — Valha-me Deus, como tudo isso falta! E os viso-reis que fazem?

io Sold. — Muito gracioso é preguntar-me Vossa Mercê isto, pois lho eu já disse muitas vezes! E pre- gunto eu a Vossa Mercê: iQue faz el-rei, que não manda saber o que tem na India, e como estão seus almazéns, e como andam suas armadas, e o como

í5 procedem seus capitães móres? Que os viso-reis tra- tam do que lhes releva; e o que é muito pera notar, que deixam estas cousas, que são de tamanha obri- gação sua, e metem a fouce na messe alhea; por que assi vão as cousas de mal em peor.

20 Desp. — Declarai-me isso, que o não entendo. Sold. — Si, farei: e dêm-me Vossas Mercês ua

pequena de atenção. Na Índia primitiva, quando os . portugueses tinham seu nome alevantado sôbre êsses signos celestes, aqueles Césares que a governavam

25 não traziam ôlho em mais que em dilatar a santa Fé Católica; em acrecentar o património real e em enriquecer o Estado e os vassalos; em fazer elei- ções de capitães; em trazer as armadas mui ordena- das e providas; em ir buscar os turcos a Suez; em

18-19, por que: pelo que, e por isso. 21-22, úa pequena de atenção: um pouco de atenção.

Locução partitiva, de carácter arcaico e popular.

r/4

Page 149: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

castigar e oprimir o Malavar; em trazer enfreados e sopeados os reis vizinhos; em trazer os soldados fartos e contentes; em exercitar às barreiras assi de espingardas como de artelharia; em visitar os

5 hospitais, e em muitas outras cousas desta sorte. Agora já se não costuma isto; mudou-se o vinte

a outra cama: já as armadas se fazem por compri- mento, sem tempo e sem ordem; os soldados andam clamando; as casas que em Gôa havia d'esgrima,

io tornaram-se escolas de dansar e ensinar moças; bar- reiras, nem de ua cousa nem doutra: é ofício vil; e assi não há bombardeiro em tôda a índia que acerte à serra dês outra, sem lhe atirar do pé dela. As visitações dos hospitais tornaram-se na Casa dos

15 Contos e da Relação; de governadores se fizeram ve- readores e de capitães prelados. E assi tudo o mais desta sorte.

Desp. — Que chamais prelados e vereadores? De- clarai-nos isso, que o desejo de entender.

Sold. — Sua Mercê o sabe mui bem; mas di-lo-ei 20 a Vossa Mercê. Fizeram-se os viso-reis prelados,

porque já'gora os frades de S. Francisco e S. Do- mingos não podem eleger prelados senão os que êles querem; de maneira que se metem na jurdição eclesiástica tudo o que querem; e fazei-me mercê

3, bandeiras em B. 3, barreiras: trincheiras exteriores que serviam para

os soldados se exercitarem no tiro ao alvo. Depois signi- ficaram o próprio alvo.

6-7, vinte: paulito no jôgo da bola: «mudar o vinte» significa «mudar de jôgo».

7-8, por comprimento: por formalidade. 13, que acerte à Serra de Sintra em B. Grosso dis-

parate!

"5

Page 150: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

que lho não consintais: vereis se vos tapam as bôcas e se vos pagam vossas ordinárias! E não vêm quanto Deus defende o rei tomar o ofício de prelado, e como castigou por isso alguns.

5 E se quereis exemplos, vêde el-rei Jeroboão, que, querendo tomar o ofício de sacerdote, foi amoesta- do pelo profeta Jadão que tal não fizesse, que se des-serviria Deus muito disso; e que se o fizesse, en- tendesse que um da geração de David mataria cruel-

10 mente naquele altar os sacerdotes, em que queimaria os ossos dêles, maus, sôbr'êle, mau Jeroboão. E que não houvesse esta profecia por vã, porque em sinal de ser verdadeira, aquele altar se dividiria logo em duas partes, o que logo, mediante a fé do profeta,

J5 aconteceu diante de todos. E, lançando o rei mão do profeta para o prender, se lhe paraliticou. Aza- rias, rei de Jerusalém, por querer também tomar o ofício de sacerdote, lhe foi à mão o pontífice Aza- ria com os sacerdotes, os quais êle ameaçou; e logo

20 veo um terremoto do céu tamanho, que caiu um monte dentro na cidade, e deu um raio do sol no_ rosto del-rei, de que ficou gafo, e o obrigaram a se apartar do povo.

Emfim jque hei de dizer a Vossas Mercês? Inda 25 isto é pouco; porque até nas conservatórias dos Papas

e preferências dos dominicos com os agostinhos houve viso-rei que se quis entremeter; por onde eu lhe

10-15, e que queimaria os ossos déles; e assim que não deixou de ser esta profecia certa e verdadeira; porque, pondo a mão sâbre o altar Jeroboão, se dividiu logo em duas partes aquele altar diante de todos em B.

20, terromoto em A. 22, gafo: leproso.

Il6

Page 151: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

receo algum grande castigo; e quando cá não fôr, será lá, onde as penas são bem diferentes e o ar- rependimento já não vai: porque doutrina é de teó- logos que, se Deus Nosso Senhor neste mundo cas-

5 tigasse todos os pecados, pareceria tirar-nos da vista dos olhos (mediante a fé cristã) a ressurreição das carnes e do último dia de juízo. O que seria claro: se aqui neste mundo se pagassem os pecados, já não haveria lá outro em que pagar; e assi uns castiga

io aqui por que se mostre sua providência e poder, e para que outros o temam; e a muitos deixa o cas- tigo pera a outra vida, por que entendam que há lá onde se pague o devido. Tudo isto que até'gora disse someto à correição da Santa Madre Igreja,

iç porque são matérias em que os soldados não temos licença pera falar.

Isto é quanto a se fazerem os viso-reis prelados. ^ Disse também que se faziam vereadores, porque já'

gora nas eleições das cidades, que são livres, se tem 20 metido tanto, que se não faz vereador nem juiz dos

órfãos senão quem êles querem. E um viso-rei houve, t que, estando embarcado no rio de Gôa em ua galé

pera ir pera fora, o dia que se na Câmara fazia ua eleição destas, e levando-lhe lá à galé a pauta, a

25 não houve por boa, e fez ali logo eleição por si, e meteu nela quem quis, sem os vereadores ousarem a boquejar.

E sabem Vossas Mercês de que isto vem? De que- rerem ter naquela Câmara vereadores, suas feituras,

30 pera fazerem tudo o que quiserem e lhe concede-

29, vereadores, suas feituras: vereadores feitos por êles, seus servidores. Em B: suas feitorias.

117

Page 152: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

rem quanto pedirem, como fazem, muito em pre- juízo do serviço del-rei e de seus vassalos. Mas tam- bém vos saberei dizer que destas desordens dos viso- -reis tem a mesma cidade culpa, porque se tem tão

5 desautorizada com o rei e com os viso-reis nos modos de suas eleições e nos despropósitos de suas escri- turas, que nenhua conta fazem dela, porque, como os mais dos vereadores são eleitos por amigos soli- citados e por votos adquiridos, e alguns a quem

io nunca souberam pai nem mãi, antes os viram vir do reino em ofícios baixos, os quais trazem o olho no interesse, não lhe dá nada do bem comum, por- que não tratam mais que do seu particular.

Desp. — Isso é novo pêra mi. E de serem verea- 15 dores tem interesse?

Sold. — jOra essa é boa graça, que me Vossa Mercê pregunta! E que cousa há hoje de que os ho- mens não pertendam tê-lo? E saiba Vossa Mercê, quanto que me afirmaram, que diziam alguns que

20 lhe importava o ano de vereador quinhentas dobras. Ora vêde como o não hão de solicitar! E assi o fa- „ zem que, em lhe cabendo outra vez lugar, logo saem na pauta; e assi sei tempo em Gôa, em que andou o govêrno da cidade em cinco ou seis homens no-mais

25 e nunca outros melhor nacidos e entendidos chega- ram àquele lugar, porque o não solicitaram.

E o mesmo que digo da eleição da cidade digo da Misericórdia; porque também de maravilha se buscam os mais virtuosos, senão os mais amigos

22, que em se lhes acabando o lugar em B. 24, no-mais; não mais. Forma antiga cristalizada

(nonj mais), ainda empregada por Camões.

Il8

Page 153: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

e parentes. E ouvi dizer a um cidadão meu parente, homem bom, honrado e entendido, que havia mui- tos anos era irmão, e que na fôlha que levava dos eleitores sempre punha os melhores da terra, e que

5 nunca lhe saía nenhum daqueles por eleitor; e a re- zão era porque fazia a fôlha com sua conciência, e não punha nela solicitados, senão escolhidos; por- que pera isso nunca teve parentes nem amigos.

Ora, já que me cai a propósito, não quero passar 10 por ua cousa desta Santa Casa da Misericórdia; e é

que houve tempo, em que os fidalgos que foram provedores faziam daquilo governança da índia, e tudo era emendar compromissos e acrecentar ou- tros de novo com tamanhos despropósitos, que é

ij pasmar; e certo que se havia de lembrar a el-rei, que, como protector daquela casa e de todas as do seu reino, mandasse inquirir sôbre suas cousas,

A principalmente sôbre as eleições; e que se rompes- sem todos os compromissos que não fossem feitos

20 na Misericórdia de Lisboa, como cabeça de tôdas as casas, e que nenhum irmão de Mesa possa ser elei-

• tor, porque, de o serem, são os despropósitos todos; porque nela ante-tempo se forjam as eleições; e como os homens sabem que forçado dela hão de

25 sair, todos tem-nos solicitados pera o que querem. E disto nacem muito grandes inconvenientes e des- serviços de Deus.

E perdoem-me Vossas Mercês, que me diverti da eleição da cidade, em que ia tratando, e do grande

50 dano que é entremeterem-se nelas os viso-reis, por-

24, forçado: forçadamente. 28, diverti: desviei.

liç

Page 154: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

que daí sucedem muitas cousas, em que não quero falar, de vergonha; porque já previlégios dos reis não se guardam; porque quem não guarda os de Deus, tudo fará. Sinais grandíssimos pera se tudo

5 acabar! Ameaçado está pola bôca de Deus que todo o reino em si diviso se desolaria. Que maior divisão que a do viso-rei ou governador com Deus? Vejam- -se os castigos que êle deu ao povo de Israel por esta divisão; achar-se-á a Escritura Divina chea dêles;

o e por outra parte das muitas mercês que fez aos reis e governadores conformes e governados por seus preceitos, como lhe acrecentou seus reinos e destruiu seus imigos.

Veja-se Josafat, rei de Jerusalém, temente e zelo- 5 so da honra de Deus, que, vindo pera o destruírem

os moabitas, amonitas e árabes, não tendo o bom rei com que se defender, socorreu-se a Deus com todo o seu povo; o qual, querendo-lhe pagar seu bom zêlo, meteu tal ódio e divisão entre seus imi-

o gos que, vindo uns com outros à batalha junto do lago Asfaltiden, tendo a cidade de Engade de cêrco, - foi entre êles tanta a mortindade que, quando Josa- fat chegou aos desertos de Tecua, viu os arraiais sem gente; e os roubou e queimou, e recolheu gra-

5 ves e ricos despojos; e por aquela mercê deu logo ali muitas graças ao poderoso Deus, pelo que aquele vale se ficou chamando das Graças: porque o agra- decimento de suas mercês não há de ficar pera de- pois, senão logo, pois logo que tendes necessidade

o vos socorre. Outro grande sinal também vejo na índia, polo

24-25, graves: pesados, abundantes.

120

Page 155: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

qual receo gravíssimos castigos: e é ver os viso-reis e ministros mais amigos das honras e proveitos de seus cargos, que das obrigações e encargos dêles. E praza a Deus não abranja esta maldição também

5 a êste reino! Isto é cousa que Deus sente muito e castiga logo; e vêde o que diz S. Paulo: — «E vós quereis subir às honras e recolher os fructos, e refusais o trabalho?» — Pois não pode ser; porque a primeira cousa em que o viso-rei e ministros hão

io de pôr o pensamento, quando são chamados pêra a cargo, é nas obrigações dêle, que são tamanhas e tão pesadas que muitos quiseram antes viver em pobreza que chegar a tamanhas honras com tantos encargos.

15 De Otanes, persa, temos nas suas escrituras que, por morte de Cambises, por outro nome Assuero ou Nabucodonosor, pondo-se em parecer sete persas

• dos principais, se seria melhor governarem-se por muitos se por um só, e sondo Otanes de parecer que

20 se governassem por muitos e os mais de contrário parecer, assentou-se que de entre todos se elegesse

• por sorte o que havia de governar. O que visto por Otanes, correndo polo pensamento os encargos do tal cargo, se lhe caísse dêle a sorte, disse a todos

25 que êle queria ficar de fora, e que d'antre os seis se lançassem aquelas sortes; e assi caiu em Dario, e êle ficou livre dos encargos, que o cargo lhe repre- sentava.

Em Tito Lívio temos que, quando o cônsul Mi- jo núcio estava no seu arreai cercado dos sabinos e

8, refusais: recusais, evitais. 30, arreai: arraial. Forma antiga, que Couto usa

a par da forma mais moderna «arraial».

121

Page 156: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

equos, foi em Roma eleito Lúcio Quíncio Cincinato por ditador pera o irenarcado; e indo com suas hos- tes, cercou os imigos em seus arraiais, assi como eles o tinham feito ao cônsul Minúcio; e por fim os

5 venceu e fez passar por baixo do jugo; e indo a Roma, foi recebido com triunfo, e no cabo de catorze dias renunciou a ditadoria, podendo usar dela seis meses, e tornou-se à sua lavoura, receando os encar- gos de sua dignidade; porque isto sucedeu aos capi-

10 tães como êstes, que andam buscando pera os car- gos, e não aos que os solicitam, grangeam e ainda peitam; porque êstes mais querem os fructos que as honras, e êles lhe fazem passar mui levemente poios encargos delas.

15 Quando os romãos mandaram aquele inteiro Fa- brício por embaixador a el-rei Pirro a resgatar os cativos, que estavam em seu poder, daquela bata- lha que venceu na cidade de Heraclea de Campâ- nia, sendo cônsul Valério Livino, cometendo-o Pirro

20 que ficasse com êle, que o faria viso-rei da têrça parte do seu reino, que tudo lhe êle enjeitou, porque via os encargos de tamanha obrigação e antes que- ria morrer de fome, por ser muito pobre, que tomá-los sôbre si, —aqueles capitães romãos, quere-

25 cebiam triunfo maior e insolente ou de ovação, e os mais, primeiro compriam com seus encargos que chegassem àquelas honras. Deixemos muitos, que as deixaram muito grandes e muitos proveitos, por não se atreverem com tamanha obrigação. Vamos

30 aos que inda enjeitaram sua própria vida.

2, pera o ir chamado em A; para ir chamado em B. Deverá tratar-se dum derivado de irenarca: apazigua- dor da república.

25, triunfo insigne de ovação em B.

122

Page 157: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Em Tito Lívio temos que, estando o cônsul Marco Régulo cativo em Cartago, sendo preso e desbara- tado pelos Asdrúbais com morte e destruição de trinta mil romãos e cinco mil cativos, depois que

5 os cônsules Paulo Emílio e Fúlvio Nobilior houve- ram tamanhas vitórias dos cartagineses que os obri- garam a pedir pazes ao Senado; pera o qual negó- cio elegeram por embaixador ao cônsul Marco Ré- gulo, que inda estava cativo; e primeiro lhe toma-

10 ram juramento que, depois do negócio, a que ia, aca- bado, se tornasse a Cartago; e, presentando-se no Senado e dada sua embaixada, sôbre que houve diferentes pareceres, foi por fim chamado o mesmo Régulo a conselho, o qual com ua fala muito grave e elegante amoestou a todos a prosseguirem na guer-

i 15 ra, e que se não fizessem pazes aos cartagineses, porque entendia dêles que nunca seriam amigos ver-

% dadeiros dos romãos; e que, segundo o estado em que estavam, os poderiam sujeitar e destruir fácil- mente, e que lhe não fôsse impedimento seu catf-

20 veiro pera deixarem de prosseguir na guerra, pois . era um bem tão comum.

E para que passe daqui, não quero deixar de es- tranhar aos viso-reis o grande êrro que todos come- tem, em fazer tantas pazes ao Samorim; estando tão

25 entendido que, emquanto houver mouros em seu reino, não pode ser nosso amigo: está muito averi- guado e experimentado tantas vezes que, todas as vezes que querem quebrar as pazes, roubar os vas- salos e afrontar o Estado e enxovalhar os viso-reis,

30 o fazem; porque, quando o negócio vem a parar em

29, apontar o Estado em A e B.

123

Page 158: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

grande rompimento, é passearem-lhe por sua costa os nossos navios, e queimarem-lhe quatro palhaças e outras tantas almadias com grandes carântolas e certidões, que disso lhe passam; e por fim do negó-

5 cio, vem a fazer pazes, que não duram mais que em- quanto os mouros querem.

Ora ^como é tão mal entendido isto neste reino, vendo danos tão claros, pera não mandar el-rei, sô pena do caso maior, que nunca jámais se faça

io paz ao Samorim, senão tôda a guerra que o Estado puder? Porque, se os viso-reis quiserem, em quatro anos porão em estado aos naires a se levantarem con- tra os mouros, e meterem-nos a todos à espada. E se me disseram que se faziam essas pazes dis-

15 simuladamente, assi por necessidade, como pera poupar, então estava isso muito bem; mas o Estado não tem nenhua necessidade do Samorim; porque pera a carga das naus em Cochim, Coulão, e nos rios do Canará, há quanta pimenta se houver mes-

2, palhaças. Talvez «palhoças». 3, almadias: barcos estreitos, feitos de uma só peça. 3, carântolas: mostras, sinais. Em B carajas e em

A própriamente carantas, que também poderia ser êrro de cópia, por carautas, palavra que, embora explicável em português (do baixo latim car acta), ainda não apa- receu, que saibamos, em documentos, mas sim o seu deri- vado caráutolas, caráutalas.

• 3-4, com grandes carântolas e certidões, que disso lhe passam. Entenda-se: «os viso-reis faziam com que lhes passassem certidões dessas empresas na Costa do Samo- rim, em que com grande exagêro e côres feias (carântolas) pintavam feitos de pouca monta». Vê-se aqui a ironia de Couto.

12, naires: fidalgos e cavaleiros do Malabar. 14, disseram: dissessem.

124.

Page 159: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

ter, deixando a que pode vir de Malaca, que é ua grande soma.

Ora pera poupar nada se faz, porque forçado, quer haja pazes quer não, hão de ir armadas ao

5 Malavar, em que.se despende muito. Por onde, pois isto está tão averiguado, jpera que são pazes nem fazer-lhe mais guerra que passear-lhe a costa, to- mar-lhe os portos, impedir-lhe os mantimentos, evi- tar-lhe os paros que são a roubar? Só com isto, sem

io mais lhe darem em terra nem arriscar gente, se con- sumira todo o Malavar em quatro ou cinco anos. Por certo que estou pasmado de como se isto não entende, e como lhe não fazemos de ua vez boa guerra, pera êles também fazerem muito boa paz

15 e que dure muito; mas como nós lhe não sabemos fazer a guerra, e as armadas vão àquela costa assi por comprimento como pera as darem os viso-reis

0 a seus parentes, pera requererem como capitães-mó- res do Malavar, nem se lhe faz guerra nem paz.

20 Digam-me Vossas Mercês isto: ^porque não há um viso-rei tão resoluto, que faça isto que digo?

, Custa a armada que vai ao Malavar sessenta mil pardaus? Porque não tomará vinte mil e os deposite em Cananor e tenha ali inteligências com os naires,

25 e inda digo mais que com o mesmo Samorim, e dar-lhe o dinheiro pera lhe mandar em segrêdo quei- mar quantos navios de cossairos houver em todos

8-9, Evitar-lhe os paros em A: passos em B. Talvez parós: paraus.

' 9, que são a roubar: que são feitos apenas com mira no roubo. ,

14-15, muito boa pas. Digam-me Vossas Mercês em B. Faltam-lhe pois umas linhas.

27, cossairos: corsários, piratas.

125

Page 160: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

os rios, o que se fará mui fácilmente? E os naires e o Samorim por dinheiro entregarão suas mulhe- res e filhos; e assi, queimando-se os navios, não há pera que se fazerem armadas, senão alguns navios

5 ligeiros contra outros tais. E se me disserdes que assi ficarão os soldados

sem terem em que se exercitarem, a isso digo que aí está Ceilão, Malaca e outras e outras partes, em que se repartam, e com isto ficarão os viso-reis pera

io cometerem tôdas as empresas que quiserem, com se não despender a fazenda real nestas armadas. jNão tendes Surrate, não tendes Baroche, não tendes outras trezentas partes de mais proveito pera o rei e pera os soldados? Que quer dizer paz ao Malavar

15 êste ano, paz o outro, dês que a Índia se descobriu, e nunca se guardarem ?

Não já assi os romãos, que, entendendo Marco Régulo, como ia dizendo, o dano e afronta que era daquela república, fazer-se pazes a Cartago, per-

20 suadiu ao Senado a guerra, com entender o risco que sua vida corria, porque antes a queria perder que desacreditar sua pátria — do que aos portu- gueses dá bem pouco, e aos viso-reis menos; por que vão muito ricos pera suas quintas; e nada lhes

25 dá das afrontas nem quebras do Estado; porque, quando se a Índia perder, todos, e inda os que mais a esfolaram se hão de jactar que não foi em seu tempo, e hão de blasonar daquele, em cuja mão

10, como se não despender em A. Significará talvez: «contanto que se não despenda».

20, com entender: apesar de saber. 22-23, do 1ue "os aos portugueses em A.

I2Ó

Page 161: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

isto suceder (o que Deus não permita!) só pera com isso cuidarem que acreditam suas tiranias. E pola ventura que, se isto suceder, que eu temo muito que seja em tempo de um viso-rei melhor, mais jus-

5 tiçoso e menos cobiçoso que todos, sendo êles os que a perderam e que deram com ela de pernas acima.

E tornando a Régulo: depois de persuadir ao Se- nado a não fazer pazes, lhe pediu licença pera se tornar a seu cativeiro, do que todos ficaram espan-

10 tados; porque, querendo-o deter, não quis, dizendo que antes queria comprir com os encargos de seu ofício de embaixador e do juramento que fizera, que ficar em sua Uberdade; e despedindo-se dêles, se foi a Cartago, onde logo foi morto com tormen-

i j tos, porque souberam que êle lhe estorvara as pazes. E pois me cai aqui a propósito, não deixarei de

tocar o quão mal os viso-reis e governadores todos cumprem com os encargos dos juramentos que to-

* mam, e homenage que dão neste reino; e por 20 certo que me tremem as carnes cada vez que cuido

o juramento que dão todos nas mãos del-rei, no qual juram que não requereram aquele cargo por si nem

* por outrem, nem o solicitaram, peitaram, nem fala- ram em cousas que parecesse tocar nisso. E êles,

25 está tão sabido quanto os mais dêles o solicitaram, cavaram, peitaram e repeitaram, e inda o mais que por honra de muitos calo.

Juram mais de fazer justiça e cumprir os man- dados del-rei, de que êles estão tão fora e zombam

30 tanto, que cuidam que não tem quem lhe peça disso

23, nem o solicitaram, cavaram em B. Falta-lhe um pedaço.

127

Page 162: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

conta; e assi é que não pedem, pois chegando à índia, na entrada de Gôa, lhe dão um juramento sôbre um crucifixo e missal, em que prometem de guardar os privilégios da cidade, e êles de propósito os que-

5 bram a cada passo, sem lhe ficar disso escrúpulo por cousa muito pouca; porque cuidam os viso-reis que podem pouco, se não puserem os peis por cima das ordenações e regimentos del-rei, e inda o tem por opinião.

io E o mesmo rei tem a culpa, porque nos regimen- tos que lhe dá, lhe diz no cabo: — «Que por cima de tudo farão o que lhe parecer que é serviço seu»; o que êles entendem tão mal, inda que, por melhor dizer, do que êles querem usar tão mal, que tomam

15 0 tal capítulo pêra capa de suas desordens e apeti- tos, pondo os peis por cima de tudo, e quebrando todos os regimentos, leis, previlégios e provisões que querem.

E tornando à matéria dos encargos, que ia tratan- 20 do: lêmos também de Sténio, governador dos ma-

mertinos, que fez a todos os de seu povo que seguis- sem a parte de Mário. E sendo vencidos de Pompeio," tendo determinado matar a todos, levantou-se o Sténio e disse: — «que não era justo que, por culpa

25 de um só homem, padecessem tantos povos; que êle fôra ocasião de todos serem da parte de Mário: polo que, já que êle só tinha a culpa, nêle só se cum- * prisse a sentença. Maravilhado Pompeo de seu esfôrço, lhe perdoou, e o mesmo fez a todos os ma-

30 mertinos; porque viu quanto à risca compria seu capitão com os encargos de seu ofício.

7, peis: pés. Forma antiga e popular. 9, opinião: vanglória.

128

Page 163: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

Tito Vespasiano, undécimo emperador de Roma, compria tanto com os encargos de seu ofício que, lembrando-lhe ua noite que aquele dia se lhe pas- sara sem fazer algum bem, e que se afastara de

5 seus encargos, começou a bradar rijamente, dizen- do que perdera aquele dia; porque por bem perdi- dos podem os reis e governadores contar todos os em que não fizerem algum bem, ou em que compri- rem mal com as obrigações de seus cargos. Péricles

io todas as vezes que era eleito pêra capitão dos exér- citos, dizia consigo: — «Olha, Péricles, que hás de mandar e governar homens livres, gregos e atenien- ses.» — Crisipo, por se não arriscar a comprir mal com os encargos do ofício, enjeitou o de govema-

15 dor de sua pátria, dizendo: — «que se o fizesse mal, descontentaria a Deus; e se bem, aos homens».

Ora vejam Vossas Mercês que perigo êste, em que ^ os viso-reis se metem com tanta confiança, como se

foram a algflas vodas! Por isso cada um lance as 20 barbas em remôlho, que tarde ou cêdo hão de pagar

os males que fizeram e os juramentos que tão fácil- mente quebraram; e por aqui cuido que tenho eu também comprido com meus encargos. Por isso dêm-me licença, que é noite, e devo já de os ter bem

25 enfadados. Desp. — Não cuido que aquele homem do Danú-

bio falou no Senado de Roma mais livre e mais altamente do que o vós tendes feito em defensão do Estado da Índia. Eu vos tenho ouvido cousas tão

30 estranhas e maravilhosas, ou, para melhor dizer, tão torpes e feas, que não sei como Deus não tem acudido a elas com algum grande castigo.

Fid. — AlgQas cousas entre tanta verdade disses- tes, a que eu, como homem que governei aquele

9 12Ç

Page 164: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Estado, pudera replicar e mostrar que estáveis apai- xonado.

Sold. — A isso me deterei eu mais um pouco, porque folgarei de Vossa Mercê me mostrar em quê;

5 porque eu pertendo defender minha verdade e ino- cência.

Fid. — Parece que mostrastes muita paixão em dizer que el-rei não fazia bem, nos regimentos que nos dá, em dizer no cabo que, por cima de tudo

io façamos o que nos bem parecer seu serviço; porque os homens que el-rei elegeu pera tamanha dignida- de, e fia dêles um tamanho Estado, não parece lícito que lhe ate as mãos; porque os casos são mais que as leis; e podem suceder alguns, em que seja neces-

15 sário quebrarem-se todos os regimentos e ordena- ções. Pois mais vos digo que há anos que se trata neste Conselho de deixar tudo no do viso-rei, sem embargo de aos capitães lhe parecer outra cousa; porque os viso-reis tem mais obrigação que todos de

20 saber as cousas melhor e ter de todos os negócios melhores informações.

Sold. — Oh! Vossa Mercê quer-me tirar a ter- reiro de novo? Digo que sôbre isso darei trezentos gritos. E é possível que se tratasse nunca de se dei-

25 xar tudo no parecer do viso-rei, tendo prelados e capitães de conselho mui graves e vistos em todas as matérias? E se isso assi fôra jqual havia de ser o capitão, que se quisesse achar em conselho, em que, por cima de seus votos, fizesse o viso-rei o que lhe

30 parecesse? Certo que dêsse descrédito se poderiam os capitães queixar muito a el-rei; nem me posso per-

30, parece em A.

130

Page 165: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

suadir que lhe entrasse nunca na imaginação um negócio, que será de mór prejuízo que todos os do mundo; porque, se, com os viso-reis estarem amar- rados ao Conselho Geral da Índia, muitas vezes por

5 cima dêles fazem o que querem, pelo que sucedem tantas desordens que fôra um infinito querê-las re- citar £que seria, deixando tudo em só seu parecer?

Por certo que, segundo os mais tratam de seus particulares, que por qualquer muito pequeno da-

10 riam com a Índia de pernas acima; e quando Jhe disso pedissem conta, tem desculpa muito de aceitar, que é dizerem que assi o entenderam. E quero que por seus gostos, façam ua desordem que custe tôda ua armada, e que se remediasse depois em lhe corta-

15 rem a cabeça: Oh! que consolação será isso pera a viuva pobre e pera a órfã desemparada, que nela lhe mataram seu pai e marido? Ora emfim, senho-

• res, requeiro a Vossas Mercês que assi o apresen- tem em Conselho, que não digo que o tomem os

20 viso-reis só dos capitães velhos e experimentados, mas inda dos cidadãos que cursaram os negócios;

• e, se fôr necessário, dos soldados velhos; porque bem certo é: melhor vêm quatro olhos que dous, e cento que vinte; e mais em um govêrno tão derramado

25 como o da Índia, de Maluco té Sofala, que nem o viso-rei nem os capitães trataram todas as terras pera darem rezão das cousas delas: por onde é muito necessário que se busquem homens práticos e vistos nelas, pera darem informações.

30 E não haja dizer que, porque não são fidalgos, não hão de entrar em Conselho; porque cavaleiros há na Índia, que tiveram tão honrados avós, como êsses fidalgos, e se não foram ou por falta de ade- rência ou por outras rezões. ^Porque ficaram per-

I3I

Page 166: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

dendo sua valia, se lhe Deus deu tão bom e melhor entendimento que a muitos dêsses fidalgos, e viram mais que êles? Mas é esta nossa nação tão coitada, ou tanto pera pouco, que trabalhamos por nos ani-

5 quilarmos uns aos outros; sendo tão diferente nas mais, que sempre folgaram de engrandecer seus na- turais, que achamos por essas escrituras, assi gregas como romanas, alevantados grandes capitães de ho- mens bem baixos, porque em todas se estimaram

io sempre muito as virtudes e o valor. Só nesta nossa não; e deve de nacer de haver isto

em poucos, conforme aquele verso do nosso grande poeta Luis de Camões nas suas Lusíadas, que diz que quem não sabe a Arte não na estima.

15 Quem usa das virtudes, sabe-as estimar; e porque entre nós faltam, falecem os favorecedores delas. E porque me tenho detido muito, e a noite vai-se chegando, dêm-me Vossas Mercês licença pera me recolher; e se mais querem de mim, prestes estou

20 pera os satisfazer outro dia. Desp. — Muitas cousas quero eu de vós, que me -

são necessárias saber pera meu cargo: pelo que vos peço, que à tarde d'amenhã vos venhais pera mi, porque tenho muitas informações que tomar de vós;

25 e então me dareis vossos papéis, e eu trabalharei por vos despachar, conforme a vossos mereci- mentos.

Sold. — Si, farei, e direi o que souber, porque folgarei de aproveitar algua cousa.

30 Fid. — Eu também me acharei aqui, porque fol-

13-14. Couto foi companheiro e amigo de Camões, que lhe pediu que fizesse um comentário ao seu poema.

*3*

Page 167: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

go muito de vos ouvir, inda que tratastes muitas cousas, em que confesso que me envergonhastes.

Sold. — Sangue e obrigação tem Vossa Mercê pera favorecer as verdades, inda que sejam contra

5 êle. Sei dizer a Vossa Mercê que os viso-reis da ín- dia são como os que andam embebidos em algum vício, ou de taful ou de amancebado: que não co- nhecem o êrro senão depois que saem fora dêle. E fiquem-se Vossas Mercês embora, que amenhã

io nos veremos.

7, taful: jogador de tavolagem.

133

Page 168: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

SECUNDA PARTE

ARGUMENTO

Ao outro dia se foi o Soldado à tarde pera casa do Despachador, onde já achou o Fidalgo; e

entre êles se passou o diálogo seguinte :

CENA I

Fidalgo — Oh! Venhais embora! Agora faláva- mos nós em vossa pele.

Soldado — Não seja isso do rifão antigo, que diz: falai vós no roitn, e logo aparecerá.

5 Fid. — Não se pode isso dizer por vós; porque quem faz tudo tão bem feito, nem em saber chegar a tempo e a horas sabe faltar. Assentai-vos, e torna- remos à nossa conversação, que não é pouco pro- veitosa.

lo Despachador — Ao menos pera mi sei dizer que me é muito necessária; porque me tendes informado de cousas que nunca ouvi de outrem com tanta ver- dade e isenção, como vós tendes dito tôdas. E já que estamos sós e fechados, por amor de mim que me

15 digais vosso parecer sôbre ua cousa, em que tôda esta noite dei muitas voltas em cama; e é: jque re- médio pode Sua Alteza mandar pôr a êste negócio das demandas sôbre os cargos?—porque vejo vir de lá homens com sentenças dadas contra êles, e mui-

15, em que: por motivo da qual.

^34

Page 169: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

tas por cousas muito pera rir; e tenho isto por cousa muito contra o serviço de Deus e del-rei, porque a jornada é muito comprida e arriscada pera virem cá buscar o suprimento dos cargos.

5 Sold. — Por certo, senhor, que Vossa Mercê me lembrou ua cousa, que me esquecia, e que eu tra- zia muito estudada, pera ser a primeira sôbre que gritasse neste reino. E se isso se entende e Vossas Mercês o tem notado e visto (Como não significam

io a Sua Alteza essas cousas pera prover nelas, e acudir a seus vassalos? Porque jque gôsto podem todos ter de o servir, se, depois de eu o fazer vinte anos, e depois de me despacharem, cabendo-me cargo daí a outros vinte, quando cuido que posso

15 lograr o fructo de meus trabalhos, armarem-me um caramilho de ua falência na minha patente, em que o escrivão que a fez tem a culpa, e darem sentença

• contra mim que não tenho patente, por onde me é forçado tornar a êste reino, não só a buscar o supri-

20 mento da falência, mas inda pedir a mercê de novó, porque pela sentença fiquei excluído?

• jComo, senhor? tão pouco é vir da India a êste reino, e tão pouco custa? Pois sabei que muitos homens se deixam antes morrer poios hospitais, e

25 suas mulheres e filhos à esmola da Misericórdia, que virem buscar êsses suprimentos, assi por a via- gem ser muito grande e arriscada, como por ser de tantas despesas; que por darem de comer a um ho-

16, caramilho: trapalhada, enrêdo. 16, falência: defeito, vicio qne importa anulação. 18, Entenda-se: «contra mim, alegando que não

tenho patente».

135

Page 170: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mem com um moço e um canto dum camarote, em que durma bem encolhido, lhe levam oitocentos par- daus. Pois disto tudo não hão os ministros de dar larga conta a Deus, em não terem, em cem anos

5 há que a Índia é descoberta, remediado isto? Por- que as ordenações dêste reino, polas quais todos os seus Estados se governam, foram feitas muito antes que ela se descobrisse, e os casos de cá são muitas vezes mais que as leis, e fica meu remédio no arbí-

io trio do juiz a o entender bem ou mal; ou em o meu contrário ter mais valias e que poder dar, o que eu não posso fazer, porque sou pobre.

Desp. — Tudo isso se tem cá sentido e entendido, e há dias que se trata de prover nessas cousas; e há

15 alguns de parecer que o negócio dos cargos se tire das mãos dos desembargadores, e que o viso-rei com o arcebispo os determinem; porque assi se evi- tarão as desordens que nêles vão.

Sold. — Aque del-rei! Aque del-rei! Quem me 20 acudirá, que me vejo perdido? Não sabe Vossa Mer-

cê aquele adágio italiano, que diz: Caí da certã, e " dei nas brasas? Por certo que assi será êste negócio. Ora emfim venho a entender que nunca neste reino se acertará com a Junta ao Governo da India; e sem

25 embargo de termos já praticado ontem nesta maté- ria, eu hei de tornar a ela, porque é de muita impor- tância; e então direi os remédios que isso pudera ter, pêra não dar tamanha opressão aos vassalos.

Ora, quanto a cuidarem que atalharam, emarran-

21-22. O provérbio é: cader delia padella neUe brace, que significa «sair duma situação má para outra pior».

29, atalharam: atalhariam, evitariam estes males.

136

Page 171: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

car os cargos das mãos dos desembargadores e os meterem nas dos viso-reis e arcebispos, por certo que não sei mór perdição pera os homens, porque se êsses viso-reis muitas vezes não deixam fazer jus-

5 tiça aos desembargadores em negócio das entranças das fortalezas e cargos, quando contendem dous fi- dalgos, que um dêles é seu parente, e o inquietam, solicitam e inda peitam jque farão quando o jôgo lhe ficar todo na mão? Por certo que ficará o negó-

jo cio bem encaminhado, e que posso afirmar que o mór alvitre que hoje haverá na Índia, será êsse pera êles.

Desp. — Isso será se lhe ficar todo em poder; mas, quando o arcebispo fôr às juntas, não poderão

15 fazer nada. Sold. — Muitas vezes me quer Vossa Mercê tirar

a terreiro sôbre as desordens dos viso-reis! Mas que * estivera presente o Papa, ora quero-vos dar tudo

cosido, pois não acabais de cair nestas cousas. Vem 20 um feito de ua fortaleza, sôbre que contendem dous

capitães, já preparado de casa do juiz dos feitos, e ' em estado de sentença; põem-se o viso-rei com o ar-

cebispo a correr seus termos e ver suas rezões; ei-los votam; o arcebispo está em ua opinião, e o viso-rei

25 em outra. <;Que remédio? É necessário vir um le- trado jurista, ou dous pera serem* bastão; fica o

2, nas dos viso-reis muitas vezes em B. Há pois uma lacuna.

5, das entradas em B. Possivelmente entrâncias: graduações, categorias dos lugares.

17-18, Mas que estivera: Ainda que estivesse. 19, cozido em B. 26, pera serem bastão: para desempate.

I37

Page 172: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

negócio pera amenhã. Manda o viso-rei chamar o letrado, ou letrados, que hão de ser adjuntos; e só com êles na sua câmara vêm o feito e o praticam; e tantas rezões lhe dá o viso-rei, ou tantas promes-

5 sas lhes faz pera os afeiçoar ao que quer, que os rende. E a outro dia, juntos com o arcebispo, dis- cutida a matéria entre todos, tornam a votar: são já três contra. O arcebispo jque há de fazer, senão cruzar-se e assinar na sentença, que êle sabe que vai

io por aí além? Ora se el-rei tirasse os cargos das mãos dos juízes,

por cuidar que faziam sem-justiças e que recebiam peitas, e os metesse nas mãos dos viso-reis, cuidan- do que ficava o negócio mais puro, por certo que

15 se engana, porque lhe dará com isso um ninho de guincho, como lá dizem; e o que se houvera de dar a dez, se há isto, levarão êles só: porque os homens hão de negociar, quer tenham justiça quer não, e hão de abrir a bolsa, porque isto é o que

20 corre hoje em tôda a parte. E desengano-vos que não fio de nenhum viso-rei, como chega àquele Estado, nada; porque inda que vá dêste reino puro, lá o danam e trastornam. E êste negócio de ver pérolas e as peças ricas do Oriente é mui perigoso.

25 Desp. — Não sei que vos diga a isso. ^Pois que remédio pode el-rei dar a essas cousas? porque êle deseja de se fazer justiça a seus vassalos e de lhe não dar trabalhos.

Sold. — Alguns há; e os que por ora se me ofe- 50 recem, são êstes: Que mande el-rei que nenhfia pa-

15-16, um ninho de guincho: um bom celeiro, uma mina de rendimentos.

Page 173: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

tente se passe neste reino depois das consultas saídas, em que se despacham todos os homens; que se man- dem à Índia por vias em todas as naus, pera que lá se lhe passem as patentes; e então não haverá falên-

5 cias, nem será necessário suprimentos delas. E cada homem leve na mão certidão do secretário do com que vai despachado na consulta, pera por ela reque- rer sua patente. E faz nisso el-rei dous grandes bens: o primeiro, evita os danos e trabalhos de de-

10 mandas; e o outro, acrecenta o rendimento da chan- çalaria da Índia, que é necessário que se ajude com tudo; mas se êsse fôr o inconveniente, e cá neste reino não quiserem perder isso, ao tempo que cá lhe derem certidão do com que são despachados nas

15 consultas, irão passá-las pela chançalaria, e paga- rão nela o seu marco de prata, de que lhe passa- rão certidão, e então na Índia se lhe fará declara-

* ção na sua patente; inda que o melhor de tudo era ficar essa chançalaria para a Índia, que também ^

20 Estado del-rei, e tudo fica seu. Segundo remédio: fazer Sua Alteza neste reino

* um juiz das patentes da Índia, ao qual levem todos os homens as suas pera as rever; e, vistas por êle, achando-lhe falência, lhe mandará requerer supri-

25 mento, e depois da patente pura e sem dúvida, ponha ao pé dela a vista, pera que na índia lhe não possam arguir dos defeitos dela!

Desp. — Está isso por essa via muito bem; mas se sôbre essa patente vista eu quiser arguir um ho-

50 mem que é da nação, jcomo será isso?

30, da nação: não cristão, judeu. Talvez melhor «de nação».

139

Page 174: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

Sold. — Isso acontece poucas vezes; mas pêra isso saiba el-rei a quem dá seus cargos, e os des- pachos dêm suas abonações diante do juiz das pa- tentes; porque isso na índia é muito perigoso, por-

5 que tôda a pessoa que quiser arguir a outro desse defeito, lhe não faltarão testemunhas compradas a pardau. E bem se lembra Vossa Mercê daquele dito do grande Afonso de Albuquerque, que, queixando- -se já disso, dizia a alguns: — Sabeis quão má

io gente é a da índia, que me puseram que eu era puto, e mo provaram? — sendo êle um fidalgo tão honrado, tão cristão e tão honesto, que afirmam que nunca criado seu lhe viu o pé descalço. E por evitar isto, havia Sua Alteza de mandar que todos

15 os homens que despachassem neste reino fizessem sua abonação diante do juiz das patentes, pera assi ir de tudo puro à índia; e quando lhe coubesse seu cargo, não fazer mais que entrar nêle, e lograr o fructo de seus trabalhos com descanso.

20 O terceiro remédio, e que me parece melhor, assi pera os homens como para a conciência del-rei, é ter " na índia Mesa de Conciência de homens muito apu- rados, de que seja presidente o arcebispo, só pera êste negócio de cargos, e nela se determinarem; e se tiver falência algua patente, possam suprir nela; porque a tenção dos reis é lograrem seus vassalos o fructo de seus serviços, e entrarem nas fortalezas e Cargos, que por êles lhe dão, sem tanta avexação, infâmia e despesas, como já tenho dito. E com isto se segurará o rei na conciência, e se evitarão infini- tas desordens.

Desp. — Não apontastes mal; e prometo-vos que

10, puseram: caluniaram.

140

Page 175: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

nos primeiros conselhos que houver de cousas da Índia, farei lembrança dessas com muita instância, por que não hão de deixar de ser aceitas.

Fid. É isso bem feito; mas não se há de fazer; 5 e a rezão é: porque nós, os do Conselho, nunca que-

remos que se faça cousa, que pareça prejudicial ao cargo dos viso-reis, porque são nossos parentes e amigos; e, mal pecado! sempre temos nisso mais o intento que no serviço do rei e bem comum.

io Sold. — Pesa-me muito de ouvir dizer isso a Vossa Mercê; porque parece que sois todos favore- cedores de sem-justiças e desordens; e £qual é o viso-rei cristão, que não folgue muito de o desali- varem na conciência e o tirarem de tamanhos en-

15 cargos, como são os de julgar vidas e fazendas » alheas, e ficar desalivado pera entender nas cousas

da guerra, que é seu própio ofício, como capitão • geral? Que pera as mais cousas de fazenda e justiça

tem o rei ministros sôbre que descarrega tudo; mas 20 o quererem-se meter em tudo é o que tem a Índia"

no estado em que eu a deixo. E, pois me Vossas Mer- • cês tem dado licença, eu hei de tratar de vagar

donde isto nace, e que cousas foram a única ocasião de a índia desfalecer tanto.

25 Fid. — Muito folgaremos de vos ouvir; e enten- dei que vos não há de montar isso pouco.

CENA II

Sold. — Dêm-me Vossas Mercês, por amor de Deus, Qa grande atenção; porque as matérias que hei de tratar são de muita importância. Aquele fa-

26, vos não é de montar em A.

141

Page 176: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

moso filósofo Séneca, com outros muitos filósofos e capitães, afirmaram que com as mesmas artes com que os Estados se conquistaram, com essas se ha- viam de conservar. O Estado da Índia ganhou-se

5 com muita verdade, com muita fidelidade, com muita liberalidade, com muito valor e com muito esfôrço. Ora vede se o estado em que está não é P°l° contrário destas cousas! Aqui me cai a propó- sito um dito muito avisado dum rei de Cochim, o

io qual vendo ir aquele Estado empiorando, disse «que logo êle começara a descair, tanto que de Por- tugal deixaram de vir estas três cousas: verdade, espadas largas e portugueses d'ouro».

Ora quero mostrar a Vossas Mercês como da falta 15 destas cousas naceram todos os males da Índia. Va-

mos à primeira, que é verdade: as verdades com que êste Estado se ganhou, foram viso-reis embar- cados, armas vistidas, fazendo guerra aos imigos, acrecentando o património real e enriquecendo o

20 Estado e os vassalos. E senão, vêde como esteve a Índia no tempo dos que seguiram estas verdades," que foram D. Francisco d'Almeida, Afonso d'Albu- querque, e todos os mais viso-reis e governadores até Jorge Cabral, e inda quero dizer até D. Cons-

25 tan tino; mas depois que se deixou de usar desta ver- dade, e que ela se perdeu, aconteceu aos viso-reis e governadores aquilo que a Aníbal, que, emquanto andou com as armas vistidas poios exércitos, dor- mindo nos campos em um couro de boi, que era

30 a sua cama mimosa, conquistou tôda Espanha e Itá- lia, e inda fôra senhor de Roma e do mundo todo,

18, vistidas em A.

142

Page 177: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

se seguira sempre esta verdade; mas, depois que a perdeu e se recolheu às delícias de Cápua, e despiu as armas, logo tornou a perder quanto em tantos anos tinha ganhado.

5 Assi os viso-reis e governadores da Índia: em- quanto seguiram esta verdade, foi ela próspera e te- mida; mas, depois que se ela perdeu e que dispiram as armas e se deixaram de embarcar, e se recolhe- ram às delícias da cidade de Gôa, e se fizeram vea-

10 dores da fazenda e presidentes da Relação, logo a Ín- dia foi de pernas acima, e nós todos nos acovardá- mos e nos perderam tanto os imigos o respeito que aquilo que nós primeiro fazíamos, que era susten- tarmo-nos de presas suas, o fazem êles agora, que

75 se sustentam de presas nossas. Não quero aqui passar polo dito de um capitão

turco, daqueles que foram contra a nossa fortaleza • de Dio, sendo capitão António da Silveira, no qual

me quero também envergonhar a mim e aos solda-, 20 dos da Índia, por que não fiquem sem sua ração.

Este turco, depois de passado aquele espantoso cêr- ' co, estando falando nêle com el-rei sultão Mamude

de Cambaia, contando-lhe as maravilhosas e altas cavalarias que vira nêle fazer aos portugueses, de-

25 pois de em seus louvores gastar muito tempo, arre- matou com dizer:—E afirmo-te, poderoso rei, que, polo que vi fazer a êstes homens, que êles sós são merecedores de trazerem barbas no rosto.

Ora vejam Vossas Mercês a que estado temos che- jo gadol: que aquilo que aquele turco notou em nós

mais pera louvar e temer, isso é o menos que hoje

2, e depôs em B.

H3

Page 178: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

estimamos. E assi, emquanto os capitães e soldados tinham barbas largas, tinham vergonha, que não sei se hoje se achará; por certo que desejo de ver ressu- citado aquele bom rei D. Manuel, e com êle um

5 daqueles soldados veteranos com que a Índia se conquistou, com ua barba poios peitos, um pelote polo joelho, uns musgos cortados, ua crangeia ao peito, posta em um murrão, ua chuça ferrugenta nas mãos ou ua bésta às costas, e a-par dêle um

io dos soldados dêste tempo, com ua capa bandada de veludo, coura e calções do mesmo, meias d'arre- trós, chapéu com fita d'ouro, espada e adaga dou- rada, barba rapada ou muito tosada, topete muito alto: parece-me que tornaria aquele bom rei logo

15 a morrer de nojo, e que poderia pedir conta aos reis seus sucessores de se descuidarem tanto nas cousas da India, e de não mandarem prover que se torne tudo àquela primeira idade, se querem que a Índia torne a seu sêr.

20 Dizei-me, senhores, £há hoje no mundo terra mais fronteira, e em que sejam necessárias andarem as" armas mais na mão que a Índia? Por certo não: pois jque descuido é não se atentar neste negócio, e não haver um viso-rei que se ponha à soldadesca

25 pera todos o seguirem, e querer parecer capitão, pera todos quererem parecer soldados? Que esta é a segunda cousa, que aquele rei de Cochim dizia

7, musgos: calções, que cobriam apenas a coxa (própriamente o musgo) ?

7, crangia em B. Não se sabe o significado desta palavra.

11, coura: gibão, que antigamente era de couro. 13, tosada: cortada, desbastada.

*44

Page 179: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

que já não vinha do reino, naquela comparação das espadas largas; querendo-nos dar a entender quanto nos ia já falecendo aquele antigo brio e valor por- tuguês, quási aludindo àquele dito do nosso bom

5 rei D. João o 2.°, quando dizia que o bom portu- guês havia de ferir com os terços.

E assi, depois que neste Estado entraram verdu- gos compridos, bolonas e trajos estrangeiros, logo tudo se perdeu; porque a guerra não se faz com

io invenções, senão com fortes corações, e nenhua cousa deitou mais a perder grandes impérios, que mudança de trajos e de leis. E se não, vejam aquela grandez da China, e a famosa República Veneziana, se se tem sustentado tantos milhares de anos em

15 tamanha potência, — £se é por outra cousa senão por não consintirem nenhua mudança destas?

A terceira cousa que dizia aquele rei de Cochim • que já não vinha do reino eram portugueses d'ouro,

moeda, com que então se fazia a carga da 20 pimenta, e tão estimada de todos os reis da índia,

que dela faziam seus tesouros; e assi, depois que ' naquele Estado entraram moedas estrangeiras, logo

êle começou a definhar; mas eu cuido que aquele rei o não dizia poios portugueses d ouro, senão por-

23 que os soldados daquele tempo, capitães e viso-reis eram todos ouro na verdade, na liberalidade, ouro na fidelidade, ouro no valor, ouro no primor, ouro no esfôrço; emfim que daquela idade tôda d'ouro

7-8, verdugos: espadas longas sem gume. 8, bolonas: colares da camisa. Em B: balonas.

13, grandes: grandeza. 18, português d'ouro: moeda com o valor de 800

reis. Recomeça a letra de Couto.

*45 10

Page 180: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

viemos a descair nesta tôda de ferro, em que tudo isto falta. Por onde receo que êste negócio se vá concluindo; porque vejo a Justiça Divina tão irada contra aquele Estado, em que há anos que vai usan-

5 do do rigor de seu juízo, que foi sempre castigar gerais e públicos pecados com gerais e públicos pe- cadores. Se não, vêde se vos castiga por mãos dos imigos, que sempre dominámos e sojugámos! Por que até os mais coitados tem alevantado mãos con-

10 tra aquele prove Estado: por onde eu temo que se torne o seu a seu dono, se Deus nisso não prover e não puser os olhos de sua misericórdia em muitos virtuosos que nêle há.

Desp. — Tudo o que dissestes são puras verda- 15 des, e bem entendemos que tudo se acabara, se Deus

Nosso Senhor não tivera postos os olhos de sua misericórdia em tão sumptuosos templos, em tantos religiosos virtuosos, em tantos inocentes, e sôbre tudo na piedade, zêlo e cristandade dos nossos reis,

20 que em todas as religiões mandam encomendar seus „ Estados a Deus Nosso Senhor, e nem por muitas que sejam as cobiças e pecados, há de permitir que seus templos, em que tantas vezes de dia e de noite seu santo nome é louvado, se convertam em nefandís-

25 simas mesquitas do torpe Mafamede, onde seja ou- tras tantas na hora vituperado. Deus é misericor- dioso, êle porá os olhos nisso com .aquela brandura e mansidão com que os pôs no ladrão.

Sold. — Eu assi o confio em sua divina bon- 30 dade; mas também me lembra que grande número

9, evitados em A. 26, na hora: ao mesmo tempo.

146

Page 181: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

de inocentes, religiosos santos, templos sumptuosís- simos havia naquela infelice Constantinopla e por todo o Império da Grécia; mas permitiu Deus o que vimos, e êle sabe por que juízos. Não há na terra

5 maior santuário nem cousa de mór veneração que o Santo Sepulcro, e consente êle estar em poder dos torpes maometanos; por onde não podemos deixar de recear que faça outro tanto a cidades, em que é tão ofendido e em que tanta tirania se faz, tão

io pouca justiça se guarda, tanto adultério se comete, e em que tanta órfã se deshonra, e em que tanta on- zena se consente, e em que tanto... tudo o que Vossa Mercê quiser se verá a cada passo!

Porque nunca Deus deixou de castigar pecados; , 15 pois é verdade tão sabida que em todos se segue

a pena, assi como pelo pecado de Adão em pena 0 se seguiu a culpa para os descendentes; pelo que no

fim daquela primeira idade castigou Deus Nosso Se- nhor o mundo por seus pecados com água naquele

20 dilúvio universal; no fim da segunda foi já menor o , castigo, porque se deminuíram as fôrças naturais;

pelo que se contentou com só o castigo de cinco ci- dades; na terceira idade, além das pragas do Egito pela idolatria de Belfegor, além dos vinte mil ho-

25 mens, que matou ao tríbu de Levi por mandado de Mousés, castigou Deus o povo com outro castigo maior; na quarta idade castigou Deus os israelitas no cativeiro de Jerusalém, que Jeremias nove anos antes tinha profetizado; na quinta idade foi o castigo de

50 menos rigor, porque o mais dêle foi o temor e afli-

15-16, se segue em pena a pena em A. 21, desminuiram em A.

H7

Page 182: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

ção, em que Amão pôs o povo dos judeus, inda que não pela culpa que Amão lhe punha, mas só pela idolatria quási ordinária, de que os profetas da- quela idade sempre os arguiram. E inda que o peca-

5 do da idolatria é tão grande que absolutamente se chama pecado, porque aquela idade ia já descaindo muito nas fôrças naturais, contentava-se a Divina Justiça de lhe dar castigo de temor.

Na sexta idade em que estamos, porque se chama io tempo de misericórdia, espera Deus ao pecador que

se converta; mas nesta se castigaram os tiranos que martirizaram os santos; nela se castigaram os here- jes cismáticos, inda que êste castigo não foi de tanto rigor como na terceira idade se fez em Datão

15 e Abirão. E nesta idade castigou Deus pecados particulares,

como vimos em tanto reino cristão, Grécia, Hun- gria e outros, que tão oprimidos estão com o jugo do turco nas Alemanhas altas e baixas; por pecados

20 vimos castigar a vila de Schilstaun no Friburgo de - Brisgoia, quási três léguas de Basiléa, a qual em espaço de ua hora se queimou tôda, a 10 de Abril, quarta-feira de Trevas. França, Flandes, Ingla- terra não deixou Deus sem castigo nas muitas e con-

25 tínuas gueras, em que contínuo andam, e em mor- talíssimas pestes, que muitas vezes caíram sôbre elas; e o mór castigo foi largar Deus Nosso Senhor a mão dêles.

Não ficou sem êstes castigos a opulenta Espanha;

9, Nesta idade em B. 20, Schilsthan em A. 28, dêles: dos habitantes dessas terras.

148

Page 183: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

porque por pecados veo a ser entregue a mouros; nem escapou o nosso Portugal, porque, segundo se entende, por injustiças lhe mandou Deus terremo- tos, pestes, fomes; e inda nos acabou de castigar

5 naquela passage de África, onde em duro cativeiro acabaram tantos as vidas, e os grandes conheceram que havia Deus; e disso acabámos de perder entre todas as nações o crédito.

Pois os pecados da Índia não quereis que os cas- 10 tigue Deus? Sabei, senhores, que o há de fazer, e

que cuido que o começa já no descuido que neste reino há daquele Estado, e nas piquenas armadas e provimentos que lhe mandam; porque, quando tanto mal não tinha entrado naquela terra, e os reis

i /j de Portugal a traziam nos olhos, parecia que nas suas ribeiras lhe naciam naus, nos seus tesouros

• dinheiro, e polas praias marinheiros, mestres, pilo- tos, bombardeiros, calafates, de que hoje tudo fa- lece; e assi permitia Deus que se movessem os pèi-

20 tos daqueles reis a mandarem tantas armadas e • tantos provimentos e gente, como se sabe; porque

houve anos que partiram dêste reino vinte naus com quatro e cinco mil homens, e tôdas chegavam a salvamento, porque trazia Deus Nosso Senhor

25 postos os olhos na piedade daqueles reis e no zêlo dos seus viso-reis e governadores; e assi andava tudo tão próspero, que me lembra encontrar polas ruas de Gôa mais capitães velhos e fidalgos pera

4-9, fomes e desaventuras. Pois os pecados em B. Omite o passo importante, embora anacrónico, referente à derrota de Alcácer-Quibir.

10, que o há de fazer. Acaba a letra de Couto.

I4Ç

Page 184: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

serem viso-reis do mundo, do que hoje encontra- ram soldados de nome.

E quando neste reino se queriam fazer vias pera sucessões da governança, havia tantos que não se

5 sabiam determinar os reis na escolha; e hoje, se qui- serem fazer quatro vias e Vossa Mercê me der jura- mento pera isso, eu não as saberei fazer; e, o que pior é, que êsses que são, já não querem embarcar- -se senão por capitães-móres; e como não há tantas

io armadas, ficam muitos sem servir, e requerem que estiveram em Gôa com grandes casas e fazendo mui- tas despesas dos morgados, que nestes reinos pera isso venderam.

Emfim, senhores, venho a concluir que um dos 15 móres castigos que Deus dá aos povos, é tirar-Ihe

os bons e experimentados, como fez àquela soberba Atenas, mãi das ciências; e nunca Roma foi tão próspera, como no tempo que a governaram velhos, sábios e desinteressados; e tanto que êstes faltaram

20 e entrou a cobiça, logo se perdeu. Desp. — Tudo isso que dissestes é muita verda-

de; mas é tanta a bondade, religião e caridade dos reis de Portugal pera seus povos e vassalos, que só por isso lhe há de Deus Nosso Senhor conservar o

25 que lhe tanto custou. E quem o ofender, lá está o juízo e o castigo guardado, de que alguns fazem bem pouca conta. Ora Deus é bom, êle remediará isso como nos a nós convém; porque mais cuidado tem de nós que nós mesmos; e já que isto está tão

50 bem praticado, e vós tendes dado mostras de ver- dadeiro português em vos doerdes dessas cousas e as descobrirdes, quero-me eu doer das vossas, e despa- char-vos como vossos serviços merecem e eu desejo, polo que vos estou afeiçoado: dai-me vossos papéis,

150

Page 185: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOL DA DO PRÁTICO

se os trazeis; e a primeira vez que achar Sua Alteza desocupado, eu lhos presentarei, e com isso as mais rezões que tem dè vos fazer mercê, polo zêlo que mostrastes a seu serviço: e eu fico que sejais mui

5 bem respondido. Sold. — Beijo as mãos a Vossa Mercê por essa

vontade'- não quero que ponha Vossa Mercê os olhos em mais que em minha pobreza, idade e serviços, e, conforme a êles, me fazer mercês. Os papéis são

o êstes; as feridas que me deram em serviço del-rei são esta espingardada neste braço e outra polas per- nas, de que d'ambas fiquei aleijado; frèchadas e outras muitas feridas por êste corpo, queimado cinco vezes; e inda que isto vá nestes papéis mui justifi-

5 cado, mais claros e verdadeiros estão neste corpo. Fid. Eu sou.boa testemunha das mais dessas

cousas, e não tão pouco vosso amigo que alguas vezes que vos vi desembarcar e embarcar em ter- ras de imigos não desejasse de vos fazer muitas

>o mercês; mas atalhou-me o tempo com me tirar dás mãos o govêmo; porém agora estais em parte e em poder de quem há de olhar mui bem por vossa justiça, e não haveis de perder nada de vo§sa honra e trabalhos.

.5 Sold. — Assi o creo eu por certo, que essa con- fiança me trouxe a esta casa, sem pera isso buscar padrinhos; e quis minha ventura achar logo um tão bom como Vossa Mercê, por cujo meo eu sei que não serei mal despachado,

to Desp. — Descansai nesse negócio; mas dizei-me que é o que pedis em vossa petição?

4, eu fico: asseguro-vos.

151

Page 186: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

CENA III

Sold. — Já'gora não há na India que pedir, que tudo é dado por trezentos anos, e eu não tenho idade pera esperar tanto: dêm-me o que quiserem, tornarei pera a índia com ua patente ao pescoço;

5 se morrer, morrerei no hábito, e havereis que me não ficou nada por fazer. E já que me cai a propó- sito, não posso deixar de estranhar as grandes de- vassidões, que houve nos despachos da índia; por- que sabemos del-rei D. João o 3.0, da gloriosa me-

ro mória, que trazia na sua aljabeira um canhenho de todo os cargos e comendas, e, em vagando qual- quer, a dava ao que lhe parecia que tinha mais merecimentos; e assi nunca despachava um cargo dêstes senão pera logo entrarem.

15 E com isto folgavam os homens de servirem, e punham por isso a vida; e andava isto tão a ponto, que havia fidalgo, que, quando se fazia prestes pera se vir despachar a êste reino, lhe chegava Ga carta missiva del-rei, por que lhe fazia mercê da

20 fortaleza de Ormuz ou Sofala, na qual logo ia en- trar; que estas são as mercês de estimar: mas hoje que tudo está tão entupido, confesso a Vossas Mer- _ cês que não tem os homens gôsto de servirem; e se o fazem, é porque não tem outro remédio.

25 E isto sucedia, porque se não davam os cargos senão a quem os merecia e trabalhava; e hoje dão-se a quem tem mais valias e aderências, e não . sei se por outros meios; porque vemos na índia

io, aljabeira: bôlsa, aljibeira. Bom têrmo português. Em B: algibeira.

152

Page 187: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

muitos homens, que nunca serviram o rei nem pu- seram pé em barco, melhores despachados que ou- tros, como eu, que envelhecemos por êles, e nos quebraram nêles os braços e as pernas; e isto ma-

5 gôa tanto aos homens da minha sorte, que, se na- quele Estado houvera outro rei cristão a quem pu- deram servir, como já disse, sabei, senhores, que o houveram de fazer; e, segundo os homens andam enfadados, se se nisto não tem outro têrmo, hão-se

io de vir a desenganar, e não se embarcar nenhum pera aquele Estado, e buscar por cá seu remédio.

Desp. — Tendes nisso muita rezão, e todos caí- mos nessas culpas; mas deixemos o passado, que já não tem remédio; busquemo-lo ao porvir; e êste

15 folgaria de me dizerdes qual se pode ter neste ne- gócio pera satisfação dos homens que servem, e pera os que não tem merecimentos se não logra- rem do que por justiça se lhe não deve.

Sold. — Muitos remédios há; mas o principal 20 é mandar el-rei ter mão nos despachos alguns anos,

£ pera nêles se dar evasão aos providos, e suspender as trespassações; e depois que se entrar no negócio dos despachos, saberem a quem se dão os cargos, que sejam a criados del-rei de serviços, e então

, 25 poderão os homens esperar de entrar em seus car- gos. E inda é mais necessário que tudo, não passar el-rei as provisões que passa aos viso-reis pera poderem prover todos os cargos da Índia, de fei- torias pera baixo; porque por elas provê cada

2, melhor despachados em B. 6-7, a quem pudessem servir, certamente o fariam;

porque andam os homens tão enfadados; e se nisto não houver algum têrmo, se ham de vir a desenganar em B.

153

Page 188: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA. COSTA

viso-rei mais de trinta cargos, e ficam com isso tão entulhados todos, que nada há poder um homem esperar 'vagar-lhe o cargo de que é provido.

E certo que cuido que não lançam neste reino 5 contá às fortalezas e cargos da índia; porque, com

não serem mais que dezasseis ou dezassete fortale- zas, quási cada três anos vem dez e doze despachos delas, afora os que estão na India, a quem se man- da os despachos; e todos os mais cargos de feito-

ro rias, juízes d'alfândega, escrivães dela e das feito- rias, capitanias pequenas e tanadarias não passam de corenta, e vem cada três anos mais de cincoenta homens providos; por onde não há poderem nunca "vagar os cargos; e inda nestes se metem as tres-

15 passações, como já disse, que é um infinito. Por onde venho a resumir: que, quando se des-

pacha um homem, inda que seja em idade de vinte anos, não entrará no seu cargo té os sessenta: jpois como esperarei eu gozar de cargo algum? Não sou

20. tão néscio: venho por honra a esta corte a reque- rer, sem esperança de me darem cousa em que possa entrar, por cumprir com minha obrigação; e quando morrer, levarei a patente comigo à cova, pera que saibam os soldados do meu tempo que me „

25 não descuidei de minha obrigação, ou que deixa- ram de me fazer mercê por pusilânime ou polo não merecer.

Desp. — Não sei que vos diga a isso! Muitas ve- zes se tratou de se suspenderem as trespassações;

30 e não sei como já não se efeituou. Tudo o que dis-

6, mais de dezeseis ou dezoito em B. 11, tanadarias: tesourarias, repartições de impostos.

*54

Page 189: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

sestes é santo, e isso muito bem se entende cá; mas todos não o queremos acabar de executar, por nos- sos particulares. Pode ser que em algum tempo se trate destas verdades que dissestes; mas tornemos

5 a vossos negócios: folgarei de haver cousa que vos arme e caiba logo; porque essa idade não está pera esperar; por isso vêde o que há, que eu vos farei despachar, para vos tornardes nestas naus.

Sold. — Não sinto eu agora cousa que me possa io caber logo, pera me dar bem de comer, senão de-

sembargador da Relação de Gôa, chanceler, juiz dos feitos, provedor dos defuntos; porque com qualquer dêstes ficarei mui bem remediado; e, assi velho, me não faltarão vinte mil pardaus em casa-

íj mento; porque não sei que tem êstes desembarga- dores, que antes os querem que capitães de forta- lezas.

Desp. — Assi fôra isso de vossa profissão, como se vos dera; mas é necessário que quem houver de

20 servir êsses cargos seja letrado e visto em ambos 0 os dereitos.

Sold. — Bofé, senhor, que pera alguns gramáti- cos, que já lá foram e que eu conheci, inda eu fico d'aventagem; porque êstes, com dous debruns de

£5 latim, foram feitos desembargadores por valias; porque latim como êles sabem, eu o sei; o mais farei o que alguns fizeram: darei sentença por quem me mais der; e não curarei de ver Bártolo nem Baldo, porque isso será viver polo saco e estar

30 amarrado ao prove do ordenado; e eu desejo de ter logo em três anos vinte mil cruzados.

5-6, que vos arme: que vos sirva, vos convenha. 29, viver poio saco: viver estreitamente.

155

Page 190: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Desp. — Valha-me Deus! E é possível que os homens que Sua Alteza manda à Índia adminis- trar justiça, pera o que lhe dá grandes ordenados, enriqueçam assi por êsse modo?

5 Sold. — Desejo de me rir dessa justiça, que êstes que digo lá foram fazer; tamanho engano há neste reino, que não entendem que um estudante de vinte e cinco anos, muito rosado e bem disposto, e em ua terra tão lasciva e mimosa, e onde tanta

io delícia reina, que haja de fazer justiça mais que a seus gôstos! Olhai vós os setenta anos cheos de muitas cans e autoridade que me êles lá manda- ram! Uns barbiponentes, mais recramados e en- crespados que os cabelos de um mulato, e cujas

15 opas roçagantes (trajos daqueles senadores anti- gos) são calças recamadas, capotes barrados, espa- das douradas, cavalos guarnecidos d'ouro e prata, muitos lacaios diante e pagens detrás, e tudo isto do dia que à Índia chegam a um mês, de feição

20 que, se os encontrais polas ruas, mais parecem embaixadores de França que desembargadores da Relação!

Pois isto j donde veo, ou quem lho deu senão a quem êles deram a justiça, que era doutro? E inda.

25 mal porque isto é tanto assi, que nunca a Índia foi tanto pernas acima, como depois que alguns

11, Olhai vós. Dito em tom de ironia: «Olhai se mandam para lá homens maduros!».

13, barbiponentes: moços a quem começa a des- pontar a barba.

13, recramados: com os cabelos anelados. 23-24. Entenda-se: «senão aquele a quem êles deram

a justiça».

156

Page 191: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

dêstes entraram nela. Até o tempo de Jorge Cabral, em que não houve mais de um ouvidor geral, um provedor-mór e procurador da corôa, não foi a era dourada? E inda muito mais felice té o tempo do

5 viso-rei D. João de Castro, em que não havia mais que um ouvidor geral, que trazia tudo tão dereito e bem governado, que em se fazendo um crime era logo punido; e depois de tanto juiz não vejo punir nenhum.

io Pois <;quem foi o infernal que enganou ao rei, e lhe fez em ua terra ganhada de novo e cercada de imigos, em que é necessário andar sempre com a espada na mão, meter varas em lugar de lanças, leis em lugar de arneses, escrivães em lugar de

15 soldados? Porque, na verdade, muitos mais são êles agora que os soldados. E não lhe pareça a Vossa Mercê que falo por aí além, porque digo verdade e torno afirmar que mais gente anda de ordinário polas audiências que nas armadas. Dizia o divino

20 Platão que nas terras onde havia muitos médicos, 0 havia muitas infirmidades; e pola mesma maneira

podemos dizer que onde há muitos ministros de justiça, há muitas maldades.

Naquelas respúblicas antigas os graves legislado- 25 res que as governavam, nunca lhes ensinaram esta

ordem do juízo que hoje se usa, a saber: libelo, contrariedade, réprica, tréprica, dilações, suspei- ções, nem todos os mais têrmos, com os que se faz um processo e feito, que um homem não pode ale-

50 vantar, tudo inventado contra malícia humana; e que nunca Sócrates ensinou aos atenienses, nem Sólon aos gregos, nem Numa Pompílio aos romãos, nem Prometeo aos egípcios, nem Licurgo aos lace- demónios, nem todos os mais que fizeram e orde-

'57

Page 192: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

naram leis para o bom govêrno de seus povos, só por os afastarem de contendas, trapassas, preitos e demandas.

Esta é a rezão, por que aquele famoso Licurgo 5 mandou que as leis que fez na sua reformação da

república espartana, não fôssem escritas nem pos- tas em nenhiia forma, senão que se imprimissem nos ânimos dos homens; porque tinha por cousa muito certa que a mór parte da felicidade e boa

io fortuna de qualquer república bem instituída, con- sistia principalmente em não estarem as leis escri- tas, senão em se guardarem e pôrem por obra, e terem-nas em seus ânimos em grande veneração. E quem isto ordenava não havia de consentir em

15 seus povos tamanhos volumes sôbre nada; e assi são já agora mais altas as rumas dos feitos nas casas dos escrivães do que são os muros das mes- mas cidades.

E o que nesta matéria me escandaliza mais que 20 tudo, é que, se um juiz ou ouvidor quer sentenciar

verbalmente ua cousa de pouca importância, como um queixume que um canarim deu doutro, que lhe disse ua roindade, não querem os escrivães diante dêles senão que se faça auto e tirem testemunhas,-

25 e que corra judicialmente, no que òs olhos vistos roubam aos mesquinhos, sem nunca se prover nisto.

Os locrenses fizeram ua lei, que todo o homem que na sua república inventasse algua lei ou ordem *

22, que um homem deu doutro em B. 25. Na primeira redacção de A estava òs olhos

visto.

158

Page 193: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O S.O L D A D O PRÁTICO

nova que, emquanto ela se publicasse, estivesse com ua corda amarrada no pescoço e junto a ua fôrca; por que, se a lei que inventara fôsse em dano do povo, fôsse logo ali enforcado. Oh! que lei esta ■ pêra o Estado da Índia, pêra os alvitreiros e nove- leiros, que vão aos viso-reis com cousas tão preju- diciais ao serviço del-rei e ao bem comum, que mereciam trezentas fôrcas! E o que é peor, que não ignoram os viso-reis aquilo; mas como é cousa que lhe dá proveito, folgam muito, mas não deixam de ter o que lhe vai com aquelas cousas na conta em que êle merece; e certo fiz já escrúpulo de con- ciência em dizer alguas vezes aos vereadores de Gôa, que haviam de ter um cofre de tesouro púbri- co, que se não gastasse em outra cousa senão em mandar matar por dinheiro êstes prejudiciais e per- turbadores dos povos.

As leis, segundo Cicerão, no primeiro De Ora- tore, foram feitas pêra que fôssem prémio das vir- tudes e pena dos maus; agora na Índia é ao con- trário, porque são prémio pera os maus e pena pêra os bons; quem agora é inventor de ua malda- de e malsim de ua mentira, êsse é o que vai, e esse leva as mercês; e os bons são abatidos e despreza- dos e a virtude não se conhece. Dizia um filósofo que estava indeterminado a quem buscaria, se a um rico mau, se a um pobre virtuoso; e dizia que êle continuamente via as portas dos ricos mui acompanhadas e as dos bons sós.

Ora vejam Vossas Mercês a que estado nos che-

4, que lei é esta em A e B. 29, e as dos pobres não em B.

'59

Page 194: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

garam nossos pecados, que se não conhece a vir- tude, sendo ela, segundo alguns filósofos, Ga per- feita rezão, e que tem seu assento no entendimento do homem sábio, e tem tanta fôrça que lhe faz avorrecer os vícios, como aquela que é dom dado por Deus Nosso Senhor, pêra que as cousas escuras e cegas traga à luz;porque assi como a luz aclara e descobre todas as cousas, assi os maus a avorre- cem, porque lhe descobre suas ignomínias. A ver- dade e a luz, dizia Menandro que era amarga, sendo dôce, aos maus, porque o gôsto do entendi- mento que a havia de julgar estava gastado; e pera êstes tais era como para os que tem dor de olhos, que podiam ser comparados aos morcegos, que avorrecem a luz.

Desp. — Essa matéria é grave, e folgo de vo-la ouvir. E dessa maneira vai lá a cousa? Bom será prover-se nisso, e mandar Sua Alteza novos ofi- ciais, velhos e ricos, a quem honrem filhos e netos polo irem servir neste negócio, e com ordenados e mercês bastantes pera se não inclinarem a nada.

Sold. — Isso remédio é, mas é remendar; porque alguns velhos se mandaram já lá por inteiros, que fizeram gravíssimos excessos na justiça. Por muito melhor remédio tinha eu mandar vir os seus escri- vães, que são os que lhes dão as desordens e alvi- tres; e afirmo a Vossas Mercês que um só dêstes que isto fazem que lá fique, basta pera apegar a infirmidade a todos. Os gafos degradam-nos do povoado por não contaminarem a terra: assi êstes

5, como aquela que: visto que. lo. Menandro, comediógrafo grego.

l6o

Page 195: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

alvitreiros haviam de ser degredados pera a Ilha de Santa Helena, onde não possam apegar tama- nha infirmidade.

Afirma Rasis, no livro 25 de seu Continente, que 3 tôdas as quenturas pútridas ou mortais pola maior

parte se apegam aos que se chegam perto; e assi esta doença de que trato é tanto mais pegadiça, quanto mais mortal é que tôdas,pois mata a alma, que vai sôbre tudo; e se é verdade, como é, pois

10 o experimentamos, o que diz Galeno na sua Técni- ca, e Avicena no primeiro Fen, que a complexão sã pode num ponto enfermar, aqui em muito me- nos se pode corromper; porque a peçonha da cobiça não tem nenhum antídoto, logo se apodera do cora-

15 ção. Mas quando isso que Vossa Mercê diz houvesse

de ser, que se mandassem êsses desembargadores, advirto que sejam tais e levem varas tão grossas,

, que com nada se possam torcer; porque alguas vi 20 eu já lá tão delgadas, que com um rubi ou dia- % mão se dobravam logo; porque já com alcatifas,

colchas e peças de sedas, barças de louça da Chi-

4. Hasis, célebre médico árabe do século IX, autor do Livro do Continente, manual prático de medicina.

10. Galeno, médico e filósofo romano do século II. 11. Avicena, médico e filósofo árabe do século X,

célebre pelos seus comentários de Aristóteles. 11. Fen era o nome árabe pelo qual se designavam

as secções de alguns livros da sua obra Canon Medicinae. Os comentaristas empregam êsse nome no feminino.

12-13, em muito menos: em muito menos tempo. 20-21, diamão: diamante. Em B: diamante.

22, barças: resguardos de palha para a louça fina. Aqui própriamente «presente».

161

Page 196: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

na, e outras cousas desta sorte, isto fá-las inclinar até o chão; e o bem que tem, que nunca quebram, por muito peso que lhes ponhais, porque haverá destas que pode com um cavalo selado e enfreado,

5 sem fazer mais que torcer. Quebram elas alguas vezes, mas os focinhos aos pobres, quebram-lhe a honra e a fazenda; pera o que nenhum remédio há senão levantar olhos ao céu, e chamar pola justiça de cima, que forçado há de chegar, porque

io Deus não se descuida nestes negócios; que, se dis- simula, é pera vir com mão mais pesada.

Conta Xenofonte que os persas não tinham em seus retábulos outras figuras ou deidades que ua hastra, grossa, branca e dereita, polo qual signifi-

75 cavam a justiça; na grossidão da hastra mostra- vam quão maciça e segura havia de ser a justiça; pola alvura, a limpeza e pureza dela; e em ser de- reita, que se não havia de torcer por pai, mãi, nem por todos os tesouros da vida; e daqui se pode

20 imaginar que ficaria êste costume que se usa dos juízes trazerem as varas por insígnias das justiças.

Mas o melhor de tudo era tornar a índia ao pri- meiro estado, e não haver mais de um ouvidor ge- . ral, chançaler e juiz dos feitos, no que se pouparão-

25 mais de vinte mil cruzados, que estes desembarga- dores gastam cada ano da fazenda dei-rei, e se ata- lharão as desordens dos homens e emendar-se-ão de suas buíras e trapaças, e farão suas compras e

6, mas os focinhos: mas é os focinhos. 14, hastra: vara. Em B: hdstea. Esta forma hastra

ocorre agora pela i." vez, num texto de Couto; tem certa importância lingiiística, porque, sendo de conjecturar, não estava ainda documentada.

28. buíras: burlas, enrêdos.

162

Page 197: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

vendas na praça, sem os embaraços com que hoje as fazem; e os tratos e destratos, pode ser que se degradem, quando virem um só juiz.

Fid. — Dizeis bem: pode ser que com isso se 5 recolham os homens a bom viver, e que não haja

tanta trapaça e tanta confusão e preitos. Sold. — Vossa Mercê sabe êste vocábulo preito

donde vem? Pois saiba que é castelhano, e muito antigo, que no bom tempo queria dizer concórdia,

io como parece nas leis de Forum Juzgo; e daí veo a preitesia, ou preito e homenagem que os capitães e viso-reis fazem nas mãos del-rei da governança e capitanias, que lhe entrega: agora se mudou isto de feição, que o que era sinal de concórdia é causa

15 de inimizades e discórdias. E por entender isto muito bem o nosso rei D. Pedro de Portugal, e ver que já naquele tempo as confusões das demandas lhe iam corrompendo o reino, segundo achei em

» ua curiosa crónica de mão, mandou que todos os 20 juristas aprendessem ofícios de novo, porque que- • ria quietar seus povos.

El-rei Matias de Hungria mandou com público pregão que todos os juristas se saíssem de seu reino.

3, se degradem: se desterrem, se vão embora. Em B: se guardem.

10. O Fuero Juzgo é o código dos reis visigóticos, uma das complicações jurídicas mais importantes da Ida- de-Média.

19-21. D. Pedro, vendo que os procuradores ou advo- gados prolongavam os feitos como não deviam e davam motivo a demandas maliciosas, «mandou que em sua casa e todo o seu reino nom houvesse vogados nenhuns». É o que diz Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro 1, cap. 5.

163

Page 198: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

como o escreve Vives no livro De Corruptis Arti- bus, e logo ficou o reino em paz. A mesma faça- nha tentou a católica rainha Dona Isabel em Sala- manca; mas cessou seu bom zêlo e espírito por con-

5 selho de letrados católicos, que não sei quão bem andaram em estorvar ua obra tão importante na cristandade, de que tanto fructo e paz se seguiria.

Desp. — Assi pudera isso ser, como se fizera; mas os reinos não se podem conservar sem leis,

io porque fôra ua confusão muito grande. Sold. — Leis são santas e boas, mas usamos nós

mal delas; e andamo-las estudando pera lhe dar sentidos muito diferentes do que elas tem; e muitas cousas deixaram aqueles antigos legisladores por

15 pôr em suas leis polas não trazer à memória dos ho- mens. E essa foi a rezão por que Sólon não falou na pena que teria quem matasse seu pai, porque dizia que não queria que entrasse na imaginação dos homens tamanha maldade; o que se agora não faz

20 senão buscar novos modos de malícias, e trazer à memória dos homens novas invenções de buscar o infemo, em que uns e outros por suas vontades se metem.

E sabem Vossas Mercês quanto é isto assi?: quê" 25 chegou a malícia da India a tanto, que há homens

que compram demandas e auções a outros, e que todos os dias vão a tôdas as audiências, e de escri- vão em escrivão e de juiz em juiz, com tanto gôsto

1. Vives, célebre humanista e pedagogo espanhol do Renascimento. O seu livro De corruptis artibus foi publicado em 1531 juntamente com outro, De tradendis disciplinis, dedicado a D. João III.

26, auções: acções judiciais.

164.

Page 199: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

que cuido que nisso tem posta sua bem-aventu- rança; de modo que quem vir agora a cidade de Gôa, verá ua escola formada dêstes escrivães, pe- quenos e maiores, de inqueridores, procuradores,

5 informadores. E certo que é grande confusão ver esta infernali-

dade em Qa terra rodeada de imigos, que nos dese- jam beber o sangue, e na qual não houvera de haver senão escolas de armas, barreiras, solda-

jo desça a ponto; por que os imigos trouxessem sem- pre ante os olhos as armas portuguesas, pera que sempre andassem temidos; mas êles em lugar disto vêm o que já disse; senão quanto os brâmanes, que se fazem cristãos, aprendem logo esta doutrina de

15 nós e logo se fazem bulrões e trapaceiros, e sabem melhor a ordem do juízo que os mesmos procura- dores, que isto é o que lhe lá fomos ensinar.

E os cossairos polo mar tomando os navios, sem haver quem os guarde, porque as armadas fazem-

20 -se fora do tempo, e ainda assi faltas de soldados; * e em terra as audiências cheas de homens té às

ruas; de feição que muitas vezes desejei de haver, um governador tão curioso do serviço de Deus e do rei, que desse um dia por estas audiências e to-

ij masse tôda a gente e a mandasse embarcar em Qa armada a peleijar com os paraus; e à fé que, se um fizesse isto ua vez, que se refreariam os bulrões, e não se dariam tanto a esta calaçaria; embarcar- -se-iam nas armadas, receberiam seuè soldos, e não

4, enqueredores em A. 13, senão quanto: e até mesmo. 26, paraus: barcos de guerra dos indianos.

165

Page 200: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

faltariam soldados nas galés, nem seriam então necessários tantos juízes e tantos volumes de livros e feitos.

Lembra-me que li na Escritura Divina que os 5 fariseus traziam cosidas nos hábitos compridas ti-

ras de purgaminhos, em que andavam escritos os seiscentos e treze preceitos da lei; e a êstes purga- minhos chamavam filatérias, que quer dizer: cus- todia amoris; porque nêles diziam os fariseus que

io guardavam o amor de Deus, tomando êste nome na significação metafórica; porque propriamente significa filacterion «guarda d'amor contra a peço- nha». E cuidavam que a guafda dos mandamentos estava em trazerem muitos purgaminhos, em que

15 êles andavam escritos; e por isso Cristo Nosso Se- nhor, reprendendo-os de hipócritas, diz que não fa- ziam cousa do que diziam, e que dilatavam e en- sanchavam suas filatérias, como quem diz, seus enganos.

20 Assi desta maneira alguns dos letrados juristas da India tem a guarda das leis nos muitos e gran- des volumes que lhe vedes em casa, como os purga- minhos dos fariseus; ali estão muito bem escritas e cotadas: de fora muitos purgaminhos, no coração"

25 Deus sabe o que vai. Inda que não nego a Vossas Mercês que há alguns desembargadores honrados e inteiros na justiça, e que houvera mais, se os viso-

6, purgaminhos: pergaminhos. A grafia de A é purgaminhos, prugaminhos.

18. Efectivamente a palavra filactérias adquiriu em português clássico, pelas razões expostas por Couto, o si- gnificado de «manhas», «hipocrisias».

24, cotadas: anotadas.

166

Page 201: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

-reis os não perturbaram; e sempre naquela Mesa da Relação houve quem desejou de fazer justiça; mas ouvi dizer a um dêles, bem honrado e livre, que não bastava isso, porque tinham os viso-reis

5 sempre na Mesa três bombardas assestadas, com que venciam e derrubavam tudo: polo que alguns que eu conheci se tiraram do Desembargo, por quie- tarem sua conciência.

Desp. — Nunca cuidei tanto de um soldado; mas io parece que fala um anjo em vós, pera que neste

reino se saibam cousas tão novas a nós, das quais eu farei ua grande relação a el-rei pera mandar prover nisso; mas tornemos a vós, porque desejo de vos despachar a vosso gôsto: dai-me de palavra

15 relação de vossos serviços, pera estar informado de vós quando tratar do vosso despacho.

Sold. — Fui duas vezes ao estreito de Meca es- perar as naus sem cartazes, em galeões; outra em fus- tas a espiar as galés; andei três anos contínuos na

20 guerra de Ceilão, e achei-me naquele grande cêrco * da Cota; andei dous anos no Malavar, aonde aju-

dei a tomar muitos parós, de que saí ferido alguas vezes; invernei todos os invernos em fortalezas fronteiras; afora outras miudezas, que aí vão por

*25 papéis, de maneira que gastei doze anos contínuos no serviço del-rei naquelas partes, depois que nesta

10, o anjo de vós em A. 18, cartazes: salvo-condutos que os portugueses da-

vam aos barcos para poderem navegar. 19, a esperar em B. az, da Cota em A. A Cota significa uma fortaleza

perto de Columbo, em Ceilão. Em B: Costa. 22, parós: paraus, barcos indianos.

167

Page 202: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

côrte em sua guarda-roupa servi cinco; e depois de me acrescentar três nas armadas do reino.

Fid. — Merecimentos tendes bastantes pera vos despacharem muito bem. Folguei de vos ouvir,

5 porque desejava de vos preguntar a rezão, por que já não vão ao Estreito armadas de galeões, como em nosso tempo?

Sold. — Isso pregunte-o Vossa Mercê ao senhor secretário que aí está, que deve saber se o defende

io el-rei e a causa por quê; que o que eu poderei dizer será o grande serviço que era dos reis de Portugal e proveito do Estado da índia, irem todos os anos armadas àquele Estreito; pera o que peço a Vossas Mercês que me queiram ouvir um pouco.

CENA IV

15 Sold. — Antes que tivéssemos na índia for- talezas, e ainda nas primeiras armadas que os reis de Portugal mandaram, traziam seus capitães-mó- res por regimento que dessem ua vista ao estreito de Meca, assi pera saber o Soldão de Babilónia

20 que lhe podiam nossas armadas impedir aquele" comércio e romagem da nefanda casa de Meca (que em tudo tinham os nossos reis o primeiro intento sempre na honra de Deus Nosso Senhor), como pera fazerem presas nas naus dos mouros, que êles

25 tratavam de mandar extinguir da India, pera com mais facilidade mandar prantar por ela a lei do

6, Estreito: Estreito de Meca. 26, prantar: plantar, espalhar.

168

Page 203: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

Santo Evangelho; e pera isso mandou depois arma- das deputadas pera andarem naqueles estreitos, de que em ua delas veo por capitão-mór o grande Afonso d'Albuquerque, que começou a fazer guerra

5 a ambos aqueles estreitos, e ao reino de Ormuz mais de três anos contínuos, sustentando sua armada tôda das presas que fazia nas naus dos mouros.

E depois que el-rei D. Manuel tratou de mandar io fazer assento na Índia, que tomaram os nossos pé

nela, e começaram a fundar fortalezas, não tinha o viso-rei, que a isso veo, mais rendimento que as presas do estreito de Meca, aonde todos os anos iam nosso galeões. E depois el-rei D. João, de glo-

X5 riosa memória mandou a seus governadores que continuassem esta guarda do estreito do Mar Roxo, tanto em vitupério e afronta da lei de Mafamede, quanto pera proveito e rendimento do Estado da Índia, que sempre (té que se perdeu êste bom cos- tume) sustentou suas armadas destas presas, por- que a Índia não tinha outro rendimento.

E assi além disto outros muitos proveitos, que eram haver sempre no Estado galeões pera isso, andarem os soldados contentes e fartos com as pre-

25 sas que de lá traziam, recearem-se as galés dos tur- cos de saírem fóra do Estreito; e assi algQas vezes que o fizeram, armadas nossas as tomaram logo; o comércio do grande reino da Etiópia, e de todo aquele reino cristão correr tão liberalmente, que

30 todos os anos iam navios nossos a seus portos, e levavam bispos, patriarcas e religiosos para os dou- trinarem, o que depois veo a se impedir de todo por falta destas armadas.

Os reis vizinhos andavam assombrados com a

ióç

Page 204: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

potência dos nossos galeões e caravejas; e tudo isto tão a ponto, que nunca armada castelhana passou às partes de Maluco, quando o emperador Carlos V contendia com os nossos reis sôbre o senhorio da-

5 quelas ilhas, que não acudissem lá nossas armadas e os não trouxessem à cidade de Gôa por fôrça. As fortalezas de Ormuz, Malaca, Dio, Baçaim e outras não se conquistaram senão com os nossos galeões; de maneira que podíamos dizer que em

io cada galeão tínhamos ua fortaleza no mar, com que se assombrava o mundo todo. E em tempo de Francisco Barreto, sendo governador da índia, se queimaram de ua vez catorze galeões; e dentro em um ano fez outros de novo, que eu com mais

15 olhos vi entregar ao viso-rei D. Constantino, provi- dos de todo o necessário.

Pois tudo isto se fazia com as ajudas das presas do estreito de Meca; porque o Estado não rendia mais que seiscentos mil xerafins; e hoje, que rende

20 um milhão e quatrocentos mil cruzados, não há nada disto nem há armada pera os estreitos, nem um galeão pera ua necessidade, se a houver, por- que as nossas fustazinhas não são mais que pêra dous cossairos da costa; e se naquele Estado hou-

25 ver um apêrto, não temos a que nos apegar senão aos cabelos.

Desp. — Jesu me valha! Donde vem isso? Que eu vejo as cartas que os viso-reis escrevem a Sua Alteza, e nas certidões que de lá trazem, que dei-

i, 'cravelas em A. 14-15. eu com mais olhos: eu e mais outros. Em B:

eu com os meus olhos.

170

Page 205: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

xam no Estado tantos galeões, galés, fustas, e tan- tas pipas de pólvora, e tantos outros provimentos, que cuida el-rei que tem a índia segura pera mui- tos anos.

5 Sold. — Depois que os viso-reis trataram mais . de si que do serviço de Deus e del-rei, logo começa- ram a usar dêsses ardis pera se acreditarem; porque (■que rezão hão êles de dar a se descuidarem das ar- madas e a não fazerem galeões? Vossas Mercês se

10 desenganem: o Império Romão não se começou a perder (como já disse) senão depois que se come- çaram a vender os magistrados; e assi eu dou a índia por acabada, porque hoje não se dá nela nada por merecimentos, senão por dinheiro.

15 E sabeis, senhores, quanto?—que até as capita- nias da galés, fustas e estâncias, se dão com prêço apreçado; e a mim me contaram que um fidalgo muito moço, que não tinha idade pera ser capitão de Ga fusta, lhe deram Ga galé pera o Malavar por

^2^ um serviço de mãos e saleiro de prata de bestiães; e assi me disse um homem bem baixo da costa, que tinha um irmão em um ofício muito vil, o qual andava no serviço, que aquele verão havia de ir por capitão de um navio ao Malavar; e pregun-

25 tando-lhe eu quem lho havia de dar, respondeu- -me que largaria a um privado do viso-rei as ordi- nárias, que são duzentos pardaus.

Ora vejam Vossas Mercês a que miserável estado chegou a índia! Por onde, senhor secretário, vos

20, bestiães: lavrados a representarem animais e ou- tras figuras.

21, costa. Duvidoso em A; talvez seja casta.

171

Page 206: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

requeiro da parte de Deus e del-rei, que lhe signi- fiqueis isto e que mande ter tento neste negócio, por que se vai acabando, e que se saiba a quem se dão os cargos, como já disse; porque nem todos

ç os que servem el-rei lhe deve êle satisfação, e não é rezão que se dê a um mecânico, ou filho dêle, o cargo que me hão de dar a mim, que sou um ca- valheiro muito honrado, de trezentos anos para cá, que sempre serviram com a lança na mão aos reis.

io Desp. — Isso que dissestes é muito santo; e certo que estou pasmado de ver em quantas cousas o diabo engana êsses homens!

Sold. — Pois que cuida Vossa Mercê? O diabo é menino, tem mil modos de enganar os homens;

15 e, o que é pior, que todos sabemos que nos engana, e deixamo-nos ir após aquela golodice, que nos re- presenta com esta negra cobiça; e certo que estive já cuidando que cobiça deve de ser nome do mais feo demónio que há no inferno, e do mais nécio;

20 inda que digo mal: que nécios são os que êle enga- na com cousa tão vil e prejudicial à alma.

De ua cousa estou pasmado, que é ver viso-reis muito embaraçados com a fazenda do rei e dos „ vassalos, e tomar os cargos a uns pera os dar a

25 outros; e não vi té hoje ua restituição, e embara- çarem-se tão leves na conciência, que pasmo; mas também aqui entra a astúcia do demónio, cobiça, que lhe faz muito fácil tomar a fortaleza a um pera a dar a outro com a fazenda, e com tôdas as mais

30 cousas, como se aquilo fôra um nonada.

2, neste negócio, porque nem todos em B. 9, serviram. Refere-se elipticamente aos antepas-

sados. Em B: servi.

172

Page 207: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

Ora emfim, senhores, resumo-me: que, se não crêra tão firmemente na fé de Cristo e nos manda- mentos da sua lei, que pudera embaraçar-me com o que vejo fazer a homens, que professam o nome

5 de cristãos com tanta facilidade, como se fizeram um grande serviço a Deus. Ele está nos céus, e não dorme; medo hei que venhamos todos a pagar, e que os que andarmos naquele Estado vejamos ainda a água pola barba, sem nos podermos valer;

io e já vou titubiando de paixão, e não atino com o que digo; por isso dêm-me Vossas Mercês licença, porque me quero recolher.

Desp. — Tornai-vos a sentar, que quero sa- ber de vós outas cousas, e a primeira é: as partes

ij que há de ter o viso-rei, que Sua Alteza quer agora eleger pera a índia êste ano, e que cousas lhe são necessárias pera lá.

Sold. — Já que Vossa Mercê quer ensacar-me, não posso eu fugir a isso, mas é necessário ser um

fo pouco comprido; e se fôr enfadonho, ponham Vos- sas Mercês a culpa a si, ou me mandem alevantar a qualquer hora que os enfadar.

Desp. — Isso me não fareis vós nunca polo gôsto e poveito que tenho de vos ouvir: por isso

25 tratai essa matéria quão de vagar quiserdes; por- que me releva estar nela resoluto, para quando se tratar desta eleição.

Sold. — Já hei de obedecer a tudo, e Vossas Mercês me estejam um pouco atentos, porque eu

50 trabalharei por abreviar.

18, ensacar-me: esgotar-me, despojar-me de tudo quanto sei. É, como nota Morais, uma expressão predi- lecta de Couto. Em B erróneamente: incitar-me.

173

Page 208: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

O viso-rei que se há de eleger pera o Estado da Índia, quanto à eleição, há de ser a que fazem os reis da China para as suas províncias, nas quais tem êste costume: Nunca elegem viso-rei ou gover-

5 nador pera ua província, senão aquela pessoa, que, naquela pera onde é eleito não tem nenhum paren- te em nenhum grau, para assi mais desimpedida- mente administrarem justiça; porque as mais das desordens que os viso-reis da Índia tem cometido,

io foram por causa de seus parentes, assi por darem a alguns dêles as armadas que não merecem, como por tomarem as fortalezas a outros pera lhas dar a êles.

Tem mais: viso-rei ou governador, que o rei da 15 China elege para qualquer das províncias, chega

a ela só sem nenhua majestade; e tanto que apre- senta sua patente, assi é servido e venerado de todos, como o mesmo rei, e os chins o servem de tudo abundantemente; e quando o mandam tirar,

20 assi se torna a sair só, como qualquer particular; e primeiro tiram devassa da sua vida: se fez injus- tiça e se ficou devendo algua cousa, é logo provido com a derradeira pena — o que não há nos nossos viso-reis, que, tanto que são eleitos, logo se lhe

23 ajunta um exército de parentes e criados, que nem três Estados da Índia bastam pera êles; e todos são acomodados por fas e por nefas; e os anos que go- vernam fazem as cousas que tenho relatadas em tôda esta prática.

30 E quando se tornam pera êste reino, tôdas as

22, provido. Maneira irónica de dizer. EmB: punido. 27. Por las e Por neías: a tôrto e a direito.

171

Page 209: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

naus da carreira não bastam pera lhe recolherem suàs fazendas e dos criados e parentes; e das injus- tiças e insultos que cometeram e dívidas que dei- taram, não houve quem lhe preguntasse por isso;

5 e ua das móres tiranias, que êstes homens usam em seu govêrno, é que a nenhum dêles fica el-rei de- vendo nada em seu título, porque todos se pagam d'ante-mão; e a viuva pobre e o homem aleijado e a órfã desemparada ficam por pagar de suas ten-

ro ças de quási todo o seu tempo. E se aí houve al- gum que levou certidão, que lhe ficou el-rei de- vendo dinheiro por outras partes que quis deixar o título em aberto pera alegar depois que se não pagou, e êle repagou-se.

15 Tem mais: que assi como na provisão dos rei- nos, quando se deferem por eleição dos homens, se tem mais respeito ao bem dos povos, ò qual só- mente se instituíram, que não ao proveito dos mes- mos reis, como bem notaram muitos doutores, assi nem mais nem menos o viso-rei que se há de ele- ger há de ser homem, que claramente se saiba dêle que terá na sua eleição mais respeito ao serviço de seu rei e bem daqueles Estados que a seu parti-

, cular; e tôda a eleição fora daqui e solicitada ou 25 inculcada por respeitos, é total destruição daquele

Estado. Ora eis aqui quanto à parte da eleição; e quanto às partes que o eleito há de ter, são aque- las três, que o grão capitão Gonçalo .Fernandes de Córdova dizia que havia de ter o bom capitão, que

30 são: ser clejnente, ter mão larga e bôca prudente.

28-29. Gonçalo Fernandes de Córdova, grande general espanhol dos fins do século XV. Distinguiu-se nas guer- ras da Itália, contra os franceses.

'75

Page 210: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

E destas três tratarei pola primeira, que é ser o capitão clemente, a qual virtude se lhe pôs pri- meiro, como mais necessária que tôdas. Enéas mui- tas virtudes teve pera se lhe poderem louvar, mas

5 de nenhua fez Virgílio caso, nem engrandece senão a clemência e piedade, porque nesta se encerram tôdas as mais virtudes, a qual traz a si até os pró- prios imigos, como lhe aconteceu com Aqueméni- des, capitão grego e companheiro de Ulisses, que

io em Sicília estava perdido e embranhado, polo não matar o gigante Polifemo, como fez a seus compa- nheiros; e aportando ali Eneas com sua galé, sa- bendo-o o afligido Aqueménides, fez consigo êste discurso: — «Se fico nêste mato, morrerei de fo-

15 me; se apareço, matar-me-á Polifemo; se vou pera Enéas, pola ventura se quererá vingar de mim do mal que eu e todos os gregos fizemos a Tróia. Que farei? Todavia generoso deve de ser o filho de Vé- nus e Anquises; nenhum tão grande capitão deve

20 de querer acanhar o acanhado nem afligir o afligi- do.» E, determinando-se, saiu do mato; e pre- sentando-se a Enéas, lhe deu conta de seus infor- túnios, o qual o recebeu e tratou humanamente,, trazendo-o sempre por companheiro; e por estas

25 e por outras obras como estas alcançou o nome de Piadoso.

E, polo contrário, quando os escritores querem vituperar el-rei Cina, lhe chamam cruel; e assi sua crueldade foi causa de morrer a mãos de seus solda-

9, Ulixes em A. 10, embranhado: escondido no mato. 28. Cina não foi rei, mas apenas cônsul.

IJÓ

Page 211: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

dos. O emperador Antonino Pio jcom que ganhou tamanho e tão heróico sobrenome, senão por esta parte de capitão tão louvada em todos? E nenhua outra cousa fez o grande César subir à monarquia

5 do mundo, senão tanto que chorou sôbre a cabeça de Pompeo, sendo o mór imigo que tinha; e esta foi a causa, por que em Roma coroaram o grande Fábio com corôa de grama do prado, a qual se concedia aos capitães clementíssimos, e que depois

10 das guerras acabadas traziam os seus soldados a salvamento e satisfeitos.

O grande capitão Milcíades não foi tão famoso no mundo senão por sua clemência e afabilidade, a qual foi tanta, que se escreve dêle que não havia

13 homem, por baixo que fôsse, que o não ouvisse tão de vagar e humanamente, como se fôra um dos grandes do reino; porque esta é a principal cousa,

v que faz a um povo honrar muito ao seu príncipe. El-rei Filipo de Macedónia era tão dotado desta

2§ grandeza, que refusava tomar Qa cidade por fôrça d armas, se entendia que se podiam arriscar seus soldados; e isto mesmo é o que fez a Cipião tão ilustre, que muitas vezes dizia que mais queria con-

• servar um soldado que destruir mil imigos. 25 iQue matéria esta pera os capitães da India, que

assi^aventuram os seus em cousas de muito pouca importância, como se foram ovelhas, e assi se re- colhem contentes, deixando trezentos e quatrocen- tos portugueses degolados, como se alcançaram Qa

30 grande vitória! E o que mais me escandaliza é que nas certidões que passam aos soldados da jornada

5, em tanto que em A.

12 *77

Page 212: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

em que se acharam, todas são cheas de gabos seus, e que destruíram e queimaram, sem declararem os soldados que perderam; e se lho estranhais, res- pondem-vos: que morreram patifões, não lhes lem-

5 brando que êsses são os com que a Índia se conquis- tou, e os com que êles ganharam suas fortalezas; e nestas jornadas assi arriscadas, de maravilha se matam fidalgos, como já em outra parte disse.

E tornando a nosso fio: Pompeo dignamente io merecedor de sobrenome de Magno, por sua cle-

mência chegou a triunfar quando veo da África, sem haver sido senador; e porque Sila, que pri- meiro que todos lhe chamou Magno, foi o que o quis estorvar, virando-se Pompeo a êle, lhe disse: —

15 Não sabes, Sila, que muitos mais adoram o Sol ao nascer que ao pôr? — querendo dizer que em tanto se há de ter o homem que começa a crecer em virtudes, como o que vai acabando. E visto por Sila sua brandura e clemência, começou a gri-

20 tar: Triumphet! Triumphet! Mas Sérvio, senador, o não quis conferir, sem primeiro lhe não dar al- gíias peitas; ao que respondeu Pompeo que tal não faria, porque honras compradas ficavam sendo vitupério.

25 Oh! como me cai aqui a propósito o como isto está já recebido neste reino e no Estado da Índia, e a quão poucos capitães lhe lembra isto de Pom- peo? Porque hoje mais tratam de honras compra- das que ganhadas; e mais tratam de fortalezas tres-

4, patifões: gente de ínfima categoria, vàdios. 20. Exclamação latina, pela qual Sila significava

que se lhe fizessem as honras do triunfo, conferido aos grandes vencedores.

178

Page 213: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

ò SOLDADO PRÁTICO

passadas que merecidas! E não sei inda se diga o mesmo das governanças. Mas sabem Vossas Mer- ces de que isto vem? Do barato que se fez dos des- pachos da índia, de que já atrás tratei; o que não

5 aconteceu a Pompeo, que antes se quis arriscar a não triunfar que a dizerem que o comprava

O cônsul Marco Fábio, côncedendo-lhe o Senado triunfo maior pola vitória que alcançou contra os veios e etruscos, o enjeitou; porque na batalha fo-

ro ram mortos os cônsules Mânlio e Quíncio Fábio, seus companheiros; porque não havia por merecedora de honras a vitória, que tanto sangue dos seus lhe custara. Não _é bem que passe pola facilidade com que os capitães da índia entram em Gôa triun-

15 fando, esbombardeando, cheos de plumas e pontas de ouro, deixando muitos companheiros descabe- çados polas praias de Calecut e por outras partes,

* .que é ua cousa muito escandalosa, e que se havia de prover.

^ Mas, tornando a nosso fio da clemência dos capi- tães, por esta parte ser mais necessária que todas *- Quando Plutarco, na Vida de Rómulo, põe aquelas três virtudes, com que os reinos e impérios se acre- centam, que são clemência, moderação e verdade,

25 põe a clemência primeiro, como mais necessária! E esta foi a causa, por que Marco Marcelo edificou o templo da Virtude diante do da Honra, por mos- trar que - não se pode passar ao da Honra senão polo caminho da Virtude, pola qual se entende a

3, do barato: da pouca importância. 10. Quíncio Fábio era, não cônsul, mas apenas

irmão de Marco Fábio, como faz notar A. Caetano do Amaral numa nota de B.

m

Page 214: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

clemência, a qual, tendo-a um capitão perfeita e em grau consumado, terá todas as mais; porque as virtudes em graus remissos se acham uas sem outras; mas em graus consumados, como disse,

5 estão uas com as outras travadas de feição, que não pode um ter justiça, sem logo estarem com êle a temperança, fortaleza e prudência. E o mesmo é nas virtudes teologais, que não pode um ter fé em grau perfeito, que não tenha também a esperança

io e caridade. A esta virtude da clemência, de que vou tratan-

do, chamavam os gregos philanthropia, que quer di- zer afabilidade humana; e assi os mesmos, quando queriam engrandecer os seus deuses e seus reis, lhes

15 chamavam meilichioi, que é tanto como chamar -lhes mansos e amorosos, o que nos reis há de res- plandecer muito; porque os homens querem ser levados por amor em todas as cousas; e por ser esta virtude muito necessária, mandava Deus que

20 os reis fôssem ungidos com óleo, polo qual signifi- cava a brandura e humanidade: porque assi como o óleo tem virtude de abrandar, assi queria que os_ reis fôssem brandos pera seus súbditos. E desta parte tenho dito o que baste.

25 Desp. — Dissestes tudo quanto um muito douto podia dizer; mas não canseis, ide com a matéria por diante, porque é de muita doutrina.

CENA V

Sold. — A segunda parte que o capitão há de ter, é mão larga, a qual é tão necessária ao capi-

50 tão, que antes haveria por menos mal faltarem-lhe todas as mais partes; porque o capitão que com

180

Page 215: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

mão fechada quer conquistar províncias, é ir bus- car pela ribeira acima o que lhe caiu no pego. E se os juristas põem por obrigação às partes, que querem correr com suas demandas, que hão de ter bôca

5 fechada e bôlsa aberta e peis de ferro, quanto mais necessária será esta virtude ao capitão, que há de conquistar províncias, que não às partes, que o não hão de fazer mais que a três ou quatro pes- soas, a saber-' juiz, escrivão, procurador, inqueridor

io e solicitador. Nunca até o dia de hoje lemos que o capitão

com mão fechada vencesse imigos; e cada dia ve- mos o capitão liberal render gravíssimas fortale- zas, e sojugar indomésticas e bárbaras nações. Li-

15 beralidade não é outra cousa que usar moderada- mente das riquezas, como se disséssemos que delas não se havia de dar tão pouco que fique em escas- seza, nem também dar tanto que venha a ser pró- digo; mas é um meo entre um e outro, e que corn-

aio põe êstes dous extremos, e o que ensina o quanto e quando e a quem se há de dar; e, pelo contrairo> a avareza é um apetito desordenado, ua cobiça in- saciável, e ua infirmidade que abrange a tôdas as partes do corpo; e crecendo cada dia mais e

25 mais, faz o homem afeminado, de maneira que, segundo os platónicos, para serem ricos é necessário cortar os apetitos que tem os avaros, e não con- sentir que se acumulem tesouros e riquezas para se guardarem.

3° Muitos reis vemos perder os reinos por avaros, e não consentirem largueza, e outros ganharem os

26, ser ricos em A.

l8l

Page 216: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

alheos por liberais. El-rei Aqueo de Lídia foi tão avaro com seus soldados que, de o não poderem sofrer, o mataram e lançaram no rio Pactolo, por- que diziam criar areas d'ouro, para que ali matasse

5 sua sêde. Cresso isso mesmo foi causa de sua morte, porque sua avareza o levou a morrer a mãos de partos. Lépido, um dos triúnviros, estando ápo- derado de Sicília, depois que desbaratou Plínio, capitão de Sexto Pompeo, ^que é o que o fez durar

io tão pouco em seu principado senão a tacanheza? Porque, indo Octaviano com exército sôbre êle, se lhe passaram todos os soldados de. Lépido a êle, fugindo de sua avareza; e assi se lhe entregou, e êle o mandou a Roma sem cargo nem ofício senão

X5 o de Pontífice Máximo, que tinha adquirido". Emquanto esta infernal peste da avareza não

entrou em Roma, foi sempre senhora do mundo; mas depois de Cómodo Antonino, sucessor no Im- pério, que começou a vender os magistrados, e que

20 entregou o coração todo nas mãos da avareza, logo começou a descair de sua grandeza. Como também aconteceu ao Estado da India, que, emquanto foi governado por viso-reis e governadores puros, te-" mentes às leis de Deus e do rei, amigos e cobiçosos

25 de honra, teve sempre os imigos debaixo dos peis e se sustentou de presas grossas, que faziam nossas armadas; mas depois que esta infernal peste entrou nêles, logo começou a descair de todo, e os imigos a nos perderem o respeito e a se sustentarem de

30 presas que hoje fazem em nós.

5, isso mesmo: igualmente, também. Em B erró- neamente: Em Cresso isso mesmo.

182

Page 217: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

E por não gastarmos o tempo em contar de ava- rentos, aos quais deixaremos com suas misérias, tornemos aos capitães liberais, que, por o serem, foram famosos no mundo. Lêmos do grande Baco

5 que foi o primeiro que começou mostrar sua libe- ralidade com os soldados, o qual, além de lhe pa- gar o seu ordinário, lhe fazia mercês de dinheiro, corôas, armas, estátuas e trofeos, e outras cousas semelhantes, com que os trazia tão contentes, que

io os intratáveis montes do Oriente, povoados de feras bravas e gentes indomésticas e feroces, atraves- savam com muito gôsto, e com êle o fizeram se- nhor da India, que foi o primeiro estrangeiro que por armas a conquistou.

15 Nenhua outra cousa fez ao grande Alexandre ser tão grande no mundo senão sua liberalidade, enjei- tando trinta mil talentos d'ouro e muitos Estados, que seu imigo Dario lhe ofereceu em dote com sua filha, segundo conta Cúrcio; o que sèndo estranhado

•o de seu amigo Parmenião, lhe respondeu: — Se eu fôra tu, aceitara isso; mas sou Alexandre, mais cobi-» çoso de honra que de dinheiro; e lembrou-me que eu era rei e não mercador.

Aqui me pudera deter em vituperar alguns viso- 25 -reis e governadores da India, que deixaram de

5, começou mostrar. Note-se o não emprêgo da preposição a, que o texto de B aliás restaura, deturpando a linguagem.

19. Cúrcio Rufo foi o historiador romano que con- tou os feitos de Alexandra Magno.

20. Parménion, general macedónio de Filipe e de Alexandre. Em A: Parmaniado.

I83

Page 218: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

ser capitães e se fizeram mercadores, largando por mão as obrigações de seu cargo, e descuidando-se das armadas e de tudo o mais, por fartarem seu apetito, e mercadejando com o dinheiro del-rei,

5 polo que deixam de fazer armadas importantes; e quando as fazem, são fora do tempo, como já disse, por terem em si o dinheiro. Por ua cousa não quero passar, muito pera se significar a el-rei e com que cada dia o enganam; e é que, como êles tem

io dinheiro em si por êste modo, fingem muitas vezes necessidades no Estado; então fazem que tiram di- nheiro do seu cofre e o emprestam aos oficiais pera as armadas, e tiram certidões que emprestaram a el-rei tantos mil pardaus, não entendendo êle esta

15 falsidade, e que nenhum vem de Portugal que traga cousa que possa emprestar. Ó senhor, dizei estas verdades a el-rei, pera que saiba o que passa e cas- tigue quem o engana; porque tão mau é o engana- rem-no a êle, como enganar-se êle.

20 E deixando isto, tomemos à nossa ordem da li- beralidade dos capitães. O grande Pompeo com esta virtude sojugou todo Ponto, Arménia, Síria, Cilicia, a grã Mesopotâmia, Fenícia, Palestina, Ju-~ dea, as Arábias, e muitas outras nações; trinta e

23 nove cidades, que deixou com presídios romãos, afora novecentas outras, que deixou sem êles, mil castelos e novecentas naus, que tomou a diferentes piratas; e isto segundo conta Plutarco; e diz que da terceira vez que triunfou da Ásia, sujeitou isto ; e

1-2, largando da mão em B. 26, afora novecentas naus que tomou a diferentes

piratas e novecentas cidades que deixou sem presidio ro- mano e mil castelos em B.

184,

Page 219: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

que os trebutos que deixou postos a estas provín- cias montaram cinco centos de dous centos de milhões, e que trouxe pera o tesouro púbrico vasos d'ouro e prata, que pesavam vinte mil talentos, aíora o

5 que repartiu com os soldados; e que o que menos houve foram mil e quinhentas dragmas; de maneira que, pola conta de Apiano, os trebutos que acre- centou somavam oito milhões e meo d'ouro, e o que meteu no tesouro doze milhões, afora o que repar-

10 tiu com seus soldados, que eram vinte mil infantes e quatro mil cavalos, que parece que não bastavam pera conquistar tantas províncias; mas o com que mais as venceu foi com sua liberalidade; porque o bom tratamento que fazia a todos e o muito que

J5 lhe dava, dobrava as forças e pelejava cada um por dous e três dos imigos.

Diz mais Apiano que levou Pompeo no seu exér- cito vinte cinco legados, não levando nenhum dos outros capitães mais que dez; mas a liberalidade

20 de Pompeo fazia desejarem todos de o seguir. Pera estas legações não costumava o Senado nomear pa* rente nenhum do capitão-mór, como diz Túlio em ua Epístola a Ático, por evitarem muitos excessos, e por não darem aos parentes aquilo que dereita-

2j mente era dos soldados; e esta foi a rezão, por que

2, cincoenta mil homens em B. Em A: cincoenta des sintinaias de milhões, que possivelmente estará estro- piado. Plutarco diz que os tributos pagos a Roma se ele- vavam a 200 milhões de sestércios, e com os triunfos de Pompeu se elevaram a 300.400.000 sestércios.

6, dragmas em A: dracmas, moeda grega. 7. Apiano, historiador romano do tempo de Tra-

jano e de Antonino Pio. 10, vinte mil eltjantes em A. Erro evidente.

1S5

Page 220: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Cleon, quando entrou no govêrno de sua república, se despediu dos parentes e amigos, como homem que morria, porque entendia que se não podia con- servar um reino com os parentes andarem de por-

5 meo; e assi é na verdade, porque não há mór des- truição pera ua república, que haver nela excep- ção de pessoas, e ter-se respeito a carne e a san- gue.

Aqui quisera tocar outra tecla dos parentes e io criados dos governadores e viso-reis da Índia, que

são os que a comem e destruem; mas se me outra vez cair a lanço, direi o que sôbre isso entendo. Ca só cousa posso afirmar: que emquanto nela houver governadores entregues a parentes, irá descaindo

15 e declinando, como o fez o Império Romão, depois que se quebrou aquela ordem de não admitirem nas legações parentes dos cônsules, como já disse.

E, tornando a Pompeo (que por curiosidade se pode ouvir isto), os legados de que falávamos ti-

20 nham segunda autoridade após os cônsules. Vegé- cio no 2.0 De re militari escreve que Pompeo repar- tira a cada soldado de pé mil e quinhentas dragmas, _ e a cada um de cavalo três mil talentos, e aos centu- riões dobrado, e aos legados mil talentos, e aos pre-

25 feitos, que era a segunda dignidade após os legados, outro tanto; no que diz que despendeu quatrocen- tas e vinte mil livras de prata só nos soldados de pé , e cavalo; e há-se de saber que cada livra valia dez escudos, que fazem quatro milhões e oitocentos

30 mil escudos d'ouro; e neste conto não entra o que

1. Cléon foi o regente de república de Atenas de- pois da morte de Péricles.

186

Page 221: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

deu a centuriões, a soldados forasteiros, a embaixa- dores, a espias, e outras muitas despesas extraordi- nárias, que, calculando-se o que despendeu, segun- do Apiano, fazem nove milhões e seiscentos mil

j escudos; e tudo isto foi tirado daquela parte, que antigamente foi o reino dos lídios.

Trouxe todas estas miudezas, porque notei ua cousa muito contraíra à dos tempos de agora, a qual é, que nem Apiano nem Tito Lívio, que contam •

io estas grandezas e liberalidades de Pompeo, não fa- zem menção do que Pompeo tomou pera si; porque estava entendido que os capitães daquele tempo mais pretendiam honras que proveitos; mas os viso- -reis e governadores ao contrário: venham os pro-

jj veitos, as honras tenha-as quem quiser. Aqueles an- tigos capitães folgavam de enriquecer seus vassalos, mas os viso-reis de os empobrecer; e tanto, que até os trinta mil cruzados, que el-rei lhe dá pera repar- tir com êles, té êsses somem por mercês muita parte

lo fantásticas, e em homens que nunca naceram ao mundo. «

Conta Plutarco que Ptolomeo Filadelfo respon- dera a uns, que lhe tachavam fazer tão largas mer- cês, que êle não queria deixar de si fama de rico,

25 senão de fazer a muitos ricos. E assi costumava a dizer o grande Alexandre que aquele era bom rei ou capitão, que aos amigos conservava com dádivas e mercês, e aos imigos atraía a si com benefícios e boas obras. Dionísio Siracusano, segundo Plutarco

30 escreve, entrando em casa do príncipe seu filho,

19, com eles, metem eles em muitas partes fantás- ticas em B.

23, tachavam: censuravam.

187

Page 222: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

o achou fazendo resenha de muitas peças ricas d'ouro e pedraria, que lhe tinha dado; e com muita paixão lhe disse: — Por certo que melhor eras pera mercador que pera herdeiro de Sicília, pois tens

5 mais natureza de entesourar que de repartir e fazer mercês, o que te convém fazer, se queres depois de mim herdar êste reino; porque te afirmo que os grandes e altos Estados não se sustentam com guar- dar, senão com dar e repartir.

IO César jpor onde veo subir à monarquia romana, senão por sua liberalidade? A qual era tanta que acrecentava o ânimo aos seus e abatia no dos imigos; e assim por grandeza, quando fazia paga aos solda- dos, lhe mandava dar dinheiro aos punhados, dizen-

15 do que de outra maneira se enganaria na conta. Coitado de mim, se houver de dizer o que nesta

parte pecam os viso-reis da Índia, tão diferentes em tudo de César, que êle dava dinheiro òs punha- dos e os soldados da Índia não lhe podem arrancar

20 às punhadas das mãos cinco pardaus! E se Dioní- sio Siracusano vira o que vai naquele Estado, com mais rezão pudera chamar aos viso-reis mercadores que capitães; porque assim andam com canhenhos" nas aljibeiras de receitas e despesas, como os mer-

25 cadores com os seus livros de caixa. E tornando a César, que por curiosidade não

quero passar por suas cousas, pois Vossas Mercês me tem dado licença tão larga; conta dêle Apiano, no segundo Da Guerra Civil, que, depois que alcan-

jo çou o Império, a cada soldado deu cinco mil drag-

12, nos dos imigos em A. 24, aljabeiras em B.

188

Page 223: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

mas áticas, e a cada capitão de turma duas vezes dobrado (era ua turma esquadra de trinta de cavalo, segundo Varro e Vegécio), e aos tributos dos mi- lites o dôbro, e a cada um do povo ua mina ática.

5 E Suetónio Tranquilo, escritor antigo, nomea estas mercês que fez César por sestércios, e que distri- buíra quatrocentos por cada um, o qual número Apiano toma pola mina ática; e, por sua conta, cada soldado lhe coube cinco mil dragmas, e aos

10 cavaleiros dobrado; e Suetónio diz que despendera César por cada cavaleiro vinte quatro mil numos, que são seis mil dragmas; e que quando fizera estas despesas se acharam em Roma vinte mil homens.

E Hírcio no seu tratado Da Guerra Africana diz 15 que só de veteranos havia vinte mil, e que cada um

levara de mercê cinco mil dragmas, conformando nisto com Apiano, que montou o que êles levaram dez milhões d'ouro, e acrecenta mais centúrios, ca- valeiros, tribunos e os moradores de Roma e das

% cidades de Itália, com que fazia um número infi- nito. E falando Apiano do seu triunfo, que durou- quatro dias, afirma o dinheiro amoedado que ia no triunfo passava de sessenta e cinco mil talentos e duas mil e oitocentas corôas d'ouro, que pesavam

25 mais de vinte mil livras; e pola conta de Apiano,

3-4, milites: soldados a cavalo. 4, mina: moeda gTega, que valia cérca de 3 libras

e meia. 6, sestércio: pequena moeda de prata dos romanos.

11, numo: moeda romana antiga. Em A: numi, à maneira latina.

14, Hircio, amigo de Júlio César, é o presumido autor dêsse livro Da guerra africana.

l8ç

Page 224: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

os talentos que iam em dinheiro amoedado vinham fazer trinta e nove milhões d'ouro, e que cada dez mil livras faziam um milhão.

Trouxe estas particularidades pera mostrar a li- beralidade e grandeza, com que se conquistou o mundo, e como aqueles capitães venciam com mais mercês que com armas. Com nenhua outra cousa subiu Filipe, pai de Alexandre, a tanta grandeza se- não com mão aberta; e muitas vezes dizia que não havia fortaleza tão forte que se não conquistasse, se a ela pudesse subir um asno carregado d'ouro. Nícias com nenhua cousa alcançou o favor do povo pera vir a ser senhor de todos, senão com liberali- dade, que era ofício de capitão prudente; porque com o dar alcançou nome de príncipe liberal e o amor e vontade de seus cidadãos.

Dizia Marco Bíbulo por César, sendo ambos com- panheiros na edilidade (que era ofício de almota- céis), que tinha a César em conta de Cástor, e a êle de Pólux; porque assim como o templo, que estava edificado em honra dêstes dous, não tinha o nome senão de Cástor, que assi também todas as sumptuosidades e magnificências que ambos faziam," tôdas tinham o nome de obra de César, e nenhua de Bíbulo; porque isto tem as pessoas afáveis e libe- rais: ficar deles sempre eterna memória; e os aca- nhados e tacanhos esqueceram, como Bíbulo.

Temístocles, capitão dos atenienses, jpor onde veo a ser famoso, senão pela liberalidade, e o não

12, Nícias, general ateniense, chefe do partido aris- tocrático.

23, afaboUis em A.

IÇO

Page 225: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

querer nada pera si e o dar tudo aos soldados? — como lhe aconteceu ua vez que, andando na ribeira do mar, depois de ua batalha que ali teve com os bár- baros, em que os desbaratou: vendo muitos de seus

5 corpos mortos com braceletes e outras jóias d'ouro e pedraria mui ricas, sem fazer caso disso, disse a uns soldados: — Tomai, soldados, tudo, já que não sois Temístocles! Oh! quem vira alguns viso- -reis que eu conheci com outra presa como esta!

io jComo a havia de entesourar, requerer seus quintos, e fazer diligência sôbre algua cousa, se lhe faltasse, que até das entranhas dos soldados as haviam de arrancar! Mas êstes nada se pareciam com Temísto- cles.

15 Vêde, senhores, quanta fôrça tem a liberalidade: que, vindo Alexandre conquistando a Ásia, come- tendo a Hircânia e os povos Marcos, o veo buscar por sua fama Talestris, ou como lhe outros chamam Minotea, rainha das Amazonas, com trezentos mil homens de guerra, a qual caminhou vinte jornadas só por ver um capitão tão liberal, e de que tantas- cousas ouvia; a qual, segundo conta Justino, di- zem que foi prenha dêle, o que ela muito estimou

* por ter um filho de um tamanho capitão. O mesmo 25 caso aconteceu à rainha Sabá, que foi de tão longes

terras a ver a grandeza de Salamão, e lhe levou muito dões.

E concluindo com esta matéria dé liberalidade,

22. Justino, historiador latino do século II. autor das Histórias Filipicas, em que descreve os feitos dos reis da Macedónia.

25, longas em B. 27, dons em B.

IÇI

Page 226: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

direi só êste exemplo: Costumavam os antigos fa- mosos, quando se punham a comer, mandar tanger muitas trombetas, pera que acudissem os pobres a receber sua ração; porque no repartir com êles

5 mostravam sua grandeza. Isto, senhores, na índia está acabado, porque os capitães da guerra muda- ram estilo: comem fechados e em silêncio, por não terem rezão de repartir com os soldados pobres; e aquilo que na primitiva índia tinham por honra e

io grandeza, que era agasalhá-los e sustentá-los, tem agora por infâmia; que a êste estado são chegadas as cousas! Por onde eu receo que a índia não seja de dura.

Fid. — Dizeis verdade, e inda mal porque isso é 15 assim e porque o eu também receo.

Desp. — jQuão mal se parecem os capitães e vi- so-reis com êstes que contastes! Não sei que conta fazem, e em que pretendem nome.

Sold. — Em ter e guardar. E não sei se passou 20 esta peste dêste reino àquele Estado, porque todos

chegam a êle com esta linguagem de quanto tens, tanto vales. Eu estou cansado: houveram-me Vos- sas Mercês de dar licença...

Desp. — Já nos haveis de fazer mercê de acabar- 25 des vosso discurso e de concluir com a terceira

parte, que vos ficou por dizer. Sold. — Ora emfim já me hei de sacrificar, pois

mo mandaram; e estejam um pouco atentos.

28, atento em A.

IÇ2

Page 227: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

CENA VI

Sold. — A terceira cousa, que há de ter o bom capitão, é bôca prudente, que é a verdade de Plu- tarco. Oh! que cousa tão fermosa, que é, na bôca do viso-rei ou capitão, a verdade e palavras bran-

5 das e prudentes! Porque estas, depois que saem pela bôca fora, não se podem tornar a recolher; e por isso dizia aquele filósofo que muitas vezes se arre- pendera de falar, e de calar nunca; e tais são as boas palavras como a mesma liberalidade: porque

io de tal maneira pode um capitão dar, que lhe não seja agradecido, e de feição pode negar, que lhe fique fia pessoa devendo e agradecendo tanto, como se lhe dera. As palavras são testemunhas do coração: coração alterado e inquieto e tacanho nem

IS sabe dar, nem sabe falar. Natural é ao soldado na guerra esperar pelo lou-

q vor e pelas mercês do seu capitão; polo que se ar- risca aos móres perigos, e trabalha pera nêles ser visto dêles, quando entende que lhe não faltam obras

20 e palavras; porque o dar é própio de capitão, por- t que sabe que fica nisso ganhando mais que o que

recebe; porque adquiriu o que pretende, que é fama e glória; e o soldado recebe o que se lhe deve, e não fica devendo nada. De maneira que a boa palavra

23 no capitão é um tesouro tão precioso, que todo o ouro do mundo fica muito atrás; nem há tambor, nem trombeta, que mais incite os ânimos dos solda- dos que a palavra prudente do seu capitão: esta é muitas vezes a escada, com que se sobem soberbos

50 muros; as armas com que se escalam fortalezas mui grandes; as bombardas com que se desfazem pode- rosos exércitos, e a que mina mui inexpugnáveis ba-

193 13

Page 228: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

luartes e a que desfaz fortes malhas e coletes; a que faz todo o perigo fácil, tôda a carga leve, o não comer fartura, o não dormir repouso; esta é a que faz o fraco forte, e o forte mais ousado, os montes

5 plainos e chãos, a noite escura alegre, o dia triste gracioso, e, sôbre tudo, a morte fea fremosa; e assi tão necessária é na guerra a bôca prudente do capi- tão, como as própias armas; porque os imigos ven- cem-se com elas, e os vencedores animam-se com as

io palavras. Em nenhua cousa mais se mostra a prudência do

capitão, que na bôca; porque menos é na guerra bôlsa fechada, que bôca desmandada. Nos provér- bios lêmos que a discreta palavra abranda tôda a

15 ira; e assi como a Escritura diz que a água tíbia faz vomitar o que está no estâmago, assim faz a boa pa- lavra a respeito da ira. E daqui veo a dizer Plutarco que os cavalos se governavam com os freos e as iras e paixões com a boa palavra.

20 Dizia Diógenes que assim como o rosto do ho- mem vemos qual é num espelho, assi o interior da alma o conhecemos pelas palavras; e que assim como um vaso no tom se conhece se está quebrado ou são, assim também pelo som da palavra se conhece que

25 tal é o capitão.E por esta causa respondeu Sócrates a um que lhe preguntou pelo valor da pessoa de Arquelau, filho de Perdicas, «que nunca o ouvira falar», porque a palavra do homem é o verdadeiro toque, em que se prova sua prudência: na bôca do

30 homem está o mal e o bem; tenha quantas bonda -

20. Theogid.es em A. Talvez êrro por Theognis, poeta grego do século VI antes de Cristo.

Page 229: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

des quiser, não tenha bôca prudente, tudo se lhe escurece e desdoura.

Piteas, grão-duque que foi dos atenienses, segun- do Plutarco, foi príncipe honrado, temido e muito

5 esforçado capitão; mas todas estas grandezas borrou com suas indiscretas palavras; porque aos capitães mais se olha pelo que dizem que pelo que fazem. De maravilha o capitão na guerra peleja, nem arrisca sua pessoa; e com tudo a êle se atribuem a honra e a

o glória da vitória; porque inda que os soldados pele- jaram com as armas e com as mãos, êle o fez com a boa e prudente palavra e govêrno; porque ao exér- cito, sem o que o governa ter bôca prudente, po- demos-lhe chamar exército sem capitão, como Cé-

5 sar chamou ao exército de Petreio e Afrânio, que estavam em Espanha por Pompeo, o qual, segundo escreve Suetónio Tranquilo, depois que se apoderou da monarquia romana, que Pompeo se foi para Du-

0 raço, tendo César determinado de o ir buscar, dei- o xou de o fazer por causa da invernada, polo que se

determinou passar a Espanha, e disse aos seus: — Vamos primeiro cometer o exército sem capitão, e

. depois iremos buscar o capitão sem exército. E isto disse, porque os capitães de Pompeo, Afrânio e Pe-

5 treio, não eram prudentes na bôca; e porque Pompeo tinha esta prudência sôbre os capitães de seu tempo, o qual havia por mais duvidoso de conquistar que os grandes exércitos de Espanha com homens indig- nos do nome de capitães.

o Os famosos escritores, assi gregos como latinos, não se esmeravam tanto em escrever os feitos que

7-8, De maravilha: raras vezes.

195

Page 230: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

os grandes capitães faziam, como no que diziam; porque entendiam que pelas palavras se conheciam as obras. De Dario se escreve que, estando um dia comendo, movendo-se práticas entre os seus sôbre

5 Alexandre, um capitão chamado Menon, que não era prudente na bôca, meteu muito cabedal em di- zer males de Alexandre, o que Dario não sofreu, e com ira lhe disse: — Cale-te, Menon, que não te trago comigo para que deshonres Alexandre com

io a língua, senão para que o venças com a espada. E por aqui se verá a diferença que havia da bôca prudente de Dario à do seu capitão, que nem do seu imigo consentia dizerem-lhe males.

Do mesmo Alexandre se lê que, ouvindo prague- íj jar dêle certos soldados, lhe dissera com a bôca

muito prudente; — De grandes capitães é, inda que ouçam mal, fazer bem. E lhe fez mercê. Cipião Africano, competindo com Cláudio sôbre a senhoria de Roma, Cláudio com bôca não muito prudente

20 alegava seus merecimentos, e entre êles dizia: — Ó padres conscritos e nobres senadores de Roma (e com isso nomeava todos por seus nomes), quem sabe tão bem o nome a todos — dizia êle — não é senão de amor; por onde não me podeis negar a se-

25 nhoria. Mas Cipião, com bôca muito prudente, disse aos senadores: — É verdade o que Cláudio diz, que sabe o nome a todos; mas eu sempre trabalhei por todos mo saberdes a mim. E com isso subiu à dignidade que esperava.

5-8, Minõ em A. 8, Cale-le: cala-te. Forma popular.

20, alega em A.

IÇÓ

Page 231: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Tibério César, dizendo-lhe alguns de má inclina- ção que em Roma havia alguns que praguejavam dêle, respondeu, muito prudente, que na cidade li- vre, livres haviam de ser as línguas. Muitas cousas

5 fizeram a César Carlos V famoso no mundo, mas eu hei que a principal foi bôca prudente; e tanto que nunca amigo nem vassalo saiu dêle descontente, nem imigo escandalizado; e em muitas cousas mos- trou suas palavras prudentes. Sôbre todas foi naque-

10 las altíssimas e cristianíssimas, que disse, quando venceu os protestantes de Alemanha, que se viu da outra parte do Albis: — Vim, vi, e Deus venceu — imitando ao primeiro César; mas um falou como gentio, e outro como cristão.

15 E concluindo esta matéria; o homem que se há de eleger para governar aquele Estado há de ter as três cousas já ditas: clemência, liberalidade e pru- dência, que são as três graças, a que os poetas cha-

q mam Aglaia, Eufrosina e Talia, pelas quais que- 20 riam significar a cousa alegre, graciosa e florida;

porque não há cousa mais alegre que a clemência, nem mais graciosa que a liberalidade, nem mais flo-

# rida que as palavras prudentes. E porque devem Vossas Mercês de estar enfadados, e isto é tempo,

25 dêm-me licença. E certo que não cuidei que me es- tendesse a tanto; mas o fervor me foi embebendo as horas.

Desp. — Foi-me êle furtando a mim, que tomara ouvir-vos té amenhã; porque me dissestes cousas,

30 que não esperava ouvir da bôca de um soldado; e sabeis dar tão boa rezão de tudo, que é necessário que amenhã nos vejamos; porque cumpre a serviço del-rei saber de vós as cousas em que é necessário mandar prover no Estado da índia para sua segu-

197

Page 232: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

rança, e qual é mais necessário conquistar: se pri- meiro Ceilão, ou Achém, porque há cá diferentes pareceres.

Sold. — Não sei se tenho talento pera tanto; 5 mas pois me Vossa Mercê disse que era serviço del-

-rei, farei, como lá dizem, das tripas coração, e tirarei forças da fraqueza. E esta noite passarei essas cousas pola memória, pera saber dar melhor rezão.

Fid. — Tendes-me encantado! Confesso-vos que io me embaraçastes com o que vos ouvi, porque tocas-

tes em matérias mui graves e de muita substância. Amenhã, querendo Deus, me tornarei para cá, por- que vos quero ouvir, para estar presente nessas ma- térias, quando se tratar delas em Conselho.

15 Sold. — Isso estimarei muito; porque como Vos- sa Mercê sabe tanto daquele Estado, ir-me-á alu- miando em algãas cousas; e por ora fique Deus com Vossas Mercês.

1-2, se primeiro Ceilão se o d'Achem porque defe- rentes pareceres em A.

iç8

Page 233: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

TERCEIRA PARTE

ARGUMENTO

Ao outro dia à tarde se foi o Soldado para casa do Secretário, como ficara com êle, e já o achou com o mesmo Fidalgo praticando sôbre as cousas, que antre todos se tinham tratado o

5 dia de antes, louvando a liberdade com que o Soldado falava, e a experiência que tinha de todas as cousas daquele Estado. E, entrando,

lhe disse o Fidalgo:

CENA I

Fidalgo — Podeis-vos gabar, senhor soldado, i£ que esta noite nos tirastes o sono a ambos, com

cuidarmos em quantas cousas nos dissestes, tanto para ficarem escritas, que isso estávamos agora, o. senhor secretário e eu dizendo; e só por isso mere- ceis que se vos faça Ga grande mercê.

15 Soldado — Não é tão pouco fazer eu perder o sono a Vossa Mercê, quando lho não fez perder o govêrno da India e o pêso daquela máquina. E certo que não sei qual é o governador que gosta do que come, nem que tem horas de repouso, com tantos

20 cuidados, quantos para rezão devia ter; e muitas

2, como ficara com ile: como combinara com êle, 11-12, tanto para: tão merecedoras de.

20. pela rezâo em B.

içç

Page 234: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

vezes estive cuidando se lhe viria isto de terem per- dido o sentido das cousas, ou se lhe dá de tôdas muito pouco; porque vi chegarem novas de estar Maluco muito apertado, Malaca de cêrco, e que os

5 malavares tomaram um pôço d'ouro aos vassalos del-rei, e que na saída que fez o capitão-mór do Ma- la var, em um rio dos imigos, lhe mataram duzentos homens, e em outro desastre cento, e que tomaram íía nau da China carregada d'ouro, e dar-lhe disso

io tão pouco, como se fôra ua palha. Êmfim, senhores, os adágios das velhas são evan-

gelhos pequenos, e aquele que diz: Onde não há dono, não há doilo, é muito certo. Estes senhores que a governam não são donos da índia, dóe-lhe

15 muito pouco; estão com o tento em irem ricos, o mais passe por onde passar, que êles vem-se com as costas sãs, e os proves dos moradores ficam com elas quebradas. Pois os capitães-móres das armadas vos gabo eu: recolhem-se às vezes com os focinhos

2C quebrados e com alguns navios perdidos, e ao entrar da barra de Gôa é tanta a bombardada, que não há quem se ouça; e ao sair em terra, tanta pluma e tanta bizarrice, como se deixaram destruído o mun- do; e nas certidões, como já disse, tudo são gabos:

25 que fizeram, destruíram, e que gastaram tanto. Ora verão Vossas Mercês se é verdade o que digo do pouco sentimento que todos tem das cousas. Vossas Mercês não querem senão tirar-me tantas vezes a terreiro para me fazerem apaixonar.

13, doilo: apoquentação. Talvez um aportuguesa- mento do espanhol duelo. Em B: Onde não há dono nem dó.

200

Page 235: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Despachador — Isso que dizeis é assim, que eu tenho em meu poder essas certidões; e inda é peor: que se acertam de andar em requerimento dous fi- dalgos, que foram capitães de armadas, quando fa-

5 Iam comigo em segrêdo, me diz um do outro mil afrontas: que não soube ser capitão-mór, que lhe tomaram navios; que não deu boa guarda às cáfi- las; que lhe perderam os soldados o respeito; que lhe mataram os malavares tantos homens; que não

10 gastou nada; e êle tudo o que diz do outro lhe suce- deu peor; e eu estou com muita paciência ouvindo tudo sem lhe responder.

Sold. — Aí verá Vossa Mercê o que eu digo. Pois (Como os despachais?

15 Desp. — Deu-me Deus tal condição, que por im- portunações me tomaram minha mulher. Confesso- -vos que me enfadam tanto, que lhe dou tudo pelos não ver nem ouvir.

Sold. — De maneira que por importunações vos fo meteis no inferno: bofé que é isso muito bom! E eu

com as pernas e braços cheos de espingardadas e. cutiladas em serviço del-rei, que, porque não fui importuno, fique por despachar! É boa justiça essa! Os cargos e fortalezas dão-se a quem mais serve, ou

25 a quem mais importuna: Se tal é, eu avisarei aos soldados que não curem de papéis, nem de arrisca- rem as pessoas, senão de aprenderem na escola dos enfadonhos, pois essa doutrina vai tànto neste rei- no; e, pela ventura, se vos disser muitas vezes que

30 olheis pola índia, que se perde, que mandeis bom- bardeiros, artelharia, galeões, dinheiro, soldados e tudo o mais de que está falta, que me mandeis meter no tronco por enfadonho! Não me entendo com isto: quem fala verdades, prêso por sobejo,

201

Page 236: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

quem requere mentiras, despachado por importuno! Ora dai-me algum regimento para levar na aljabeira à Índia, para os homens saberem o como hão de requerer.

5 Vossa Mercê me meteu nisso em grande confusão; não cuidei que me faltava isso por saber, já o tenho percebido no coração; porque dous soldados que vieram comigo requerer, andando por vossa ra^a e dos outros despachadores, um dêles falava tudo

io o que queria, ditava despachos e fazia juramentos que tremiam as carnes; chamava-vos uns tais e quais,que não despacháveis senão quem vos dava; e tantas cousas destas lhe ouvi, que lhe disse algiíat vezes: — Olhai cá, Foão, ou vos hão êstes homens

15 de despachar por vos não ouvir, ou vos hão de man- dar meter no hospital por doudo.

E assim aconteceu, que êste está já despachado à sua vontade, e diz que o agradece à sua língua. E outro, que acertou de ser sesudo, brando,

20 bom homem, muito bom cavaleiro, que levou até agora seu negócio por têrmos muito honrados e de paciência, e que fugiu de importunar, êste que esteja hoje ainda por despachar, tendo dobrados" serviços do outro! Que esperarei? E assim alguas

25 vezes disse a êste homem: — Olhai que êsses têrmos vos hão de fazer nojo: gritai, falai, porque aqui dão mais a quem mais fala que a quem mais peleja.

jOra vejam com que gôsto virão os homens a bus- car quem tem obrigação de lhe fazer justiça, se êles

30. vêm tão claramente estas injustiças! Ora pesa-me

10. deitava despachos era A. 26, /aser nojo: prejudicar.

202

Page 237: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

de não ter já idade para me meter nua religião; porque o mundo me tem bem desenganado para es- perar dêle nenhum bem.

Quero-vos contar ua história, que me aconteceu andando d'armada na enseada de Cambaia. Desem- barcando na cidade de Gôa, estando eu falando com um mercador gentio muito rico, veo outro meter-se na conversação; e perguntando eu ao com que fa- lava que homem era aquele, respondeu: — Êste ho- mem, senhor, é grande cavaleiro; é quando os tur- cos xaquearam Mascate pelejou muito bem. E per- guntando pelo que fizera, me tornou: — Quando os turcos andavam pela povoação a roubar, estava êste homem em cima da serra, que é mui alta, e dali bracejava e dizia muitas roindades aos turcos e pelejava muito. Caiu-me aquele negócio tanto em graça, que muitas vezes o contei por galantaria.

E agora digo que muitos fidalgos e soldados, que cá despachastes muito depressa, pelejaram como êste gentio de cima da serra, deitando brabosidades contra os imigos; e eu, que andei com a espada nua e chea de sangue, entre êles, pelejando com muitas feridas, que esteja por despachar! Tal é o mundo como isso: o bom é logo pelejar de bôca, e deixar estar as mãos.

Desp. Por certo que tem isso muita graça, fol-

x, religião: ordem religiosa. 11 e sejr xaquearam Mascate, muito bem peleijara; e andando eles roubando pela povoação, estava em cima da terra muito alta, e dali praguejava e dixia muitas ruin- dades em B.

20, brabosidades: bravatas, gestos e palavras de falsa valentia.

203

Page 238: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

guei muito de ouvir êsse conto e de o saberdes trazer tanto a propósito; e cuido que falais em tudo muito a ponto, e que muitos pelejaram na índia dessa ma- neira, que me vem cá também matar com a bôca;

5 de maneira que eu e os turcos corremos muito risco com êles.

Sold. — Não se canse Vossa Mercê, que estes que digo nem hão de matar a êles nem a vós; satis- fazem-se com aqui sonharem que pelejaram muito

io bem; pareceu-lhes que foi assim, e requerem pelo que imaginaram e não pelo que fizeram.

Desp. — Que vos hei de dizer? Digo minha culpa; entregam-me um feixe de papéis, que eu não lerei por um condado; e porque estamos com a opi-

15 nião de soldados velhos e antigos, salvo-me na fé dos padrinhos, despacho-os polo que pedem e não polo que merecem. Ora daqui por diante ficarei en- sinado à minha custa.

Sold. — Será isso à custa del-rei e minha; porque 20 lhe dais os seus cargos sem ordem e merecimentos,

e a mim negais o que com tantos requeiro. Ora dei- xemos isto, e vamos ao primeiro, que ficámos on- . tem de nos ajuntar aqui, que foi para tratarmos das cousas que é necessário mandar prover para segu-

25 rança daquele Estado, no que eu desejo de ver e en- tender neste reino muito de propósito, inda que me não despacheis a mim nem aos outros; porque o bem comum precede ao particular.

Desp. — Isso. é de cristão, e folguei muito de 30 vo-lo ouvir; porque outros muitos há, que tomaram

não se tratar nunca senão do que releva a êles, e o mais que se perca tudo.

9, com aquilo: sonharam em A.

204.

Page 239: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

Sold. — Não sei se abrange isso também a Vos- sas Mercês; porque, com saberdes o estado em que a Índia está, quando nos parece que do despacho há de sair que se deixe tudo e que se acuda muito

5 depressa a ela, por que se não perca, e que se or- • dene ua grossa armada e obriguem a ir a índia

muitos capitães, que entendem a guerra, muitos bombardeiros,artelharia e dinheiro, — vejo arreben- tar com quatro naus carregadas de provisoes d alvi-

10 tres para vós e para outros, e vossos criados sós os despachados; e muitas leis contra os proves dos mo- radores, sem nenhum fundamento nem proveito del- -rei, nem daquele Estado.

Desp. — Que vos hei de fazer? que cuidam cá 11 que acertam nisso; porque o escrevem assim os viso-

-reis, a cujas cartas se dá muito crédito, pela obri- gação que tem de falarem verdade ao rei e traba- lharem de pôr remédio às cousas, que virem ir de-

ft sordenadas. _ 20 Sold. — Eis aí, senhor, como é tudo: escreve um

viso-rei que não é bem que andem os homens em palanquim, e que não tragam pagens portugueses,

. e que não respondam aos homens que estão ausen- tes,que não paguem soldos velhos, nem as liberda-

21 des das caixas senão na Índia, havendo que dais al- vitres de poupar, e outras trezentas cousas muito para rir; e se os escrevem os homeqs livres e que temem a Deus e são leais a seu rei, que acudais a Índia, que se perde, zombais disso, e cuidais que

3o vos enganam; e ao outro, que dana aos homens, acudis com tanta provisão, que é pasmar.

Dizei-me, senhor secretário, que fundamento se tem neste reino a não responderem aos ausentes, sendo justiça; responderem primeiro a êstes, que

205

Page 240: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

ficam no serviço na índia, que aos que se vieram dela em tempo que pela ventura há muita necessida- de de homens. <E não merece mais o que actualmente serve a seu rei que o que deixou o seu serviço? To-

5 dos podem vir a êste reino requerer; se muitos ho- mens há que não tem posse para isso, logo perde- rão seus merecimentos os soldados velhos; e as liber- dades das caixas, que me pagavam neste reino, e que se mandam pagar na índia, jquem o há de fazer,

i° se me não pagam o meu sôldo, que actualmente venço, porque havendo-me de dar quatro quartéis por ano, não recebo mais que dous? E como se pode na índia sustentar um soldado com vinte par- daus por ano? Isso é pô-lo a risco de furtar, ou se

15 ir para os mouros, como muitos já fizeram. Estas cousas por certo que não fazem o rei pobre,

antes o enriquecem; porque, pagando o que deve a quem o serve, entesoura tesouros muito grandes de misericórdia para com Deus, que por isso lhe con-

20 servará seus Estados em paz e quietação, e lhe acre- centará em seus rendimentos. Ora quero, senhores, saber, <que nojo faz o casado, que tem seus moços, - andar no seu palanquim, achando-se indisposto, ou tendo o seu cavalo enfêrmo?

25 Desp.—Tudo isso que dissestes é santo; mas jque vos há de fazer el-rei, se de lá da índia escrevem que o rendimento dela basta para tudo? E quanto a despacharem neste reino os homens que estão pre- sentes, e não se falar nos ausentes, é por que os que

30 andam neste reino se tornem para a índia, que há lá necessidade dêles.

7, os soldos velhos em A. 22, nojo: mal, prejuízo.

206

Page 241: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

Sold. — Eis aí a justiça: despachais os que aqui estão para se tornarem, e os que lá ficam servindo, que padeçam! Antes, para justiça, se havia de tra- tar primeiro do despacho dos ausentes, pois estão

5 continuando no serviço; porque, se virem que se faz assi, não se virão os homens de lá, e não dareis aos que cá estão mais do que merecem, por que se tor- nem.

Desp. — Assim o concedo eu também; e êsse 10 negócio de se não falar em ausentes não deve estar

tão fechado que se não despachem todos os anos muitos, e sempre se parte com todos. E quanto ao que dizeis dos palanquins, é mau costume, e parece que andam nêles os homens afeminados; e a essa

i j conta os fidalgos não tem cavalos para acompanha- rem seus viso-reis, e com isso parece que se habi-

, tuam a ua vida mole e que parece que não é trajo de soldado.

• Sold. — Está isso muito bem, e assim é que eu 20 sou o que mais o estranho, pois por esses pecadores

hão de pagar os casados inocentes; êssoutros é mui- to bem que não andem em palanquins, e que os

• obriguem a ter cavalos, e que o que não acompa- nhar o seu viso-rei seja castigado; e a êstes fidalgos

25 não se lhe há de pôr outra pena, senão que percam seus despachos, e que outros os não pudessem mere- cer, porque das mais penas zombam. E com o en- trar em perder despachos, eu vos dou minha pala- vra que andem tão a ponto, que lhe não possa o

30 provido detrás dêle arguir de pecado. E mais, senhores, ^sabeis que fez esta lei de palan-

25, perçam em A.

20-

Page 242: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

quins, depois que passou a Índia a ser um ninho de guincho, como lá dizem, para os criados dos viso- -reis? Porque eu vi haverem êstes licença para os homens de negócios andarem em palanquins e a

5 mim me disseram alguns que lhe custara a vinte e a trinta pardaus. E êstes homens, como compram todas as cousas das bôlsas dos néscios, pagam tudo largo, e muito mais largo como entram em delí- cias; porque eu sei alguns, que em relhos d'ouro e

io colares de pedraria gastaram com as amigas dez e doze mil cruzados; e assim depois quebraram e fugiram com grande soma de dinheiro das partes. E, com eu avisar a alguns amigos disso, não sei que dom tem êstes homens sôbre o dinheiro alheo, que

ij andam às rebatinhas a quem lho dará primeiro, e inda para lho tomarem os peitam. Por onde certo que cuido que todo o dinheiro da Índia é mal ga- nhado, e que permite Deus que o diabo o leve por êstes canos e por outros.

20 Ora, deixando isto: grandes penas para quem an- dar em palanquim, e para os que se escusam do serviço del-rei nenhíia! Em verdade, senhores, vos digo que desejo de me fazer doudo, para me de- sentoar nesta matéria. Vi alguns mexelhões, que,

25 como andaram dous verões por capitães de navios, já não querem senão galé; e se lha dão, já ao outro ano não querem aceitar senão armadas de capitães-, ' -móres; e se o foram um verão do norte, já para o

8, como entram em delicias: quando se trata de coisas de prazer. Em B: com o entrar em diligências.

9, relhos: cintas. 13, E, com eu: e apesar de eu. 24, mocelhões em A. Significará «mocetões».

208

Page 243: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

outro o não querem ser senão do Malavar; de ma- neira que cada um se quer vestir da sua libré, e não da do rei, a quem servem. E para isto não há ferros nem troncos, que êstes merecem melhor que arma-

5 das! Tomara um viso-rei de tanta fêvara que, em se

um escusando do serviço, o embarcara logo em úa nau com um grilhão nos peis, que então eu vos se- gurara que os outros se recolheram. Nem isto hei

10 mêdo que seja remédio; antes temo que, em êstes chegando a êste reino, além de os despacharem com fortalezas, lhe deis mais um entretimento pelos ferros que levou. E por isso, senhores, deixai-me, que me fazeis irar contra todos os despachadores, em tempo

15 que venho labutar com êles. Desp. — Sôbre isso que dizeis dos que se escusa-

rem, tem el-rei provido muitas vezes, porque de tudo é informado.

4 Sold. — Nada sei disso; se lá foram provisões, 20 os viso-reis as sumiriam, porque nunca se usou delas,

e assim os castiga Deus naquilo em que pecam; por- que assim como não cumprem as provisões del-

, -rei, assim lhe não cumprem as suas, nem lhe guar- dam seus regimentos; e daqui nace desacreditarem-

25 -se as leis e terem-lhe pouco respeito. Muitas vezes vi apregoar na Índia alguas, que se não guarda- vam mais de três dias; e certo que parece isto jôgo de meninos, ou dos despropósitos.

Sai o viso-rei com ua lei sôbre pagens, e diz que 30 os capitães de Ormuz, Sofala e Malaca poderão

trazer quatro pagens, e os das mais fortalezas dous, e todos os mais fidalgos um: isto durou seis dias. Sai outro com outra lei, que não tragais gual- drapas: olhai êste despropósito! Outro manda que

14 209

Page 244: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

não tragais diante dos cavalos cafres com sombrei- rinhos de mão, que lhe tomam a chúvia no inver- no. Não houve mais que pregoar e parar. Certo que, quando isto via, que cuidava que se fazia

5 aquilo só por que se soubesse quem era o viso-rei, e que folgava de se mandar apregoar polas praças: — «Ouvide mandado do viso-rei, Foão!» — Ho- mem, já o sei — respondia eu aos porteiros — vai- -lhe dizer que faça algua lei contra os malavares,

io que nos tomam todos os anos vinte e trinta naus.

tia vez me aconteceu ir em Gôa a cavalo com um fidalgo velho, e vir pela rua um tambor, que pare- cia que vinha rompendo batalha, e o cavalo do fi-

15 dalgo começou-se a inquietar, o que êle sentiu mui- to, e, passando polo que tangia, o fez calar e lhe perguntou cujo era, e onde ia. Respondeu que do governador e que ia lançar um pregão. Ao que o fidalgo lhe disse: — Vai-lhe dizer que vá beber da

20 tal, que os malavares andam senhores do mar e êle anda cá pola cidade quebrando-nos as cabeças com o seu tambor; que mande apregoar que ne- nhum malavar navegue, que isso é o que releva; e que êssoutro que vás pregoar é parvoíce, que nem

25 importa, nem se há de guardar. Desp. — Não está essa história má; o bom fôra

isso que dizeis: fazer lei contra os cossairos; mas ' êles não lha guardaram.

Sold. — Nem a êles lhe dará ua palha disso.

2, chúvia em A. Forma popular. 17, cujo era: de quem era, a quem servia. 28, guardaram: guardariam.

210

Page 245: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Desp. — Dizei-me, senhor, jque respeitos houve para êsse viso-rei defender pagens?

Sold. — Fazer tiro a alguns fidalgos, que não eram despachados com as fortalezas dos quatro

5 pagens. E sabeis o que isso montou? que um que trazia quatro meteu logo oito, e ninguém lho per- guntou.

Desp. — cQue dano faz trazer um fidalgo muitos pagens?

io Sold. — Antes cuido que é serviço de Deus e del-rei; porque vem todos os anos nas naus duzen- tos meninos, e se não tiverem quem os recolha, como fazem êstes fidalgos, morrerão ao desemparo: e assim se vão criando por estas casas, e depois se

15 fazem soldados e honrados. E quando seus amos entram em suas fortalezas, fazem-lhe bem, partem com êles, e muitos vem a ser ricos; e assim, a têrça parte dos moradores honrados das fortalezas da In-

• dia foram dêstes assim: e êste é o mal que lhe faz 20 esta criação, e o bem que lhe quer fazer quem lhe.

quer tirar êste remédio. Fid?—Dizeis muito bem, e assim é; que na

• Índia os mais dos moradores foram criados dos ca- pitães, que nela estiveram, e, no cabo dos seus três

25 anos, cada um deixa seus dous pares dêles casados e ricos. E êsse viso-rei que quis defender isso, deu- -lhe a paixão.

Sold. — Essa faz muito mal aos que governam aquele Estado, porque por ela fizeram algflas gran-

50 des injustiças. E afirmo-vos, senhores, que chega

1, respeitos: razões, motivos. 2, defender: proibir.

211

Page 246: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

isto a tanto, que ousarei afirmar que houve viso- -rei que estimava mais satisfazer seu apetito que sua obrigação, e que lhe dava muito pouco de pôr a índia em um balanço, só por comprir com

j sua paixão. Perguntar-me-eis de que vem isto? Vem de cuidarem que emquanto estão naquele lu- gar lhes é lícito mostrarem seu poder até contra Deus, se posso dizer isto; porque bem contra êle se faz o que se faz contra justiça.

io Desp. — Essa matéria é de importância, e por isso ide de vagar com ela, porque me tereis muito pronto a vos ouvir.

Sold. — Já que assim é, ouçam-me Vossas Mer- cês.

CENA II

15 Sold. —Começo por aqui: quer um viso-rei ua cousa destas; diz-lhe o desembargador livre, o teólo- go virtuoso que o não pode fazer. Entra logo o diabo e diz-lhe: — Faze, que tudo podes. E assi tomam tão mal dizerem-lhe que não pode, que lhe

20 parece que já lhe tiram o govêrno das mãos. — (Como não posso,—diz êle — se posso tudo quanto el-rei pode? E disse muito bem, que naquilo se inclue quanto lhe os outros disseram. Porque el-rei não pode fazer injustiças; se se isso não reme-

25 dea, eu dou tudo por perdido. Quer um viso-rei bater moeda falsa, que assim

lhe posso chamar, pois danifica o povo; vai o cobre

4, balanço: risco, perigo.

212

Page 247: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

a quarenta xarafins o quintal; batem os bazarucos à rezão de sessenta e setenta; vem os mouros da outra banda, que trazem o ôlho em nossas cousas; quando vêm o excessivo ganho, batem logo lá na

5 Terra Firme grande cantidade de bazarucos, e, à formiga, a metem em Gôa, ria qual ganham um poço d'ouro, porque inda a fazem mais pequena.

Vem os mercadores das vacas, pàdeiros, boti- queiros, hortelões, e todos os mais, ou não querem

io tomar a moeda, ou, valendo trezentos réis um xara- fim, pedem trezentos e sessenta, ou acrecentam um bazaruco na medida d'arroz, no peixe, na carne; o pàdeiro faz o pão de menos peso, e assim por esta maneira tôdas as mais cousas, com que os proves

15 perecem e clamam. Acodem logo com o remédio, que é abater na moeda três bazarucos, que valham dous, que é grande roubo; e assim o povo padece, e o criado do viso-rei, que bateu o seu cobre, fica

0 com os cinco e seis mil cruzados de ganho; e se lhe 20 quereis ir à mão e dizeis que não pode bater aquela

moeda, ri-se de vós e zomba de todos. Desp. — Pois que determinam fidalgos tão hon-

, rados? Vão lá para deitar a perder a Índia? Porque se não atenta nisso e porque os não castiga el-rei?

25 Sold. — Já eu disse ao que lá iam alguns dêles; não queira que lho diga tantas vezes; o bom é bara- lhar êste jôgo, e não passar mais avante.

Fid. — Todos desejamos bem de acertar; mas nem a tôdas as cousas se pode acudir com o rigor

I, bazarucos: moeda de cobre da índia, de pouco valor.

8-9, botiqueiros: lojistas, vendilhões.

213

Page 248: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que dizeis. Que havemos de fazer? que nós imo-nos lá remediar, e se cá tornamos sem dinheiro, não nos falarão a propósito. Ora, quanto às penas que dizeis se ponham aos que escusam de servir, não pode ser, que el-rei há mister os homens.

Sold. — Essa vos nego eu já; homens que fogem do serviço, e de se embarcarem nas armadas, e de socorrer as fortalezas, não se hão mister para nada. Mas quero-vos também satisfazer a isso; dissimulais

io com êstes, por não fazer tanta execução, com não mandardes todos os anos a el-rei um rol dêstes, a que podemos chamar vàdios, para ao tempo dos despa- chos se lhe não responder. {Que mór castigo quereis que fazê-los vir a êste reino, e tornar sem despacho,

15 para que os outros se envergonhem e se não escusem?

Eu vos dou minha palavra que, se se isto fizer, que haja tanta emenda que pasmem todos; mas se êles com isto vêm que lhe dão tanto sem se

20 embarcar, como aos que continuam suas armadas, fazem muito bem não se cansar. Vós, senhor, despa- chais a êstes, como inda agora dissestes, por enfa-" donhos. Fazem muito bem de viver à sua vontade e não se cansarem, como eu tôda a minha vida fiz,

25 que nunca quietei senão os três meses do inverno, e inda nesses tive mór trabalho que nas armadas, porque pelejava com a fome, que é o imigo contra quem não vai esfôrço nem armas; que nas armadas não faltava um prato de arroz com Cia cavalinha

30 salgada; que êstes são os regalos com que lá servi- mos el-rei.

E certo que, se a vida dua fusta se tomara em pe- nitência de pecados, que não sei mais dura vida dos padres do ermo; porque, se dormiam no chão,

214.

Page 249: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

era dentro em ua lapa, quentes e reparados das in- clemências do tempo; se comiam ervas cozidas e com um pedaço de pão duro, tinham muitas conso- lações espirituais, com que se sustentavam, e viviam

5 mais de cem anos; se não bebiam vinho, tinham águas de fontes suavíssimas, que os consolavam; mas nós os soldados todo o ano ou tôda a vida dor- mimos em um banco da fusta, descobertos, à chuva e ao sol; um prato d'arroz que comemos, é cozido

io com muitas pedras e pó; a água que bebemos é dos tanques, tão fedorenta, que pode causar peste. Ora vede se era isto bastante penitência, se a passara por meus pecados! Mas nós sofremos tudo, porque não temos outro remédio.

15 . Nas respúblicas bem ordenadas tudo se encami- nha a bem, e tanto se trabalha por remediar cousas pequenas como as muito grandes. Se vos cai um muito pequeno argueiro no olho, emquanto o não

0 tirais inquieta-vos tudo; assim o fazem cousas muito 20 pequenas no olho da vossa república: se lhe não

acudirdes ao argueiro pequeno, trá-la-eis sempre " inquieta: de pequena bostela se cria grande mazela,

< dizem as velhas. Se vos cai ua pequena pedra no sapato, faz-vos

25 manquejar: ^cuidais que êstes nonadas, êste arguei- rinho de deixardes andar e viver os homens à sua vontade, que montam pouco? Sabei» senhor, que nisso vai tudo: jporque se não há de atentar em ua república polo soldado que não tem nada, donde

30 lhe vem andar com tanto ouro, tanto veludo, tantos pagens portugueses, que é pasmar? <;Polo fidalgo

6. Em A parece estar escrito cristianíssimas. 22, mazela em A.

215

Page 250: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

mancebo, que vem do reino sem um cruzado, querer logo ter casas de trinta de aluguer por mês, cavalo ajaezado de prata, caprazões ricos, e entrar em suas casas é entrar por um deserto ou casas de en-

5 cantamento: na casa dianteira quatro cadeiras, na câmara um esquife em que dormem, e tôdas as mais casas podem nelas esgrimir e jogar a pela? Pois para que é isto, e para o que se dissimula com êste ar- gueiro no olho, porque se não tira? Porque êstes

io para sustentar isto hão de buscar todos os meos ilíci- tos que puderem, e enganarem a donzela, a viuva, e deshonrarem a casada; e por aqui se vem a estra- gar a vossa república.

Quando a índia florecia, nenhum dêstes fidalgos 15 mancebos tinha casa nem cavalo; pousavam cinco,

e seis com um fidalgo velho, ou que tinha acabado sua fortaleza, ou que estava para entrar nela, sem terem mais que um pagem e um boi para o som- breiro; e assim viviam tão registados, que era muito

20 para louvar a modéstia daquele tempo; e de mara- vilha acháveis um dêstes em ua baixeza, nem se casavam, como hoje fazem muitos, com quatro cru" zados, que logo se lhe acabam. Os soldados, cinco e seis também em Qa casa térrea, de que pagavam

25 dous pardaus por mês, e ali se negociavam com só duas capas e duas esquipações e iam fora aos dias; comiam ua ração, se lha dava o fidalgo velho; se não, sôbre a espingarda lhe fiavam arroz e azeite

3, caprazões: caparazões, gualdrapas especiais. 18. boi: criado que leva o chapéu de sol ou o pa-

lanquim. 25, se negociavam: se arranjavam, se governavam. 26, esquipações: fardamentos.

216

Page 251: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

para se alumiarem. Não faziam vilezas, nem os acháveis devassando as ruas; e tanto que havia ar- madas, corriam-se de passear pola cidade.

Contar-vos-ei ua galantaria a êste propósito, dua 5 mulher cortesã. A esta foi um soldado de noite ba-

ter à porta, sendo o viso-rei d'armada; e perguntan- do ela quem era, lhe respondeu que gente de paz. Ao que ela mui apressada tornou, dizendo: — Bem o creo; porque quem anda em Gôa sendo o seu viso-

10 -rei na guerra, bem de paz é. E assim aos soldados daquele tempo lhe fazia Deus mercês; e de maravilha se embarcavam, que se não recolhessem com muitas presas, e com muitos parós tomados; hoje, muito ao contrário, não há quem os faça embarcar; passeam

15 por Gôa todo o inverno; e tanto que entra o verão, que se querem fazer armadas, somem-se logo; e tanto que sabem que deram à vela, tornam logo a aparecer, sem haver viso-rei que lhe pergunte por

• isso; e quando se as armadas recolhem, se sabem 20 que hão de mandar socorros a Maluco, Malaca eCei- >

Ião, alguns d'armada deixam-se ficar polas fortale- zas do Canará, e os de Gôa se escondem poios covis,

* como forões; e assim de maravilha sucede cousa boa: não há quem peleje nem quem socorra as for-

25 talezas. Sabem-no os viso-reis, vêm que lhe faltam sol-

dados na paga; e depois de partidas as armadas os vêm passear polas ruas muito lustrosos, e não en- forcam quatro para terror dos mais. E certo que

30 cuido que a alguns lhe dá pouco que vão os solda-

3. corriam-se: envergonhavam-se. 23, e assim... quem socorra falta em A.

2x7

Page 252: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

dos nem que venham, porque não fazem armadas mais que por cumprimento. Escrevem ao reino que fizeram tantas armadas, os sucessos delas, sejam quais forem, que lhe dará disso muito pouco. Acudi,

5 senhores, a isto. Desp. — Acudirá Deus algOa hora, e também o

rei o fizera, se o não enganáramos por nossas pre- tenções. Mas tornando ao que importa, e ao que é necessário prover-se na Índia, que é o para que

lo hoje nos ajuntámos, nos dizei as cousas de mais im- portância para se significarem a el-rei.

Sold. — Diz Vossa Mercê bem: deixemos os des- propósitos de que ia tratando. A primeira cousa em que se havia de entender é nos excessos dos trajos

15 dos soldados, e ordenar que andem como tais, e não como rufiães; faça-se lei que os viso-reis pareçam capitães generais, como o são; por que folguem to- dos de parecer soldados, e que andem em corpo, calções a meia perna de cotonia ou guingão, espa-

20 da curta, quando muito prateada, talabartes de couro e ferros, e não com tanto calção de veludo, tantas espadas douradas, tantas tranças d'ouro, d" tantos passapés e guarnições d'ouro e prata, que pasmo donde lhe isto vem.

25 Este é o argueiro no olho, que, senhores, vos dizia; e de se dissimular com isto vindes às vezes a per- der ambos os olhos; e de não tirardes esta pedrinha do sapato, vindes a perder um pé.

Certo, senhores, que folgáreis de ver um soldado

19, guingão: tecido de algodão às listras ou xadrezes. 23» passamanes em B; passapés deve ser linguagem

irónica.

218

Page 253: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

de meu tempo, com um saio de guingão pardo, ce- roulas de cheila ou de erva, jubão do mesmo, coura de couro golpeada, gôrra de Milão, espada curta em talabartes de anta; e muito mais folgáreis de os

5 ver pelejar, que vos pareciam tão gentis homens, que vos perderíeis por êles; o que tudo hoje é ao con- trário; porque cuido que os soldados d'hoje, dal- guns digo, que muitos há de primor, mas falo dos enfeitados, que não trazem o ponto senão nas lou-

ro çainhas; e assim ao encontrar dos mala vares traba- lham por ir pôr em salvo aquilo de que tanto cabe- dal fazem.

A outra cousa, em que se havia de mandar pro- ver, e de que se faz tão pouco caso, é naquilo que já

r.ç tratámos; de guardarem os viso-reis as provisões e regimentos do rei; porque nisto está todo o bem ou

> todo o mal. Manda el-rei ua provisão, que se façam embarcar para o reino todos os homens de nação, e

• todos os estrangeiros, poios haver por prejudiciais 20 ao Estado: pregoa-se a provisão para que se embar-

quem naquelas naus; faz-se isto com tempo, por que o tenham de se saberem negociar; e como êles

• estão interessados na terra, e vivem nas delí- cias que já disse, lá se negoceam em segrêdo, e pas-

25 sam-lhe provisão de espera para mais um ano, e assim para o outro tornam a untar as rodas e vai-se de ano em ano esquecendo o negócio,- e êles fican-

2, cheila: tecido de algodão encorpado, de côres. 2, erva. Não sabemos que seja; ou de herva

falta em B. 9, o ponto: a mira.

22, negociar: preparar, arranjar.

2IÇ

Page 254: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

do na terra contra vontade del-rei, e em grande pre- juízo do povo.

Passa el-rei outra provisão: «que sirva Foão de veador da fazenda, o outro de secretário, e certo

5 letrado de ouvidor geral, juiz dos feitos, procura- dor d'el-rei, e outros»; como isto vem aos viso-reis, que as recolhem em seus escritórios, dissimulam com elas, e dão os cargos a quem êles querem, que nunca são senão os que lhe a êles relevam, e os ou-

ro tros não sabem o que lhe el-rei manda. Emfim, senhores, que, se houver de trazer tôdas estas cou- sas, será um infinito, porque infinito é o poder que os viso-reis tem tomado; o bom é dobrar aqui a fô- lha, porque toca a muitos.

15 Fid. — Inda que vós fôreis secretário dessas cou- sas, não soubéreis mais delas. Isso é assim, mas muitas vezes se engana o rei com êsses homens; e os ministros dêste reino dão também o que querem a quem querem; porque êsses homens são de sua obri-

20 gação, e querem-lhe pagar com isso. Sold. — Está assi bom! Seja como fôr, manda-o

el-rei, faça-se o que el-rei mandou! Cumpram" o que lhe mandam, obedeçam e rescrevam, e êle mandará o que fôr seu serviço. E <quem vos

2j disse a vós que não houve também alguns viso- -reis, com que se el-rei enganou bem? Por isso dei- xaram de os receber e obedecer? El-rei pode fazer do seu o que quiser, sem lhe pedirem conta disso.

Sei-vos, senhores, afirmar, que houve viso-rei, que,

4-5, Procurador da Coroa em B. 21, Está assim muito bem! em B. 22. faça-se: rou, rou, faça-se o que el-rei mandou

em B.

220

Page 255: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

escrevendo-lhe el-rei que se servisse dum certo oficial, porque assim o havia por seu serviço, quanto mais instância nisso fez, tanto peor foi; porque, como êle queria dar o cargo a um de sua obrigação, polo

5 mesmo caso que sintiu em el-rei gôsto de se servir do outro, por êsse mesmo o desapossou, e se serviu do que quis; e, o que peor foi: que avisaram ao des- pachado que o queriam matar, por que se não fôsse para o reino; polo que se acolheu a um mosteiro,

io donde se embarcou, temido e escondido. Desp. — E assim passou isso sem castigo? Sold. — Rio-me dêsses castigos; pagou depois os

ordenados a seus herdeiros, e de desobediência ficou tão são como um pêro. Castigue el-rei rijamente

ij quem lhe não guarda suas provisões, começar-se-ão as cousas a encaminhar para bem, e não haverá tan-

* tas desordens.

* CENA III

Desp. — Ora deixemos essas misérias; cuido que não tem remédio, e tratemos do que ontem ficámos

20 sôbre qual destas cousas será mais necessário con- quistar-se: se Ceilão, se o Achém; porque muitos há de parecer que Ceilão é mais importante por ser mais à porta, e a ilha ser grande e abundantísssima de tudo, e capaz de sustentar quantos portugueses

25 há espalhados pela Índia. Sempre ouvi dizer que os reis passados deram por regimento aos primeiros governadores que, se a Índia padecesse naufrágio, se recolhessem os portugueses a Ceilão, e que dali se tornariam a reformar e a recuperar o Estado. Ou-

30 tros dizem que de mais importância é o Achém, para segurança de todo aquele mar e de nossas fortale-

221

Page 256: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

zas de Malaca, Maluco e trato da China e Japão, porque com ua fortaleza em seu porto se segurava tudo: agora queremos ver o que vos parece disto.

Sold. — Esse fundo é muito alto para minha 5 fraca bateira. Eu, soldado pobre, sei da minha es-

pingarda, que isso é de capitães experimentados; mas, com minha pouca suficiência, pois Vossas Mer- cês mo mandam, direi o que sei e o que ouvi a velhos antigos.

io Primeiramente digo que o valeroso capitão e viso- -rei D. Francisco d'Almeida, governando o Estado da índia, mandando-lhe el-rei fazer alguas fortale- zas, lhe respondeu que as com que a índia se havia de defender eram muitos galeões, muitas armadas,

15 e hem providas, e muita e boa soldadesca; que as fortalezas eram currais, e quantos menos houvesse, tanto a índia seria mais próspera e teria menos obrigações. E eu assim afirmo inda agora; porque muitas fortalezas há que não servem mais que de

20 fazer despesas e estarem mal providas e arrisca- das a ua desaventura; e então, se tomam um curral, dêstes, corre a fama pelo mundo que tomaram na índia ua fortaleza a el-rei.

E se me disserdes que cinco ou seis fortalezas des- 25 tas se ordenaram por algua boa ocasião que então

havia, e que depois ficaram assi para as darem em satisfação a outros tantos homens que serviram, está isso muito bem; jmas como podeis pelo respeito

. particular arriscar ua cousa tamanha, como a honra 30 do Estado, que depois vem a montar muito? E o

que estas fortalezas gastam cada ano, que são qua-

21, desaventura: desastre militar.

222

Page 257: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRATICO

tro mil pardaus cada fla (que saem do Estado, por- que elas não rendem nada) dai-os aos providos, e ficarão satisfeitos e o Estado desobrigado delas e de seus sobressaltos; porque para fazerem pagar as pá-

5 reas, que são quatro fardos d'arroz, e para com- prar outro, basta ua armada sôbre suas barras, que êles hão de temer mais que as fortalezas que ten- des sem soldados e sem munições.

Se as de mais importância, em que consiste todo io o poder e rendimento do Estado, de que já falei em

outra parte, tendo tanto cabedal para se poderem sustentar e reformar, estão piadosas e quási no chão, jcomo quereis sustentar outras, que vos não rendem cousa algua, antes vos fazem despesas? Se me dis-

75 serdes que alguas há, como são Mombaça, Mascate, Moçambique e Sofala, que eram necessárias, por

* que se não metessem ali turcos, e para sustentar- mos a posse das minas da prata e ouro — isso vos

* concederei; mas havei-las de ter tão bem providas 20 como as de Ormuz e Dio, não tanto pelo que ren- <

dem como pelo que importam; mas assim a seu al- vedrio, e sem ordem, é não terdes conta com o ser- viço del-rei. E falo assim, porque falando por êstes termos com Vossa Mercê, o faço com todos os que

25 disso tem a culpa. Desp. — Todos a temos; nós cá de não sabermos

o como isso lá está e em não avisarmos a el-rei, e os viso-reis em não olharem por cousa tão importante e em que lhe a êles vai a cabeça; porque essa per-

30 deu D. Jorge de Castro, de noventa anos, com os

4-5, páreas: tributos. 12, piadosas: em estado miserável, digno de piedade. 30. Foi um dos grandes escândalos da Índia a ren-

223

Page 258: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

móres serviços da Índia, porque entregou a partido a fortaleza de Chalé, em que êle teve menos culpa que outros, que nós cá despachamos.

Sold. — Três idades das minhas havia mister 5 para dizer o que vi e o que lá vai; e por uas cousas

me esquecem as outras. Mas quero deixar isto e res- ponder a Vossas Mercês à pergunta que me fizeram, de qual era por ora mais importante conquistar: se Ceilão, se Achém. Digo, senhores, que ambas essas

io cousas são mui necessárias; mas para se poderem conquistar, como é rezão, primeiro o hão de fazer às minas da prata da Chicoua, no reino de Mano- motapa, cousa tão sabida, tão ricas e prósperas, que excedem a todas as do mundo: que eu vi fazer al-

15 guas vezes a experiência nas pedras que de lá trouxe Vasco Fernandes Homem, e em outras que muitos trouxeram, e eu a fiz em ua onça, que me deu um padre de S. Domingos, e respondeu duas partes de prata a ua de pedra.

20 Pois esta riqueza, esta felicidade, que está em vosso poder, e que ninguém pode ir a elas senão entrando por vossa porta, ^porque se perderá por descuido? Certo que não pode ser maior, e mais quando todos vemos que, para a conservação dum

25 Estado tamanho como o da Índia, não lhe basta o que ela dá, e é necessário sustentá-lo e ajudá-lo com , outra cousa, e esta hão de ser minas; porque o Es- tado que as não tem, sempre é pobre.

dição de Chalé por D. Jorge de Castro, influenciado por sua mulher, e a execução infamante dêsse velho fidalgo.

18, respondeu: correspondeu. 19, e Ba em A. 23, não pode maior em A.

224.

Page 259: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

Vêdes a potência de Castela, a conservação de tantos reinos e senhorios, que só no de Flandes contra os rebeldes tem aqueles católicos reis gastado mais de corenta milhões d'ouro. Pois se não tivera

5 minas na Nova Espanha e em outras parte, jcomo pudera suprir a tanto? O Império Romão pudera subir a tanta grandza, se não fôra ajudado das ri- quezas da Lídia, da Arábia, da Pérsia, e de outras províncias cheas de minas? Se não, vêde as espan-

10 tosas riquezas, que vos já contei, que Pompeo me- teu no tesouro público, e as sobrenumeráveis que repartiu com seus exércitos.

E se houver quem duvide destas minas de prata, será porque não sabe disso tanto como eu; porque

15 acertei de estar em Moçambique, em casa dum pa- rente meu, quando Vasco Fernandes Homem veo destas minas de prata, que trouxe o senhor delas preso, que o pôs em casa dêste meu parente, onde

• os ouvi praticar sobre estas minas muitas vezes; e 20 como se defendia não se cavarem, e de como os ca-,

fres tiravam as pedras; e o mesmo senhor, que se chamava o Cháa, me disse como êle as fundia, e

* tirava a prata. Mas, deixando isto, a índia, senhores,rende para

25 si, piedosamente; mas para mais não; milagre é sem tesouros sustentar-se desde Sofala até Maluco com o que dá de si; e inda foram os cabelos mais, se as mãos não foram tantas, como disse. Por isso, senhores desenganai el-rei; que, se quer subir a monarquia da

ix, sobrenumeráveis: inumeráveis. 22, o Achalá em B. 25, piedosamente: dificilmente, a custo.

'5 22 í

Page 260: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Índia, há de mandar conquistar estas minas; e não só se fará tudo o que se pretende, mas inda enri- quecerá Portugal e Espanha.

Desp. — Grande negócio é êsse; não sei como se 5 não põe os ombros a cousa tamanha e tão neces-

sária; se isso fôra dos reis d'Espanha, já houvera de estar tudo descoberto e senhoreado.

Sold. — Também os nossos reis o fizeram, se se dispuseram a isso, ou tiveram ventura para terem

io minas; mas parece que todas se guardaram para os espanhóis, e praza a Deus que se não guarde inda êste nosso reino para êles!

Desp. — Que mau fôra isso? El-rei de Castela não é também português como nós? Mas jporque di-

15 zeis isso? Sold. — Vejo êste nosso rei moço sem casar; fal-

tam-nos herdeiros de casa; se assim fôr isto, viremos a dar nestoutros, de fora; e não vejo outro inconve- niente senão a antiga reixa, que sempre houve en-

20 tre nós e os castelhanos. Fid. — Quando sucedesse isso, nada me receo;

porque essa ponta não há senão na gente baixa, que" na nobre é outra cousa mui diferente. Quem mais

13-14. Alude a Filipe II, filho de Carlos V e de Isabel de Portugal, e neto do nosso rei D. Manuel. Couto apro- veita a ocasião para lisonjear os Filipes pela bôca do des- pachador e do fidalgo, acentuando contudo por bôca do soldado, que é êle próprio, a antiga rixa entre portugue- ses e castelhanos, viva ainda nas camadas populares.

16. O diálogo teria sucedido ainda em tempos de D. Sebastião. Contudo isso não impede que a certa altura Couto fale do desastre de Alcácer.

19, reixa: ódio, rixa. 22, ponta: malquerença, ódio.

226

Page 261: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

aprimorados que os espanhóis? quem mais corteses? quem mais liberais? quem mais políticos? quem mais tudo o que, senhor, quiserdes? Não me receo eu disso.

5 Desp. — Deixemos de disputar do que está nas mãos de Deus; tornemos a nosso fio. Dizei-nos, se- nhor, que é necessário para se conquistarem essas minas?

Sold. — Menos que as do Peru e Nova Espanha; io duas naus que vão dêste reino, com trezentos solda-

dos cada ua, direitas a Moçambique, e levarem pa- nos covilhãs e portalegres para se vistirem, alguns vinhos, e tudo o mais se lhe há de mandar trazer de Gôa.

15 Desp. — Que mais é isso? Sold. — Di-lo-ei a Vossas Mercês: hão-se de

mandar dêste reino um ano antes, nas naus da car- q reira, oitenta mil cruzados; vinte mil em cada nau,

para que se tenham feitos mil bares de roupa, da 20 sorte que os cafres querem para o resgate das cou- *

sas, que valerão sessenta mil cruzados de reales; f ficam vinte mil cruzados, de que logo darei despesa.

Estes mil bares de roupa se vendem em Sena e Tete o mais barato a duzentos cruzados d'ouro a corja,

25 que são cem mil cruzados d'ouro, que bastam e so-

12, panos covilhãs (em B covilhâes) e portalegres: da Covilhã e Portalegre.

18, quarenta mil em cada ano em B. 19. O bar ou baar era um peso indiano que valia

de 141 a 330 quilos, segundo as regiões e mercadorias. 24, de ouro o bar em B. Corja era a porção de 20

peças ou 20 pacotes: parece que, segundo o cálculo de Couto, correspondia a meio bar.

227

Page 262: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

bejam para sustentarem os seiscentos homens de soldo e mantimento; porque, pagando-se-lhe quatro quartéis por ano, em que monta vinte e quatro mil cruzados, tirados dos cem mil, ficam setenta e seis

5 mil cruzados. Dêstes se hão de mandar outros sessenta mil para

outros mil bares de roupa; sobejam dezasseis mil cruzados, que se mandarão todos os anos à Índia a empregar em vinhos de passas, farinhas, conser-

10 vas, amêxias passadas, amêndoas, e outras cousas desta sorte para os enfermos; porque, como os ho- mens tiverem pão e vinho, na terra há galinhas e carnes em abastança; e assim não adoecerão nem morrerão senão poucos; porque o que os mata é

15 fome e lançarem-se às cabras. Os vinte mil cruzados, que sobejam do primeiro

cabedal, também se hão de mandar empregar à Ín- dia em roupas para gastos e despesas, e algua parte dêles, ou a metade à costa de Melinde, para se com-

20 prar a roupa de pate, que é de sêda e algodão, de que os reis e senhores se vestem, que vai muito no reino de Manamotapa para fazer presentes aos se- nhores do reino, e inda sobejará muita cantidade de dinheiro para as despesas dos trabalhadores e

25 os oficiais, e para os materiais do forte, que se fizer sôbre as minas, em que se despenderá pouco, pola - barateza das cousas.

Eis aqui, com um cabedal de oitenta mil cruzados, feitas as despesas de seiscentos soldados contínuos

10, amêxias: ameixas. 20, pate: tecido indiano de sêda, misturado às vezes

com algodào.

228

Page 263: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

para quantos anos quiserem, os quais se hão de ir cevando todo os anos com cento e cento e cincoenta das naus do reino; e, como as minas estiverem descobertas e com presídios sôbre elas, seria de pare-

5 cer que se desse licença geral para tôda a pessoa que da Índia quisesse ir em navio seu às minas com roupas, farinhas, vinhos, conservas; ficará aquilo tão próspero e farto, que se farão povoações de por- tugueses e cristãos da terra, com que fique aquilo

io outra Nova Espanha. E de lá poderão penetrar êsse coração da Cafraria até a outra parte de Angola, com o que se faça comunicável o mar Atlântico com o Indico; porque tenho para mim que há menos de duzentas léguas de travessa.

75 E eu vi na feitoria de Moçambique registada ua carta, que o governador Francisco Barreto escreveu a el-rei, andando na conquista dêste reino de Mono-

* mopata, em que lhe dava conta que fôra à costa de Melinde a fazer certos negócios, e que, estando no

20 reino do Atondo, lhe afirmaram uns mouros antigos que dali até o outro mar da outra costa haveria

< quinze ou vinte dias de caminho; ao que el-rei lhe respondeu que trabalhasse de mandar descobrir aquilo, porque mais o estimaria que as minas.

23 Eis aqui, senhores, os proveitos que se tirarão de descobrirem estas minas por esta forma, que disse: farão o Estado tão próspero que possa come- ter todas as conquistas que quiser, e os vassalos tão ricos como os da Nova Espanha, e a Igreja Roma-

30 na enriquecida com tantas terras metidas debaixo

2, cevando: refrescando, entretendo. 2, com cento e cincoenta mil das naus em A.

22Ç

Page 264: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

de sua obediência; porque logo tôda esta Cafraria se há de converter à fé de Cristo, e tomar suave- mente o jugo, porque não tem lei, e a que lhe ensi- narem, essa receberão sem repugnância.

5 Ora a terra é tão próspera que dará trigo, cevada, grãos e todos os mais legumes, e as criações de ga- dos grossos e miúdos são mais e maiores que de tô- das partes do mundo. jPois que mais há que desejar, nem que esperar? Poder-se-ão prantar todas as

io fruitas do mundo, e darem-se mais prósperamente que em outras partes; far-se-ão fermosas vinhas, porque as uvas que há em Sofala são preciosas, e eu comi alguns cachos delas, ferrais, como as de Por- tugal, e assim como melões como os de Abrantes.

15 A hortaliça é excelente; dar-se-ão olivais mui prósperos; porque as gentes da companhia de Nuno Velho Pereira, que se perdeu na costa do Cabo de Boa Esperança, que atravessou tôda a Cafraria, achou azambujeiros com a fructa como azeitonas;

20 pois a montaria de porcos, veados, coelhos, lebres e tudo o mais deve de ser mui próspera pela fertili- dade da terra. Ora, como formos senhores destas minas de prata, logo o seremos das d'ouro de Bo- tonga, das de Maçapá, e de todas as mais. Há muita

25 lã e algodões para se fazerem panos e teas; há em-, fim tudo quanto a Europa tem, e tem o que na Eu- ropa se não sabe; e por isso fazem pouco caso de cousa tamanha.

Mas ua cousa quisera perguntar a Vossas Mercês, 30 que é: ^como se pratica neste reino de conquistas de

reinos daquelas partes, se neste reino se pôs em

23-24, d'ouro dabutua em A.

230

Page 265: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

pareceres largar-se a índia, porque era prejudicial ao reino sustentar-se, e que se conquistassem os rei- nos de África,que seria de mór crédito e proveito?

Fid. Não dizeis mal; pois afirmo-vos que sôbre 5 isso houve grandes alterações neste reino, e muitos

pareceres por ua e outra parte; e não está isso ora tão claro de sustentar a índia, que não haja alguas dúvidas entre bons entendimentos, e representadas mui lícitas e urgentes rezões; mas porque esta exe-

10 cução já'gora custará muito, se dissimula. Sold. — Bofé, senhores, que não sei que rezões

pode haver para se largar um Império, que cuido que não há outro maior no mundo, assim em gran- deza, jurdição e cidades fermosíssimas, como em

15 riquezas e cristandade; porque inda que não fôra mais que por esta, haviam os reis de gastar todos seus tesouros pola sustentar; porque pode ser que

• por isso lhe sustenta Deus há tantos anos o reino de Portugal, e os favorece em tôdas as mais con-

20 quistas que comete, e o tem a êle e aos seus vassalos postos no cume da roda da fortuna, com a grande

. piedade que nisto tem usado, e com as maravilho- sas façanhas que seus vassalos tem obrado naquele Estado, na conservação e defensão daquela cristan-

25 dade. Parece-me, senhores, que estais cá.mui alheos do

que aquilo é; pois sabei que por tôda a índia; desde Sofala até Japão, há mais de dous milhões de cris- tãos, afora o grande número que cada dia saem das

30 pias do santo baptismo. Pois isto, senhores, quereis que se desempare? Por certo que desemparará Deus a quem tal lhe entrar no pensamento; e posto que eu seja um soldado pobre e idiota, hei de falar sôbre isto largo; porque para isso confio em Deus me

231

Page 266: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SX DA COSTA

purifique a língua, como fez ao Profeta, para bra- dar e gritar em matérias de muita honra sua; e assim irei cifrando as rezões que dão os que falam por parte da conquista d'Africa e despejo da India, e as

5 que os que as favorecem dão para isso; e sôbre tô- das darei as minhas, se Vossas Mercês me quiserem ouvir; se não, mandem-me alevantar, que o farei com muito gôsto.

Desp. — Não mandarei por certo; antes vos obri- 10 garei, por serviço de Deus e del-rei, dizerdes tudo o

que entendeis nesta matéria com a liberdade com que té'gora falastes.

Sold. — Ora dêm-me Vossas Mercês atenção para me não interromper.

CENA IV

15 Sold. — Começarei, senhores, pelas rezões que se dão para ser melhor conquistar-se Africa que a índia: dizem êstes que, para um reino ser próspero," há de ter duas cousas; fructos e gados em abundân- cia para sustentação dos povos, por que não estejam

20 com o trabalho e opressão, que lhe dera em os es- perar de fora. Segunda rezão: que há de ter minas de ouro e prata, e outros metais, para sustentação da paz e prosseguimento da guerra; as quais cousas todas tinham os reinos de Africa em grande abun- dância, e os reinos de Fez e Marrocos tanto pão, cevada, legumes, gados grossos e miúdos em tanta cantidade, que podiam partir com os vizinhos; e a esta conta tôdas as mais cousas necessárias para o uso humano, como linho, algodão, mel, cera, açúcar, muitas fructas, de que a mór parte se dão

232

Page 267: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

sem cultivar a terra; e que as minas d'ouro de Tivar, de que dizem vai grande cantidade a Marrocos, são mui prósperas, e que os Montes Claros não são po- bres delas, mas que não se cavam; e que o ouro que vai das minas de S. Jorge cada ano era cousa tão grande que chegou a espantar os embaixadores do Malavar, quando D. Vasco da Gama os trouxe da Índia, que lhe mostrou o cofre dêle, de ua caravela que encontrou, o qual quando muito levava vinte mil cruzados em cadeas e manilhas e outras peças, que vultam muito; o qual ouro da Mina dizem fizera rico o reino, e que com êle se começaram as con- quistas dos lugares da África; e que el-rei D. João dera ao emperador Carlos V com sua irmã a impe- ratriz Dona Isabel novecentos mil cruzados em do- brões, tudo d'ouro da Mina e não em drogas da India; e para engrandecerem esta riqueza, trazem as fábulas das maçãs d'ouro do horto das Hespéri- das da costa de África, e outras cousas destas a que responderei brevemente.

Digo, senhores, assim: eu vos não nego que os rei- nos de África tenham tudo o que dizem, e quanto é necessário para a vida humana, sem haverem mister nenhua cousa dos vizinhos. A isto digo que tudo vem a redundar em pão e vaca, e que seja mais tudo o que quiserem, ouro, minas, e tudo quanto

i, Tivar; ou talvez Tinar? ii, vultam: avultam, importam. 18. As Hespérides eram as filhas de Atlas, encar-

regadas de guardar as maçãs d'ouro, que a Terra dera a Hera quando se casou com Zeus. Viviam junto do Monte Atlas, na África do Norte.

21-22, eu vos nego que os româos de Africa em A.

233

Page 268: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

pedirdes por bôca; e isto ^quem o havia de conquis- tar, e com que poder, se os romãos nunca puderam senhorear África, trabalhando nisso tantos anos com tantos exércitos poderosos? Cipião Africano ^porque

5 destruiu Cartago, senão pela não poder sustentar? Os emperadores de Roma e os de Alemanha, que são defensores da Igreja Romana, jcomo não aten- taram essa conquista, quando os mouros arábios se senhorearam de Africa e de tamanha cristandade,

io como por tôda ela havia, e com tantos bispados, cujos bispos sabemos que acudiam aos santos Con- cílios?

E icom que poder queriam êstes senhores que os nossos reis conquistassem tantas províncias e reinos,

15 e com que gente tão pouco exercitada na guerra, que nem Ga espingarda sabiam levar ao rosto, nem cavalgar em um cavalo, nem menear ua lança? jSe para alguns socorros, que quiseram mandar à ín- dia, algQas vezes para ajuntarem três mil homens,

20 tiravam das cadeas do reino até os que estavam sentenceados à morte! E alguas vezes que êsses . poucos lugares que tínhamos em África foram cer- cados de mouros, jcom que trabalhos e arreceos os mandastes socorrer!

25 Por certo que arriscada esteve Arzila, estando nela o conde do Redondo; porque perdeu a vila, e se encurralou no castelo, e sempre se perdera, se Deus lhe não levara acaso ali D. João de Meneses com

. ua armada. Dizei-me quanto vos custou socorrerdes 30 Mazagão? A fortaleza do Cabo de Guer não vo-la

tomaram? Não largastes Azamor e outras duas ou

7-8, intentaram em B. 31, Zamor em A.

234.

Page 269: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

três fortalezas, que na costa de África tínheis? E essas que sustentais inda hoje, não estiveram arris- cadas ao mesmo? Na Mámora não esteve perdida toda a potência e fidalguia dêste reino, estando to-

5 das estas cidades à borda d'água, onde lhe podiam os socorros desembarcar dentro em casa?

jQue trabalhos dera ao reino, se tivera cidades e fortalezas pelo sertão dentro! Por certo que lhe não saberiam dar remédio; quanto mais que me haveis

10 de dizer: jcom que poder queriam êsses senhores que se conquistasse tamanho império, como o da África, se vimos el-rei D. Afonso V, com o maior que Portugal podia dar de si, desbaratado e perdi- do, e ir pedir socorro a França? Dez mil homens,

15 vinte mil homens, que passam a África, jque hão de fazer ou quem os há de sustentar? Cousa é de que se podem rir os homens.

0 Trazem por exemplo que já chegámos a pôr as lanças nas portas de Marrocos: isso é um assalto

20 repentino, chegar e fugir. 1 Não vos lembra, senhores,* verdes desbaratados aqueles dous valerosos capitães

, Nuno Fernandes d'Ataide e D. João de Meneses com a melhor fidalguia do reino, capitães tão expe- rimentados, que não sei se houve outros que lhes

25 aventejassem d'então para cá? Os nossos reis pas- sados, primeiro que mandassem descobrir a índia, não lançariam suas contas? Pois muito primeiro ti-

2, sustentais na India hoje em B. 3, Mámora, praça forte do norte de Africa (Mar-

rocos), conquistada em 1515 pelos portugueses e perdida em t520.

5, à borda de Goa em B.

2J5

Page 270: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

nham posto as mãos no descobrimento da costa de África, e na fundação e tomada das fortalezas, que naquelas partes temos; e se lhe fôsse melhor con- quistar África que a índia, (Como haviam de come-

5 ter ua jornada tão duvidosa? ^Não sabemos que na- quele tempo tinham capitães de muito conselho, com que haviam de comunicar primeiro êste negó- cio, e que haviam de medir as fôrças do reino com as de África? E sabemos também que, depois de

io muito praticado êste negócio, desenganados da con- quista de África, cometeram a da índia, na qual Deus Nosso Senhor lhe fez tantas mercês, como sa- bemos.

E se quiserem inda insistir em sua opinião os que 15 vituperam o descobrimento da índia, perguntar-lhe-

-ei que, se isso não fôra de tanto mais proveito que a conquista de África, vituperando e aniquilan- do as drogas da índia, ^como cometeram os Reis Ca- tólicos, e depois o emperador Carlos V, o descobri-

do mento das Malucas, sôbre que tantos desgostos ti- veram com os nossos reis, sendo tantas vezes pri- mos, cunhados e parentes, não tendo aquelas ilhas mais que cravo, noz e maça, sendo mui pobres de todas as mais cousas, e tanto, que de farinha de ár-

25 vores se sustentam? E para as senhorearem, man- daram descobrir novos estreitos por meio de um vassalo perturbador e alevantado contra o seu rei.

4-6, como haviam de comunicar em B. Falta pois um trecho.

23, maça: especiaria das Molucas, flor da noz mos- cada.

26-27. Êste vassalo perturbador é Fernão de Maga- lhães. O patriotismo dos historiadores portugueses não perdoou ao grande navegador ir servir Castela.

236

Page 271: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

Pois se para isto faziam tanta diligência e houve tantas guerras e despesas, £que fizeram por aquele grande Império da índia, tão rico, que vos não saberei dizer de cem partes ua? jQue mór riqueza

5 quereis que o proveito das finas e curiosas roupas daquelas parte, das duas pescarias das fermosís- simas e riquíssimas pérolas da costa de Manar e ilha de Barém? Deixo outras muitas que há pela índia. jQuem vos poderá encarecer a riqueza dos

io mineiros da pedraria da ilha de Ceilão, rubins, olhos de gato, safiras, jacintos, robás, amatistas, e todas as mais sortes dela? jQuem não sabe a gran- deza das minas de finíssimos diamantes do reino de Bisnagá, donde cada dia e cada hora se tiram peças

13 do tamanho de um ovo pequeno, e muitas de ses- senta, setenta e oitenta mangelins?

Pois <que direi dos finos e preciosos rubins de Pegu, que houve muitos de muito grande valor, e que aqueles reis traziam furados polo meio e de-

20 pendurados nas orelhas por arrecadas; e -afirma- ram-me que de noite resplandeciam? Pudera dizer isto aquele admirável e riquíssimo ornamento, que el-rei D. Manuel mandou ao Santo Pontífice das pri- mícias da India, que espantou tanto mais que o

25 cofre da Mina ao Santo Colégio dos Cardeais, que se não atreveram a lhe pôr preço, avaliando-o em quatrocentos, quinhentos e seiscentos mil cruzados,

11, robás: pedra precisa de Ceilão. Em A: robus. 16, mangelim: pêso de diamantes com o valor apro-

ximado de um quilate. Em A: mangalim. 23, D João em A. Descuido de Couto ou do escriba.

Deverá tratar-se da embaixada de Tristão da Cunha.

237

Page 272: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

e alguns em mais? Pois o um só no mundo arreo del-rei D. Sebastião, cousa foi que admirou os príncipes e emperadores do mundo, tanto que todos os reis de Fez, Marrocos, Tetuão e os mais, não ti-

5 nham com que o poder comprar. Deixo as pedras particulares, que da índia vieram: a de D. Antão de Noronha, a de Francisco Barreto, a de D. António de Noronha, que está em poder do conde de Cas- cais, seu genro, e outras de setenta, oitenta mange-

10 lins, pelas quais se dava por cada ua setenta, oiten- ta mil pardaus; e assim se não achava rei e senhor na Europa que as pudesse comprar.

Pois ique vos direi das riquezas, que vossas mu- lheres e filhas, e que as rainhas da Europa trazem

75 em seus colares, cintos, braceletes, pendentes, anéis, botoaduras, guarnições e em todas as mais partes, que não tem estimação? Vieram-vos de Africa, ou da índia? Vamos às minas de ouro: ^quais do mundo chegam à quarta parte das que já disse de Mono-

20 motapa, e outras da Cafraria, das quais todos os anos saem para a índia duzentos mil maticais d'ouro, que são mais de quinhentos mil xerafins, afora mais de duzentos baares de marfim, que va- lem de redor de oitenta mil pardaus? E o que é mui-

25 to para admirar o mundo: que há bar de trinta den- tes, bar de vinte, bar de dez e bar de cinco e seis;

t. Entenda-se: «Pois o aderêço de jóias de D. Se- bastião, único no mundo». Em B: o um só no mundo, o reo deste nosso rei; reo: arreio, aderêço. O editor de B complica escusadamente o caso. Veja-se pág. 154 da edi- ção da Academia.

3. do mundo. Deixo em B. Falta um trecho. 21, maticais. O matical ou metical era um pêso de

oiro (75 grãos) e uma moeda equivalente a um cruzado.

238

Page 273: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRATICO

pela qual conta cuido que vem todos os anos daque- las partes ao redor de três mil dentes, para os quais era necessário morrerem cada ano mil e quinhentos elefantes.

5 Pois da China vos digo eu poder-se-ão carregar naus de pães de ouro de feição de batéis, que tem cada um ao redor de dous marcos; e assim valerá cada pão duzentos e oitenta pardaus, de que virão só- mente oitocentos cada ano, porque antes querem os

10 mercadores trazer sêda solta,peças de damasco, se- tins, tafetás de todas as côres, e outras muitas sor- tes de sêdas, ouro e prata de fio, porcelanas, e mui- tas e mui diferentes mercadorias, em que interes- sam muito.

15 Não falo na grande prosperidade das minas de Monancabo, na contra-costa de Malaca, donde é mui sabido que iam todos os anos a Malaca muitas em- barcações de remo carregadas d'ouro; e inda depois

* de nós entrarmos na Índia havia chetins, que são 20 mercadores, que não falavam senão por bares d'ou-

ro, que tem cada bar quatro quintais. E sôbre tôdas as grandezas se podem contar por mais admiráveis as de fias ilhas, que ficam ao nacente de Solor, onde temos fortaleza e fia grande cristandade, adminis-

25 trada pelos padres de S. Domingos, à qual ilha foi ter desgarrada fia embarcação com um português ou dous, e viram tamanha càntidade d'ouro, que pasmaram; porque as armas, à feição das nossas

6, pães: barras, com feitio de pães. 13-14, em que interessam muito: em que teem grandes

interesses, de que tiram grande proveito. 19, chetins: chatins, negociantes. Em A: chelins,

êrro de cópia.

239

Page 274: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

armilhas, os escudos, as azagaias era tudo d'ouro finíssimo; e, segundo presunção, ficam estas ilhas pegadas às de Salamão, que descobriu Álvaro de Mendanha, se não forem elas.

5 Pois jque vos direi da cidade de Barcelor, na costa Canará, que inda em tempo que a índia se des- cobriu, havia muitos chetins, que são mercadores, que falavam por candis de pagodes d'ouro, que é ua moeda como tremoços, que tem a figura do pa-

ro gode desta gentilidade, e vai cada um mais de qua- trocentos réis — e o candil é um quarteirão de trigo desta nossa terra? Deixemos a prata, que vem de Japão todos os anos na nossa nau do trato, que lá vai; que a carga dela toda se comuta por ela em

15 barras, e monta mais de um milhão d'ouro; e a que vem da Pérsia e de todos aqueles reinos do sertão à nossa fortaleza d'Ormuz a comprar todas as cou- sas, que da índia vão em dez e doze naus, que che- gam carregadas de drogas, roupas, águila, sândalo,

20 cânfora, porcelanas, e outras muitas sortes de cou- sas ricas, que todas se comutam por larips, por cavalos, por alcatifas, damascos, brocados e outras louçainhas.

cQue vos hei de dizer, senhores? Cansa o enten- 25 dimento em falar nas riquezas do Oriente. Se não

dizei-me: ^onde mandava el-rei Salamão suas arma- das a buscar ouro, e tôdas as mais cousas preciosas

1, armilhas: aim ilhas, colêtes que resguardavam o corpo.

4, Bendanha em A. 8. O candil valia meia tonelada.

19, águila: pau aromático do Oriente, ai, larins: moeda persa de prata, com valor de

60 a 100 réis.

240

Page 275: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

para o Templo? A Índia ou África? Pois por lá mais perto tinha aquelas províncias, e mais à mão que as da Índia para mandar buscar estas riquezas, se as lá houvera. E que conquistáramos êstes reinos, que

5 vos deram pão e vaca, como já disse; a mais a Ín- dia que vos dá, vós sabeis.

Deixemos os viso-reis e governadores, vamos aos capitães de Ormuz: tiram em três anos duzentos, trezentos mil pardaus; Sofala pouco menos; Malaca

10 cem mil, Dio, Chaúl setenta, oitenta mil; Baçaim, Damão trinta, corenta mil, e o mesmo Mombaça e

i. Em B, depois de «África» vem o seguinte tre- cho, que parece uma interpolação posterior: «Ê seguido entre os autores de melhor nota que da costa de África ia toda a imensa quantidade de ouro, que carregavam os navios, que Salomão mandava de Esiongaber, hoje cha- mado Suez, pôrto pertencente ao Grão-Turco, no Mar Rôxo (4. Reg. I, 22); e Moque conclue com outros que êste parecer se pode confirmaT com a autoridade dos Se- tenta Intérpretes, que traduzem Ofir por So fira (3. Reg. IX, 28). Como as liquidas se metem muitas vezes umas pelas outras, se pode coligir que saiam os navios desde Esiongaber ou Suez a Sofala, que, segundo os Setenta, não difere muito de Sofira. E Tomás Lopes com outros, na sua Viagem da índia diz que os habitantes de Sofala se louvam de ter livros do tempo de Salomão, e que os israelitas navegavam todos os três anos para estas par- tes, e que é delas que tiravam todo o ouro. Holsténio, sup. Ortélio, verbo Ophir, é do mesmo parecer, e diz que Ofir ou Sofir é o mesmo e não é grande corrupção a de tomar êste Sofir por Sofala, visto a sua riqueza e proxi- midade ao Mar Rôxo (Anton. Vitré, Tabul. sacr. geogr.. Dapper e outros)».

5-6, mas a índia que nos dá em B. 9, Sofala pertence à Africa, Mombaça é também

na mesma Costa em B. 10, oitenta mil, e o mesmo Mascate em B.

16 241

Page 276: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mascate; ua viagem de Japão setenta, oitenta mil pardaus cada ua. E a este respeito todos, todos os mais cargos da Índia. Mostrai-me onde poderiam tirar de África em três, em dez, nem em mais anos

5 tanto como da menor destas fortalezas? E se me disserdes, como dizeis, que nenhum dinheiro dêsse que vem da Índia se logra, e que neste reino há poucos morgados e casas feitas dêle, a isso vos res- ponderei que êles tiram das fortalezas tudo o que

io disse; e se o diabo lho leva pelos excessos que fazem, ique culpa vos tenho eu? Contentem-se êles com me- nos, cozer-lho-á o estômago; e não se queiram far- tar tanto, que se ponham a risco de vomitar.

Ora autorizemos estas riquezas da Índia mais: 15 lêde Arriano, autor grego; achareis que só os direi-

tos das fazendas da Índia, que lhe entravam pelo Estreito do Mar Rôxo, quando o Império do Egito era dos romãos, lhe montava sete ou oito milhões d'ouro; e ali achareis nomeadas todas as sortes de

20 roupas, drogas, pedraria, pérolas, e todas as mais louçainhas que iam do Oriente; e depois que aquele Império se perdeu, que veo a poder de Soldões, jque os sustentava e enriquecia, senão os mesmos direi- tos das fazendas da Índia?

25 E depois que nos fizemos senhores dela, e que lhe começámos a impedir o comércio que traziam por via do Mar Rôxo, o sintiram tanto, que Jogo

8, casas feitas lho leva pelos excessos em A. O es- criba deixou passar uma linha.

12, cozer: digerir. 15- Arriano, autor grego do século II, que escreveu

a história da expedição de Alexandre à Ásia. 22, Soldões: imperadores turcos.

242

Page 277: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

mandaram embaixadores ao Papa, a requerer-Ihe fizesse com os reis de Portugal que lhe não impedis- sem seu trato e romagem da casa do seu Mafamede, se não, que destruiria a Casa Santa de Jerusalém,

5 o Santo Sepulcro e todos os mais lugares sagrados. E assim o Soldão, que naquele tempo reinava, man- dou logo à Índia para lançar os nossos fora dela aquela soberba armada, de que foi por capitão-mór Mir-Hocém, a qual o valeroso capitão e viso-rei

io D. Francisco de Almeida destruiu na barra de Dio. E depois dos emperadores otomanos ganharem

aquele Império, j quanto trabalharam por nos deitar fora da Índia, para lhe ficar aquela navegação e rico comércio desimpedido? E assim em tempo do

15 governador Lopo Vaz de Sampaio ,:não despediu contra nós ua poderosa armada de galés, que todas se consumiram antes de saírem do Estreito do Mar Rôxo, polas diferenças que seus capitães tiveram en- tre si? Depois, ^não mandaram setenta e tantas ga-

20 lés, naus e galeões sôbre Dio, sendo Nuno da Cunha governador, que tôdas se recolheram desbaratadas, e com mais das duas partes da gente morta, sôbre terem por si todo o poder dos reis do Oriente, que os convocaram em nosso dano? Depois, Quantas vezes

25 mandaram outras armadas, que tôdas se lhe perde- ram, gastando nestas jornadas excessivas riquezas — porque os ciúmes que tinham das grandes da Ín- dia lhe fazia ter em pouco as despesas de seus tesouros?

30 Ora já que alguns reprovam esta conquista, praza

22, sôbre: a-pesar de. 27, das grandes: das grandes riquezas.

243

Page 278: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

a Deus que não intentem ainda os reis da Europa isto que vós vituperais; como já tentaram alguns por indústria de grandes pilotos, que se lhe oferece- ram a descobrir passagem por cima dos Lapones e

5 da Gótia e Norvégia, de longo da Costa Tartária irem a descobrir saída ao mar de Japão; pois o que tantos cobiçaram, e que vos compraram a pêso d'ouro, estimais tão pouco, que estais arrependidos de vos terdes penhorado em cousa tamanha!

ró Certo que os que isto estranham haviam de pôr os olhos que êste descobrimento foi mais por ordem divina que não por indústria humana, iQue entendi- mento era capaz de alcançar que dos últimos fins do Ponente se podia ir a descobrir o princípio do naci-

15 mento do Sol, sem haver notícia do caminho, nem a que parte haviam de navegar, sem estrolábio, carta de marear, nem outros estromentos náuticos, que depois se usaram? (Não está por isto logo bem en- tendido que Deus foi o piloto, e que êle guiou o

20 valeroso D. Vasco da Gama por um caminho, que, com hoje estar tão sabido e continuado, causa ta- manho terror e espanto? Com muita rezão podemos dizer neste negócio, que nos tirou Deus do Egito, e que nos trouxe à terra de promissão. (Que mais

25 bem-aventurada terra que aquela, em que não hou- ve nunca peste, fomes, frios, calmas, tudo tão tem- perado, que não há mais que desejar? Onde há esta felicidade? Êste vosso Egito em que estais, lembre- -vos quantos terremotos teve; inda achareis as ruí-

50 nas e sinais do grande estrago que fizeram; vêde quantas pestes cruelíssimas, que dua pancada só nesta cidade de Lisboa morreram dela sessenta mil pessoas; quantas fomes e misérias tendes padecido!

Na Índia os mais puros, excelentes ares do mun-

244

Page 279: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

o SOLDADO PRÁTICO

do, fructas, águas de fontes e rios, as melhores e mais salutíferas de tôda a terra, pão, cevada, todos os legumes, todas as hortaliças, gado grosso e miú- do, que pode sustentar o mundo, tudo o mais mara-

5 vilhoso; o peor que lá há, fomos nós, que fomos danar terra tão maravilhosa com nossas mentiras, falsidades, buíras, trapaças, cobiças, injustiças, e outros vícios que calo. Ora dou-vos que deixásseis de conquistar a India, e que vos metêsseis por essa

io África dentro. Se vos sucedera mal, e não viesse aquela conquista a efeito, jque seria de tantos infi- nitos homens, como tem passado a êste Estado? Por certo, que nos comeríamos cá uns a outros; e quando, por derradeiro remédio quisésseis descobrir

15 a Índia, jquem vos disse que daria Deus a outro o que tinha guardado para Vasco da Gama?

Se fizéreis resenha dos mimos que Nosso Senhor fez ao povo de Israel, quando o tirou do Egito, e dos que nos fez a nós na passagem daquela terra da

20 promissão da Índia, acharemos que os nossos foram muito aventejados. Aqueles guiava-os de dia, cober- tos de nuvens contra a aspereza do sol, e de noite com luminárias celestes; o mantimento era orvalho do céu, aquele maná tão precioso, que lhe sabia a

25 tudo o que queriam; mas com estes mimos lhe deu outros trezentos mil descontos. Que móres? — que em jornada de pouco mais de duzentas léguas os trouxe corenta anos por desertos intratáveis, por ca- minhos perigosos, com sobressaltos de imigos, pelos

50 castigar com isso das ingratidões que usaram com o mesmo Deus, e o trocarem por um bezerro, a quem

3, horlalices em A.

245

Page 280: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

fizeram adoração, que a êle se devia; e assim os castigou por isso, que de seiscentos mil, que saíram do Egito (isto só de homens que podiam tomar ar- mas), só Josué e Caleb entraram na terra de pro-

5 missão. Nós os portugueses não assim, porque, como

Deus Nosso Senhor tinha determinado mandar dila- tar e prègar a sua santa lei por aquelas partes da India, e que os nossos fôssem os autores de cousa

io tamanha, que foi o mór mimo e mercê de todos os que fez aos filhos de Israel, abriu-lhe caminho por meo dêsse Oceano por distância de seis mil léguas e em seis meses de jornada, sem risco, nem perigo; porque as três naus que a isso foram, todas torna-

15 ram a êste reino. Pois ^como quereis que um Estado que Deus guardou para vós só, o deixeis a imigos de vossa fé, que vo-lo terão a fraqueza e pouquida- de? E poderão cuidar os gentios e mouros que o Deus que adoramos não tem poder para nos sustentar

20 nela, e que nós, desconfiados dêle, deixamos cousa tamanha e tão cobiçada de tantos reis e senhores do mundo.

Deixemos já as grandes riquezas que nos tem da do, as quais não tem estimação; o que mais pode-

25 mos estimar são as ocasiões que nos Deus TCosso Senhor deu naquelas partes, para, polas grandes e memoráveis vitórias que nelas alcançámos, virmos a ser tão temidos nelas e tão alevantados em fama entre tôdas as nações do mundo, que nos po-

50 dem ter muitas invejas. A muitos deu a Índia muitos haveres e riquezas; mui ricos homens foram de lá; mas em nenhua das histórias achareis feita memória dêstes, por muito alevantados que fôssem em san- gue e dignidades; e muitos vereis de mediano naci-

246

Page 281: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

O SOLDADO PRÁTICO

mento, sublimados nelas por seus feitos, que lhe podem ter grandes invejas os mais ricos do mundo.

Pois terra que vos deu tantas cousas, riquezas e honra, há a quem entre no pensamento que será bom largar-se? Não o creo, certo, senão se fôr no de algum infernal, imigo de todo o bem e honra. Por isso, senhores, não temos que falar neste negó- cio, que será caso contra a Divina Majestade, e po- der-nos-á castigar mui rijamente por largarmos ta- manha jurdição, como a Igreja Católica Apostólica Romana tem por todas aquelas partes; porque, se o rei por largarem ua fortaleza aos imigos, inda que se vejam sem remédio, mandou cortar a cabeça a seu capitão, e o há por alevantado e lhe confisca seus bens — jque fará a quem largar tanta forta- taleza, tamanha terra, tão grande cristandade? Por certo que os castigue até a quarta geração.

Não falo nisto mais, porque hei medo do céu; e assim dou também fim a êste discurso, e nós o faça- mos também a esta conversação, por ser já tarde; e as outras matérias ficarão para outro dia; e dêm- -me Vossas Mercês licença para me recolher.

24.7

Page 282: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

,

i

. .

'

.

.

'

.

.

..

-

.

Page 283: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

ÍNDICE

Página

PREFÁCIO ix-xxxn

Carta de Diogo do Couto ao Conde de Salinas x

Primeira Parte 3-133

Cena I 3 Cena II — Do modo que correm os despachos

das cousas da Índia no Reino; em que se tocam muitas cousas sôbre algíias desordens que nisso há ... 20

Cena III — De como os móres imigos que a fazenda do rei tem são os minis- tros; e de como na Índia se cum- prem mal os regimentos e man- dados del-rei; e trata de outras matérias 26

Cena IV — Dos modos que há de alvitres na India, e do dano e prejuízo que fazem 38

Cena V — Do segundo alvitre, que é contra os homens; e das desordens que se nêles cometem 43

Cena VI — Do terceiro alvitre, que é contra Deus, e de muitas cousas outras, em que os governadores são dis- solutos 55

Cena VII — Do quarto alvitre, que é contra todos; e que cousa são dividas velhas 68

Cena VIII — De como os veadores da fazenda, que vão às fortalezas do norte,, são muito desnecessários; e das desordens que se cometem na fa- zenda del-rei 81

249 17

Page 284: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

ÍNDICE

Página

Cena IX — Do que são soldos velhos; e do roubo que se faz a el-rei e às par- tes nêles; e do remédio que haverá pera se evitarem 87

Cena X — Em que se tocam alguas cousas dos Contos de Gôa e outras dife- rentes matérias 100

Segunda Parte I34-Í98

Cena I *34 Cena II M*

Cena III w 152 Cena IV 168 Cena V 180

Cena VI 193

Terceira Parte 199-247

Cena I *99 Cena II 212

Cena III 221 Cena IV 232

250

Page 285: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

CORRECÇÕES E ADITAMENTOS

Nota ao Prefácio. — A última hora encontrámos na Bi- blioteca Nacional de Lisboa um manuscrito de Couto (n.° 462), cujo verbete andava lamen- tàvelmente deslocado do catálogo do Fundo Geral. Ê o Tratado de tôdas as cousas sucedi- das ao valeroso capitão D. Vasco da Gama... no descobrimento e conquista dos mares e ter- ras do Oriente. Ê, em suma, a crónica dos fei- tos de Vasco da Gama e de seus filhos, enco- mendada a Couto pelo vice-rei D. Francisco da Gama e terminada em Gôa, a 16 de Novem- bro de 1599.

Pág. 1, 1. 17 — leia-se: o vir. Em B: o ver. » 17, ls. 5 e 25. Em A, lijongeiros, que é forma po-

pular, ocorrente em português clássico. » 94, 1. 29. Em A: aos tais soldados. » 178, 1. 20. Pròpriamente em A e B está Triumphe.

Talvez fôsse melhor manter a forma portu- guesa Triunfe.

» 215, 1. 6 e nota. A lição de A é pròpriamente xeri- niss.", que se deverá interpretar como «sere- níssimas».

» 225, 1. 7 — leia-se: «grandeza». » 234, 1. 27 — «se encurrilou» em A. » 238, 1. 19-20 — «Manamotapa» em A.

751

Page 286: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e
Page 287: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e
Page 288: DIOGO DO COUTO O SOLDADO PRÁTICO TEXTO …purl.pt/29284/4/hg-15827-v_PDF/hg-15827-v_PDF_24-C-R0150/hg-15827... · diogo do couto o soldado prÁtico texto restituÍdo, prefacio e

y ■ítr*»Tlln ">* ♦ '* vdjry o Tilri I v Tur *'// V* !' I' í»' I I i I A áíL

C'LAHí£Q? O

V- ;c

u/ /

t/ >

o *<" o k />

o >

X

tt > r

k

« A J. kl

\

-í \

i

\ rs

I>»5TKUEXE ccmstfuhu:

A

LIVRARIA SA DA COSTA]

EDITORA USBOAJ