Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o...

144
POLÍTICA HABITACIONAL E A INTEGRAÇÃO URBANA DE ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS Parâmetros conceituais, técnicos e metodológicos

Transcript of Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o...

Page 1: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

Política Habitacional e a integração Urbana de assentamentos Precários

Parâmetros conceituais, técnicos e metodológicos

Page 2: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

Ministério das Cidades

Ministro de Estado das CidadesMARCIO FORTES DE ALMEIDA

Secretário ExecutivoRODRIGO JOSÉ PEREIRA-LEITE FIGUEIREDO

Secretária Nacional de HabitaçãoINÊS MAGALHÃES

Diretora do Departamento de Desenvolvimento Institucional e Cooperação TécnicaJÚNIA SANTA ROSA

Diretora do Departamento de Urbanização de Assentamentos PrecáriosMIRNA QUINDERÉ BELMINO CHAVES

Diretor de Produção HabitacionalDANIEL VITAL NOLASCO

Secretaria Nacional de Habitação

Page 3: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

Ministério das Cidades

Secretaria Nacional de Habitação

Política Habitacional e a integração Urbana de

assentamentos Precários

Parâmetros conceituais, técnicos e metodológicos

Brasília – DF2ª reimpressão

2008

Page 4: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

POLÍTICA HABITACIONAL E A INTEGRAÇÃO URBANA DE ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS: PARÂMETROS CONCEITUAIS, TÉCNICOS E METODOLÓGICOS

ORGANIZAÇÃOJúnia Santa Rosa (Ministério das Cidades)

CAPAA+ Comunicação

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃOGabriel H. Lovato

FOTOSPrograma Habitar Brasil-BID

TRATAMENTO DE IMAGEMGermano Andrade Ladeira (Ministério das Cidades)

REVISÃOFlavio Henrique Ghilardi (Ministério das Cidades)Otacílio NunesSilvana Tamiazi (Ministério das Cidades)

Os textos deste livro são de inteira responsabilidade de seus autores.

ISBN 978-85-60133-63-5

Ministério das Cidades

Secretaria Nacional de Habitação

Page 5: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

AGRADECIMENTOS

Este livro só foi possível graças à participação de especialistas e técnicos de diversas instituições públicas, técnicas, acadêmicas e de pesquisa que há muitos anos se dedicam ao tema da habitação popular e da urbanização de assenta-mentos precários. Eles foram imprescindíveis para que pudéssemos avançar na formulação de uma política nacional de integração urbana de assentamen-tos precários. A Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar parte substantiva das contribuições e discussões presentes nesta publicação.

Page 6: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 7: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

APRESENTAÇÃO

Com a criação do Ministério das Cidades, em 2003, um novo marco polí-tico-institucional foi instituído para o setor habitacional de forma a articular a área de habitação de interesse social e o setor habitacional de mercado, eixos importantes da política de desenvolvimento urbano no país. A nova Política Nacional de Habitação – PNH, aprovada em 2004 pelo governo federal, definiu de forma prioritária a integração urbana de assentamentos precários como um de seus principais componentes. A necessidade de construção de uma políti-ca habitacional com foco na integração urbana de assentamentos precários, especialmente na garantia do acesso ao saneamento básico, à regularização fundiária e à moradia adequada, articulada a outras políticas sociais e de de-senvolvimento econômico, é essencial na implementação de qualquer estra-tégia de combate à pobreza e perspectiva de sustentabilidade urbana. Cidades com vastas porções de seu território ocupadas por assentamentos precários dificilmente podem ser sustentáveis do ponto de vista sócio-ambiental se não efetivarem intervenções que visem à inclusão sócio-espacial do expressivo contingente populacional que reside nesses assentamentos.

Dispor de informações sistematizadas e de ferramentas de análise capazes de contribuir no entendimento da dinâmica social de produção dos assenta-mentos precários nas cidades brasileiras e na definição de políticas e programas capazes de efetivar a integração urbana destes assentamentos tem sido um dos grandes desafios da atual política habitacional. O presente livro reúne textos e reflexões que contribuíram para isso. Reunindo um conjunto importante de especialistas e pesquisadores sobre o tema dos assentamentos precários, foram trabalhadas dimensões conceituais e metodológicas, técnicas e dados de mensuração e espacialização, tipologias e parâmetros de intervenção urbana, entre outros aspectos.

O conjunto de reflexões reunidos no presente livro foi apresentado e de-batido nas oficinas de trabalho realizadas sob a coordenação da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades. Grande parte das diretrizes apresentadas nestas reuniões de trabalho foi fundamental para subsidiar a definição das diretrizes da nova Política Nacional de Habitação e do progra-ma nacional de urbanização e regularização de assentamentos precários do governo federal.

Finalmente, cabe destacar que com a aprovação da Lei Federal Nº 11.124/ 2005, que instituiu o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS/FNHIS e seu Conselho Gestor, o programa nacional de urba-nização e regularização de assentamentos precários passa a ser prioritário. Em 2006 o FNHIS recebeu R$ 1 bilhão para iniciar a sua operação. Parte substantiva destes recursos foi direcionada, por meio de repasse aos estados e municípios, para a implementação de projetos de integração urbana de assentamentos pre-cários. Também em 2007, a urbanização de assentamentos precários ganha projeção nos investimentos do governo federal. De forma inédita, o tema da urbanização de assentamentos precários foi considerado como um dos eixos

Page 8: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

fundamentais para a consecução do desenvolvimento econômico e social do país, ao ser incluído no rol de ações do Programa de Aceleração do Cresci-mento – PAC.

O Programa, lançado em janeiro de 2007, consiste em um conjunto de medidas, a serem implementadas entre 2007 e 2010, destinadas a: incentivar o investimento privado, aumentar o investimento público em infra-estrutura e remover obstáculos (burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos) ao crescimento.

Mais especificamente para a urbanização de assentamentos precários, a expectativa é que o volume de investimentos alcance R$ 17 bilhões nos pró-ximos quatro anos na área de habitação e saneamento.

Esperamos que os artigos reunidos neste livro não apenas contribuam qua-lificando o debate sobre a questão dos assentamentos precários, mas também venham a consolidar uma nova perspectiva das políticas públicas de integra-ção e urbanização dos assentamentos precários reforçando o reconhecimento do direito à cidade e à moradia digna, especialmente da população de baixa renda.

Inês MagalhãesSecretária Nacional de Habitação

Page 9: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

Sumário

PARTE 1

Contextualização / Caracterização 13Prof. Dr. ADAUTO LÚCIO CARDOSOIPPUR/UFRJObservatório IPPUR/UFRJ-FASE

Parâmetros e tipologias 47Profa. Dra. LAURA MACHADO DE MELLO BUENOFAU/PUC CampinasPesquisadora do LABHAB/FAU/USP

Estratégias de enfrentamento do problema: favela 61Profa. Dra. ROSANA DENALDISecretaria Municipal de Inclusão Social e HabitaçãoPrefeitura Municipal de Santo André - SP

PARTE 2

Estratégias de gestão 79Prof. Dr. SÉRGIO DE AZEVEDOTitular da Universidade Estadual Norte Fluminense e Coordenador do GT Cidade, Metropolização e Governança Urbana – Associação Nacional de pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.

O desafio da mensuração 93Profa. Dra. SUZANA PASTERNAKFAU/USP

A questão do “déficit habitacional” nas favelas: os pressupostos metodológicos e suas implicações políticas 111Prof. Dr. SÉRGIO DE AZEVEDOTitular da Universidade Estadual Norte Fluminense, Membro do Instituto do Milênio / Observatório das Metrópoles e Consultor “Ad Hoc” da Fundação João Pinheiro e do Ministério das Cidades.MARIA BERNADETE ARAÚJODemógrafa, Coordenadora do Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro

Uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional 125MARIA PAULA FERREIRA (Fundação Seade e consultora do CEM/Cebrap)EDUARDO C. L. MARQUES (DCP/USP e diretor do CEM/Cebrap)EDGARD R. FUSARO (Dieese e consultor do CEM/Cebrap)ELAINE G. MINUCI (Fundação Seade)

Page 10: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 11: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

PARTE 1Contextualização / CaracterizaçãoProf. Dr. ADAUTO LÚCIO CARDOSO

Parâmetros e tipologiasProfa. Dra. LAURA MACHADO DE MELLO BUENO

Estratégias de enfrentamento do problema: favelaProfa. Dra. ROSANA DENALDI

Page 12: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 13: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

13

Contextualização / CaracterizaçãoProf. Dr. ADAUTO LÚCIO CARDOSOIPPUR/UFRJObservatório IPPUR/UFRJ-FASE

O presente texto tem como objetivo apresentar elementos conceituais e metodo-lógicos para que possam ser delineadas propostas para a constituição de uma Política Nacional de Urbanização e Regularização de Assentamentos Precários. A primeira parte do texto desenvolve uma reflexão sobre as formas de produção e de reprodução dos assentamentos precários, enfocando dois temas: a especificidade do mercado de moradias e o papel da legislação. A segunda parte discute as tendências históricas na atuação dos bancos multilaterais de fomento (BID e Banco Mundial), buscando refletir sobre as mudanças que vêm se operando nessa atuação e estabelecendo alguns parâme-tros críticos sobre as linhas adotadas mais recentemente. Em seguida busca-se qualifi-car o que se entende por assentamentos precários, através de um breve histórico sobre os conceitos e as mudanças operadas, tanto no plano das definições quanto no plano da realidade concreta. O item subseqüente busca estabelecer, brevemente, algumas características centrais da população residente em assentamentos precários, do ponto de vista demográfico e social. O texto conclui com um histórico das intervenções sobre assentamentos precários no Brasil, buscando, basicamente, estabelecer quais as formas de intervenção e os mecanismos institucionais acionados, em cada momento. Com base nas reflexões elaboradas nestes itens, passa-se para a última seção, que apresenta algumas propostas para a discussão.

A produção e a reprodução dos Assentamentos Precários

A dinâmica socioeconômicaTomando como referência o debate internacional, duas abordagens conservado-

ras vêm obtendo substancial hegemonia recentemente: a visão de Mayo e Angel, economistas do Banco Mundial, que publicam no início da década de 90 o trabalho intitulado Housing: Enabling Markets to Work (WORLD BANK, 1993); e a visão do economista peruano Hernando de Soto (DE SOTO, 2001). Essas duas abordagens apresentam argumentos similares em alguns sentidos na explicação das causas da proliferação dos assentamentos irregulares e precários na América Latina.

Para De Soto, que trouxe a questão da regularização da propriedade para um público mais amplo, as sociedades latino-americanas se caracterizariam por apresentar uma “economia submersa”, ou seja, uma capacidade de atividade econômica e de “empre-endedorismo” que só não se desenvolve mais por causa dos obstáculos colocados por uma legislação excessiva, antiquada e com padrões irrealistas, aliada a procedimentos burocráticos morosos, excessivos e desnecessários, cujo efeito final é manter essa am-pla atividade econômica na “informalidade”. Essa mesma análise é aplicada à questão da propriedade da terra, já que os mesmos obstáculos impossibilitam a transforma-ção dessa riqueza em “capital”. Nesse sentido, a simplificação de procedimentos e a criação de um registro de propriedade unificado, que permita dar confiabilidade às transações, permitiria, na visão de De Soto, a utilização da propriedade como garantia

Page 14: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

14

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

para a obtenção de empréstimos, transformando os agentes econômicos informais em empreendedores e trazendo à tona essa economia “submersa”.

As teses de De Soto, que orientaram iniciativas de regularização fundiária apoiadas pelo Banco Mundial, não se confirmam no mundo real: a experiência levada a cabo no Peru (que compreendeu a regularização e a unificação e simplificação dos registros) não gerou efetivamente um maior acesso ao crédito para a população (COCKBURN, 2003). Com relação à crítica quanto aos procedimentos excessivos e à inadequação da legislação, De Soto não estabelece diferenças clara entre as leis inadequadas e aquelas destinadas a preservar qualidade de vida ou conquistas sociais, todas sendo considera-das como empecilhos ao empreendedorismo e justificando, portanto, procedimentos de flexibilização amplos. Por outro lado, a análise de De Soto deixa de ver as questões da terra e da propriedade imobiliária em geral como elementos de um sistema de produção específico, ou de um mercado diferenciado, ignorando outras variáveis fundamentais para se entender a dinâmica de reprodução ampliada da irregularidade e da precariedade. A visão de De Soto corresponde, de forma inequívoca, à proposta de um Estado mínimo nos moldes da ideologia neoliberal.

Um pouco mais complexa é a visão de Mayo e Angel. Através de uma análise mais sofisticada, centrada exclusivamente nos problemas do mercado de moradias, buscam identificar os limites que se colocam a este mercado do ponto de vista da oferta e da demanda.

Do ponto de vista da demanda, os autores mostram que o gasto com moradia cresce juntamente com o desenvolvimento econômico, ou seja, existiria uma forte elasticidade do lado da demanda, tendo como limite a disponibilidade de renda e considerando-se os gastos básicos (prioritários) com alimentação, vestuário, transportes etc. Obvia-mente, pressupõe-se aqui que o desenvolvimento econômico implica distribuição de renda, senão reduzindo as desigualdades, pelo menos mantendo-as no mesmo patamar e, portanto, permitindo o crescimento do rendimento dos setores mais pobres, o que nem sempre acontece, como mostram várias análises sobre o processo de crescimento econômico brasileiro (PAES BARROS e MENDONÇA, 1992).

Outros fatores que, segundo Mayo e Angel, influenciam a demanda seriam: a insegurança da posse da moradia,1 que limita o investimento no melhoramento das condições habitacionais; a disponibilidade de financiamento habitacional, através de um sistema de hipotecas adequadamente desenhado, que permita “acelerar a aquisição ou construção da moradia e uma melhor alocação dos recursos familiares entre habi-tação e outros bens, e poupanças dentro do ciclo de vida familiar” (WORLD BANK 1993: 23); por fim, subsídios para ampliar a demanda, os quais devem ser instituídos com cuidado para evitar ineficiências alocativas.

Do ponto de vista da oferta, verifica-se que a sua resposta depende de três fatores: da ação do setor público na provisão de infra-estrutura; da ação do setor público no es-tabelecimento do sistema regulatório; e do desempenho da indústria de construção.

Embora identificando esses três fatores, segundo a análise comparativa de experi-ências internacionais, apresentada por Mayo e Angel,

1 Por insegurança de posse não se define apenas a questão da legalidade da propriedade, mas, principalmente, o risco do despejo ou remoção. A experiência brasileira mostra que, uma vez interrompidos os programas de remoção, houve investimentos importantes na qualidade da moradia nas favelas consolidadas.

Page 15: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

1�

nada influencia mais a eficiência e a capacidade de resposta da oferta de moradias do que a estrutura regulatória e legal na qual os produtores de moradia operam. Todos os mercados de moradia são influenciados por um largo espectro de regu-lamentações, como códigos de edificações, padrões de infra-estrutura e de uso do solo. Apesar das óbvias vantagens de regulamentações sobre o solo e a moradia bem concebidas e implementadas, elas podem ter um sem-número de conseqüências imprevistas que tanto impõem grandes custos sobre a sociedade quanto subvertem seu sentido original. (WORLD BANK, 1993: 24)

Um dos problemas dessa concepção sobre o funcionamento do setor habitacio-nal é que ela aparentemente concede o mesmo peso para todos os elementos que influenciam a oferta e a demanda e, ao final, acaba se concentrando mais fortemente nos limites estabelecidos pela regulação e burocratização excessiva dos processos de licenciamento e de registro de propriedade da terra. No entanto, a literatura econômica é quase unânime em afirmar a relevância estratégica de dois elementos: o padrão de financiamento habitacional para a ampliação da demanda efetiva e as restrições à oferta de terras, esta última questão não tratada no estudo do Banco Mundial.

Essas análises mostram que o dilema do financiamento reside na desconexão entre as decisões de investimento – movidas segundo a dinâmica dos mercados financeiros, que estabelecem condições de rentabilidade e liquidez médias – e as possibilidades ofe-recidas pelo mercado de moradias, derivadas das características básicas do bem habita-ção: alto valor agregado, longo tempo de consumo, necessidade de um novo terreno a cada ciclo produtivo. Por isso, a solvabilização da demanda só se torna possível através da criação de um sistema de financiamento próprio. Durante algum tempo, o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) cumpriu esse papel, permitindo, através do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a ampliação da oferta de financiamentos com juros baixos e longo prazo. Com o fim do SFH e com a crescente limitação dos recursos do FGTS para o financiamento subsidiado da moradia, caminha-se para o impasse na resolução desse problema.2 O que cabe ressaltar é que essas análises estabelecem uma hierarquia de causalidade sobre a limitação da oferta, identificando o financiamento com um dos obstáculos estruturais à ampliação da oferta.

Como mostra a experiência histórica, mesmo nos países centrais a expansão do mercado de imóveis residenciais para as camadas de baixa renda, ou mesmo para setores inferiores das camadas médias, somente ocorre quando há um sistema de crédito capaz de solvabilizar amplamente a demanda, financiando no curto prazo a construção e no longo prazo o consumo. Essas experiências mostram, ainda, a im-portância do fundo público como elemento assegurador dos financiamentos.3 Além disso, deve ser considerado que, dados a estrutura de distribuição de renda e os altos níveis de pobreza, esse sistema de financiamento deve contar necessariamente com um sistema amplo de subsídios.

2 O Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), gestado no governo Fernando Henrique Cadoso, corres-ponderia à implantação, no Brasil, do modelo de securitização, inspirado nas experiências americana e chilena. No entanto, o SFI não pretende atuar na baixa renda. No Chile, o sistema de securitização funcionou mais amplamente porque os setores de baixa renda tiveram subsídio direto do governo federal, atingindo 90% do valor financiado para os setores de mais pobres.3 Mesmo o modelo americano, baseado no mercado secundário de hipotecas, tem como base duas macro-estruturas financeiras paraestatais, que ancoram o sistema. Ver, a respeito, LEAL (1999).

Page 16: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

16

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Uma vez que o produto da construção é um bem imóvel, a produção de moradias necessita permanentemente de novos terrenos. Não quaisquer terrenos, mas aqueles localizados em zonas dotadas dos equipamentos e serviços necessários à vida urbana. A variação da oferta de terrenos depende de dois fatores: as formas de propriedade e o preço da terra.

Em primeiro lugar, a predominância de relações de propriedade “não-capitalistas”, ou seja, aquelas em que predomina o valor de uso4 ou aquelas em que a terra cumpre um papel de acumulação patrimonial/reserva de valor, pode vir a ser um obstáculo à colocação de novas terras no mercado na quantidade, qualidade e localização reque-ridas para a produção de moradias.

Com relação ao preço da terra, sua variação irá depender essencialmente das con-dições de construtibilidade dos terrenos e da sua localização no espaço da cidade. Um dos componentes da construtibilidade é a natureza física do terreno propriamente dito, ou seja, sua topografia, as características geomorfológicas etc. O outro compo-nente é o conjunto de normas que regulam o uso e a ocupação do solo e as regras relativas à edificação.5 A legislação aparece aqui, portanto, como um dos fatores que definem as condições de construtibilidade dos terrenos e, portanto, seu preço.6

O fator localização envolve uma maior complexidade. Por um lado, como já foi enunciado, os terrenos disponíveis para o mercado seriam aqueles que gozassem de acessibilidade mínima aos centros geradores de emprego e que contassem ainda com um conjunto de infra-estruturas, equipamentos e serviços que garantissem um deter-minado padrão de qualidade de vida. A escassez ou a abundância relativas desses itens – transportes, saneamento ambiental, equipamentos de educação, saúde e lazer, entre outros – definirá então um mapa básico de preços de terrenos na cidade. A esse mapa básico se sobrepõe, então, uma outra dimensão, que reflete o que se poderia chamar de “divisão social e simbólica do espaço” e que consiste na valorização diferenciada que é atribuída a diferentes lugares na cidade em razão de certas características, como a pro-ximidade a certas amenidades, a qualidade da paisagem, o acesso a determinadas ativi-dades valorizadas socialmente ou, ainda, a possibilidade da auto-segregação em relação a categorias sociais consideradas inferiores na hierarquia social dominante. No caso principalmente das grandes cidades essa “qualidade simbólica” do espaço é fundamental na determinação dos preços fundiários, dadas as características ambientais e paisagísti-cas que marcam uma parte importante da cidade, nas proximidades da sua área central. Deve-se, contudo, lembrar que essa “valorização simbólica” é também produzida pelo próprio mercado, que gera a “obsolescência” de certas áreas para deslocar a demanda, abrindo novas fronteiras para a expansão da oferta imobiliária (SMOLKA, 1990).

Deve-se ressaltar, ainda, que essa “qualidade diferencial” dos bairros e localizações 4 O exemplo mais contundente é o do pequeno comerciante ou prestador de serviços que depende de uma determinada localização para manter a sua atividade, o que faz com que esse agente não se coloque no mercado segundo uma racionalidade capitalista em sentido estrito, ou seja, ele não estaria disposto a oferecer sua terra por um preço estabelecido a partir da lógica de valorização dos capitais imobiliários.5 Essas normas podem ser definidas pelo poder público ou podem ter o caráter de uma regulação privada estabelecida pelo loteador ou por uma convenção de condomínio, quando for o caso.6 Dada uma situação média de construtibilidade, ou seja, excluindo-se os casos de terrenos com caracte-rísticas físicas que impeçam ou encareçam muito a construção, o preço da terra irá refletir – para uma dada localização – o seu uso máximo potencial, ou seja, o mais rentável naquele submercado, importando pouco o estado e a qualidade das construções eventualmente existentes.

Page 17: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

1�

mais valorizados também pode ser produzida – ou preservada – por influência da legislação urbanística, através da preservação de áreas verdes, da eliminação de usos inadequados ou da manutenção de baixas densidades. Nesses casos, muitas vezes ve-rifica-se uma relação tensa entre as necessidades de preservação da qualidade local e a pressão do setor imobiliário pela alteração das normas visando a liberação de terra ou a alteração de índices, viabilizando um maior adensamento.

Como se pode identificar, a partir da análise acima esboçada, a legislação exerce um papel importante, porém determinado, sobre a oferta de moradias, sendo o problema da irregularidade ou da ilegalidade motivo de reflexão no item que segue.

Em relação às articulações entre a dinâmica do mercado de moradias e a infor-malidade, a expansão desse mercado, como vimos, depende da oferta de crédito e de terra. A primeira depende da constituição de um sistema de financiamento que permita garantir prazos maiores e juros subsidiados, o que não pode ser pensado, em grande escala, senão a partir de uma política federal.

Em relação à questão fundiária, o aumento da oferta depende, em parte, da ação do poder público na provisão de infra-estrutura, dos equipamentos e dos serviços urbanos, responsáveis, em parte, pela produção de terra “urbanizada”. A ausência do poder público na provisão da infra-estrutura gera uma escassez de terra urbanizada, com conseqüências sobre o seu preço. Nesse sentido, uma ampla política de urbaniza-ção, com forte investimento em energia, transportes, sistema viário, saneamento etc. poderá ter efeitos muito mais substantivos sobre o mercado de terra do que políticas habitacionais específicas.

A elevação do preço da terra decorrente desse processo torna extremamente difícil o acesso às camadas de renda baixa. Para “resolver” esse problema, produz-se uma tendência dual: a precarização da moradia e a informalização da produção, redu-zindo-se o preço final para o consumo de mercadorias baratas e de baixa qualidade. SANTOS (1985), descrevendo a expansão dos loteamentos periféricos, assim expressa essa tendência:

Assim as empresas podiam realizar o milagre de continuar agindo em seções do território que não permitiam lucros altos nem em grande velocidade. Praticavam uma dupla abstração: 1- Fingiam que estavam oferecendo terra urbanizada; 2) faziam crer que, no futuro, seria inevitável a ação do governo para promover a melhoria dos locais que vendiam. (SANTOS, 1985: 25)

A precarização/informalização de parcela significativa da produção habitacional tem como conseqüência uma segmentação da oferta em quatro “submercados”, com localizações geográficas diferenciadas, formas de produção específicas e agentes eco-nômicos particulares:

- O submercado em que predomina a produção formal da habitação pelos segmentos empresariais mais “modernos”, concentrada em uma região da cidade que se caracteriza pelo alto valor – material e simbólico – da terra e por um respeito maior às normas de uso e ocupação do solo – embora aí também se verifiquem irregularidades em relação à legislação;- O submercado em que predomina uma produção formal ou semiformal de loteamen-

Page 18: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

1�

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

tos populares, voltada para setores de renda baixa ou média baixa e que se estende pela periferia metropolitana, onde a irregularidade está ligada principalmente ao não-cum-primento das determinações da legislação federal de controle do parcelamento do solo (a lei 6.766 e suas atualizações ou leis municipais específicas);- As favelas7 e loteamentos clandestinos,8 onde predominam a informalidade, dada pela origem dos assentamentos (por invasão), e a maior precariedade das construções e das condições urbanísticas, tendendo a assumir características mercantis (aluguel ou venda do “direito de ocupação”).- O submercado da produção não-mercantil, que representa uma parcela importante do parque habitacional e que caracteriza uma parte importante dos subúrbios cariocas, onde a produção é feita por encomenda a profissionais especializados (empreiteiros ou arquitetos), ficando muitas vezes irregular por longo tempo até que, no momento da venda, a construção seja regularizada para que se obtenha a legalização no cartório.

Além destes quatro submercados, vem se afirmando com algum vigor, mais recen-temente, segundo algumas análises empíricas, um submercado de aluguel de cômodos que se desenvolve fortemente nas áreas periféricas e também nas áreas de favelas mais consolidadas, neste último caso, através de processos de verticalização. Embora esta seja uma situação que não é nova, a novidade parece ser a sua extensão, provavelmente decorrente da escassez de terras (para invasão ou para aquisição), o que tenderia a tornar o aluguel de quartos, de soluções provisórias, até que se viabilizasse o acesso ao lote ou à ocupação, em soluções mais permanentes.

Como conclusão, pode-se afirmar que, em função dos constrangimentos macroeco-nômicos globais (padrão de distribuição da renda, taxa de crescimento da economia, taxa de juros básica etc.), da ausência de financiamento e da limitação da oferta de terrenos, constrangida por uma política urbana (investimentos em infra-estrutura) limitada e por mecanismos especulativos, existe uma forte tendência à contínua re-produção dos assentamentos informais e precários, única alternativa viável de acesso à moradia para amplas camadas da população. Isto posto, cabe olhar com mais detalhe o debate em torno do papel da legislação na reprodução dos assentamentos precários.

O papel da legislaçãoUma vez estabelecida a dinâmica econômica de reprodução dos assentamentos

populares precários, resta discutir com maior cuidado o papel da normatização fun-diária, urbanística ou construtiva. Como já apontado, essa tese tem sido defendida por autores conservadores como De Soto e Mayo/Angel, mas também tem sido recor-rentemente utilizada por pensadores do campo progressista. Importa aqui, portanto, mais que defender posições, avançar no debate.

Neste sentido, deve-se considerar que:

7 Pode parecer excessivo caracterizar esta forma de acesso à moradia como um “submercado” e talvez efeti-vamente o seja, já que o que sempre caracterizou esse tipo de assentamento precário foi o fato de se caracterizar por uma forma de acesso à terra e de produção habitacional “não-mercantil”, ou seja, referida a outros processos sociais. No entanto, pelo menos nas grandes metrópoles pode-se pensar numa tendência à mercantilização destes espaços, como se verá em item posterior, o que nos levou a tratar este item desta forma aqui.8 Por loteamentos clandestinos entendemos aqui os processos de parcelamento realizados a partir de pro-cessos de grilagem de terras.

Page 19: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

1�

- Um exame atento da legislação urbanística vigente na grande maioria dos municípios brasileiros mostrará, inequivocamente, sua desatualização, sua inadequação às políticas que ambicionam a ampliação da oferta de moradias e sua total falta de legitimidade. O mesmo raciocínio aplica-se aos procedimentos de licenciamento e de fiscalização;- Ao mesmo tempo, não se deve perder de vista que o problema da inefetividade da lei é muito mais amplo, envolvendo questões estruturais que marcam nosso processo de desenvolvimento. Isso implica que as iniciativas de regularização e de “simplificação” da legislação, desejáveis que são, encontrarão certamente grandes obstáculos para ganhar plena vigência.

Explicitando melhor o segundo ponto, alguns autores, tratando da realidade brasi-leira ou latino-americana, têm apontado a baixa capacidade de fazer valer a legislação vigente como uma das características do nosso continente. SANTOS (1990) aponta a combinação perversa do “híbrido institucional” com a “cultura cívica predatória” como expressão máxima desse processo. Isso significa, em linhas gerais que aqui teríamos desenvolvido um amplo aparato legal, contudo caracterizado como um sis-tema que governa no vazio, com leis que não se fazem cumprir completamente e que o próprio poder público se recusa a fazer cumprir. Teríamos então um sistema legal que vige apenas sobre um pequeno grupo de cidadãos e de forma diferenciada, restando fora da capacidade pública de regulação, tanto os setores populares, onde passa a imperar um “sistema legal informal”, quanto os setores da elite que, capturando os aparatos do Estado, poderiam sempre obter legislações em causa própria, quando não a simples conivência à transgressão. Quanto à cultura cívica predatória, seria o resultado de um processo de incorporação das massas à política que precedeu a for-mação de mecanismos de intermediação de demandas como partidos, associações ou sindicatos. Assim, os indicadores mais recentes de expansão do associativismo encobririam uma fragilidade estrutural destas estruturas associativas, abrindo campo irrestrito ao clientelismo, ao populismo, à corrupção. Em síntese, a combinação do híbrido institucional com a cultura cívica predatória resultaria em uma ineficácia generalizada da norma social, com a conseqüente fragmentação e o esgarçamento do tecido social.

Já O’DONNELL (1998), analisando a realidade latino-americana, enfatiza a impor-tância da influência da situação de pobreza e desigualdade sobre o comportamento do sistema político democrático. Para o autor, um dos pressupostos da democracia é a vigência dos chamados direitos civis, ou seja, o conjunto de direitos e garantias individuais que marcaram a emergência do Estado liberal e que se constituem como uma “proteção” do indivíduo contra a tirania do Estado. Os direitos civis, como fundamento de uma situação de igualdade formal, são o pressuposto da igualdade política, que implica uma “aposta” na autonomia individual de cada cidadão, na sua capacidade de fazer escolhas e de agir, no mundo da política, em direção à construção do bem comum ou, no mínimo, do melhor possível. O fundamento desta aposta é a idéia de agency, ou seja, a capacidade de atuação política. Ora, argumenta o autor, em contextos de pobreza e desigualdade, o princípio da agency perde efetividade, já que aos mais pobres faltariam as condições mínimas para a sua sobrevivência, com-prometendo assim as suas capacidades ou a sua habilitação para o exercício pleno de seus direitos formais. Da mesma forma, a desigualdade gera situações de assimetria

Page 20: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

20

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

que implicam graus diferenciados de acesso aos recursos estratégicos de poder, insti-tuindo diferenças de fato, tanto no plano dos direitos políticos, quanto no plano dos direitos civis. Em síntese, para O’Donnell a inefetividade da lei na América Latina seria o reflexo de um sistema econômico-social extremamente desigual e gerador de pobreza que compromete estruturalmente as possibilidades de consolidação e aprofundamento da democracia.

Uma outra possibilidade de análise, que complementa a leitura de O’Donnell, par-te da revisão do papel desempenhado pelo urbanismo, na Europa como nos Estados Unidos, como parte de um conjunto de iniciativas de intervenção sobre a sociedade, denominado de Reforma Social, e da sua comparação com as situações latino-america-na e brasileira. Essas iniciativas, que tiveram início no final do século XIX, alcançaram plena vigência com a reconstrução massiva do Estado, que se operou a partir do final da Segunda Grande Guerra, inspirada nos ideais keynesianos e nos princípios do Estado do Bem-Estar ou Estado Protetor. O novo papel do Estado tinha, do ponto de vista da economia, a tarefa de intervir sobre os mercados, garantindo a estabilidade econômica, evitando as crises sistêmicas e ampliando as condições do processo de acumulação. Já do ponto de vista social, além de se colocar como o fiador do novo pacto social que garantia os contratos coletivos de trabalho, o Estado passou a investir pesadamente na provisão de um conjunto de infra-estruturas e serviços destinados a garantir a sobrevi-vência dos trabalhadores, a partir de um “mínimo social”. Este mínimo implicava um pacote de direitos sociais, considerados condição básica de cidadania, e incluíam edu-cação, saúde, saneamento, previdência, seguro-desemprego, habitação, entre outros.

A contraparte econômica da reorganização do Estado é o novo padrão de acumu-lação estabelecido no pós-guerra, baseado na reestruturação tecnológica, na produção de massa, na reorganização do sistema monetário, no pacto social sintetizado nos contratos coletivos de trabalho e nos ganhos salariais obtidos pelos trabalhadores. O novo modelo de desenvolvimento estabeleceu um círculo virtuoso de acumulação que, expandindo-se para os mercados periféricos e ampliando seus mercados internos, garantiu trinta anos de prosperidade, apenas interrompidos na década de 70.

O processo de urbanização que, na Europa e nos Estados Unidos, já tinha atin-gido seu auge nas primeiras décadas do século XX é um importante suporte deste processo. Garantindo a aglomeração industrial e de condições de acumulação, per-mitindo a concentração de mão-de-obra qualificada e abundante e, ainda, criando as bases físicas e sociais das novas práticas de consumo que irão permitir o escoamento dos novos produtos (automóveis e eletrodomésticos), a cidade fordista é não apenas cenário deste processo, mas também influencia e organiza as suas possibilidades de realização e expansão.

No entanto, para que a cidade fordista pudesse cumprir este importante papel, sem apresentar os problemas trágicos que caracterizaram a urbanização das primeiras etapas da industrialização, seu desenvolvimento não poderia ser deixado ao arbítrio do mercado. A intervenção pública sobre o desenvolvimento das cidades terá dois eixos básicos. Em primeiro lugar, através da intervenção direta, provendo infra-estrutura (sistema viário, saneamento, energia, transportes), serviços (equipamentos de saúde, educação, segurança etc.) e, ainda, atuando na produção de moradias populares. Em segundo lugar, através da regulação da atividade privada de produção do ambiente

Page 21: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

21

construído, aliada à criação de sistemas de financiamento específicos e de iniciativas de ampliação da oferta fundiária, visando a ampliação, a qualificação e o barateamento do mercado de moradias.

A legislação urbanística aparece, então, como um dos elementos deste pacote de intervenções que serviu de importante suporte ao processo de acumulação e reestrutu-ração do Estado. A regulação da produção privada do ambiente construído, aliada ao investimento em infra-estrutura, permitiu uma verdadeira reconstrução das cidades dos países desenvolvidos, baseada em um planejamento racional da distribuição da população e das atividades no espaço, adequando-os aos condicionantes ambien-tais e às possibilidades de acesso aos mercados de trabalho. Promove-se, assim, uma transformação urbana que amplia, em dimensão exponencial, a produtividade das economias urbanas.

Do ponto de vista dos “mínimos sociais”, a legislação urbanística vai estabelecer um conjunto de padrões que possam garantir salubridade e segurança, principal-mente nos bairros operários. Trata-se de um amplo projeto de reforma social, com implicações no disciplinamento da classe trabalhadora, adaptando-a às novas ne-cessidades da produção fordista e que foi o suporte físico e social da contrapartida estatal ao processo de assalariamento global que passa a marcar as sociedades capi-talistas avançadas. É em torno da moradia operária e dos bairros operários, assim como das fábricas, que se constituem as principais intervenções que garantem um padrão mínimo de qualidade de vida, considerado como direito básico de cidadania e contrapartida do assalariamento.

Os instrumentos básicos do controle urbanístico são o zoneamento, controlando a distribuição dos usos e atividades, os parâmetros de ocupação do solo (índices de aproveitamento, afastamentos, taxas de ocupação etc.), a regulamentação do parcela-mento do solo (instituindo lotes mínimos, taxas de áreas verdes etc.) e o controle sobre as edificações visando a estabilidade e a salubridade. Esse conjunto de instrumentos é usualmente articulado entre si e tem como fundamento o zoneamento. A experiência histórica do zoneamento tinha, desde o século XIX, consagrado um modelo que buscava “racionalizar” a distribuição espacial das hierarquias sociais, criando zonas segregadas segundo as classes. Em contrapartida, o modelo desenvolvido no âmbito do urbanismo modernista apresentava-se como um padrão de racionalização de fun-ções, sem discriminação de categorias sociais, estabelecendo um modelo de cidade baseada numa utopia igualitária, como se depreende da análise dos projetos de Cerdà, para Barcelona, e das propostas de Le Corbusier, sistematizadas na Carta de Atenas, bem como, no caso brasileiro, nas propostas de Lúcio Costa para as superquadras de Brasília. Nas experiências concretas da legislação urbanística, verifica-se a convivência destas duas abordagens do zoneamento, já que a segregação espacial responde a uma necessidade de “distinção” das elites e de obtenção de sobrelucros extraordinários pelos sistemas privados de produção do ambiente construído.

Como conclusão, pode-se afirmar que a legislação urbanística configura-se como um item de um pacote de direitos sociais/políticas públicas e como um elemento cen-tral do processo de reestruturação do espaço para garantir o processo de acumulação. Do ponto de vista dos direitos sociais, a legislação tem como contexto um processo de assalariamento integral (a chamada sociedade salarial, conforme CASTEL, 1998)

Page 22: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

22

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

e um novo papel do Estado na provisão de um “salário indireto”, como contrapartida de um novo modo de dominação e disciplinamento da classe trabalhadora. Ao exercer o seu papel, a legislação tem como conseqüência uma reestruturação do sistema de produção privada do ambiente construído, ancorada, entre outros elementos, num sistema estatal ou paraestatal de financiamento para o setor habitacional.

A experiência brasileira do urbanismo se constitui a partir da década de 20, con-solidando-se a partir dos anos 30, como mostram os estudo recentes (RIBEIRO e PECHMAN, 1996), tendo como referência as idéias e as experiências internacionais, divulgadas através dos Congressos de Urbanismo e das publicações especializadas. Considerando-se as tendências de crescimento apresentadas pelas grandes cidades brasileiras desde o final do século XIX, parecia bastante razoável, aos adeptos das novas teorias, a “importação” das idéias então em voga. No entanto, nosso processo de urbanização configurava-se, diferentemente do processo europeu e norte-americano, sem ser gerado por – e ser suporte espacial de – um processo global e ampliado de industrialização. Sendo a economia fundada na agricultura de exportação, cabia às cidades um papel fundamental ao processo de organização econômica, a saber, a inter-mediação comercial e financeira, como mecanismo de centralização e redistribuição dos fluxos de mercadorias e capitais (CARDOSO, 1972). Além disso, as cidades, como herança do período colonial, tinham também a função de organização dos processos de exploração, configurando-se como centros políticos importantes.

É esse papel da urbanização que explica as elevadas taxas de crescimento que geram nossos primeiros “problemas urbanos”, já na virada do século XX: cortiços, epidemias, greves, revoltas de trabalhadores etc. Menos importante foi o papel das cidades como centro de organização de um mercado interno, que, de resto, permane-cerá pouco significativo pelo menos até os anos 60, e, menos ainda, como mecanismo de apoio à industrialização capitalista, que só iria se desenvolver mais fortemente a partir dos anos 50, com o início do processo desenvolvimentista. No âmbito deste processo de industrialização restringida, a cidade brasileira configura-se como uma aglomeração de recursos e de mão-de-obra que apenas parcialmente se constituem como parte do processo de modernização capitalista em curso. É particularmente relevante para o nosso argumento que a força de trabalho não se constitua em um regime de assalariamento pleno, como nos países centrais, com grandes diferenças inter-regionais e intra-urbanas. Considerando que a população trabalhadora assala-riada sempre conviveu com uma massa de trabalhadores “informais” ou “marginais” (OLIVEIRA, 1972), pode-se afirmar que, mesmo quando o processo de industriali-zação se desenvolveu, já nos anos 60 e 70, não se pode dizer que se tenha constituído aqui uma “relação salarial” plena, como ocorreu no caso dos países centrais. Essa “relação salarial restrita” implicou perdas relativas de direitos para os assalariados e, por outro lado, a existência de não-direitos ou quase-direitos para os trabalhadores excluídos do mercado formal.9

A industrialização restringida implicou também um papel diferenciado para o Estado. A promoção do desenvolvimento econômico, desde os anos 50, passou a ser encarada como tarefa primordial do poder público, implicando investimentos

9 Mas não excluídos da economia, como mostra o estudo seminal de Chico de Oliveira (OLIVEIRA, 1972).

Page 23: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

23

extensos nas infra-estruturas necessárias ao desenvolvimento econômico e também o investimento direto em atividades produtivas consideradas estratégicas para o desen-volvimento capitalista. O esforço de financiamento do desenvolvimento econômico trouxe como conseqüência limites ao investimento social, com fortes repercussões sobre o desenvolvimento das cidades, principalmente no que dizia respeito ao apoio à produção privada do ambiente construído.

O não-assalariamento integral e os quase-direitos sociais da massa trabalhadora implicaram a existência de mínimos sociais não-universais, que eram providos pelo poder público a uma parcela restrita da população. Do ponto de vista urbano, essa situação se agravou com o fato de que os investimentos em infra-estrutura, restringi-dos, passam a ser disputados entre os grupos sociais que pressionam o poder público para conseguir os investimentos para suas áreas de interesse. Como o acesso aos investimentos públicos nas cidades é mediado pela produção privada do ambien-te construído, particularmente pelo mercado de terras e imobiliário, os interesses econômicos passam a orientar sua atuação pela captura destes investimentos como forma de realização de lucros extraordinários, garantindo assim o acesso das elites e camadas mais favorecidas à “cidade urbanizada”. Como o Estado não atua também na criação de sistemas de financiamento habitacional, a realização dos lucros imobiliários se dá principalmente pela realização de ganhos fundiários fundados no processo de diferenciação urbana, entre áreas servidas e áreas não servidas por infra-estrutura e serviços (RIBEIRO, 1997).

É esse conjunto de características que vai caracterizar os dilemas e ambigüidades da legislação urbanística entre nós, diferenciando-a radicalmente de suas congêneres nos países centrais. Com um Estado Protetor limitado, estabelecendo mínimos sociais não-universais e sem capacidade de apoiar o processo de modernização da produção privada do ambiente construído, a legislação não consegue fazer valer os seus padrões mínimos de forma universal e não consegue impor o “império da lei” (rule of law) de forma universal e homogênea. A convivência de uma legislação restritiva e segrega-dora, que, em parte, buscava proteger os mercados das camadas de mais alta renda, com uma tolerância quase absoluta à transgressão pelas camadas mais empobrecidas (desde que não atingissem os interesses diretos e imediatos da elite) deveu-se, assim, à necessidade de “conciliar” a formalidade legal com a ausência de direitos. Essa situação revelou-se ainda singularmente propícia à exploração política, já que a situação de ir-regularidade e a ausência de serviços que marcaram historicamente os assentamentos precários tornaram-se (e ainda assim permanecem) eficiente moeda de troca para a “proteção” dos políticos, dos “cabos eleitorais” e para a “política da bica d’água”.

Concluindo, pode-se dizer que a inefetividade da legislação urbanística, e mesmo da legislação que regula o direito de propriedade, reflete uma situação estrutural de não-universalidade dos direitos básicos e conseqüente disputa hobbesiana pelo acesso aos parcos investimentos públicos nas cidades. Nesse sentido, deve-se levar em conta que as iniciativas de aprimoramento da legislação, e mesmo os processos de regulari-zação fundiária, enfrentam fortes limites estruturais para a sua efetivação para além das questões específicas da qualidade da lei ou da sua forma de implementação.

O reconhecimento dos limites estruturais que se colocam para a conquista de maior efetividade da lei não devem, no entanto, obstaculizar as iniciativas de apri-

Page 24: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

24

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

moramento e reforma das normas e dos procedimentos, tão-somente devem balizar os projetos e expectativas, no sentido de que se construam intervenções mais eficazes e, talvez, menos ambiciosas. Por outro lado, tendo em vista as relações entre a rule of law e a normalidade democrática, deve-se levar em conta que os eventuais avanços em termos de maior eficácia e capacidade normativa em termos urbanísticos terão reflexo importante na construção de um estado de direito, base de uma democracia saudável e estável. Nesse sentido, vão as observações que se seguem.

A grande maioria dos municípios brasileiros, à exceção das grandes cidades, se-gundo avaliações recorrentes, não atualiza a sua legislação urbanística básica há muito tempo. Trata-se de normas antigas, elaboradas na década de 70, sob influência do extinto Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau) ou de órgãos estaduais de planejamento. Os técnicos locais, responsáveis pela aplicação da lei, em geral têm pouco ou nenhum conhecimento da lógica que levou à formulação daqueles instru-mentos. A legislação, que vai se tornando obsoleta com o passar do tempo, perde legitimidade e passa a ser modificada de forma pontual, caso a caso, muitas vezes ao sabor de pressões políticas ou econômicas. As mudanças recorrentes de partes da legislação acabam criando uma superposição de normas, o que dificulta enormemente a sua compreensão e aplicação. Perde-se a eficácia e a legitimidade, criando-se um aparato normativo confuso e inconsistente, que pode ser aplicado de forma discricio-nária, fortalecendo a irregularidade “legítima”, pela ineficácia da lei e pelo arbítrio de sua aplicação. Esse quadro acaba reforçando as exceções especiais que se submetem aos padrões de clientelismo e corrupção. A essa confusão e inconsistência do aparato legal, soma-se a incapacidade de aplicação das normas pelas administrações locais, dadas a precária estrutura de fiscalização e a ausência de instrumentos de incentivo à regularização. Em resumo, o quadro geral é de um sistema legal pouco eficiente, sem consistência do ponto de vista urbanístico e, portanto, incapaz de controlar, mesmo se praticado, os principais problemas urbanos.

A complexidade da legislação produz, além dos problemas acima apontados, um processo de licenciamento obscuro e tortuoso que se prolonga no tempo, fortalecendo o poder dos funcionários corruptos e dos “despachantes”, intermediários especializados no conhecimento dos caminhos obscuros da burocracia pública. Os procedimentos de licenciamento, principalmente nas grandes cidades, requerem a passagem da documen-tação por vários órgãos da administração municipal, quando não é necessário consultar instâncias estaduais e federais (o que acontece usualmente em casos de áreas de interesse ambiental ou de preservação do patrimônio). A simplificação dos processos de aprova-ção de projetos é hoje uma tarefa fundamental para garantir a eficácia da legislação.

Tendo em vista o diagnóstico acima, pode-se sugerir algumas medidas de revisão dos instrumentos normativos que vêm sendo discutidas pela literatura especializada, o que é apresentado na última seção deste texto.

O papel das agências multilaterais

No caso do Banco Mundial, até 1975 sua atuação se caracterizou pelo financiamen-to prioritário da infra-estrutura para o desenvolvimento, concentrando-se principal-mente nos setores de energia e transportes, desconsiderando o financiamento do setor

Page 25: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

2�

habitacional. Tinha-se como certo que o desenvolvimento econômico promoveria efeitos de crescimento e de redistribuição da renda e das oportunidades de emprego, gerando respostas “naturais” de enfrentamento da pobreza. Já o Banco Interameri-cano de Desenvolvimento (BID), mais comprometido com o desenvolvimento de programas sociais, tinha os investimentos habitacionais em seu portfolio de emprés-timos, concentrando-se, até cerca de 1975, em financiar programas de construção de conjuntos habitacionais.

Essa postura mudou no período posterior (de 1975 a 1985), em que atenção especial foi conferida às políticas sociais para redução da pobreza e às experiências alternativas. Foi a época do desenvolvimento dos projetos urbanos, principalmente nas áreas de infra-estrutura e habitação. Os principais projetos apoiados foram os de tipo site and service (lotes urbanizados) ou slum upgrading (urbanização de favelas), concebidos como projetos experimentais, pontuais, em pequena escala e de baixo custo, buscando gerar dinâmicas locais que replicassem as experiências. Grande ênfase se dava então à busca de tecnologias e metodologias “alternativas” que reduzissem o custo dos inves-timentos e permitissem o aproveitamento de materiais e mão-de-obra local.

Cabe ressaltar que boa parte dessas ações inspirava-se nas idéias de John TURNER (1972), feroz crítico das soluções habitacionais “tradicionais” – construção de grandes conjuntos em áreas periféricas –, que via como “problemas”, valorizando as experi-ências autônomas e “espontâneas” de autoprodução da moradia popular – que via como “soluções”. Essas idéias tiveram forte repercussão internacional, principalmente na Conferência do Habitat, em 1976, e começam a construir um consenso interna-cional entre especialistas e policy-makers sobre a necessidade de mudar a política de “erradicação” das favelas por ações de urbanização que preservassem o patrimônio construído, garantindo a “segurança de posse” e provendo a infra-estrutura, permi-tindo o investimento dos próprios moradores nas melhorias habitacionais.

Cabe ressaltar que até meados da década de 80 os organismos internacionais não exerceram influência direta sobre a definição das linhas políticas centrais na política urbana brasileira, já que havia então disponibilidade de recursos financeiros de baixo custo. Só com a crise geral da economia nos anos 80 e com a falência do sistema de financiamento ao desenvolvimento urbano é que os programas dos Bancos Mundial e Interamericano passam a ser atraentes para o governo federal e, mais tarde, para os go-vernos locais. As mudanças que se operam devem-se a uma combinação de dois fatores: a ascensão, no campo decisório federal, dos economistas que pregavam o ajuste e uma política mais forte do BM e do BID de apoiar as reformas nessa direção. É importante lembrar aqui que a entrada de capitais via BM e BID foi importante na manutenção do equilíbrio externo, já que não existiam, naquele momento, capitais em disponibi-lidade, a baixo custo, no mercado financeiro internacional. O apoio do BM e do BID era também importante para as negociações com outros organismos internacionais, o que fortaleceu uma aliança entre os economistas conservadores, que passam a ganhar maior poder na gestão econômica interna e na burocracia dos bancos multilaterais.

Entre 1985 e 1990 verifica-se uma concentração das ações em direção às medidas de ajuste estrutural. Uma das ênfases da ação do banco passa a ser o financiamento de reformas institucionais, na direção dos objetivos de eficácia da ação pública num contexto de desregulamentação e privatização, como foi, por exemplo, o caso do fi-

Page 26: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

26

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

nanciamento do Programa de Modernização do Setor de Saneamento. Do ponto de vista urbano, verifica-se uma ênfase em projetos de apoio institucional, articulados às intervenções de melhoramentos integradas, incorporando outras dimensões, além da infra-estrutura (emprego e renda, educação, saúde, desenvolvimento comunitário etc.), intitulados “projetos urbanos programáticos”. Estes projetos contam com certa flexibili-dade na sua definição, pretendendo ajustar-se às demandas ao longo do tempo, a partir de critérios de elegibilidade predefinidos. No Brasil, um exemplo é o Projeto Grande Recife (administração Gustavo Krause), depois estendido a Salvador e a Fortaleza.

De 1990 em diante, o novo discurso do Banco Mundial busca atenuar os efeitos sociais das políticas de ajuste, articulando-as a estratégias de alívio à pobreza e à criação de “poverty safety nets”. O documento de 1991 intitulado Urban Policy and Economic development: an agenda for the 90’s coloca no centro da agenda o aumento da “produtividade da economia urbana”, como estratégia básica para enfrentar a questão da pobreza, aliada a ações específicas nesta área. É curioso este deslocamento, já que o problema da economia é usualmente tratado na escala nacional ou, no máximo, na regional. Neste caso, parece que, dada a imposição do ajuste, que se realiza na escala nacional, o aumento da produtividade da economia urbana visaria minimizar os im-pactos negativos do ajuste, criando alternativas locais para o crescimento do emprego e da renda. Uma das conseqüências deste ideário foi o desenvolvimento das estratégias de competição entre cidades, cujos efeitos danosos já foram suficientemente tratados pela literatura. Projetos urbanos programáticos ganham maior espaço nas linhas de financiamento do banco, recuperando a urbanização de favelas (slum upgrading), que passa a ser um componente fundamental dos projetos, passando a colocar como ques-tão o scaling-up (ou seja, como sair dos projetos pontuais para ações de maior escala, em termos urbano e/ou nacional), atingindo os pobres de forma mais ampla.

Cabe ressaltar que a ênfase na urbanização de assentamentos precários tem outro objetivo estratégico: a focalização (targeting), ou seja, a garantia de que a população alvo será atingida. Documentos do BID e do BM, avaliando experiências anteriores, levantam este problema (os programas não atingem aqueles que seriam seus principais beneficiários) e o único consenso parece ser que a focalização geográfica (atuação em bolsões de pobreza) seria a forma mais eficaz de evitar que os recursos investidos fossem apropriados por outros grupos. Um conjunto de textos trabalha especifica-mente com os problemas de targeting surgidos em projetos descentralizados, em que os níveis de governo locais teriam poucos incentivos a concentrar efetivamente os investimentos nas áreas mais carentes.

Outro elemento importante é a recuperação de custos (cost recovery), enfatizando a necessidade de mobilizar a população atingida para pagar: isso implica, inclusive, metodologias participativas que permitam desenhar os programas de investimento tomando como base as escolhas feitas pela população segundo a sua willingness to pay (disponibilidade para pagar pelas benfeitorias).

A partir da década de 80 o BM e o BID passam a negociar com os níveis subna-cionais, ao invés de continuar atuando no nível federal e através de órgãos setoriais, como acontecia antes. Assim, além do caso de Recife, já mencionado, em 1989 o Banco Mundial financiou o Programa Reconstrução Rio, sob a responsabilidade do governo do estado do Rio de Janeiro, destinado ao atendimento emergencial às vítimas de en-

Page 27: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

2�

chente ocorrida em 1986, e em 1992 financiou o “Programa de Saneamento Ambiental do Reservatório Guarapiranga” envolvendo a urbanização de favelas. Em 1993, o BID inicia os entendimentos para o financiamento do projeto “Favela-Bairro”, desenvolvido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, e, em 1994, o “Projeto Cingapura”, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo. Nestes casos, o aumento da escala foi buscado através de um financiamento que contempla várias favelas. Uma outra experiência se deu atra-vés do Programa Habitar-Brasil-BID, em que se buscou o scaling-up através de uma negociação de nível nacional, com a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano (SEDU/PR) controlando o repasse de recursos para as unidades descentralizadas.

Os problemas identificados nesta trajetória de progressiva importância dos orga-nismos multilaterais na política urbana brasileira são:

- A subordinação a diretrizes e prioridades políticas que não são definidas internamen-te, com perda de autonomia e soberania nacional;- A uniformização de regras e procedimentos para todo o território nacional, desconside-rando a diversidade de necessidades e de experiências histórico-políticas;- A estipulação de limites máximos de financiamento que desconsideram a diversidade dos custos de urbanização nas regiões, gerando problemas para o atendimento de situa-ções de desadensamento e de atendimento às populações em áreas de risco.

Além destes problemas, outras questões que merecem reflexão dizem respei-to ao modelo de participação popular proposto pelos projetos financiados pelo BM/BID, que têm como objetivo mais importante um aumento da eficácia e da eficiência da ação. Neste sentido, a participação da população diretamente bene-ficiada permitiria:

- Ajustar o desenho final da intervenção às “necessidades reais” da população;- Aumentar o controle social sobre os investimentos, garantindo maior accountability e, logo, permitindo que os investimentos do Banco tivessem maior segurança de atingir os seus objetivos;- Aumentar a legitimidade das intervenções, o que, paralelamente, aumentaria a legiti-midade do Banco em países do Terceiro Mundo (como a participação destes organis-mos na estratégia geral de ajuste estrutural tem gerado fortes críticas, a ação social do BM e do BID tem o sentido explícito de compensar a atuação do FMI e de reforçá-la, ao associar os empréstimos ao ajuste estrutural e às propostas de privatização setorial, como no caso do saneamento; a participação atua no sentido de aumentar a legitimida-de dentro deste contexto);- Reduzir custos de implementação, já que a população participante controlaria a atua-ção das empreiteiras ou do poder público, reduzindo a necessidade de investimentos em auditorias externas.

Considerando estes elementos, o modelo de participação preconizado pelos Bancos tem o caráter do que AZEVEDO e PRATES (1991) denominaram de “participação restrita”, em que a agenda da deliberação é restringida a elementos acessórios, e a redução de custos e a legitimação das ações têm importância central.

Uma perspectiva de participação no contexto de um governo democrático-popular deve ter outros objetivos:

Page 28: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

2�

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

- Constituição da população como atores sociais e políticos, capazes de se colocar como sujeitos no espaço público;- Constituição de uma esfera pública que desloque o eixo do processo deliberativo para terreno situado na interface entre Estado e sociedade organizada.

A construção destes dois grandes objetivos tem como pressupostos:

- Construção de espaços institucionais que permitam e incentivem a constituição de atores e da esfera pública;- Capacitação e educação política da população no sentido de ampliar a capacidade de formulação e deliberação;- Capacitação e educação política dos quadros técnicos dos vários níveis de governo, no sentido de criação de procedimentos que assegurem a transparência e a democracia e permitam o desenvolvimento de ações eficazes e eficientes em ambiente participativo;- Tomar-se a participação como objetivo em si, o que implica estabelecer prazos e pro-cedimentos adequados a processos de deliberação ampliada e abrangente;- Formação de novas lideranças para ocupar com maior eficácia o espaço público constituído;-Democratização da informação para assegurar decisões competentes e evitar a mani-pulação política;- Constituição de mecanismos de implementação dos processos decisórios que assegure os objetivos centrais de eficiência e eficácia e transparência das políticas.

Cabe ainda ressaltar a criação da Cities Alliance, agência de nível internacional criada para implementar o City Development Strategy, programa que tem o objetivo de estimular a elaboração de planos que viabilizem a redução da pobreza e o desen-volvimento econômico urbanos, formado por uma “parceria” entre o Banco Mundial, o Habitat e o PGU (estes dois últimos, programas das Nações Unidas, no âmbito do PNUD). Na concepção do Cities Alliance, “favelas são o resultado de políticas fra-cassadas, má governança, corrupção, regulação inapropriada, mercados fundiários disfuncionais, sistemas financeiros irresponsáveis e uma fundamental ausência de vontade política” (Citties Alliance, citado em DENALDI, 2002: 34). Essa definição revela e sintetiza a mudança no diagnóstico sobre os problemas sociais e urbanos, que se opera desde o início dos anos 90 e se consagra na Habitat 96: favelas não são o fruto de problemas estruturais da sociedade e da economia, mas são fundamental-mente o resultado de má governança, ou seja, de governos que não conseguem acionar mecanismos adequados de facilitação da atuação dos mercados.

Importa aqui ressaltar que, sem perder as oportunidades de financiamento que, dado o quadro atual, são sem dúvida importantes, isso não deve implicar a subordi-nação a objetivos ideológicos e políticos que não se coadunam com os princípios da Reforma Urbana.

Políticas de tratamento do problema dos assentamentos precários: um breve histórico

Cortiços, estalagens ou casas de cômodos eram as denominações dadas às habi-tações populares predominantes no século XIX. Identificados, nas concepções higie-nistas, como focos de contaminação e de propagação de doenças, além de locais de

Page 29: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

2�

concentração das “classes perigosas”, são objeto de programas de erradicação, através da proibição no aparato regulatório que começava a se criar naquela época e, princi-palmente, da famosa política do “bota-abaixo” que caracterizou a gestão do prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro. No caso do Rio, essa política teve sucesso, relegando o problema dos cortiços a números pouco significativos, hoje, enquanto em São Paulo trata-se de uma forma de acesso à moradia que ainda apresenta relevância, abrigando um contingente significativo da população.10 No entanto, o “sucesso” da erradicação significou tão-somente a transferência do problema para outros lugares: na falta de outras opções a população de baixa renda, na maioria das cidades brasilei-ras, sobe os morros ou ocupa as áreas de mangues e alagados, pouco valorizadas pelo mercado fundiário incipiente, gerando o “problema” das favelas (vilas, mocambos, palafitas, malocas, invasões, baixadas etc.).

Tal como ocorreu com os cortiços, as favelas, tão logo percebidas11 e transfor-madas em um “problema”, são objeto de restrições do aparato regulatório. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Plano Agache, apresentado em 1930, identificava uma “inversão” da função adequada das áreas ocupadas por estes assentamentos, que, pela sua localização, deveriam acolher população de classe média. Para a população favelada, o Plano previa a construção, na periferia, de “cidades-satélites”, junto a zonas industriais que proveriam emprego para a população de trabalhadores pobres. Largamente inspirado no Plano Agache, o Código de Obras de 1936 (Decreto 6.000), em seus artigos 347 e 349, proibia a construção de novas favelas e a realização de melhorias nas favelas existentes, a serem substituídas por “núcleos de habitação de tipo mínimo” através da construção de “habitações proletárias” (VALLADARES, 1980; MACHADO DA SILVA, 1981).

Em que pese a força formal e simbólica dessa proibição, ela não se traduz em um plano de erradicação, marcando uma postura ambígua em relação aos assentamentos populares. Por um lado, a expulsão dos favelados tendia a ocorrer através das ações de reintegração de posse e, por outro lado, até a década de 60, as propostas governamen-tais usualmente contemplavam a realização de melhoramentos nos assentamentos. Pode-se citar, tendo ainda como exemplo o caso do Rio de Janeiro, a criação, em 1941, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, dos Parques Proletários Provisórios, que deveriam acolher a população favelada enquanto se construíam casas definitivas, de alvenaria, nas favelas. A concepção que norteava a criação dos Parques Proletários era a de que a favela era principalmente um lugar de acolhida de migrantes, um “estágio” em uma trajetória de progressiva integração social, que deveria ser acelerada através da trans-ferência dos favelados para os Parques e sua posterior integração em um ambiente urbano “normal”. Ainda na década de 40, outras iniciativas oficiais visavam atuar sobre o “problema” das favelas cariocas: a Fundação Leão XIII, criada a partir de uma “parceria” precoce entre a Arquidiocese do Rio de Janeiro e a Prefeitura, atuou, entre 1947 e 1954, em cerca de 34 favelas, através da provisão de serviços básicos, criando Centros de Ação Social em oito delas; a partir de 1955, a Arquidiocese age através

10 Não existe referência à existência de cortiços em outros lugares, parecendo tratar-se portanto de um pro-blema específico da cidade de São Paulo.11 Durante um certo tempo estes assentamentos proliferam sem serem tratados como um “problema”, per-manecendo, portanto, “invisíveis” (ALFONSIN, 2000).

Page 30: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

30

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

da Cruzada São Sebastião, enquanto a Prefeitura criava o SERFHA (Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas). A Cruzada São Sebastião atuou realizando melhorias em serviços básicos em doze favelas e teve como principal marca de sua atuação a edificação de um conjunto de prédios no bairro do Leblon (situado na Zona Sul carioca, uma das mais caras do Rio), que abrigou populações oriundas de três favelas próximas. Além disso, a Cruzada interferiu contra o despejo de três outras favelas (Borel, Esqueleto e Dona Marta).

A literatura aponta que foi só na década de 60, com o programa de erradicação de favelas desenvolvido pelo governador Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, que a pola-rização entre remoção e urbanização apareceu no debate (MACHADO DA SILVA, 1981; VALLADARES, 1980). O processo de remoção causou grande repercussão e resistência por parte da população favelada, embora tenha contado com apoio das camadas médias e do setor imobiliário, diretamente beneficiado por algumas remo-ções. Uma das comunidades que teve maior capacidade de resistência foi a de Brás de Pina, que, com apoio de setores da Igreja, conseguiu permanecer no local e passou a lutar pela urbanização. O governo subseqüente, comprometido por compromissos de campanha com a urbanização, criou a Companhia de Desenvolvimento de Co-munidades (Codesco), em 1968, dando início a um processo de urbanização em três favelas (Mata Machado, Braz de Pina e Morro União) que, pelo escopo da proposta e pela metodologia empregada, tornou-se referência, desde então, no debate nacional, justificando que nos detenhamos um pouco no seu conteúdo.

A proposta da Codesco tinha como objetivo central “integrar a comunidade sub-normal no bairro adjacente” (BLANK, 1977: 11), o que deveria ser conseguido através de três iniciativas:

1. Infra-estrutura: a ser desenvolvida sob total responsabilidade do Estado, sem incidência de qualquer custo para a população;

2. Melhoria habitacional: segunda fase do programa, desenvolvida sob responsa-bilidade da população, contando com apoio do poder público e visando “propiciar as condições mínimas de higiene e segurança dos padrões de moradia” (idem, p. 12);

3. Desenvolvimento socioeconômico: “visa principalmente criar pré-requisitos tais que permitam à população de menor faixa etária desenvolver-se em ambiente de normalidade urbana em todos os seus aspectos, da higiene à segurança social”. Para atender a este objetivo era considerado objetivo central a “definição da propriedade do terreno” (ibidem, p. 13).

O objetivo referido de “integração social” tinha como pressuposto a noção de “mar-ginalidade”. Considerava-se, neste sentido, que a população favelada era marginal, no sentido de um déficit de participação: “nesse sentido, os diferentes membros de uma sociedade não participam igualmente dos benefícios da vida social. E o conceito de parti-cipação precisa ser referido às esferas de organização da organização social determinada: participação nos benefícios da vida econômica, da educação, do governo, da comunida-de, das atividades recreativas, etc.” (ibidem, p.15). Segundo Blank, seguindo este racio-cínio, “os bairros marginalizados, como denominamos às vezes as favelas, necessitam integrar-se porque não estão incorporados totalmente, não têm participação social em algumas esferas do sistema (...) principalmente no que se relaciona ao sistema moradia, a própria habitação e suas complementações de serviços” (ibidem, pp. 15/16).

Page 31: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

31

O que cabe ressaltar aqui é que o diagnóstico da marginalidade social é estendido ao “aglomerado sub-normal” e reduzido à dimensão das estruturas físicas da moradia (habitação, infraestrutura e serviços). Nesse sentido, de certa forma se recupera uma visão que predominou nas teorias urbanísticas do início do século XX, qual seja a de que a intervenção sobre o espaço permitiria efetivar mudanças civilizatórias e disci-plinadoras sobre as “classes perigosas”. É dentro desse contexto que também ganha outro sentido a visão da participação da população no processo de urbanização, já que se trataria do desenvolvimento de uma consciência cívica, através de um pro-cesso pedagógico ensejado pela participação. Essa concepção era bastante difundida na América Latina entre os anos 50 e 60, pelas instituições reformadoras como o DESAL e a Igreja.

Uma outra forma de enfocar a mesma problemática, que era uma referência na ex-periência de Brás de Pina, era a concepção de John Turner acerca do papel da moradia como elemento fundamental no processo de integração social dos migrantes rurais à vida urbana “moderna”. Segundo TURNER (1973), a abordagem que orientava as políticas habitacionais oficiais desconsiderava que a habitação exercia três funções fundamentais no processo social: localização, segurança da posse e conforto. E, ainda, que essas três funções tinham importâncias diferenciadas, dependendo da etapa do ciclo de integração do migrante à vida urbana. Para os migrantes recém-chegados, a localização colocava-se como a função mais importante da moradia, pouco im-portando os aspectos da segurança de posse e do conforto. Era isso que explicava, no caso peruano, a proliferação dos corralones, aglomerados de choças em terrenos vazios nos centros urbanos, ou, no caso brasileiro, a proliferação de favelas nas áreas centrais, ocupadas por “biscateiros”. Já para o migrante que tivesse opções de trabalho mais regulares ou empregos mais ou menos fixos, a segurança de posse assumia papel mais importante, como ponto de apoio para enfrentamento dos eventuais períodos de desemprego, sendo a solução habitacional mais adequada a barriada, invasões em terrenos periféricos, no caso peruano, ou os loteamentos populares, no caso brasilei-ro, em que os moradores começam paulatinamente a investir em infra-estrutura e, posteriormente, na solução habitacional. Por fim, para os setores da população que conseguem maior estabilidade e capacidade de ascensão social, integrados ao merca-do de trabalho formal, a opção é o subúrbio tradicional, valorizando-se a função de abrigo/conforto em detrimento da localização e da segurança de posse (no sentido em que esta população pode, por exemplo, pagar aluguel).

O que aparece de forma implícita na visão de Turner é que, em primeiro lugar, está pressuposto um processo evolutivo de integração social, ou seja, de progressiva adapta-ção dos migrantes rurais à vida urbana “moderna”, o que apontaria, num horizonte de tempo mais ou menos longo, para uma sociedade totalmente integrada, a partir do pro-cesso de desenvolvimento econômico. A formulação deixa de lado, portanto, outras hi-póteses sobre as desigualdades estruturais que marcam o processo de desenvolvimento latino-americano, como fruto da lógica do processo de desenvolvimento mesmo e não como fruto do nosso “atraso”. Outro ponto importante é o papel desempenhado pela habitação no processo de integração. Para Turner, “a favela, a barriada, o subúrbio, etc., ao se desenvolverem progressivamente, constituem poderoso agente de integração econômica – graças ao fato de que aí muitos têm liberdade para investir seus próprios

Page 32: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

32

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

recursos à sua maneira individual” (TURNER, 1968: 19). Aqui ganha talvez sua mais completa expressão a tese de que os programas ditos “alternativos”, preconizados por Turner e largamente adotados internacionalmente daí em diante, visassem construir a integração social através da integração física: apoiando a população na autoconstrução de seu habitat proporcionava-se, além das melhorias físicas estritas, a integração social ou, como postulava a Codesco, o “desenvolvimento socioeconômico”.

Essa concepção permanece, ainda hoje, subjacente às intervenções em favelas, o que deve ser objeto de nossa reflexão.

Como outros elementos presentes no modelo de intervenção preconizado pela Codesco e experimentado na favela de Brás de Pina, temos os seguintes elementos:

1. Diferentemente de outras experiências de intervenções pontuais em favelas, em Brás de Pina foi desenvolvido um projeto de urbanização, que redesenhava o sistema viário, estabelecia uma nova divisão da terra em lotes e indicava a distribuição da infra-estru-tura e dos equipamentos coletivos.2. O sistema viário proposto criava uma hierarquia viária interna à favela, com vias principais, destinadas ao fluxo principal de veículos, que eram um dos elementos cen-trais da proposta de integração ao bairro adjacente, e vias secundárias, de pedestres, mas com dimensionamento adequado para também permitir a entrada de veículos.3. O sistema viário, por outro lado, “respeitou ao máximo a estrutura original da favela, tentando preservar as unidades construtivas em bom estado, sem prejuízo do projeto, bem como o tipo de circulação já existente, fluxo natural de vias de pedestres, corrigin-do apenas as descontinuidades e permitindo o tráfego normal e ocasional” (BLANK, 1977: 77).4. Ao reestruturar a distribuição das moradias através do loteamento, o projeto de urba-nização efetuou uma equalização da divisão da terra no assentamento, com lotes médios de 120 m2.5. O projeto não previu a oferta de serviços coletivos como escolas e postos de saúde no interior do assentamento, considerando a ampla oferta existente no bairro do entorno e considerando ser esta iniciativa mais favorável ao processo de integração visado.6. O projeto de urbanização foi amplamente discutido com a comunidade, que pode esco-lher entre as opções apresentadas, tendo optado por um padrão que se aproximava mais das soluções dos loteamentos “normais”. Todo o complexo processo de relocalização que foi necessário, dada a quase total reestruturação da área, foi também amplamente discuti-do, tendo as famílias oportunidade de escolha dos lotes para onde seriam transferidas.7. Foi originalmente prevista a participação da população local na execução das obras de infra-estrutura, através do mutirão, o que todavia não foi efetivado, já que havia a necessidade de concluir rapidamente a obra, tendo em vista as dificuldades políticas que o programa enfrentava na administração local e a franca oposição do BNH.8. A proposta enfatizava muito a ampla liberdade de concepção das moradias pelos mo-radores. As propostas de melhorias habitacionais implicaram de fato novas edificações, já que a maioria esmagadora das habitações era em barracos de madeira e que houve ne-cessidade de relocalizar praticamente toda a população. A produção de novas unidades foi acompanhada pela “equipe de campo”, que discutia os projetos apresentados pelos moradores, fazia estimativa do material a ser consumido, para efeito de dimensiona-

Page 33: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

33

mento do financiamento a ser solicitado ao BNH,12 aprovava o orçamento apresentado pelos fornecedores de material de construção e acompanhava a execução da obra.9. A construção das moradias foi realizada através da autoconstrução, entendida como mecanismo de redução do custo final e, na linha de Turner, como forma de adaptar o ritmo e o programa às necessidades cambiantes das famílias.10. Foram instituídos parâmetros de uso e ocupação do solo, visando disciplinar a ex-pansão da área o que, no entanto, nunca foi respeitado, mesmo enquanto a equipe téc-nica permanecia em campo.

A experiência de Brás de Pina e das outras favelas urbanizadas sob a égide da Codesco firmou-se como uma referência “alternativa” no exato momento em que o regime militar endurecia a repressão à resistência da população favelada às remoções, que alcançaram, entre 67 e 74, seu apogeu.13 A partir da segunda metade da década de 70, o próprio BNH acabou por instituir programas alternativos, dentre os quais destacou-se o Programa de Erradicação da Sub-habitação – Promorar, que se apre-sentava, inclusive, como “inovador”: “será a primeira vez que se fará uma erradicação de favelas no Rio, deixando os moradores na mesma área”, segundo palavras do então ministro Mário Andreazza.14

Nos anos 80, seja com apoio do BNH, seja com utilização de recursos próprios, verificam-se iniciativas de governos estaduais e municipais no sentido de desenvolver programas de urbanização de assentamentos precários. Em Minas Gerais, o governo estadual, sob o âmbito da legislação do ProFavela,15 criou o Programa de Desen-volvimento de Comunidades – Prodecom, em 1979, que em 1983 foi reestruturado e denominado Programa de Integração Urbana na Região Metropolitana de Belo Horizonte – PIURMBH, que contou com o apoio da cooperação alemã, através da GTZ – Gesellschaft fur Technische Zusammenarbeit, como um dos projetos cons-tantes do Programa de Viabilização de Espaços Econômicos para as Populações de Baixa Renda - Prorenda. Pensado como projeto piloto com intervenção prevista em áreas faveladas da RMBH, o PIURMBH tinha como pressuposto “que os projetos fossem elaborados e implantados pelos próprios moradores e suas associações com interferência institucional apenas no que se refere à assistência técnica e financeira” (NAVARRO, 1993: 15).

Outras experiências se desenvolvem no país, ao longo dos anos 80, cabendo res-

12 Através do programa RECON-SOCIAL, que foi utilizado pela primeira vez na experiência de Brás de Pina.13 A Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), criada poucos meses após criação da Codesco, tinha como objetivo erradicar as favelas cariocas, contando para isso com o apoio político do governo federal e os recursos do BNH. A Cohab passou então a trabalhar sob a supervisão da CHISAM, que, por sua vez, estava diretamente subordinada ao Ministério do Interior. Ao gover-nador eleito restou manifestar apoio à iniciativa (VALLADARES, 1980). A ação da CHISAM desenvolve-se até 1974, englobando ainda o período primeiro mandato do governador Chagas Freitas. A remoção concentrou-se essencialmente na Zona Sul da cidade, atingindo o total de mais de 16.000 unidades. Em Belo Horizonte, a política de erradicação é intensificada no final da década de 60, com a criação da CHISBEL – Coordenação de Habitação de Interesse Social, com “cerca de 10.000 famílias, ou seja, cerca de 43.000 pessoas foram expulsas de 423 áreas invadidas, em muitos casos por meios violentos, recebendo indenizações insignificantes” (Berenice Guimarães, apud DENALDI, 2003).14 Citado em VALLADARES (1980).15 Lei 3532/83, autoriza o Executivo a criar o ProFavela; Decreto Municipal 4762 de agosto de 1984, criação do ProFavela; Lei 3995 de janeiro de 1985, regulamentação do ProFavela Programa Municipal de Regularização de Favelas, ProFavela (Lei nº 3.995/85).

Page 34: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

34

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

saltar a intervenção nos Morros do Pavão/Pavãozinho e Cantagalo, no Rio de Janeiro, no primeiro governo Brizola, e a experiência do Recife, com a promulgação da lei do PREZEIS, em 1983.

O caso do Pavão/Pavãozinho/Cantagalo foi a primeira intervenção em uma fave-la de maior porte em encosta, gerando uma metodologia que veio a ser mais tarde adaptada e empregada em outras experiências no país, como no caso de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, em Vitória, com o Projeto Terra, e no Projeto Favela Bairro, desenvolvido no Rio de Janeiro a partir de 1994. Os elementos centrais con-templavam a implantação de infra-estrutura e a criação de uma via carroçável que penetrava na favela num trajeto que buscava atender, o máximo possível, aos pontos mais distantes, facilitando o acesso de ambulâncias e outros veículos. Dadas as altas declividades, não foi possível o acesso de caminhões de lixo, sendo a questão resol-vida através de caçambas. Buscou-se ainda estabelecer limites físicos, visando conter o processo de expansão. Diferentemente do caso de Brás de Pina, manteve-se aqui a estrutura existente (incluindo os becos e vielas), sem intervenções nas edificações. Outra grande diferença em relação a Brás de Pina foi a implantação de equipamen-tos sociais (escola, creche, quadra de esportes etc.). Fazia ainda parte do projeto a implantação de um teleférico (sistema de plano inclinado) para viabilizar o acesso às partes mais altas do morro.

A experiência do Rio consagra um modelo de intervenção em que a estrutura bási-ca da favela não é alterada, não se realizam investimentos em melhorias habitacionais e se incorporam ao projeto físico-urbanístico alguns equipamentos sociais.

Já o caso do Recife tem como elemento central um novo modelo de gestão do problema das favelas que combina a pré-regularização, através da criação das Zonas Especiais de Interesse Social, que garante a segurança de posse, com um programa de urbanização, a largo prazo, com forte participação popular através das Comuls (Co-missões de Urbanização Locais) e do Fórum de PREZEIS, que reúne as representações das Comuls, organizações não-governamentais e governo, num fórum deliberativo com maioria da representação popular. Uma das novidades do PREZEIS é que ele aponta para uma solução global para o problema das favelas, que, uma vez transfor-madas em ZEIS, instalam suas Comuls, têm elaborado um projeto de urbanização e iniciam os procedimentos de regularização fundiária.

O modelo do Fórum de PREZEIS permanece como uma experiência restrita ao Re-cife, embora tenha servido de inspiração a várias legislações e experiências municipais no Brasil.16 Ressalte-se, principalmente, a importância da adoção da legislação de AEIS ou ZEIS como mecanismo de segurança de posse e de viabilização da regularização urbanística que é adotada hoje na maioria das grandes cidades brasileiras.

Na década de 90, a urbanização de assentamentos precários desenvolveu-se for-temente no país, registrando-se diversas experiências nas grandes cidades: programa Favela Bairro, no Rio de Janeiro; programas de urbanização de favelas desenvolvidos pelas administrações da cidades de São Paulo (incluindo o programa Cingapura e Guarapiranga); projeto Vila-Bairro, em Teresina; programa de regularização fundiária, em Porto Alegre; projetos de urbanização dos Alagados, em Salvador; programas de

16 Como é o caso do modelo implantado em Santo André.

Page 35: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

3�

urbanização de assentamentos, em Diadema e Santo André; programas de urbanização em Belo Horizonte e em Betim, na RMBH; projeto Terra, em Vitória, etc. Dentre estas intervenções, destaque-se o caso de Belo Horizonte, seja pelo seu modelo de partici-pação ampliada (articulando Conferência, Conselho, Orçamento Participativo, Orça-mento Participativo da Habitação e grupos de referência locais), seja pelo Plano Global Específico, que estabelece um programa de longo prazo e que orienta as intervenções em favelas a partir de ações estruturais baseadas em um planejamento global.

Além dos citados, que são programas com relativa estabilidade no tempo, pode-se afirmar que a maioria das prefeituras desenvolveram ações mais pontuais de intervenção na provisão de infra-estrutura e equipamentos em favelas e assentamentos precários.

Além dos programas de urbanização e de regularização de favelas, cabe destacar a experiência, mais limitada, de desenvolvimento de ações visando a regularização dos loteamentos irregulares e clandestinos. Destaca-se, neste caso, principalmente a experiência do Núcleo de Regularização de Favelas do Rio de Janeiro.

O Núcleo de Regularização de Loteamentos teve sua origem na atuação da Procu-radoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, que, na década de 80, organizou um fórum com participação de representantes do Movimento de Loteamentos. Este Fórum ins-trumentalizava a ação da Procuradoria, que, utilizando-se dos recursos da Lei Federal 6.766, buscava penalizar os loteadores responsáveis pelos loteamentos irregulares e clandestinos. Com a participação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o Fórum ganha maior efetividade no desenvolvimento de obras de urbanização.

No final da década de 80 o Núcleo passa para o âmbito municipal, sendo hoje uma das atribuições da Secretaria Municipal de Habitação, sob a coordenação de um de seus técnicos. Sua composição é paritária, prevendo-se a participação de representan-tes do Movimento de Moradores de Loteamentos da Cidade do Rio de Janeiro e da Gerência do Programa de Regularização, representada pelos vários órgãos municipais e, ainda, pela Light (serviços de eletricidade, hoje privatizada) e pela Companhia estadual de Águas e Esgotos (CEDAE).

O Núcleo permanece em atividade, tendo sobrevivido a várias mudanças de admi-nistração, contando hoje com o apoio do BID, tendo sido incluído no Proap II.

A análise da evolução dos programas de urbanização de assentamentos precários revela, como tendência, uma progressiva incorporação de programas e ações sociais no escopo da intervenção, de forma complementar às intervenções físico-urbanísticas. Nesse sentido, a experiência que ganhou maior relevo pela inovação na capacidade de articulação horizontal das ações, numa perspectiva matricial de administração, é o projeto “Santo André Mais Igual” desenvolvido pela Prefeitura Municipal de Santo André (SP). O programa teve início em 1997, quando a nova administração decide retomar os projetos de urbanização de favelas, incluindo a perspectiva da “inclusão social”,17 já que avaliava-se que apenas a urbanização seria incapaz de propiciar mu-danças efetivas no quadro socioeconômico e cultural que caracterizava a população residentes nestes assentamentos. Colocou-se assim como modelo de intervenção a articulação de diversos programas nas mesmas comunidades, começando pelo pro-

17 Estamos aqui adotando este termo de uma forma acrítica, já que as idéias de inclusão e exclusão têm merecido algumas reinterpretações que questionam a sua adequação ao fenômeno que pretendem descrever. Ver, a respeito, MARTINS (2002).

Page 36: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

36

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

grama de Renda Mínima, que, mais tarde, foi complementado com atuações nas áreas de educação (cursos de alfabetização, cursos de certificação da 4ª série do ensi-no fundamental, acompanhamento das crianças na escola), saúde, trabalho (cursos para agentes de formação profissional, capacitação de empreendedores), organização sociopolítica (capacitação para lideranças), gênero (oficinas de sensibilização para mulheres) etc. Além das ações de capacitação, a área de geração de renda envolveu o acompanhamento e assessoramento na obtenção de crédito junto ao Banco do Povo (municipal) para viabilização dos empreendimentos.

A realização de um programa de intervenção complexo, envolvendo diferentes órgãos e setores da Prefeitura, exigiram uma nova perspectiva de organização, articu-lação e integração das ações, no nível intramunicipal. A Prefeitura instituiu então três esferas de articulação intersetorial das ações, definindo níveis hierárquicos, a saber: a equipe gestora, formada pelos titulares das secretarias envolvidas, responsável pelas diretrizes gerais e pela avaliação; as equipes operadoras, responsáveis pela coordena-ção técnica, formadas pelos responsáveis diretos por cada ação; e, finalmente, a equipe local, formada pelos agentes responsáveis pelas diferentes linhas de trabalho.

A experiência de Santo André aponta uma perspectiva que está colocada como horizonte de um processo de aperfeiçoamento e de maior eficácia da ação dos governos municipais. No entanto, essa breve descrição aqui apresentada, já é suficiente para mos-trar a complexidade desta iniciativa, tendo em vista que a articulação de órgãos e setores tende a apresentar fortes problemas de conflito entre lideranças políticas, muitas vezes de filiação partidária diversa, e dificilmente poderá ser sustentada sem fortes incentivos institucionais, que podem ir da “vontade política” do prefeito até a imposição de um desenho institucional imposto externamente. Comparando-se esta experiência com outro caso semelhante – a urbanização, no Rio de Janeiro, de cinco favelas de pequeno porte incluídas no Programa Bairrinho e financiadas pela Comunidade Européia – ve-rifica-se que, no caso do Rio de Janeiro, as equipes interdisciplinares foram criadas de forma ad-hoc, apenas para o cumprimento da metodologia proposta, e não se mudou significativamente o modelo administrativo vigente. Outro problema a ser avaliado é o grau de permanência deste modelo institucional a partir das mudanças políticas.

Essa breve recapitulação histórica nos permite levantar algumas questões, à guisa de conclusão:

1. Com a crise fiscal da maioria dos estados, e com as mudanças institucionais pós-Constituição de 1988, os municípios passam a assumir maior responsabilidade pelo desenvolvimento de políticas habitacionais, sendo progressivamente incentivados para tal através das políticas dos organismos multilaterais e dos programas federais.2. No entanto, essa descentralização não está apoiada em um sistema formal de distri-buição de recursos e competências entre os vários níveis de governo, permanecendo a definição frouxa da Constituição de 1988 da habitação como “competência comum”.3. Na falta de critérios redistributivos claros, têm prevalecido o tráfico de influência, o clientelismo e, em alguns momentos, a corrupção, como mecanismo alocativo.4. Independentemente de quaisquer critérios éticos, o sistema em vigor produz forte ineficiência, tendendo à pulverização dos recursos (como ocorre com os recursos do OGU através das emendas parlamentares), que, mesmo quando atendem a situações

Page 37: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

3�

efetivamente relevantes, não são suficientes para cobrir minimamente as despesas ne-cessárias (ver o exemplo de Santo André).5. Esse processo pode ser caracterizado como uma “descentralização perversa” que, dada a forte competição entre cidades, faz com que aquelas que já detêm mais recursos tendam a conseguir ainda mais. Exemplo: o Rio de Janeiro financia o Favela-Bairro di-retamente com o BID, enquanto São João de Meriti, situado na periferia metropolitana, não consegue recursos da Caixa Econômica (e não dispõe de recursos próprios).6. Ao lado destes problemas, a experiência municipal tem revelado grande capacidade de inovação e de efetividade, considerados os escassos recursos locais. Neste aspecto, pode-se destacar:

a. A experiência de regulação e de gestão em Recife com a criação das ZEIS e do Fórum de PREZEIS em 1983, com instrumentos que garantiram a segurança de posse de várias favelas ameaçadas de expulsão e que constituíram um mecanismo institucional de planejamento e de controle social bastante interessante. Os proble-mas em Recife são basicamente a falta de recursos, tendo em vista a dificuldade das forças políticas locais (mesmo as progressistas) em apoiar um projeto baseado na autonomia das forças populares.b. A política abrangente de atuação inaugurada em Diadema e que acontece, mais recentemente em Teresina, em que a intervenção não é pontual e concentrada, mas abrangente e difusa, permitindo melhorias generalizadas, ainda que com o proble-ma dos processos mais demorados para finalizar a intervenção.c. A estratégia de atuar na urbanização e regularização dos assentamentos existentes e, ao mesmo tempo, atuar no sentido da ampliação da oferta de terra e de oportu-nidades habitacionais, desenvolvida em Diadema através de um uso inovador das ZEIS sobre áreas vazias – com possíveis impactos positivos na redução da ocupação das áreas de mananciais.d. A adoção de sistemas de participação abrangente, envolvendo desde a discussão dos objetivos, metas e procedimentos das políticas até a mobilização para o acompa-nhamento das intervenções a nível local – experiências de Diadema, Belo Horizonte, Santo André.e. A ampla utilização das ZEIS tanto como mecanismo de garantia da segurança de posse quanto como instrumento para operacionalizar a regularização urbanística e construtiva do assentamento.f. A criação de mecanismos participativos para a operacionalização do processo de regularização dos loteamentos, como o Núcleo de Loteamentos, ainda existente na Prefeitura do Rio de Janeiro.g. A utlilização de mecanismos pós-intervenção, como o POUSO, no Rio de Janeiro.

Propostas para a organização institucional de um programa nacional de urbanização de assentamentos precários

A implementação de um programa como o que aqui se discute é absolutamente inovadora, em termos de Brasil, devendo-se, pois, atuar com um grau razoável de prudência no desenho e na implementação das ações. Recomenda-se, portanto, a adoção de uma abordagem incremental, definindo e redefinindo os passos a partir

Page 38: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

3�

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

das avaliações do desempenho das ações empreendidas. É importante não esquecer, no entanto, que as ações incrementais só fazem sentido se inseridas em um contexto mais amplo de planejamento de longo prazo, em que se tenham claros os objetivos a serem alcançados. É neste sentido que vão as observações que se seguem.

Considerando-se a enorme experiência, capacidade de inovação e eficácia nos programas de urbanização desenvolvidos por várias administrações municipais e, ao mesmo tempo, a enorme diferenciação entre os municípios, em termos de capacidade administrativa e capacidade de mobilização de recursos, a concepção e operaciona-lização de um programa nacional de urbanização de assentamentos precários deve levar em conta dois elementos básicos:

- Deve-se buscar construir um sistema descentralizado, com foco privilegiado no mu-nicípio como esfera de poder mais próxima à realidade local, potencialmente mais ade-quada ao desenvolvimento das intervenções, respeitando e incorporando as experiên-cias locais já acumuladas;- Deve-se buscar criar condições para que as administrações municipais não capacita-das possam se integrar ao programa, assumindo progressivamente a iniciativa e a res-ponsabilidade principal pelo desenvolvimento das ações.

Para responder a esse desafio, é fundamental buscar, em primeiro lugar, a inte-gração horizontal, garantindo-se a articulação do programa com a política nacional de habitação e, através desta, com a política urbana. No âmbito da política habita-cional, é fundamental que haja relações estreitas entre o programa de urbanização e o programa de regularização, buscando sinergias que multipliquem esforços através da concentração e articulação de iniciativas e evitando a dispersão das ações. É im-portante ainda que se busque a construção de modelos de ação integradas com os órgãos e ministérios federais responsáveis pelos programas de inclusão social, como o Programa Fome Zero ou outros congêneres, buscando, desde cima, construir um modelo integrado que se repita nos níveis estadual e municipal.

Deve-se levar em conta que os processos de integração administrativa como os aqui propostos devem ser colocados como macro-objetivos de longo prazo, requerendo processos de ajustamento institucional complexos e que dependerão fortemente de decisões de governo claramente estabelecidas, em níveis hierárquicos superiores, bem como um desenho institucional que estabeleça uma clara definição de competências, evitando, o máximo possível, o conflito em torno da atribuição de virtudes (onde hou-ver sucesso) ou de culpas (onde ocorrer fracasso). É fundamental, neste sentido, que haja duas ou mais instâncias de articulação, estabelecidas de acordo com os diferentes níveis hierárquicos (como na experiência de Santo André), garantindo os espaços de debate e negociação tanto políticos quanto técnicos.

Em segundo lugar, é fundamental que sejam definidas as regras e condições para o funcionamento efetivo de um sistema nacional de moradia, com clara definição de competências e atribuições dos três níveis de governo. Como um primeiro mo-mento da criação do sistema, dentro de uma visão incremental, poder-se-ia pensar no desenvolvimento de Ações Integradas de Melhoria de Assentamentos Precários (AIMAP), em que os três níveis de governo cooperassem, com divisões de atribuições estabelecidas através de convênios, em cada região. Para o desenvolvimento das AI-

Page 39: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

3�

MAP seria, de qualquer modo, fundamental que o aceite dos projetos e o repasse de recursos só se efetivasse estando garantidas a criação de um Conselho Municipal de Habitação, que desse o aval ao projeto, e, ainda, a existência de um Plano Municipal de Urbanização de Assentamentos Precários que situasse o projeto no âmbito das prio-ridades municipais e as ações desenvolvidas dentro de um programa de intervenções estruturais sobre os assentamentos.

À esfera federal caberia a competência de definir normas gerais e estabelecer critérios para a aprovação dos projetos e para a liberação de recursos. Do ponto de vista financeiro, o mais interessante seria a constituição de um fundo nacional, com um mix de recursos onerosos e não onerosos, a ser repassado aos municípios, desde que garantidas as condições citadas no parágrafo acima e a contribuição de contrapartida local.

Para operar a distribuição dos recursos do fundo (ou dos recursos existentes, en-quanto não for criado o fundo) é importante que o governo federal tenha clareza (e ex-plicite a clareza) de seu papel de agente redistributivo. Esse papel é tão mais importante quanto se verifica que certos município gozam de capacidade de alavancar recursos próprios e mesmo internacionais de razoável monta, independentemente do suporte do nível federal, como foi o caso do Rio de Janeiro e de São Paulo, na década de 90. Neste sentido, é importante que se tenha, tanto no nível federal quanto no estadual, ações que privilegiem os municípios mais pobres, com menores condições técnicas e financeiras. No entanto, essa política redistributiva deve ser compensada através de uma ponde-ração do grau de concentração e da precariedade dos assentamentos urbanos, já que geralmente são as capitais que concentram os maiores problemas. Em síntese, o critério básico para a alocação de recursos deve ser estabelecido com base em dois critérios: um, com peso positivo, referente ao grau de concentração de assentamentos precários (quantitativo e qualitativo) local, e outro, com peso negativo, referente à disponibilidade local de recursos. Dessa forma, busca-se concentrar investimentos nas áreas mais ca-rentes e evita-se a descentralização perversa, que transfere mais recursos para quem já os tem. Cabe ressaltar que a não-definição de critérios redistributivos que considerem essa questão tem como efeito operar, pela ausência, a redistribuição regressiva.

Do ponto de vista da normatização, seria importante que se estabelecessem al-guns parâmetros mínimos para a intervenção, suficientemente abrangentes para evitar qualquer tipo de “engessamento” do processo, mas que pudessem estabelecer um refe-rencial de qualidade para as intervenções, desenvolvendo-se, com o tempo, avaliações da experiência para a busca de referenciais mais específicos para as intervenções.

Caberia ainda ao nível federal o controle sobre o uso dos recursos, e a responsabili-dade pelo monitoramento e avaliação da implementação dos programas. Neste senti-do, seria interessante que se criasse de imediato um sistema de coleta de informações que permitisse acompanhar o desempenho dos programas e que, periodicamente, se realizassem avaliações, a partir de especialistas externos ao governo, de forma a permitir calibrar o planejamento das ações e verificar se as ações incrementais estão caminhando em direção aos objetivos almejados.

Um outro aspecto que deve ficar sob responsabilidade federal refere-se ao desen-volvimento (urgente e imprescindível) de processos de capacitação e desenvolvimento institucional de administrações municipais. Considerando-se que a política nacional

Page 40: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

40

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

de urbanização de assentamentos precários tem como horizonte a municipalização, essa iniciativa é de fundamental importância e deve ser iniciada o mais rapidamente possível, como ação estratégica de governo.

Como critério de priorização, seria interessante que os municípios que se candi-datassem a receber recursos fossem objeto de algum tipo de avaliação e incluídos nos programas de DI como condição para adesão ao programa.

A municipalização absoluta do programa levaria a uma pulverização das ações que tornaria extremamente difícil o controle adequado por parte do Ministério das Cidades. Assim, o nível estadual ganha a sua especificidade “natural” como canaliza-dor e organizador de demandas e prioridades no nível regional. É fundamental, no entanto, que este processo se dê dentro de critérios e padrões claros de definição de prioridades e com participação e controle social, através dos conselhos estaduais. É também importante o aporte de recursos dos governos estaduais, através da criação de fundos específicos, controlados pelo conselho.

Os governos estaduais têm acumulado, nos últimos anos, graves problemas fiscais e financeiros, tendo perdido a centralidade que tinham no período do BNH. No entan-to, em vários estados ainda existem companhias habitacionais que têm, em maior ou menor grau, uma capacidade técnica e organizacional não desprezível. É verdade que essas companhias tenderam a concentrar suas ações na área de construção de unidades novas, mais do que na urbanização de favelas, todavia talvez possam ser mobilizadas para atuações em outro nível. Considerando-se que em vários municípios a possibilida-de de assumir a iniciativa da operacionalização de um programa local não seria viável em curto prazo, é razoável pensar nas companhias ou órgãos habitacionais estaduais como parceiros das administrações municipais na implementação dos programas.

Outros aspectos importantes, quanto à participação dos governos estaduais, dizem respeito a:

- Inclusão efetiva das concessionárias nos processos de planejamento e implementação das ações de urbanização, assumindo os padrões mínimos propostos para a infra-estru-tura e a operação e gestão dos sistemas (neste sentido, é de fundamental importância a articulação do programa com a área setorial de saneamento);- O planejamento de projetos ou programas que envolvam áreas metropolitanas ou aglomerados urbanos.

Quanto aos municípios, caberia a eles a gestão dos programas locais, assumindo tanto quanto possível a responsabilidade integral pelo planejamento, pela implemen-tação e pelo controle sobre o uso dos recursos, assim como o monitoramento e a ava-liação da implementação dos projetos. Como pressupostos para a adesão ao programa, seriam requisitos necessários a criação de fundo e conselho e a apresentação de um diagnóstico e de um plano de intervenção em assentamentos precários, estabelecendo prioridades na alocação de recursos em relação às precariedades dos assentamen-tos. Obviamente, tal iniciativa estaria ainda aquém da capacidade da maioria dos municípios. Neste sentido, considerando-se a abordagem incremental, poderiam ser solicitados, inicialmente, diagnósticos e planos sumários que informassem o projeto, para o primeiro financiamento, garantindo-se nas solicitações subseqüentes padrões mais rígidos de exigência.

Page 41: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

41

Seria de todo interessante que os municípios que solicitassem recursos fossem de imediato (ou no mais curto prazo) incluídos em programas de capacitação e desen-volvimento institucional desenvolvidos pelo MC.

Como uma estratégia incremental, é importante que as experiências iniciais de municípios sem tradição de atuação na área possam ser tomadas como experiências-piloto que ensejem também o desenvolvimento institucional e a capacitação. Nesse sentido, é de fundamental importância a participação de técnicos de várias secretarias assim como a formação de um comitê gestor, no nível local, formado pelos secretários dos diversos setores responsáveis pelas intervenções.

No caso de municípios que componham região metropolitana ou aglomeração urba-na, seria interessante se pensar em procedimentos especiais, de forma a garantir a coor-denação das ações. Da mesma forma, os processos participativos devem acompanhar as escalas pensadas para o programa, reunindo, além de conselhos estaduais e municipais, fóruns metropolitanos ou submetropolitanas (ABC, Baixada Fluminense etc.).

É fundamental que se garanta, nos processos de DI e capacitação, que os diagnósticos e os planos devem ser desenvolvidos por equipes das Prefeituras, como pré-requisito para a qualificação dos governos para acessar os recursos. Nesse sentido, o papel das “assessorias” deve ser de capacitação das equipes locais ou, no máximo, da elaboração de estudos específicos especializados, mas sempre capacitando os quadros técnicos locais para que possam replicar o estudo (ou seja, repassando a metodologia adotada).

Alguns elementos conceituais para a criação de um sistema de avaliação do programa

A avaliação de políticas, programas e projetos pode ser, primeiramente, em dois grandes grupos: avaliação política ou avaliação de políticas.

A avaliação política consiste, portanto, em atribuir valor às políticas, às suas con-seqüências, ao aparato institucional em que as mesmas se dão e aos próprios atos que pretendem modificar o conteúdo dessas políticas.18

Para se desenvolver essa avaliação política, é necessário estabelecer critérios de avaliação, baseados em uma concepção de bem-estar, o que permitiria ainda definir alguma prioridade entre diferentes critérios. A avaliação política, como etapa anterior à avaliação de políticas, se coloca, então, como a “análise e elucidação do critério ou de critérios que fundamentam determinada política: as razões que a tornam preferível a qualquer outra”.19 Razões relevantes, no sentido de que contribuam para um aumento ou uma melhor distribuição de bem-estar.

Do ponto de vista da avaliação de políticas, pode-se distinguir as avaliações de efi-ciência, eficácia e efetividade. A eficiência é definida como a relação entre os recursos utilizados e os produtos (menor utilização de recursos para uma mesma quantidade de recursos ou maior quantidade/qualidade de produtos para um mesmo volume de recursos). A eficácia é definida como a relação entre produtos e metas previamente estabelecidas. A efetividade diz respeito à relação entre resultados alcançados e obje-tivos propostos. Segundo COHEN e FRANCO, “a efetividade tem duas dimensões,

18 FIGUEIREDO e FIGUEIREDO (1986), citando BARRY (1975).19 FIGUEIREDO e FIGUEIREDO (1986).

Page 42: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

42

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

em função dos fins perseguidos pelo projeto, é a medida do impacto ou o grau de alcance dos objetivos”.20

Um dos problemas recorrentes da avaliação de políticas, mesmo em seu aspecto mais instrumental, refere-se à utilização de critérios puramente econômicos nas ava-liações de eficiência. Esses critérios são problemáticos e polêmicos, devendo-se incluir não apenas custos econômicos e administrativos stricto sensu, mas também custos e benefícios políticos. Distingue-se, nesse sentido, a eficiência instrumental, “definida pela relação estrita entre custos econômicos e benefícios que são em geral tangíveis e divisíveis” e eficiência política “definida pela relação entre os ‘custos’ sociais e políticos e os benefícios dele decorrentes”.21 A introdução da dimensão política complexifica a avaliação e introduz uma “irracionalidade” que irá certamente reduzir a eficiência ins-trumental. FIGUEIREDO e FIGUEIREDO (1986) propõem, nesse caso, a possibilidade de construção de cenários sociais e políticos distintos, associados a taxas de eficiência instrumental correspondentes, de forma a permitir uma avaliação do mix adequado, ou seja “o quantum de irracionalidade [que os tomadores de decisão] estão dispostos a introduzir na taxa de eficiência instrumental ótima, tornando-a sub-ótima”.22 Segundo os autores, a introdução desses custos sociais e políticos tem a ver com a dimensão pública da ação governamental que a diferencia das ações de organismos privados ou semipúblicos, não submetidos às demandas sociais e pressões políticas que permeiam as políticas governamentais e que, em síntese, correspondem ao “preço” da democracia.

Por outro lado, a avaliação da eficácia necessita que se tenham definidos com clareza, e com suficiente detalhamento, os objetivos e metas a serem alcançados. Fre-qüentemente, esses objetivos são enunciados de forma tão vaga e geral que se torna praticamente impossível avaliar em que medida os resultados lhes são compatíveis. Uma vez estabelecidos esses pressupostos/metas pelo programa e buscando identifi-car a distância entre objetivos e resultados (eficácia objetiva), deve-se lembrar ainda que nem sempre os produtos (da política) revelam a eficácia, pois não mostram as mudanças reais nas condições de vida da população, colocando-se assim o impacto como uma medida mais correta de desempenho da ação pública.

Todavia, a avaliação dos impactos é extremamente complexa, já que não basta mostrar que ocorreram mudanças, mas que as mudanças registradas não ocorreriam (total ou parcialmente) sem a ação política. Pode-se supor que políticas, em geral, estão sujeitas aos seguintes tipos de impacto (não excludentes):

a. O resultado esperado é alcançado;b. Um resultado não esperado é produzido, sendo, porém positivo;c. Resultados do tipo (a) e/ou (b) ocorrem e são bons no ciclo de vida imediato, porém negativos no médio ou longo prazo;c. O resultado esperado é produzido no que diz respeito a cada membro da população-alvo, isto é, cada indivíduo melhora sua situação social; em médio prazo, a categoria social a que estes indivíduos passam a pertencer piora;d. O resultado esperado não é alcançado, e nenhum outro resultado é produzido;

20 COHEN; FRANCO (2000: 107).21 FIGUEIREDO e FIGUEIREDO (1986).22 FIGUEIREDO e FIGUEIREDO (1986).

Page 43: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

43

e. Um resultado não esperado ocorre, sendo porém negativo.

Também se deve considerar a natureza do impacto: se objetivo (mudanças quanti-tativas), subjetivo (estado de espírito) ou substantivo (qualitativo). Dependendo dessa natureza, a avaliação, baseada eventualmente em pesquisa experimental, irá aferir a efetividade da ação, comparando (e medindo) os diversos aspectos da população entre o antes e o depois da execução do programa e buscando estabelecer um mínimo de controle sobre as variáveis ambientais que atuaram sobre a população no período da experimentação. A comparação irá considerar, assim, a efetividade objetiva, subjetiva e substantiva (isoladamente ou em associação, dependendo da natureza da política, de seus propósitos, e da natureza e objetivos da avaliação). O exame da efetividade substan-tiva depende não apenas da identificação e quantificação da mudança ou da relação de causalidade entre o programa e a mudança, mas também de uma avaliação da mudança à luz de princípios de justiça social, ou seja, de uma avaliação política da mudança.

Bibliografia

AGRAR/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Caracterização da Irregularidade Urbanística, Edilícia e Fundiária: subsídios para a regularização na Cidade do Rio de Janeiro. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro, 2002.

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ-FASE-GTZ, 1997.

CARDOSO, Adauto L. “O urbanismo de Lucio Costa: uma contribuição brasileira ao concerto das nações”. In RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, povo e nação: gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 95-122.

CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro. São Paulo, Difel, 1972.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

CERDÁ, Ildefonso. La théorie generale de l’urbanisation. Paris: Ed. Du Seuil, 1979.CIAM. El Urbanismo de los CIAM. La Carta de Atenas. Buenos Aires: Editorial Con-

témpora, 1957.COHEN, Ernesto; FRANCO, Rolando. Avaliação de Projetos Sociais. Petrópolis: Vo-

zes, 2000.DE SOTO, H. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001.FERNANDES, Edesio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil: uma intro-

dução. In FERNANDES, Edesio (org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.11-54.

FIGUEIREDO, M.; FIGUEIREDO, A. M. C. “Avaliação política e avaliação de políti-cas: um quadro de referência teórica”. Cadernos IDESP, n. 15, 1986.

JARAMILLO, S. Produccion de vivienda y capitalismo dependiente: el caso de Bogotá. Bogotá: Universidad de los Andes, s/ data, pp. 1-65.

LAGO, Luciana Corrêa do. O movimento de loteamentos no Rio de Janeiro. Disser-tação de mestrado. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 1990.

Page 44: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

44

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo: ilegalidade, desigual-dade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996.

MARTINS, José de Souza. A Sociedade Vista do Abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

OLIVEIRA, F. Economia brasileira: a crítica à razão dualista. Estudos Cebrap, n. 2. São Paulo, Cebrap, 1972.

PAES BARROS, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. A Evolução do Bem-Estar e da Desigualdade no Brasil desde 1960. IPEA, Texto para Discussão, n. 286. Rio de Janeiro, dez. 1992.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto L. “Da cidade à nação: gênese e evolução do urbanismo no Brasil”. In RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECH-MAN, Robert. Cidade, povo e nação: gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 53-80.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Dos Cortiços aos Condomínios Fechados: as formas de produção da moradia na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Estúdio Nobel/FAPESP, 1997.

ROLNIK, Raquel. Instrumentos Urbanísticos contra a Exclusão Social. Publicações Polis, n. 29. São Paulo: Polis, 1997, pp. 7-10.

ROLNIK, Raquel. Instrumentos Urbanísticos: concepção e gestão. Óculum Ensaios, v. 1, n. 1. Campinas: PUC-Campinas, 2000, pp. 5-12.

SANTOS, Wanderlei G. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.

SANTOS, Wanderley Guilherme. Razões da Desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.SILVA, Lucia Helena Pereira da. Engenheiros, arquitetos e urbanistas: a história da elite

burocrática na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Planejamen-to Urbano e Regional apresentada ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1995.

TOPALOV, Christian. De la question sociale aux problèmes urbaines: reformateurs et travailleurs à Londres, Paris et New York au début du XXeme siècle. Trabalho apre-sentado na conferência Reestruturação Urbana: tendências e desafios, organizada pela International Sociological Association. Rio de Janeiro: mimeo, 1988a.

TOPALOV, Christian. “Invention du chômage et politiques sociales au début du siècle”. Les Temps Modernes, nº 496/497. Paris, 1987.

TOPALOV, Christian. Naissance de l’urbanisme moderne et réforme de l’habitat po-pulaire aux Étas Unis - 1900/1940. Paris: Centre de Sociologie Urbaine, 1988b.

TURNER, John. “Housing as a verb”. In: TURNER, John; FICHTER, R. (org.). Freedom to build. Nova York: Macmillan Company, 1972.

Turner, John. Una nueva visión del déficit de vivienda. In Lewis, David. El Crecimiento de las Ciudades. Madrid, Gustavo Gilli.

VALLADARES, Licia & Ribeiro, Rosa. The return of the favela: recent changes in metropolitan Rio. Trabalho apresentado no Seminário Internacional A new urban and regional hierarchy? Impacts of modernization, restructuring and the end of bipolarity, promovido pela International Sociologial Association. Los Angeles,

Page 45: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

contextualização / caracterização

4�

mimeo, 1992.VALLADARES, Licia (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.VALLADARES, Licia. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas

do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.WORLD BANK. Housing: enabling markets to work. (A World Bank Policy Paper).Washington: World Bank, 1993.

Page 46: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 47: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

47

Parâmetros e TipologiasProfa. Dra. LAURA MACHADO DE MELLO BUENOFAU/PUC CampinasPesquisadora do LABHAB/FAU-USP

ApresentaçãoEste trabalho baseia-se principalmente em resultados da pesquisa “Parâmetros téc-

nicos para urbanização de favelas” elaborada pelo LABHAB entre 1998 e 2000 (que analisou oito favelas em cinco cidades brasileiras) e na tese de doutorado apresentada a FAU-USP “Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização”, em 2000 (as-pectos de tecnologia e qualidade habitacional e urbana). Tenho participado de estudos e projetos de habitação, principalmente assentamentos precários em áreas ambiental-mente sensíveis e urbanização de favelas, através do Laboratório do Habitat da PUC de Campinas e do LABHAB da FAU-USP. Na atividade acadêmica tem-se também a oportunidade de participar de eventos e visitas técnicas a diversos projetos implanta-dos ou em implantação, notadamente na região metropolitana de São Paulo.

Serão apresentadas conclusões e recomendações sobre parâmetros de avaliação da replicabilidade, da adequabilidade e da sustentabilidade de intervenções planejadas em favelas. São apresentadas indicações de políticas públicas habitacionais e corre-lacionadas ou co-responsáveis pelo sucesso ou insucesso da urbanização. Espera-se que seu conhecimento possa apoiar as decisões de priorização de componentes para aplicação de recursos e desenho institucional dos programas do MCidades.

1. Principais conclusões referentes aos casos estudados

1.1. Base conceitualA pesquisa “Parâmetros técnicos para urbanização de favelas” avaliou1 as obras

de urbanização em oito favelas, procurando indicações de fatores ou parâmetros de replicabilidade, adequabilidade e sustentabilidade nas ações. A definição de tecnologia para o ambiente construído adotada foi: “o conjunto de materiais, técnicas, parâmetros e processos de produção, inclusive os arranjos institucionais”. (BUENO, 2002: 320) Se o estabelecimento do primeiro eixo da pesquisa diz respeito à possibilidade de disse-minação das urbanizações de favelas em grande escala, e o segundo – adequabilidade – à possibilidade de cada intervenção vir a funcionar (exeqüibilidade e eficiência técnica das soluções adotadas), o terceiro eixo – sustentabilidade – aponta para a continuação no tempo dos efeitos benéficos advindos da urbanização. Esse eixo tem se mostrado cada vez mais importante ao longo dos últimos anos, quando inúmeras intervenções em favela se perderam por mau uso, falta de manutenção e integração precária à rotina e ao cotidiano dos órgãos responsáveis pelos serviços públicos. Esse eixo, portanto, não se restringe a questões técnicas, mas abrange igualmente problemas institucionais e políticos. A sustentabilidade é a conservação e constante sustentação das condições (físicas, sociais e políticas) que possibilitam que a urbanização seja

1 Utilizou-se com instrumentos de pesquisa: vistorias e levantamentos de campo, análises de água, entrevis-tas com promotores, executores do projeto e obras, moradores, análises de relatórios e memoriais e pesquisa amostral por questionário fechado para a população de cada assentamento.

Page 48: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

48

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

realizada. Diz respeito, portanto, às estruturas de operação/manutenção e educação sa-nitária/ambiental criadas, à divisão de papéis e responsabilidades entre órgão público e a população moradora (diretamente e através de suas comissões, representantes etc.) e obviamente também à durabilidade física e ao bom funcionamento das instalações e equipamentos. Sem que se consiga a solução do problema da sustentabilidade, as iniciativas em favelas tendem a ter baixa efetividade, sendo necessária a realização constante de intervenções de vulto em locais já atendidos.

1.2. Os parâmetros selecionadosA análise resultou na identificação dos seguintes parâmetros ou indicadores:

1.3. Conclusões gerais2

A seguir são ressaltadas conclusões de caráter geral no que se refere a parâmetros para a infra-estrutura executada e serviços implantados, quadro urbanístico e am-biental resultante, arranjos institucionais e aspectos sociocomunitários.

As conclusões da pesquisa amostral indicam que as famílias moradoras nessas favelas são relativamente grandes (médias de 4 a 4,9 pessoas por família). Dentre os que auferem renda, a inserção no mercado de trabalho (com carteira, sem carteira etc.) se assemelha ao padrão do restante da cidade. Os índices de desemprego, porém, são mais altos.

2 Texto baseado em BUENO (2000), cap. 5 e LABHAB/FAUUSP (1999b). Procurei selecionar os aspectos com implicações na formatação de uma política federal.

Page 49: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

parâmetros e tipologias

49

O padrão construtivo das habitações não difere dos resultantes de outros processos de provisão nas mesmas cidades, como o loteamento popular. Nota-se a predominân-cia absoluta dos materiais duráveis nas paredes e cobertura (alvenaria, fibro-cimento e laje). A existência de mais de um domicílio num mesmo lote (frente e fundos ou superposição de unidades) aparece com destaque especialmente no Rio de Janeiro.

Nos programas analisados não houve vinculação entre a execução das obras e a cria-ção de empregos. Os mutirões ocorridos para obras de infra-estrutura (Diadema) foram vinculados às ligações domiciliares às redes e não a políticas socioeconômicas. Progra-mas específicos de geração de renda e emprego, em paralelo à urbanização, existem em Goiás e no Rio de Janeiro. No primeiro caso é desenvolvido por uma ONG. DENALDI (2002) apresenta avanços recentes em programas municipais de urbanização (Rio de Janeiro e, sobretudo, Santo André), nos quais a questão social é multifocada, havendo diversos projetos integrados à urbanização. As dificuldades de replicabilidade avaliadas em casos estão ligadas à inexistência de fonte de recursos constantes, entraves burocrá-ticos e operacionais, no acesso aos recursos estaduais e federais e em graves problemas de solvabilidade do orçamento municipal, devido à reestruturação produtiva e à crise fiscal interna decorrente da estabilidade econômica. Esses fatores são de resolubilidade nacional, necessitando base legal-administrativa federal e regional – estadual – regiões metropolitanas, bacias de mananciais e com unidades de conservação.

Não se constataram aumentos expressivos na criação de novas atividades econômicas após a urbanização nas favelas estudadas.

A valorização devida à urbanização foi constatada através de questões feitas às li-deranças e das expectativas dos moradores quanto aos valores de venda das suas casas. No entanto, os dados obtidos nesta pesquisa sobre mudanças posteriores à obra não permitem associar, de modo generalizado, a urbanização à substituição das famílias beneficiadas, como normalmente encontramos na literatura sobre o tema. Por outro lado, foram constatados fatores relacionados à mobilidade pós-urbanização:

- A falta de regularização fundiária ou de título de propriedade;- O controle das associações de moradores sobre o processo de compra/venda e criação de novos domicílios;- A existência de vínculos familiares e de solidariedade, favorecendo a permanência e também o adensamento através da autoconstrução.

Percebe-se que tanto no nível federal quanto nos estaduais, não há diretrizes quan-to a parâmetros técnicos e urbanísticos, responsabilidades das diferentes instâncias públicas, assim como critérios para participação nos custos ou taxação de serviços. Conforme LABHAB (1999b, vol. III: 103):

As linhas de financiamento da CEF, que exigem o terreno como garantia, normal-mente são inviáveis para a favela, devido às complicações de natureza fundiária. As concessionárias de saneamento e energia, geralmente estaduais, atuam de maneira pontual (nas favelas ou trechos da cidade que elas consideram prioritárias) e não se comprometem com fiscalização, operação ou manutenção, mesmo quando as obras foram pagas por elas. A inexistência de diretrizes referentes à urbanização e manutenção de áreas invadidas consolidadas cria dificuldades de entrosamento entre os agentes municipais e as concessionárias estaduais de saneamento, ilumi-

Page 50: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

50

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

nação e energia, nos aspectos de projeto, obras e manutenção. Esta pesquisa aponta a relação desta inoperância dos serviços públicos com o aumento de custos finan-ceiros e duração das obras. Na prática, as disfunções provocam a necessidade de readequações ou adaptações de projeto (postes fora do alinhamento, insuficiência de dados de geotecnia, não individualização das ligações e contas de água ou luz) ou de refazer obras mal feitas ou inadequadas.

Os programas estudados combinaram as mais variadas linhas e fontes de finan-ciamento. Isso traz a necessidade de montar arranjos específicos para cada programa ou projeto.

As prefeituras têm colocado recursos próprios nos programas de urbanização e atuado com o promotor. Isso mostra possibilidade de disponibilização de recursos quando a urbanização é prioridade no município.

Todas as intervenções estudadas devem ser abrangentes, integrando vários aspectos da urbanização, fator de replicabilidade. Isso é positivo porque possibilita a concepção integrada dos projetos de urbanismo e saneamento, principalmente, facilitando a implantação das redes de forma coerente com o parcelamento do solo. Por outro lado, sabe-se que a ausência de obras de drenagem ou pavimentação pode comprometer o desempenho e a durabilidade das vias e dos sistemas de água e esgoto.

A implementação de projetos de urbanização de favelas é complexa e demorada, exigindo grande determinação do órgão executor ou promotor em finalizar as obras. Os períodos de projetos e obras foram longos – no mínimo três anos. Destacamos que como esses tempos são longos, dificultam uma intervenção que é sempre social e tecni-camente complexa.

Após a obra terminada verifica-se geralmente a ausência do Estado, seja na fiscali-zação do uso do solo ou na manutenção das obras. Isso compromete a sustentabilidade da ação. A falta de fiscalização provoca o risco de novas invasões ou apropriação privada de áreas livres e do sistema viário (vielas) para ampliação das edificações, assim como o risco de ocupação de áreas de preservação. No entanto, na operação e manutenção dos sistemas de infra-estrutura, como os componentes são convencio-nais, poucos problemas foram constatados.

Verifica-se uma ausência sistemática de procedimentos de apropriação de custos dos programas executados. Isso mostra uma despreocupação que não é específica das obras em favelas, mas se repete no conjunto da política habitacional. Em apenas três dos oito casos obtiveram-se os custos da obra separados por componente de infra-estrutura. No restante, a falta de dados não permite fazer uma avaliação dos custos segundo as soluções tecnológicas dos componentes. Quanto aos custos dos serviços – levantamentos, projeto, projeto social –, não há registro. Algumas das obras feitas nas favelas tinham como objetivo resolver problemas do entorno ou da cidade.

Desse modo, numa avaliação dos custos de obras de urbanização de favelas, seu valor não pode ser considerado no cálculo. Essa fragilidade administrativa precisa ser modificada para implementar formas de monitoramento e avaliação dos resultados.

A maior parte dos programas de urbanização pesquisados não estava vinculada a programas de regularização fundiária e outros não conseguiram ainda definir instru-mentos que garantam plenamente os direitos de posse dos moradores. Muitas obras nem sequer têm processo de regularização fundiária, nem projeto de parcelamento aprovado.

Page 51: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

parâmetros e tipologias

51

Isso pode ser limitante à idéia de cidadania e também à sustentabilidade do projeto.A falta de solução definitiva e legal da posse do terreno não impede que os mo-

radores considerem suas casas como próprias, por oposição às condições de aluguel ou de cessão – como aliás em qualquer área invadida. No entanto, seu acesso ao cré-dito para consumo fica prejudicado sem o documento legal de posse e um endereço oficial. Por outro lado, ilegalidade (falta de registro legal do terreno e da aprovação da construção) é geralmente impeditivo para obtenção de financiamentos públicos e privados para melhoria habitacional. Propõe-se que a regularização seja estimulada através de um monitoramento para metas de 3, 5 e 8 anos, com vinculação com regras resultado e com apoio à organização da gestão e organização dos agentes comunitários e institucionais (Desenvolvimento Institucional revisado).

O abandono e a depredação de áreas livres estão ligados principalmente à ausência do Estado, e não apenas em comunidades faveladas. A simples existência de áreas livres não se apresenta como garantia de uma melhor qualidade de vida e convi-vência comunitária, devido à ausência de limpeza e manutenção dos equipamentos ou à impossibilidade de crianças e adolescentes, sem a proximidade dos pais e sem orientadores educacionais, estarem capacitados a autopromover suas práticas de es-porte e lazer.

Há até mesmo manifestações contrárias à criação de novas áreas públicas e até questionamentos sobre se praças e áreas de lazer existentes, nas condições descritas, deveriam ser fechadas para não se tornarem áreas de violência urbana.

Deve-se ter em conta que os espaços de convívio são essenciais para o desenvolvi-mento da cidadania e como alternativas de lazer para crianças e jovens, especialmente porque as áreas das habitações são exíguas. Mas estas áreas podem estar fora da favela, em seu entorno próximo, acessíveis também aos moradores do bairro, para promover a integração sociocomunitária da favela ao bairro.

A falta de esporte e lazer tem sido ligada à delinqüência juvenil em comunidades periféricas. Entretanto, os equipamentos em si, sem a presença de educadores, co-ordenadores e monitores de atividades que orientem as atividades, não resolvem o problema, pois as áreas acabam tornando-se problema.

A questão do tamanho da favela em relação à população tem relação com a ne-cessidade ou não de espaços para equipamentos ou serviços – lazer, esporte, saúde, educação. Mais que os aspectos relacionados ao projeto urbanístico propriamente dito, esta questão tem implicações nas condições de planejamento urbano e setorial. A sustentabilidade nesse caso estaria na associação entre políticas sociais mais abran-gentes e a ação de urbanização.

A questão do tamanho da favela, em termos de área de terreno, tem implicações nas distâncias que os moradores devem percorrer para ter acesso a transporte público ou para depositar o lixo em local acessível aos caminhões de coleta, por exemplo.

A associação de técnicas convencionais com outras não convencionais resulta em inovações. Os principais aspectos convencionais observados nos sistemas de dre-nagem implantados são: escoamento superficial nas ruas e vielas recobertas com pavimentação de concreto ou com lajotas hexagonais e nas rampas e escadarias em concreto, associado a trechos com tubulações nas áreas de maior contribuição, ge-ralmente em manilhas de concreto de 0,60 m, interligadas a bocas-de-lobo de 120 x

Page 52: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

52

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

160 mm, ao longo do meio-fio (pré-moldados em concreto). Nota-se o uso de guias e sarjetas convencionais, definindo uma calçada exígua, mesmo em vielas com trânsito de veículos apenas esporádico, para emergências.

A presença das concessionárias de serviços nas intervenções (fato novo positivo, fator de replicabilidade) implicou a utilização preponderante (mas não total) de ma-teriais e parâmetros técnicos convencionais.

A preponderância da tecnologia convencional representa perda de oportunida-de para se reduzirem os custos de implantação, de operação e manutenção e para a conseqüente redução dos valores das tarifas cobradas, o que pode comprometer a adequabilidade e sustentabilidade. Ela também implica diminuir a cobertura dos sistemas implantados em função de fatores físicos e sociais que podem limitar o atendimento universal para toda a comunidade da favela (caso de Fortaleza). A visão convencional resultou em manter um padrão de serviço de saneamento que desconsi-dera a variável ambiental. Nenhum dos sistemas de saneamento implementado tinha soluções de tratamento dos efluentes, mantendo-se a “não-solução” de concentrar os esgotos coletados e simplesmente lançá-los em coletor mais próximo, terminando em rio ou córrego urbano.

A avaliação de projetos e obras de intervenção em favelas e outros assentamentos-precários nos leva a algumas conclusões:

- Tem-se verificado que após a urbanização não houve mudança na renda dos moradores;- A maior parte dos moradores atuais já morava lá antes da urbanização;- Não houve regularização urbanística (aprovação de parcelamento no município), ambiental (aprovação dos projetos nos órgãos responsáveis) ou fundiária (titulação e registro), ou isso foi parcial;- A quantidade de casas reconstruídas ou reformadas indica uma dinâmica positiva mobilizada pela urbanização e capacidade de poupança e empreendorismo dos mo-radores. Esse resultado, entretanto, não tem resultado controlado pelo poder público sobre adensamento excessivo ou a coabitação forçada;- A satisfação dos moradores com as obras foi muito alta, mesmo em locais onde a ava-liação pós-obra indicou problemas de concepção ou manutenção;- Analisados os aspectos urbanos ambientais com implicação na habitabilidade após a intervenção, as obras apresentam falhas de operação e manutenção;- Apenas em algumas cidades se procura mudar a denominação da área após a urbaniza-ção – Núcleo Habitacional em Diadema e Campinas, Comunidade no Rio de Janeiro.

A população beneficiada passa a usufruir serviços e confortos antes inacessíveis, destacando-se os principais ganhos mensuráveis e não mensuráveis, que devem ter indicadores de monitoramento e avaliação formalizados :

- Água e energia em quantidade e qualidade adequadas, o que diminui gastos com perda de alimentos perecíveis, saúde infantil, melhorando, assim, a higiene e o conforto;- Maior acessibilidade à casa e maior mobilidade urbana, devido a drenagem, pavi-mentação, escadarias e rampas, iluminação pública e melhoria do acesso aos sistemas públicos;- Erradicação e estabilização de condições de risco de vida e perdas materiais.

Page 53: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

parâmetros e tipologias

53

2. Aspectos relacionados à cultura urbana e tecnologia no ambiente construído

Este texto procura destacar alguns aspectos que devem ser conhecidos pelos ges-tores de políticas e programas em assentamentos precários, sobre parâmetros ur-banísticos relacionados à qualidade de vida urbana e habitacional. Propõe-se tratar essas áreas como Zonas especiais de interesse social onde a adequação urbana terá parâmetros de urbanização específica. Assim, a definição de códigos, índices ou di-mensionamentos generalizados não é apropriada, mas sim projeto e especificações para cada local.

Segundo LABHAB (1999b, vol. III: 330), “Recomenda-se a adoção dos seguintes parâmetros para avaliação de programas relacionados a favelas:

- Integrações espaciais, sociais e fundiárias em relação ao entorno e à cidade;- Programação de ações socioeconômicas e educacionais em paralelo à ação no meio físico;- Transformações ambientais, sanitárias e de saúde pública;- Fortalecimento da organização social da comunidade;- Mudança da relação Estado-sociedade no tocante às políticas públicas;- Mudanças das relações sociais e de poder entre os moradores e organizações (sociais e políticas) da comunidade;- Alteração das relações de solidariedade entre os moradores;- Mobilidade urbana/valorização imobiliária;- Quantidade e qualidade das melhorias habitacionais feitas pelos moradores;- Surgimento de grupos de produção, cooperativas ou outras experiências de geração de trabalho e renda;- Mudança da percepção ambiental dos moradores em relação ao seu habitat e conseqüen-te comprometimento com a conservação das melhorias realizadas com a urbanização;- Mudança na matriz de demandas/reivindicações da comunidade;- Visibilidade e valorização do papel desempenhado pelas mulheres.

Ao contrário da procura de padronização de soluções e parâmetros técnicos, re-comenda-se o respeito à autonomia tecnológica regional e local, associado à capaci-tação técnica. Para isso, um instrumento importante é o fortalecimento da formação de redes de profissionais e pesquisadores da área de sistematização de avaliações de outros programas e obras, e a disponibilização dos resultados. Essas redes devem ser abrangentes e não setoriais, isto é, especializadas, para que haja um avanço na ado-ção de procedimentos de projeto, operação e manutenções integradas. Essas redes devem procurar associar os parâmetros para habitação e urbanismo à discussão das opções tecnológicas. A construção de tais redes interdisciplinares, ligadas à melhoria da qualidade do ambiente construído, deve ser objeto de uma política pública de desenvolvimento tecnológico nacional.

Apresentam-se algumas recomendações relativas aos parâmetros para índices ur-banísticos e tipologias de intervenção em urbanização de favelas, de forma a conseguir a maior abrangência social desta política.3

3 Lembramos as principais características das necessidades habitacionais brasileiras (inadequação da in-fra-estrutura urbana, especialmente saneamento básico, precariedade da unidades e coabitação de núcleos familiares, dentro de um grande quadro de ilegalidade fundiária e urbanística).

Page 54: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

54

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Nos grandes assentamentos há necessidade de criação de um sistema viário que permita o acesso de veículos (caminhão para coleta de lixo, ambulância ou cami-nhão de entregas) a no máximo 100 m de todas as casas ou em um raio de cerca de 60 m, tomando-se como referência que uma quadra urbana geralmente tem 1 hectare (100 x 100 m). Assim, não é necessário reorganizar todo o sistema viário, mas consolidar e ampliar uma rede de vias de acesso que se diferencie das vias de acesso às residências.

Em relação à topografia e à definição de acessos por escadarias, procura-se fazer um paralelo entre o edifício para Habitação Social geralmente permitido pela legis-lação, de cinco andares, o que corresponde a 58 degraus para um desnível de 10 m. Considero que, sendo o acesso em favelas ao ar livre, deve-se garantir na urbanização lances com menor número de degraus, em função de chuva e frio, e que os lances tenham maior número de patamares de descanso.

Quanto à implantação urbana, as vias públicas devem ser sempre definidas como área para frente de lotes, e não fundo. O mesmo acontece com cursos d’água, onde via de serviço paralela à margem deve ser prevista, tendo função de acesso aos lotes. Dessa forma se impede a criação de pontos negros de acesso aos serviços de limpeza, o tratamento como terreno “baldio”, com depósito de lixo nestes locais.

Muitos técnicos têm “caído na tentação” de propor a definição de um código ur-banístico para a urbanização de favelas “copiadas” da cidade regular, inclusive para definição de custos unitários. Ao contrário, deve-se procurar trabalhar com uma relação cruzada entre largura x comprimento das ruas e vielas. Assim, por exemplo, é aceitável a existência de vielas de até 1,5 m de largura, comparável a um recuo ou um corredor descobertos, desde que seu comprimento seja pequeno e sua função seja de acesso a apenas uma casa. Vias de pedestre devem ser de comprimento inferior a 50 m, ou a maior distância possível de um poço de visita de rede de esgoto para limpeza ou para o comprimento de uma mangueira do serviço de bombeiros. A largura das vias, sobretudo de pedestres, tem relação também com a altura das edificações.

Na relação entre o lote e a via, considera-se necessário exigir um recuo frontal de 0,5 m entre a casa e o alinhamento da via pública, para que a execução das fundações e as ligações de redes (água, esgoto, energia) não invadam o leito da via. É também aconselhável a execução conjunta da via (redes e pavimentação) e do alinhamento do lote, especialmente quando se tratar de encosta, onde o alinhamento será definido por um arrimo. A execução conjunta da via (redes e pavimentação) e das ligações de água, esgoto e energia permite uma maior eficiência na execução, na definição de padroni-zação, no uso de pré-fabricados e na ligação das redes com testes de vazamentos, com independência em relação às possibilidades financeiras e envolvimento dos moradores na execução no momento da obra. A definição do administrador de deixar esses aspec-tos por conta do morador, como forma de baratear a intervenção, tem se demonstrado inadequada, trazendo uma economia fictícia, pois apenas nos orçamentos de papel, sem incorporar os danos que a ação de cada morador causa ao quebrar pavimento e redes para ligações, ou, o que é pior, deixar de fazê-las, criando outros custos, em termos de saúde e qualidade ambiental.

Nos assentamentos precários os lotes têm dimensões diferentes e formas irregu-lares. Em diversos projetos tem se conseguido bons resultados com a adoção de lotes

Page 55: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

parâmetros e tipologias

55

de 40 a 50 m2 em quadras pequenas, no caso de reassentamento ou reurbanização. Mais adequado para decisões de política e projeto é trabalhar com esses valores como quota de terreno por domicílio e não lote mínimo ou com valores iguais. Entendendo a urbanização e a regularização como um processo que não se esgota na execução de uma fase de obras, considero que se pode aceitar “lotes” até menores, na fase de universalização das infra-estruturas e garantia de condições sanitárias e erradicação de risco. Estes pequenos lotes em conjunto constituiriam um novo lote onde, quando o poder público tiver financiamento ou quando o morador tiver condições econômi-cas, se exigiria o remembramento com lotes vizinhos para construções sobrepostas e pequenos edifícios com mais de uma moradia. Esse lote previsto por remembramento futuro poderá estar registrado na formalização da regularização fundiária e urbanís-tica. Vale lembrar quantas residências salubres e adequadas encontramos em lotes de dimensões irregulares ou de 40 a 50 m², cuja área construída pode chegar aos 70 m²ou mais. Vale a pena compararmos o conforto destas casas com o dos apartamentos dos prédios “modelo H”, ainda referência de projeto de Habitação Social, de 40 a 45 m² de área construída privativa.

Uma nova regularidade visual e identidade dos equipamentos públicos e mobi-liários urbanos (que devem ser da mesma “família” do restante da cidade) deve ser integrada à “confusão” visual da favela antes da urbanização, resultante de construções de forma e materiais diversos, “gatos” de fiação persistentes e outras interferências, buscando-se uma integração também visual.

4. Objetivos e componentes relacionados à política e programas

Entende-se que o principal objetivo desta política é a recuperação da qualida-de ambiental do assentamento e a melhoria das condições de vida dos moradores. Conforme MARQUES ET ALII (2003): “Favelas são problemas reais que devem ser considerados, do nosso ponto de vista, como prioridades de políticas públicas, tanto devido aos seus aspectos sociais quanto a seus extensos aspectos ambientais.”

Parte-se aqui do conceito de justiça social que diferencia a violação à lei por opção da violação por necessidade, que consubstancia o direito social e, portanto, o interesse social da ação pelo poder público e o entendimento de que os seus desembolsos são investimentos sociais.

A ação pública deve, portanto, concretizar direito à igualdade – todo cidadão tem direito à cidade, à moradia digna e ambientalmente saudável – dos moradores de cada assentamento. Ao mesmo tempo, o poder público deve também garantir o direito à diferença – respeito à produção cultural e social do habitat, com a flexibilização dos padrões e regime urbanístico – entre o espaço urbano pré-projetado e o espaço urbano resultante da adequação urbana.

Quase sempre, num mesmo assentamento precário ocorrem diferentes situações de ilegalidade urbanística edilícia e também em relação ao acesso e domínio do terreno. Comum é falta de infra-estrutura urbana. Neste mesmo espaço urbano, há ocorrências localizadas de áreas de risco e contaminadas.

Quanto às ilegalidades, têm-se conflitos quanto à posse do terreno; ao parcela-mento e edificação em terrenos de uso ou edificação proibidos – área de uso comum

Page 56: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

56

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

do povo, beira de córrego, alta declividade; ao parcelamento e ocupação dos solos diferentes da legislação – dimensão dos lotes, vias, índices; e, por fim, em relação à própria edificação – uso misto, materiais, dimensão, ventilação, iluminação.

A experiência mostra que nem tudo o que é irregular é precário. Muitas das exi-gências legais têm por objetivo garantir situações de segurança, salubridade e con-forto alcançáveis com existência de infra-estrutura urbana, especialmente drenagem e redes de água e esgoto. Verificam-se muitas situações, especialmente em relação às moradias e à estrutura do parcelamento, que são aproveitadas e mantidas no processo de urbanização.

Estudando-se as carências e problemas de diversos casos, conclui-se que a sub-bacia hidrográfica é uma unidade espacial apropriada para analisar e propor as ações de ade-quação urbana e regularização necessárias à solução dos diferentes problemas encon-trados para o desenvolvimento de projetos e obras de drenagem e esgotamento, bem como para uma visão das possíveis conseqüências (positivas e negativas) que a ação proposta desencadeará no tecido urbano onde está contida a área de intervenção.

A adequação da oferta de equipamentos sociais, entretanto, deve ser associada à análise do bairro ou da unidade espacial utilizada pelos setores de educação e saúde. A produção de equipamentos especiais para os assentamentos precários – favelas, invasões – não é sempre necessária e muito menos adequada, pois pode reforçar a segregação socioespacial e não superá-la.

A adequação do local para melhoria das condições de moradias implica:

- Erradicação de risco;- Minimização de problemas de conforto e salubridade;- Acesso ao saneamento ambiental;- Acessibilidade;- Iluminação pública;- Individualização de serviços urbanos como água, energia, correio;- Adequação da casa às dimensões e atividades do grupo familiar.

São ações fundamentais para o sucesso ou insucesso da urbanização de favelas e outros assentamentos precários:

- Definição de fontes de recursos para os custos decorrentes da remoção ou reassentamento de assentamentos precários por obras públicas de grande porte, como parte destas obras;- Existência de recursos para aquisição de terras para produzir moradias ou fazer com-pensações urbanas ambientais;- Estrutura de atendimento às ocorrências emergenciais;- Produção de novas moradias para remoção planejada e desadensamento, vinculada a programas de urbanização de favelas;- Complementação da urbanização dos bairros onde estão as favelas – obras de macro e microdrenagem, esgotamento e tratamento de esgoto, pavimentação, equipamentos de lazer e esportes, integradas à urbanização;- Inclusão dos núcleos urbanizados nas rotinas de manutenção e fiscalização urbanas.

Page 57: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

parâmetros e tipologias

57

5. Recomendações

A concretização do objetivo de integrar política habitacional e política ambiental passa, a meu ver, pela superação dos problemas que comprometem a sustentabilidade e a adequabilidade das ações, quais sejam:

- Interrupções entre projeto e obra e durante as obras;- Não-execução de todo o escopo do projeto proposto;- Ação pontual, não associada a um projeto de cidade e sem continuidade;- Não-execução de ações comunitárias sistemáticas;- Incerteza quanto às perspectivas de regularização fundiária e urbanística;- Ausência dos setores de manutenção urbana;- Ausência de outros serviços públicos, como segurança;- Ausência de orientação técnica e fiscalização quanto à reforma ou ampliação das uni-dades existentes ou adensamento.

Deve-se entender estas áreas como de urbanização específica. Portanto, a política federal deve ser, sobretudo, maleável nas alternativas e nas condições de investimen-to. Há dois atores principais envolvidos – os moradores, que têm direitos e valores no local já reconhecidos por legislação federal, e o governo local, que, ao mesmo tempo, deve concretizar esses direitos sob a forma de serviços públicos e zelar pelo interesse comum. Os recursos devem chegar o mais próximo possível a estes dois atores. Além de serem agentes promotores, os municípios poderiam também aprovar projetos de adequação e regularização promovidos por associação de moradores, sendo as obras financiadas diretamente à associação. Propõem-se também valores diferentes de custo para situações de encosta, meia encosta, fundo de vale, áreas centrais ou periféricas.

Além dos componentes já convencionais nos programas existentes, é fundamental o financiamento para:

- Programas de assessoria técnica para ampliações, reformas, instalações hidráulicas e elétricas;- Sistemas de fiscalização/orientação do uso e ocupação do solo;- Programas de reciclagem de técnicos e serviços (padrões apropriados) de manutenção urbana.

As obras de urbanização não devem ser intervenções pontuais, mas se integrar aos projetos de um conjunto de intervenções nos bairros, buscando uma integração física e social com o entorno. A solução para problemas de acessibilidade, áreas livres e equipamentos poderá ser melhor resolvida (evitando a coincidência de altas densidades e pouco espaço livre); e eventuais remoções poderão ter soluções mais adequadas.

Devem ser implementados programas de assessoria técnica para a execução de adap-tações das instalações hidráulicas e elétricas das moradias, executados vinculados aos programas de urbanização de favela, prevendo-se inclusive formas de financiamento e subsídio para essas obras, de forma a garantir a efetividade dos sistemas de infra-estrutura urbana. Deve-se prever também a possibilidade de obras de ampliação ou melhoria das habitações com os mesmos arranjos financeiros e técnico-operacionais.

Page 58: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

58

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Devem ser solicitados ao agente promotor da urbanização e regularização – Estado, município ou associação de moradores e amigos do bairro – alguns documentos que poderão ser apresentados no processo de aprovação do financiamento ou no decorrer da obras em prazos preestabelecidos:

- Em assentamentos precários não contínuos à mancha urbana existente, exigência de parecer do órgão público responsável por saneamento ambiental e transporte público sobre adequação e viabilidade de atendimento;- Apresentação de projeto urbanístico em meio digital, de forma a aprimorar e moder-nizar a gestão municipal;- Apresentação de cadastro das famílias e das edificações a regularizar, com envio dos cadastros aos setores responsáveis por fiscalização de políticas sociais (interesse social) e uso, ocupação do solo e tributação;- Aprimoramento e aprovação de resolução do CONAMA com explicitação de crité-rios para tratamento das áreas de preservação permanente em área urbana para fins de interesse social, definindo-se procedimentos para regularização de assentamentos precários;- Desenvolvimento de base legal, administrativa e fonte de recursos federal e regional (grandes regiões brasileiras, regiões metropolitanas, bacias hidrográficas de mananciais de interesse regional e áreas de amortecimento de unidades de conservação);- Em situações de especial interesse urbanístico ou ambiental, podem ser solicitados ao agente promotor ou organizador da urbanização estudos sobre impacto das obras/re-gularização para:

- Permeabilidade;- Risco de enchentes (picos de cheia);- Controle da poluição difusa; e- Densidade e salubridade.

Referências bibliográficas

ALFONSIN, Betânia. Palestra no Seminário de Regularização Fundiária, organizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, São Paulo, julho de 2003.

BUENO, Laura Machado de Mello. “Projeto e Favelas: metodologia para projetos de urbanização”, tese de doutorado apresentada à FAU-USP, São Paulo, 2000.

______. “Parâmetros para a avaliação de vida urbana e qualidade habitacional em favelas urbanizadas”. In ABIKO, A. e ORSTEIN, S. (orgs.), Inserção urbana e Ava-liação Pós-Ocupação (APO) da Habitação de Interesse Social, Coletânea Habitare, vol. 1. São Paulo: FAU-USP, 2002.

DENALDI, Rosana. “Políticas de urbanização de favelas: evolução e impasses” tese de doutorado apresentada à FAU-USP, São Paulo, 2002.

LABHAB/FAUUSP – Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos do De-partamento de Projetos da FAU-USP. “Segundo relatório da pesquisa Parâmetros para urbanização de favelas”, São Paulo: FAU-USP: 1999a (xerox).

______. “Relatório final da pesquisa Parâmetros para urbanização de favelas”, São

Page 59: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

parâmetros e tipologias

59

Paulo: FAU-USP, 1999b.MARQUES, Eduardo César, TORRES, Haroldo e SARAIVA, Camila. “Favelas no

Município de São Paulo: estimativas de população para os anos 1991, 1996 e 2000”. Trabalho apresentado no X Encontro da ANPUR, Belo Horizonte, maio de 2003.

SILVA, Helena Menna Barreto. “Programas de urbanização e desenvolvimento do mercado em favelas brasileiras”. Trabalho apresentado ao Lincoln Institute of Land Policy, 2000.

Page 60: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 61: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

61

Estratégias de enfrentamento do problema: favelaProfa. Dra. ROSANA DENALDISecretaria Municipal de Inclusão Social e HabitaçãoPrefeitura Municipal de Santo André - SP

1. Institucionalização e aprimoramento das políticas de urbanização

Na década de 1980 assistimos ao início da construção institucional das políticas de urbanização de favelas. Na década de 1990, a urbanização de favelas deixa de ser promovida por meio de “programas alternativos” e passa a ser objeto de política habitacional.1 Constata-se o protagonismo do município. Muitos municípios que apresentam favelas passam a desenvolver programas de urbanização e regularização como parte integrante da política municipal de habitação. São eles os responsáveis pelas maiores parcelas de investimento na área habitacional.

Cabe lembrar que a institucionalização das políticas de urbanização de favelas ocorre também no âmbito do governo federal. A partir de 1995 são instituídos e adequados vários programas destinados a promovê-la. Além disto, por meio de pro-gramas como o HabitarBrasil/BID-DI (Desenvolvimento Institucional), busca-se influenciar os municípios na elaboração e implementação de políticas municipais de habitação, com o intuito de articulá-las com a política urbana e tornar a intervenção em favelas (assentamentos subnormais) prioritária e abrangente.

Observa-se o aprimoramento das intervenções municipais em favela nas duas últimas décadas. Analisando essa evolução a partir dos pioneiros, municípios que desenvolveram programas de urbanização e regularização na década de 1980, cons-tatam-se grandes avanços na concepção de políticas de urbanização de favela e na gestão, elaboração e execução dos projetos de urbanização.

A concepção das políticas desenvolvidas pelos pioneiros orientava-se para o reco-nhecimento legal da posse da terra e a garantia de “direitos sociais mínimos”, como o acesso ao saneamento. Na década de 1980, a ação municipal se caracteriza pela intervenção “emergencial”, destinada a promover, em algum grau, a melhoria das condições de infra-estrutura, com projetos quase sempre executados in loco e que se atêm, na grande maioria dos casos, aos limites do território ocupado pela favela. Na década seguinte, esta concepção evolui: agora se procura orientar as intervenções na direção da integração das favelas à cidade, rompendo com a visão setorial, tratando conjuntamente as questões socioeconômicas, ambientais e urbanísticas.

Pouca importância foi dada à elaboração de projetos executivos completos e planos urbanísticos na década de 1980. Em Recife, até 1993, apenas duas ZEIS possuíam planos urbanísticos; no entanto, na maioria das ZEIS e áreas pobres, tinham sido realizadas “intervenções pontuais”.2 Em Diadema, executavam-se as obras e o parce-lamento sem contar com projeto e levantamento planialtimétrico cadastral. Em Belo Horizonte, na década de 1980, os projetos correspondiam aos levantamentos de cam-

1 Sobre a institucionalização e o aprimoramento das políticas de urbanização de favelas ver DENALDI (2003).2 RECIFE-FJN (2001).

Page 62: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

62

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

po.3 A falta de projetos e diagnósticos completos contribuiu para que se consolidassem situações inadequadas de habitação e dificultou o dimensionamento de investimentos. Muitas urbanizações acabaram por agravar problemas ambientais.

Na década de 1990, o projeto começa a ser valorizado, o que significa um grande salto na qualidade de intervenção. Em Santo André, São Paulo (Guarapiranga) e no Rio de Janeiro, no âmbito do programa Favela-Bairro, a execução dos projetos é, na maioria das vezes, terceirizada e as obras de urbanização são realizadas com base em projetos executivos. Com a elaboração de projetos e a definição de normas para a exe-cução e contratação dos serviços de urbanização, a execução da obra é aprimorada.

A concepção de integrar a favela à cidade leva os municípios a construírem equi-pamentos públicos dentro da favela ou no seu entorno imediato, como praças, centros comunitários, centros esportivos, creches e postos de saúde. O acesso da população aos serviços públicos é ampliado e as construções contribuem para elevar a qualidade ur-banística da intervenção. Em muitos casos promove-se o desadensamento dos núcleos para permitir a construção de tais equipamentos. No âmbito do Programa Guarapi-ranga, a valorização dos equipamentos também é articulada com a necessidade de dar uso às áreas íngremes, a fim de impedir que venham a ser novamente ocupadas.

Embora o discurso nem sempre coincida com a prática, na década de 1990 ganha importância o entendimento de que o projeto e a intervenção não devem se ater aos limites da área ocupada pela favela, ou seja, não é possível tratar a favela como uni-dade isolada. A interface com as questões de desenvolvimentos urbanos, ambientais e de drenagem da cidade leva os governos e as agências internacionais a valorizarem soluções integradas para as favelas.4 O Programa Guarapiranga de São Paulo, em seu discurso oficial, associa a urbanização à gestão ambiental da bacia hidrográfica.

Os projetos elaborados tomando como unidade de planejamento a favela e seu entorno (bairro), ou ainda as microbacias hidrográficas, contribuem para que a ur-banização também desencadeie um processo de recuperação urbanístico-ambiental de setores da cidade.

A perspectiva de integração da favela à cidade reforça o reconhecimento do direito mais amplo à cidade (“direito à cidade”) e induz a elaboração de projetos e modelos de gestão que focalizem tanto a favela como a cidade, buscando soluções que respondam simultaneamente aos problemas ambientais e de estrutura urbana.

Outro aprimoramento se relaciona com a diversidade de soluções, de tipologias de intervenção. Os pioneiros limitavam-se à execução de infra-estrutura, ou seja, redes de água, esgoto, drenagem e pavimentação. Na década de 1990, a intervenção é aprimorada e observa-se a combinação de diversas tipologias e soluções habitacionais e urbanísticas que buscam responder ao problema do alto adensamento das áreas e da integração da favela à cidade. Algumas soluções combinam a execução de infra-

3 BEDE & PINHO (1995).4 Vários trabalhos acadêmicos apontam a necessidade de uma ação integrada. BUENO (2000) e MARI-CATO (2001, p. 79) recomendam, por exemplo, que a intervenção em favelas seja executada considerando-a como parte integrante de microbacias hidrográficas que, por sua vez, devem ser adotadas como unidade de planejamento. UEMURA (2000) reforça a importância da integração entre agentes e setores de governo para viabilizar um modelo de gestão de recursos hídricos e articular as estratégias de urbanização de favelas com as de recuperação das microbacias hidrográficas. O trabalho produzido pelo LABHAB (1999) produz reco-mendações que valorizam a análise e a ação integrada em favelas.

Page 63: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

63

estrutura no núcleo com a execução de novas moradias dentro ou fora deste, soluções de “verticalização” da favela para viabilizar a manutenção da totalidade da população no núcleo, como exemplificam os casos de Água Branca e Mina Gás em São Paulo. Além disso, alguns municípios, como Santo André, passam a articular os programas de urbanização com outros programas habitacionais, como o de requalificação das moradias e financiamento e assessoria à autoconstrução habitacional. No Rio de Ja-neiro, a “Célula Urbana” é uma tentativa de dinamizar a relação favela-cidade.

Também no campo da gestão e participação popular, registram-se grandes avanços. São instituídas várias instâncias de participação. No nível da cidade, o OP (Orça-mento participativo) é institucionalizado em vários municípios e as prioridades de atendimento são estabelecidas por meio de um processo democrático de discussão. Instituem-se fóruns e conselhos de habitação. No nível do núcleo de favela, métodos como o DRUP, desenvolvido pelo município de Santo André, buscam a participação da população, lideranças e moradores, na elaboração e implementação do projeto.

Também ganha importância o entendimento de que a favela não pode ser trata-da apenas como problema habitacional. Busca-se valorizar o desenvolvimento de programas sociais, antes concebidos como “complementares” à urbanização, como elementos estruturadores de estratégias de inclusão social da população de favelas. Nesse caso, o programa “Santo André Mais Igual”, desenvolvido por Santo André, é o exemplo mais importante porque, de fato, institui a organização matricial e promove a integração de programas sociais.

2. Tipologia e modalidades de intervenção

A erradicação é abandonada na década de 1980, pela maioria dos governos, que passa a promover a remoção total da favela apenas quando não é possível consolidá-la, quando, por exemplo, as favelas se localizam sob redes de alta tensão ou sobre aterro sanitário. Cabe ressaltar que embora predominem as políticas de urbanização (ou reurbanização), a erradicação também é praticada para atender aos interesses do mercado imobiliário. Exemplo é o caso em São Paulo, na década de 1990, da remoção das famílias que habitavam o complexo de favelas Águas Espraiadas (FIX, 2001).

Denomina-se “urbanização” desde um conjunto de intervenções pontuais para melhorar as condições de saneamento e acessibilidade das favelas, até projetos que incorporam estratégias de integração da favela com o bairro, de recuperação am-biental de sub-bacias hidrográficas e complementação da urbanização de áreas mais amplas ou, ainda, que se inserem no âmbito de estratégias mais amplas de combate à exclusão social.

LARANJEIRA (2003) classifica as intervenções de urbanização em função de seus desenhos institucionais. Identifica duas tendências básicas de concepção: programas com desenhos institucionais “concentrados” e programas com desenhos institucionais “horizontalizados”. E acrescenta que apesar de o desenho institucional do modelo “concentrado” contemplar muitas vezes a articulação com outras instâncias da admi-nistração local, “a coordenação do programa tem um núcleo de tomada de decisões bem definido, normalmente inscrito a uma das Secretarias municipais, não raro cria-

Page 64: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

64

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

das com a função de capitanear uma política habitacional (e urbana) que tem como foco central um programa de urbanização de favelas”. O exemplo mais importante seria o programa Favela-Bairro do Rio de Janeiro.

O modelo institucional “horizontalizado” promove uma articulação horizontal entre programas que “não se subordinam entre si, mas que convergem seus objetivos e ações para âmbitos territoriais comuns, buscando efeitos de sinergia nos processos de urbanização e inclusão social”. Observando a experiência de Santo André a autora conclui que articulação e integração de programas demonstra ser uma estratégia capaz de ampliar a eficácia dos programas de urbanização.

BRAKARTZ (2002: 39), analisando experiências internacionais de urbanização de assentamentos informais, aponta dois tipos principais de urbanização: “programas de regularização da propriedade” e “programas integrados de melhoramento de bairro”. Os programas de regularização estariam voltados para a regularização da propriedade da terra nos assentamentos informais, além de promover a melhoria da infra-estrutura urbana e das moradias. Os programas de melhoramento de bairros combinariam a melhoria da infra-estrutura dos assentamentos informais com a prestação de serviços sociais por meio de ação integrada e multissetorial. O programa de melhoramento de bairros é recomendado pelo autor como uma das “estratégias de superação da pobreza urbana”, uma vez que buscam, além da melhoria habitacional, “a solução integrada às múltiplas carências enfrentadas pelos pobres”.

Também nesta direção, a Prefeitura de Santo André adota uma classificação que busca diferenciar as intervenções a partir de seus componentes. Para tanto, classifica os núcleos de favela em núcleos “consolidáveis” e “não consolidáveis” e adota como principais tipos de intervenção: remoção, urbanização e urbanização integrada. Os núcleos “não consolidáveis” são objeto de intervenção do tipo “remoção” e reassen-tamento em novas áreas. Os núcleos “consolidáveis” são objeto de intervenções de urbanização ou urbanização integrada (UI) (SANTO ANDRÉ, 1998, 1997).

O núcleo “consolidável” é aquele que apresenta condições favoráveis de recupe-ração urbanística e ambiental e de reordenamento urbano (abertura ou readequação de sistema viário, implantação de infra-estrutura básica, regularização urbanística do parcelamento do solo), com ou sem necessidade de remoção de parcela das famílias moradoras. O núcleo “não consolidável” é aquele que não apresenta condições de recuperação urbanística e ambiental e de reordenamento urbano. Trata-se de núcleos comprometidos por situações de risco e insalubridade não solucionáveis, como, por exemplo, os que se localizam sob aterro sanitário, oleoduto, viário estrutural da cidade, áreas de risco, de preservação ambiental e non aedificandi.

Neste caso, a “urbanização” compreende a provisão de infra-estrutura completa e execução de obras voltadas para a eliminação de situações de risco, regularização fundiária, melhoria do sistema viário. A urbanização integrada compreende as in-tervenções por meio de ações integradas e multidisciplinares, tanto para promover a melhoria das condições de habitação e a integração da favela à cidade, como para tratar dos múltiplos aspectos da exclusão social por meio do desenvolvimento integrado de programas sociais, de educação, saúde, geração de trabalho e renda.

A unidade de planejamento e intervenção das ações físicas não necessariamente precisa se ater aos limites da área ocupada pela favela.

Page 65: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

65

Em ambos os casos, os projetos de urbanização podem envolver a construção de novas moradias, tanto no núcleo de favela como fora deste, para equacionar situações de risco ou de alta densidade.

Muitas vezes, os municípios se vêem obrigados a adotar diferentes modalidades de urbanização para responder ao problema da limitada capacidade municipal de investimento frente à necessidade de tratar situações emergenciais e de grande pre-cariedade habitacional. Em geral, pode-se considerar que tanto a urbanização como a urbanização integrada (UI) podem ser executadas gradualmente ou em curto espaço de tempo, integralmente, como denominam muitos governos municipais, como o de Santo André.

A urbanização gradual (ou parcial) consiste na execução de melhorias ao longo de muitos anos. Trata-se da urbanização parcial, de setores da favela ou da somatória de intervenções pontuais realizadas pela população e pelos governos que, com o passar dos anos, acabam resultando na sua consolidação. As intervenções executadas podem ou não ser orientadas por um plano geral de urbanização.

Em função de condicionantes financeiras, sociais e políticas, a urbanização gradual é a modalidade que mais tem sido adotada pelos governos municipais e a que beneficia maior percentual da população de favelas. Em Santo André, de 1989 a 2000, cerca de 87% das favelas receberam intervenções deste tipo, e em Diadema, 100% delas.

E cabe “tudo” dentro do conceito de “urbanização gradual”. Realizam-se desde urbanizações parciais orientadas por um plano global de intervenção até obras pon-tuais, como execução de trechos de redes de água e esgoto (provisórios ou não) ou muros de contenção e escadarias.

Objetiva-se melhorar as condições de habitação, eliminando ou minimizando si-tuações de insalubridade e de risco geotécnico, enquanto não é possível promover a urbanização integral, que requer investimento mais elevado. Os resultados dependem do porte e da somatória das intervenções realizadas ao longo dos anos. Em algumas favelas onde, por exemplo, apenas se construiu um muro de arrimo, as condições não são substancialmente alteradas. Já em outras favelas, o conjunto de interven-ções pontuais realizadas, não sendo orientadas por projeto global de infra-estrutura e parcelamento ou não contando com a possibilidade de realizar remoções, acaba resultando na consolidação da ocupação existente tal como ela se deu. Com a implan-tação de infra-estrutura, mesmo que precária, os moradores investem na construção e ampliação de suas moradias. Quase que “acidentalmente”, as favelas são urbanizadas e se consolidam.

Se, por um lado, este tipo de intervenção não planejada consolida situações de moradia e urbanização inadequadas, por outro lado traz, em curto prazo, grande benefício para expressiva parcela da população de favelas.

Além destas modalidades também se executa a intervenção pontual, que é a exe-cução de obras de emergência para a eliminação de situações de risco detectadas pela Defesa Civil ou diminuição de insalubridade. Algumas das “intervenções pontuais” são realizadas em núcleos classificados como não consolidáveis.

Considerando, como mencionado anteriormente, que o conceito de urbanização de favelas engloba diferentes tipos e modalidades de intervenção, defende-se a necessidade de definir também os padrões de qualidade urbanística e habitacio-

Page 66: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

66

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

nal alcançados. Podem-se identificar três padrões de qualidade de urbanização (padrão urbanístico):

- Padrão mínimo de urbanização: implantação de redes de água e de esgoto, drenagem e eletrificação, com soluções de coleta de lixo e melhora da acessibilidade, além de re-cuperação das áreas de risco;- Padrão intermediário de urbanização: somaremos à eliminação de situações de risco e à implantação de infra-estrutura a provisão de equipamentos urbanos (praças, centro comunitário, escola, creche), a readequação do viário e intervenção no entorno, quan-do necessário, buscando solucionar questões ambientais ou deficiências de estrutura urbana;- Padrão alto de urbanização: soma-se à adequação da densidade com definição de parcelamento, com a grande maioria dos lotes tendo tamanho mínimo de 40-44 m2, a eliminação de situações de insalubridade e insegurança das moradias, a readequação do viário para permitir acessibilidade a todas as moradias e garantir distanciamento mínimo entre edificações de 4 m e um distanciamento máximo de uma via de veiculo de 60 m, além da promoção da regularização fundiária.

3. Urbanização integrada

Para intervir nas favelas a fim de melhorar tanto a qualidade de vida de seus moradores, como também a do restante da cidade, é necessário que se realizem diag-nósticos completos e integrados (interdisciplinares) das favelas e de seus entornos. O diagnóstico deve apontar o que urbanizar, como urbanizar, e o que consolidar e regularizar. Os projetos devem combinar os aspectos sociais e de habitação (domi-cílio) com os aspectos de drenagem, meio ambiente, estrutura urbana, regulariza-ção fundiária. A complexidade da intervenção, os agentes envolvidos e o alto grau de interdependência das variáveis envolvidas (urbanística-ambiental, jurídica-legal, social, política) exigem uma abordagem integrada e interdisciplinar. Esse diagnós-tico pode apontar alternativas de intervenção e orientar a tomada de decisão, que deve também ser resultado de uma análise custo-benefício (entendida aqui como custo financeiro, econômico e social – beneficio para a população de favelas, como também para a cidade).

Várias propostas metodológicas valorizaram a produção de diagnóstico integrado dos assentamentos.5 Destaco a recomendação de BUENO (2000: 316-341) de que o diagnóstico e a proposta de intervenção extrapolem os limites da favela e que seja analisado o interesse urbano do restante da cidade na urbanização de cada favela. Para tanto, a autora propõe que a unidade de planejamento seja a sub-bacia hidrográfica ou setores urbanos onde a favela se insere e que a “urbanização de uma favela deve fazer parte de um conjunto de intervenções visando complementar a urbanização de áreas mais amplas”.

Em Belo Horizonte, o governo municipal instituiu o Plano Global Específico (PGE), no âmbito do qual se desenvolve um complexo diagnóstico urbanístico, am-

5 BUENO (2000: 320-323); MELLO et alii (1995), SANTO ANDRÉ (2000), RIO DE JANEIRO (1996), entre outros.

Page 67: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

67

biental, social e jurídico da favela e do entorno. O PGE é um estudo constituído de levantamento de dados da realidade física, social e jurídica, de diagnóstico completo e de um conjunto de diretrizes e propostas para promover a regularização e urbani-zação das favelas assim como sua integração à cidade. Buscar solução integrada para os problemas se constitui em importante instrumento de planejamento voltado para orientar as decisões de intervenção do governo local, concessionárias de serviços públicos e organizações não governamentais.6

Cabe ressaltar a importância de envolver os moradores na elaboração do diagnós-tico. Em Santo André, por exemplo, a equipe de governo aplica o DRUP (Diagnóstico Rápido Urbano Participativo).7

Para viabilizar a urbanização de favelas, os governos vêm adotando parâmetros projetivos que diferem dos praticados no restante da cidade legal. BUENO (2000) afirma que já temos no Brasil uma “sistemática de procedimentos técnicos e opera-cionais” para intervir em favelas. Vários governos municipais e instituições de ensino e pesquisa produziram propostas de métodos de intervenção, normatização e parâ-metros projetivos.8

Os projetos de urbanização (“Urbanização Integrada”) procuram combinar sempre que possível o respeito à tipicidade de ocupação com a promoção de um reparcela-mento “especial”, adotando padrões urbanísticos específicos, como o “lote mínimo” de 40-45 m2. Trata-se de promover a melhoria das condições de saneamento, junto com o reparcelamento do núcleo.

Os projetos devem buscar criar um sistema de acesso para veículos e de integração viária com o bairro. Adota-se largura mínima de vias não convencionais: via carro-çável de largura mínima de 4 m, vias para pedestres, trechos em rampas e escadarias. Estudos realizados pelo IPT (CARVALHO et alii, 2002) e pelo LABHAB-FAUUSP (1999) recomendam que a distância entre o domicílio e uma via de veículo não ul-trapasse 60 m.9

O alto adensamento das favelas em regiões metropolitanas torna necessário remo-ver maior percentual de famílias para viabilizar a urbanização sem abrir mão da fração mínima de terra (lote mínimo) por família. Praticam-se soluções como a diminuição

6 Segundo a PBH (2000) a partir de 1998 a aplicação de recursos do OP nas favelas passou a estar subordi-nada às definições de priorização estabelecidas no PGE. Passou a ser freqüente a reivindicação da elaboração do PGE pelas comunidades no âmbito do OP.7 No caso de Santo André o DRUP foi desenvolvido com assessoria da GTZ (Agencia de Cooperação do Governo Alemão).8 O CEPAM (FUPAM: 1982; 1983) produziu os seguintes estudos: “Estudo de normas legais de edificação e urbanismo adequado às áreas de assentamentos subnormais ou de baixa renda”; “Normas legais de edificação e urbanismo em favela”, apresentando padrões mínimos de lote, vias, e de distância entre edificações. A Prefei-tura de São Paulo (1989/92) produziu um conjunto de normas, orientações e especificações para a elaboração de projetos e contratação de obras, tais como o “Caderno de encargos para desenvolvimento de projetos de saneamento e drenagem” e o caderno “Especificações de obras em favelas e formas de medição e pagamento” (SÃO PAULO, 1992). O LABHAB – FAUUSP (1998-1999) desenvolveu a pesquisa intitulada “Parâmetros para urbanização de favelas”. A coordenação geral da pesquisa foi da Prof. Dra. Ermínia Maricato e a coordenação técnica, da Profa. Dra. Laura Bueno. Resumo dos resultados da pesquisa é apresentado por BUENO (2002).9 O CEPAM (FUPAM: 1982) recomendou que a distância máxima de uma via de veículo a ser percorrida pelo pedestre não seja maior que 50 metros. SOUZA (2002) apresenta um procedimento de avaliação de desempenho das vias em projetos de urbanização de favelas, comparando desempenhos de vias e impactos gerados por diferentes alternativas de projeto.

Page 68: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

68

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

do tamanho do lote, chegando ao mínimo de 40 m2, a verticalização (construção de edifícios de apartamentos) de setores da favela e a produção de novas moradias em outras localizações.

Atualmente busca-se aprimorar essa metodologia para responder a novos desafios: os dois principais se relacionam com a necessidade de elevar o patamar de qualidade da urbanização, integrando a favela à cidade, e garantir o acesso a uma “moradia digna”. Uma das estratégias para garantir o acesso à cidade é promover o acesso a equipamentos urbanos.

3.1. Custos de urbanizaçãoOs parâmetros adotados para promover a urbanização de favelas resultam em

distintos padrões e custos de urbanização, assim como possibilidades de regularização fundiária.

Em Santo André, o custo médio de urbanização, executado e contratado na pri-meira etapa do programa “Santo André Mais Igual” (Programa Integrado de Inclusão Social) é de R$ 10.722,56 por família, sendo que o maior custo é de R$ 17.961,00 por família na favela Sacadura e o menor, de R$ 7.159,18, na Tamarutaca. Se incorporar-mos o custo da terra para a produção das novas moradias (remoção), o custo médio de urbanização por família sobe para R$ 12.354,10, chegando o maior valor, no caso da Sacadura, a R$ 22.050,00, e o menor, a R$ 8.697,63.10 O custo de execução de projeto e infra-estrutura é, em média, de R$ 4.388,00 por família. Ressaltamos que o custo médio de infra-estrutura para o conjunto das áreas corresponde a 37% do custo total do investimento e os gastos com execução de redes de água, esgoto e drenagem, a cerca de 12,15%. Incorporando o referido custo da terra, os valores caem para 32,63% e 10,44%, respectivamente.

Ainda em Santo André, o custo total da urbanização integrada do complexo “Jd. Santo André”, que vem sendo executada pela CDHU (Companhia de Desenvolvimen-to Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), é de R$ 17.820,00 por família.11 Estas cifras incorporam os valores referentes à construção de equipamentos urbanos, alojamentos provisórios e recuperação ambiental de áreas consideradas ambiental-mente sensíveis.12

Em São Paulo, no âmbito do programa Guarapiranga, os parâmetros de custos adotados para as primeiras contratações foram de 4.500 dólares/família para urbani-zação e 2 mil dólares/família para adequação. A variação de custos é de R$ 1 mil a 12 mil (R$ 1.116,88 no Jardim Santa Luzia II e R$ 12.158,12 no Jardim Esmeralda) (UE-MURA, 2000: 104). O custo médio das obras de urbanização realizadas pelo CDHU foi estimado em R$ 14.155,00 por família (incluindo construção de novas unidades habitacionais nas favelas, gerenciamento e projeto). O custo médio das obras reali-zadas pela PMSP, utilizando-se a mesma composição de custos, foi de R$ 11.936,00 (UEMURA, 2000: 114). Esses valores superaram em muito os valores estimados de investimento por família, que eram de R$ 6.900,00 por família (pela PMSP) e de R$ 5.966,00 por família (pela unidade de gestão do programa).

10 Data-base: maio de 2002.11 CDHU – Quadro de Urbanização Integrada Jardim Santo André (posição: 29/05/2002).12 O complexo Jd. Santo André é composto por 6 favelas e abriga cerca de 35 mil habitantes.

Page 69: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

69

No Rio de Janeiro, no âmbito do programa Favela-Bairro, o investimento médio por família (domicílio) apropriado, considerando a totalidade de valores contratados no âmbito do PROAP I, foi de 5.042,59 dólares por família (RIO DE JANEIRO, 2001: 07). O levantamento de custos de uma amostra do PROAP II, que levantou preços de urbanização de nove favelas em 1999, apontou que o investimento por família, no âmbito do PROAP II, era de 3.029 dólares.13 A expressiva alteração do investimento médio por família de um contrato para outro é principalmente explicada em função da variação da taxa de câmbio no período.14

Estudo desenvolvido por técnicos do IPT (CARVALHO et alii, 2002) analisa proce-dimentos para tomada de decisão em Programas de Urbanização de favelas, baseados no estudo e comparação de diferentes alternativas de intervenções, com a adoção de diferentes parâmetros e padrões urbanísticos e seus respectivos custos.

O método proposto consiste em levantar o diagnóstico da situação inicial da favela, formular alternativas de intervenção (correspondentes a diferentes padrões de urbani-zação) e analisá-las comparativamente. Para o desenvolvimento do estudo, foi eleito o núcleo Parque Amélia/Santa Margarida, que foi objeto de urbanização no âmbito do Programa de Saneamento Ambiental da Bacia do Guarapiranga, adotando-se como referência o levantamento de custos e padrões urbanístico realizado no conjunto de favelas urbanizadas no município de São Paulo, no âmbito do referido programa.

O estudo considerou inadequados os seguintes indicadores urbanísticos associados à área de sistema viário:

- Setores em que o lote equivalente médio é inferior a 45 m2;- Vias de largura inferior a 2 m de 2 a 4 m, distando mais de 60m de uma via de veículos.

Consideraram-se as seguintes alternativas de intervenção:Alternativa 1: visa basicamente à implantação de redes de água e de esgoto, mesmo

que em condições mínimas de desempenho, à acessibilidade a todas as moradias, e à recuperação das áreas de risco.

Alternativa 2: visa atender aos objetivos da primeira proposta de intervenção, somando-se a eles a requalificação do sistema viário do núcleo, com base nos critérios estabelecidos no item de caracterização do sistema viário existente.

Alternativa 3: visa à implantação de sistemas de saneamento básico, ao controle das áreas de risco e à adequação do sistema viário existente, da forma como foi con-templado pela segunda alternativa, somando-se, porém, medidas de adequação da densidade de ocupação do núcleo, para que esta se enquadre nos critérios propostos na caracterização da densidade de ocupação. No caso da favela em estudo, a proposta se baseia na remoção extensiva das famílias de áreas cujo lote equivalente médio seja menor que 45 m2 por edificação, resultando em espaços livres a serem utilizados para relocação de unidades habitacionais.

Alternativa 4: tem por objetivo atender às medidas estabelecidas pela alternativa 3 e, complementarmente, atender às restrições legais, visando à regularização fundiária

13 Dados apresentados por Fernando Cavallieri no Seminário Internacional: A cidade dainformalidade: custos e possibilidades, realiza do nos dias 29 e 30 de abril no IBAM, nacidade do Rio de Janeiro, e organizado pelo IPPUR / UFRJ.14 A taxa de câmbio que em setembro de 1994 era de R$ 0,95 sobe para R$ 1,89 em setembro de 1999.

Page 70: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

70

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

do núcleo favelado. No caso do Parque Amélia/Santa Margarida, impõe-se somente a restrição da Lei Federal nº 6.766 (1979), relativa às faixas não edificáveis ao longo de cursos d’água. Como foi visto, essa faixa deve ser de no mínimo 15 m de cada lado, o que impõe a remoção de todas as famílias que estejam nela situadas, além daquelas que sofreram remoção nas alternativas anteriores.

Alternativa 5: objetiva o total reordenamento físico do núcleo, com demolição de toda a estrutura existente, readequação física e construção de novas unidades habi-tacionais, visando também à regularização fundiária. Na favela Parque Amélia/Santa Margarida, a tipologia habitacional adotada para substituição é o prédio de quatro andares; ainda, a única restrição legal atendida é aquela imposta pela Lei nº 6.766/79, tal como na alternativa 4 (IPT, 2002: 17-35).

A Tabela abaixo apresenta os resultados urbanísticos e custos por família obtidos em cada uma das alternativas. O estudo demonstra que diferentes padrões de urbani-zação (e parâmetros de projeto) resultam em diferentes custos de urbanização.

Custo por família e resultados urbanísticos com diferentes alternativas de urbanização Núcleo Parque Amélia/ Santa Margarida

Fonte: Rocha, F. R.; Carvalho, C. S.; Moretti, R. S. e Samora, R. P., 2000.

O estudo é um alerta para quem busca definições de custo de urbanização e pa-dronização de soluções e parâmetros urbanísticos. Os custos de urbanização estão relacionados com as características fisiográficas específicas de cada núcleo e com os parâmetros de projeto adotados, que, por sua vez, resultam em diferentes patamares de qualidade de moradia, possibilidades de regularização, recuperação ambiental e regularização fundiária.

Parece importante que a tomada de decisão seja orientada pela análise das alter-nativas de intervenção e dos custos e benefícios resultantes, tanto para os moradores de favela como para a cidade.

3.4. Estratégias pós-urbanização

Controle urbanoA grande maioria dos municípios brasileiros que desenvolvem programas de urba-

nização de favelas não consegue exercer o controle urbano nas favelas urbanizadas.No Rio de Janeiro uma estratégia adotada foi a criação do POUSO. O POUSO

– Posto de Orientação Urbanística e Social – é instalado no período de execução da obra e permanece no local. O POUSO tem a função de articular as ações do município

Page 71: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

71

dentro da favela urbanizada, orientar a execução de novas construções ou amplia-ção das existentes, o uso de equipamentos públicos implantados, exercer fiscalização urbanística e edilícia e participar da elaboração de legislação específica. Sua ação é mais centrada no controle urbanístico, objetivando preservar os limites dos espaços públicos, manter o alinhamento das vias e evitar a ocupação de áreas de risco.

Manutenção UrbanaA urbanização das favelas promove inquestionavelmente uma melhoria das con-

dições de habitabilidade, no entanto, a qualidade dos serviços urbanos prestados na favela urbanizada nem sempre se equipara à qualidade dos serviços prestados na “cidade formal”. Os problemas de falta de manutenção nas favelas urbanizadas são detectados em quase todas as cidades que desenvolvem programas de urbanização. Inevitavelmente a falta de manutenção dos serviços urbanos compromete a integração da favela à cidade e o acesso a uma moradia digna. Acredita-se que uma das alternati-vas para reverter esta situação seria a definição pelos governos municipais de padrões de qualidade para execução e manutenção dos serviços urbanos combinada com a participação da população residente nos núcleos de favela urbanizados nos processos de avaliação e monitoramento dos serviços implantados.

Buscando reverter este quadro uma das ações que o município de Santo André vem desenvolvendo é o “Observatório de Qualidade dos Serviços”, que promove uma avaliação contínua da qualidade da prestação dos serviços públicos, por parte dos moradores.15

Esse processo foi implementado primeiramente nos núcleos Sacadura Cabral e Tamarutaca. Em 2001, estruturou-se o Observatório do núcleo Sacadura Cabral com o objetivo de avaliar a qualidade dos serviços de abastecimento de água, esgoto, drenagem, energia elétrica e coleta de lixo. Os observadores foram os próprios mo-radores (em um total de 13), que, para esse fim, foram capacitados para atuar como avaliadores. Os resultados foram discutidos em um fórum do qual fizeram parte: observadores, moradores, equipe técnica da Prefeitura de Santo Andre e as conces-sionárias. Os resultados foram encaminhados às concessionárias responsáveis pela prestação de serviços.

Antes do estabelecimento do “Observatório”, a Prefeitura definiu padrões desejá-veis de qualidade dos serviços instalados, por meio de comparação com os padrões efetivados no bairro, o que desencadeou um processo de divulgação e conscientização da importância de os novos padrões superarem os patamares de baixa qualidade anteriormente existentes.

Os observadores da população não foram tratados como fontes de informação, mas como “protagonistas da gestão dos resultados”. Foram capacitados para conhecer os padrões estabelecidos a priori e os procedimentos de monitorização desses serviços, assim como orientados sobre o papel das concessionárias e da Prefeitura (departa-mentos) na verificação das irregularidades que venham a ocorrer com o tempo.16

15 Ver DENALDI et. al. (2003)16 Esse “Observatório” vem sendo desenvolvido em parceria com a CERFE, no âmbito do convênio firmado entre a Comissão Européia e a PMSA (Convenção BRA/B7 – 3010/IB/95/115 de 06/04/1998).

Page 72: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

72

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Requalificação habitacionalA maioria dos projetos de urbanização de favelas deixa a produção habitacional

a cargo da população que gradualmente autoconstrói e financia suas próprias mora-dias. No entanto, nem sempre as condições de habitabilidade atingem patamares de qualidade considerados adequados.

Observa-se que a maioria dos autoconstrutores edifica sua moradia gradativamen-te, visando tão-somente suas necessidades de espaço e deixando de lado as questões relacionadas com o conforto ambiental no interior da moradia (desempenho térmico, ventilação e iluminação natural e conforto acústico). Moradias insalubres, por exem-plo, sem aberturas para o exterior, são produzidas, acarretando problemas de saúde como doenças respiratórias que atingem principalmente as crianças.

Esta constatação tem levado alguns municípios a articular programas de urbaniza-ção com programas de assessoria técnica à autoconstrução ou programas de requalifi-cação habitacional. Em Santo André, o governo municipal instituiu o “Melhor Ainda”. Este programa viabiliza a orientação técnica para a construção, reforma e ampliação das moradias, podendo estar associado à disponibilização de crédito para esse fim. A obtenção de crédito é condicionada à construção ou adaptação da moradia para responder à eliminação de riscos e às diretrizes de conforto ambiental (ventilação, iluminação) estabelecidas pela Prefeitura.

4. Desafios para intervenção

Com o aprimoramento das políticas de urbanização de favelas, registram-se avan-ços inegáveis nas décadas de 1980 e 1990. No entanto, embora sejam relevantes os resultados alcançados na melhoria das condições de vida, principalmente no tocante aos aspectos de saneamento e saúde, as intervenções não alcançam a abrangência necessária ou nem sempre promovem a integração da favela à cidade e o acesso da população a uma moradia adequada. Destacamos a seguir alguns desafios para im-plementação de políticas de urbanização de favelas.

Abrangência x qualidadeOs avanços obtidos, relacionados principalmente ao aprimoramento da política

de urbanização e às mudanças institucionais, não são acompanhados de resultados concretos em termos de número de projetos concluídos e de famílias atendidas. Ob-serva-se que os municípios não conseguem ampliar a escala de intervenção. A dimen-são que a cidade ilegal (favelas) assume, principalmente nas regiões metropolitanas, a complexidade e o alto custo das intervenções, assim como a diminuta capacidade de investimento municipal, não permitem que o governo municipal reaplique soluções de urbanização integrada de favelas (com reassentamento) para o conjunto de assen-tamentos da cidade.

LARANJEIRA (2003) aponta que ainda é pequena a cobertura que programas de urbanização integrada conseguem oferecer. Segundo a autora, Santo André atende cerca de 13,31% da população de favelas da cidade, Goiânia, cerca de 9,46%, e Belém, cerca de 1,68% . Rio de Janeiro atende cerca de 46,55%.

Page 73: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

73

Outros estudos apontam que Recife e Belo Horizonte, cidades pioneiras, não conseguiram tornar abrangente sua intervenção do tipo urbanização integrada.17 A abrangência do programa Favela-Bairro só foi possível porque houve grande injeção de recursos externos, do BID, e porque se adotaram parâmetros de urbanização que reduziram ao máximo o número de remoções, mesmo que, dessa forma, em muitos projetos a condição de moradia adequada não fosse alcançada.

A análise das políticas apresentadas indica que os governos municipais estão em um impasse. Muitas vezes, diante da necessidade e da impossibilidade de tornar abran-gente o atendimento, a maioria das intervenções acaba promovendo a “urbanização possível” que é resultado da somatória de intervenções pontuais e emergenciais. Por um lado, minimiza-se a precariedade das condições de habitação de enorme parcela da população, mas, por outro, consolidam-se situações precárias.

Os governos tendem a consolidar a favela tal como está, sem definição de par-celamento ou adoção de lote mínimo, ou, ainda, sem a eliminação de situações am-bientalmente inadequadas. Essa opção muitas vezes resulta em habitações insalubres e dificulta a realização da regularização e manutenção urbana e ainda compromete a qualidade de vida da população de favelas e da população da cidade como um todo.

Acesso à terraÉ óbvia a importância de articular a política habitacional com o planejamento e

gestão urbana. A ampliação da oferta de moradias se relaciona com a ampliação do acesso a terra urbana servida por infra-estrutura e serviços. Depende do estabeleci-mento de uma política urbana e fundiária que amplie a oferta de terra urbanizada, garantindo o uso social do espaço urbano e combatendo a especulação imobiliária, assim como também do estabelecimento de instrumentos urbanísticos para regular o mercado e promover a moradia social.

A disponibilização de terra faz-se necessária para promover a ampliação do mer-cado e também para promover o reassentamento de famílias moradoras em núcleos de favela.

Produção de novas moradiasNa agenda dos anos 1990, a produção ou a melhoria habitacional tendem a não

ser consideradas uma questão central nos programas de urbanização de favelas. O Favela-Bairro, o programa municipal brasileiro de urbanização de favelas de maior abrangência, anuncia que, na urbanização de favelas, “trata-se de construir a cidade onde já existe habitação”. Os governos anunciam com veemência que a proposta não é de remoção, mas de consolidação, respeitando a tipicidade de ocupação.

As agências internacionais, (BRAKARZ, 2002: 38), sugerem a redução dos padrões de parcelamento do solo como medida para evitar a remoção e produção de novas moradias. No entanto, essa medida já foi tomada por vários municípios em regiões metropolitanas, desde o início da década de 1980, e a necessidade de desadensamento e remoção persiste. O adensamento das favelas e a formação de novos núcleos em áreas cada vez mais impróprias à ocupação aumentam a necessidade de remoção e

17 RECIFE/FJN (2001); BELO HORIZONTE (2001).

Page 74: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

74

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

verticalização. Promover a urbanização de favelas, mesmo com a adoção de padrões urbanísticos mínimos, implica um percentual cada vez maior de remoção e reassenta-mento. Em cidades como Santo André e Recife, esse percentual pode chegar próximo a 30% da população total de favelas. E ressalta-se que muitos municípios que apresentam população de favelas não possuem diagnóstico do percentual de remoção necessário.

Os governos não dispõem de levantamento e sistematização de informações e os estudos acadêmicos têm dado pouca atenção à questão da apropriação dos custos de urbanização; muitos nem sequer incorporam os custos operacionais e de produção habitacional quando apresentam os custos de urbanização.

Os estudos apresentados neste trabalho revelam que não se pode subestimar a importância e o peso da remoção no financiamento e formato das políticas de urba-nização de favelas. A Tabela abaixo apresenta informações de diversos programas e, apesar de os levantamentos não incorporarem a totalidade de custos e serem dife-rentes as formas de apropriação destes, elas são fortes indicadores de que em regiões metropolitanas o custo da produção habitacional é aproximadamente igual, se não superior, ao custo da urbanização de favelas, que incorpora os custos de provisão de infra-estrutura e equipamentos. Os custos com a produção de novas moradias (remo-ção) representam cerca de 68% do custo total de urbanização em Recife, 48% no caso do programa Guarapiranga em São Paulo e 46% no caso do programa “Santo André Mais Igual” em Santo André, e 65% nesta mesma cidade para promover a “urbanização integrada” de todas as favelas existentes na cidade, assim como promover a remoção das famílias dos “núcleos não consolidáveis”.

Custo de urbanização e remoção

¹ Considerando o total dos núcleos de favelas consolidáveis e não consolidáveis e o complexo Jd. Santo André. Inclui urbanização e produção de novas moradias.² Fonte: IPT (2002).³ Referente a 2.990 famílias, excluindo o setor B da Tamarutaca.

A remoção é um dos principais gargalos da urbanização. Os municípios não con-seguem equacionar o financiamento dessa remoção e, conseqüentemente, deixam de promover a “urbanização qualificada” (urbanização integrada).

Embora o saneamento seja um “direito social mínimo”, ele não pode continuar sendo considerado a única questão central em programas de urbanização que buscam integrar a favela à cidade e promover a inclusão social. O peso da remoção e da produ-ção de novas moradias para viabilizar a urbanização, assim como a baixa qualidade da moradia que resulta dos processos de urbanização, são indicadores de que nas regiões

Page 75: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

75

metropolitanas não se trata apenas de “levar a cidade aonde já tem moradia”. Será ne-cessário combinar os programas de urbanização com programas complementares de produção de novas moradias e priorizar ações de assessoria técnica à autoconstrução de moradias, além de ações de manutenção e controle urbano.

A questão da produção habitacional para promover a urbanização traz de volta, de certa forma, a equação renda versus custo de habitação. Na maioria das regiões metropolitanas, não bastará reduzir os padrões de parcelamento e edificação. Ou teremos de produzir habitação para um segmento da população que não tem renda suficiente para arcar com seu financiamento (no estilo cost-recovery), ou teremos de permitir que as favelas se consolidem (quase) como estão, implicando que nem sempre estaremos garantindo o acesso a uma moradia adequada, nem promovendo a integração da favela ao bairro ou, ainda, recuperando ambientalmente a cidade.

Referencias bibliográficas

BEDE, M. C.; PINHO, E. A. PRO-FAVELA – Uma experiência de Legislação de Área de InteresseSocial. Belo Horizonte: Cidade Editora, 1995.

BELO HORIZONTE. Prefeitura da Cidade. Plano Global Específico – Trabalho pela Qualidade de Vida em Belo Horizonte. Belo Horizonte: PCBH, 1999

______. URBEL. Plano Estratégico de Diretrizes de Intervenção nas Zonas de Especial Interesse Social. Belo Horizonte, 2000.

______. Balanço da Política Municipal de Habitação. Belo Horizonte: PCBH, 2001.BUENO, L. M. de M. Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização de

favela. Tese de Doutorado apresentada á FAU-USP, São Paulo, 2000.BRAKARZ, J. Cidades para todos: a experiência recente com programas de melhora-

mentos de bairros. Washington, D.C.: BID, 2002.CARVALHO, C. et alii. Procedimentos para tomada de decisão em programas de ur-

banização de favelas. ZENHA, R. M; FREITAS, C. G. L. de. SEMINÁRIO DE AVALIAÇÃO DE PROJETOS IPT – HABITAÇÃO E MEIO AMBIENTE: AS-SENTAMENTOS PRECÁRIOS. Anais... São Paulo, 2002.

DENALDI, Rosana. Políticas de Urbanização de favelas: evolução e impasses. Tese de doutorado apresentada à FAU-USP, São Paulo, 2003.

DENALDI, Rosana et alii. “Avaliação e monitoramento dos serviços de infra-estru-tura em favelas urbanizadas em Santo André”. Revista Fundação CIDE, Rio de Janeiro, 2003.

FIX, M. Parceiros da exclusão. São Paulo, Boitempo, 2001.FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA. Centro de Estudos e Pesquisas de Adminis-

tração Municipal. Estudo de normas legais de edificação e urbanismo adequado às áreas de assentamentosubnormais ou de baixa renda. Rio de Janeiro: BNH/DEPEA, 1982.

______. Normas legais de edificações e urbanismo em favelas. São Paulo: FPFL/CE-PAM, 1983.

LABHAB – FAUUSP. Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Fa-culdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Parâmetros Técnicos para a urbanização de favelas. São Paulo, 1998. Relatório da 1a fase.

Page 76: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

76

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

LARANJEIRA, Adriana. Urbanização e legalização de favelas. Tendências e resultados recentes da experiência brasileira. Revista de Administração Municipal, Ano 48, n. 239, IBAM Jan/Fev 2003.

MARICATO, Erminia. Brasil, Cidades alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

MELLO, K.; CAVENDISH, L.; DOURADO, V. Abordagem e método nos processos de urbanização de áreas degradadas. Seminário Internacional Desafios da Cidade Informal. Anais... Belo Horizonte, set. 1995.

RECIFE. Empresa de Urbanização. Cadastro das zonas especiais de interesse social – ZEIS com COMUL instalada. Recife, 1999.

______. Informações Gerais – Áreas ZEIS. Recife, 2001.RECIFE. Prefeitura.; FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO. Analise da produção ha-

bitacional de interesse social e do quadro normativo do Recife e Diagnóstico das condições de moradia da população de baixa renda. Recife, 2001.

SANTO ANDRE, Prefeitura de. Política Habitacional de Santo André. Santo André, PSA, 1997. Relatório.

______. Relatório: Urbanização Integral de Favelas. Santo André, PSA, 1998.

______. Santo André Mais Igual – Programa Integrado de Inclusão Social. Santo André: PSA, 2002b.

RIO DE JANEIRO. Prefeitura da Cidade. Favela Bairro - Integração de favelas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1996.

______. Favela um bairro – propostas metodológicas. São Paulo: Proeditores, 1996.SÃO PAULO. Prefeitura Municipal. SEHAB, Assessoria de Legislação e Normalização

Técnica. Empreendimentos habitacionais de interesse social Decreto n.º 31.601. São Paulo, PMSP, 1992.

SOUZA, S. R. I. Critérios para avaliação de desempenho da via no projeto de reurba-nização de favelas. Dissertação de mestrado. São Paulo: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, 2002.

UEMURA M. M. Programa de saneamento ambiental da bacia do Guarapiranga. Alternativa para proteção dos mananciais? Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica, Campinas, 2002.

Page 77: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

PARTE 2Estratégias de gestãoProf. Dr. SÉRGIO DE AZEVEDO

O desafio da mensuraçãoProfa. Dra. SUZANA PASTERNAK

A questão do “déficit habitacional” nas favelas: os pressupostos metodológicos e suas implicações políticasProf. Dr. SÉRGIO DE AZEVEDOMARIA BERNADETE ARAÚJO

Uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacionalMARIA PAULA FERREIRAEDUARDO C. L. MARQUESEDGARD R. FUSAROELAINE G. MINUCI

Page 78: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 79: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

79

Estratégias de GestãoProf. Dr. SÉRGIO DE AZEVEDOTitular da Universidade Estadual Norte Fluminense e Coordenador do GT Cidade, Metropolização e Governança Urbana – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.

O poder público, longe de ser monolítico, como implicitamente preconizam certas abordagens tradicionais, é constituído por uma diversidade de instituições, com dife-rentes graus de dinamismo, com objetivos setoriais nem sempre convergentes entre si, com estruturas informais de relações, com paradigmas distintos, com disponibilidade de pessoal qualificado e controle sobre recursos críticos extremamente diferenciados. Não raro, as políticas urbanas visam alcançar objetivos que não são harmônicos nem coerentes entre si, e que se transformam com a dinâmica da própria sociedade e com as trajetórias das agências públicas encarregadas de implementá-los. O maior ou menor insucesso (ou o sucesso relativo) de cada uma delas depende das idiossincrasias de cada política particular, das características das agências às quais são atribuídas sua formula-ção e execução, da existência ou não de clientelas organizadas, dos agentes interessados e da correlação de forças entre eles, da concorrência de grupos privados com os serviços prestados pelo Estado, entre outras variáveis.

Além disso, toda política enseja efeitos não esperados que podem, em certos casos, dificultar a concretização dos objetivos almejados. A interface com outras políticas é um dos aspectos a serem considerados. A recorrência, complementaridade, e os “tra-de offs” entre as diversas políticas torna o processo decisório complexo, inexistindo, portanto, uma “lógica geral” capaz de legitimar universalmente qualquer dos cursos alternativos de ação (Santos, 1986).

Este artigo se propõe fornecer subsídios para o debate sobre os desafios Política Na-cional de Urbanização e Regularização de Assentamentos Precários, PNURAP.

Na seção introdutória – destinada ao mapeamento dos principais pressupostos – realizaremos uma breve descrição dos Princípios e Diretrizes Gerais da PNURAP como parte integrante da Política Nacional de Habitação. A segunda seção será des-tinada a explicitar, em grandes linhas, o papel da União, estados e municípios dento da Política Nacional de Urbanização e Regulação de Assentamentos Precários.

Na terceira discutir-se-ão as interfaces da urbanização e regularização fundiária com outras políticas setoriais do governo federal. A quarta seção será dedicada aos Programas de intervenção em assentamentos precários no âmbito da Administra-ção Local. Por fim, discutiremos os desafios da Estratégia de Mobilização – um dos pressupostos centrais da política em pauta – tentando levantar constrangimentos e potencialidades da participação, bem como dos mecanismos de controle da política pública pelos grupos da sociedade organizada.

1. Princípios e diretrizes gerais da PNURAP como parte integrante da Política Nacional de Habitação: os pressupostos da política

No referente à questão da habitação popular, em função da interface da moradia com outras políticas setoriais, nem sempre um simples incremento dos programas habitacionais se apresenta como a solução mais indicada para melhorar as condições

Page 80: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

80

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

de vida da população mais pobre. Em primeiro lugar, porque estes programas podem ser inviabilizados caso outras políticas urbanas. como a de transporte, energia elétrica, esgotamento sanitário e abastecimento de água. não sejam integrados aos mesmos (AZEVEDO, 1990). De outra parte, devido também ao “trade-off ” entre diversas políticas urbanas, em certas ocasiões mudanças em outros setores – como maior investimento em saneamento básico (esgoto e água) e a regularização fundiária, entre outras – podem ter um impacto muito maior nas condições habitacionais das famílias de baixa renda do que um simples reforço dos investimentos no setor em questão.

A questão do habitat reflete o dinamismo e a complexidade de uma determinada realidade socioeconômica. Desta forma, visto sob uma abordagem sociológica, suas necessidades não se reduzem exclusivamente à dimensão material “mas depende da vontade coletiva e se articula às condições culturais e a outros aspectos da necessidade individual e familiar” (BRANDÃO, 1984:103). Assim, as demandas habitacionais não só são diferentes para os diversos setores sociais como variam e se transformam com a própria dinâmica da sociedade (FJP/PNUD, 2001).

Nesse sentido, não é por acaso que nas grandes metrópoles brasileiras os programas de urbanização e regularização fundiária – vinculados a melhorias urbanas – têm sido crescentemente visto como um instrumento de política habitacional extremamente importante na luta de um grande contingente de moradores de favelas e de bairros clandestinos em busca da integração socioeconômica.

Frente a um contexto desse tipo, a Política Nacional de Urbanização e Regulariza-ção de Assentamentos Precários – mesmo que voltada para setores reconhecidamente excluídos da “Cidade Legal” – necessita ser suficientemente flexível, como forma de responder adequadamente a contextos complexos e extremamente diferenciados.

No que diz respeito à interface com as outras dimensões da Política Nacional de Habitação, a PNURAP tem como um dos seus desafios se articular com atividades recorrentes e complementares realizadas dentro do Ministério das Cidades (autocons-trução individual, programas de financiamento de materiais de construção, reformas de unidades já existentes e cooperativas de construção, saneamento, infra-estrutura, entre outros, buscando criar sinergias que não só viabilizem como dinamizem a ur-banização e regularização de áreas precárias).

Outro desafio – em consonância com a Política Nacional de Habitação – seria a necessidade de se dar maior centralidade às políticas capazes de atender os assenta-mentos mais fragilizados, onde vivem as famílias que se encontram na base da pirâ-mide social. Por diferentes motivos (por exemplo, fraco nível de mobilização política, baixo poder de pressão sobre o poder público, menor controle sobre “recursos críti-cos” estratégicos, entre outros) esses grupos têm sido preteridos ou ocupam posições subalternas tanto nos programas públicos habitacionais como nos de urbanização voltados para os setores populares.

A necessidade de utilização de recursos a fundo perdido e de parcerias com outros subníveis de governo e com grupos organizados da sociedade coloca a necessidade da definição do papel e das contrapartidas dos diversos parceiros do governo. Para que políticas desse tipo não resvalem para as tradicionais práticas de clientelismo, torna-se imperativo a adoção de procedimentos universalistas de seleção dos projetos, bem como de criatividade para incentivar diferentes formas possíveis parcerias e de

Page 81: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

estratégias de gestão

81

contrapartida da população beneficiada por esses programas.Uma política nacional de urbanização e regularização fundiária exige uma par-

ticipação ativa do Estado, seja de forma direta – através de linhas de financiamento específicas – seja através do processo de regulação.

No referente ao público-alvo prioritário da política nacional de urbanização e re-gularização de assentamentos precários vale destacar quatro características centrais:

a) Priorizar os investimentos para assentamentos carentes que estejam também sendo ob-jeto de outras políticas sociais de iniciativas federal, estadual e, especialmente, municipal;b) Regionalização da clientela, através de critérios que privilegiem os assentamentos onde vivem, majoritariamente, famílias que efetivamente ocupam a base da estrutura social;c) Seleção dos assentamentos supervisionados por órgão colegiado estadual e/ou mu-nicipal com legitimidade social (participação de representantes governamentais e da sociedade organizada).

Por fim, ainda que a definição do formato institucional de uma política federal seja de responsabilidade da União, para ela ser eficaz e lograr a legitimidade necessária para a sua implementação é fundamental levar em conta a viabilidade de formação de consen-sos entre os diversos atores envolvidos nesse processo, tanto os governos subnacionais, como a população organizada e as organizações públicas não governamentais.

2. O papel da União, dos estados e dos municípios dentro da Política Nacional de Urbanização e Regulação de Assentamentos Precários

Vale ressaltar a importância da variável institucional na análise de políticas públi-cas. Ainda que não seja uma panacéia capaz de garantir bom desempenho operacional, a “engenharia institucional” tanto cria incentivos à ação de determinados atores, como pode potencializar constrangimentos para outros. Trata-se, portanto, de uma variável de grande centralidade na medida que as táticas e estratégicas dos diversos atores são condicionadas pelo formato institucional da política.

Desde as discussões sobre as reformas do SFH, na primeira metade dos anos 1990, as propostas de descentralização estavam sempre amarradas aos possíveis novos for-matos institucionais da política federal. Apesar de suas significativas diferenças, no que diz respeito ao papel dos diferentes níveis de governo, elas apresentavam uma certa similitude. À União caberia definir a macropolítica e arcar com parte substan-cial dos financiamentos; aos estados federados, realizar atividade reguladora dentro de seus respectivos territórios, suplementar uma parte dos recursos, desenvolver os programas tradicionais e eventualmente – quando por fragilidade de setores organi-zados da sociedade ou do poder municipal – implementar diretamente alguns pro-jetos para os setores de baixa renda. Aos governos locais sempre foi destinada uma grande responsabilidade pela implementação da política na “ponta da linha”: seja oferecendo serviços, liberando terrenos e/ou participando de obras de infra-estru-tura, como contrapartida de recursos repassados de outros níveis de governo, seja se responsabilizando diretamente pela execução das obras, seja, ainda, acompanhando ou orientando os setores organizados da sociedade (cooperativas, grupos de mutirão etc.) envolvidos com os diferentes projetos.

Page 82: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

82

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Em relação ao governo federal, seria aconselhável que a Política Nacional de Ur-banização e Regulação de Assentamentos Precários, a política habitacional lato sensu e a de saneamento social permaneçam estreitamente articuladas devido às inúmeras interfaces existentes.

Grosso modo, caberia inicialmente a esse órgão normativo do primeiro escalão pactuar uma proposta dentro do Ministério, envolvendo todos os setores recorrentes e complementares. Em segundo lugar, definir as macrodiretrizes da política somente após discutir sua proposta inicial com os principais atores envolvidos nesse processo, sejam eles representantes de órgãos públicos (agências federais setoriais com grande interface com a questão da habitação popular, representantes de governos estaduais e municipais), sejam eles setores organizados da sociedade (movimentos reivindicativos de âmbito nacional, pastorais de igrejas, ONGs vinculadas ao tema, associações de profissionais etc.).

Os governos estaduais que desejassem aderir a essa política específica se comprome-teriam a aceitar as diretrizes gerais, arcar de forma direta ou indireta com os investimen-tos e/ou contrapartidas definidos na legislação (que pode, entre outros, utilizar como critério um percentual correspondente à aplicação realizada pela União) e designar um dos colegiados estaduais já existentes com afinidades com o tema da urbanização e re-gularização fundiária (por exemplo, Conselho Estadual da Assistência Social, Conselho Estadual da Habitação, Conselho Estadual da Política Urbana etc.), que contasse, além de representantes do governo estadual, com representantes indicados pelo conjunto dos municípios e representantes dos setores organizados da população.

Por outro lado, os municípios devem respeitar, também, as regulamentações re-alizadas pelo Conselho do estado formalmente responsável pela implementação da política no nível estadual. Da mesma forma que o estado, cada governo municipal, levando em conta suas especificidades, escolherá um dos Conselhos já existentes (com representantes do poder público e da sociedade organizada) para realizar o papel de regulação acompanhamento e divulgação dos resultados dessa política, sendo sua contrapartida em termos de financiamento regulamentada em função do seu perfil socioeconômico.

As atividades de coordenação do governo federal deveriam, nesse caso, concentrar-se nas fronteiras e interfaces dos diversos órgãos envolvidos nesse processo. À União caberia também cuidar para que sejam neutralizadas ou reduzidas as externalidades negativas das diferentes políticas públicas, além de assegurar economias de escala, ganhos de integração e melhor aproveitamento de recursos.

No que diz respeito à questão do formato institucional – profundamente imbricado com a implementação e financiamento dessa política – foram levantadas quatro questões de grande centralidade para fins de debate:

- Mesmo tratando-se de verba do OGU ou de outras fontes fortemente subsidiadas, o agente financeiro desse programa federal seria somente a Caixa Econômica Federal ou poderia ser tanto os governos estaduais (por exemplo, através de suas Cohabs ou de Secretarias Especializadas) como as Prefeituras?- Os agentes promotores seriam apenas os governos municipais (através de suas empre-sas, autarquias e secretarias etc.) ou também poder-se-ia abrir essa função tanto para os

Page 83: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

estratégias de gestão

83

governos estaduais (Cohabs, Secretarias etc.) como para as associações ou cooperativas dos moradores das assentamentos precários?- No caso da participação de associações ou de cooperativas de moradores atuarem na qualidade de agentes promotores, isso seria feito de forma associada ou supervisionado por um órgão público dos diferentes níveis de governo (CEF, Chab, Prefeitura)?- A contrapartida de estados e municípios se daria tanto através de verbas orçamentá-rias, quanto pela disponibilização de terrenos e obras de urbanização e infra-estrutura?

Nos convênios estabelecidos pela União diretamente com os governos municipais sugere-se a realização de convênio similar ao realizado com os estados, sendo possível, no entanto, fixar diferentes percentuais e formas de contrapartida levando em conta a situação econômica e financeira específica de cada município.

3. As interfaces com outras políticas setoriais: áreas de infra-estrutura, social e econômica do governo federal

O moderno conceito de governança não se limita ao formato institucional e admi-nistrativo do Estado e à maior ou menor eficácia da máquina estatal na implementação de políticas públicas. Além das questões político-institucionais de tomada de decisões, envolveria, também, o sistema de intermediação de interesses, especialmente no que diz respeito às formas de participação dos grupos organizados da sociedade no pro-cesso de definição, acompanhamento e implementação de políticas públicas (MELO, 1995; COELHO & DINIZ, 1995; DINIZ,1996) .

Neste sentido, como afirma Maria Helena Castro:

a discussão mais recente do conceito de “governance” ultrapassa o marco opera-cional para incorporar questões relativas a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico. Incluem-se aí, não apenas os mecanismos tradicionais de agregação e articulação de interesses (...), como também redes sociais informais (...), hierarquias e associações de diversos tipos. (SANTOS, 1996)

Em suma, segundo os autores citados, a maior ou menor capacidade de governança depende, por um lado, da possibilidade de criação de canais eficientes de mobilização e envolvimento da comunidade na elaboração e implementação de políticas e, por outro, da capacidade operacional da burocracia governamental, seja nas atividades de atuação direta, seja na capacidade efetiva de regulação.

Entretanto, o primeiro desafio na formulação da PNURAP seria lograr pactuar um consenso mínimo envolvendo todos os órgãos e setores do Ministério das Ci-dades que de forma direta ou tangencial podem ser afetados pela nova política. Um segundo momento, que exigirá mais esforço de negociação, refere-se tanto às agências apenas vinculadas ao MC, e que, portanto gozam de maior autonomia (por exemplo, a Caixa Econômica Federal) como órgãos de outros ministérios do governo federal que atuam ou podem vir a atuar nessa área (Ministérios da Integração Regional; da Ciência e Tecnologia; do Planejamento; BNDES, entre outros). A sugestão nesse nível de articulação – onde participam organizações com diferentes desempenhos, distintos

Page 84: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

84

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

paradigmas e pesos institucionais – seria de tentar atuar em rede ou em convênios com objetivos bem recortados.

Por fim, a busca de governança da Política Nacional de Urbanização e Regulariza-ção de Assentamentos Precários, em um país federativo como o nosso, deve levar em conta, também, as relações entre os diferentes níveis de governo (governos estadu-ais, associações de municípios e consórcios), além de articulações institucionais com outros atores relevantes (por exemplo, agências internacionais), com organizações públicas não governamentais (ONGs, associações civis etc.) e representações da so-ciedade organizada de âmbito nacional.

Em relação aos estados federados e municípios, dificilmente ocorrerá uma dinami-zação nas atividades de urbanização e regularização fundiária – já realizadas de forma modesta pelos citados entes federativos – sem o incentivo seletivo de investimentos federais novos ou reorientados para essa rubrica. Ainda que a União possa ajudar estados e municípios em áreas de grande carência, como a formação de quadros especializados, a disponibilização de informações e o aprimoramento institucional, isto não será suficiente para alav ancar vigorosamente investimentos próprios desses atores na urbanização e regularização fundiária. Uma possibilidade alternativa ou complementar a ser estudada seria a União negociar, com agências internacionais especializadas (BIRD, Banco Mundial, entre outros) ou com governos estrangeiros, empréstimos subsidiados para as mencionadas atividades. No que se refere às ONGs vocacionadas para as questões urbanas e às organizações reivindicativas de cunho nacional que atuam nessa área, haveria seguramente disposição de cooperar com o governo federal tanto na formulação de políticas regulatórias como na participação de futuros colegiados voltados para acompanhar a mencionada política.

4. Os programas de intervenção em assentamentos precários no âmbito da administração local

O desafio das administrações das cidades de médio e grande porte de um país como o Brasil, com grandes focos de miséria absoluta, é extremamente dramático. Ao mesmo tempo em que é necessário desenvolver ações indutoras de atividades estratégicas para se evitar perder o “bonde da história” no processo de globalização, também são necessários esforços para melhorar as precárias condições de vida da população de baixa renda.

As possibilidades de responder adequadamente a este duplo desafio dependem, em grande parte, da capacidade dos governos municipais de implementar adminis-trações que combinem legitimidade social com um mínimo de eficácia operacional. Isso porque, constitucionalmente, cabe aos municípios promover as políticas urbanas, responsabilizando-se pela gestão de um amplo arsenal de instrumentos capazes de municiá-los para o exercício dessa função.

É de conhecimento geral que as disparidades econômica, financeira e administra-tiva dos nossos municípios são enormes. Por outro lado, a questão dos assentamentos precários é normalmente mais dramática nas cidades de porte médio e, especialmente, nas periferias das grandes metrópoles.

Inicialmente, seria necessário definir: haverá um recorte para esse programa, seja

Page 85: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

estratégias de gestão

85

explicitamente, em termos do tamanho dos municípios, seja – de forma mais velada – referente à importância desses assentamentos? Uma resposta positiva para qualquer das duas questões levaria a outro desafio: como delimitar esse universo, através de quais indicadores? Quais as justificativas? Seria o mesmo procedimento usado para as diferentes regiões do país?

Outra possibilidade – não isenta de inúmeros efeitos perversos – seria realizar esse recorte pela capacidade de estados e/ou municípios lograrem se enquadrar dentro de parâmetros previamente definidos, seja econômicos (contrapartida financeira exigi-da), seja de ordem institucional (por exemplo, uma estrutura institucional mínima padrão, preconizada pela Política Nacional).

Em relação à questão de implementação de políticas habitacionais e de urbani-zação popular, os principais óbices ao êxito das mesmas – além das dificuldades de coordenação com os outros níveis de governo e municípios vizinhos – foram bastan-te semelhantes aos enfrentados pelas experiências federais e estaduais: carência de mão-de-obra especializada, o baixo índice de redundâncias organizacionais em áreas críticas, a complexidade do aparelho de Estado (onde normalmente convivem agências com diferentes níveis de desempenho e com paradigmas distintos), as resistências dos órgãos setoriais a um planejamento minimamente compreensivo, e a falta de controle de “recursos críticos” (dinheiro, informações, força política, prestígio institucional) por parte das agências repensáveis pelas políticas setoriais.

Um pré-requisito básico para a diagnosticar a importância relativa dos assentamen-tos precários é a existência de informações minimamente confiáveis. Especialmente nessa área os dados censitários têm subestimado a realidade. Nas grandes cidades, onde a prefeitura possui fonte de coleta própria de dados, as discrepância são enormes em relações aos dados da FIBGE. Isto não significa, necessariamente, que a própria Prefeitura deva se encarregar de modo exclusivo destas atividades. Em muitos casos, as informações necessárias podem ser produzidas em articulações ou convênios com outros órgãos e instituições (agências estaduais, universidades etc.).

Outra questão relevante diz respeito à necessidade de um quadro técnico qualifi-cado. Aqui também, constrangimentos de ordem jurídica e de recursos podem, por vezes, ser minimizados através de convênios e contratação de serviços especializados para tarefas pontuais, consideradas estratégicas.

Numa situação, como a que vivemos, de extrema escassez de recursos, devem, con-comitatemente, merecer atenção especial as tarefas de administrar bem a pouca verba disponível e buscar ampliar as fontes de arrecadação e financiamento. No primeiro caso, é fundamental maior cuidado com a chamada administração financeira. Há a possibilida-de de acompanhamento das contas e do desempenho da Prefeitura através de inúmeros índices que podem auxiliar o processo decisório (RIBEIRO, 1993). Quanto à ampliação da arrecadação, além da clássica modernização administrativa (atualização de cadastros, aumento da fiscalização etc.), deve-se cada vez mais levar em conta as possibilidades de acesso a recursos extraordinários – alocados tanto pelos governos estaduais e federal como por instituições internacionais. Para aumentar as probabilidades de captação des-tes recursos nacionais e internacionais é fundamental a criação de uma estrutura ágil e dinâmica voltada para a preparação de projetos, combinando, se possível, funcionários da Prefeitura com especialistas de outras instituições contratados “ad hoc”.

Page 86: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

86

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Para enfrentar as dificuldades das administrações municipais perante as enormes demandas sociais é necessário, ainda, ampliar o conceito de “público” superando a nossa tradição histórica de identificá-lo obrigatoriamente como sinônimo de go-vernamental. Muitas vezes, em nome de supostos “interesses públicos”, mantêm-se estruturas e gestões estatais verticalizadas e autoritárias – não raro, focos de corrupção e malversação de verbas. Ampliar o conceito de “público” significa abrir espaços, incentivar e apoiar iniciativas da sociedade organizada que podem, em certas con-junturas, complementar atividades urbanas tradicionalmente desempenhadas pelo poder público.

Em relação especificamente às atividades de coordenação institucional, há certas tarefas que seguramente demandam maiores cuidados por parte do Governo Muni-cipal. Uma delas diz respeito ao esforço de compatibilizar ações e políticas de órgãos que, embora se encontrem institucionalmente dispersos na estrutura da Prefeitura, possuem atividades complementares e recorrentes. Nestes casos, haverá a necessidade de se criar uma instância institucional de compatibilização das diversas políticas que têm repercussão sobre o urbano, ou, pelo menos, um “fórum” onde os órgãos e agências de vocação urbana e setores organizados da população possam discutir suas diferenças e negociar um mínimo de atuação coordenada. Pode-se, por exemplo, pensar em um Conselho Municipal de Política Urbana como “locus” deste encontro. Esse “casamento” entre política habitacional popular (incluindo a urbanização e re-gularização fundiária) e outras políticas sociais recorrentes e complementares – na perspectiva de um atendimento integral para os setores de mais baixa renda – merece estudos mais detalhados de forma que se aproveite a estrutura de programas já exis-tentes a fim de ampliar a sinergia entre as diversas iniciativas públicas nessa área.

Significa também entender e aceitar que há coordenação informal desenvolvida por grupos de instituições. Sabe-se que, para maximizar objetivos setoriais, algumas agências são obrigadas a implementar ações conjuntas com outras instituições que desenvolvem atividades recorrentes e complementares aos seus objetivos. Trata-se de aceitar e incentivar estas “ilhas de planejamento” – para utilizar a feliz expressão de CINTRA e ANDRADE (1978) – tentando maximizá-las e, quando possível, conectá-las com outras.

Com base nas considerações desenvolvidas ao longo deste trabalho propõe-se, como subsídio para debate, um formato institucional para as Agências Setoriais Locais que contemple os seguintes requisitos:

- Estrutura ágil e leve;- Coordenação permanente entre o setor de urbanização e o de regularização fundiária, priorizando o usucapião coletivo para os grandes aglomerados de vilas e favelas;- Monitoramento e acompanhamento das políticas e projetos considerados estratégicos, funcionando como um banco de dados das políticas governamentais;- Realização de estudos prospectivos e pesquisas avaliativas.

Ainda no nível de diretrizes gerais para lograr maior eficácia e possibilidades reais de apoio para mudança, é fundamental uma estratégia de envolvimento e co-responsabilidade da sociedade. Trata-se de perceber que em sociedades complexas o governo local está longe de possuir sozinho o poder sobre os rumos da cidade.

Page 87: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

estratégias de gestão

87

Cabe-lhe, sem dúvida, um papel de liderança, de aglutinação de aliados para ela-boração de agendas mínimas e a formação de coalizões com legitimidade e força suficientes para a elaboração e implementação de mudanças nas várias áreas de sua competência formal.

A importância do exercício destas funções fica patente quando se verifica que, por exemplo, o arsenal de instrumentos existentes de intervenção sobre o urbano (usuca-pião; solo criado; transferência do direito de construir; imposto territorial progressivo; uso, parcelamento e construção compulsórios; etc.) disponível no Estatuto das Cidades pode se tornar letra morta caso não se logrem alianças políticas que viabilizem sua regulamentação e implementação.

Em sociedades complexas como a brasileira, a participação política não pode se limitar somente aos canais institucionais de representação (direito de votar e ser vo-tado), mas exige também outras formas de democracia direta, especialmente em nível local, como exercício do direito de cidadania. Em suma, parafraseando um conhecido ditado, poderíamos dizer que “hoje a gestão da coisa pública é importante demais para ficar apenas a cargo do governo”.

5. Estratégias de mobilização: participação comunitária e controle social

É comum ocorrem tentativas de “aprisionamento” clientelista de políticas inspira-das em pressupostos democráticos e participativos tanto por atores tradicionais (por exemplo, vereadores, secretários municipais e técnicos da Prefeitura) quanto por parte de alguns dos chamados “novos atores” (movimentos, associações e lideranças comu-nitárias). Para a recalibragem permanente do desenho institucional – como forma de fechar brechas para esses comportamentos predatórios – têm sido importante o apoio e o incentivo institucional à participação cívica, que se contrapõe com vantagem aos sistemas de permuta vertical onde predominam a desconfiança e a desigualdade nas relações, campo favorável ao clientelismo. Para tanto é necessário atentarmos para as peculiaridades das várias formas de associativismo e participação, bem como para as suas interações.

A mobilização de um grupo para lutar por um objetivo comum não é tarefa fácil, como supunha de forma aberta (proletários de todo mundo, uni-vos!) ou implícita na literatura sobre o tema até meados dos anos 1960. Nesse sentido, cabe perguntar o que moveria os indivíduos em direção à participação e, simultaneamente, o que faria com que uma parcela significativa da população permanecesse sempre à mar-gem desse processo. Na literatura sobre ação coletiva, o clássico trabalho de Mancur Olson (OLSON, 1999) procura mostrar que a lógica que organiza os grandes grupos visando à promoção de interesses comuns não decorreria da premissa do comporta-mento racional centrado em interesses pessoais. Isso porque, ao perceber que o seu comportamento individual teria baixa significância para o resultado dos interesses do grande grupo, a tendência da maioria das pessoas seria a de evitar os “custos da participação”, uma vez que essa atitude não poderia ser penalizada pela não-incor-poração dos possíveis bens públicos ou coletivos logrados nesse processo.

Uma das conclusões de Olson é que, para ampliar o nível de participação e garantir maior envolvimento na luta geral, os organizadores desses grupos devem lançar mão

Page 88: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

88

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

dos chamados “incentivos seletivos”, bem como de mecanismos capazes de penalizar os “free riders”. Outra possibilidade de ampliar-se o envolvimento dos indivíduos na ação coletiva, levantado pelo autor no posfácio de sua obra, seria o surgimento de “em-preendedores” capazes de assumir a maior parte dos custos da participação visando recompensas individuais futuras – simbólicas e/ou instrumentais – que poderiam se traduzir em prestígio, apoio eleitoral etc.

Já Robert Putnam – em seu conhecido trabalho sobre as diferenças de participação entre as comunidades do norte e do sul da Itália – busca superar o “dilema olsonia-no” lançando mão do conceito de “capital social” (PUTNAM, 1996). Putnam parte da constatação de que autores como Olson, ao considerarem a transgressão como a atitude mais racional adotada pelos participantes de um grupo social, subestimam as cooperações voluntárias, freqüentes em muitas situações. Reconhece, entretanto, que para dinamização do comportamento cooperativo é fundamental a existência de instituições formais capazes de reduzir os custos da fiscalização dos possíveis infra-tores e de fazer cumprir os acordos estabelecidos entre as partes.

A partir dessas premissas, Putnam busca entender as razões pelas quais certas institui-ções seriam capazes de superar a lógica olsoniana da ação coletiva, enquanto outras não o fazem. A resposta estaria, para o autor, no fato de as primeiras contarem, entre outros atributos, com limites claramente determinados, com a participação dos interessados na definição das regras do jogo, com aplicação de sanções crescentes aos transgressores e com adoção de instrumentos pouco onerosos para o processamento dos conflitos.

A emergência, o curso da ação e os resultados alcançados por essas instituições dependeriam, fundamentalmente, do contexto social. É assim que, a partir dos resul-tados da sua longa pesquisa, Putnam explica a enorme diferença observada entre o sul e o norte da Itália no enfrentamento dos dilemas da ação coletiva tomando como fundamento o conceito de “capital social”.

No sul, mais pobre, onde o estoque de capital social disponível é escasso, obser-var-se-ia o que ele chama de “vida coletiva atrofiada”, pela incapacidade de haver cooperação em proveito mútuo. Longe de significar ignorância ou irracionalidade, a não-cooperação seria produzida pela ausência de confiança mútua, a partir da qual a maioria dos atores seria levada a assumir uma atitude oportunista. Em outras palavras, por falta de confiança nos seus pares, os indivíduos adotam quase sempre uma opção “subótima” decorrente do cálculo de não-cooperação do parceiro, ou seja, optam pela postura “dos males o menor”. Já no norte da Itália, a disponibilidade de capital social seria capaz de garantir o dinamismo econômico e um melhor desem-penho governamental.

Putnam define o capital social como um bem público, representado por atributos da estrutura social tais como a confiança e a disponibilidade de normas e sistemas que servem como garantia entre os atores, facilitando ações cooperativas.

O autor conclui que tanto a confiança/reciprocidade, quanto a dependência/explo-ração seriam capazes de produzir equilíbrios estáveis em uma sociedade, garantindo a sua unidade. Seriam observadas, entretanto, acentuadas diferenças na eficiência e nos resultados do seu desempenho institucional. Os dilemas da ação coletiva seriam enfrentados com maiores chances de sucesso através dos sistemas horizontais de par-ticipação cívica, favorecendo o bom desempenho governamental.

Page 89: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

estratégias de gestão

89

Mesmo reconhecendo as dificuldades de transpor o conceito de “capital social” para a realidade brasileira, sem as devidas reduções sociológicas mencionadas por Guerreiro Ramos, acreditam que experiências de participação cívica podem contribuir para explicar as razões do melhor desempenho de programas públicos.

Do ponto de vista dos objetivos deste texto, a questão crítica a ser considerada no âmbito desta tradição temática é a distinção entre o tipo específico de ação coletiva que caracteriza os movimentos sociais e os outros tipos de ação organizada, espe-cialmente aqueles que se pautam pela natureza instrumental-reivindicativa de seu sistema de solidariedade.

O termo movimento social refere-se, na literatura sociológica contemporânea, àquelas manifestações de organização coletiva que buscam assegurar ou transformar valores bá-sicos que regulam a ordem institucional de uma sociedade, como, por exemplo, “direitos de cidadania”, “ecologia”, “critérios fundamentais de distribuição de bens na sociedade”, enfim, todo e qualquer movimento coletivo orientado primariamente para fins de natu-reza normativa ou ideológica (AZEVEDO & PRATES, 1995).

Esta definição não implica que movimentos sociais não possam se envolver em atividades coletivas voltadas para ganhos instrumentais ou reivindicações negociáveis no seu ambiente. Mas, nesses casos, essas ações são percebidas como um meio e/ou estratégia para se alcançar, no futuro, mudanças mais amplas.

A maioria das associações existentes na atualidade – como associações de bairros e de favelas – não se enquadraria na definição acima. Podendo ser definidas como movi-mentos de caráter reivindicativo, teriam como principal objetivo o desenvolvimento de ações junto ao Estado, visando melhorias sociais. Em suma, trata-se de organizações típicas de articulação de interesses orientadas para a produção de “bens coletivos de natureza negociável” tais como a urbanização de vilas e favelas, construção de creches, de escolas, de postos de saúde, de rede de saneamento básico etc. Ou seja, não há questões de “princípio” ou de valores em jogo como no caso dos movimentos sociais (BOSCHI, 1987; AZEVEDO & PRATES, 1995).

Em outras palavras, organizações reivindicativas caracterizam-se pela definição de objetivos limitados e negociáveis no ambiente. Essas organizações buscam o monopó-lio da representação, o que qualifica seus resultados como bens coletivos. Nesse caso, o dilema olsoniano é de difícil solução. Não é por acaso que a taxa de envolvimento dos membros dessas organizações no processo decisório, mesmo que este seja com-pletamente aberto à participação voluntária, tende a ser muito pequena.

Ainda que, em casos específicos, essas organizações possam participar de alianças e concertações voltadas para a gestação de políticas regulatórias tradicionais, o foco privi-legiado por esses grupos tem sido predominantemente a arena de políticas distributivas capazes de responder diretamente as suas reivindicações pontuais.1

Apesar disso, vale ressaltar que mesmo os autores partidários de análises baseadas no pressuposto da escolha racional e da busca de ganhos instrumentais por parte

1 As organizações reivindicativas setoriais (associações de bairro, grupos de “sem casa”, movimentos pelo transporte etc.) geralmente priorizam políticas distributivas espacialmente definidas. Entretanto, quando con-gregadas em federações, confederações e fóruns de nível municipal, regional ou estadual, até por necessidade de uma visão mais compreensiva da realidade, são também atraídas pela defesa de políticas de corte regulatório (AZEVEDO, 1994).

Page 90: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

90

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

dessas organizações populares, concordam que a atuação dos movimentos reivindi-cativos traz importantes ganhos cumulativos na esfera da cidadania. Todavia, esses ganhos deveriam ser vistos como “efeitos positivos não esperados” da ação dessas organizações e não como objetivos deliberadamente buscados.

Ressalte-se que sob o rótulo genérico de “políticas ou programas participativos” englobam-se duas diferentes propostas que significam, na verdade, tipos de envol-vimento comunitário bastante distintos, tanto em termos de amplitude quanto de poder decisório e motivação à participação. Essas propostas têm implicações total-mente distintas para o formato ou arranjo do padrão institucional do relacionamento Estado-sociedade.

O primeiro tipo de proposta, que denominamos de “participação restrita ou instru-mental”, caracteriza-se pelo envolvimento da comunidade diretamente beneficiada em um projeto específico ou em um programa de âmbito local, através de fornecimento de mão-de-obra (voluntária ou sub-remunerada) e em definições de microprioridades e alocações de certos recursos e equipamentos de consumo coletivo, diretamente con-cernentes àquela iniciativa governamental específica. Este é o âmbito de participação a que grande parte da literatura sobre o tema se refere ao tratar o problema das relações entre “populações periféricas e Estado”.

O segundo tipo, denominamos de “participação ampliada” ou “neocorporativa”. Esse segundo modelo refere-se à capacidade dos grupos de interesse de influenciar, direta ou indiretamente, as macroprioridades, diretrizes e a formulação, reestrutura-ção ou implementação de programas e políticas públicas.

No caso brasileiro, até o momento a maioria das experiências colocadas sob a rubrica de “políticas participativas” refere-se ao que denominamos de “participação restrita ou instrumental”. Da parte do governo, este tipo de iniciativa busca alcançar diferentes objetivos: dividir responsabilidades com as comunidades carentes na apli-cação de verbas escassas; ampliar os recursos disponíveis, através da substituição de parte do capital por mão-de-obra gratuita ou sub-remunerada; aumentar a eficácia na alocação de recursos; elevar o nível de legitimação do governo e/ou das burocracias públicas, entre outros (AZEVEDO & PRATES, 1991).

Por parte das organizações associativas de baixa renda, a participação neste tipo de planejamento – normalmente vinculado a programas alternativos – é motivada por interesses bastante pragmáticos, ou seja, é vista como forma de conseguir do Poder Público recursos adicionais àqueles eventualmente obtidos através dos pro-gramas tradicionais.

Outra modalidade de envolvimento comunitário – muito diferente da “participação restrita”, é a que denominamos de “participação ampliada ou neocorporativa”. Este tipo de participação ocorre normalmente através da inclusão de organizações associativas em órgãos colegiados do tipo “Conselhos” ou “Comitês”. Trata-se de substituir o corpo-rativismo hoje existente, informal, não institucionalizado e que termina por beneficiar os grupos com maior poder econômico ou político, por uma arena institucional onde todos os setores interessados em uma determinada política pública possam discutir os seus rumos em um fórum com regras claras e transparentes. Seguramente, as diretrizes emanadas de um grupo eclético e policlassista como este tenderão a possuir um caráter mais público e, portanto, menos “corporativista”, já que cada grupo para garantir suas

Page 91: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

estratégias de gestão

91

prioridades será levado a negociar, abrindo mão do não essencial, ou seja procurará “entregar os anéis para não perder os dedos” (AZEVEDO,1994).

As experiências brasileiras de planejamento participativo ampliado em nível local têm se institucionalizado mais por exigência das outras instâncias governamentais (estados e especialmente a União) do que por iniciativas endógenas, ocasionado um comportamento formalista e o que poderíamos denominar de “prefeiturização” de muitos conselhos. Isto por dois motivos: primeiro, porque os atores políticos tradicio-nais – diferentemente de quando se trata do planejamento instrumental – têm resis-tência a incorporar de fato este tipo de participação; segundo, pelo pouco interesse de grande parte das associações reivindicativas por este tipo de participação ampliada.

Apesar desses constrangimentos, sem nenhuma dúvida, a participação ampliada pode vir a ser um mecanismo importante de democratização do Estado e de incor-poração paulatina dos setores populares melhor organizados na gestão da política urbana nos diferentes níveis de governo.

No caso da Política Nacional de Urbanização e Regularização de Assentamentos Precários, as propostas de Conselhos ou outras formas de organizações híbridas (en-volvendo representantes do governo e da sociedade organizada) em nível nacional, estadual e mesmo municipal se enquadraria como participação ampliada e como tal dever-se-ia sugerir que para esses colegiados fossem indicados preferencialmente mo-vimentos sociais e organizações reivindicativas de nível amplo, ou seja, congregadas em federações, confederações e fóruns de nível municipal, estadual ou nacional, que, pela necessidade de uma visão mais compreensiva da realidade, se interessam por políticas regulatórias. Por outro lado, a participação comunitária no projeto – mesmo considerando a possibilidade louvável de influenciar em todas as etapas do processo – pode ser classificada como “restrita” e seria muito bem representada por organiza-ções reivindicativas locais.

Bibliografia

AZEVEDO, S. de & PRATES, Antonio Augusto P. “Planejamento Participativo, Mo-vimentos Sociais e Ação Coletiva”. Ciências Sociais Hoje, São Paulo: Vertice/AN-POCS, 1991.

AZEVEDO, Sergio de. “Planejamento, Cidades e Democracia”. In DINIZ, Eli, LOPES, José S. L. & PRADI, Reginaldo (orgs.). O Brasil no Rastro da Crise. São Paulo: ANPOCS/IPEA/HUCITEC, 1994.

AZEVEDO, Sergio de & PRATES, Antônio Augusto. “Movimientos Sociales, Acción Colectiva y Planificación Participativa”. Revista Latinoamérica de Estudios Urbanos Regionales, vol. XXI, n. 64: 103-120, Santiago, dezembro de 1995.

AZEVEDO, Sergio de. “Por que é difícil a mobilização em defesa da Reforma Urbana?”. Revista da ANSUR, São Paulo, janeiro de 1995.

BOSCHI, Renato Raul. A Arte da Associação. São Paulo, Vértice/IUPERJ, 1987.BRANDÃO, Arnaldo Barbosa. “Problemas de teoria e metodologia na questão da

habitação”. Revista Projeto, Ensaio & Pesquisa, nº 66, agosto de 1984.CINTRA, Antonio Octavio & ANDRADE, Luiz Aureliano G. “Planejamento: Re-

flexões sobre uma Experiência Estadual”. In : CINTRA, Antonio Octavio & HA-

Page 92: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

92

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

DDAD, Paulo Roberto (orgs.). Dilemas do Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

COELHO, Magda & DINIZ, Eli. Governabilidade, Governança Local e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1995.

DANIEL Celso. “Gestão local e participação da sociedade”. Revista Pólis, São Paulo, 14: 21-41, 1994.

DINIZ, Eli. “Governabilidade, governance e reforma do Estado: considerações sobre o novo paradigma”. RSP, Revista do Serviço Público. Ano 47, v. 120, n. 2, Brasília, Mai-Ago 1996.

DOIMO, Ana Maria. “Movimentos Sociais e Conselhos Populares: desafios da ins-titucionalidade democrática”. Trabalho apresentado no XIV Encontro Anual da ANPOCS, 1990.

FJP, Fundação João Pinheiro. “O Déficit Habitacional do Brasil 2000”. Fundação João Pinheiro, Centro de Estatísticas e Informações, PNUD/Habitar Brasil-BID, Belo Horizonte, 2001.

HUNTINGTON, Samuel P. “Pretorianismo e Decadência Política”. In CARDOSO, Fernando Henrique & MARTINS, Carlos Estevam (orgs.). Política e Sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.

Jacobi, Pedro. “Descentralização Municipal e Participação dos Cidadãos: apontamen-tos para o debate”. Lua Nova, nº 20: 121-143, São Paulo, maio/1990

MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo : ilegalidade, desigual-dade e violência. São Paulo, Hucitec, 1996.

MELO, Marcus André. “Ingovernabilidade: Desagregando o Argumento”. In VALLA-DARES, Lícia do Prado (org.). Governabilidade e Pobreza. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 1995.

RIBEIRO, Carlos Alberto Corrêa. “Crise Fiscal em Município: uma discussão teórica acerca de suas causas e indicadores”. V Encontro Nacional da ANPUR, Subtema 2 -”Estado, Planejamento e Sociedade Civil: Gestão Urbana e Regional”. Belo Hori-zonte, 24-27 de agosto de 1993.

SANTOS, Maria Helena de Castro. “Governabilidade e Governança: criação de ca-pacidade governativa e o processo decisório no Brasil pós-constituinte”. In XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, outubro de 1996.

SOMARRIBA, M. M. G., AFONSO, M. R., VALADARES, M. G. Lutas Urbanas em Belo Horizonte. Petrópolis: Vozes, 1984.

O’DONNEL, Guilhermo. “Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas con-ceituais”. Novos Estudos, n. 36, pp. 123-146 São Paulo: Cebrap, julho de 1993.

OLSON, Mancur. A Lógica da Ação Coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: Edusp, 1999.

PUTNAM, Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1996.

Page 93: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

93

O Desafio da MensuraçãoProfa. Dra. SUZANA PASTERNAKFAU/USP

1. Aspectos conceituais e metodológicos: o déficit como um dos componentes das necessidades habitacionais

Até meados da década de 1990, as estimativas do déficit habitacional brasileiro variavam de 5,6 a 15,4 milhões de unidades. Em 1995, a FJP elaborou para a SEPURB, o estudo Déficit Habitacional no Brasil, procurando discutir o conceito de déficit, as dimensões envolvidas e suas forma de mensuração.

Assim, define como déficit habitacional o número decorrente da necessidade de construção de novas moradias, seja em função da reposição do estoque de domicílios existentes, seja em função da necessidade decorrente do crescimento populacional e do tamanho do household.

Introduz o conceito de moradias inadequadas, que reflete problemas na qualidade de vida dos moradores não relacionados ao dimensionamento do estoque, e sim a especificidades internas deste estoque. A moradia inadequada não significa a cons-trução de uma nova, mas melhoria da existente.

Assim, o conceito mais amplo de necessidades habitacionais abarca três segmentos:

- Déficit habitacional – deficiência no estoque de moradias por não disporem de condi-ções de habitabilidade, por precariedade construtiva ou desgaste de sua estrutura física, ou ainda por apresentarem coabitação familiar. Na revisão da metodologia feita para o ano 2000, com dados do PNAD 1999, foi agregado ao cálculo de déficit o ônus excessivo com aluguel (para famílias que têm renda de até 3 salários mínimos e gastam com o aluguel mais de 30% de sua renda). A justificativa para esta inclusão é que para famílias com este perfil seria necessário construir unidades adequadas, de acordo com sua renda familiar. Agregou-se também o número de cômodos alugados e/ou cedidos, por se con-siderar esta situação típica de convivência familiar disfarçada. Estimou-se o número de moradias cuja precariedade justificaria sua demolição (cerca de 117 mil unidades).

- Inadequação de moradias – reflete problemas de qualidade de vida dos seus morado-res, não relacionados ao dimensionamento do estoque, mas sim às suas especificidades: carência de infra-estrutura, forte adensamento. Para 2000, agregou-se no cálculo de ina-

* O número no texto da FJP é 6.656.526. Devo ter perdido alguma cifra. Em 1991 o déficit foi calculado em 5,5 milhões de unidades

Page 94: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

94

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

dequação dos domicílios a inadequação fundiária urbana, a inadequação em função do envelhecimento e a inexistência de unidade sanitária domiciliar interna. Os domicílios podem ser identificados como inadequados pelos critérios:

- Densidade excessiva de moradores;- Inadequação fundiária urbana;- Necessidade de cuidados especiais pela idade da edificação;- Carência de serviços de infra-estrutura básica; e- Inexistência de unidade sanitária interna.

- Demanda demográfica - não é considerada como déficit, mas dimensiona as mora-dias que devem ser acrescentadas ao estoque para acomodar condignamente o cres-cimento populacional em certo período. Vai depender da taxa de crescimento da população e da média de moradores por domicílio que reflete tamanho da família e arranjos familiares.

2. Pressupostos metodológicos

O estudo da FJP tem o indiscutível mérito de deixar claro todos os pressupostos. Conceitualmente, separa a necessidade de novas construções da necessidade de me-lhorias que não implicam uma nova unidade inteira. Como fonte de dados, utiliza a única informação acessível e uniforme para todo o Brasil: dados do IBGE.

Alguns pressupostos metodológicos da FJP em 1991 eram polêmicos. Em uma sociedade profundamente hierarquizada como a nossa, a FJP achou que não se devem padronizar as necessidades de moradia de forma uniforme para todos os estratos de renda. Admitiu necessidades distintas por estratos diferentes, tanto na parcela do déficit, como na parcela referente à inadequação.

Assim, para o déficit relativo à parcela de ônus excessivo com aluguel, só o mensura nas famílias urbanas mais pobres, até 3 salários mínimos. Com isso, se admite que famílias acima desta faixa arquem com grandes aluguéis.

De outro lado, computa todas as famílias conviventes, admitindo implicitamente que para cada família deve existir uma casa e a convivência seria sempre involuntária e causada por determinantes socioeconômicos. Embora o próprio texto afirme que 77,8% dos casos de convivência se dêem em famílias com até 3 salários mínimos, vão existir 12% das famílias onde isso não sucede, e portanto se descarta, em princípio, a determinação socioeconômica. Este número não é tão desprezível: seriam 421.534 unidades que poderiam ser retiradas do cálculo do déficit.

A afirmação de critérios distintos por renda domiciliar é passível de discussão; no fundo, aceitar isso pode estar legitimando a profunda diferenciação da sociedade brasileira, sobretudo quando se percebe que a adoção de critérios distintos se dá no item referente a serviços públicos, que, justamente por serem públicos, deveriam ser universais. De outro lado, não se pode deixar de admitir uma dose de realidade nesta adoção diferencial de critérios. Assim, segundo a FJP, foram considerados inadequa-dos os domicílios que não contavam com um ou mais dos seguintes indicadores de infra-estrutura em 1991.

Page 95: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

95

1. Domicílios com renda de até 2 salários mínimos:- Rede de água, ponto de água, poço ou nascente, mesmo sem canalização interna ou outra forma com canalização interna;- Rede de esgoto, fossa séptica ou rudimentar;- Domicílios com água de poço e fossa rústica foram considerados inadequados;- Coleta de lixo nas regiões metropolitanas e lixo coletado, queimado ou enterrado em outras áreas urbanas.

2. Domicílios com renda entre 2 e 5 salários mínimos:

- Rede de água com ponto de água dentro do lote ou poço ou nascente com canali-zação interna;- Rede de esgoto ou fossa séptica;- Coleta de lixo nas regiões metropolitanas e lixo coletado, queimado ou enterrado nas áreas urbanas.

3. Domicílios com renda acima de 5 salários mínimos:

- Rede de água e canalização interna;- Rede de esgoto ou fossa séptica;- Coleta de lixo, tanto nas áreas metropolitanas como em outras áreas urbanas.

Dessa forma, percebe-se que para domicílios de baixa renda serve a existên-cia de água, independentemente de sua origem e da presença de canalização interna; já para os do segmento do meio, faz-se necessária a canalização interna, e para os de renda mais alta, as duas condições devem ser obedecidas: tanto rede pública como canalização interna. Em relação ao esgotamento sanitário, a fossa rudimentar seria adequada para a renda baixa (desde que a água não seja de poço), enquanto para as camadas de renda mais alta faz-se necessária rede pública ou fossa séptica. A coleta de lixo traduz-se em adequação para todas as camadas, mas para os estratos mais pobres admite-se qualquer tipo de destinação final distinta de jogar o lixo em rios, mar ou terrenos vazios. Assim, o trabalho considerava queimar como destinação final do lixo adequada, mesmo em zo-nas urbanas onde isso poderia acarretar problemas sérios de poluição do ar. A energia elétrica é serviço essencial para a definição de adequação em qualquer segmento de renda.

O documento de 2000, diferentemente da metodologia desenvolvida anterior-mente, considera inadequação dos serviços apenas sua ausência, independentemente das faixas de renda por domicílio. Assim, seria considerado inadequada em infra-estrutura a moradia que não tivesse um ou mais dos seguintes serviços:

- Energia elétrica;- Rede geral de abastecimento de água com canalização interna;- Rede coletora de esgoto ou pluvial ou fossas sépticas ligadas ou não à rede coletora;- Lixo coletado direta ou indiretamente.

São também considerados inadequados os domicílios com problemas internos:

Page 96: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

96

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

- Sem instalação sanitária interna e de uso exclusivo da família;- Com densidade excessiva de moradores (mensurada pelo indicador mais de três pes-soas por dormitório);- Com inadequação fundiária urbana;- Com necessidade de cuidados especiais em função da idade da edificação.

3. Discussão sobre os “cutting points” utilizados

(A) Em relação ao déficit – a perda da informação sobre o domicílio rústico no Censo 2000 conduz a um problema de aproximação em nível municipal, dado que em nível estadual e metropolitano isso pode ser contornado pelas PNADs. O percen-tual está longe de ser desprezível, são 1,45 milhões de unidades, num total de 45,5 milhões, ou seja, cerca de 3,19% do total de domicílios e 21,81% do déficit estimado para o ano 2000.

(B) O indicador de congestionamento – 3 ou mais pessoas por dormitório – não é o utilizado pela OMS. A tendência mundial tem sido a utilização de mais de 2 pessoas por dormitório.

(C) Em relação ao sanitário interno, de uso exclusivo – o Censo Demográfico de 2000 não permite uma adequada resposta a este item. A pergunta 2.09 do Censo está redigida da seguinte forma: “neste domicílio, terreno ou propriedade existe sanitário utilizado pelos moradores”, o que não deixa claro se o sanitário é uso exclusivo e não se refere a sanitário interno. Assim, em nível municipal, é impossível lidar com essa inadequação.

(D) Em relação à inadequação fundiária – esta é uma informação que interessa diretamente ao DUAP. A questão 2.06 do Censo Demográfico pergunta se o terreno onde se localiza o domicílio é próprio, cedido ou outra condição. A resposta dada a esta pergunta, apenas em relação aos domicílios próprios, pode confundir a estimativa de assentamentos precários.

Fonte: FJP, 2001.

Assim, para o país como um todo, tem-se 4,66% das unidades domiciliares com situação fundiária irregular. Se esta informação fosse utilizada sem maior crítica como equivalente aos domicílios favelados, teríamos um crescimento alto da proporção favelada na década de 1990. A proporção de domicílios em favela em 1980 era, pelo IBGE, 1,89% das unidades no Brasil e em 1991, 3,28% das moradias.

No município de São Paulo, esta equivalência não existe: em 1991, o número de domicílios com apenas a construção própria alcançava 176.774, o que representava 7,27% do total. Para o mesmo ano, pela mesma fonte, o total de casas em aglomerados subnormais foi de 146.891. Existiam assim, de forma paradoxal, unidades domicilia-

Page 97: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

97

res (29.883) em que só a construção seria própria – definição de favela – e que não estavam na favelas.

O Censo de 1991 e a Contagem de 1996 apresentam a variável localização (variável 0202), com as categorias casa ou apartamento isolado ou em condomínio, em conjunto popular e em aglomerado subnormal. Outra variável permite também identificar a favela, a variável setor (variável 1061). Em princípio, deveria existir coincidência total entre as duas apurações. Na contagem de 1996 a diferença entre as apurações por estas duas entradas foi mínima: apenas 491 domicílios, sendo que a variável 1061, setor, fornecia 177.141 domicílios em favela e a variável 0202, localização, 176.650 casas em aglomerado subnormal. As diferenças se davam em apenas três distritos – Bom Retiro, Cachoeirinha e Jaçanã. No Censo de 2000, a variável “situação do setor”, onde estava a categoria aglomerado subnormal, não mais engloba esta categoria. A definição de favela restringe-se ao setor (variável 1.06). A variável 2.06 – localização – aponta apenas se o terreno é próprio, cedido ou tem outra condição. Pode ser recuperada a variável “tipo do setor”, variável V1007, onde existe a categoria setor subnormal.

Pela Contagem do Meio da Década (1996), a população favelada do município de São Paulo atingiu 747.322 pessoas, e pelo Censo de 2000, 910.628 dos paulistanos são favelados, ou seja, 8,73% da população municipal.

Os dados de inadequação fundiária para a RMSP em 2000 fornecem um total de 331.967 unidades nesta situação, o que representa 6,71% do estoque domiciliar de domicílios próprios. Para o município de São Paulo, a tabulação da variável V0206, referente à condição do terreno, forneceu o dado de 205.297 domicílios próprios em terrenos não próprios (sendo 114.519 em terrenos “em outra condição” e 90.778 em terrenos cedidos), representando 9,78% do número de domicílios próprios.

Percebem-se diferenças consideráveis entre as cifras censitárias. Chama a atenção também a distribuição por renda desta inadequação fundiária na RMSP: 33,5% dos domicílios inadequados estão na faixa de renda com mais de 5 salários mínimos. Este dado traz uma reflexão sobre a oportunidade de uso da informação para a mensuração dos assentamentos precários.

Pelas informações do IBGE, o Brasil terminou o século XX com 3.905 favelas espalhadas pelo país. Um aumento de 717 (ou 22,5%) desde o Censo de 1991 e de 557 (16,6%) desde a contagem de 1996 (3.348 favelas). Os domicílios favelados (nos assentamentos subnormais) no Brasil seriam de 1.650.548. As taxas de crescimento dos domicílios favelados superam, e muito, as taxas totais de crescimento domiciliar: entre 1980 e 1991, o crescimento de domicílios favelados foi de 7,65% anuais, e entre 1991 e 2000, de 4,18% ao ano.

Favelas (aglomerados subnormais) segundo as grandes regiões, 1991 e 2000

Page 98: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

98

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Percebe-se que entre 1980 e 1991 houve uma redução de quase 6% no indicador pessoas por domicílio nas favelas brasileiras: em 1980, este indicador era 4,68, e se reduziu para 4,41 no ano 1991. Esta redução explica inclusive a taxa de crescimento da população favelada ser um pouco menor que a dos domicílios favelados no período, respectivamente 7,59% ao ano e 7,65% ao ano.

Creio que vale a pena recuperar a variável V1007, tipo de setor, onde aparece o setor especial de aglomerado subnormal, e cotejar os seus valores com os da variável V0206, condição do terreno, para o Censo de 2000. No município de São Paulo, a tabulação da variável 1007 permitiu o conhecimento dos aglomerados subnormais por distrito.

Fica ainda a dúvida sobre qual variável utilizar: a tipo de setor (V1007), que for-nece os chamados assentamentos subnormais, com os problemas da definição IBGE, ou a variável V0206, condição do terreno onde está o domicílio (próprio, cedido ou outra condição).

(E) Inadequação em função da depreciação – trata-se de inadequação introduzida pelo estudo da FJP de 2000, e relaciona-se ao estado de conservação das unidades construídas há mais de 50 anos. Parte destas moradias foi definida como déficit habita-cional. Parte, entretanto, é classificada como inadequada, dado que não há necessidade de serem repostas, mas necessitam recursos para sua conservação. A forma de cálculo desta inadequação é a de ver o número de domicílios com mais de 50 anos em 2000 e colocá-los como inadequados, excluindo os que necessitam ser repostos. Somam 87,7% dos domicílios com mais de 50 anos.

- O comentário que pode ser feito é que tanto o percentual utilizado para o déficit, quanto o calculado para reposição são bastante arbitrários, e baseados numa esti-mativa bastante arbitrária: estimou-se em 20% a parcela dos domicílios urbanos recenseados em 1950 e ainda em uso residencial em 2000, e desses, 10% que deve-

Page 99: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

99

riam ser repostos. Os demais necessitariam de cuidados especiais de recuperação, e fariam parte da inadequação.

(F) Na inadequação por falta de canalização interna, pode-se pensar em detalhar dois tipos de situação passíveis de verificação pelo Censo que remetem a políticas distintas. A questão 208 detalha se a água é canalizada em pelo menos um cômodo (canalização interna), canalizada só na propriedade ou no terreno ou não canalizada. Os critérios de inadequação referem-se à necessidade de se ter água de rede com ca-nalização interna. Entretanto, a existência de água de rede, canalizada na propriedade, é um tipo de inadequação muito mais fácil de se remediar que a ausência de rede. A não-presença de rede pública implica um tipo de investimento, enquanto a falta de rede hidráulica na casa implica investimento bem menor.

4. Assentamentos precários e irregulares

Cumpre aqui colocar se a palavra assentamento precário está sendo utilizada como núcleo favelado. Este seria um núcleo com problemas associados à propriedade da terra. Existem outros tipos de irregularidade, quanto à legislação edilícia, quanto ao uso do solo, quanto ao parcelamento do solo. Os dois primeiros tipos estão presentes em toda a trama urbana, inclusive em áreas habitadas por alta renda. Vão existir quan-do, por exemplo, uma edificação não respeita o Código de Obras vigente ou quando alguma loja se aloca em área não permitida. Estas irregularidades não impedem o registro da propriedade fundiária, embora gerem conflitos quanto ao alvará ou quanto à regularização do habite-se e, portanto, da escritura definitiva da edificação.

Já a irregularidade quanto ao parcelamento do solo mostra o descumprimento da legislação neste aspecto. Ou seja, significa que o promotor do parcelamento não o aprovou junto aos órgãos públicos responsáveis. Se o loteamento for anterior à Lei Lehman – 6766/79, os moradores podem até ter conseguido o registro de sua propriedade junto ao Registro de Imóveis, mas se for posterior, isso não foi possível, dado que a partir de então a legislação federal passou a considerar como pré-requisito do registro a aprovação prévia do parcelamento. Assim, em loteamentos irregulares, clandestinos ou não, os moradores não têm título de propriedade, mas têm como provar que pagaram por ela. Assim, frente ao judiciário, são legítimos proprietários da terra.

No caso da ocupação de terrenos, isso não pode ser feito. Além da irregularidade edilícia (em geral as casas são construídas fora dos Códigos de Obras), de irregularida-des quanto ao parcelamento do solo (que também em geral não obedece a parâmetros da lei), vai haver problemas associados à propriedades da terra.

As cidades brasileiras caracterizam-se pela presença permanente de assentamentos precários e irregulares. Entre as alternativas de moradia para as populações pobres brasileira, poucas são construídas dentro da legalidade elidilícia e fundiária.

O Perfil Municipal de 2001 indicou que 9,1% dos municípios brasileiros apresen-tam cortiços, 32,1% favelas, 24,4% tem problemas com loteamentos clandestinos e 36,8% com loteamentos irregulares. Para a região Sudeste, quase 12% das cidades apre-sentam cortiços, 30% têm loteamentos clandestinos e 45%, loteamentos irregulares. Percebe-se que as outras precariedades, além das favelas, estão longe de ser triviais.

Page 100: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

100

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

5. Censos de favela: conceitos, variáveis e problemas

5.1. Problemas relativos ao conceitoComo afirmam LEEDS & LEEDS (1978: 152), o “único critério uniforme que

distingue as áreas invadidas dos outros tipos de moradia na cidade é o fato de cons-tituírem uma ocupação ‘ilegal’ da terra, já que sua ocupação não se baseia nem na propriedade da terra nem no seu aluguel aos proprietários legais”.

Todos os outros critérios freqüentemente utilizados para distinguir as favelas dos outros tipos de moradia se aplicam apenas parcialmente. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, geralmente as invasões se dão gradualmente, sem traçado planejado. As in-vasões coletivas de terras existem, mas são a minoria. Em São Paulo, as invasões co-letivas datam de 1982, sendo raras até hoje. Lima, no Peru, entretanto, é notável pelo número de “barrriadas” oriundas de movimentos coletivos de ocupação de terras e com traçado físico regular. Em relação ao material de construção predominante, as moradias das favelas da cidade de São Paulo, antes barracos de madeira e zinco, hoje são predominantemente de alvenaria: 51% em 1987, 75% delas em 1993. Grande parte das favelas paulistanas apresenta alguns melhoramentos públicos, como luz (82,2% das moradias), água potável (71% das moradias), coleta de lixo e mesmo esgoto (PASTER-NAK TASCHNER, 2001).

Em 1950 o IBGE decidiu pela primeira vez incluir a favela na contagem de po-pulação (GUIMARÃES, 1953, apud PRETECEILLE e VALLADARES, 2000). Nas publicações para São Paulo, entretanto, apenas em 1980 dados específicos apareceram. Segundo Guimarães, “a conceituação oficial considerou como favelas os aglomerados que possuíssem, total ou parcialmente, as seguintes características:

- Proporções mínimas – agrupamentos prediais ou residenciais formados com número geralmente superior a 50;- Tipo de habitação – predominância de casebres ou barracões de aspecto rústico, cons-truídos principalmente com folha-de-flandres, chapas zincadas ou materiais similares;- Condição jurídica da ocupação – construções sem licenciamento e sem fiscalização, em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida;- Melhoramentos públicos – ausência, no todo ou em parte, de rede sanitária, luz, tele-fone e água encanada;- Urbanização – área não urbanizada, com falta de arruamento, numeração ou empla-camento”.

Entre os critérios utilizados, quatro referem-se aos aspectos físicos: tipo de habita-ção, tamanho do assentamento, melhoramentos públicos e urbanização. Um aspecto – o critério em comum com as definições de outros trabalhos paulistanos – refere-se ao estatuto jurídico: ocupação ilegal da terra. O IBGE, desde então, continua basica-mente utilizando a mesma definição para o que denomina aglomerado subnormal, ou seja, a favela.

Assim, a variável mais adequada à definição de favela é o estatuto jurídico da terra. Tanto as definições das pesquisas da Prefeitura Municipal de São Paulo (1973, 1975, 1987 e 1993), como a de 1980 do IPT- FUPAM, consideram favela “todo o conjunto de unidades domiciliares construídas em madeira, zinco, lata, papelão ou alvenaria,

Page 101: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

101

em geral distribuídas desorganizadamente em terrenos cuja propriedade individual do lote não é legalizada para aqueles que os ocupam” (Secretaria Municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo, 1988: 5). O IBGE também enfatiza os mesmos aspectos, apenas agrega à variável terreno invadido o tamanho do aglomerado. Para o IBGE, desde 1950, e isso foi enfatizado nos Censos de 1980 e 1991 e na Contagem de População de 1996, favela é um setor especial do aglomerado urbano formada por pelo menos 50 domicílios, na sua maioria carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos não pertencentes aos moradores. Para as pesquisas de 1973, 1975, 1980, 1987 e 1993, definiu-se como favela quando havia no mínimo duas unidades habitacionais com as características acima mencionadas. Ficaram excluídas domicílios isolados e acampamentos.

O critério de computar apenas aglomerados com 50 unidades e mais explica par-cialmente a subestimativa da população favelada paulistana pelos Censos. Em 1987, em São Paulo, 21,93% da população favelada morava em assentamentos de menos de 51 unidades domiciliares. A pesquisa de 1993 mostra que as favelas pequenas, de 2 a 50 domicílios, agrupavam 21,2% das casas. As grandes favelas, com mais de 1.000 unidades habitacionais, serviam de local para apenas 12,9% dos domicílios favelados. A moda estatística em relação ao tamanho das favelas em São Paulo era representada por assentamentos entre 51 e 400 casas (51,1% das casas faveladas).

O tamanho dos aglomerados depende diretamente da topografia da cidade e do tipo de terreno disponível para invasão. Em São Paulo, as favelas ocupam geralmente terras de uso comum de loteamentos, glebas pequenas quando comparadas com as do Rio de Janeiro, onde as favelas galgam os morros, ou Salvador, onde invadem o mar. Dessa forma a subestimação em São Paulo tende a ser maior que no Rio, onde, já em 1969, 62,7% das favelas tinham mais de 100 domicílios, sendo que 6,4% tinham mais de 1.500 (PARISSE, 1969).

Os dados censitários para as favelas têm sido objeto de controvérsia. No Censo de 1980, os resultados foram fruto de tabulação especial da variável situação, que categorizava cidade ou vila, área urbana isolada, aglomerado rural e zona rural. A publicação hoje disponível com dados de favela de 1980 é a Sinopse Preliminar, com listagem das favelas por nome, número de domicílios e número de pessoas, em cada município. Pelo Censo de 1980 não é possível separar domicílios totalmente próprios dos com apenas a construção própria. No item condição de ocupação existem as ca-tegorias próprio pago, em aquisição, alugado, cedido (por empregador ou particular) e outro. Em relação aos domicílios rústicos, o Censo de 1980, no boletim da amostra, caracteriza paredes, piso e cobertura.

Já o Censo de 1991 e a Contagem de 1996 apresentam a variável localização (va-riável 0202), com as categorias casa ou apartamento isolado ou em condomínio, em conjunto popular e em aglomerada subnormal. Outra variável permite também identi-ficar a favela, a variável setor (variável 1061). Em princípio, deveria existir coincidência total entre as duas apurações. Na Contagem de 1996 a diferença entre as apurações por estas duas entradas foi mínima: apenas 491 domicílios, sendo que a variável 1061, setor, fornecia 177.141 domicílios em favela e a variável 0202, localização, 176.650 casas em aglomerado subnormal. As diferenças se davam em apenas três distritos – Bom Retiro, Cachoeirinha e Jaçanã.

Page 102: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

102

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Para o município do Rio de Janeiro, entretanto, em 1991, entre 236.354 unidades habitacionais em aglomerados subnormais, verificaram-se 16.147 domicílios não fa-vela (6,83% do total de aglomerados subnormais e 1% do total de unidades domici-liares). (PRETECEILLE e VALLADARES, 2000). Como variável controle, a referente à condição de ocupação poderia auxiliar, dado que nas unidades faveladas apenas a construção é própria, nunca o terreno. Para a Região Metropolitana do Rio de Janei-ro, entretanto, tanto nos setores favela como nos não-favela surgiu a categoria “só a construção própria”. Entre as casas da favela, onde se esperava que todas as unidades tivessem propriedade da terra irregular, computam-se 86 mil moradias com terreno próprio. E, entre as unidades não-favela, surgiram quase 150 mil que declararam ape-nas a construção própria (cerca de 9% do estoque total de moradias) (PRETECEILLE e VALLADARES, 2000, p 389).

No município de São Paulo, o número de domicílios com apenas a construção própria alcançava, em 1991, 176.774, 7,27% do total de domicílios do município. Para o mesmo ano, pela mesma fonte, o total de casas em aglomerados subnormais foi de 146.891. Existem, de forma paradoxal, unidades domiciliares (29.883) onde só a construção seria própria – definição de favela – e que não estão em favela. É claro que podem existir unidades em terrenos cedidos e/ou alugados, mas parece improvável a existência de quase 30 mil casas em tais terrenos, sabendo-se que o aluguel ou a cessão de terras é pouco comum para habitação na cidade.

Este paradoxo – já que na favela pode haver casas próprias, alugadas ou cedi-das, mas sempre em terrenos ocupados irregularmente, e de outro lado, seria difícil haver, na cidade de São Paulo, quase 30 mil unidades habitacionais não-favela em terrenos alugados ou cedidos – indica o pouco que conhecemos do fenômeno. PRE-TECEILLE e VALLADARES (2000: 390) comentam que os dados cariocas “podem também estar revelando a tendência, já em curso há algum tempo, de regularização da ocupação de tais áreas”. Isso explicaria, no Rio de Janeiro, a presença de mais de 86 mil famílias proprietárias do terreno em aglomerados subnormais, ou seja, em favela, onde teoricamente todas as unidades teriam condição de propriedade do terreno irregular. Seriam moradias em lotes ocupados inicialmente por invasão e posteriormente legalizados.

Para os Censos Demográficos, os chamados setores subnormais – utilizados como substitutos do conceito de favelas – são definidos antes da realização do Censo propriamente dito. O setor censitário é uma unidade administrativa do Censo, delimitada como a área a ser percorrida por um único recenseador no seu trabalho de campo. Assim, a definição dos setores é função da área a percorrer e do trabalho a ser realizado.

Os setores são classificados por tipo: setor normal, setor especial de aglomerado subnormal, setor especial de quartéis e bases militares, setor especial de alojamento, acampamento, setor especial de embarcações, barcos e navios, setor especial de aldeia indígena, setor especial de cadeias e presídios, setor especial de asilos, orfanatos, conventos, hospitais etc. Os setores subnormais sofrem esta classificação a partir de informações prévias ao campo, considerando elementos relacionados acima. O proce-dimento tem inclusive objetivo de permitir o pagamento diferenciado por entrevista, devido às dificuldades inerentes às entrevistas em locais deste tipo.

Page 103: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

103

Como já foi dito, o IBGE considera aglomerado subnormal “um setor censitário quando nele existem cinqüenta ou mais casas faveladas contíguas” (GUIMARÃES, 2000: 353). Caso um aglomerado possua 20 casas num setor e 40 em outro setor, esses setores não são considerados favela, o que vai subestimar a realidade. De outro lado, existindo cinqüenta e uma moradias faveladas, todo o setor será considerado como aglomerado subnormal, mesmo que nele existam casas não faveladas.

Assim, o processo de coleta censitário pode levar a distorções da realidade. Percebe-se que tanto o conceito, como o processo de coleta de dados incorporam problemas que tornam o resultado censitário sujeito a críticas. A utilização do chamado setor subnormal como favela pode acarretar problemas de estimação:

- A qualidade da estimativa vai depender do grau de atualização da cartografia utilizada para o planejamento do Censo;- Favelas muito pequenas tendem a não ser consideradas como setores subnormais, pois não têm tamanho suficiente para servir como área para um pesquisador.

Em Belo Horizonte, GUIMARÃES (2000) coordenou um levantamento dos setores censitários favelados, cotejando-os com informações dos mapas da Companhia Urba-nizadora de Belo Horizonte (URBEL). A partir da identificação dos setores censitários ocupados por favelas, foi feito um cálculo do percentual de ocupação da mancha de favela no setor e os dados foram sistematizados e corrigidos. Isso não foi feito para São Paulo. A catalogação de uma área como favela é feita a partir da existência de um processo de ocupação, por moradores, de uma área pública ou particular. O elemento definidor de favela é a ilegalidade da propriedade.

Quando a área é pública, o processo de identificação se inicia por abertura de processo administrativo interno à Prefeitura, que notifica a Secretaria de Habitação e o Departamento de Patrimônio. Estas informações são repassadas para a Superinten-dência de Habitação Popular. Quando a área é privada, a Subprefeitura é chamada a realizar a desocupação, respondendo a um processo judicial de reintegração de posse. Esta informação também é enviada para HABI. Outra forma de identificação de fa-velas é a de rotina, quando por vistoria em área um fiscal nota a ocupação de terras e notifica HABI. Ao logo do tempo, essas informações foram sendo consolidadas em um banco de dados sobre favelas, iniciado em 1973.

A Pesquisa Municipal de 2001, divulgada em novembro de 2003 pelo IBGE, mos-trou dados bem diversos dos dados de favela do Censo Demográfico de 2000. Por esta pesquisa, o Brasil teria mais de 2,3 milhões de moradias faveladas, em 16.433 favelas. Em 1999, o Perfil Municipal acusou 921 mil domicílios em favelas, o que daria um espantoso crescimento de quase 2.000 unidades habitacionais por dia, equivalente a uma taxa anual de mais de 60%!

Esta informação conflita fortemente com a censitária, segundo a qual a quantidade de casas faveladas no Brasil seria de 1.650.548 no ano 2000, em 3.905 favelas, e a taxa de crescimento na década de 1990 seria de 4,18% ao ano. Segundo os técnicos do IBGE, tanto o crescimento incrível entre as duas datas dos Perfis Municipais, como a diferença entre estas informações e as do Censo 2000 podem estar ligados ao empenho em melhorar o cadastramento, e não a um crescimento real do fenômeno.

Entre os mais de 5.500 municípios brasileiros, 1.269 (23%) declararam ter favelas.

Page 104: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

104

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Esta proporção sobe para 80% nas cidades de mais de 100 mil habitantes e 100% para as de mais de 500 mil. Mas apenas 704 destes 1.269 declararam ter cadastro de favelas, total ou parcial.

5.2. Problemas relativos ao número de favelas e da população faveladaNeste item vou me ater aos problemas observados quanto ao número de favelas e

favelados no município de São Paulo.O número de favelas em São Paulo é peripatético: segundo o Censo de 2000 (da-

dos preliminares), no município temos 612 favelas, com 931 mil pessoas. Segundo o Censo de 1991, esse número é de 629, e pela Contagem de 1996, é de 574. Há que se lembrar que o Censo computa apenas aglomerados de mais de 50 unidades e mistura os chamados setores subnormais com os normais. O Perfil Municipal de 2001 fornece a informação de 387.863 domicílios em favelas (aliás, a informação da pesquisa FIPE-SEHAB, posteriormente refutada pela própria SEHAB, que tem adotado a estimativa do CEM).

Pelas pesquisas de Cadastro de Favelas da PMSP, o número de favelas em 1973 era de 542, e subiu para 1239 em 1980. Nesta data, o Censo informava 188 favelas no município.

Em relação aos números de aglomerados de 1973 e 1975, tenho todos os elementos para afirmar que devem estar bastante corretos. Em 1973, as informações fornecidas pelas regionais, e depois checadas pelas minhas pesquisadoras e pelos dados de Rendas Imobiliárias para verificar a real propriedade do terreno, me fazem afirmar que o núme-ro de aglomerados dificilmente está superestimado, já que foi alvo de dupla checagem, por métodos distintos. Em 1975, a recontagem foi feita com helicóptero, o que pode trazer alguns enganos, tanto que não publicamos o número de assentamentos.

Em 1980, iniciava-se a eletrificação de favelas. Assim, este número de aglomerados resultou do Cadastro de Eletrificação Social da Eletropaulo, muito bem verificado e, segundo os técnicos dela, com quebra de cerca de 5%, que eu já computei no cálculo. A pesquisa de campo para características da população e dos domicílios foi feita pelo IPT, com amostra de 327 domicílios.

Em 1987, tomou-se por base para o cálculo da amostra informação fornecida pelas regionais em 1986. Reproduzo o quadro do relatório de 1987, não publicado; embora o dado fornecido tenha sido, para o cálculo da amostra, de 1.749, foi depois corrigido para 1.592:

1 Cadastro de favelas, 1973 e 1975.2 Estimativa minha, baseada no recadastramento das ARs Freguesia do Ó e Campo Limpo.3 Estimativa da COGEP, publicada em KOWARICK e ANT, 1981.4 Estimativa minha, baseada na Eletropaulo e no IPT, utilizada no meu doutoramento.5 Estimativa da Equipe de Estudos e Pesquisas da FABES.6 Estimativa minha, a partir da Eletropaulo e do IPT e admitindo-se 5% de domicílios não eletrificados.7 Estimativa da equipe SEHAB-SP, usando informações das regionais e o número de pessoas por domicílio

da pesquisa IPT, que foi de 5,46.

Page 105: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

105

As populações e favelas fornecidas pelos Censos diferem bastante, ver o quadro a seguir:

Favelas, domicílios e população favelada no município de São Paulo

Fonte: Sinopse Preliminar do Censo 1980; Censos Demográficos de 1991 e 2000; Contagem da População de 1996.

População favelada por anel, município de São Paulo

Fonte: tabulações especiais dos Censos de 1991 e 2000 e da Contagem da População de 1996.

Em 1993, a Prefeitura Municipal de São Paulo contratou a FIPE (Fundação Ins-tituto de Pesquisa Econômicas, da USP), para a atualização do número de favelas e favelados no município.

Esta estimativa forneceu a cifra de 1.901.884 pessoas, muito mais elevada do que se imaginava, e muito maior que os dados de favelas de 1991 e mesmo de 1996 do IBGE.

Esta estimativa baseou-se no Cadastro de Favelas de 1987, não computando as-sim favelas novas. Os estudiosos do assunto surpreenderam-se com o percentual de quase 20% da população paulistana morando em favelas. Numa primeira impressão, acreditou-se num superdimensionamento do fenômeno. Um dos fatores de superesti-mação foi expurgado: como a pesquisa FIPE foi realizada por meio de recontagem de assentamentos sorteados pela base 1987, em amostragem estratificada por tamanho do assentamento e Administração Regional, poder-se-ia, em princípio, em favelas próximas, contar casas de uma favela como sendo aumento de outra, e, portanto, superestimar o incremento. Isso foi verificado e expurgado.

Outra possível fonte de erro poderia estar no uso da base de 1987. E outra ainda poderia estar na forma de cálculo da amostra. A amostragem da pesquisa FIPE foi feita em duas fases: a primeira, definindo uma amostra de 163 favelas, a partir das informações do Censo de Favelas de 1987, estratificada por regional, entre a lista-gem de 1.544 aglomerados de 1987. Destas favelas, 896, ou seja, 58%, tinham até 50 domicílios, o que exigiu ampliação da amostra neste extrato. É interessante notar a quantidade de favelas pequenas, menores que o limite censitário de mensuração do fenômeno. A amostra foi a seguinte:

Page 106: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

106

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

A unidade amostral do segundo estágio foi o domicílio, onde, para cada estrato, foi feita a seguinte amostra:

Mais de 1.000 - 50 domicílios400 a 999 - 30 domicílios200 a 399 - 20 domicílios50 a 199 - 10 domicíliosMenos de 50 - 5 domicíliosA amostra foi calculada a partir do estimativo número médio de barracos por

favela, e deu 3.704 famílias entrevistadas, um número bastante alto, com sistema de amostragem muito bem controlado. Foi feito controle do erro padrão da amostra, que só foi um pouco grande nas regionais de S. Miguel, Pirituba e Freguesia do Ó.

A taxa geométrica de crescimento dos domicílios favelados entre 1987 e 1993 foi enor-me, de 16,64% anuais para uma razão global de crescimento de 2,52, ou seja, o número de unidades faveladas tinha mais que dobrado. Os resultados da pesquisa amostral, a não ser este número alto que nós também estranhamos na época, são muito coerentes.

Retropojetando esta estimativa para 1991, data do Censo, obtém-se uma população favelada de 1.434.112 pessoas. A população favelada para o IBGE, em 1991, foi de 711.031 pessoas, em 146.891 domicílios. Supondo que 21,93% da população favelada em assentamentos pequenos não tenha sido computada (percentual da população fa-velada moradora em assentamentos de menos de 51 unidades domiciliares em 1987), a população favelada de São Paulo seria de 866.961 pessoas em 1991. A diferença entre a estimativa FIPE e a do IBGE chega a mais de 500 mil favelados, quase 40% em relação à estimativa FIPE. Este diferencial foi de 7% anteriormente.

Um trabalho recente, do CEM (Centro de Estudo da Metrópole), apresentado no X Encontro Nacional da Associação Nacional de Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), procurou rever as estimativas de população favelada em São Paulo. Se-gundo os autores, “ao comparar as informações de 1987 e 1993 aos dados dos Censos Demográficos (IBGE), desenvolvemos uma nova metodologia de baixo custo, poten-cialmente aplicável em outros contextos urbanos. O modelo se baseia em sistema de informações geográficas permitindo estimar a população ao comparar os desenhos das favelas (da prefeitura) com os setores censitários (IBGE). Com essa metodologia pretendemos tirar proveito simultaneamente das melhores características dos dados administrativos municipais (e sua definição de favela) e do trabalho de campo do IBGE nos censos demográficos” (pp. 1-2).

Esse trabalho utiliza a Cartografia de favelas produzida e atualizada periodicamente por Habi/Sehab em São Paulo e os mapas digitais dos setores censitários de 1996. As estimativas de população foram então produzidas por meio do uso de sistemas de informações geográficas (SIG), onde o desenho da favela (da prefeitura) foi compa-rado ao desenho dos setores censitários (do IBGE), por meio do recurso de overlay, ou sobreposição de cartografias.

Page 107: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

107

Observou-se que o desenho de favelas da prefeitura e o desenho dos setores sub-normais apresentavam diferenças significativas. Embora existissem favelas totalmente sobrepostas a setores subnormais, existiam também favelas sobrepostas a setores nor-mais e setores subnormais não registrados como favelas na prefeitura. Resolveu-se utilizar, para geração de estimativa da população favelada, as densidades dos setores com alta sobreposição cartográfica entre favela e setor subnormal.

Os autores trabalharam com quatro hipóteses para a densidade das favelas e aca-baram optando por considerar a densidade das favelas como intermediária entre a do grupo onde existe 100% de sobreposição entre os setores censitários subnormais e as favelas da PMSPP, o que deu uma densidade de 367 habitantes por hectare, e a do grupo onde existe entre 80% a 90% de sobreposição, o que dava 487 habitantes por hectare.

Tentaram atualizar a base cartográfica de favelas da Prefeitura do Município de São Paulo, com fotos aéreas de 2000 (cerca de 8.400 fotos) e um grande número de vistorias de campo (mais de 800 vistorias), num esforço conjunto do CEM e de HABI. A atualização da base indicou um intenso processo de crescimento dos perímetros de favela em certas partes da cidade, mas indicou também importantes desfavelamen-tos em outras partes. O número total de favelas passou o de 2000 (pelo IBGE, São Paulo teria em 2000, 612 aglomerados). Como resultado, chegam a uma estimativa de 196.389 domicílios e 891.673 pessoas nas favelas de São Paulo em 1991 e 286.954 unidades habitacionais e 1.160.590 pessoas nas favelas paulistanas no ano 2000.

O crescimento das favelas paulistanas é essencialmente periférico, embora possa se perceber um pequeno aumento da proporção de favelados no anel interior entre 1991 e 2000. Realmente, se tem percebido a olho nu que inúmeros terrenos vagos, ao lado de estradas de ferro e viadutos, em áreas centrais da cidade, têm sofrido novas ocupações nos últimos anos. O quadro abaixo resume as diversas estimativas.

Favelas, domicílios e população favelada município de São Paulo, pesquisas diversas

Page 108: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

108

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

6. Mensuração do déficit relacionado à urbanização dos assentamentos precários

Como se viu pelos itens anteriores, mesmo em nível municipal a mensuração da população e das casas faveladas é problemática. E a mensuração dos que poderiam ser urbanizados seria ainda mais problemática.

Cumpre aqui colocar se a palavra assentamento precário está sendo utilizada como núcleo favelado. Este seria um núcleo com problemas associados à proprie-dade da terra. Existem outros tipos de irregularidade, quanto à legislação edilícia, quanto ao uso do solo, quanto ao parcelamento do solo. Os dois primeiros tipos estão presentes em toda a trama urbana, inclusive em áreas habitadas por alta renda. Vão existir quando, por exemplo, uma edificação não respeita o Código de Obras vigente, ou quando alguma loja se aloca em área não permitida. Estas irregulari-dades não impedem o registro da propriedade fundiária, embora gerem conflitos quanto ao alvará ou quanto à regularização do habite-se e, portanto, da escritura definitiva da edificação.

Já a irregularidade quanto ao parcelamento do solo mostra o descumprimento da legislação neste aspecto. Ou seja, significa que o promotor do parcelamento não o aprovou junto aos órgãos públicos responsáveis. Se o loteamento for anterior à Lei Leh-man – 6766/79, os moradores podem até ter conseguido o registro de sua propriedade junto ao Registro de Imóveis, mas se for posterior, isso não foi possível, dado que a partir de então a legislação federal passou a considerar como pré-requisito do registro a aprovação prévia do parcelamento. Assim, em loteamentos irregulares, clandestinos ou não, os moradores não têm título de propriedade, mas têm como provar que pagaram por ela. Assim, frente ao judiciário, são legítimos proprietários da terra.

No caso da ocupação de terrenos, isso não pode ser feito. Além da irregularidade edilícia (em geral as casas são construídas fora dos Códigos de Obras), de irregularida-des quanto ao parcelamento do solo (que também em geral não obedece a parâmetros da lei), vai haver problemas associados à propriedades da terra.

Aí volta-se à pergunta inicial: como mensurar, em nível nacional, o déficit associa-do aos assentamentos precários, entendidos como ocupações de terras? Creio que os passos a serem dados podem seguir a metodologia da FJP. Mesmo nos assentamentos precários, pode-se ter um déficit de unidades, ou seja, unidades que necessitam ser construídas e unidades que podem ser melhoradas.

Todas as unidades em favelas que não podem ser urbanizadas são déficit, inde-pendente do seu estado anterior. E, nas favelas que podem ser urbanizadas, além da inadequação, algumas unidades podem necessitar de substituição.

- Em nível nacional, têm-se duas medidas para os assentamentos precários (favelas):- Os totais fornecidos pela variável V1007, sobre o tipo de setor (são os setores especiais de aglomerado subnormal);- Os resultados da variável V0206, sobre condição do terreno (próprio, cedido ou outra condição).

Para o município de São Paulo, o total de domicílios em terrenos “com outra con-dição” foi de 114.519 e o de domicílios próprios em terrenos cedidos foi de 90.778, num total de 205.297. Em 1996, o total de domicílios em assentamentos subnormais

Page 109: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

o desafio da mensuração

109

já era mais de 176.000, mas a pergunta foi formulada de outra forma: referia-se à condição de ocupação, onde os domicílios próprios eram classificados em próprios a construção e o terreno e só a construção. A tabulação dessa variável envolve domicílios próprios pagos e em pagamento (em São Paulo, 2.009.513, de um total de 2.984.415 domicílios) e fornece que 90,22% dos domicílios próprios estão em terrenos próprios, 4,32% em terrenos cedidos e 5,45% em terrenos em outra condição. Fica complicada a interpretação da informação e sua equivalência com a de favelas. Em assentamentos favelados, a gleba é ocupada de forma irregular, mas os domicílios podem ser próprios, alugados ou cedidos.

Assim, creio ser melhor o uso da variável V1007, com a utilização – apesar de todos os problemas – da variável setor especial de aglomerado subnormal. As informações dos setores subnormais são as únicas existentes para comparações em nível nacional para todos os municípios. Em alguns municípios têm-se também algumas contagens de unidades domiciliares realizadas por assistentes sociais. Estas contagens também podem apresentar problemas de aferição dos residentes, pois podem existir casas de uso comercial, vazias, de uso ocasional ou situações de dupla residência (por exemplo, domésticas que tem uma unidade na favela, mas residem na casa de seus emprega-dores, e casos semelhantes).

Mas convém fazer uma tabulação, em nível nacional, da variável V0206, condição do terreno. Esta tabulação poderá balizar a outra, sobretudo se for feita por nível de renda.

Considerando o universo das favelas, os assentamentos subnormais podem pro-ceder com suas informações censitárias a algumas mensurações de inadequação por densidade excessiva, por carência de infra-estrutura, por não-existência de sanitário (com as ressalvas feitas no item anterior). Creio ser desnecessário medir a inadequação fundiária e a inadequação em função da idade da unidade.

Em relação ao déficit – necessidade de construção de novas unidades – é possível estimar, com as informações censitárias, a coabitação e o ônus com aluguel. No caso, creio que qualquer ônus com aluguel constitui déficit. Infelizmente, não dá para men-surar os domicílios rústicos, o que seria importante inclusive para se pensar numa reurbanização. O percentual de unidades domiciliares a serem remanejados numa favela por problemas relativos à urbanização costuma ser da ordem de 30%. E é mais fácil realocar unidades rústicas.

É claro que nem todos os assentamentos são passíveis de urbanização. Há pro-blemas relativos à propriedade do terreno, ao local ocupado, à área ser de risco, à densidade ser muito alta, exigindo um desadensamento que obrigue a construção de número alto de novas unidades em outro lugar etc. Este dado é de impossível verifi-cação pelas informações censitárias.

7. Propostas iniciais

Em primeira aproximação, poder-se-ia tabular as informações referentes aos assen-tamentos subnormais, em nível nacional, e com este subarquivo procurar caracterizar as unidades e a população favelada. Esta estimativa tem inúmeros problemas, mas é a única com a abrangência nacional, e com dados coletados pelo IBGE para todo

Page 110: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

110

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

o país. Mas este cálculo não fornece informação nenhuma sobre a possibilidade de urbanizar ou não o assentamento.

Creio que a utilização do Perfil Municipal pode auxiliar o próprio IBGE a me-lhorar seus registros de setores censitários subnormais. Pessoalmente, teria dúvidas quanto ao uso da informação do Perfil Municipal sem maior crítica: para São Paulo, observa-se que ele fornece um dado – 378.863 unidades domiciliares em favela – que a própria Secretaria de Habitação criticou e substituiu pelo dado do CEM (196.389 domicílios).

Uma tabulação das características populacionais e domiciliares dos moradores das chamadas áreas subnormais, em 1991 e 2000, vai fornecer, a um custo bastante aces-sível, já que se trata apenas de tabular dados já existentes, informações importantes para o desenho de projetos e políticas viáveis. Estes dados podem ser analisados por distintos níveis de abrangência territorial, possibilitando o desenho de intervenções diferenciadas por segmento urbano. Um ensaio deste tipo de análise, para o muni-cípio de São Paulo e alguns municípios do ABCD, forneceu informações valiosas, tanto no que diz respeito à evolução da população e das formas de moradia favela-das entre 1991 e 1996 (foi utilizada a Contagem da População do meio da década), como às características sociodemográficas e de renda da população moradora nas áreas subnormais.

Deve ser lembrado que a favela, embora a mais visível, não é a única forma de assentamento irregular. Além dela, existem em zonas urbanas os cortiços, os lotea-mentos irregulares e clandestinos e os conjuntos habitacionais públicos deteriorados (PONTUAL, 2003: 24). As condições de irregularidade e clandestinidade não são passíveis de avaliação por dados censitários; apenas informações diretas das prefei-turas podem responder a estas indagações. Quanto aos cortiços, uma aproximação pode ser alcançada pelo cruzamento dos dados sobre aluguel e sanitário coletivo ou mesmo através da tabulação de moradias alugadas com apenas um cômodo.

Além do Censo 2000, outras informações do IBGE podem ser utilizadas: a POF-Pesquisa de Orçamento Familiar (para despesas com aluguel, impostos, taxas e ser-viços, reforma e compra de imóveis) e os PNADs ( matérias de construção, valor do aluguel etc).

Recomendo um especial esforço para conjugar os dados de favelas das prefeituras (expostos no Perfil Municipal) e do Censo. Este esforço será de extrema importância para a Contagem de 1995 e para o Censo de 2010.

Page 111: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

111

A questão do “Déficit Habitacional” nas favelas: os pressupostos metodológicos e suas implicações políticas

Prof. Dr. SÉRGIO DE AZEVEDOTitular da Universidade Estadual Norte Fluminense, Membro do Instituto do Milênio/Observatório das Metrópoles e Consultor “ad hoc” da Fundação João Pinheiro e do Ministério das CidadesMARIA BERNADETE ARAÚJODemógrafa, Coordenadora do Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro

O objetivo desse trabalho é comparar a metodologia utilizada pela Fundação João Pinheiro/Ministério das Cidades com a elaborada pela Fundação Getulio Vargas em parceria com o Sindicato da Construção Civil de São Paulo, Sinduscon/SP, para dis-cutirmos os diferentes pressupostos, especialmente no que se refere aos chamados “aglomerados subnormais”, popularmente conhecidos como favelas. Como se verá, ao longo deste trabalho, enquanto a primeira metodologia encara as favelas como um habitat objeto de intervenção de diferentes políticas públicas complementares e recorrentes, a segunda descarta as mesmas como uma das possíveis soluções habita-cionais para as populações de baixa renda.

A metodologia elaborada de forma incremental pela Fundação João Pinheiro (FJP) a partir de 19951 – portanto com mais de uma década de experiência e aprimoramento – foi um importante marco para a rediscussão do chamado “déficit habitacional”, por sua abordagem, amplitude e divulgação dos resultados. O seu principal mérito foi rearticular inúmeras contribuições realizadas anteriormente de forma inovadora.

Em trabalho que procura discutir os motivos da padronização de diversos índices sociais, Simon Schwartzman destaca que os valores centrais dos sistemas estatísticos eficazes são a legitimidade e a credibilidade. Essa última é um componente essencial para a aceitação e adoção de padrões e procedimentos uniformes. Suas bases decorrem de inúmeros fatores, entre os quais se podem destacar:

1. “a informação confiável é aquela procedente de instituições que não sejam identificadas como a serviço de um grupo de interesse ou ideologia específica” (grifo nosso);2. a informação aceita como confiável é aquela fornecida por pessoas ou instituições com um forte perfil profissional e técnico;3. números produzidos sempre de acordo com os mesmos procedimentos, ou seja, com estabilidade e consistência, são mais facilmente aceitos do que aqueles que variam, de-pendentes de diferentes metodologias;4. pesquisas avulsas tendem a ser questionadas com mais freqüência que os resultados de práticas estatísticas permanentes e continuadas”. (SCHWARTZMAN, 2004)

1 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estudos Políticos e Sociais. Déficit Habitacional no Brasil. Belo Horizonte, 1995; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional no Brasil 2000. Belo Horizonte, 2001; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional no Brasil, municípios selecionados e microrregiões geográficas. Belo Horizonte, 2ª ed., 2005; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional no Brasil 2005. Belo Horizonte, 2006.

Page 112: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

112

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Enquadrando-se nos parâmetros acima, a metodologia desenvolvida pela Fundação João Pinheiro tornou-se referência nacional nessa última década. É adotada pelo governo federal, pela maioria dos governos estaduais, por governos municipais, redes acadêmicas nacionais, universidades, centros de pesquisas e entidades profissionais.

1. Aspectos conceituais das “necessidades habitacionais”: déficit e inadequação de moradias

A partir do conceito mais amplo de necessidades habitacionais, a metodologia desenvolvida pela Fundação João Pinheiro trabalha com dois segmentos distintos: o déficit habitacional e a inadequação de moradias.2

Como déficit habitacional entende-se a noção mais imediata e intuitiva de ne-cessidade de construção de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação detectados em certo momento. Está ligado diretamente às deficiências do estoque de moradias. Engloba tanto parcela daquelas que devem ser repostas, devido à falta de condições de habitabilidade, quanto parcela relacionada ao incremento do estoque.

O conceito de inadequação de moradias reflete problemas na qualidade de vida dos moradores: não está relacionado ao dimensionamento do estoque de habita-ções e sim a especificidades internas do mesmo. São assim definidos os domicílios que não proporcionam condições desejáveis de habitabilidade, o que não implica, contudo, necessidade de construção de novas unidades. Seu dimensionamento visa ao delineamento de políticas complementares à construção de moradias, voltadas para a melhoria dos domicílios existentes. Pelo conceito adotado, são passíveis de serem identificadas somente as localizadas em áreas urbanas. Tem-se o cuidado de excluir do estoque a ser analisado os domicílios inseridos em alguma das categorias do déficit habitacional. Ao contrário deste, os critérios adotados para a inadequação habitacional não são mutuamente exclusivos. Os resultados, portanto, não podem ser somados, sob risco de haver múltipla contagem (a mesma moradia pode ser simultaneamente inadequada segundo vários critérios).

Com a preocupação de identificar as carências, principalmente da população de baixa renda, os números, tanto do déficit quanto da inadequação dos domicílios, foram explicitados para diversas faixas de renda familiar. Eles têm como enfoque principal famílias com até 3 salários mínimos de renda, limite superior para o ingresso em grande número de programas habitacionais de caráter assistencial.

Na tentativa de caracterizar as demandas habitacionais da parcela mais carente da população é também fundamental considerar a situação das unidades localiza-das em favelas. Um dos segmentos mais penalizados da sociedade, a expectativa é de que nelas sejam maiores as necessidades habitacionais, tanto no que se refere à falta quanto à inadequação das moradias. Há, todavia, dificuldade na obtenção de informações detalhadas para as favelas em geral, havendo apenas estudos pontuais sobre parte delas. Para tentar contornar esse problema, a metodologia trabalha com

2 O detalhamento de cada um desses segmentos e os principais conceitos trabalhados encontram-se no anexo metodológico.

Page 113: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

113

o desafio da mensuração

os domicílios que o IBGE identificou como em aglomerados subnormais, mesmo sabendo que se trata de dados subenumerados em relação ao real montante de pessoas vivendo nessas áreas.

Segundo definição do IBGE, aglomerado subnormal é “o conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.) ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. Em sua maioria são carentes de serviços públicos essenciais”. Teoricamente, essas características se enquadram na definição de favelas, mas é consenso que o número assim obtido é muito inferior aos identificados por estudiosos da questão. De qualquer maneira é o dado disponível, para, de acordo com a metodologia adotada, estimar o déficit e a inadequação de moradias para esta parcela específica da população.

2. A trajetória recente do déficit e da inadequação habitacional no Brasil

Os números apresentados foram publicados no último estudo da série elaborada pela FJP3 e se baseiam na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos anos de 2004 e 2005, e no Censo Demográfico 2000, através do processamento de seus microdados. A PNAD possui periodicidade anual, com representatividade apenas para o Brasil, unidades da Federação e algumas regiões metropolitanas.4

Em relação aos aspectos metodológicos, a PNAD não permite o cálculo da depre-ciação dos imóveis. Na realidade esse é um indicador difícil de ser apreendido, não sendo possível, a partir das bases de informações disponíveis, incorporá-lo ao cálculo das necessidades habitacionais.5

Deve-se ressaltar, ainda, que devido às limitações nas fontes de dados disponíveis e às dificuldades na captação de alguns dos fenômenos considerados, os números apresentados, em alguns casos, são subestimados em relação à verdadeira extensão do problema. Em contrapartida, quando se trata da coabitação familiar, a impossibilidade de uma melhor qualificação das famílias conviventes superestima o cálculo do déficit habitacional: não é possível identificar o percentual das que realmente têm intenção de constituir outro domicílio. Esse é um dos pontos que merecem atenção, dentro do objetivo de aprimoramento constante da metodologia utilizada, sendo proposto o delineamento de instrumentos que permitam caracterização mais detalhada de aspectos da convivência familiar.

3 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional no Brasil 2005. Belo Horizonte, 2006.4 Apenas são estimados o déficit e a inadequação habitacional para nove regiões metropolitanas, historica-mente pesquisadas pela PNAD: Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.5 Em relação à depreciação de imóveis, a FJP em estudo anterior relativo às estimativas das necessidades habitacionais de 2000 realizou exercício com base em informações pontuais para o município de Belo Hori-zonte. Em função da grande complexidade dos cálculos necessários e da fragilidade factual da hipótese adotada, houve consenso em não estimar este componente até conseguirmos dados mais confiáveis.

Page 114: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

114

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

2.1. Déficit habitacionalDe forma esquemática a Tabela 1 apresenta a trajetória do déficit habitacional

do Brasil, por regiões, ao longo dessa década. Apesar de, em números absolutos, o déficit habitacional apresentar um crescimento durante o período analisado, em termos relativos observa-se queda lenta, porém, gradual e sistemática. Represen-tava 16,1% dos domicílios existentes em 2000, passando para 14,9% em 2005. Essa tendência se repete mesmo em relação à situação do domicílio, de maneira mais acentuada no caso da área rural. Espacialmente, no entanto, podem ser verificadas diferenças de comportamento, em função da localização regional. As regiões Norte e Nordeste apresentam as maiores quedas relativas, tanto no déficit urbano quan-to no rural. Na região Nordeste há diminuição inclusive dos números absolutos, entre 2000 e 2005, em função basicamente da área rural. Essa, apesar da queda, continua a ser ainda responsável por grande parcela do déficit habitacional da região. Na região Sudeste, ao contrário, as carências habitacionais se concentram primordialmente nas áreas urbanas e tendem a apresentar ligeira tendência de crescimento relativo no período analisado. Comportamento que pode também ser evidenciado na região Sul.

Tabela 1Déficit habitacional por situação do domicílio – Brasil, grandes regiões e regiões metropolitanas – 2000, 2004 e 2005

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI).

Quando analisado o déficit habitacional por faixas de renda, percebe-se que a esmagadora maioria do mesmo (90,3% em 2005) se concentra nas famílias que pos-suem renda média mensal de até 3 salários mínimos. Como se trata em sua maioria de clientela de baixos rendimentos familiares, que necessita de políticas diferenciadas, o papel do Estado passa a ser extremamente estratégico, especialmente em busca de políticas cooperativas entrelaçadas que possam envolver os três níveis de governo, como ocorre com o Sistema Único de Saúde, SUS.

Page 115: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

115

o desafio da mensuração

Em relação aos aglomerados subnormais, os dados do IBGE informam que neles estavam localizados, em 2005, 1,956 milhão de domicílios, que equivalem a apenas 3,7% do estoque de moradias. Esse total é claramente subestimado em relação ao que se espera ser o número de domicílios nas favelas, porém, é o único dado sis-tematizado disponível para todas as unidades da Federação. Para esse conjunto de domicílios que pretende identificar a fatia mais carente da população, foi calculado o déficit habitacional. A expectativa, em princípio, é de que grande parte da popu-lação residente nesses aglomerados estaria em condições precárias de habitação o que caracterizaria, portanto, situação de carência habitacional. Isso, porém, não é o que acontece de acordo com os dados apresentados na Tabela 2. Pode-se observar que, em 2005, o déficit habitacional equivale a 17,7% relativamente ao total dos domicílios nos aglomerados subnormais. É um percentual superior ao encontrado para o total dos domicílios urbanos do país, que é de 14,3%, mas não substanti-vamente mais elevado, como seria de se esperar. Esse fato se confirma em todas as grandes regiões e nas regiões metropolitanas. Fica, portanto, descaracterizado o argumento de que as áreas de favelas deveriam ser integralmente consideradas como déficit habitacional.

Tabela 2Características do déficit habitacional em aglomerados subnormais - Brasil, grandes regiões e regiões metropolitanas – 2005

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI).

2.2. Inadequação dos domicíliosNo que concerne às “inadequações habitacionais”, apresentadas na Tabela 3, perce-

be-se – concomitantemente às políticas voltadas para enfrentamento do déficit stricto sensu – a grande importância de outras políticas urbanas recorrentes e complemen-tares destinadas ao enfrentamento de questões como legalização fundiária, reforma e ampliação de unidades habitacionais, apoio a autoconstrução e, especialmente, in-vestimento em infra-estrutura urbana.

Page 116: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

116

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Tabela 3Critérios de inadequação dos domicílios urbanos1 – brasil, grandes regiões e regiões metropolitanas – 2000 e 2005

(1) Inclusive rural de extensão urbana.Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI).

Cabe relembrar que são analisados apenas os domicílios urbanos que não foram classificados como em situação de déficit habitacional. Pelos números apresentados fica evidente a relevância dos problemas relacionados às deficiências dos serviços de infra-estrutura. Estão presentes em 27,5% dos domicílios urbanos no país, em 2000, e em 25,1% deles, em 2005. Observa-se situação mais crítica nas regiões Norte, Cen-tro-Oeste e Nordeste, apesar de em todas elas, e principalmente na Nordeste, ocorrer melhora nos percentuais entre os dois anos estudados.

Tabela 4 Critérios de inadequação dos domicílios em aglomerados subnormais – Brasil, grandes regiões e regiões metropolitanas – 2005

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI).

Page 117: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

117

o desafio da mensuração

A consideração dos aglomerados subnormais revela uma situação diversa da de-tectada quando da análise do déficit habitacional. Quando se caracterizam os domi-cílios neles localizados, de acordo com os critérios de inadequação dos domicílios, a tendência é de apresentarem percentuais significativamente mais elevados do que os percebidos pelo total das áreas urbanas do país e de suas grandes regiões. Isso acontece particularmente no caso da inadequação fundiária e da carência de infra-estrutura, como pode ser visto na comparação entre as Tabelas 3 e 4. Observa-se, portanto, que os problemas detectados nos aglomerados subnormais caracterizam especificamente situação de inadequação do estoque de domicílios, não implicando diretamente a necessidade de serem repostos.

É possível, ainda, identificar no total dos domicílios urbanos aqueles que não se en-quadram em qualquer dos critérios considerados: tanto os que definem o déficit habita-cional quanto os domicílios inadequados. Esses são denominados domicílios adequados e se encontram na Tabela 5. Pode-se observar as melhores características do estoque de moradias urbanas das regiões Sudeste e Sul. Em contrapartida, na região Norte, apenas 34,2% das unidades domiciliares urbanas possibilitam aos seus moradores condições adequadas de habitabilidade. Quanto aos aglomerados subnormais, mais uma vez é confirmado que seus domicílios encontram-se em melhor situação do que se supunha. É certo que o percentual de moradias adequadas nos aglomerados subnormais é menor em comparação com o total dos domicílios urbanos, porém está longe de ser despre-zível: no país, em 2005, 41,8% das unidades domiciliares localizadas nos aglomerados subnormais não apresentaram problemas segundo a metodologia adotada.

Tabela 5 Domicílios urbanos1 adequados – Brasil, grandes regiões e regiões metropolitanas – 2005

(1) Inclusive rural de extensão urbana.Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI)

Page 118: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

118

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

3. Considerações a respeito da metodologia utilizada pela FGV/GVConsult e Sinduscon/SP no cálculo do déficit habitacional brasileiro

Dois documentos que se complementam – ainda que não se refiram diretamente à metodologia utilizada pela FJP – merecem nossa atenção por chegarem a resultados recentes opostos aos nossos utilizando algumas das variáveis que, também, fazem parte do nosso modelo. Além disso, por terem a chancela acadêmica da Fundação Getulio Vargas, instituição de reconhecido prestigio nacional, não poderíamos deixar de nos posicionar a respeito desses trabalhos.

O primeiro é um artigo de Fernando Garcia e Ana Maria Castelo publicado na revista Conjuntura da Construção de março de 2006 com o sugestivo título “O Déficit Habitacional Cresce apesar da Ampliação do Crédito” (GARCIA & CASTELO, 2006). O outro documento – no qual se basearam os autores para elaboração do citado artigo – é uma publicação regular do Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo em parceria com a Fundação Getulio Vargas de São Paulo. O último número, lançado em fevereiro de 2006, chama-se Déficit Habitacional Brasileiro e 26ª Sondagem Nacional da Indústria da Construção Civil (FGV/GVCONSULT & SINDUSCON/SP, 2006).

O artigo em pauta inicia dizendo que “a PNAD 2004, pela primeira vez com cober-tura nacional, revela uma situação habitacional pior do que se estimava. O déficit habi-tacional de 2004 somou 7,9 milhões de moradias e indicou uma preocupante reversão de tendência: foi a primeira vez em 12 anos consecutivos que o déficit habitacional relativo cresceu” (GARCIA & CASTELO, 2006: 8). Em outras palavras, entre 1993 e 2003 o déficit relativo teria caído, passando de 16,9% para 15%. Em 2004 teria ocorrido uma preocupante reversão dessa tendência histórica de queda com o crescimento de 0,2 ponto percentual. Nesse sentido, teríamos o primeiro aumento de déficit relativo depois de 12 anos consecutivos (FGV/GVCONSULT & SINDUSCON/SP, 2006).

Para o entendimento desses números é necessária uma análise da metodologia utilizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)/Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon). O conceito de déficit habitacional compreende duas dimensões do problema: a “coabitação” e a “inadequação estrutural” das moradias. Ambas buscam mensurar as necessidades de construção de novas moradias. De modo diverso, o mo-delo da FJP, trabalha também o conceito de “inadequação de domicílios”. Ele parte do pressuposto que, em muitos casos, a melhor forma de enfrentar a questão habitacional é implementar políticas complementares e recorrentes às políticas habitacionais stricto sensu, e não, obrigatoriamente, construir mais unidades habitacionais.

Na nossa avaliação a limitação da metodologia FGV/Sinduscon comparada com a da FJP não se deve a questões de ordem técnica ou estreiteza acadêmica. Trata-se de um viés profissional voltado para maximizar os interesses do Sinduscon. Mais do que priorizar, ele reduz a questão da habitação popular exclusivamente à necessidade de construção de novas residências. Obviamente essa abordagem restrita do “habitat” é um fator de forte dificuldade de legitimidade dessa metodologia fora das hostes empresariais da construção civil.

A dimensão “coabitação”, numericamente a mesma usada pela metodologia da FJP, possui aqui significado distinto. É utilizada como uma medida indireta de adensa-mento domiciliar e se refere ao número de casas em que vive mais de uma família. As

Page 119: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

119

o desafio da mensuração

estimativas da coabitação são feitas subtraindo-se o número de domicílios particulares permanentes do número de famílias em cada região.

A inadequação estrutural é inicialmente definida genericamente como composta pelos domicílios improvisados, pelas moradias rústicas e pelos cortiços. Posteriormen-te, como se verá, inclui também as unidades habitacionais que formam as favelas.

Na metodologia em foco, os domicílios improvisados, um dos componentes da “ina-dequação estrutural”, possuem a definição clássica: compreendem prédios em cons-trução, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, trailers, grutas e aqueles situados sob pontes ou viadutos. O cortiço – outro componente da “inadequação estrutural” – é classificado como domicílio particular composto por um ou mais aposentos localiza-dos em casa de cômodos, cortiço, cabeça-de-porco, ou seja, é o mesmo utilizado pela FJP para definir cômodo. As fortes diferenças entre as duas metodologias – mesmo em relação ao cálculo de déficit habitacional stricto sensu – se referem à forma de definir o chamado “domicílio rústico”.

Para determinar o caráter de rusticidade são observadas a localização das moradias (se elas estão em áreas adequadas ou em favela) e a adequação do material das paredes e telhado. Em termos construtivos é considerada habitação rústica aquela cujas paredes são de taipa não revestida, material aproveitado, palha ou material semelhante ou cuja cobertura é de madeira, palha, material aproveitado ou outro material.

Como se pode observar, o caráter de rusticidade possui duas dimensões: 1) segundo a localização das moradias, ou seja, as unidades habitacionais das favelas; 2) segun-do a adequação do material das paredes e dos telhados das unidades habitacionais, localizadas nas demais áreas da cidade.

Isso fica mais claro quando Garcia e Castelo concluem que, “dessa forma, a evolução da inadequação reflete a construção de moradias com material inapropriado, a dete-rioração das moradias preexistentes, cuja reparação é feita com material inadequado e a expansão das favelas e cortiços no país” (grifo nosso) (GARCIA & CASTELO, 2006: 8). Quando iniciam a indicação do déficit habitacional referente à “inadequação estru-tural”, a explicitação das favelas em geral como um dos componentes dessa dimensão torna-se cristalina. Eles afirmam textualmente: “os domicílios inadequados, onde estão incluídas as favelas, os cortiços e as moradias rústicas, somaram 3,7 milhões” (grifo nosso) (GARCIA & CASTELO, 2006: 9).

Essa abordagem metodológica está longe de ser uma entre várias alternativas pos-síveis para elaboração de índices. Esse pressuposto de considerar os domicílios das favelas como fazendo parte da chamada “inadequação estrutural” envolve, de forma implícita, posições difíceis de serem defendidas de forma aberta em um contexto mais amplo, no qual participem, por exemplo, diferentes atores sociais interessados no pro-blema habitacional. Podem ser citados, nesse caso, órgãos públicos vocacionados para questões habitacionais nos três níveis de governo e grupos da sociedade organizada voltados para o habitat (movimentos dos sem-casa, pastorais da habitação, federações de moradores de vilas e favelas, ONGs especializadas em políticas urbanas, conselhos municipais de habitação, conselhos das cidades), entre muitos outros atores.

Talvez isso explique o porquê da dificuldade dos autores do artigo de explicitar de forma direta e imediata sua postura frente às favelas e apresentem suas posições de forma incremental e “a conta-gotas”.

Page 120: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

120

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Isto significa, in limine, defender indiretamente políticas direcionadas para erradi-cação das favelas, postura superada em todos os países da América Latina, incluindo o Brasil, há mais de duas décadas. Significa não apoiar programas de autoconstrução e de urbanização de favelas. Aliás, no Déficit Habitacional Brasileiro e 26ª Sondagem Nacional da Industria da Construção Civil é afirmado literalmente que o aumento do financiamento do governo federal para a autoconstrução de moradias agrava o déficit habitacional (FGV/GVCONSULT & SINDUSCON/SP, 2006).

Cabe relembrar os dados apresentados na seção anterior que indicam que a situação habitacional nos aglomerados subnormais não é tão precária como se poderia supor. Uma percentagem substancial, mais de 40% dos seus domicílios não apresentaram nenhum tipo de deficiência frente os critérios estabelecidos pela metodologia da FJP para definir o déficit habitacional e a inadequação das moradias.

Como nos últimos anos, de forma constante, a população dos agrupamentos sub-normais vem crescendo a taxas bem superiores às dos demais habitantes das me-trópoles e grandes cidades – mesmo que haja melhorias significativas nas favelas (urbanização, infra-estrutura, reformas e ampliação de residências etc.) – a metodo-logia fortemente enviesada utilizada pela FGV/Sinduscon pode mostrar um pequeno percentual de incremento do déficit relativo. Não é por acaso que os números globais do déficit no Brasil, apresentados anteriormente, quando se utiliza a metodologia da FJP, mostram um cenário diferente, ou seja, mais positivo.

4. Considerações finais

A metodologia da FJP tornou-se referência nacional para todos os estudiosos preo-cupados com a questão habitacional. Apesar disso, ao longo dos últimos anos recebeu algumas criticas e sugestões com vistas ao seu aprimoramento. Algumas foram aceitas, desde que consideradas relevantes e factíveis de serem efetuadas. Foi avaliada tanto a viabilidade técnica – em função das fontes de dados disponíveis – quanto a sua real contribuição para a obtenção de resultados mais fidedignos. Foram também incor-porados ajustes decorrentes de observações da própria equipe técnica do projeto. O que sempre norteou os trabalhos foi a preocupação em identificar o real impacto que cada um dos aspectos analisados teria no dimensionamento das necessidades habi-tacionais. Nesse sentido, independentemente da localização, situação do domicílio e renda familiar, os domicílios foram classificados segundo os critérios definidos pela metodologia, vindo assim a compor ou não as estimativas do déficit habitacional.

Na fase atual, a principal proposta de ajuste do modelo refere-se ao papel das famílias conviventes secundárias, que são responsáveis por parcela substantiva do déficit habitacional.6 No caso brasileiro há uma expectativa extremamente difundida entre todos os setores sociais na busca da habitação unifamiliar, refletida no ditado popular “quem casa quer casa”. Apesar disso, houve questionamentos legítimos sobre a inclusão da totalidade das famílias conviventes secundárias como uma parcela do déficit habitacional. Na impossibilidade de dispor de dados empíricos que pudessem balizar os nossos pressupostos teóricos, essa opção se baseava na expectativa de que a

6 Para detalhes sobre as propostas de ajustes finos com o objetivo de aprimorar o cálculo das necessidades habitacionais, consultar o último volume da série, publicado pela Fundação João Pinheiro em 2006.

Page 121: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

121

o desafio da mensuração

maior parte delas realmente não se encontraria nessa situação por vontade própria.Oportunamente, no início de 2006, uma parceria entre o IBGE e a Universida-

de Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) possibilitou a realização de um “survey” sobre as necessidades habitacionais em Campos dos Goytacazes/RJ. Essa pesquisa de campo deu ênfase especial às famílias conviventes secundárias, e foi possível testar as hipóteses adotadas pela metodologia da FJP pela primeira vez em uma cidade de porte médio.

De forma sucinta pode-se afirmar que 36% das famílias conviventes secundárias não podem ser consideradas déficit habitacional, uma vez que não desejam instituir unidade residencial exclusiva. A maior parcela, portanto, 64%, não tinha opção, na época da pesquisa, de constituir domicílio individual. Esses dados reforçam, assim, a necessidade de se obterem informações de âmbito nacional sobre a coabitação familiar. Nesse sentido, é fundamental que, sejam feitos esforços junto aos órgãos competentes, especialmente o IBGE e particularmente no caso da PNAD, para a inclusão nos ins-trumentos de pesquisa, de pelo menos uma questão específica sobre o assunto.

Em relação às favelas, a postura da Fundação João Pinheiro/Ministério das Cida-des – em oposição direta aos pressupostos da abordagem da FGV-SP/Sinduscon/SP – reafirma metodologicamente um lema paradigmático levantado há três décadas pelo então prefeito da cidade de Recife, Gustavo Krauser, um dos precursores na urbanização de favelas. Eleito por um partido conservador – causando um misto de espanto, ciúme e simpatia envergonhada da “esquerda” pernambucana –, Krauser afirmava em alto e bom som que “a favela não é um problema, é uma solução!” para o enfrentamento da questão habitacional de um grande contingente de famílias pobres das metrópoles brasileiras. Nesta linha de pensamento, parte-se do pressuposto que a forma de integração paulatina das favelas na malha urbana das grandes cidades passa pela intervenção concomitante e coordenada dos três níveis de governo, atra-vés de diversas políticas entrelaçadas – recorrentes e complementares – capazes de desencadearem um processo de transformação incremental e permanente desse tipo de habitat popular.

5. Anexo metodológico

Notas metodológicas

Inadequação dos domicíliosAs moradias inadequadas são aquelas que não proporcionam a seus moradores

condições desejáveis de habitabilidade, não implicando, contudo, necessidade de cons-trução de novas unidades. Pelo conceito adotado são passíveis de serem identificadas somente as localizadas em áreas urbanas, não sendo contempladas as áreas rurais que apresentam formas diferenciadas de adequação não captadas pelos dados utilizados. Tomou-se o cuidado de excluir do estoque a ser analisado os domicílios inseridos em alguma das categorias do déficit habitacional. Ao contrário deste, os critérios adotados para a inadequação habitacional não são mutuamente exclusivos, e, portanto, os re-sultados não podem ser somados, sob risco de haver múltipla contagem (uma mesma moradia pode ser simultaneamente inadequada segundo vários critérios).

Page 122: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

122

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Como inadequados, são classificados os domicílios com carência de infra-estrutu-ra, com adensamento excessivo de moradores, com problemas de natureza fundiária, sem unidade sanitária domiciliar exclusiva ou com alto grau de depreciação. Assim como no caso do déficit habitacional, esta última parcela não pode ser trabalhada devido a dificuldades para a sua correta compreensão.

Quadro-resumo da metodologia de cálculo do déficit e da inadequação dos domicílios – 2005

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI).

Principais conceitos e indicadores

Déficit habitacional: noção mais imediata e intuitiva de necessidade de construção de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação detectados em certo momento.

Inadequação dos domicílios: reflete problemas na qualidade de vida dos mora-dores. Não está relacionada ao dimensionamento do estoque de habitações e sim a especificidades internas do mesmo.

Domicílio particular permanente: local de moradia estruturalmente separado e independente, destinado a habitação de uma pessoa ou grupo de pessoas cujo rela-cionamento é ditado por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência. É localizado em imóvel destinado a moradia e classificado como casa, apartamento ou cômodo.

Domicílios improvisados: locais construídos sem fins residenciais que servem como moradia, tais como barracas, viadutos, prédios em construção, carros etc.

Domicílios rústicos: são aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada, o que resulta em desconforto e risco de contaminação por doenças, em decorrência das suas condições de insalubridade.

Famílias conviventes ou Famílias conviventes secundárias: são constituídas por, no mínimo, duas pessoas ligadas por laço de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência e que residem no mesmo domicílio com outra família deno-minada principal.

Page 123: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

123

o desafio da mensuração

Cômodos: domicílios particulares compostos por um ou mais aposentos locali-zados em casa de cômodo, cortiço, cabeça-de-porco etc.

Coabitação familiar: compreende a soma das famílias conviventes secundárias e das que vivem em domicílios localizados em cômodos – exceto os cedidos por empregador.

Ônus excessivo com aluguel: corresponde ao número de famílias urbanas, com renda familiar de até 3 salários mínimos, que moram em casa ou apartamento e que despendem mais de 30% de sua renda com aluguel.

Densidade excessiva de moradores por dormitório: quando o domicílio apre-senta um número médio de moradores superior a 3 por dormitório.

Dormitório: corresponde ao total de cômodos que servem, em caráter permanen-te, de dormitório para os moradores do domicílio. Nele incluem-se aqueles que assim são utilizados em função de não haver acomodação adequada para essa finalidade.

Carência de serviços de infra-estrutura – Domicílios que não dispõem de ao menos um dos seguintes serviços básicos: iluminação elétrica, rede geral de abas-tecimento de água com canalização interna, rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta de lixo.

Inadequação fundiária urbana: situação onde pelo menos um dos moradores do domicílio declara ter a propriedade da moradia, mas informa não possuir a proprieda-de, total ou parcial, do terreno ou a fração ideal de terreno (no caso de apartamento) em que ela se localiza.

Inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva: domicílio que não dispõe de banheiro ou sanitário de uso exclusivo.

Domicílios vagos: unidades domiciliares que efetivamente se encontravam deso-cupadas na data de referência da coleta dos dados.

Aglomerado subnormal: segundo definição do IBGE, é o conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.) ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostos, em geral, de forma desordenada e densa, e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais.

Bibliografia

ALVES, José Eustáquio D.; CAVENAGHI, Suzana M. Déficit Habitacional, famílias conviventes e condições de moradia. In II Encontro Nacional de Produtores e Usu-ários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais. Rio de Janeiro, 2006.

AZEVEDO, Sergio. “A crise da Política Habitacional: dilemas e perspectivas para o final dos anos 90”. In RIBEIRO, Luiz Cesar de Q.; AZEVEDO, Sergio de (orgs.). A questão da moradia nas grandes cidades: da política habitacional à reforma urbana. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

AZEVEDO, Sergio de. A questão da moradia no Brasil: necessidades habitacionais,políticas e tendências, In Fórum Internacional de habitação, Recife-PE, 2000.BRANDÃO, Arnaldo Barbosa. “Problemas de teoria e metodologia na questão da

habitação”. Projeto – arquitetura, planejamento, desenho industrial, construção. São Paulo, nº 66, pp. 102-108, ago. 1984.

Page 124: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

124

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

CARDOSO, Adauto Lúcio. Meio ambiente e moradia: discutindo o déficit habitacional a partir do caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. In Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 9, Caxambu, 1998,.

______. População e Meio Ambiente. [Caxambu, s. n., 1998].CARDOSO, Adauto Lúcio; RIBEIRO, Luiz Cesar de Q. (coord.). A municipalização

das políticas habitacionais: uma avaliação das experiências recentes (1993–1996). Rio de Janeiro: IPPUR, UFRJ/FASE, 1999.

CARDOSO, Adauto Lúcio. Notas metodológicas sobre o déficit habitacional. Rio de Janeiro, IPPUR, UFRJ, 2001.

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Departamento de Habitação. Necessidades Habi-tacionais, Rio de Janeiro, 1992.

FGV/GVCONSULT & SINDUSCON/SP. Déficit habitacional brasileiro e 26ª Sonda-gem Nacional da Industria da Construção Civil. São Paulo, fevereiro de 2006.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estudos Políticos e Sociais. Déficit habi-tacional no Brasil. Convênio PNUD/Secretaria de Política Urbana (Ministério do Planejamento), Belo Horizonte, 1995.

______. Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil 2000. Con-vênio PNUD/Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano (Presidência da República), Belo Horizonte, 2001.

______. Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil, municípios selecionados e microrregiões geográficas. Convênio PNUD/Ministério das Cidades, Belo Horizonte, 2005.

______. Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil 2005. Con-vênio PNUD/Ministério das Cidades, Belo Horizonte, 2006.

GARCIA, Fernando; CASTELO, Ana Maria. “O déficit habitacional cresce apesar da ampliação do crédito”. Conjuntura da Construção, ano 4, n. 1, p. 8-11, março de 2006.

IBGE (RJ). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – 2004: microdados. [Rio de Janeiro, 2005]. CD-ROM.

IBGE (RJ). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – 2005, microdados. [Rio de Janeiro, 2006], CD-ROM.

REIS, Fabio W. “Consolidação democrática e construção do Estado: notas introdu-tórias e uma tese”. In REIS, Fabio W., O’DONNEL, G. (orgs.). A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo, Vértice, 1988, pp. 13-40.

SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Page 125: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

125

Uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacionalMaria Paula Ferreira (Fundação Seade e consultora do CEM/Cebrap)Eduardo C.L. Marques (DCP/USP e diretor do CEM/Cebrap)Edgard R. Fusaro (Dieese e consultor do CEM/Cebrap)Elaine G. Minuci (Fundação Seade)

Este artigo apresenta um método para estimação de população moradora em as-sentamentos precários baseado na análise estatística de dados dos recenseamentos do IBGE por setores censitários. A produção de estimativas de habitantes de solu-ções habitacionais precárias é um assunto de grande importância para a produção de políticas públicas que permitam o adequado enfrentamento da questão habitacional. As dificuldades conceituais que cercam o tema, assim como a inexistência de dados nacionais comparáveis que apontem diretamente para esse fenômeno, estão entre os desafios que têm se apresentado para estudiosos, técnicos e gestores públicos. A questão se coloca centralmente para as políticas federais, que têm tido que operar em um am-biente marcado por razoável desconhecimento do tamanho do problema, assim como por sua variabilidade ao longo das diversas situações urbanas brasileiras. O problema, entretanto, se coloca também fortemente para os governos locais, visto que a grande maioria dos municípios brasileiros não dispõe de estimativas e cartografias intramuni-cipais de assentamentos precários. Na verdade, a possibilidade de se constituir no país um conjunto de informações ao mesmo tempo precisas e abrangentes sobre o problema depende tanto do governo federal quanto dos locais, cabendo ao primeiro a constru-ção de incentivos e a padronização conceitual para que os governos locais constituam informações desagregadas e de detalhe, assim como as atualizem periodicamente.

Ao longo das últimas décadas, diversos trabalhos têm tentado desenvolver saídas para o problema utilizando ferramentas de geoprocessamento, fotos aéreas, tratamen-to de imagens e análise de dados. A combinação de diversos métodos tem se mostrado frutífera e permitido avançar, apontando, para cada situação específica, ferramentas apropriadas. O presente trabalho pretende propor uma metodologia que auxilie na produção de estimativas de âmbito nacional e que possa representar, ao mesmo tempo, um primeiro momento de delimitação do fenômeno espacialmente, para checagem pelos governos locais através de vistorias de campo.

O artigo se divide em quatro partes, além desta introdução e da conclusão. Na primeira seção, apresentamos e delimitamos conceitualmente a questão da mensu-ração da população de favelas e loteamentos clandestinos e irregulares. A segunda seção apresenta a metodologia e o universo pesquisado. Na terceira, estão incluídas as técnicas e variáveis utilizadas, e na quarta e última seção, as características gerais dos resultados alcançados. Ao final, sumarizamos os principais avanços e resultados.

1. A questão da estimação de moradores de habitações precárias

Esta seção não pretende discutir detalhadamente a utilização de informações nas po-líticas locais, as limitações dos dados existentes sobre assentamentos precários, as várias soluções já utilizadas para a estimação de moradores de assentamentos precários ou o

Page 126: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

126

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

déficit habitacional. A maior parte dos elementos abordados aqui é de conhecimento e já foi tratada por autores como TASCHNER (2000); FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO/MI-NISTÉRIO DAS CIDADES (2005); OLIVEIRA (2006) e MARQUES, TORRES E SARAI-VA (2003). Entretanto, consideramos importante situar o leitor com relação às questões de maneira a melhor compreender a metodologia apresentada no restante do artigo.

A existência de informações confiáveis e detalhadas é uma necessidade evidente das políticas públicas e que dispensa uma discussão mais aprofundada aqui, sendo o leitor remetido para trabalhos como TORRES (2005) e TORRES E MARQUES (2002). Entretanto, muito freqüentemente, as políticas têm que operar em ambientes de grande desconhecimento quanto aos fenômenos envolvidos, não apenas no que diz respeito às causalidades associadas aos problemas e às soluções propostas, mas também quanto à própria mensuração e localização do objeto da política. Essa é a situação das políticas que envolvem as diversas soluções habitacionais precárias das quais a população de baixa renda com freqüência lança mão pela baixa oferta de programas públicos e por não dispor dos recursos necessários para acessar soluções via mercado. O problema é em parte devido às dificuldades de definição inerentes ao fenômeno, mas se associa principalmente à escassez de dados abrangentes, compa-ráveis e de baixo custo, em especial em nível nacional.

No que diz respeito aos problemas de definição, a questão da habitação precária en-volve diversas situações distintas como favelas, loteamentos clandestinos e irregulares e cortiços, marcados também por intensa heterogeneidade interna (VALLADARES E PRETECEILLE, 2000; PRETECEILLE E VALLADARES, 1999; TASCHNER, 2002; SA-RAIVA E MARQUES, 2005). Mesmo os conjuntos habitacionais construídos pelo po-der público em décadas recentes por vezes apresentam avançado estado de degradação, solicitando atenção por parte de políticas de recuperação da precariedade habitacional e urbana. A especificação do tipo de problema não representa de maneira alguma uma mera curiosidade, visto que cada situação pede um tipo de intervenção específica, inclu-sive para tipos diferentes de favelas (BUENO, 2000). Sem entrarmos nos meandros das diferenças entre essas modalidades de moradia precária, podemos dizer que na maior parte das vezes a determinação do tipo de problema presente depende de vistorias de campo e, ao menos no caso da questão fundiária, de acesso a documentos.

Esse nível de detalhes, em um país com a abrangência territorial e a diversidade de situações como o Brasil, só pode ser obtido pelos governos locais de maneira des-centralizada, em especial se pensarmos que essas informações devem ser atualizadas periodicamente. Na prática isso não acontece e a grande maioria dos governos locais não dispõe de informações desse tipo, sejam elas administrativas ou de pesquisa local, mesmo em algumas de nossas maiores cidades. Quando essas informações existem, são de atualização esporádica e seguem metodologias adaptadas ou com abrangência territorial parcial. Praticamente inexistem bases cartográficas digitais de boa quali-dade, e quando alguma coisa existe nessa direção envolve produtos contratados com terceiros que quase nunca foram incorporados às práticas da gestão das políticas. Na verdade, a questão somente será equacionada adequadamente quando forem desen-volvidas rotinas locais de obtenção, utilização e atualização desse tipo de informação. O problema envolve, portanto, um esforço não apenas de obtenção de dados, mas de construção institucional nos governos locais. Nesse sentido, o papel do governo fede-

Page 127: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

127

ral é central pela sua capacidade de indução e pela necessidade de padronização dos elementos envolvidos, de forma a que sejam constituídas informações comparáveis.

Esse conjunto de informações poderia ser produzido pelo IBGE, mas as dificuldades nessa direção também são grandes. Embora até recenseamentos recentes houvesse questões sobre a precariedade do material das construções, a disseminação da alvenaria tornou a informação pouco útil e pouco discriminadora de situações, e a pergunta acabou sendo retirada. A existência de questões relacionadas com a propriedade tam-pouco auxilia, e a maior parte dos moradores de favela se autodeclara proprietário (TASCHNER, 2000). A informação relativa aos setores subnormais é usualmente a mais utilizada e efetivamente é a mais adequada, embora envolva uma série de limitações.

A definição de subnormal se refere a uma classificação de setores censitários e não a pessoas ou a domicílios. O IBGE define esses setores como marcados por precarie-dade habitacional e de infra-estrutura, alta densidade e ocupação de terrenos alheios. Entretanto, o estabelecimento dos setores que serão considerados como subnormais é prévio à pesquisa, sendo parte do desenho do trabalho de campo e tendo por objetivo delimitar os perímetros das áreas de coleta mais difícil de maneira a permitir uma remuneração mais alta aos recenseadores. Essa delimitação é realizada a partir das informações disponíveis localmente para a organização do trabalho e se baseia nas informações do último recenseamento (de dez anos atrás) ou em dados das prefeituras ou governos estaduais. A coleta dessas informações mais detalhadas é completamente descentralizada e tende a variar muito segundo a maior integração dos escritórios locais do IBGE com o poder público municipal e de acordo com a disponibilidade de informações sistematizadas por esse último a respeito do fenômeno. Além disso, dado que representa a área de pesquisa sob responsabilidade de um recenseador, tende a ser sempre superior a 50 domicílios (embora haja muitas exceções), o que significa que núcleos de moradia precária de pequeno porte tendem a ser incluídos em áreas urbanas mais amplas e terem os seus indicadores “diluídos” em médias socialmente heterogêneas. O resultado de todas essas características é uma tendência à subestima-ção, seja pelo sub-registro de núcleos pequenos, seja pela desatualização dos polígonos de áreas precárias, em especial em regiões com crescimento demográfico intenso.

Apesar de todos esses problemas, essa é a única informação coletada nacionalmen-te de forma padronizada e com metodologia confiável, o que a torna praticamente a única fonte de baixo custo e grande abrangência territorial de que dispomos para trabalhar. Na verdade, por uma questão de justiça, é importante assinalar que essa informação nunca foi disponibilizada pelo Ibge como proxy (medida indireta) de favelas ou assentamentos precários de nenhum tipo, tendo ganhado esse status ao ser apropriada pela comunidade de políticas de habitação como uma das possíveis soluções para a ausência de dados abrangentes sobre o fenômeno, por vezes sem os cuidados de método necessários.

Quando os governos locais dispõem de cartografias eletrônicas de favelas e lo-teamentos, pode-se lançar mão de estratégias como a utilização de ferramentas de geoprocessamento para superpor as cartografias administrativas às censitárias, de forma a produzir estimativas populacionais e caracterizações sociais dos moradores (TORRES et al., 2003; CEM, 2003; SARAIVA E MARQUES, 2005). Por outro lado, quando existem fotos aéreas recentes (ou mesmo imagens de satélite), pesquisadores

Page 128: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

128

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

e gestores públicos têm lançado mão da sua interpretação, assim como da investigação da variação das densidades demográficas, para a construção de estimativas (mestrado USP). Em ambos os casos, dúvidas surgidas quando da realização do trabalho car-tográfico ou da análise das imagens devem ser checadas diretamente em campo em momento posterior. Ambos os métodos pressupõem a existência de informações que só existem em alguns lugares e, embora possam ser muito importantes em estudos locais, não auxiliam muito na construção de estimativas abrangentes dos fenômenos em nível nacional. A obtenção de bases cartográficas ou fotos aéreas para o conjunto das áreas urbanas brasileiras representaria um custo e uma dificuldade operacional muito elevados, sem falarmos da realização de vistorias de maneira centralizada.

O desafio que se coloca, portanto, envolve a construção de estimativas que sejam ao mesmo tempo confiáveis e padronizadas e viáveis financeira e operacionalmente. De maneira a avançar nessa direção, partimos da única informação disponível nacional-mente de forma padronizada – os setores subnormais. O princípio da metodologia é a idéia de que as características sociais da população não classificada como moradora de setores subnormais (e incluída em setores não especiais), mas que habita assentamentos precários, devem ser similares às dos indivíduos e famílias de setores classificados como subnormais. O método compara, portanto, os conteúdos sociais médios dos setores subnormais com os dos não especiais e discrimina os setores que são similares aos subnormais, embora não tenham sido classificados como tal. Para o desenvolvimento da comparação e separação dos setores, utilizamos técnicas de análise discriminante. Considerando a grande variabilidade das situações urbanas no país, optamos por não realizar uma única comparação nacional, mas comparações internas a regiões especí-ficas. Portanto, as características dos setores classificados em cada região podem variar entre si, de forma compatível com a variação dos subnormais respectivos.

Algumas limitações do método se impõem e precisam ser apresentadas. Em pri-meiro lugar, como é o caso com toda classificação de setores censitários, não podemos desagregar a informação para escalas inferiores aos setores. Em locais onde o tecido urbano é marcado por grande heterogeneidade não capturada no momento de de-finição da geometria dos setores, apenas o trabalho de campo poderá aprimorar a informação. Em segundo lugar, a metodologia é sensível apenas às informações do Censo Demográfico, não incluindo dados urbanísticos ou relacionados ao padrão de ocupação do território. Além disso, esse tipo de método indica a existência preca-riedade sócio-habitacional mas não especifica que tipo de problema está envolvido. Essa informação, novamente, só poderá ser obtida através de vistorias de campo e análise de documentação.

Assim, o método delimita o que denominamos genericamente de assentamentos precários para designar favelas, loteamentos clandestinos e irregulares. As informa-ções devem se complementadas através de trabalhos de campo dos governos locais, mas os locais a vistoriar já se encontram delimitados pelo método a partir de critérios comparáveis nacional e regionalmente.

Por todas as razões acima listadas, o método apresentado nas próximas seções não resulta em um produto pronto e acabado, mas em um insumo para o processo de formação de capacidades técnicas no setor habitacional, tanto nacionalmente quanto nos governos locais.

Page 129: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

129

2. Metodologia

O universo da análise constituiu-se no conjunto dos setores censitários classificados como Não Especiais ou Aglomerados Subnormais1 localizados em áreas urbanas ou rural de extensão urbana,2 segundo o Censo Demográfico 2000, em 554 municípios do Brasil. Em 2000, esses municípios possuíam 88 milhões de pessoas, aproximadamente 52% da população brasileira. Os setores censitários totalizavam 47,3% de todos os 215.811 existentes, sendo que Aglomerados Subnormais localizados nesses municípios representavam 98% do total desse tipo de setor, conforme Tabela 1, a seguir.

Tabela 1Número de setores censitários por situação e tipo. Brasil – 2000

Situação do setor censitário

Tipo do setor censitário

TotalNão Especial Aglomerado

Subnormal Outros

Brasil Estudo Brasil Estudo Brasil Estudo Brasil Estudo

Urbana 148.806 93.462 7.766 7.592 843 - 157.415 101.054

Rural extensão urbana

1.308 979 105 104 10 - 1.423 1.083

Rural 56.456 - 0 - 517 - 56.973 -

Total 206.570 94.441 7.871 7.696 1.370 - 215.811 102.137

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2000; elaboração dos autores.

Dada a diversidade dos municípios em termos de porte populacional, localização geográfica e características socioeconômicas, optou-se por realizar análises separadas segundo regiões do Brasil. Para tanto, os municípios foram agrupados a partir dos seguintes critérios:

• Os agrupamentos de municípios deveriam possuir no mínimo 20 setores censitários do tipo Aglomerados Subnormais;• As regiões metropolitanas foram consideradas agrupamentos de municípios, exceto quan-do o número de Aglomerados Subnormais era considerado insuficiente para a análise;• Os municípios foram agrupados respeitando-se a Unidade da Federação onde se lo-calizavam e a região.

Dada a unidade de análise – setor censitário urbano ou rural de extensão urbana do tipo Não Especial (NE) ou Aglomerado Subnormal (AS) – buscou-se identificar, entre

1 O setor especial denominado de Aglomerado Subnormal é definido como o conjunto constituído por um mínimo de 51 domicílios, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostos, em geral, de forma desordenada e densa, e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais (Fundação IBGE, 2003)2 Os tipos de áreas – urbana ou rural – foram estabelecidas segundo situação definida por lei municipal em vigor em 1o de agosto de 2000.

Page 130: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

130

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

aqueles classificados como NE, os que mais se assemelhavam aos do tipo subnormal, segundo variáveis socioeconômicas, demográficas e de características habitacionais. Esse subconjunto de setores consistirá nos assentamentos precários.

A Tabela 2 apresenta a regionalização adotada na análise.

Tabela 2Número de setores censitários, segundo tipo do setor censitário, por região. Brasil - 2000

RegiãoTipo de Setor Censitário

TotalNão Especial

Aglomerado Subnormal

Total 94.441 7.696 102.137

Região Norte 4.071 718 4.789

RM de Belém 1.109 512 1.621

Demais Municípios da Região Norte 2.962 206 3.168

Região Nordeste 14.900 1.292 16.192

RM de Maceió 720 63 783

RM de Salvador 2.832 240 3.072

RM de Fortaleza 2.434 410 2.844

RM de São Luiz 815 66 881

RM de Recife 2.483 201 2.684

Demais Municípios Nordeste-Litoral 2.529 126 2.655

Demais Municípios Nordeste-Interior 3.087 186 3.273

Regiões Centro-Oeste e Sudeste 60.900 5.084 65.984

Distrito Federal e RM de Goiânia 3.991 66 4.057

RM de Belo Horizonte e Colar Metropolitano 4.572 496 5.068

RM do Rio de Janeiro 12.903 1.650 14.553

RM de São Paulo 19.176 2.053 21.229

RM de Campinas 2.756 205 2.961

RM da Baixada Santista 1.911 208 2.119

Demais Municípios de Minas Gerais e Centro-Oeste 5.561 85 5.646

Demais Municípios do Rio de Janeiro e Estado do Espírito Santo 3.505 231 3.736

Demais Municípios do Estado de São Paulo 6.525 90 6.615

Região Sul 14.570 602 15.172

RM de Curitiba 2.777 262 3.039

RM de Porto Alegre 4.665 282 4.947

Demais Municípios da Região Sul 7.128 58 7.186

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2000; elaboração dos autores.

A identificação do conjunto de setores similares aos Aglomerados Subnormais, segundo o conjunto de indicadores selecionados, foi realizada por meio de uma análise discriminante. Essa técnica consiste em determinar funções de classificação para os

Page 131: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

131

dois tipos de setores – NE e AS – baseadas nas variáveis selecionadas, que minimizam a probabilidade de se classificar erradamente um setor NE como AS e vice-versa. Por meio dessa técnica é possível estabelecer critérios para classificar um setor censitário NE como AS, através das condições de vida da sua população residente.

Matematicamente, tais funções correspondem a somas ponderadas do tipo: a (mo-radia) + b(instrução) + c(emprego) + d(renda) + k, em que a, b, c e d traduzem a im-portância relativa das variáveis para a classificação dos setores (PEREZ et alii, 1994).

Para cada região realizou-se uma Análise Discriminante Stepwise para identificar os assentamentos precários. Os assentamentos precários form definidos como: setores censitários do tipo não especial classificados como subnormais pela função discrimi-nante. Como medida de ajuste do modelo foi utilizada a porcentagem de aglomerados subnormais classificada corretamente pelas funções de classificação. Para a geração das funções de classificação foram excluídos os setores censitários com menos de 50 domicílios particulares permanentes. Posteriormente, esses setores foram classificados por meio dessas funções.

As variáveis utilizadas no modelo estão apresentadas no Quadro 1 a seguir.

Quadro 1Relação das variáveis utilizadas no estudo

Dimensão Variável

Infra-estrutura

Porcentagem de domicílios sem coleta de lixoPorcentagem de domicílios não ligação à rede de abastecimento de águaPorcentagem de domicílios sem banheiros ou sanitáriosPorcentagem de domicílios sem ligação a rede de esgoto ou fossa sépticaPorcentagem de domicílios do tipo cômodoPorcentagem de domicílios – outra forma de posse da moradiaPorcentagem de domicílios – outra forma de posse do terrenoNúmero de banheiros por domicílio

Renda e escolaridade do

responsável pelo domicílio

Porcentagem de responsáveis por domicílios não alfabetizadosPorcentagem de responsáveis por domicílios com menos de 30 anos não alfabetizadosPorcentagem de responsáveis por domicílios com renda de até 3 salários mínimosPorcentagem de responsáveis por domicílios com menos de 8 anos de estudoAnos médios de estudos do responsável pelo domicílioRenda média do responsável pelo domicílio

Aspectos demográficos

Número de domicílios particulares permanentes no setor censitárioNúmero de domicílios improvisados no setor censitárioNúmero de pessoas residentes no setor censitárioPorcentagem de responsáveis por domicílios com menos de 30 anosNúmero médio de pessoas por domicílio

Nota: Variáveis calculadas a partir da informação do domicílio particular permanente.

Page 132: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

132

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

3. ResultadosA aplicação do método resultou na classificação de assentamentos precários para

cada uma das 21 regiões e para o total das áreas estudadas. A metodologia utilizada preservou a possibilidade de o fenômeno estar relacionado com processos diversos em diferentes regiões. Assim, foram gerados 21 modelos, sendo que para a Região Metropolitana de São Luiz foram utilizadas seis variáveis, 8 variáveis para o Distrito Federal e a Região Metropolitana de Goiânia, 9 para a Região Metropolitana de Maceió e municípios da Região Norte, 10 para os municípios pertencentes à Região Nordeste–Litoral, 11 para a Região Metropolitana de Belém, Salvador e Região Sul, 12 na Região Metropolitana de Recife, 13 nas de Porto Alegre e Estado de Rio de Janeiro e Espírito Santo, 14 em Campinas e Minas Gerais, 15 na Baixada Santista, Nordeste–Interior, Curitiba e Rio de Janeiro, 16 no Estado de São Paulo e Região Metropolitana de Belo Horizonte, 17 em Fortaleza e 18 para a Região Metropolitana de São Paulo.

Tabela 3Correlação canônica e porcentagem da variância explicada pelo modelo (R2 canônico)

Região Correlação canônica

R2 canônico (%)

Região Norte

RM de Belém 0,549 30,1

Demais Municípios da Região Norte 0,486 23,6

Região Nordeste

RM de Maceió 0,668 44,6

RM de Salvador 0,442 19,5

RM de Fortaleza 0,486 23,6

RM de São Luiz 0,347 12,0

RM de Recife 0,508 25,8

Demais Municípios Nordeste-Litoral 0,433 18,7

Demais Municípios Nordeste-Interior 0,514 26,4

Regiões Centro-Oeste e Sudeste

Distrito Federal e RM de Goiânia 0,502 25,2

RM de Belo Horizonte e Colar Metropolitano 0,594 35,3

RM do Rio de Janeiro 0,612 37,5

RM de São Paulo 0,666 44,4

RM de Campinas 0,667 44,5

RM da Baixada Santista 0,748 56,0

Demais Municípios de Minas Gerais e Centro-Oeste 0,389 15,1

Demais Municípios do Rio de Janeiro e Estado do Espírito Santo 0,543 29,5

Demais Municípios do Estado de São Paulo 0,579 33,5

Região Sul

RM de Curitiba 0,597 35,6

RM de Porto Alegre 0,610 37,2

Demais Municípios da Região Sul 0,368 13,5

Page 133: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

133

Uma outra forma de verificação do ajuste do modelo é o cálculo da porcentagem de classificação correta no modelo das categorias de análise (NE a AS). No presente caso, exceto para as regiões de Belém (75%), São Luiz (78%), Fortaleza (83%) e Salva-dor (84%), o percentual de setores classificados corretamente pelo modelo situou-se acima de 88%. No entanto, dado o objetivo do estudo, a identificação de setores que se assemelham aos Aglomerados Subnormais, calculou-se o porcentual de Aglomerados Subnormais classificados corretamente pelo modelo (Tabela 4).

Esses porcentuais mostram o melhor ajuste do modelo nas áreas metropolitanas e nas que concentram os grandes municípios. A exceção é a região formada pelo Distrito Federal e a Região Metropolitana de Goiânia, onde apenas 52,0% dos setores subnormais foram classificados como tais pelo modelo.

Já a porcentagem de setores Não Especiais classificados como Aglomerados Sub-normais pela análise discriminante apresenta uma maior variabilidade, como, por exemplo, a Região Metropolitana de Belo Horizonte (81,3% de classificação correta de AS), que apresentou 10,4% de NE classificados como AS, ou a de Porto Alegre (80,5% de classificação correta de AS), que apresentou 5,6% de setores nessa situação (Tabela 4).

Page 134: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

134

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Tabela 4Porcentagem de classificação correta dos Aglomerados Subnormais pelo Modelo de Análise Discriminante

Região

Classificação do modelo

% de setores do tipo NE classificados

como AS pelo modelo (base NE)

% de setores do tipo AS classificados como AS pelo modelo (base AS)

Região Norte

RM de Belém 26,3 76,8

Demais Municípios da Região Norte 13,3 74,6

Região Nordeste

RM de Maceió 5,2 77,6

RM de Salvador 15,4 75,7

RM de Fortaleza 16,1 73,4

RM de São Luiz 21,0 64,6

RM de Recife 10,2 65,3

Demais Municípios Nordeste-Litoral 9,0 59,5

Demais Municípios Nordeste-Interior 7,5 71,4

Regiões Centro-Oeste e Sudeste

Distrito Federal e RM de Goiânia 1,6 52,0

RM de Belo Horizonte e Colar Metropolitano 10,4 81,3

RM do Rio de Janeiro 10,1 80,1

RM de São Paulo 5,7 77,8

RM de Campinas 3,9 80,1

RM da Baixada Santista 4,3 76,6

Demais Municípios de Minas Gerais e Centro-Oeste 4,8 73,5

Demais Municípios do Rio de Janeiro e Estado do Espírito Santo 3,5 57,7

Demais Municípios do Estado de São Paulo 1,3 71,1

Região Sul

RM de Curitiba 7,0 77,7

RM de Porto Alegre 5,6 80,5

Sul 3,4 75,4

Os setores Não Especiais classificados como Aglomerados Subnormais pelo mo-delo de análise discriminante foram considerados como assentamentos precários. No total de 102.137 setores censitários que fizeram parte do estudo 6.880 foram classifi-cados como assentamentos precários. A Tabela 5 apresenta a distribuição dos setores segundo as regiões.

Page 135: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

135

Tabela 5Tipo de setor censitário por região. Brasil – 2000

Região

Tipo de Setor Censitário

Aglomerado Subnormal

Assent. Precário

Não Especial

Sem Domicílio Particular

Permanente

Sem Informação Total

Total 7696 6880 86794 441 326 102137

Região Norte 718 683 3328 48 12 4789

RM de Belém 512 287 811 2 9 1621

Demais Municípios 206 396 2517 46 3 3168

Região Nordeste 1292 1764 13083 25 28 16192

RM de Maceió 63 38 680 1 1 783

RM de Salvador 240 441 2380 6 5 3072

RM de Fortaleza 410 391 2028 8 7 2844

RM de São Luiz 66 173 640 2 0 881

RM de Recife 201 258 2220 2 3 2684

Municípios Nordeste-Litoral 126 227 2290 4 8 2655

Municípios Nordeste-Interior 186 236 2845 2 4 3273

Regiões Centro Oeste e Sudeste 5084 3672 56671 323 234 65984

Distrito Federal e RM de Goiânia 66 63 3784 119 25 4057

RM de BH e Colar Metropolitano 496 483 4072 8 9 5068

RM do Rio de Janeiro 1650 1314 11517 38 34 14553

RM de São Paulo 2053 1099 17966 48 63 21229

RM de Campinas 205 127 2593 13 23 2961

RM da Baixada Santista 208 78 1805 20 8 2119

Demais Municípios de MG e CO 85 281 5243 15 22 5646

Demais Municípios do RJ e ES 231 134 3312 40 19 3736

Demais Municípios de SP 90 93 6379 22 31 6615

Região Sul 602 761 13712 45 52 15172

RM de Curitiba 262 198 2563 13 3 3039

RM de Porto Alegre 282 268 4367 12 18 4947

Sul 58 295 6782 20 31 7186

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2000; elaboração dos autores.

Page 136: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

136

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Como resultado, obtivemos, portanto, que em 2000 14% da população dos 554 mu-nicípios em estudo residiam em setores classificados como Aglomerados Subnormais ou Assentamentos Precários, totalizando aproximadamente 12 milhões de pessoas. Na região Norte, 30% residiam nesse tipo de setor, 17% no Nordeste, 13% nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e 9% na região Sul (Figura 1).

Figura 1Distribuição da população segundo tipo de setor censitário. Brasil 2000

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2000; elaboração dos autores.

A Tabela 6 detalha a informação, apresentando a proporção da população residente em domicílios particulares permanentes por tipo de setor censitário em cada uma das regiões utilizadas no estudo. Como podemos ver, a proporção de moradores que habita áreas urbanas precárias varia muito entre regiões, apresenetando relevância muito diferenciada em nível nacional. Entretanto, as proporções chegam nas grandes capitais do Norte e do Nordeste a 51% (Belém), 28% (São Luiz), 25% (Fortaleza) e 24% (Salvador) e são muito elevadas mesmo em capitais do Sudeste com grandes contingentes populacionais, como Rio de Janeiro (21%) e São Paulo (15%).

6.361.84357.132

6.028.778

75.419.046

Não Especial

Aglomerado Subnormal

Assentamento Precário

Page 137: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

137

Tabela 6Proporção de pessoas residentes em domicílios particulares permanentes por tipo de setor censitário e região

Região

Tipo de setor censitário

Aglom. Subnormal

Assent. Precários

Não Especial Sem inf. Total

% Subnormal + Ass. Prec.

Total 7,2 6,9 85,8 0,1 100,0 14,1

Região Norte 15,8 13,8 70,3 0,1 100,0 29,7

RM de Belém 33,0 18,3 48,5 0,2 100,0 51,3 Demais Municípios da Região Norte 5,9 11,3 82,8 0,0 100,0 17,2

Região Nordeste 7,2 10,4 82,4 0,1 100,0 17,6

RM de Maceió 4,5 4,0 91,5 0,1 100,0 8,4

RM de Salvador 8,6 15,4 76,0 0,0 100,0 24,0

RM de Fortaleza 12,7 12,8 74,5 0,1 100,0 25,4

RM de São Luiz 8,1 19,8 72,1 - 100,0 27,9

RM de Recife 7,0 9,7 83,3 0,0 100,0 16,7 Demais Municípios do Nordeste — Litoral 4,4 7,9 87,7 0,1 100,0 12,2

Demais Municípios do Nordeste — Interior 4,4 6,1 89,5 0,0 100,0 10,5

Regiões Centro-Oeste e Sudeste 7,4 5,6 86,9 0,1 100,0 13,0

Distrito Federal e RM de Goiânia 1,3 1,5 97,0 0,2 100,0 2,8 RM de Belo Horizonte e Colar Metropolitano 9,2 9,1 81,7 0,0 100,0 18,3

RM do Rio de Janeiro 11,6 9,4 78,9 0,1 100,0 21,0

RM de São Paulo 9,5 5,5 85,0 0,0 100,0 15,0

RM de Campinas 6,2 3,7 89,9 0,3 100,0 9,9

RM da Baixada Santista 13,0 5,2 81,8 0,1 100,0 18,1 Demais Municípios de Minas Gerais e Centro-Oeste 1,3 4,3 94,3 0,0 100,0 5,7

Demais Municípios do Rio de Janeiro e Estado do Espírito Santo

4,2 3,0 92,8 0,0 100,0 7,2

Demais Municípios do Estado de São Paulo 1,2 1,4 97,2 0,1 100,0 2,6

Região Sul

RM de Curitiba 3,3 4,6 92,0 0,1 100,0 7,9

RM de Porto Alegre 6,6 6,0 87,3 0,0 100,0 12,7 Demais Municípios da Região Sul 5,8 6,0 88,1 0,1 100,0 11,8

Page 138: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

138

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

Uma outra forma de avaliarmos a aderência do modelo é a análise comparativa das características sociais dos moradores de setores classificados como subnormais pelo IBGE e delimitados pelo estudo como assentamentos precários, tendo o restante da população como parâmetro. Os resultados são tão melhores quanto mais as caracte-rísticas se aproximarem dos subnormais e mais se distanciarem do restante, sugerindo que realmente foi possível delimitar um grupo populacional similar ao classificado originalmente pelo IBGE.

Os Gráficos 2 e 3, a seguir, apresentam algumas das variáveis que entraram no modelo para a identificação dos assentamentos precários. No Gráfico 2 é possível verificar que, dos domicílios localizados em setores classificados como assentamentos precários, 17,1% não têm acesso a rede de abastecimento de água e 40,6%, a rede de esgotamento sanitário ou fossa séptica. Entre os domicílios localizados nos Aglome-rados Subnormais esses percentuais são respectivamente de 12,5% e 38,7%. Em ambos os casos os conteúdos sociais médios de assentamentos precários se aproximam muito dos de setores subnormais e se distanciam do restante dos setores.

Gráfico 2Proporção de domicílios sem acesso a rede de abastecimento de água, esgotamento sanitário ou fossa séptica. Distribuição da população segundo tipo de setor censitário. Brasil – 2000

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2000; elaboração dos autores.

Os Gráficos a seguir exploram da mesma forma as informações de renda e escola-ridade. Como podemos ver, a renda média dos responsáveis pelos domicílios situados nos setores classificados como assentamentos precários ou subnormais era menos da metade da renda dos responsáveis moradores nos setores NE. Da mesma forma, no caso da escolaridade, dois terços dos responsáveis dos setores subnormais ou assen-tamentos precários não haviam completado o ensino médio (Gráfico 3).

% de domicílios sem redede abastecimento de água

12,5

17,1

8,19,0

0,0

2,0

4,0

6,0

8,0

10,0

12,0

14,0

16,0

18,0Em %

38,740,6

17,120,1

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

35,0

40,0

45,0Em %

Aglomeradossubnormais

Assent.precários

Nãoespeciais

Brasil Aglomeradossubnormais

Assent.precários

Nãoespeciais

Brasil

% de domicílios sem rede de esgoto ou fossa séptica

Page 139: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

uma metodologia para a estimação de assentamentos precários em nível nacional

139

Gráfico 3Renda média do responsável pelo domicílio e proporção de responsáveis com ensino fundamental incompleto. Brasil – 2000

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2000; elaboração dos autores.

Conclusão

O presente trabalho apresentou um método para a estimação de moradores de assentamentos precários a partir de dados secundários oriundos do Censo e da apli-cação de técnicas estatísticas de análise discriminante.

Consideramos que o método avança com relação ao conhecimento acumulado na área, não apenas por apresentar um quadro da distribuição do fenômeno no Brasil urbano atual, mas também por demonstrar a aplicabilidade de uma técnica de baixo custo e alta replicabilidade que utiliza dados padronizados nacionalmente e coletados periodicamente. Os dados gerados com tal técnica podem representar um importante insumo para o processo de planejamento e gestão em nível local, representando um primeiro passo para a realização de vistoria de campo e a constituição de sistemas de informação sobre assentamentos localmente, apurando as estimativas e especifican-do-as territorialmente.

Em termos empíricos, os resultados sugerem que o fenômeno alcança o dobro da dimensão delimitada atualmente com os dados dos setores subnormais do IBGE, che-gando a 14% dos setores dos municípios estudados, ou 12,4 milhões de habitantes. As condições sociais em setores classificados como assentamentos são até mesmo piores do que as encontradas nos setores considerados pelo IBGE como subnormais. Essas informações demonstram, por um lado, a grande dimensão do fenômeno em termos numéricos e reafirmam a sua relevância social e urbana. Por outro lado, entretanto, os dados nos sugerem que esse importante problema social e urbano pode ser enfrentado efetivamente desde que se produzam programas públicos de habitação, dotação de infra-estrutura e urbanização de favelas que contem ao mesmo tempo com recursos financeiros e capacitação operacional.

326382

1000916

0

200

400

600

800

1000

1200 Em reais de julho de 2000

Renda média do responsávelpelo domicílio

Aglomeradossubnormais

Assent.precários

Nãoespeciais

Brasil Aglomeradossubnormais

Assent.precários

Nãoespeciais

% de responsáveis com menos de 8 anos de estudo

Brasil0,00

72,77

50,47

75,90

10,00

20,00

30,00

40,00

50,00

60,00

70,00

80,00Em %

53,57

Page 140: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

140

textos técnicos – ministério das cidades – secretaria nacional de habitação

BibliografiaBUENO, L. Urbanização de Favelas. São Paulo: FAU/USP, 2000 (Tese de Doutorado).CEM. Estimativas de demanda por políticas de habitação social no Município de São

Paulo. Relatório de pesquisa desenvolvido para a Prefeitura Municipal de São Paulo. São Paulo: Centro de Estudos da Metrópole/Cebrap, 2003.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO/MINISTÉRIO DAS CIDADES. Déficit Habitacional no Brasil: Municípios Selecionados e Microrregiões Geográficas. 2ª edição. Brasília: Ministério das Cidades, 2005.

FUNDAÇÃO IBGE. Censo Demográfico 2000: agregado por setores censitários dos resulta-dos do universo. 2a edição – documentação do arquivo. Rio de Janeiro: IBGE, 2003.

MARQUES, E.; TORRES, H.; SARAIVA, C.. “Favelas no Municípío de São Paulo: estimando a sua presença para os anos de 1991, 1996 e 2000”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos, Vol. 5, No. 1, 2003.

OLIVEIRA, F.. Notas sobre as estimativas do déficit habitacional no Brasil e no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, 2002 (mimeo).

PERES. C.; BUSSAB. W.; FERREIRA, M.; COSTA O. Inserção familiar no mercado de trabalho como instrumento de mobilidade social. São Paulo em Perspectiva. vol.8 (1). São Paulo Fundação Seade.: jan/mar 1994.

PRETECEILLE, E. e VALLADARES, L. “Favelas no plural”. Trabalho apresentado no XXIII Encontro da Anpocs, Caxambu, 1999.

SARAIVA, C. e MARQUES, E. “A condição social dos habitantes de Favelas”. In: Mar-ques, E. e Torres, H. (org.) São Paulo: segregação, pobreza urbana e desigualdade social. São Paulo: Editora Senac, 2005.

TASCHNER, S. “Favelas em São Paulo – censos, consensos e contra-sensos”. Trabalho apresentado no Encontro da Anpocs. Caxambu, 2000 (mimeo).

TASCHNER, S. “Espaço e população nas favelas de São Paulo”. Trabalho apresentado no XIII Encontro da ABEP, Ouro Preto, 2002.

TORRES, H. ; MARQUES, E.. Information Systems for Social Policies: The Case of São Paulo’s Metropolitan Area. In: Seminário FNUAP/CEPAL, sobre População e Pobreza. Cidade do México, 2002 (mimeo).

TORRES, H. G. “Políticas Sociais e Território”. In: Marques, E. e Torres, H. (orgs.). São Paulo: segregação, pobreza e desigualdade. São Paulo: Editora Senac, 2005, v. 1, pp. 297-314.

VALLADARES, L. e PRETECEILLE, E. “Favela, favelas: unidade ou diversidade da favela carioca”. In: RIBEIRO, L. (org.) O futuro das metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro, Observatório/Ed. Revan/Fase, 2000.

VERAS, M. e TASCHNER, S. “Evolução e mudanças das favelas paulistanas”. Espaço e Debates, 31, 1990.

Page 141: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 142: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 143: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar
Page 144: Política Habitacional e a integração Urbana de ... · tem um agradecimento especial para o Professor Adauto Lúcio Cardoso. Ele foi de fato quem nos ajudou a viabilizar e a consolidar

Ministério das Cidades

Secretaria Nacional de Habitação