Psicanálise,linguistica e analise do discurso

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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, dez. 2004 EDITORIAL F inal de ano geralmente é momento de avaliação e relançamento de projetos. Articular propostas que façam trabalhar questões fundamen- tais para a clínica psicanalítica e suas relações com a polis é uma das tarefas institucionais. Não deixa de ser uma arte, um artesanato singular (vale a redundância) buscar rigor sem cair no dogmatismo; ou mesmo estar aberto ao diálogo sem ceder a um ecletismo ecumênico. Este foi um dos norteamentos de nosso trabalho – vide o congresso sobre a Masculinidade. Assim, o retorno de algumas questões parece crucial para os psica- nalistas e suas instituições. Como entendemos hoje “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, ou mesmo “a linguagem é condição do inconsciente”? As invenções de Lacan: “lalangue”, “lingüisterie”, “disco-ours”, “sinthome” o que tentam dizer/expressar, (a)bordar? Este impossível Real que se enlaça às dimensões do Simbólico e Imaginário. Retomar conceitos é uma tentativa de responder aos interrogantes do trabalho cotidiano. Seu suporte e seus restos irredutíveis. A seção temática deste mês, que publica trabalhos oriundos da lin- güística e análise do discurso, antecipa uma parte da trajetória de nossos projetos: dar continuidade à formação e abrir espaço para a discussão clíni- ca. Afinal, o “retorno a Freud” foi alicerçado nos “encontros e desencontros” com o pensamento contemporâneo, onde a lingüística tem um lugar no míni- mo importante. Reabre-se um diálogo fundamental com grupos que tentam, a partir de suas formações específicas, pensar os efeitos provocados pela psicaná- lise em outros campos. O que, reciprocamente, reinterroga os psicanalistas; pois conceitos como sujeito, desejo e discurso são novamente impulsiona- dos a dizer algo da especificidade da psicanálise. Só para exemplificar: quando pensamos na especificidade do concei- to de discurso, somos enviados a uma estrutura lógica, um matema que se compõe de letras – S1, S2, a, S barrado – e lugares – agente, outro, produ- ção, verdade. Trabalhando com estes lugares e letras elaboramos o discurso do Mestre e chegamos ao discurso do Psicanalista, da Histérica e Universi- tário (há uma proposta de um quinto discurso – do Capitalista). O que nos interessa neste momento é pensar que a partir deles fazemos laço social

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, dez. 2004

EDITORIAL

Final de ano geralmente é momento de avaliação e relançamento deprojetos. Articular propostas que façam trabalhar questões fundamen-tais para a clínica psicanalítica e suas relações com a polis é uma

das tarefas institucionais. Não deixa de ser uma arte, um artesanato singular(vale a redundância) buscar rigor sem cair no dogmatismo; ou mesmo estaraberto ao diálogo sem ceder a um ecletismo ecumênico. Este foi um dosnorteamentos de nosso trabalho – vide o congresso sobre a Masculinidade.

Assim, o retorno de algumas questões parece crucial para os psica-nalistas e suas instituições. Como entendemos hoje “o inconsciente estáestruturado como uma linguagem”, ou mesmo “a linguagem é condição doinconsciente”? As invenções de Lacan: “lalangue”, “lingüisterie”, “disco-ours”,“sinthome” o que tentam dizer/expressar, (a)bordar? Este impossível Realque se enlaça às dimensões do Simbólico e Imaginário. Retomar conceitosé uma tentativa de responder aos interrogantes do trabalho cotidiano. Seusuporte e seus restos irredutíveis.

A seção temática deste mês, que publica trabalhos oriundos da lin-güística e análise do discurso, antecipa uma parte da trajetória de nossosprojetos: dar continuidade à formação e abrir espaço para a discussão clíni-ca. Afinal, o “retorno a Freud” foi alicerçado nos “encontros e desencontros”com o pensamento contemporâneo, onde a lingüística tem um lugar no míni-mo importante.

Reabre-se um diálogo fundamental com grupos que tentam, a partirde suas formações específicas, pensar os efeitos provocados pela psicaná-lise em outros campos. O que, reciprocamente, reinterroga os psicanalistas;pois conceitos como sujeito, desejo e discurso são novamente impulsiona-dos a dizer algo da especificidade da psicanálise.

Só para exemplificar: quando pensamos na especificidade do concei-to de discurso, somos enviados a uma estrutura lógica, um matema que secompõe de letras – S1, S2, a, S barrado – e lugares – agente, outro, produ-ção, verdade. Trabalhando com estes lugares e letras elaboramos o discursodo Mestre e chegamos ao discurso do Psicanalista, da Histérica e Universi-tário (há uma proposta de um quinto discurso – do Capitalista). O que nosinteressa neste momento é pensar que a partir deles fazemos laço social

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NOTÍCIAS

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O coquetel de comemoração dos 15 anos da APPOA será no dia 17de dezembro, às 21 horas, em nossa sede.

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MUDANÇA DE TELEFONE

Giovana Cavalcante Serafini comunica seu novo número de celular:8403.2384.

ERRATA

Informamos que, no Correio anterior, “Psicanálise – clínica e conceitos”,n° 130, de novembro de 2004, a resenha “Quando Nietzsche chorou”, na página68, foi escrita por Maria Helena Guaragni.

entre analistas e, apostamos, com outros para que possamos sustentar apsicanálise.

Autorizar-se e autorizar a psicanálise a sustentar-se como a práticade uma ética não é pouca coisa nos dias de hoje. Mas não fugimos daresponsabilidade que isto implica; pois sabemos que interior e exterior fa-zem parte da mesma superfície, o que os diferencia é uma pequena torçãonuma fita de Moebius.

Boas Festas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

A LINGÜÍSTICA DE FERDINAND DE SAUSSURE,A PSICANÁLISE DE JACQUES LACAN.

O QUE PODE UMA DIZER À OUTRA?

Valdir do Nascimento Flores1

Este texto repousa sobre duas idéias, de certa forma contidas já notítulo, que devem ser vistas, à moda de um a priori, como condiçãode leitura do que vai ser proposto: a primeira, decorrente da certeza

de que há algo a ser dito a respeito das relações entre as duas disciplinas,considera que lingüística e psicanálise podem, sim, ser postas em diálogo.A segunda idéia, menos determinativa, é derivada do uso de pode no título ecoloca em suspenso os efeitos desse diálogo. Nesse último caso cabe per-guntar: o diálogo entre lingüística e psicanálise leva à aproximação ou aodistanciamento das duas áreas? Ou ainda: a quem serve este diálogo? Aoslingüistas? Aos psicanalistas?

“A seguir, serão expostas e avaliadas sucessivamente as duasidéias. Vale lembrar, isso será feito do ponto de vista que eu meautorizo, qual seja, o do lingüista, mais precisamente o de umlingüsta que busca enfatizar na linguagem os aspectos relati-vos à enunciação” (cf. Benveniste: 1988; 1989).

Em linhas gerais, o raciocínio que farei é mais o de avaliar em quetermos as relações entre lingüística e psicanálise podem se dar do que,propriamente, estabelecer formas de articulação entre tais domínios teóri-cos. O caminho que seguirei é: a) partir de um ponto comum às duas áreas;para b) avaliar as especificidades de cada área relativamente a este ponto.Desse prisma, acredito que o campo da linguagem é o denominador comuma partir do qual é possível desencadear a discussão.

Escolhida a linguagem como o campo a partir do qual lingüística epsicanálise se aproximam, é necessário que sejam feitos alguns recortes

1 Professor do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Nesse número do Correio optamos pela ampliação de nosso terreno,agrupando textos escritos a partir de filiações/formações distintas,mas guardando um parentesco próximo. O leitor irá perceber que há

uma espécie de cisão na composição de nossa seção temática: temos umaprimeira parte dedicada à lingüística, mais propriamente às contribuições deautores como Saussure, Benveniste, Jakobson e outros, e uma segundaparte, dedicada à temática da análise do discurso.

Os trabalhos aqui reunidos trazem em si o esforço presente em umainterlocução marcada por diferenças conceituais importantes e até mesmocontraditórias. Será discutida a noção de sujeito presente na lingüística, napsicanálise e na análise do discurso, o conceito de língua, de linguagem ede interpretação, entre outros.

Na tentativa de traçar articulações possíveis entre o que nos aproximae o que nos afasta, os textos se dedicam à instauração de balizas e demar-cações de territórios com o intuito de que, através desse diálogo, possamosir avançando nas discussões.

* Esta seção temática foi organizada por Fernanda Breda com colaboração de EduardoMendes Ribeiro e Luiza Surreaux.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Como já se deve ter percebido, a psicanálise convocada é a de JacquesLacan na releitura que faz do texto freudiano. Ora, que a linguagem é umcampo de fundamental interesse para a psicanálise já o atesta Lacan notítulo do Discurso de Roma, Função e campo da fala e da linguagem empsicanálise. Nesse sentido, não é demais perguntar: Saussure e Lacan fa-lam da mesma coisa quando usam o termo linguagem?

De um lado, tem-se Saussure que, no Curso, rejeita o estudo da lin-guagem devido à sua natureza “multiforme e heteróclita” (CLG, p. 17). Deoutro lado, tem-se Lacan que concebe sob o rótulo de linguagem algo quenão poderia ser resumido na definição que Saussure dá do termo. A lingua-gem com que Lacan está preocupado é aquela como a qual o inconscienteestá estruturado. Saussure, por sua vez, está preocupado em dar algumacientificidade à lingüística e faz isso elegendo a língua como o objeto do qualse deve dar uma descrição pautada pela noções de sistema e valor.

Em outras palavras, para Lacan, a linguagem é realmente um campono qual o sintoma pode ser admitido na dimensão que tem de constituiçãodo sujeito e que só pode ser tomado “...por inteiro numa análise linguajeira,por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagemcuja fala deve ser libertada.” (Lacan , 1998: p.270). Acresce-se a isso a nãomenos contundente afirmação de Lacan, no Seminário 20, mais ainda, deque “meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não édo campo da lingüística” (1993: p. 25). Para Saussure, a linguagem cumpreoutra função, qual seja, a de permitir acesso ao objeto língua o qual possibi-lita que a “lingüística como ciência seja possível” (cf. Milner: 1987, p. 32),pois entre linguagem e língua há que se fazer a distinção entre as “coisas emsi” e os “fenômenos”.

Em um primeiro momento, então, pode-se dizer que entre lingüísticae psicanálise nada mais há que meras homonímias. Realmente, há palavrasque têm largo uso de um lado e de outro, sem que possam recobrir o mesmoobjeto. São exemplos, além de linguagem, as palavras enunciado, enunciação,significante, fala, sentido, sujeito etc. Portanto, poder-se-ia dizer que tudoindica que as relações entre lingüística e psicanálise não passam de aparên-cia e o equívoco em pretender articulá-las ou aproximá-las é produto de uma

dentro das próprias áreas. A lingüística que me interessa nessa discussão éaquela que tem origem em Ferdinand de Saussure, em especial, a partir dapublicação do Curso de Lingüística Geral (1975) e que conheceu o seu de-senvolvimento nas magistrais reflexões de Roman Jakobson e Émile Benveniste.Acrescento a isso que chamo de Saussure do Curso2 algo que, na falta dedenominação melhor, evocarei pela designação de “os outros saussures” quereúne os trechos presentes nos “Escritos de lingüística geral” (2004) – organi-zados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler3 – e “Os Anagramas”– organizados por Jean Starobinski4 em “As palavras sob as palavras: osanagramas de Ferdinand de Saussure” (1974). O conjunto das três referênci-as pode ser entendido como o sistema de pensamento de Saussure.

Com essas referências à lingüística é possível fazer três observaçõesque encaminham uma forma de tratamento do tema deste texto. A primeiradiz respeito à especificidade epistemológica da lingüística aqui convocada:interessa ao diálogo com a psicanálise apenas a lingüística a qual seconvencionou chamar de estrutural. A segunda leva em consideração o fatode que, tal como apresentei o sistema de pensamento de Saussure, não setrata aqui de recuperar a leitura que Lacan fez de Saussure, pois, se Lacanera conhecedor do Curso e dos Anagramas, não se pode dizer que ele co-nheceu os Escritos . A terceira observação, decorrente da anterior, consideraque, na atualidade, se lingüística e psicanálise podem dizer algo uma à outraisso será bem mais produtivo se, do lado da lingüística, o pensamento deSaussure for contemplado na sua máxima abrangência. Parece-me que omesmo poderia ser aplicado à obra lacaniana.

2 O Curso de lingüística geral é sabidamente obra póstuma, datada de 1916, produzida pordiscípulos de Saussure a partir de notas de alunos, registradas por ocasião dos três cursosproferidos na Universidadede Genebra entre os anos 1907-1911. Ao assinalar a diferençaentre o Saussure do Curso dos demais saussures quero marcar algo que, ao meu ver,instaura um gesto singular de leitura: o Curso não foi escrito por Sassure ao contrário dosdemais textos.3 Obra que reúne um “conjunto de manuscritos descobertos na estufa do hotel genebrino dafamília de Saussure e depositados na Biblioteca pública e universitária de Genebra” (p. 16).4 Obra publicada a partir de cadernos distribuídos em oitos caixas que se estão na Bibliotecada Universidade Pública de Genebra.

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sintoma, as formações do inconsciente, enfim, todos têm estrutura seme-lhante à da língua e que, por isso, não se pense que são estruturados pelalíngua, mas como a língua. Ou seja, todos podem ser vistos como movimen-tos de condensação e deslocamento; metáfora e metonímia; paradigma esintagma. Nunca é demais lembrar, no entanto, que este próprio da língua,em Lacan, supõe um sujeito radicalmente dividido.

Em minha opinião, somente isso bastaria para se acreditar que lin-güística e psicanálise podem constituir um terreno comum de reflexão: alinguagem deveria ser tomada, desde sempre e em ambas a áreas, em seuaspecto estrutural. Evidentemente, esse campo comum não serviria a algumobjetivo que procurasse, do lado da lingüística, o estudo do sentido em ter-mos de interpretação conteudística, o que seria típico de uma semânticacondenada ao descrédito. Da mesma forma, do lado da psicanálise, nadaautorizaria ver na lingüística uma metodologia qualquer que, descolada dacena transferencial própria à clínica psicanalítica, produzisse uma ingênuacorrespondência entre as categorias da gramática e a história do sujeito,clivado que é.

Isso posto, resta, ainda, perguntar: sem querer abordar o debateepistemológico que seguramente decorre da formulação que propus em tor-no da estrutura em psicanálise e em lingüística, quais aspectos de ambasas áreas poderiam ser repensados a partir do que foi exposto? Em outraspalavras por que conceber estrutura e sujeito juntos produziria um diálogoprofícuo entre lingüística e psicanálise? Tratarei, a seguir, apenas do que dizrespeito à lingüística, já que no que tange à psicanálise o que foi dito acimaparece-me suficiente para ilustrar os reflexos da lingüística na psicanálise.Penso que Lacan ainda é o melhor exemplo para disso falar, ou como dizJuranville “...é preciso sublinhar, ainda que isso custe aos lingüistas, a con-tinuidade da análise lacaniana em relação à teoria de Saussure...” (1987: p.46).

A lingüística ao se constituir como ciência produz um real que éirredutível a ela mesma, mas que não constitui uma nova lógica, pois ele éinerente à lógica da língua. O estatuto de cientificidade da lingüística, aomesmo tempo que permite a garantia de unidade e de identidade, produz

homonímia não avaliada rigorosamente por alguns teóricos de ambos oslados.

Adianto que não comungo dessa opinião. Existe, sim, a possibilidadede refletir em torno das duas áreas, desde o ponto de vista de um elementocomum. Talvez a questão tenha que ser formulada não em termos de condi-ções de articulação entre lingüística e psicanálise, mas retomando a noçãoque é tão cara às duas áreas: a estrutura. É isso que Lacan preconiza aodizer que

“... a referência à lingüística nos introduzirá no método que, aodistinguir as estruturações sincrônicas das estruturaçõesdiacrônicas da linguagem, pode permitir-nos compreender me-lhor o valor diferente que nossa linguagem assume na interpre-tação das resistências e da transferência, ou então diferenciaros efeitos típicos do recalque e a estrutura do mito individual naneurose obsessiva” (Lacan, 1998: p. 299).

A noção de estrutura sofreu inúmeras leituras no século XX, oscilandoentre abordagens formalistas, a exemplo dos Prolegômenos de LouisHjelmslev; abordagens funcionais, como faz Jakobson, abordagensenunciativas, como em Benveniste, entre outras. Em todas, porém, o princí-pio da estrutura enquanto um aspecto relacional em que a unidade não pré-existe ao sistema é conservado. Isso parece não escapar a Lacan.

Em Função e campo, Lacan retoma três livros fundantes de Freud: Ainterpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e O chiste e suarelação com o inconsciente. Essa retomada é pautada por uma referênciaaos processos de metáfora e metonímia – estudados por R. Jakobson, quan-do de seus estudos sobre as afasias – associando-os aos movimentos decondensação e deslocamento referidos por Freud para falar da linguagemonírica. Ora, é sabido que os mecanismos aplicados por Jakobson ao estu-do das afasias são derivados das noções de sintagma e paradigma presen-tes no Curso de Saussure.

Desse modo, é possível dizer que interessa a Lacan aquilo que, emoutras palavras, pode ser considerado o próprio da língua, na concepçãosaussuriana, isto é, o seu aspecto estrutural. O sonho, o chiste, o lapso, o

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5 A lingüística da enunciação não restrita a uma categoria unitária cujo papel seria o de darlugar a um sujeito, mas uma lingüística da enunciação de toda a língua, que supõe sujeito namultiplicidade dos sentidos no uso, em minha opinião, é bem o que se pode derivar da teoriade Émile Benveniste, mesmo que o próprio não tenha aceitado todas as decorrências da suabrilhante descoberta: o aparelho formal da enunciação.

que inclui o sujeito e sua fala e, por ela, a singularidade do que diz e do comodiz. Essa lingüística não é desautorizada pelo pensamento de Saussure. Alingüística da enunciação atenta à psicanálise diz bem isso: para além deuma categoria lingüística unitária (como os dêiticos, por exemplo), o sujeitoocupa (ou seria melhor dizer habita?) toda a linguagem, multiplicando senti-dos5. A lingüística da enunciação, tal como aqui a supus, estudaria taismeios desde um lugar que os referisse à clivagem estrutural do sujeito.

Para concluir, eu resumiria tudo da seguinte forma, propositadamenteambígua: é hora de a ciência da língua supor que é de um homem falandoque se trata sempre.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENVENISTE, Emile. Problemas de lingüística geral I. Pontes, São Paulo, 1988._____. Problemas de lingüística geral II. Pontes, São Paulo, 1989.FLORES, Valdir. Lingüística e psicanálise: princípios de uma semântica da

enunciação. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1999.JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Cultrix: São paulo, 1995.LACAN, Jacques. Escritos. J. Zahar Ed.: Rio de Janeiro, 1998._____. O seminário- livro 20: mais, ainda. J. Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1985.MILNER, Jean- Claude. O amor da língua. Artes Médicas: Porto Alegre, 1987.SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Cultrix: São paulo, 1975._____. Escritos de lingüística geral: Cultrix: São Paulo, 2004.STAROBINSKI, Jean. As palavrassob as palavras os anagramas de Ferdinand de

Saussure. Ed. Perspectiva, Rio de Janeiro, 1974.SHÄFFER, Margareth; FLORES, Valdir; BARBISAN, Leci (orgs.). Aventuras do sen-

tido: psicanálise e lingüística. EDIPUCRS: Porto Alegre, 2002.

uma substância que se opõe à forma. Sobre essa substância, que excede aforma da qual fala Saussure ao dizer que a “língua é forma e não substância”,a lingüística nada diz. De certa maneira, a ciência recalca o que nela nãocabe, a saber, o inconsciente. E assim foi desde sempre, pois uma língua,enquanto objeto da ciência, somente é possível de ter existência porquedintingüível, porque idêntica a ela mesma, porque isomórfica.

Essa operação de recalcamento atende à demanda de que a lingüís-tica possa emitir princípios universalizantes sobre a língua. O ponto de basta(point-de-capiton) da lingüística seria, então, o sujeito da enunciação, aqueleque operaria uma espécie de subversão da isomorfia da relação significante/significado. Eis o ponto que subverte a lógica da imanência: o sujeito. Se alingüística quiser dele falar, não poderá desconhecer a sua clivagem estrutu-ral.

É exatamente neste ponto que vislumbro a pertinência de se conside-rar o que designei acima como o sistema de pensamento de Saussure. OsEscritos de Saussure parecem não confirmar as exclusões operadas peloCurso. No mínimo, podemos ver nos Escritos a relativização de dicotomiascomo língua/ fala. Nos Anagramas, o que está em questão é o signo lingüísticotomado em sua linearidade e arbitrariedade. O anagrama não é nem linear,nem arbitrário. Ou ainda, não é absolutamente certo que Saussure tenhaexcluído a fala de suas investigações, entendendo-se fala, neste contexto,como atividade de linguagem que supõe sujeito.

É por esse viés que vejo a produtividade das relações entre lingüísticae psicanálise na atualidade, qual seja, a de construção de outro objeto depesquisa. Por esse caminho, a psicanálise apresenta à lingüística os meiosde incluir a falha no seu (da lingüística) objeto, a falha que desde sempreestá posta por Saussure: a não-linearidade do anagrama, a não-oposiçãolíngua/fala, etc.

Essa lingüística que inclui a “falha”, por sua vez, é também uma escu-ta do singular, a exemplo da escuta operada pela psicanálise. Eis o campoonde se desfazem as meras homonímias: o da enunciação. É neste campo,o da singularidade da fala do sujeito, que lingüística e psicanálise podemjuntas atuar. Trata-se agora de uma lingüística da enunciação, lingüística

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Benveniste pode ser considerado instaurador de uma terceira posi-ção, uma vez que sua lingüística da enunciação, ainda que tributária doestruturalismo, não negligencia o que, na linguagem, é da ordem da comple-xidade. Em suas célebres formulações sobre a subjetividade na linguagem,incluídas na análise do sistema pronominal, encontram-se elementosindicativos de que aí se desenvolve um pensamento sobre a linguagem quesubverte ambas as tendências em que se organizam os estudos lingüísticos.Seu sistema teórico, porque contempla isso que se produziu como um restono ato de inscrição da lingüística no campo da ciência, representa um lugarde encontro privilegiado entre lingüística e psicanálise.

Para ilustrar esse ponto de vista, refiro brevemente, a seguir, aspectos dateoria benvenistiana, valendo-me das interpretações de Flores (1999) e Dufour(2000) dos textos de Benveniste que mais interessam à enunciação, aqueles quecompõem o conjunto nomeado como “O Homem na Língua”. Esses autores desfa-zem pelo menos dois equívocos já cristalizados no meio acadêmico: o de queBenveniste reproduziu, por outra via, as dicotomias atribuídas a Saussure; e o deque subjaz à teoria benvenistiana uma concepção psicológica da subjetividade.

É bastante difundida a idéia de que, para estudar a enunciação,Benveniste propõe uma série de dicotomias: separa forma e sentido, língua ediscurso, semiótico e semântico, pessoa e não-pessoa, referência à instân-cia de discurso e referência a uma situação objetiva. Com efeito, esse modode entender as formulações de Benveniste sustenta-se no próprio texto doautor, desde que nos deixemos levar pelas aparências.

Nos artigos em que trata da forma e do sentido na linguagem (1989),ele defende a idéia de que é preciso ultrapassar a noção saussuriana designo como princípio único, do qual dependeriam simultaneamente a estru-tura e o funcionamento da língua. Propõe que não se veja o signo saussurianocomo princípio único, pois há um outro nível de análise que exige seu próprioaparelho conceitual: o nível do discurso. Nesses textos, concebe a línguacomo comportando dois domínios distintos, o semiótico e o semântico, cadaum deles exigindo seu próprio aparelho conceptual.

Nos textos de 1956 e 1958 (1988), Benveniste dedica-se ao estudo doque os gramáticos chamam de pronomes, demonstrando que eles não po-

UMA LINGÜÍSTICA SOBREO QUE NÃO PÔDE SE DIZER: BENVENISTE

Marlene Teixeira1

Algo não pôde ser dito para que a lingüística tivesse lugar entre ossaberes, conforme a um ideal de ciência em que os fenômenos pre-cisam ser destituídos de suas qualidades intrínsecas para fazerem-

se objeto de investigação. A clivagem língua/fala, atribuída ao Saussure doCurso de Lingüística Geral (1916), é o ponto crucial que polariza o debateentre os lingüistas. De um lado, há os que enfatizam, acima de tudo, adescrição/elaboração de modelos formais, eliminando aquilo que os embara-ça, o Homem; e, de outro, os que promovem a abertura do objeto língua paraa diversidade concreta. Esses pontos de vista extremos encontram hoje opo-sição: o primeiro por não levar em conta a complexidade da linguagem; osegundo por diluir o objeto língua como “ordem própria” em proveito do social(Authier-Revuz, 1998).

Uma outra posição pode ser delineada pelo reconhecimento de que ésobre o que a lingüística colocou como limite insuperável para o saber quedesejava instituir que se edificam os discursos e os sistemas simbólicoshumanos. Como bem observa Flores (1999), os elementos que não puderamser ditos no gesto de fundação da lingüística como ciência a ele retornam,pois só ali têm existência, isto é: isso que exorbita a constituição da lingüís-tica está contido, em ausência, em seu próprio objeto.

Pensar na possibilidade de abrir os estudos lingüísticos ao diálogocom outros saberes, sobretudo, com a psicanálise, é ter, então, que abrir a“caixa preta” em que está aprisionado aquilo que o estruturalismo precisourecalcar para se constituir, ou seja, arrombar o “cofre” do grande movimentointelectual francês para captar o que não entrou no campo da cientificidade eque fez falta (Dufour, 2000), o sujeito.

1 Professora no Curso de Mestrado em Lingüística Aplicada e no Curso de Letras (UNISINOS)

TEIXEIRA, M. Uma lingüística sobre...

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SEÇÃO TEMÁTICA

Benveniste (1988) define o eu por um axioma unário – É “ego” que dizego – dando a escutar uma “gagueira”2, já que falta a ele uma explicação.Em quando Benveniste diz É “ego” que diz ego, não dá nenhuma definiçãoconceitual, mas indica uma operação que poderá produzir seus efeitos. Talenunciado coloca para o leitor um limite, que o obriga a “colocar de si”, a sedeixar “trabalhar pelo enigma” e até mesmo a produzir novos.

Além disso, Benveniste fornece uma definição negativa do eu segun-do um conjunto de três termos: eu não é nem tu, nem ele. É necessário umconjunto de três para a constituição do um. A definição de língua e de sujeitoem sua teoria faz-se, então, por um conjunto de três termos, irredutíveis unsaos outros.

Essa interpretação indica a existência de uma “trindade natural”imanente ao ato de falar. Qualquer pessoa que fale, põe em ato uma figuratrinitária. A propriedade trina é “muito banal e muito evidente”. Dela cada serfalante não cessa de fazer a experiência imediata. No centro de nossa reali-zação mais imediata como ser falante, encontram-se os três termos eu, tu,ele. Para apreender a propriedade trina, basta evocar o espaço comum atoda espécie falante, a conversação: eu diz a tu histórias que obtém d’ele(Dufour, 2000). Esse dado, ao mesmo tempo trivial e fundamental, determinaa condição do homem na língua. É por essa singular relação de três que “alíngua se precipita em discurso”.

Depois de haver formulado o conjunto trinitário dos pronomes pesso-ais, Benveniste cliva sua definição em dois subconjuntos binários: por umlado, analisa a díade formada pelo par eu e tu; em seguida, opõe eu e tu aele. A primeira díade é o lugar da relação da comunicação intersubjetiva,mas, para que dois estejam aqui e agora co-presentes, é necessário que umoutro esteja lá, ausente, pois nenhum espaço de simbolização é possívelsem uma demarcação de ausência. Não se está mais diante de uma díade,

2 Dufour utiliza o termo “gagueira” para nomear expressões tautológicas produzidas porautores muito ilustres do estruturalismo, ou seja, enunciados que não se organizam segun-do uma relação diferencial entre dois termos, nem repousam sobre uma relação causal, mascontêm uma dobradura interna.

dem ser considerados como constituindo uma classe homogênea, pois, devi-do à sua natureza, nem à mesma classe pertencem. Reparte-os, então, emdois grupos: eu e tu constituem a categoria de pessoa; ele é não-pessoa.

Eu é o indivíduo que enuncia a presente instância de discurso quecontém a instância lingüística eu; (...) tu é o indivíduo alocutado na presenteinstância de discurso contendo a instância lingüística tu; (...) ele predica oprocesso de não importa quem ou não importa o que, exceto a própria ins-tância, podendo sempre esse não importa quem não importa o que ser mu-nido de uma referência objetiva.

A não-pessoa pertence ao semiótico, linguagem enquanto sistema designos; a categoria de pessoa, ao semântico, linguagem assumida pelo indi-víduo e manifesta em instâncias de discurso.

Em todos esses textos, Benveniste parece contrapor “realidade obje-tiva” (domínio objetivo) X “realidade subjetiva” (instância de discurso). A im-pressão é a de que ele não abre via de comunicação entre o que é da línguae o que é do discurso, situando o que se refere à língua/discurso na esferasubjetiva, sob a vigilância de eu-tu, e o que se refere à língua-sistema naesfera não-subjetiva, sob a guarda do ele (Bressan, 2003).

As aparências, contudo, enganam. O pensamento de Benveniste nãooferece explicações perfeitas, a que nada se possa acrescentar. No dizer deDufour (2000), “em lugar da explicação, encontramos uma implicação, umadobra do pensamento que nunca deixa de suscitar o espanto e a desorienta-ção: o pensamento parece reservar-se no momento em que se exprime”.Essa dobra é fundamentalmente o lugar de um “insaber”, que nos obriga alidar com um certo luto da explicação. É isso que faz seu pensamento vivo edesconcertante, sempre enigmático e aberto à interferência de quem dele seaproxima recusando roteiros de leitura já automatizados. Ler Benveniste, édeixar-se trabalhar pelo mistério.

Mais recentemente, a idéia de que a trindade está desde sempre ins-talada na teoria benvenistiana vem ganhando corpo. Essa releitura contrariaa interpretação de que Benveniste constitui um modelo de dois termos fun-dado na oposição estrutural eu, tu / ele. Para sustentá-la, é preciso exami-nar o modo como o eu é concebido na lingüística da enunciação.

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SEÇÃO TEMÁTICA

cai” quando o leitor se encontra em condições de suportar o non-sense.A dobra não produz nenhuma significação acabada, mas é a revela-

ção de uma verdade que faz furo e, portanto, convoca o inesperado. Sendoassim, a teoria de Benveniste está longe dessa idéia de ciência harmoniosa,mito da modernidade, onde a ignorância, a angústia, a inibição ou o sintomanão encontram lugar. Fica o convite a quem aí quiser abrir outras trilhas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer.Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.

________. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elemen-tos para uma abordagem do outro no discurso. In: ___. Entre a transparênciae a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS,2004. p. 11-80.

BENVENISTE Émile. Princípios de lingüística geral I. Campinas, SP: Pontes, 1988.________. Princípios de lingüística geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989.BRESSAN, Nílvia Thaís Weigert. A tríade enunciativa: um estudo sobre a não-

pessoa na teoria de Émile Benveniste. Dissertação de Mestrado orientadapor Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduaçãoem Letras, UFRGS, 2003.

DUFOUR, Dany-Robert. Os mistérios da trindade. Rio de Janeiro: Companhia deFreud, 2000.

FLORES, Valdir. Lingüística e psicanálise: princípios de uma semântica daenunciação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

TEIXEIRA, Marlene. Análise de discurso e psicanálise. Elementos para uma abor-dagem do sentido no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

mas de uma nova relação, impossível de decompor em relações diádicas: atríade eu-tu/ele. Ele designa o que não está aqui e agora quando eu e tufalam. Sendo aquele que não está, ele se refere, portanto, à ausência, umaausência re-presentada no campo da presença.

Deixando-se trabalhar pelo enigma contido na afirmação de Benvenistede que “ele” “pode ser uma infinidade de sujeitos ou nenhum”, pode-se con-cordar com Dufour que vislumbra aí uma ausência radical, da ordem doirrepresentável. Assim considerada, a teoria benvenistiana permite falar nãoapenas de uma heterogeneidade re-presentada (ele sem barra), mas de umaheterogeneidade radical (ele barrado)3.

Benveniste foi um dos raros a empreender uma descrição sistemáticado singular dispositivo intralingüístico pelo qual a língua é posta em ato: osistema de pronomes. Seu estudo associa a reflexão epistemológica aodetalhe das análises empíricas, incidindo sobre questões concretas einsofismáveis, a respeito das quais levantam-se problemas de base paraquem quer que pense sobre a linguagem.

Os textos de “O Homem na Língua” fundamentam, assim, toda umareflexão sobre o sujeito que hoje tem sido a preocupação fundamental dasciências humanas. Qualquer tipo de análise política, psicanalítica ousemiológica não pode abstrair da noção fundamental de sujeito, intimamenteligada ao conceito de discurso, e Benveniste, ao considerar o processo deinstituição subjetiva na linguagem, revela a vocação transdisciplinar da lin-güística da enunciação, abrindo-a ao diálogo. Se a lingüística moderna sepa-rou vida e ciência, Benveniste veio juntá-las.

Para finalizar, gostaria de assinalar que este texto não visa chegar aum sentido que obture e estabeleça um quadro referencial estático e seguroregulador da leitura do texto de Benveniste. Por não trazer a palavra toda, alingüística da enunciação implica um compartilhar com o outro. Ou seja, elase deixa trabalhar pelo sujeito que lê, “fisga, inquieta e provoca” esse leitor,convocado a produzir provas para sustentar um “lugar que balança e só não

3 O que está em Authier-Revuz (1998, 2004) por outra via.

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Jakobson com Lévi-Strauss, na École Libre, e depois com Lacan (em 1950),influencia de forma impactante o estruturalismo francês2.

De certa maneira, além de contextualizar esse lingüista tão caro àpsicanálise, o que busco esboçar aqui, é uma forma de discutir a dicotomianormal/patológico reinterpretando, mesmo que ainda em linhas gerais, asrelações, de um lado, entre o patológico e o poético, e, de outro lado, entrea estrutura da linguagem e as manifestações linguageiras que se caracteri-zam pela subversão da linguagem. Parece que podemos considerar, semtemer o equívoco fácil, que tanto o patológico como o poético, encontramabrigo na estrutura da linguagem. Isso é plenamente derivável do raciocíniode Jakobson.

A SUBVERSÃO DA LINGUAGEM NAS AFASIASNo conhecido trabalho Dois aspectos da linguagem e dois tipos de

afasia, Jakobson, ao abordar o duplo caráter da linguagem, destaca que falarimplica seleção de entidades lingüísticas e sua combinação em unidadeslingüísticas do mais alto grau de complexidade. No entanto, o autor adverteque a seleção que o falante realiza não é de modo algum livre. Ela deverá serrealizada a partir do repertório lexical que aquele que fala e aquele que rece-be possuem em comum. Nessa concepção, o falante é um usuário, não umcriador de palavras (exceto nos casos de neologismos).

Em relação ao funcionamento da linguagem, o autor aponta dois mo-dos de arranjo do signo lingüístico:

– Combinação: todo signo é composto de signos constituintes e/ouaparece em combinação com outros signos. Qualquer unidade lingüísticaserve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou en-contra seu contexto em uma unidade lingüística complexa.

– Seleção: uma seleção entre termos alternativos implica a possibili-dade de substituir um pelo outro.

2 A obra de Dosse resgata um testemunho desses encontros e registra os efeitos dessesnomes na história do estruturalismo.

EFEITO PATOLÓGICO/EFEITO ARTÍSTICO:JAKOBSON, DA AFASIA À POÉTICA

Luiza Milano Surreaux

Roman Osipovich Jakobson nasceu em Moscou em 1896 e já aos 19anos inaugurou sua inscrição na cultura, fazendo parte da fundaçãodo Círculo Lingüístico de Moscou. Esse é apenas o início de uma

trajetória que situa Jakobson como um dos grandes pensadores da lingüísti-ca moderna. Como destaca François Dosse (1993), reconstituir o itineráriode Jakobson equivale a seguir as voltas e desvios do paradigma estruturalis-ta1 nascente, em sua escala internacional.

Em 1926, exilado na Tchecoslováquia, torna-se um dos fundadores doCírculo Lingüístico de Praga, no interior do qual surge sua fecunda pesquisaem fonologia estrutural, juntamente com Troubetzkoy. No ambiente persecu-tório da Segunda Guerra, migra para a Escandinávia, onde aproveita a vastaliteratura médica e realiza um mergulho nas pesquisas de neurologia e psi-quiatria. Daí resultam seus ensaios sobre a linguagem infantil e a afasia.

Novamente em função da guerra vai para Nova York, onde, na ÉcoleLibre des Haute Études, assiste às aulas de Lévi-Strauss sobre parentesco,ao passo que Lévi-Strauss acompanha suas aulas sobre som e sentido. Edesse laço surgirão articulações fundamentais de um mesmo movimento emétodo – o estruturalismo. É no interior dessa reflexão que Jakobson retomados seus trabalhos em fonologia a noção de significação e incorpora-a àlingüística como primado essencial. Será também já na maturidade de suatrajetória que falará das “leis universais da linguagem” nas quais prioriza oaspecto descritivo das línguas e detalha sua estrutura interna. O encontro de

1 Jakobson utiliza pela primeira vez a expressão “estruturalismo”, ao apresentar seus estu-dos em fonologia no recém formado Círculo Lingüístico de Praga, reconhecendo sua filiaçãoao trabalho de Ferdinand de Saussure.

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SEÇÃO TEMÁTICA

– Eixo Sintagmático: combinação, contexto, contigüidade – PóloMetonímico

– Eixo Paradigmático (ou associativo): seleção, similaridade, substi-tuição – Pólo Metafórico

O funcionamento da linguagem pode ser expresso no entrecruzamentodo eixo paradigmático com o eixo sintagmático. Algumas vezes, percebe-mos a predominância de um pólo sobre o outro, como é o caso da predomi-nância da metáfora na poesia, da metonímia na prosa, embora o próprioJakobson faça a advertência: “na poesia em que a similaridade está sobre-posta à contigüidade, toda metonímia é ligeiramente metafórica e toda metá-fora tem um matiz metonímico” (1969: 149).

Jakobson faz ainda uma analogia dos processos de funcionamento dalinguagem com o texto A Interpretação dos Sonhos de Freud. Ele aproximaa figura da metáfora à noção de condensação freudiana e a figura da metonímiaà idéia de deslocamento proposto por Freud na análise dos sonhos. Lacanrelê as noções de condensação e deslocamento em Freud a partir dos pólosmetafórico e metonímico de Jakobson que, por sua vez, constituem umaleitura das relações paradigmáticas e sintagmáticas de Saussure.

A SUBVERSÃO DA LINGUAGEM NA FUNÇÃO POÉTICAJakobson aponta que a função poética não está somente na poesia,

com isso, oferece a possibilidade de expandirmos essa reflexão para quese possa extrair desse eixo articulador conseqüências sobre a fala cotidia-na.

A função poética, então, estando presente na linguagem cotidiana efazendo parte como aspecto básico de todo ato de comunicação verbal,mobiliza os dois modos fundantes de arranjo no comportamento verbal, quaissejam, a metáfora e a metonímia.

Toda metonímia implica uma metáfora. O efeito de sentido provocadona relação entre os elementos presentes numa cadeia de fala é evidenciadona linha metonímica. Porém, é nesse desenrolar do fio metonímico que oinusitado pode brotar. É necessária a metonímia como pano de fundo paraque se possa produzir algo novo e criativo – a metáfora. Ao mesmo tempo,

Enquanto o mecanismo de seleção implica substituição, o mecanis-mo de combinação implica contigüidade.

Após explicitar os dois aspectos do funcionamento da linguagem– a seleção e a combinação – Jakobson passa a articulá-los a partir desintomas lingüísticos de sujeitos afásicos. Segundo o autor, na afasia, háuma das capacidades que é principalmente afetada. Vejamos brevemen-te a caracterização dos distúrbios afásicos, segundo a classificação deJakobson.

– Distúrbio da similaridade (eixo da substituição, seleção):Na afasia de similaridade, os elementos principais da frase, como o

sujeito, tendem a ser omitidos, o que é conhecido como quadro de anomia.Há para esse afásico nítidas dificuldades metalingüísticas. A mesma palavranão poderia significar coisas diferentes para ele. Ele terá também dificuldadede enunciar objetos. Ao referir-se a um “lápis”, por exemplo, na impossibili-dade de enunciar o nome, dirá que “serve para escrever”. Na restrição dealternativas metafóricas, esse sujeito utilizará a via da contigüidade para seexpressar. Seu recurso para falar será, portanto, a metonímia.

– Distúrbio de contigüidade (eixo das combinações, contextura):Nesse tipo de distúrbio ocorre a deterioração da capacidade de com-

binar entidades lingüísticas mais simples em unidades mais complexas.Perdem-se as regras sintáticas o que degenera a frase e resulta em umquadro chamado de agramatismo. Desaparecem as palavras dotadas de fun-ções puramente gramaticais, os conectivos (conjunções, preposições, pro-nomes, artigos), gerando uma fala em estilo telegráfico. Na limitação dorecurso metonímico, não podendo recorrer à combinação entre elementos, opaciente enuncia por similaridade, utilizando a via da metáfora.

Após analisar a caracterização dos dois tipos de afasia, Jakobsonexpande sua reflexão para o funcionamento da linguagem do sujeito, inde-pendentemente da ocorrência de algum distúrbio de fala. Propõe, então, ospólos metafórico e metonímico como processos através dos quais movimen-ta-se a linguagem. Segundo o autor, por influências culturais, de personali-dade ou de estilo verbal ora um, ora outro pólo predomina.

Retomemos os dois eixos da linguagem, com seus respectivos pólos.

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A poesia e a afasia abalam, subvertem a ordem da linguagem, seja naforma, seja no sentido, ou em ambos. Se na poesia o efeito da subversão éartístico, o que produz o sujeito que ao falar falha? Além de produzir um“efeito de fala patológica” sua singular subversão da linguagem deveria pro-duzir um interrogante naquele que a escuta.

Há entre essas duas manifestações de linguagem uma diferença fun-damental. Enquanto a poesia traz consigo um efeito artístico, o sintoma delinguagem apresenta algo da ordem do sofrimento. A subversão presente nosintoma de linguagem tem como especificidade causar dificuldades ou im-pedimento para o sujeito se comunicar com seus pares.

* * *Ao pôr em evidência importantes articuladores teóricos da obra de

Jakobson, como os dois pólos do funcionamento lingüístico (metáfora emetonímia), as particularidades da função poética e o funcionamento sinto-mático da linguagem nas afasias, percebo entre eles pontos em comum. Nomeu ponto de vista, é justamente da articulação destes elementos tão carosa Jakobson que resulta uma concepção teórica de linguagem. Uma concep-ção estruturalista, sem dúvidas, mas um estruturalismo que comporta omovimento (ou que considera o funcionamento na estrutura). Uma concep-ção de língua que reúne ao funcionamento metafórico e metonímico a possi-bilidade de subversão através da fala. Uma perspectiva da lingüística quepermite pensar que tanto na produção artística (poesia), como na produçãodesviante (afasia), o movimento da linguagem é que está em jogo.

Há um forte laço entre arte e ciência na obra de Jakobson. Ao estudar-mos a questão da função poética, esse laço torna-se ainda mais evidente.Certamente é desde os frutíferos encontros com escritores, poetas e teóri-cos no Círculo Lingüístico de Moscou e desde sua relação sempre muitoexpressiva com movimentos artísticos e culturais de vanguarda, que se podepensar a produção teórica de Jakobson. Sendo assim, quero apontar que aforma com que a reflexão sobre a poética é por ele realizada destaca-secomo sendo o momento em que o laço entre arte e ciência tem a expressãomaior. Jakobson mesmo encarrega-se de realizar a questão: “Que é que faz

diz-se que a metonímia é dependente da metáfora (já que a metonímia étambém um tipo de substituição).

Substituição e combinação são processos3, movimentos da lingua-gem que se articulam de modo semelhante às formações do inconsciente.Ou seja, encontramos na estruturação sintática, na “escolha” lexical querealizamos em nossa fala cotidiana, um movimento funcionalmente seme-lhante ao movimento estrutural que podemos observar no lapso, no chiste,no sonho, no ato falho e, conforme se está propondo aqui, também no sinto-ma de fala.

Jakobson destaca que o poeta Khlebinikov elogiava o potencial artísti-co de erros de impressão. De acordo com Khlebinikov, o caráter “acidental”do erro de impressão provoca um efeito poético imprevisível. Jakobson, aocomentar o efeito poético da obra de Khlebinikov, aponta:

“A palavra recebe por assim dizer uma nova característica fônica,a significação é abalada, a palavra é percebida como um co-nhecimento que tem subitamente um rosto desconhecido, oucomo um desconhecido em quem entrevemos algo de conheci-do” (Fragmentos da nova poesia russa, in Holenstein, 1979:144).

É inevitável realizar uma analogia entre o que diz Jakobson sobre aobra de Khlebinikov com o efeito que provoca, naquele que escuta, uma falacom “erro de impressão”, na qual o sujeito imprime seu jeito de estar nalinguagem.

O contraste entre efeito artístico e efeito patológico analisado porJakobson tanto na poesia como na afasia é um convite para pensarmos oslimites da questão do funcionamento da linguagem na “normalidade” e na“patologia”. Há especificidades numa e noutra situação? Como o próprioJakobson avisava já em seus primeiros estudos sobre a afasia, a reflexãoacerca da linguagem na afasia deve servir para que se pense antes de tudono funcionamento da linguagem.

3 É importante alertar que substituição não é sinônimo de metáfora, assim como combinaçãonão é sinônimo de metonímia.

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A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO NA ANÁLISE DODISCURSO E NA PSICANÁLISE: INTERSEÇÕES1

Marianne Stolzmann Mendes Ribeiro2

Aanálise do discurso (AD), segundo a definição de Orlandi (1983), éuma disciplina de entremeio; ela se faz na contradição da relaçãoentre as outras disciplinas, principalmente no campo da interseção

entre as Ciências Sociais e a Lingüística. Sua especificidade está, sobretu-do na leitura que faz sobre a noção de ideologia, conceito que atravessasuas formulações teóricas.

A Escola Francesa de Análise do Discurso (AD) tem em MichelPêcheux seu criador e expoente que, por volta da década de 60-70, redimen-sionou e procurou substituir a Análise de Conteúdo tradicional. A AD, aocontrário da Análise de Conteúdo, considera o texto como um monumento esua exterioridade como parte constitutiva da historicidade inscrita nele. Ouseja, visa menos a interpretação do discurso do que a compreensão do seuprocesso produtivo (Minayo, 1992).

Em seu quadro epistemológico, tentando trabalhar a linguagem sobdiferente enfoque, articula essencialmente três áreas do conhecimento: omaterialismo histórico (tendo como expoente às concepções de Althussersobre ideologia); a lingüística e a teoria do discurso, sendo estas três áreasatravessadas por uma teoria do sujeito oriunda da psicanálise.

É precisamente o entrecruzamento da AD com a psicanálise que meinteressa trabalhar neste texto, tentando balizar o que pertence a um campoteórico e a outro, e aquilo que faz interseção.

Pode-se, então, pensar a AD a partir da articulação de três correntesbásicas: materialismo histórico, lingüística e psicanálise. Esses três siste-

1 Texto originalmente publicado nas Coletâneas do Programa de Pós-Graduação em Educa-ção, vol. 5, n. 13, julho-agosto de 1997.

4 Dosse sugere uma excelente metáfora ao apresentar Roman Jakobson como o homem-orquestra!

de uma mensagem verbal uma obra de arte?”. A resposta não se dá comouma “camisa-de-força” que pareça fingir abraçar, com a frieza da teoria, abeleza do verso. Para o nosso “artista da ciência”, a poeticidade não consis-te em acrescentar ao discurso ornamentos retóricos. Ela implica, antes,uma total reavaliação do discurso e de todos os seus componentes, quais-quer que sejam. Essa abertura ao imprevisível, talvez seja a conseqüênciamais bela que tenha colocado Jakobson em posição de interlocução comquestões tão heterogêneas4 como a linguagem infantil, a afasia, a poesia, aantropologia, a psicanálise, entre tantas outras. Essa abertura para o efeitoimprevisível, mas analisável, da produção verbal parece-me a herança maisrica do legado de Roman Jakobson.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DOSSE, F. História do estruturalismo I – O campo do signo. São Paulo, Ensaio,1993.

HOLENSTEIN, E. Jakobson: o estruturalismo fenomenológico. Lisboa, EditorialVega, 1979.

JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969.______. Lingüística. Poética. Cinema. São Paulo, Perspectiva, 1970.______. A Escola Lingüística de Praga. In: TOLEDO, D. (org.). Círculo lingüístico

de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre, Globo, 1978.______. A transformação poética: o Círculo de Praga visto pelo Círculo de

Copenhage. In: TOLEDO, D. (org.). Círculo lingüístico de Praga: estruturalis-mo e semiologia. Porto Alegre, Globo, 1978.

JAKOBSON, R.; POMORSKA, K. Diálogos. São Paulo, Cultrix, 1985.

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SEÇÃO TEMÁTICA

INTERPRETAÇÃO NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

DeutungInterprétationInterpretation

“Intervenção do analista, que procura fazer surgir um novo sentido alémdo manifesto, apresentado por um sonho, um ato falho, ou até mesmo algu-ma parte do discurso do sujeito” (Chemama, 1995, p.109).

Este conceito é muito precioso para a psicanálise, principalmente noque tange a sua clínica. Entretanto, sofreu mudanças nas acepções de Freuda Lacan, ampliando, com esse último, o seu poder de alcance.

Para Freud, a interpretação constituía um dos modos mais fecundos deação do analista no tratamento, principalmente no que tange aos sonhos, lap-sos, atos falhos ou mesmo aos sintomas, ou seja, às formações do inconsci-ente. É através dessas formações que o inconsciente se revela e a interpreta-ção, então, desvelaria o sentido latente que está por detrás deste conteúdo.

Na própria obra freudiana, o conceito sofre modificações: do trabalhode trazer para o consciente as lembranças patogênicas recalcadas, para umtrabalho interpretativo mais espontâneo, segundo aquilo que os pacientesassociavam livremente.

Logo, desde o início, grande ênfase é dada às associações do sujeito,sem as quais nada a respeito do sonho pode-se dizer, entretanto, tendosempre em vista que a cultura e a língua possuem símbolos pelos quais ossujeitos estão atravessados, constituindo o seu tecido simbólico, o materialmesmo do sonho.

A psicanálise, muitas vezes, foi criticada e, paradoxalmente, mesmoreconhecida, através de um uso sistemático, linear da interpretação, “dandoao discurso e à ação uma significação sexual estereotipada” (Chemama,1995, p.110). Freud (1910) deu a isso o nome de psicanálise selvagem, temaque retomarei mais adiante.

É com Lacan, um releitor rigoroso e criativo de Freud, que temos umrelançar deste conceito e a possibilidade de um alcance maior. Com a

mas de pensamento, se é que se pode chamá-los assim, foram gerados nofinal do século passado, difundindo-se a partir do início desse século: o ma-terialismo histórico com Marx, a lingüística com Saussure e a psicanálisecom Freud. Cada um deles sofreu releituras importantes que modificaram eacrescentaram elementos fundamentais (de retomada), principalmente nadécada de 60-70, justamente na época do nascimento da AD, que tomoudessas disciplinas alguns de seus elementos fundamentais.

Ainda outro ponto em comum entre as duas disciplinas é a história dasua própria constituição e de seu desenvolvimento. Com isto me refiro à ADe à psicanálise francesas que tiveram um percurso de rupturas e reconfi-gurações, cada qual dentro de seus respectivos movimentos: “A história daconstituição da AD pode, talvez, ser vista como uma amostra da história dasciências dentro de um domínio, onde a ruptura é sempre lugar derecobrimentos. O que constituía a força da AD, enquanto acontecimento, eratambém o que a tornava insustentável. Era preciso, então, descompactificá-la” (Maldidier, 1992, p.24).

No materialismo histórico Althusser foi responsável por contribuiçõesimportantes trabalhando com o conceito de ideologia. Ideologia, para ele,tem por função interpelar os indivíduos como sujeitos; portanto, a AD conce-be o indivíduo assujeitado pela ideologia.

No contexto da lingüística, vários autores trouxeram suas contribui-ções após Saussure, dentre eles Benveniste, introduzindo a noção de subje-tividade, o que por sua vez foi modificado e ampliado, incorporando a noçãodo Outro como constitutivo do sujeito.

Entretanto, é com a psicanálise que me ocuparei neste texto, procu-rando fazer uma aproximação desta com a AD, aprofundando a questão dainterpretação, conceito tão caro a ambas as disciplinas.

Alguns trabalhos recentes acerca da AD já exploraram a questão doque esta disciplina toma de empréstimo da psicanálise (lacaniana), a fim deentender a questão do sujeito, enquanto produtor/produto do seu discurso. Oque me interessa precisamente neste trabalho é fazer, se possível, um para-lelo entre AD e psicanálise, tomando a questão da interpretação enquantoum interrogante a ambas as vertentes.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O real remete a ordem do impossível, do inapreensível, do resto. E,também, do equívoco. Para Pêcheux (1990), descrever supõe o real da lín-gua e toda descrição está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua:“Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamentedescritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontosde deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse lugar quepretende trabalhar a AD” (p.53). Ou, ainda, como coloca Authier-Revuz (1994),no texto Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio: “... – vontadee dever – de dizer, de nomear o inapreensível, o incompreensível, oimpensável, e, experimentando incessantemente que esse real escapa, dis-por-se não a ‘fixá-lo’ mas somente – de modo vital – ao ‘assim dizer’” (p.276).

INTERSEÇÕES...Algumas interseções teóricas são fundamentais de ser explicitadas

para se entender a questão da interpretação. Irei me deter um pouco naque-las que julgo pertinentes e de interesse teórico para este trabalho; alémdisso, são conceitos que embasam ambas as disciplinas, tanto a psicanáli-se como a AD.

Conforme anteriormente mencionado, a psicanálise e a AD possuemem comum concepções teóricas muito importantes e de inegável interessepara ambos os campos de estudo. Contudo, possuem especificidades pró-prias aos seus objetos de estudo que não podem ser desconsideradas, sobo risco de um reducionismo, o que só empobreceria uma possível aproxima-ção. Assim, julgo importante aprofundar a questão sobre a noção de sujeitosegundo cada disciplina. “No que se refere à questão do sujeito, pareceprocedente a articulação das concepções do materialismo histórico com asda psicanálise que a AD vem tentando fazer em suas pesquisas mais re-centes. Certamente não se vai procurar o ponto de encontro entre essasduas ciências numa identidade de objeto” (Swirski, 1996, p.44).

A concepção de sujeito advinda da psicanálise que a AD tomou deempréstimo, principalmente na sua última fase (Maldidier, 1992), apresentaalgumas particularidades, próprias a cada uma das disciplinas.

postulação lacaniana de que o inconsciente é estruturado como uma lingua-gem, a psicanálise mergulha em outros campos dos saberes, por estes éinfluenciada e os influencia. A linguagem, portanto, toma um lugar centralnas postulações de Lacan, advinda, inicialmente, da lingüística de Saussure(embora subvertida), com os conceitos de significante e significado.

Linguagem, então, polissêmica, remete a palavra a vários sentidosdiferentes. Para Lacan, é a instância da letra o que possibilita a polissemiado significante, tomando a palavra na sua homofonia e na sua diferença. “Ainterpretação, portanto, deve fazer valer, ou pelo menos deixar abertos osefeitos de sentido do significante” (Chemama, 1995, p.110). O conceito designificante, assim, torna-se essencial para se entender o conceito de sujei-to, visto ser este determinado e representado por tal.

INTERPRETAÇÃO NA PERSPECTIVADA ANÁLISE DO DISCURSO

Pêcheux (1990), em O discurso: estrutura ou acontecimento discutesobre o real para falar em interpretação. Por que traz justamente esse con-ceito? Qual a sua ligação com a interpretação?

Para ele: “Interrogar-se sobre a existência de um real próprio àsdisciplinas de interpretação exige que o não-logicamente-estável não sejaconsiderado a priori como um defeito, um simples furo no real” (Pêcheux,1990, p.43). Ou seja, “É supor que – entendendo-se o ‘real’ em vários sen-tidos – possa existir outro tipo de real diferente dos que acabam de serevocados, e também um outro tipo de saber, que não se reduz à ordem das‘coisas-a-saber’ ou a um tecido de tais coisas. Logo: um real constitutiva-mente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite, nãose aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos”(ibid., p.43).

Com isso, ele já aponta direções, na medida em que salienta que,para se pensar em interpretação, tem que se deixar algumas coisas emsuspenso, em aberto. Não há que se considerar elementos a priori, poisestes elementos só terão (farão) sentido na cadeia enunciativa (significante),no discurso produzido (historicamente).

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Acredito que é com Authier-Revuz (1994) que a AD vai avançar nestae em outras questões, quando esta autora introduz o conceito de falta nocampo do Outro, conceito este cunhado por Lacan, e que faz ecos dentrodas concepções da AD: “E é dessa falha em nomear, falha para dizer averdade que ‘não se diz toda porque as palavras faltam’ (Lacan) – que estru-turalmente se constitui o sujeito, em um irredutível desvio [écart] de si mes-mo, sujeito, pelo fato de que ele é faltante e, por conseqüência do que ele é,falho” (p. 253).

Authier-Revuz (1990) se refere a dois tipos de heterogeneidades nodiscurso: a mostrada e a constitutiva. As heterogeneidades do discurso vãodar conta de um sujeito que é atravessado por uma exterioridade que o cons-titui e produz aí a sua marca.

De Lacan, Authier-Revuz (1990) toma duas concepções básicas: ade uma fala fundamentalmente heterógena, ou seja, polifônica, e a de umsujeito dividido, onde se poderia perceber as “pontuações do inconsciente”na língua. “Esta concepção do discurso atravessado pelo inconsciente searticula àquela do sujeito que não é uma entidade homogênea exterior àlinguagem, mas o resultado de uma estrutura complexa, efeito da lingua-gem: sujeito descentrado, dividido, clivado, barrado...” ( p.28). A autora con-clui, então, que a exterioridade está no interior do sujeito: constitutivamente,no sujeito e no seu discurso, está o Outro – concepções do discurso, daideologia e do inconsciente.

Logo, para Authier-Revuz (1990), o sujeito não se constitui numa falahomogênea, visto que as marcas de um discurso remetem a uma alteridade(evocada ou implícita) que aponta para a heterogeneidade da fala, conseqü-ência de um sujeito dividido, ou seja, inserido no campo do Outro, marcadopelo desejo do Outro. Trabalha, então, o conceito de denegação que carac-teriza as formas marcadas da heterogeneidade mostrada como formas dodesconhecimento da heterogeneidade constitutiva:

“A presença do Outro emerge no discurso, com efeito, pre-cisamente nos pontos em que se insiste em quebrar a con-tinuidade, a homogeneidade fazendo vacilar o domínio dosujeito (ibid., p.33)”.

O sujeito, para a psicanálise, não é o indivíduo (biológico), mas pro-duto da linguagem enquanto efeito da relação entre significantes; na AD, oindivíduo se faz sujeito das condições histórico-ideológicas que preexistema sua existência singular (Teixeira, 1997). Logo, a ênfase, para a psicanáli-se, está colocada no lado do desconhecimento que o sujeito tem a respeitodo que fala, visto que ele é falado desde um outro lugar, que diz respeito ànoção de inconsciente.

Para a AD, a ênfase está no assujeitamento do sujeito frente às es-truturas de funcionamento da ideologia. Ou seja, o sujeito tem a ilusão deque é senhor do seu discurso, e não apenas um efeito, um produto deste.Logo, para a AD, a autonomia do sujeito é uma ilusão. Ele não é tido comoautônomo, senhor do seu discurso; ele não é unívoco. “Essa disciplina ori-enta-se, assim, na direção de uma teoria não subjetivista da subjetividade,em que noções de ideologia e inconsciente têm papel essencial” (Letras,1996).

Embora as duas concepções sejam diferentes, não penso que sejamparadoxais. Para a psicanálise, o sujeito não escapa ao primado do simbó-lico, enquanto que para a AD, segundo as concepções de Althusser, o sujei-to é sempre interpelado pela ideologia. Ou seja, em ambas postulações, osujeito tem o seu lugar inscrito ou pelo sistema de produção (Althusser) oupelas leis da cultura (Lacan) (Swirski, 1996).

Portanto é possível, ao meu ver, fazer uma aproximação da noção desujeito para a AD e para a psicanálise, relacionando-se inconsciente e ideo-logia: “Temos, por um lado, que o simbólico se impõe de fora ao homematravés da Metáfora Paterna, que o faz sujeito em conformidade com as leise normas da cultura. Por outro lado, as estruturas concretas do parentesco,ou seja, as funções específicas (paternidade, maternidade, infância), as vari-ações históricas destas estruturas estão sensivelmente afetadas pela ideo-logia. Se o homem não escapa à ordem da cultura, não escapa também àinterpelação ideológica” (Swirski, 1996).

Entretanto essa aproximação levanta outros questionamentos, peloslapsos deixados ao longo do caminho: onde se situa, para a AD, o sujeito dodesejo, visto que ele é histórica e ideologicamente determinado?

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mente o que eu reconheço no ‘Deslumbramento de Lol V. Stein’,onde Marguerithe Duras se revela saber, sem mim, o que euensino. É por isso que não estou desmerecendo seu gênio quan-do apóio minha crítica sobre a virtude de seus meios. Que aprática da letra converge com o uso do inconsciente, é tudo oque tenho a testemunhar lhe rendendo homenagem”.

Voltando ao texto O demônio da interpretação, creio que Chemama(1983) foi muito perspicaz, mas sobretudo, extremamente rigoroso em suasconsiderações a respeito da apropriação que uma leitura psicanalítica podefazer de um texto, evitando os reducionismos e um fechamento de sentido,ou seja, um sentido já concebido a priori. É, ao meu ver, também a posturaética da AD: “Em suma, interpretar, para os analistas de discurso, não éatribuir sentidos, mas expor-se à opacidade do texto (Pêcheux, 1990), ou,como tenho proposto (Orlandi, 1987), é compreender, ou seja, explicitar omodo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saberque o sentido sempre pode ser outro” (Orlandi, 1996, p.64).

Em seu texto, Chemama (1983) faz uma dura crítica ao que chama depsicanálise aplicada : “esse termo infeliz, que devemos a Freud, já diz bas-tante sobre a transposição, fora do campo de origem, de um saber já pronto”(p.4). Com isso, ele se refere a modelos interpretativos que procuram assignificações ocultas que o texto porventura traz, que a psicanálise entãoajudaria a desvelar, interpretando.

Essa leitura se aproxima da concepção da AD, na qual “... a interpre-tação é uma injunção. Face a qualquer objeto simbólico, o sujeito se encon-tra na necessidade de ‘dar’ sentido. O que é dar sentido? Para o sujeito quefala, é constituir sítios de significância (delimitar domínios), é tornar possí-veis gestos de interpretação” (Orlandi, 1996, p.64).

Segundo Orlandi (1994), “nas diferentes direções significativas queum texto pode tomar há, no entanto, um regime de necessidade que eleobedece. Não é verdade que o texto possa se desenvolver em qualquer dire-ção: há uma necessidade que rege um texto e que vem da relação com aexterioridade. Isto só pode ser compreendido se não pensarmos o texto emsua organização, mas o texto em sua ordem significante” (p.15).

O “MAL-ESTAR” NA INTERPRETAÇÃOEm O demônio da interpretação, Roland Chemama (1983) tece algu-

mas considerações muito interessantes e extremamente rigorosas sobre aquestão da interpretação em psicanálise. Embora seja um texto já antigo,considero-o ainda bastante atual e, ao meu ver, aproxima-se muito das con-cepções da análise do discurso.

Procurarei, a seguir, abordar a questão da interpretação sob o pontode vista da AD, fazendo um paralelo com a psicanálise, tendo comointerrogante (no sentido de provocação) o referido texto, devido à riqueza deconceitos e colocações ali contidos e, também, devido ao fato dele se apro-ximar, ao meu ver, da abordagem que busca a AD em suas leituras.

Como a psicanálise vê a questão da interpretação na literatura? Acre-dito que um vertente possível é a da ética, ou seja, do alcance e das possi-bilidades possíveis dessa prática, como tão bem nos aponta Chemama emseu texto.

Freud tomou a literatura como um lugar de engajamento teórico; ouseja, tomou-a como referência na sua produção conceitual, não enquantointerpretação literal, mas enquanto inspiração. Dito de outro modo, Freudbuscou na literatura instrumentos que o ajudassem nas suas descobertasclínicas. Isso não se deu pacificamente e, muitas vezes, foi duramente criti-cado.

Lacan, por seu lado, é mais explícito e, talvez, por isso mesmo, me-nos polêmico neste aspecto. A literatura está presente em toda a sua obra ese vale dela inúmeras vezes na elaboração de seus conceitos. Entretanto,assim como Freud, há uma preocupação ética da interpretação psicanalíticada literatura, da qual alguns psicanalistas infelizmente se esqueceram.

Cito um trecho de Lacan (1965), que, ao meu ver, coteja muito bem asua postura ética:

“... a única vantagem que um psicanalista tenha o direito detirar de sua posição, uma vez que lhe seja reconhecida comotal, é a de se lembrar, com Freud, que em sua matéria, o artistasempre o precede e que sendo assim, ele não tem porque ban-car o psicólogo ali onde o artista lhe abre caminho. É precisa-

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qualquer uma e não é igualmente distribuída na formação social” (Orlandi,1996, p.67). Logo, “o gesto de interpretação, fora da história, não é formula-ção (é fórmula), não é re-significação (é rearranjo)” (p.17). Portanto, tomarum sentido como unívoco, interpretar sem levar em consideração as condi-ções de produção do discurso, a historicidade da qual faz parte, nada mais édo que uma busca estéril e bastarda de um sentido que não é outra coisasenão um estilo reacionário e repressor.

E, para finalizar, a título de uma última interseção, uma frase deVolnovich, que ilustra, ao meu ver, uma desejável postura ética: “A teoriapsicanalítica demonstra que a maior liberdade do ser humano consiste emter a possibilidade de criar novos sentidos. Para isto é necessário, antes demais nada, assumir a história” (1991, p.76).

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BRANDÃO, Helena N. Introdução à análise do discurso. 3 ed. Campinas, SP:Editora da UNICAMP, 1994.

CHEMAMA, Roland (org.). Dicionário de psicanálise Larousse. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1995.

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LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerithe Duras pelo Deslumbramento deLol V. Stein. In: Petits écrits et conférences. 1965.

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MALDIDIER, Denise. A inquietude do discurso: um trajeto na história da análisedo discurso: o trabalho de Michel Pêcheux. 1992. (polígrafo discutido em salade aula).

Ou seja, não quer dizer que não se possa encontrar elementos numtexto que sejam passíveis de interpretação, mas que não se tome a prioriuma teoria, um sentido (o sentido) e, a partir disso, se busque decifrá-lo. Pois,interpretar não é simplesmente traduzir, visto que muitos sentidos escapame, outros tantos, são equívocos. “O sentido para a AD, não está já fixado apriori como essência das palavras, nem tampouco pode ser qualquer um: háa determinação histórica. Ainda um entremeio” (Orlandi, 1996, p.27).

Lacan, em suas postulações teóricas, retoma a concepção de umsujeito imerso na história, determinado socialmente em forma de indivíduo.Foi um autor sempre preocupado em salientar o sujeito enquanto imerso nacadeia significante, na história que o constitui e o determina. “A psicanálisecomo corpo teórico tem como objeto de estudo o sujeito na história, efeito daHistória e da Cultura” (Volnovich, 1991, p.51).

Logo, “o espaço da interpretação é o espaço do possível, de falta, doefeito metafórico, do equívoco, em suma: do trabalho da história e dosignificante, em outras palavras, do trabalho do sujeito” (Orlandi, 1996, p.22).

Estando o sujeito imerso na história e sendo por ela constituído, ossentidos que pode ele dar às coisas e a sua própria existência estão atraves-sados por estes significantes que o constituem e deixam aí as suas marcas.“Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na materialidade descritívelda seqüência, marca, do interior dessa materialidade, a insistência do outrocomo lei do espaço social e da memória histórica, logo como próprio princí-pio do real sócio-histórico” (Pêcheux, 1990, p.55).

O analista, conforme Chemama, “não está à procura de uma profundi-dade oculta do discurso” (1983, p.6). Ele busca tomar naquilo que escuta dodiscurso, o que faz corte, escansão. “Ele não irá buscar aí um sentido –profundo, essencial, único. Mas ele ficará atento ao próprio funcionamentoda escrita. A interpretação, se conservamos esse termo, não será umametalinguagem relacionando o discurso do escritor a um saber já constituí-do. Ele será corte, escansão operada sobre os traços da própria escrita, quepermite fazer sobressair aquilo que aí já se encontra”( p.6).

Para a AD, a interpretação “não é mero gesto de decodificação, deapreensão do sentido. Também não é livre de determinações. Ela não é

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ANÁLISE DE DISCURSO E PSICANÁLISE:UMA ESTRANHA INTIMIDADE

Maria Cristina Leandro Ferreira1

1. ABRINDO O JOGO

Deixo de início estampado/destampado o meu desconforto: falar dealgo tão próximo e também tão distante, tão íntimo e tão estranho,tão conhecido e, ao mesmo tempo, tão desconhecido... Mas – as-

sim mesmo – querer falar. O desejo, nesse caso, prevalece e me faz enfren-tar o desafio. Nada parece mais simples do que falar da própria área em quetrabalhamos, falar da própria casa e dos que nela habitam – e refiro-me aquià análise de discurso da chamada escola francesa. Nada mais natural e,também, nada mais delicado e arriscado. Afinal, temos a ilusão de conheceros vãos e os desvãos do nosso espaço, as aberturas e os esconderijos donosso abrigo, seus pontos fortes e suas bases mais frágeis. Temos, porisso, uma certa segurança de não nos perdermos nos caminhos de nossamorada... Além disso, conhecemos a vizinhança e as cercas que nos sepa-ram, sabemos até onde vai nosso terreno e onde começa o do outro. Algunsvizinhos são mais íntimos e nos tocam mais de perto; outros, ainda quepróximos, mantemos à distância, tratando-os com formalidade.

Mas o que fazer, então, quando esse ‘forasteiro’ mora dentro da nossacasa e dela insiste em não querer sair? O que fazer, afinal, com esse ‘estran-geiro’ que nos habita? Com esse outro que nos concerne?

Essas interrogações expressam nossa investida nesse trabalho eestabelecem os contornos de nossa investigação. É, pois, nesse territóriode estrangeiridade que habita a língua, o discurso e o sujeito, que pretende-mos penetrar, e como penetras, perscrutar seus mistérios e quiçá seus se-

1 Instituto de Letras/Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

MINAYO, Maria Cecília. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saú-de.

ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.Petrópolis: Vozes, 1996.

PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento . Campinas, SP: Pon-tes, 1990.

Sujeito do inconsciente e interdiscursividade: observações sobre a interseçãodos conceitos. Letras de hoje, Porto Alegre, v.32, n°1, P.89-102, março 1997.

TEIXEIRA, Marlene. O sujeito é o outro? Uma reflexão sobre o apelo de Pêcheuxà psicanálise. Letras de hoje, Porto Alegre, v.32, n°1, p.61-88, março 1997.

VOLNOVICH, Jorge. Lições introdutórias à psicanálise de crianças. Rio de Janei-ro: Relume-Dumará, 1991.

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A análise do discurso se define, desde sua concepção inicial, comouma disciplina que se constitui numa zona de interface, na fronteira entre osentido e o não-sentido; entre o possível e o impossível; entre a completudee a incompletude. A psicanálise, por sua vez, se situa também na fronteiraentre o consciente e o inconsciente; entre a lembrança e o esquecimento,entre o dito e o não-dito. As linhas demarcatórias entre as duas áreas assi-nalam o lugar do fim e também do início; ao mesmo tempo que fecham afronteira dos respectivos territórios, apontam para um começo, para umacontinuidade. Desse modo, início e fim de cada lado se confundem, se imbri-cam, se enlaçam.

2.1. OS MARCOS QUE DISTINGUEME INDISTINGUEM OS DOIS TERRITÓRIOS

Podemos dizer, ainda que com algum risco, que o campo da análisedo discurso é o dos sentidos; afinal, ela se apresenta como uma teoria ma-terialista dos sentidos. E, sendo campo dos sentidos, traz para junto de si epara dentro de seu terreno, portanto, a ideologia, os sujeitos, a língua e ahistória. Já o campo da psicanálise é o do inconsciente; ela é reconhecidacomo uma teoria do desejo. E, como tal, também convoca para seu âmbitoo sujeito desejante, o Outro e a linguagem. Muitos desses conceitos sãocomuns aos dois campos conceituais em exame. Contudo, o fato de circula-rem em ambos não os indistingue nem implica aproximações redutoras.Cada conceito fundante ao ser desterritorializado é ressignificado no novoespaço teórico, recebendo sentidos próprios e singulares.

Como via comum de acesso aos dois “países”, pensamos na FALTAcomo “passaporte”.E para tornar mais claro esse pensamento, convém quese ressalte o complexo e intrigante funcionamento paroxístico aí envolvido. Afalta é algo que nos completa pela ausência – é “a presença na ausência”, aque faz referência Lacan. E assim como é uma dimensão estruturante parao SUJEITO (sujeito ideológico e sujeito do inconsciente), ela se apresentaigualmente como constitutiva e condição de possibilidade para a LÍNGUA epara o DISCURSO. E isso vale tanto para um lado quanto para o outro; poressa via, portanto, os territórios se tocam. O caráter estruturante e constitutivo

gredos.2 Esperamos que essa estranha intimidade – entre Análise do Dis-curso e Psicanálise – que nos inquieta e intriga – nos indique também novosrumos, quem sabe novos atalhos, até então desconhecidos ou escondidos.

Mas para isso é preciso que abramos as portas e que demos passa-gem ao estrangeiro de dentro e de fora.

2. A MIGRAÇÃO ENTRE AS FRONTEIRASA análise do discurso nasceu em zona já povoada e tumultuada – de

um lado, numa esquina, ocupando quase todo o quarteirão – a lingüística; naoutra ponta, espaçoso, o materialismo histórico; e no meio, dividindo o espa-ço lado a lado com a psicanálise, a teoria do discurso. Portanto, essa conti-güidade, esse convívio fronteiriço entre análise do discurso e psicanálisevem de longe, vem desde o início. Tais vizinhas, contudo, ainda que bastantepróximas, guardam distância e não confundem seus espaços comuns – sãoíntimas, mas nem tanto, donde a “estranha intimidade”.

Essa circunstância especial de viver na fronteira, de estar na fronteira,torna seus habitantes mais sensíveis e abertos a conviver com as diferen-ças, a aprender a absorvê-las. Afinal, os ritos de passagem e o câmbioflutuante das condições fazem parte da dinâmica da fronteira. E tanto a aná-lise do discurso quanto a psicanálise gozam desse estatuto. É próprio tam-bém do fronteiriço estar exposto a desditas, enfrentar as agruras próprias dequem vive à margem, no limite, tendo que defender seu território, demarcá-loa cada nova investida do que vem de fora. A zona de fronteira é, assim, umespaço tenso, instável, contraditório ... e fecundo. Quem nela habita, desfru-ta de uma amplidão de horizontes e de uma maior ilusão de liberdade; liber-dade ilusória porque implica, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, um espa-ço a ser compartilhado com o outro, o estrangeiro.

2 “Esse estrangeiro que, desde sempre, vive em nossa casa, é o que há de mais exterior eíntimo, de mais estranho e familiar. Sendo o mais opaco, o mais escondido, é, ao mesmotempo, o mais estranho e o mais interior.” Souza, 1998, 156.

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O próprio Freud nos conduz aos bastidores da palavra unheimlich,desvelando suas entranhas, suas excentricidades e seu caráter paradoxal.E se detém numa análise detalhada, meticulosa e instigante sobre os váriossentidos que circulam em torno do termo e a surpreendente direção deambivalência que vai de heimlich (familiar) a unheimlich (não-familiar), fazen-do com que o significado das duas palavras – de início, em oposição – acabepor coincidir. Freud pretende ir além da relação do estranho com o novo e onão-familiar, daí voltar-se para outras línguas em busca de nuanças outraspara expressar o que é assustador. Em português, também, há várias ma-neiras de se referir à noção de unheimlich: estranho, sinistro, fantástico,perigoso, nefasto, incomum, excepcional, esquisito, misterioso são algu-mas delas. Note-se que a escolha de uma já determina um sentido próprio,diferente, que aponta para especificidades distintas em relação aos demaistermos.

É evidente que o que move Freud nessa investigação não é a riquezado aspecto lingüístico-semântico da palavra, mas um interesse psicanalíticopela categoria do estranho. A particularidade lingüística, no caso, viria ape-nas confirmar a série de casos individuais coligida por ele. Seu argumentogeral é o de que o estranho provém de algo familiar que foi reprimido e queretorna. A esse estranho que nos é familiar Freud denomina de inconsciente.Ou seja: nosso próprio inconsciente que criamos e alimentamos é também oque menos conhecemos, o mais sinistro. Essa “natureza secreta” do estra-nho, segundo Freud, nos faz compreender, então, por que o uso lingüísticoestendeu o sentido de das heimliche [homely (‘doméstico, familiar’)] para oseu oposto das unheimliche.

A psicanálise propõe o reconhecimento desse estranho em nós mes-mos como efeito de nossa própria constituição. Nesse sentido, o texto deFreud traz uma importante contribuição como uma forma de leitura da subje-tividade e estabelece uma estreita e rica relação com a Estética e, especial-mente, com a Literatura. Diz-nos Freud:

“O estranho, tal como é descrito na literatura, em histórias ecriações fictícias, merece na verdade uma exposição em sepa-rado. Acima de tudo, é um ramo muito mais fértil do que o

da falta e o seu efeito em cada um dos conceitos fundadores tornam-na lugarde possibilidade por excelência. Se não houvesse a FALTA, se o sujeitofosse pleno, se a língua fosse estável e fechada, se o discurso fosse homo-gêneo e completo, não haveria espaço por onde o sentido transbordar, desli-zar, desviar, ficar à deriva. É nessas frestas deixadas pelos limites, nosinterstícios que se formam entre as fronteiras, que vai existir um fértil e pro-dutivo campo de análise que pretendemos aqui explorar, dessa vez pelo viésdo estranhamento.3

3. O ESTRANHO QUE NOS HABITA“A experiência do estranho parece indicar um momento de rup-tura no tecido do mundo, essa teia de véus, imagens, sentidose fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos édado observar.” (Neusa Santos Souza, 1998, 157)

Pois é de estranhamento no tecido de dois mundos que pretendemosfalar: estranho lugar desde onde falamos – que nos é familiar e desconheci-do; estranhas noções que fundam as teorias envolvidas – que são comuns etambém específicas; estranhas relações – que insistem em manter distintosconceitos indissociáveis.

Para incursionar por esses caminhos quase sempre sombrios e nadaapaziguadores teremos que nos fazer acompanhar por alguns guias. Paranos introduzir na questão do estranhamento, suas particularidades e desdo-bramentos, vamos recorrer a Freud e a um texto seu, nodal nessa reflexão –“O estranho”, (1919); em espanhol, siniestro, em alemão unheimlich.4

3 Em outro trabalho (Ferreira, 2000), investigamos essas brechas pela dimensão do equívo-co, através do chiste, do humor e do jogo das palavras e brincadeiras com a língua noespaço da propaganda. Na opaca e resistente materialidade de certas construções, reco-lhidas no universo infantil e na publicidade, foi possível desvendar um pouco mais de pertoos deslocamentos e efeitos de sentido que subvertem o sistema, perturbando e surpreen-dendo sua própria estrutura significante.4 Agradeço a Simone Rickes pela indicação desse texto e também por outras tantas ‘pistas’no campo da psicanálise.

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p.157). O estranho seria assim, segundo a autora, esse enlace entre osregistros simbólico e real que, “num átimo, se nos apresenta no imaginário,lugar no qual tudo se representa, tudo vem à luz.”. No entanto, alerta a auto-ra, “o estranho se mostra aí despido das paramentas que dão consistência aeste registro, nudez esta responsável pelo caráter terrorífico, pela presençaangustiosa, marcas próprias do real como impossível de suportar.” (Ibidem,p.157).

Para a psicanálise, nas palavras de Nasio, para que uma coisa existaé preciso que haja um furo em algum lugar. O sujeito do inconsciente nasceprecisamente nesse furo, nesse lugar vazio, onde se ergue o obstáculo deuma impossibilidade.8 Estranho, inconsciente e furo reúnem-se aqui, nova-mente, como nós que se entrelaçam numa mesma tessitura.

No plano da análise do discurso, o estranho comparece fazendo furono tecido discursivo, como fio que se rompe, deixando irromper a falta, oburaco, o vazio do sentido, que clama por um sentido.

Chegamos aqui a um ponto de contato entre os vizinhos que passapelo efeito de estranhamento: tanto no campo da psicanálise quanto no daanálise do discurso, o estranho está sempre apontando para uma dimensãoda falta, para uma zona limite que beira o paradoxo. Por isso, indicamosessa dimensão lacunar como uma espécie de senha de acesso aos doissítios.

Sujeito e linguagem se apresentam como estruturas que comportamesse furo, o qual se manifesta pelo estranho, enquanto categoriadesencadeadora da ruptura. Linguagem, em Lacan, é o sistema que está emjogo como língua. Este sistema precede o sujeito e o condiciona. Há aquium ponto de aproximação entre o sujeito da psicanálise e o do discurso.Ambos são determinados e condicionados por uma estrutura, que tem comosingularidade o não-fechamento de suas fronteiras e a não-homogeneidadede seu território. Dessa forma, sujeito, linguagem e discurso poderiam serconcebidos como estruturas às quais se têm acesso pelas falhas. Esse

8 Cf. Nasio, 1993.

estranho na vida real, pois contém a totalidade deste último ealgo mais além disso, algo que não pode ser encontrado navida real (...) O escritor imaginativo tem, entre muitas outras, aliberdade de poder escolher o seu mundo de representação, demodo que este possa ou coincidir com as realidades que nossão familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser.”5

Importante ressaltar que a literatura, como objeto de interesse de Freud,não entra como mera ilustração da teoria, “mas constituindo, articulada como campo de saber psicanalítico, um caminho singular da interrogação deFreud.”, como esclarece Lucia Serrano Pereira6. Na opinião ainda dessaautora, Freud aproximou-se do texto literário, deixando-se interrogar, em al-guns momentos, pelos textos que traziam “não as costuras harmônicas,redondas, mas as ficções que apontavam os pontos de estranhamento, dasfraturas, do recalcado, do que ele encontrava, do outro lado, na experiênciade escuta/formulação recente do inconsciente”.(Ibidem, p.49)

Lacan, por sua vez, em sua releitura da produção freudiana, tambémnão ficou alheio à questão do estranho e seus efeitos. Chega mesmo, numfuncionamento tão a seu estilo, a inventar uma palavra – êxtimo, extimidade– para designar essa terra estranha interior, esse fora alijado pelo processodo recalque, que é o que habita de modo mais íntimo o sujeito, sua“exterioridade íntima”.

De acordo com Neusa Santos Souza, que examina a condição doestrangeiro em um belo artigo7, “extimidade” é o nome cunhado por Lacanpara designar, de uma maneira problemática, o real no simbólico. “É que osimbólico que nos concerne, o simbólico que organiza a experiência analíti-ca, abriga em sua estrutura uma heterogeneidade radical. É o real, o núcleoduro do real. No centro do dizer, habita o que não se pode dizer, no universofeito de palavras há um mundo onde palavra alguma jamais pisou.”(ibidem,

5 Freud, 1919, p.266.6 Pereira, 2003, p.17 Dissertação de mestrado em que analisa “Dom Casmurro”, de Machadode Assis, como um “narrador incerto, entre o estranho e o familiar”.7 Cf. Souza, 1998.

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Michel Pêcheux em artigo intitulado – “O estranho espelho da análisedo discurso” – penetra nesse terreno incerto e tenso da análise do discurso,em que a língua e a história, diz ele, encontram-se mutuamente sintoniza-das – e em choque. Ao tratar do estranho reconhecimento conquistado pro-gressivamente por uma área marginal, que põe o termo “análise do discurso”em circulação cada vez maior, Pêcheux12 vai definir alguns traços do parado-xo que cerca a disciplina, sobretudo na França, onde surgiu, nos anos 1968/1969.

“O paradoxo da análise do discurso está (por suas vicissitudes,guinadas e derrotas), na prática indissociável da reflexão críticaque ela exerce sobre si mesma, sob a pressão de duas deter-minações maiores: de um lado, a evolução problemática dasteorias lingüísticas; e, de outro, as transformações no campopolítico-histórico. São, portanto, dois estados de crise que seencontram no ponto crítico da análise do discurso.”

Com relação à psicanálise, podemos afirmar que também existe epersiste nos seus domínios um permanente estado de crise, alimentado, namaior parte das vezes, por um movimento interno derivado das múltiplascorrentes, linhas, escolas e tendências em constante enfrentamento. O campoda psicanálise apresenta-se assim como um campo minado, a exigir dosque nele se aventuram um cuidado extremo com o chão (teórico) onde pisame as alianças que estabelecem.

4. DEIXANDO O VIZINHO ENTRARDesde seus primeiros escritos, ainda como Thomas Herbert, há refe-

rências diretas à psicanálise, na obra de Michel Pêcheux, especialmente nomodo como ele constrói o objeto discurso, no engendramento entre a lin-güística – como ciência da linguagem –, do materialismo histórico – comociência das formações sociais – e da Psicanálise, como ciência do incons-

12 Pêcheux, 1981,p.5.

deslocamento teórico da noção de estrutura, afastando-se da concepçãocunhada pelo estruturalismo e inscrevendo-se como um novo paradigma noseio das ciências da linguagem, constitui-se numa das grandes e revolucio-nárias contribuições de Pêcheux para os estudos da área. E isso, certamen-te, tem a marca da psicanálise.

Os psicanalistas, é sabido, se interessam pela linguagem, e se inte-ressam precisamente no limite em que a linguagem tropeça. Do mesmomodo que nós, analistas de discurso, os psicanalistas ficam muito atentosao momento em que a linguagem se equivoca e a fala derrapa. E tudo issovai se dar, vai se mostrar , vai se capturar na materialidade da língua. Paradistinguir, então, a língua do inconsciente da língua da lingüística entra emjogo um novo termo, cunhado por Lacan, visando assegurar a especificidadede seu campo. Lacan dá uma importante contribuição para isso, ao forjar oneologismo gráfico lalangue (em português, “alíngua”), que solda o artigo e osubstantivo9. Alíngua seria esse lugar do impossível na língua – impossívelde dizer, impossível de não dizer de uma certa maneira – o não-todo no todo,o não-representável no representado10.

Esta entrada em cena da língua é essencial para a teoria do discursoe tem um ponto de contato com a psicanálise lacaniana. Enquanto na pers-pectiva psicanalítica, a via de acesso ao inconsciente se dá pela língua, naperspectiva discursiva, a via de acesso ao discurso se dá pela língua em suaforma material. E essa língua é aquela capaz de falha, de deslizes, de equí-vocos.

“... na ótica discursiva, falar da língua é falar da falta, é admitirque o todo da língua não pode ser dito em nenhuma língua;sempre faltarão palavras para expressar algo, pois existe o im-possível a dizer”.11

9 Milner é o lingüista que faz a ligação entre psicanálise e análise do discurso. Pêcheuxreconhece sua importância, ainda que o critique por não considerar o real da história.10 Cf. Milner, 1987, p.18 e segs.11 Ferreira, 1999, p.130.

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A alteração no quadro teórico da psicanálise, em meados da décadade 50, se deve a certos desvios que as idéias de Freud vinham ganhando.Isso porque a leitura de Freud seguia um acentuado viés cientificista, quecolocava em risco a caracterização desse sujeito do inconsciente. Na verda-de, o freudismo reinante, como nos lembra Dosse,15 encaminhava-se parauma perigosa tendência biologizante, com o risco de perder sua identidade epermanecer prisioneiro do positivismo vigente.

É aí que surge em cena a figura do psicanalista Jacques Lacan, aopropor uma releitura de Freud, inscrita na filiação saussuriana, o que vaiprovocar uma salutar reação, muito além das hostes psicanalíticas. Lacan,ao apoiar-se nos princípios da lingüística saussuriana, fez da linguagem acondição do inconsciente, “renunciando à idéia freudiana do substrato bioló-gico, herdado do darwinismo”(Roudinesco, 2000, p.137). Ao formular seucélebre aforismo, “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”,Lacan apropria-se da cientificidade da lingüística e propõe-se explicar a psi-canálise de um modo científico, obtendo um sucesso incontestável nessasua empreitada. Jorge (op.cit.) lembra que é preciso que os achados psica-nalíticos adquiram uma ressignificação no mundo das idéias, junto a outrasdisciplinas, para sair “do gueto teórico muitas vezes criado pela ortodoxia”. Eisso, sem dúvida, a Psicanálise deve a Lacan.

A psicanálise parte de dois conceitos fundamentais – inconsciente epulsão – que caracterizam a poderosa singularidade de suas descobertas, aotratar da emergência do sujeito. Lacan vai deter-se, particularmente, no incons-ciente, chegando a constituir um novo nome para expressar essa realidadehumana. Trata-se da consagrada tríade “real – simbólico – imaginário”.

O real é apresentado como um corte na estrutura do sujeito, a faltaoriginária da estrutura. É precisamente em torno dessa falta que o inconsci-ente se estrutura. O real é, portanto, o núcleo do inconsciente. Tudo começaa partir dele. Lacan tematiza o real de dois modos:

– O real é o impossível de ser simbolizado;

15 Cf.Dosse, 1993.

ciente. Isso é explicitado ainda mais em “Análise Automática do Discurso”13,onde consta “que uma teoria do discurso é postulada enquanto teoria geralda produção dos efeitos de sentido, que não será nem a substituta de umateoria da ideologia, nem de uma teoria do inconsciente, mas poderá intervirno campo dessas teorias”.

Interessante observar que, desde o início, Pêcheux faz as aproxima-ções teóricas entre os terrenos, mas estabelece também os devidos limites,preservando a especificidade do domínio discursivo. Há inúmeras passagensque revelam sua preocupação em deixar claro o lugar de onde fala e em quecondições certos conceitos são usados.

Ao trazer a psicanálise para o campo epistemológico da análise dodiscurso, em sua reflexão sobre a história das ciências e sobre a teoria dasideologias, Pêcheux se mostra um homem ligado ao seu tempo. Aconceituação tradicional de um sujeito centrado no seu próprio eixo nãorespondia mais às inquietações da época. A idéia da determinação que atuasobre o sujeito era prevalente e incompatível com a existência de um sujeitolivre, senhor de seus atos e de sua vontade. É nesse ponto que se atravessaa psicanálise, com a hipótese do inconsciente formulada por Freud.

Freud, com o descobrimento do inconsciente, é o responsável pelaentrada em cena de uma noção de sujeito distinta do conceito tradicional desujeito agente, a qual subverte de modo radical o cogito cartesiano e intro-duz a dimensão de uma racionalidade inteiramente nova. O psicanalista MarcoAntônio Coutinho Jorge14 lembra que o próprio Freud chegou a comparar suadescoberta do inconsciente com dois outros golpes desferidos pela ciênciasobre o amor-próprio da humanidade: Copérnico (a Terra não é o centro doUniverso) e Darwin (o homem não está no centro da criação). A partir deentão, o sujeito passa a ser concebido como algo sempre dividido, cindido,conflitivo, impossível de se identificar de modo absoluto.

13 Pêcheux, AAD (1969).14 Cg.Jorge, 2000.

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Maldidier), Pêcheux força uma aproximação teórica entre o recalque incons-ciente e o assujeitamento ideológico, ainda que sem confundi-los. Ele mes-mo em nota elucidativa alerta:

“(...) quando utilizamos aqui conceitos elaborados por J.Lacan,estamos separando-os da reinscrição idealista de sua elabora-ção, neles incluída pelo próprio Lacan (...) De nossa parte, dire-mos simplesmente que formulações como ‘o sujeito do incons-ciente’, ‘o sujeito da ciência’, etc., parecem-nos participar des-sa reinscrição idealista” 16

Já, no texto de 197817 – “Só há causa daquilo que falha ou o invernopolítico francês: início de uma retificação”– num corajoso exercício deautocrítica, Pêcheux corrige esse percurso e retifica, em parte, sua afirma-ção anterior, deixando claro que “o recalque não se identifica nem aoassujeitamento nem à repressão, mas a ideologia não pode ser pensadasem referência ao registro inconsciente”(ibidem, p.301).

Fica evidente, em ambas as passagens, que entre idas e vindas aanálise do discurso (como a quer e a entende Pêcheux) não perde nuncaseu eixo, como uma teoria materialista dos sentidos, que busca articularideologia e inconsciente na constituição do sujeito, através de/e sob a lin-guagem.

Mas volta aqui uma questão que está sempre presente e que incomo-da: como conciliar a figura de um sujeito assujeitado, determinado pelasrelações sociais, produto da luta de classes, com um sujeito do inconscien-te, movido pelo desejo, marcado por uma falta e submetido ao discurso doOutro?

O primeiro registro que se pode fazer a respeito desse par conceitualé o de que a tensão entre a sobredeterminação e o desejo não tem como sedissipar. Além disso, vemos aí uma aproximação problemática ao tentar re-lacionar o sujeito assujeitado althusseriano, aquele interpelado pela ideolo-

16 Pêcheux, 1975,p.139.17 Pêcheux (1978). “Anexo de Semântica e Discurso”

– O real é o que retorna sempre ao mesmo lugar.O simbólico tem seu lugar, efetivamente, a partir do real. De acordo

com Lacan, ele tem a ver com o saber em jogo na própria experiência psica-nalítica, responsável pelas transformações tão profundas para o sujeito. É nosimbólico que o sujeito do inconsciente se estrutura como linguagem.

O imaginário é originariamente faltoso para o sujeito, é captação es-pecular no plano consciente. A possibilidade de sua constituição se dá peloefeito de introdução do simbólico.

Esses três registros apresentam-se unidos de modo indissolúvel natopologia do nó borromeano, eles não podem ser isolados; precisam estarjuntos para que a estrutura se estabeleça. O real escapa à simbolização ese situa à margem da linguagem; não há meio de apreendê-lo a não ser pelosimbólico. Real e furo estão, portanto, intimamente articulados,

A concepção de sujeito formulada por Lacan, como um sujeitodescentrado, efeito do significante que remete para um outro significante,encontra eco em outros campos das ciências humanas, como é o caso daanálise do discurso e, especialmente, de Pêcheux. Assim como Althusserfoi uma influência decisiva para Pêcheux (bem como para toda uma geraçãode intelectuais da época), o encontro com as idéias de Lacan também foialgo decisivo na sua reflexão teórica e na sua vida.

Em “Semântica e Discurso” (1975), as referências a Lacan e à suateoria são bem freqüentes, até pela insistência de Pêcheux em trabalharuma analogia entre a ideologia e o inconsciente, que já se esboça no textode 1968, de Thomas Herbert. O inconsciente, no sentido freudiano, e a ideo-logia, na acepção marxista, passam a ser revistos, respectivamente, ao modolacaniano e althusseriano.

É fundamental reiterar nesse ponto, que mesmo com todo o fascíniode Pêcheux, claramente manifesto, por alguns conceitos formulados pelapsicanálise, tanto via Freud, mas sobretudo, via Lacan, ele nunca deixou deressaltar e, mais que isso, advertir que as duas ordens – a do discurso – e ada psicanálise– não coincidem, nem se superpõem.

Em “Semântica e Discurso”, talvez tomado pelo “fantasma teóricounificador da teoria do discurso” (para usar a expressão mencionada por

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Encontrei nas palavras de uma psicanalista uma definição para suaárea que em mim ressoou e fez sentido:

“Uma psicanálise é o encontro de dois desconhecidos unidospela transferência. E é por isso que ela oferece a oportunidadede se descobrir o estranho em si mesmo, permitindo que, umpor um, cada qual faça sua a ‘experiência do estrangeiro”.19

Ao tentar compreender o funcionamento desse convívio entre análisedo discurso e psicanálise (esses “dois desconhecidos”), acabei por realizar,em mim mesma, essa “experiência do estrangeiro”, de que nos fala Koltai,inquietante, incômoda, mas estranhamente atraente. Confirma-se, assim, oque foi anunciado, como um desabafo, lá nas primeiras linhas:

“Deixo de início estampado/destampado o meu desconforto: falar dealgo tão próximo e também tão distante, tão íntimo e tão estranho, tão den-tro e, ao mesmo tempo, tão fora...mas assim mesmo querer falar”.

Falei... (e disse?)

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19 Koltai, 2000, p.125.

gia, ao sujeito do inconsciente lacaniano, aquele identificado ao discurso doOutro. Isto porque, este grande Outro não traz carga alguma de subjetivida-de; ele alude a um lugar do significante e não a uma entidade. Em Lacan, oinconsciente como o discurso do Outro, está assim além da regulação dosujeito.

Na análise do discurso, o discurso é visto como atravessado pelodiscurso do Outro e por outros discursos, sendo a alteridade entendida comocondição constitutiva. O sujeito desse discurso, mesmo não sendo a fontede seu dizer, tem a necessidade da ilusão de sê-lo.

Pêcheux, em seus últimos textos18, especialmente em “Discurso:estrutura ou acontecimento”, demonstrou não estar imune a essas questõesenvolvendo a interface com a psicanálise. Pelo contrário, ele se encaminha-va cada vez mais a perceber no sujeito, bem como na língua, uma falhaconstitutiva, de caráter estrutural.

5. VOLTANDO AO COMEÇO E aqui nos encontramos, de novo, a falar do furo e a falar da falha – do

discurso, da língua e do sujeito – como uma questão que não cessa de seinscrever. Na tensão entre a falta e a resistência, no embate entre o impossí-vel e a contradição, aí vai emergir o estranho que atravessa o território daanálise do discurso. A psicanálise funcionaria como esse estrangeiro, com oqual temos que dividir nossa casa, e que nos causa, não raro desconforto emal-estar. Ela própria, por sua vez, por também viver na fronteira, não estariaimune a essa presença estrangeira.

Esse trabalho me propiciou um encontro, por certo, desejado, masnem por isso ameno, entre minha área de pesquisa e uma outra. Mas arris-caria dizer que esse encontro não se deu tão somente no exterior – entredois mundos, ou entre os territórios, como preferi designar. Ele se deu tam-bém no interior, na intimidade de nossa morada.

18 Pêcheux, 1990.

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INTERPRETAÇÃO E AUTORIA:TRABALHO DO ANALISTA

Leda Verdiani Tfouni1

Em trabalho anterior (Tfouni, 2001), apresento uma proposta segundoa qual a autoria de um texto se instala quando o sujeito do discursoocupa uma posição que lhe permite lidar com a dispersão e aceitar a

deriva que sempre se instala. Vou retomar essa reflexão aqui, e tentaraprofundá-la, fazendo, para tanto, um esforço no sentido de estabelecer umdiálogo entre a Análise de Discurso de filiação francesa e a Psicanáliselacaniana.

Começo mobilizando o conceito de deriva e afirmando que ela é airrupção do real, no sentido de que o real está na falta e, pelo processo dederiva, outras possibilidades de significação irrompem, quebrando a unidadee instalando o não-Um. Procurarei mostrar aqui que o trabalho de autoriasitua-se nessa região de quebra, ou fissura, do simbólico, constituindo-seessencialmente sob a forma de uma tentativa de amarração, ou de fazer Um.

Pretendo apresentar o trabalho de autoria como sendo da ordem deuma interpretação dêitica a qual se dá no processo de enunciação. Retomo,nesse sentido, trabalhos anteriores, nos quais afirmo que o que serve paradar as coordenadas da autoria em relação ao sujeito-enunciador da atividadelinguageira é que o autor trabalha na região do intradiscurso, enquanto que oenunciador está na dimensão do interdiscurso, de acordo com o seguinteprocesso: enquanto o autor tece o fio do discurso procurando construir parao leitor/ouvinte a ilusão de um produto linear, coerente e coeso, onde nãoexistiria a dispersão, o sujeito linguageiro está preso à dupla ilusão, ou seja,imaginar que é dono de seu dizer e também que aquilo que diz equivale auma tradução literal do seu pensamento, um dizer sem deriva.

1 Professora Associada do Departamento de Psicologia e Educação da FFCL-RP- UNIVERSI-DADE DE SÃO PAULO (USP) - Pesquisadora do CNPq e do Programa de Pós-Graduação emPsicologia.

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da, é feito o autor, procura, então, formas de contornar a dispersão e a derivaque estão constantemente resvalando pelos interstícios e tentando instalar-se.

Estas colocações levam a um questionamento: de onde surge o novo,aquilo que constitui um gesto de autoria? Para F. Tfouni (op. cit.), o novo é oacontecimento, um nódulo do real que surge na realidade e clama por senti-do. No entanto, faço notar que esse sentido não é qualquer um, pois, sendoproduzido pela ideologia, ele tem a função de reequilibrar a ordem imagináriada sociedade, restabelecendo o mundo à sua estabilidade lógica. Isto querdizer que os mecanismos de reparos de que o autor se serve para “conser-tar” os desarranjos gerados pela irrupção desses nódulos do real não sãoneutros; estão, antes, a serviço de formações ideológicas que podem serdominantes ou dominadas. Ou, dizendo de outro modo, o processo de iden-tificação ao grande Outro indicia um desejo recalcado de pertencer a uma ououtra das duas classes sociais em conflito. Ao fazer-se, na enunciação, aautoria, portanto, trai sua filiação.

Esses são momentos de não-saber do sujeito, quando lhe falta a pa-lavra na cadeia metonímica e um significante não se prende bem ao outro,então o sujeito (que, como sabemos, é aquele que emerge entre significantes)não pode emergir, isto é, fica à deriva, sem o próximo significante. Não hácoesão, ali onde o imaginário falha... Assim, não saber como continuar adizer equivale a um lapso e é aí que o sujeito pode emergir. Deste modo,pode-se supor que a ausência da autoria, ou seja, a impossibilidade de exis-tir textualização, deve-se a um processo que é, primeiramente de deriva e,depois, de dispersão.

É nesses momentos, quando é impossível prosseguir e quando o su-jeito se encontra diante de algo que falta (uma palavra...), é aí que o sujeitoencontra refúgio no grande Outro.

Esse não-simbolizado pode ser representado como um nódulo do realque se interpõe no processo simbólico e fura a tessitura do texto. Diantedeste não-sentido, faltando-lhe o solo debaixo dos pés, o sujeito tenta fazero mundo voltar à sua estabilidade lógica, como estrategista que é. E ele fazisso dando um sentido a esse nódulo. Pêcheux (1997) denomina esse pro-

Ora, estar sob o domínio dos dois esquecimentos e tentar “domar” adispersão, significa, ao mesmo tempo, que há um “eu”, que controla, e um“sujeito” que se perde. Ou, em outras palavras, significa admitir a existênciade lalangue, que não cessa de se infiltrar na língua, movimento este que fazcom que o trabalho de autoria se formule em um duplo eixo: por um lado,controlar, na enunciação, através de mecanismos lingüísticos adequados, adispersão que ameaça a unidade do texto, o dizer pleno almejado; por outrolado, procurar mecanismos de ancoragem, que sedimentem e tragam uma“naturalidade” de sentido ao texto. Conforme vou mostrar brevemente maisadiante, o uso de genéricos é um desses mecanismos.

Por ora, devo dizer que o autor está, deste modo, constantementerenunciando a outras formas paradigmáticas possíveis, dentro de umaordem sintagmática pretendida. É por este motivo que Authier (s/d) co-menta que a escrita (de autoria, acrescento eu) vem sempre marcadapela perda.

O processo descrito gera momentos de uma dinâmica especial naenunciação, e isto é mostrado, na fala, pela ocorrência de hesitações, falsoscomeços, enfim, as assim chamadas parapraxias que, atuando sobre a se-qüência sintagmática, indiciam a força paradigmática, ou ainda o embateentre a ilusão de livre escolha, que é a essência do trabalho de autoria, porum lado, e a irrupção do real, “fazendo furo” no simbólico e quebrando atransparência imaginária da língua, por outro. Nesses momentos, em que sedá conta de que as palavras não recobrem totalmente o mundo, o sujeitoperde seu apoio como autor e se refugia no grande Outro, a fim de buscartamponar esse real.

O que se delineia acima é um embate entre consciente e inconscien-te. F. Tfouni (2003) lembra que, se Pêcheux considera o sujeito comoassujeitado, no entanto, em “Estrutura ou Acontecimento?” (1997), o mes-mo Pêcheux coloca esse sujeito como um estrategista. A meu ver, é estejogo de aprisionamento/liberdade que caracteriza o processo descrito aci-ma, de irrupção do real no processo simbólico: processo esse que cria, parao autor, uma necessidade de driblar, enganar a lalangue e refugiar-se naaparente opacidade da língua. Esse estrategista, de que, em grande medi-

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outra forma indeterminado e infinito, da significação” (op. cit., p. 808), eleapresenta o grafo, onde o ponto-de-estofo está representado pelo vetor ,que “colcheta” em dois pontos a cadeia significante. É possível fazer, aqui,uma aproximação com os conceitos de “deriva” e de “acontecimento”, cria-dos por Pêcheux (op. cit.), e tão caros à Análise do Discurso. Deter-se, paraconter a deriva que sempre está prestes a se instalar, pela insistência do real(isto é explicado lingüisticamente pelo conceito saussuriano de valor do sig-no), possibilita ao sujeito gestos de autoria, movimentos de retorno ao já-dito, que vão realocar a cadeia significante em lugares do interdiscurso e damemória social (arquivo), atualizando-a e reconfigurando-a.

Esse processo é realizado lingüisticamente de várias formas, princi-palmente através do uso de shifters (processos dêiticos e anafóricos: prono-mes, advérbios, etc) e pelo mecanismo da nomeação e também através douso de fórmulas genéricas, como “homem não chora”. Ao enunciar “homemnão chora”, temos a formulação: “todos os homens não choram”, silenciando“alguns homens choram”. A qualidade de “não chorar” para se constituir comosendo do homem aparece como algo natural, não-social e historicamenteconstruído, justamente por um mecanismo ideológico que silencia uma qua-lidade contrária nessa constituição. Assim, é justamente na dominação deum sentido em detrimento de outros que se estabelece a eficácia dos gené-ricos e da ideologia na manutenção de formações ideológicas dominantes.

Essas fórmulas, que povoam o imaginário social e se propagam maci-çamente pela mídia, não são absorvidas diretamente pelo sujeito, pois esteé confrontado com suas experiências, o que o obriga a fazer re-inscrições noseu dizer. Essas re-inscrições estão submetidas às posições discursivasque podem ou não ser assumidas pelo sujeito, por serem da ordem do inter-dito.

Logo, do ponto de vista discursivo, a utilização de genéricos cria oefeito de sentido de um enunciador universal, que fala de um mundo seman-ticamente estabilizado, onde não existe discordância. Esses momentos secaracterizam por estabelecer uma síntese, uma verdade incontestável queserve de fechamento, ou ponto-de-estofo para os enunciados produzidos atéaquele momento.

cesso de “acontecimento”: algo novo, ainda não simbolizado, da ordem deuma necessidade alética, clamando por sentido.

Atribuir um sentido é trabalho do imaginário, da ideologia: fazer laço,estabelecer relações, ordenar, classificar, comparar, transformar este novoque perturba em algo sempre-já-lá. Domesticar a instabilidade da lalangueatravés da langue, fixando, assim, por metáforas e metonímias, uma novaunidade transitória, que logo também se dissolverá sob o assédio incessan-te do real, do retorno do recalcado, daquilo que é impossível de se dizerenquanto tal.

Como fica o trabalho do autor nesses momentos? Sabemos que todaescolha implica exclusões. “A memória é memória do desejo”, afirma Freud,e, portanto, a estratégia que o sujeito usa para restituir à cadeia metonímicaa sua seqüência perdida não está ligada a um processo consciente nemaleatório. Assim, para voltar à posição-autor, o sujeito se refugia no interdis-curso pelo lado do avesso: ele se refugia no fantasma.

Essa retomada de posição dá-se através de um movimento de retor-no à seqüência discursiva, com o propósito de (re)interpretá-la, através deum mecanismo de retroação que estabelece ponto-de-estofo, conforme des-crito por Lacan no grafo do desejo. (Lacan, 1998 [1966]).

Através deste movimento, o sujeito realiza a tarefa de analista, retornan-do aos enunciados já proferidos e pontuando a cadeia significante em luga-res específicos, onde é possível fazer uma releitura, uma amarração com amemória e, deste modo, estabelecer ponto-de-estofo. O ponto-de-estofo,também denominado “significante mestre”, permite que a série sintagmáticadetenha-se momentaneamente e possa ter continuidade, através de umaleitura retroativa que já é uma interpretação e, portanto, uma retomada dodito em um momento posterior, mas ainda dentro do processo de enunciação.Esse movimento permite que o sujeito lance um anzol sobre a cadeiametonímica e a faça deter-se, relançando, deste modo, a significação, atra-vés de um processo de amarração que vai restabelecer a unidade aparente etransitória do texto. O corpo novamente uno, não mais despedaçado....

Lacan nos faz visualizar esse processo. Após definir o ponto-de-esto-fo como a operação pela qual “... o significante detém o deslizamento, de

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Chemamma, falando sobre os provérbios (que são um tipo de genéri-co) na experiência psicanalítica, afirma que “... só se pode dar conta daexperiência do real na forma proverbial” (2002:25). Ou, em outras palavras,ao usar estas fórmulas encapsuladas, o sujeito anula-se enquanto locutor erefugia-se, através da língua, no grande Outro irredutível. É, portanto, o domí-nio do Outro sobre o sujeito que os genéricos indiciam.

Pelo fato de tentar instituir uma verdade universal, as fórmulas genéri-cas funcionam como indeterminadores, o que, ainda segundo Chemamma,permite que o sujeito possa “... romper a barreira da relação imaginária doeu, que impedia que o inconsciente se manifestasse. Para que isto ocorra, épreciso ir além do eu, e também do você: é preciso romper a relação dual.”(op. cit.:39).

Ou seja, é preciso romper o fluxo comunicativo do discurso, a linearidadeS- S’, e fazer a retroação, o movimento de interpretação que irá estabelecerponto-de-estofo ( ). É nesse momento que o sujeito se depara comseu próprio desejo que lhe é apresentado pelo discurso do grande Outro naforma de uma questão: “Che vuoi?”.

Não se pode esquecer, porém, que as escolhas que o sujeito faz,quando faz uso de genéricos, não são aleatórias, nem neutras, nem consci-entes. A voz “universal” que se faz ouvir aí, longe de ser de fato o consensoque anularia as diferenças de classes, é índice de que a ideologia da classedominante pode fazer-se voz no dominado, num processo de identificaçãoque tampona o real, conferindo naturalidade à voz do excluído.

Enfim, podemos pensar nessa relação entre autoria e dispersão/deri-va, bem como do seu controle através do ponto-de-estofo, como uma metá-fora do que ocorre na experiência analítica do divã, quando uma fala “solta/frouxa” adquire o status de palavra plena (Lacan, 1998), sob o efeito da inter-venção do analista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:AUTHIER, J.(mimeo n/p) Paroles tenues à distance.CHEMAMMA, R. (2002). Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidia-

no. Porto Alegre, RS: CMC Editora.

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TFOUNI, L. V. Interpretação e autoria...

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SEÇÃO DEBATES VÍCTORA, L. G. Situação da psicanálise...

SITUAÇÃO DA PSICANÁLISE NO BRASIL

Ligia Gomes Víctora

Infelizmente não pude estar presente na reunião com Elizabeth Roudinescoa propósito da situação da psicanálise na França. Mesmo assim, gosta-ria de entrar na discussão sobre a situação da psicanálise no Brasil e no

mundo, dando meu depoimento baseado no que observei e escutei.Nos meses de agosto/setembro, estive em Paris e tive oportunidade

de discutir longamente o assunto com colegas de diversas instituições ecom diferentes pontos de vista. As questões que escutei lá são muito dife-rentes das que urgem aqui e reúnem no mesmo saco a seguridade-social(equivalente ao nosso SUS), que paga todas as intervenções – desde aspiri-nas ou simples curativos, a óculos ou a cirurgias com fins meramente esté-ticos; a medicalização acelerada da psiquiatria, as políticas públicas de saú-de, que permitem acesso aos arquivos médicos e psicológicos para consul-ta das partes interessadas...

Não se trata de querer fazer uma oposição entre o local e o internaci-onal, mas, neste ponto, parece que o divisor de águas é mesmo o oceano.Em um momento político de novos códigos de ética, parece que no Brasilseguimos mais as tradições norte-americanas que as européias.

Na França, as listas dos associados das Associações Psicanalíticasforam pivôs de discussões e mostram que listas ainda assombram (como ade Schindler?), e com razão, nossos colegas do além-mar. Aqui nossa his-tória é outra e os fantasmas que nos assombram também são outros.

Fazemos um esforço para dialogar e trocar experiências entre idio-mas, códigos de costumes e enormes diferenças sociais e econômicas queseparam nossas realidades. Por isso, sempre que podemos, levamos nossodepoimento e nosso trabalho para outros países, aprendemos outras lín-guas, traduzimos, escutamos críticas e elogios, ensinamos e aprendemoscom eles.

Da mesma forma, no congresso A Masculinidade, três colegas fran-ceses estiveram presentes, vindo por suas próprias expensas, e pelo desejo

de trazer sua contribuição para o diálogo sobre um tema tanto atual quantocontrovertido, pois que faz um contraponto com o conceito de Freud – a“feminilidade”. Ficou claro, por suas atitudes, que eles não vieram para nosensinar, mas para uma legítima interlocução. Durante todo o congresso, es-forçaram-se para escutar os trabalhos e conversar com os presentes, mes-mo não dominando a nossa língua. Isso, a meu ver, atesta sobre a maturida-de da APPOA, quando comemoramos os 15 anos de existência desta.

Momento de virada nas relações internacionais, momento de tensãonas nacionais. Vejamos o que ocorreu bem aqui, neste mesmo congresso.Mais de 500 pessoas reunidas, entre as quais, psicanalistas, psicólogos,psiquiatras, psicoterapeutas, antropólogos, sociólogos, estudantes universi-tários e curiosos de todos os gêneros. Uma outra lista, contra o Ato médico,circulou, angariando quase a unanimidade de assinaturas dos presentes.Sem alarde, sem propaganda, silenciosamente, pacificamente...

Ao “puxar” a discussão européia para o Brasil, será que não estamosdeixando de atentar para uma questão concorrente que está, correndo porfora, ganhando terreno da psicanálise e de todos os profissionais, artistas ouartesãos que trabalham de alguma forma com a saúde?

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SEÇÃO DEBATES

Um texto é, de entrada, um campo polêmico, o espaço heterogêneode um conflito de forças – é já, antes de tudo, força e sentido – e requer, maisdo que uma leitura neutra, metódica ou “especulativa”, intervenção estratégi-ca e singular, implicada em tal ou qual lugar ou momento daquele espaço.

Ao ler, nós nos internamos num texto e não há qualquer relação comum texto que já não seja uma leitura e uma interpretação.

Mas, o que quer dizer ler, interpretar? Talvez seja revelar o fundo mó-vel e metafórico de um texto. Por exemplo, alguém vê um pintor furando aorelha de sua modelo com uma agulha para, ali e depois, colocar um brinco.Do olho da modelo escorre uma lágrima que o pintor recolhe com o dedo ea dispersa nos lábios da modelo. Você que agora lê o que escrevi há algumtempo (escrevo no presente, mas serei lido no futuro) pode imaginar queestou descrevendo uma cena, uma pintura, etc. No entanto, estou tentandocontar o que alguém me contou. Este alguém assistiu um filme e falou dacena para dizer que viu na cena uma cena sexual, em que cada coisa repre-senta um elemento de uma cena sexual (agulha que perfura uma superfícieda qual sai sangue e logo uma lágrima de dor – ou prazer – brota dosolhos...).

Não se trata de um equívoco. Você me lê como se eu tivesseescrito, ou como se eu estivesse falando? O que diferencia uma fala de umaescrita? E no caso daquela que assiste uma cena em que vê uma coisa– registrada por um cinegrafista – mas enxerga outra (uma relação sexu-al)?

A linguagem é invadida pela metáfora, o refluxo ou o retirar-se da me-táfora, o que exige um texto, que suporte esse movimento. Um texto que,por sua própria natureza, ou por sua própria lei, resiste a ser compreendidocomo a expressão de um sentido. Texto que, por ser processo significantegeral, submete o discurso à lei da não-plenitude ou à não-presença do sen-tido e que está, por sua vez, submetido à lei da insaturabilidade do contexto,encobrindo e revelando, em extratos, a construção genética de um processosignificante.

Aprendi muitas coisas com Jacques Derrida, desde que entrei emcontato com sua obra no doutorado, em 1998 e pelas mãos de meu orientador,

UM TEXTO A RESPEITO (DA MORTE) DE DERRIDA

Charles E. Lang

(Ao Figueiredo e ao Stein)

No Domingo, dia 10.10 (2004) encontrei Robson Pereira na LivrariaCultura. Talvez ele tenha me encontrado, a gente nunca sabe disso,mas quando escreve um texto, o “eu” é uma marca de que quem

escreve sou eu, não o outro, que um texto é um ponto de vista, o meu. Poisbem, Robson disse que havia lembrado de mim, pois Derrida havia morrido.Ele não estava pensando em mim ou no Derrida, mas pensou em nós depoisde saber que Derrida falecera e pensar em quem poderia escrever algo sobreisso quando, entre outra de suas ocupações e preocupações, o Correio daAPPOA o ocupava. Derrida faleceu. Quem poderia escrever um texto sobreisso? A resposta o encontrou na Livraria, ou ele a encontrou...

Então ele perguntou: – Você poderia escrever um texto? 1

Esta é a resposta à pergunta, um texto sobre Derrida, em que colocoa morte entre parênteses (esta deve ser uma das funções de todo texto) eem que não sei, de começo, o que quer dizer “texto”. Por certo “tecitura”,“tecido, “tecelagem”.

Mas há algum ser que responda pelo nome “texto”?Um texto, num sentido restrito, é o que ocupa uma página (no latim é

paganus, aquele que habita o campo), o que se dá a ler num livro, por exem-plo. Num sentido mais geral, pode ser tudo o que chamamos de realidade,se a compreendermos como um sistema de sistemas, como páginas escri-tas em diferentes sistemas simbólicos.

1 Escrevo isso e desse modo para não apagar a gênese do texto, num trabalho contra atendência geral de todo texto, como veremos um pouco adiante, de apagar a sua gênese, nofluxo e refluxo metaforizante.

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SEÇÃO DEBATES

Derrida falando. Os detalhes dos movimentos de suas mãos, as expres-sões, as inflexões de voz, o gesto espontâneo e o gesto estudado. A mortejá era anunciada na notícia de mais de três meses de que o câncer o consu-mia. Sua última estadia no Brasil, em agosto último, encerrou-se com um arde despedida. Derrida estava morrendo e não eram apenas os seus textosque nos cativavam.

Derrida se foi e seu último ato poderia ter sido o de receber o prêmioNobel de Literatura. Teria sido a coroação, como a de Freud em 1930. Umprêmio pelo amor ao texto, à leitura, à interpretação, à escrita. Um guardiãoda palavra, zeloso e ciente do poderes que ela contém ou detém. Derrida eracandidato ao prêmio, mas não ganhou. No entanto, foi ele quem aguçou paraalguns de nossa geração, a dimensão literária e metafórica que habita ostextos, sejam eles científicos, filosóficos ou psicanalíticos. Dimensão que éo tecido de que é feita a realidade e que significantes como o sacrifício, asolidariedade, o perdão, a amizade, a hospitalidade, a confiança não sãopalavras gastas. E que mesmo a mais gasta das palavras ainda está viva.

No final dos anos sessenta, mais do que participante do maio de 68,ele foi um dos poucos a anteverem o que estava por vir: a era da informação,da informática, da globalização e do “fim do Livro”. E da pena de ganso, queele utilizara para escrever seu textos mais “sérios”, ele chegou ä máquina deescrever, comprada nos Estados Unidos, e ao Mac da Apple. Esta é umadas metáforas da obra de Derrida. A escrita à pena da época sisuda e sériados textos jurídicos e teológicos, ao hipertexto e à banalidade das escritasda multimídia, daquilo que não se faz mais à mão (Heidegger dizia, repetiaDerrida, que o órgão do pensamento é a mão), mas na máquina (o compu-tador) e publicadas diretamente nas páginas da Internet; sem um trabalhodo texto, sem a mediação necessária antes de chegar ao público. DavidLodge, em seu romance Invertendo os papéis, repete a metáfora de Derrida,para concluí-la com um texto que se acelera no ritmo e na forma de umroteiro de cinema: o final são imagens em um caleidoscópio. Como se osimbólico e a “voz” da escrita se desvanecessem e fossem tomadas pelosilêncio da imagem. Não é mais preciso nem falar nem escrever, a imagemdisse tudo.

Luís Cláudio Figueiredo2. Principalmente, reaprendi a ler. E aprendi um pou-co de teoria da tradução, de teoria da leitura e da interpretação e um poucomais de Psicanálise, com ele que nunca se deitou em um divã, mas quemanteve uma longa e duradoura amizade com Nícholas Abraham e MariaTorok e René Major, e que era casado com uma psicanalista. Para descobrirque Lacan é o mais famoso e importante dos psicanalistas com quem Derridadiscute em seus textos, mas não o único nem o principal. E que é possíveller Freud, de novo, a partir de textos como O bloco mágico.

O primeiro texto de Derrida que enfrentei, ingenuamente, foi aGramatologia. Depois, foi preciso se armar melhor. Li e reli e de quando emquando a ele retorno. O segundo, o que me apaixonou: A farmácia de Platão,a leitura meticulosa e respeitosa que Derrida faz do Fedro. De texto em textocheguei a um curso do prof. Ernildo Stein, na PUC/RS, sobre a desconstruçãoDerrida, Heidegger e Freud.

Era paixão. A mesma que eu percebia em outros de seus leitores eem alguns de seus seguidores. E também nos seus inimigos. Ele intrigou eapaixonou mais americanos do que franceses ou alemães. Pudera, nos Es-tados Unidos ele era lido muito mais nos Departamentos de Literatura doque nos de Filosofia, e nestes Departamentos a “desconstrução” vingou eprosperou, até constar em título de filme de Woody Allen.

Conversei com os textos de Derrida durante e após o término de meudoutorado. Com o homem, apenas uma vez, e por poucos minutos. Eu eramais um que disputava a atenção do filósofo. E nem chegou a ser umaconversa. Mas ouvi a sua voz, partilhei de sua presença (temas tão caros àMetafísica), tietagem intelectual pura, da qual não me constranjo, mesmoque estivesse lá sozinho. Mas não é por isso que me deu um aperto quandoouvi, no dia 09.10, no Jornal Nacional, que Derrida havia morrido. Uma sema-na antes havia revisto as quase quatro horas que gravei, vídeo em punho, de

2 Os cursos que Figueiredo ministrou naquele ano no PEPG em Psicologia da PUC-SP estãopublicados em FIGUEIREDO, L.C. (1999) Palavras cruzadas: entre Freud e Ferenczi, SãoPaulo, Escuta, cujo primeiro capítulo faz uma apresentação didática de uma metodologia deleitura francamente inspirada por Derrida.

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SEÇÃO DEBATES

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RESENHA

AVENTURAS DO SENTIDO –PSICANÁLISE E LINGÜÍSTICA1

Margareth Schäffer, Valdir do Nascimento Flores e LeciBorges Barbisan (orgs.) Aventuras do sentido – Psica-nálise e Lingüística. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.364 p.

“Trata-se, antes, de um grandeesforço de leitura, é claro, mas que

pretende ter a virtude de ser capaz defomentar a discussão, de avisar

uma interlocução (...)”Settineri, p. 250

Resenhar sem ter a oportunidade de discutir as idéias é frustrante;tomamos, pois, uma citação de um dos autores como mote para oscomentários que se seguem.

“Aventuras do sentido – Psicanálise e lingüística” é um volume con-tendo sete trabalhos: três são produções coletivas; os outros, escritas indi-viduais. Além disso, não possuem o mesmo gênero: temos ensaio, monografia,tese. Teríamos, a rigor, que construir o mesmo número de longas resenhas;não o fizemos para não fugir da proposta da sessão Rumor. Optamos, noentanto, por elaborar comentários e propor discussões do que nos tocou emcada trabalho, um por um.

Ainda à guisa de introdução, é importante sublinharmos que os traba-lhos dedicam-se, de uma maneira geral, à relação da psicanálise com alinguagem no registro do simbólico, onde Lacan localizou as incidências dosignificante como pura diferença, como representação que remete sempre aum outro significante. As questões da escritura, da letra e do registro do realnão são aqui abordadas, com exceção do que é tratado no capítulo cinco (p.200 e sgs.) do quinto artigo, “A constituição da subjetividade: a questão do

Derrida esteve no Brasil três vezes. Desde 2002, esperava-se que eleviesse a Porto Alegre. A esperança desapareceu. Talvez seja isto mesmo oque a morte presentifica. O fim da esperança. Tema que aliás empolgavaDerrida, na linha de um Benjamin e de Lévinas: o messianismo sem Messi-as, a abertura para o futuro, aguardar alguma coisa pois alguma coisa sem-pre sobrevirá. Mas o que será, isso não pode ser respondido de antemão; énecessário garantir, sempre, a estrutura da espera, a abertura para o futuro.

Talvez meu texto sobre a morte de Derrida não dissipe a ilusão. Amorte é para todos. Para além da ilusão, no entanto, ele reafirma o desapa-recimento de alguém que continua pensando a nossa época, alguém que fazfalta e, por isso, entra para a história universal de nossos pensamentos.

1 Publicado originalmente no livro “Novos sintomas”. Salvador: Àgalma, 2003.

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RESENHA RESENHA

pretação da Aufhebung do texto da Verneinung de Freud. No discurso doanalista, a estrutura do recalque, uma vez estabelecida, não fracassa: elaproduz seus efeitos, entre os quais a Verneinung. Comentaremos abaixo aquestão desta tradução.

A tese que se segue, de Margareth Schäffer, faz uma revisão dasconcepções filosóficas da negação num âmbito diverso de “psicanálise elingüística”, título do volume. A autora estuda Hegel, o primeiro Bachelard,Serres, o segundo Bachelard e as influências que ele teve de Duran e Cassirerna retomada das questões da imaginação simbólica; na seqüência, vêm asconcepções de Granger. No capítulo seguinte, a autora discorre sobre anegação na psicanálise de Freud e de Lacan propondo-se a estudar o tema“enquanto fato psicanalítico mais amplo” (p. 137), isto é, situando-oepistemologicamente; exercício acertado, necessário e esclarecedor, umavez que o sujeito da psicanálise – falta a ser – é descentrado em relação aoser filosófico: o lixo do homem (litura pura) não deverá constranger o analis-ta, pois é com restos e faltas que a clínica lida e realiza suas construções.No último capítulo, a autora complementa seu texto, escrito num tempoanterior, retomando os debates de Deleuze com as idéias de Espinoza, Ben-jamin, e Bourgeois quanto ao tema da negação.

Antes de passarmos para o comentário do próximo artigo, gostaría-mos de assinalar que a opção da tradução de Aufhebung por cancelamentono texto da Verneinung, feita por Schäffer a partir da edição Amorrortu, é alvode debate entre os analistas: temos suspensão na Standard Brasileira, e natradução de Eduardo Vidal (Revista da Letra Freudiana, n. V); alzamiento emBallesteros; e cancelación na Amorrortu. Lacan, nos Écrits, prefere conser-var o termo em alemão. O que está em jogo na interpretação do termo é aprópria concepção do recalque, como mencionamos acima; mesmo norecalque secundário não há cancelamento: há, continuamente, formaçõesdo inconsciente; por isso a nossa preferência por suspensão.

Em “A constituição da subjetividade: a questão do significante”, deSchäffer, Settineri, Barbisan, Teixeira, Nóbrega, Flores e Brauner, os autoresprimeiramente estudam o signo saussuriano em duas vertentes: a ediçãoestabelecida por Bally e Sechehaye, e o confronto introduzido pelo estudo

significante”. Assim, este volume reúne trabalhos em torno do funcionamen-to simbólico, alargando horizontes com estudos de pensadores, tais comoArrivé, Benveniste, Ducrot, Hegel, Bachelard, Cassirer, Authier-Revuz,Chemama, Melman, entre outros, e proporcionando debate no que se refereà clínica psicanalítica da neurose e da psicose.

“Sobre a necessidade e a natureza das relações entre a psicanálisee a lingüística”, de Schäffer, Flores e Barbisan – organizadores do volume –é o primeiro trabalho. Introduz a diferença epistemológica entre a psicanáli-se e as “lingüísticas”; descreve suas influências mútuas, e sublinha aenunciação como a presença do sujeito no enunciado. Esta presença sub-verte a idéia de simetria do diálogo, onde supostamente haveria comunica-ção. Isso leva à retomada da questão do sentido, como reza o título destacoletânea.

O segundo trabalho “Freud e a autonímia” é de Michel Arrivé; a partirda frase negativa de Lacan, – não há metalinguagem – o lingüista discutedois pontos: se a autonímia seria uma prova contrária a Lacan, e se Freudconcordaria com Lacan quanto a não haver metalinguagem, nem nas forma-ções do inconsciente, nem na interpretação analítica. Para defender a hipó-tese de que não se encontra uma teoria metalingüística em Freud, o autortoma a teoria dos sonhos e a metapsicologia para demonstrar que o queFreud chama de “palavra” não tem o mesmo estatuto do “signo” lingüístico.A elaboração de Arrivé localiza o corte entre as duas disciplinas – que seráobservado em todos os trabalhos que se seguem –, e que corresponde aoalgorítmo de Lacan S/s, tal como ele o desenvolveu na “Instância da Letra”.

“A denegação na neurose e na psicose” é o escrito de uma pesquisacoletiva. O grupo dos autores estuda a Verneinung freudiana à luz dos de-senvolvimentos de Ducrot que estabelecem a negação polêmica e a concep-ção polifônica da enunciação, e evidenciam a marca do Outro na operaçãodo recalque. Os autores apontam as diferenças da estrutura da linguagemna neurose e na psicose, e suas incidências no uso da negação. Ilustram-nacom trechos da escuta psicanalítica, o que enriquece e esclarece o estudo.Uma discussão central se estabelece na interpretação que os autores fazemquando dizem “fracasso do recalque” (p. 54) e que remete à tradução e inter-

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RESENHA RESENHA

Jakobson sobre o enunciado e a enunciação, para aproximar-se da questãodo sujeito psicanalítico; segue com a teoria saussuriana/lacaniana dosignificante como pura diferença e pura representação para descrever asformações do inconsciente; adentra-se pelos chistes como “via régia” doinconsciente estruturado como uma linguagem. Neste ponto, Settineri aplicaaos chistes a teoria polifônica da enunciação de Ducrot, do modo como otrabalho coletivo “A denegação na neurose e na psicose” aplicou-a no estudoda Verneinung. Nos exemplos dos chistes aparecem as questões sobre osentido: o duplo sentido, o sem sentido, um outro sentido, evidenciando apresença da outra cena: expressão do desejo inconsciente erótico ou agres-sivo. O autor toma também a teoria de Jacqueline Authier-Revuz sobre aheterogeneidade para demonstrar a diferença entre a hermenêutica e a inter-pretação analítica: esta última tem a estrutura de ato, e se dá na transferên-cia. Neste ponto, dedica-se a fazer a revisão das relações de Lacan comSaussure, nas suas duas edições. O que o leva ao âmago de seu artigo: ainterpretação será estudada como corte na linearidade discursiva. O corte éobtido pela interrupção da fala; pela repetição, por parte do analista, de umsegmento do discurso do analisando; pela interrupção da sessão. Este corteproduz o cálculo de um novo sentido, e seu efeito só poderá ser observado aposteriori. Logo, a interpretação analítica não é uma tradução. Settineri re-mete os leitores à teoria do nachträglich, de Freud a Lacan, e indica o Semi-nário As formações do inconsciente, onde Lacan constrói o grafo do desejoa partir deste movimento da cadeia significante e do ponto de capitonagem,que detém o deslizamento da significação. Na última parte do artigo, o autortrabalha exemplos da clínica analítica comentando-os à luz de sua tese.

Finalizando: se aceitamos que o inconsciente é estruturado comouma linguagem, os estudos sobre a linguagem se tornam imprescindíveispara o analista; se, por outro lado, “O inconsciente pode ser, como eu dizia,a condição da lingüística (Radiofonia), isso também abre uma perspectiva denovas elaborações para os lingüistas, como ficou bastante evidenciado nosestudos apresentados neste volume.

Elaine Foguel

dos manuscritos de Saussure (Godel, De Mauro, Bouquet): retomam e de-batem os conceitos de signo, significado, significante, significação, arbitrari-edade, valor. A seguir, abordam a leitura “divergente” feita por Lacan, centrandoo que o título do ensaio preconiza: o interesse na teoria do significante emambas as disciplinas. Neste trabalho os autores fazem justiça à importânciaque a leitura de Jacobson teve na construção lacaniana das fórmulas dametáfora e da metonímia, através das quais o significante opera na sua re-presentação do sujeito para um outro significante; adentram-se pela análiseda lógica do significante, na qual Lacan utiliza matemática, lógica e topologiapara fazer a mostração do real na teoria, para garantir matemas na transmis-são da psicanálise, para dar conta da lógica do inconsciente; o conceito deletra como idêntica a si mesma (enquanto que o significante é diferente de simesmo) vai marcar o passo do simbólico ao real, fazendo-os conviver com oimaginário numa relação de três registros homogêneos, mostrada noenodamento borromeu. A última parte é dedicada à teorização do quartolaço do nó borromeu, na neurose e na psicose.

O artigo da lingüista Mônica Nóbrega “Lacan e a lingüística sausuriana:um tiro que errou o alvo, mas acertou na mosca?” defende que a interpreta-ção lacaniana do signo que parecia subversiva às idéias de Saussure, narealidade acompanha bastante a teoria tal como ela apareceu revisada naedição crítica de Tullio de Mauro; assim, o algoritmo lacaniano S/s estápróximo ao verdadeiro pensamento saussuriano. A autora faz uma revisãodos elementos lingüísticos utilizados por Lacan tais como aparecem na Ins-tância da Letra (Écrits), à luz dos estudos efetuados por Michel Arrivé sobreo significante em Saussure e em Lacan. Surpreende a ausência de referên-cia ao lingüista Roman Jakobson no estudo da metáfora e da metonímialacanianas, e na análise dos dois planos da cadeia significante, a partir dotexto de Jakobson “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia” talcomo está indicado na “Instância da Letra”.

O último artigo “Quando falar é tratar: o funcionamento da linguagemna interpretação psicanalítica” é um “livro”: o psicanalista Settineri faz umpercurso esclarecedor das relações da fala e do sentido com a psicanálise,rumo a uma teoria da interpretação. Nesta trilha, o autor articula as idéias de

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AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Marcia Helena de Menezes Ribeiro e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo, Fernanda Breda, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Maria Lúcia Müller Stein, Norton Cezar

Dal Follo da Rosa Júnior e Rosane Palacci Santos

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2003/2004

Presidência: Maria Ângela C. Brasil1a Vice-Presidência: Mario Corso

2a Vice-Presidência: Ligia Gomes Víctora1a Secretária: Marieta Rodrigues

2a Secretária: Marianne Stolzmann1a Tesoureira: Grasiela Kraemer

2a Tesoureira: Maria Lúcia Müller SteinMESA DIRETIVA

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa, Ângela Lângaro Becker,Carmen Backes, Clara von Hohendorff, Edson Luiz André de Sousa,

Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Jaime Betts, Liliane Seide Froemming,Lucia Serrano Pereira, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,

Maria Beatriz Kallfelz, e Robson de Freitas Pereira

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Reunião da Comissão de Eventos

Reunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de AperiódicosReunião da Comissão da Revista da APPOAReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa Diretiva aberto ao Mem-bros da APPOA

19h30min

20h30min21h8h30min15h15min20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

TRANSMISSÃO E FORMAÇÃO

DEZEMBRO – 2004

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

02, 09e 1606 e 200910101316

N° 131 – ANO XIN° 131 – ANO XI DEZEMBRO DEZEMBRO – 200– 200 44

PSICANÁLISE, LINGÜíSTICAPSICANÁLISE, LINGÜíSTICAE ANÁLISE DO DISCURSOE ANÁLISE DO DISCURSO

S U M Á R I O

EDITORIALEDITORIAL 1 1

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SEÇÃO TEMÁTICASEÇÃO TEMÁTICA 4 4A LINGÜÍSTICA DE FERDINAND DESAUSSURE, A PSICANÁLISE DEJACQUES LACAN. O QUE PODEUMA DIZER À OUTRA?Valdir do Nascimento Flores 5UMA LINGÜÍSTICA SOBRE O QUENÃO PÔDE SE DIZER: BENVENISTEMarlene Teixeira 12EFEITO PATOLÓGICO/EFEITOARTÍSTICO: JAKOBSON,DA AFASIA À POÉTICALuiza Milano Surreaux 18A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃONA ANÁLISE DO DISCURSO E NAPSICANÁLISE: INTERSEÇÕESMarianne Stolzmann Mendes Ribeiro 25ANÁLISE DE DISCURSO E PSICANÁLISE:UMA ESTRANHA INTIMIDADEMaria Cristina Leandro Ferreira 37INTERPRETAÇÃO E AUTORIA:TRABALHO DO ANALISTALeda Verdiani Tfouni 52SEÇÃO DEBATESSEÇÃO DEBATES 6060SITUAÇÃO DA PSICANÁLISENO BRASILLigia Gomes Víctora 60UM TEXTO A RESPEITO(DA MORTE) DE DERRIDACharles E. Lang 62RESENHARESENHA 6767“AVENTURAS DO SENTIDO” 67AGENDAAGENDA 7272