Dissertação Adauto Douglas Parré

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS UNIFESP/EFLCH Adauto Douglas Parré Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de Matemática na Década de 1940 Mestrado acadêmico em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência Guarulhos 2013

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Matemática, ensino, história da educação matemática, Caetano de Campos, Curso normal, metodologia e prática de ensino, Zuleika,

Transcript of Dissertação Adauto Douglas Parré

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO

    ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    UNIFESP/EFLCH

    Adauto Douglas Parr

    Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de

    Matemtica na Dcada de 1940

    Mestrado acadmico em Educao e Sade na Infncia e na Adolescncia

    Guarulhos

    2013

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO

    ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    UNIFESP/EFLCH

    Adauto Douglas Parr

    Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de

    Matemtica na Dcada de 1940

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Universidade

    Federal de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do

    ttulo de MESTRE EM CINCIAS: EDUCAO E SADE, sob a

    orientao da

    Prof. Dr. Maria Clia Leme da Silva

    Guarulhos

    2013

  • Parr, Adauto Douglas.

    Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de

    Matemtica na Dcada de 1940 / Adauto Douglas Parr. Guarulhos, 2013.

    Com DVD anexo.

    90 p.

    Dissertao de Mestrado (Mestrado em Educao e Sade na

    Infncia e na Adolescncia) Universidade Federal de So Paulo, Escola de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2013.

    Orientadora: Maria Clia Leme da Silva.

    Ttulo em ingls: New School, Escola Normal Caetano de Campos

    and Mathematics Teaching in the 1940s

    1. Educao. 2. Histria da Educao Matemtica. 3. Educao

    Matemtica. I. LEME da SILVA, Maria Clia. II. Ttulo.

  • Adauto Douglas Parr

    Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de Matemtica na

    Dcada de 1940

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps - Graduao

    em Educao e Sade na Infncia e na Adolescncia da

    Universidade Federal de So Paulo como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre em Cincias

    Orientador: Maria Clia Leme da Silva

    Aprovado em: 09 de setembro de 2013.

    Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica

    UNESP- RIO CLARO

    Prof. Dr. Ivanete Batista dos Santos

    UFS - SERGIPE

    Prof. Dr. Marcos Cezar de Freitas

    UNIFESP - GUARULHOS

  • Francisco Antonio Parr

    In memoriam

  • Agradecimentos

    A aquisio de conhecimentos tericos, a anlise de fontes e a escrita de

    um texto so saberes que no surgem de maneira espontnea, necessrio muito

    trabalho para que se produza uma dissertao no perodo de dois anos. Por essa

    razo, deixo meu primeiro agradecimento para minha orientadora, a prof. Dr. Maria

    Clia Leme da Silva, por toda a preocupao que dispensou com a nossa formao

    enquanto pesquisadores.

    Agradeo a toda a famlia pela pacincia e por se fazerem presentes

    durante todo o percurso deste estudo, e, em especial, minha me, Susana Silvia

    Parr, pois, alm de todo o incentivo e de todo o apoio financeiro, sempre compreendeu

    os finais de semana perdidos.

    Agradeo CAPES - Reuni pela Bolsa, parte indispensvel para que o

    trabalho pudesse ser construdo, e ao CNPq, pelo financiamento que custeou nossas

    visitas s antigas Escolas Normais do interior.

    Trabalhar em grupo diminui nossas dificuldades de pesquisa, assim,

    agradeo ao Prof. Dr. Wagner, por ter sido mentor do trabalho do nosso grupo;

    agradecimentos especiais tambm ao amigo Denis, pois, alm das vrias discusses,

    presenciais e por Skype, conselhos e sugestes, foi quem primeiro encontrou as fontes

    privilegiadas que utilizamos em nossas anlises e desde o incio as socializou.

    A busca pelas fontes nos levou a diversos lugares, entre eles ao Acervo

    da Assembleia Legislativa do Estado de So Paulo e ao Acervo Histrico da Escola

    Caetano de Campos/Centro de Referncia em Educao Mrio Covas. Agradecemos a

    todos os que nos atenderam aqui representados pelos Srs. Digenes e Felipe.

    Muitos so os agradecimentos ainda necessrios, e, para viabilizar que

    ningum seja esquecido, agradeceremos a todos os profissionais que nos receberam e

    colaboraram em cada uma das instituies que visitamos em 2012 para coletar fontes,

    que integraro a base de dados na qual trabalhamos. Agradecemos, assim, s Escolas

    Estaduais Baro de Suru, no municpio de Tatu; Sud Menucci, no municpio de

    Pirassununga; Peixoto Gomide, no municpio de Itapetininga.

  • Resumo

    As primeiras dcadas do sculo XX foram marcadas por uma nova vaga pedaggica entre os educadores brasileiros, conhecida como Escola Nova, cuja proposta era a de renovar o ensino. Simultaneamente, na dcada de 1940, uma srie de mudanas ocorrem na estrutura do Curso Normal Paulista. Esta pesquisa busca compreender em que medida as apropriaes desse movimento e as mudanas na formao de professores alteraram o ensino da matemtica na Escola Normal Caetano de Campos, mais especificamente na disciplina de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio, responsvel pela formao pedaggica dos futuros professores. Nossas anlises foram sustentadas pelos estudos da chamada Histria Cultural, dos quais destacamos o ferramental elaborado por Michel de Certeau e Roger Chartier. As fontes privilegiadas na investigao so avaliaes finais realizadas pelos alunos, cotejadas com leis, livros, revistas e textos de autores que circularam no perodo estudado. Essas avaliaes indicam a presena marcante dos planos globalizados como instrumento de avaliao, os quais eram produzidos a partir de um tema retirado de um recorte de jornal. Em relao ao ensino de matemtica, evidenciou-se uma mudana nas finalidades da disciplina presente nessas avaliaes, que passou a atender a realidade almejada pelos planos globalizados, em vez de seus contedos e habilidades prprios. As mudanas estruturais no Curso Normal Paulista no so perceptveis no ensino de matemtica na disciplina de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio na dcada de 1940. Palavras-chave: Metodologia e Prtica do Ensino Primrio, Escola Caetano de Campos, Escola Nova, Histria da Educao Matemtica

  • Abstract

    The first decades of the twentieth century were marked by a new wave pedagogical between Brazilian educators, known as New School, whose purpose was to renew the teaching. Simultaneously, in the 1940s, a number of changes occurs in the structure of the Curso Normal. This research tries to understand to what extent the appropriations of this movement and changes in teacher training have changed the teaching of mathematics at the Escola Normal Caetano de Campos, more specifically in the discipline of Methodology and Practice of Primary Education, responsible for pedagogical training of future teachers. Our analyses were supported by the studies of Cultural History, of which we highlight the tooling by Michel de Certeau and Roger Chartier. The sources in the investigation are the final evaluations carried out by students collated with laws, books, magazines and texts of authors that circulated in the studied period. These evaluations indicate the strong presence of globalized plans as instruments of evaluation, which were produced from a theme taken from a newspaper clipping. Regarding the teaching of mathematics, there was a change in the purpose of this discipline on these assessments, we happened to meet the reality desired by globalized plans instead of their own content and skills. Structural changes in the Normal Course Paulista are not noticeable in mathematics teaching in the discipline of Methodology and Practice of Primary Education in the 1940s. Key Words: Methodology and Practice of Primary, New School, History of Mathematics Education.

  • 9

    SUMRIO

    1 INTRODUO .......................................................................................................... 10

    1.1 Sobre a trajetria pessoal do pesquisador .................................................... 11

    1.2 O Projeto Guarda-Chuva .............................................................................. 12

    1.3 A Elaborao do Recorte .............................................................................. 14

    2 AS FERRAMENTAS METODOLGICAS ................................................................. 15

    2.1 A possibilidade de construo de uma questo ............................................ 15

    2.2 Das ferramentas utilizadas............................................................................ 21

    2.3 O trabalho com as fontes .............................................................................. 25

    3 ENTRE O CONHECIDO E O DESCONHECIDO ...................................................... 29

    3.1 Uma nova forma de pensamento: A Escola Nova ........................................ 29

    3.2 Alguns pensadores do escolanovismo .......................................................... 31

    3.3 O Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova ............................................. 34

    3.4 Uma nova racionalizao, os conhecimentos biopsicolgicos ...................... 35

    3.5 O Ensino Normal ........................................................................................... 37

    3.6 A Lei Orgnica do Ensino Normal ................................................................. 39

    3.7 O programa do curso Pr-Normal ................................................................. 44

    3.8 O programa do Curso Normal ....................................................................... 46

    4 A MATEMTICA NA FORMAO DO NORMALISTA.............................................. 49

    4.1 Nossas Fontes .............................................................................................. 50

    4.2 Metodologia e Prtica de Ensino Primrio: o corpo docente......................... 52

    4.3 As professoras de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio ...................... 53

    4.4 As avaliaes de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio ........................ 60

    4.5 A escolha dos temas ..................................................................................... 62

    4.6 Sobre os Planos de Aula............................................................................... 65

    4.6.1 Vamos fazer uma festa? ............................................................. 70

    4.6.2 Erros nas avaliaes .................................................................. 74

    5 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 81

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................... 84

  • 10

    1 INTRODUO

    A introduo deste texto um convite, que muito respeitosamente deixamos,

    para que nosso leitor participe da produo de significados sobre o ensino de

    Matemtica em tempos passados, fabricao assim que Certeau (2008) denomina

    essas produes que s de longe parecem ser passivas. A leitura uma ao de

    esperteza, uma ttica da qual lanam mo aqueles que esto em um lugar que no lhes

    prprio e que permite explorar as fraquezas das estruturas.

    A fabricao aqui chamada para iniciar os trabalhos resultado de um jogo

    entre os conhecimentos que o texto carrega e aqueles que seu receptor j possui. O

    confronto entre o rol desses saberes resultar em uma nova elaborao de

    conhecimentos, razo pela qual cada nova fabricao leitora nica e original, e muitas

    vezes no receber um registro merecido.

    O texto que se apresenta agora propriedade daquele que o l. Podendo

    sofrer crticas, ampliaes ou mesmo o esquecimento, a produo acadmica que se

    prope tem como ponto de partida uma produo solidria, em que o autor doa a

    matria-prima e colaborativa e o leitor, seu trabalho de reconstruo dessa matria.

    Para colaborar com a insero do leitor, nesta pesquisa, o captulo intitulado

    como introduo pretende apresentar o processo de elaborao, passos e decises

    tomadas a fim de construir a narrativa histrica.

    O texto inicia-se com a construo de um problema a ser compreendido, o

    que causa a situao de desconforto e inquietude que motiva a procura pelas

    respostas. O captulo dois tratar de nos situar frente a um conjunto de ferramentas

    tericas e metodolgicas para a anlise realizada durante a produo do texto, tomadas

    de emprstimo de um conjunto maior convencionalmente denominado por Histria

    Cultural.

    No terceiro captulo, trataremos de apresentar um pouco sobre o que se

    sabe da vaga pedaggica que se instala no Brasil na primeira metade do sculo XX,

    bem como a compreenso do funcionamento do Curso Normal Paulista.

  • 11

    Para o quarto captulo, cabem as invenes do cotidiano, no sentido de

    reconstruir as mil prticas pelas quais usurios se reapropriam do espao organizado

    pelas tcnicas da produo scio-cultural (CERTEAU, 2008, p. 41); a contribuio

    deste trabalho se encontrar concentrada nesse captulo, ao produzir uma narrativa

    utilizando aquilo que pode ser lido pela problematizao das fontes.

    As fontes escolhidas para a realizao desta anlise constituem vestgios

    produzidos no passado e que permitem a investigao a que nos propomos. Trata-se

    de um conjunto de leis, programas e outros documentos presentes nos arquivos

    escolares das antigas Escolas Normais. Ao final deste texto, esperamos fazer uma

    leitura crtica dessas fontes para compreender como a vaga pedaggica Escola Novista

    foi apropriada pelas Escolas Normais paulistas no que diz respeito ao ensino de

    Matemtica ou de uma educao matemtica1.

    1.1 Sobre a trajetria pessoal do pesquisador

    Minha primeira formao ocorreu na ltima iniciativa de ensino normal em

    2005 pelo CEFAM (Centro Especfico de Formao e Aperfeioamento do Magistrio)

    de Itapetininga, no interior do Estado de So Paulo; posteriormente, graduado como

    Pedagogo (2009), pela UNOPAR (Universidade Norte do Paran), e especialista em

    Psicopedagogia (2011), pela Faculdade Anhanguera de Jundia. Ao longo dessa

    formao, sempre lanamos questes referentes ao processo de ensino da Matemtica,

    que motivaram a escolha por um programa de ps-graduao stricto-sensu, a fim de

    buscar novas maneiras de compreender os problemas que se evidenciam em relao

    ao ensino da disciplina de Matemtica. Tendo encontrado na UNIFESP, em 2011, um

    1 Por conveno, os pesquisadores que integram o GHEMAT vm utilizando-se de uma distino entre Educao Matemtica de educao matemtica, a primeira expresso refere-se a um campo de pesquisa, a segunda trata do ensino e aprendizagem de matemtica em diferentes perodos de tempo (LEME da SILVA; VALENTE, 2009, p. 11).

  • 12

    programa que possibilita a busca por essas respostas, entramos em contato nesse ano

    com o GHEMAT2.

    nesse grupo, criado em 2000, que pesquisando, como orientando da

    professora Dr. Maria Clia Leme da Silva, entro em contato com um grande projeto,

    ainda em andamento denominado A Matemtica na Formao do Professor do Ensino

    Primrio em Tempos do Escolanovismo, 1930 19603 e constato que muitos dos

    problemas que so investigados no presente no podem ser compreendidos antes de

    se compreender que intrinsecamente a eles existe uma historicidade.

    Compreendendo que a existncia dos problemas se faz permeada pela

    cultura escolar, surge um primeiro interesse pelo estudo da histria dessa disciplina, por

    meio da formao matemtica dos professores em uma das mais antigas escolas

    normais do Estado de So Paulo, a Caetano de Campos.

    1.2 O Projeto Guarda-Chuva

    Em uma das pesquisas desenvolvidas no mbito do GHEMAT, discutiu-se a

    formao matemtica do professor primrio at finais da dcada de 19204. No perodo

    em que essa investigao se encerrou, encontra-se a emergncia de um iderio que

    comea a se difundir pelos discursos dos educadores, o Escolanovismo. Como

    resultado desse encontro, surge a questo: quais seriam as transformaes que a

    Matemtica, na formao dos professores para o ensino primrio, sofreria com a

    chegada das ideias escolanovistas?

    A formao na modalidade Normal avanou pela dcada de 1930 sofrendo

    alteraes, como a proposta elaborada por Fernando de Azevedo e Ansio Teixeira e

    2 Mais informaes sobre o GHEMAT Grupo de Pesquisa de Histria da Educao Matemtica no Brasil podem ser obtidas no site: http://www.unifesp.br/centros/ghemat/. 3 O projeto conta com financiamento do CNPQ. 4 Mais conhecimentos sobre o trabalho pode ser visto em VALENTE, Wagner Rodrigues. A Matemtica na formao do professor do ensino primrio em So Paulo (1875-1930). 2010 p. 121. Tese (Livre Docncia). So Paulo: Departamento de Educao da UNIFESP.

  • 13

    que culmina na criao do Instituto de Educao do Distrito Federal e do Instituto de

    Educao de So Paulo (VALENTE, 2011, p. 4), elevando a formao de professores

    do nvel secundrio para o nvel superior.

    Ao final da existncia dos Institutos de Educao de So Paulo, o curso de

    Pedagogia foi criado na Universidade de So Paulo, em 1939, contudo voltado para a

    formao de especialistas do ensino e profissionais para atuarem no Ministrio de

    Educao. Alguns anos mais adiante, a Lei Orgnica do Ensino Normal, publicada em

    1946, legitimou docncia como papel do normalista. Diante de tantas

    transformaes, apresenta-se a questo que busca compreender o que ocorre com a

    Matemtica presente na formao dos professores nesse perodo.

    O projeto A Matemtica na Formao do Professor do Ensino Primrio em

    Tempos de Escolanovismo, 1930-1960 engloba sete subprojetos com investigaes

    especficas acerca dos temas: a Matemtica nos Institutos de Educao na dcada de

    1930; a Matemtica presente no curso de Pedagogia; as mudanas sofridas no

    conceito de nmero; as discusses presentes nos manuais pedaggicos; o uso de

    situaes-problema no ensino da Matemtica; as orientaes contidas nos peridicos

    pedaggicos. Cada um dos assuntos apresentados est sendo desenvolvido por um

    pesquisador, no mbito de subprojetos de mestrado e de iniciao cientfica

    Alm dos trabalhos em andamento recm-apresentados, integra o projeto

    guarda-chuva a presente pesquisa, em que buscamos conhecer e compreender a

    Matemtica presente na formao dos normalistas da pela escola Caetano de Campos,

    nos anos que circunscrevem a criao da Lei Orgnica do Ensino Normal. A presena

    desta lei e de outros documentos oficiais utilizados em nossa investigao podem

    colaborar para melhor compreender as mudanas ocorridas no funcionamento dessas

    escolas, mais especificamente no Estado de So Paulo. Junto com esses documentos,

    utilizaremos aqueles encontrados no arquivo da escola Caetano de Campos, tendo em

    vista as importantes transformaes ocorridas nesse lcus de formao docente.

  • 14

    1.3 A Elaborao do Recorte

    Sendo esta pesquisa parte de um projeto maior e coletivo, o primeiro recorte

    a ser elaborado na construo do objeto trata da escolha pela corrente de pensamento

    a ser investigada: O Escolanovismo. Esse movimento vigorou durante um grande

    perodo na educao brasileira, no sendo possvel marcar-lhe uma data de incio e

    uma de trmino, j que diversas pequenas mudanas e permanncias sempre se fazem

    presentes. De maneira geral, podemos afirmar que o iderio do movimento teve grande

    fora pelas proximidades do incio da dcada de 1930 (SAVIANI, 2008; ROSA, 2009;

    VALENTE, 2010), especialmente atravs da ao de educadores que reformaram o

    ensino e colaboraram para a propagao das ideias, avanando para as dcadas

    seguintes.

    O segundo recorte elaborado quanto formao de professores, elemento

    indispensvel na compreenso da histria das disciplinas escolares, j que so estes

    que em ltima instncia atuaro na elaborao dos currculos, os profissionais que

    produziro prticas envolvendo os saberes disciplinares, e aqui, especificamente, em

    Matemtica.

    Por fim, cabe determinar que a investigao se ocupar de uma escola

    normal, a Caetano de Campos, pela importncia que essa escola tem ao longo de sua

    existncia, enquanto espao de formao de professores. Assim, a disciplina

    privilegiada nessa investigao ser aquela de carter mais didtico, denominada

    Metodologia e Prtica de Ensino Primrio5.

    Diante disso, surge a questo de investigao, que pode ser definida, grosso

    modo, por: como a matemtica se faz presente na formao dos normalistas que

    frequentaram o curso de formao de professores ao longo da dcada de 1940 na

    escola Caetano de Campos?

    5 Verifica-se, em alguns documentos produzidos pelos normalistas, o nome da disciplina como Metodologia do Ensino Primrio; pelas nossas investigaes, referem-se mesma disciplina registrada de modo conciso.

  • 15

    2 AS FERRAMENTAS METODOLGICAS

    Aps a construo do nosso recorte, apresentamos nas prximas pginas as

    ferramentas metodolgicas utilizadas na construo de respostas para a questo de

    investigao que se busca compreender. Dessa forma, passa-se, neste momento, a

    discutir essas opes que atuam como suporte para as anlises elaboradas

    posteriormente.

    2.1 A possibilidade de construo de uma questo

    Nas primeiras dcadas do sculo passado, dois historiadores se destacaram

    como lderes do movimento dos Annales, Lucian Febvre e Marc Bloch. Apesar de

    possurem personalidades muito diferentes, os dois trabalharam juntos por um perodo

    de vinte anos entre as duas grandes Guerras Mundiais (BURKE, 1992 p. 16).

    Este trabalho no tem como objetivo discutir a trajetria desses historiadores

    ou do movimento que lideraram, mas utilizar profundamente diversos trabalhos que

    foram elaborados a partir desse movimento e por autores que ampliaram as discusses

    por eles iniciadas, especialmente pelas contribuies da chamada Histria Cultural, de

    onde sero retirados diversos conceitos e mtodos de investigao.

    devido s discusses do incio do sculo XX elaboradas sobre a escrita da

    Histria que um leque de novos objetos passveis de serem estudados se abre, dentre

    eles a cultura escolar, permitindo assim a construo da pergunta de pesquisa a que se

    pretende responder.

    Para comear a caracterizar a pesquisa, um bom ponto de partida pode ser

    situ-la no mbito da produo cientfica, que, por mais elementar que possa parecer,

    no pode ser desconhecida. Entre as diferentes finalidades da produo acadmica,

    destacamos duas, uma primeira que busca solucionar, inovar e resolver os problemas

    vivenciados pelas pessoas no cotidiano; a outra

    tem por motivao preencher uma lacuna nos conhecimentos: melhor conhecer e compreender (...) Trata-se ento de um tipo de pesquisa destinado, em princpio, a aumentar a soma dos saberes disponveis, mas que podero em algum momento, ser utilizados com a finalidade de

  • 16

    contribuir para a soluo de problemas postos pelo meio social. (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 86)

    nessa perspectiva de pesquisa que o GHEMAT, Grupo de Histria da

    Educao Matemtica no Brasil (GHEMAT) mobiliza esforos, na produo de novos

    conhecimentos sobre a Histria da Educao Matemtica.

    Ainda se utilizando das orientaes de Laville e Dionne sobre a elaborao

    da questo de pesquisa, possvel saber que encontrar um bom problema de

    pesquisa no e fcil para um iniciante (...) os pesquisadores se distinguem uns dos

    outros pela qualidade de sua intuio, a perspiccia de suas observaes, sua

    curiosidade crtica (1999, p. 100-101), mas asseguram ainda que essas capacidades

    podem ser desenvolvidas com a prtica, certamente com as trocas possveis de serem

    realizadas com pesquisadores mais experientes, leituras e debates.

    Retomando um dos recortes elaborados, o Escolanovismo (tambm

    conhecido como Escola Nova e cujos princpios sero tratados em um captulo prprio),

    deparou-se com um perodo amplamente explorado pela Histria da Educao em que

    se destacaram trabalhos de diversos autores, entre eles, Carlos Monarcha (1999;

    2009), Martha Maria Chagas de Carvalho (2002), Rosa Ftima Souza (2009), Otaza de

    Oliveira Romanelli (2010), Dermeval Saviani (2011), Leonor Tanuri (2011).

    Em relao a essa vaga pedaggica da educao brasileira, a pesquisadora

    Rosa Ftima de Souza, em seu trabalho intitulado Alicerces da ptria: Histria da

    Escola primria no Estado de So Paulo (1890-1976), fruto de sua tese de Livre

    Docncia defendida na UNESP, afirma que:

    Esse perodo merece ateno especial dos historiadores da educao, tendo em vista os novos padres de racionalizao escolar institudos e as rupturas e continuidades operadas em relao aos processos pedaggicos, isto , a forma pela qual as formulaes doutrinrias da escola nova foram apropriadas e incorporadas na cultura escolar (SOUZA, 2009, p. 182).

    Ao realizar seu trabalho, Souza (2009) reconheceu que ainda necessrio

    direcionar atenes s novas apropriaes que passam a integrar a cultura escolar no

    Escolanovismo brasileiro.

  • 17

    Nesse sentido, Andr Chervel (1990) apontou para o surgimento do interesse

    dos pesquisadores sobre as diferentes disciplinas escolares ao afirmar que:

    tem-se manifestado uma tendncia, entre os docentes, em favor de uma histria de sua prpria disciplina. Dos contedos do ensino, tais como so dados nos programas, o interesse ento evoluiu sensivelmente para uma viso mais global do problema, associando-se as ordens do legislador ou das autoridades ministeriais ou hierrquicas realidade concreta do ensino nos estabelecimentos, e algumas vezes, at mesmo s produes dos alunos (CHERVEL, 1990, p. 177).

    A compreenso a ser desenvolvida nesta dissertao, em virtude da

    construo de um subprojeto, trata de analisar como a Matemtica desenvolvida na

    formao do aluno que frequentava o curso normal da escola Caetano de Campos na

    dcada de 1940, tendo em vista as assimetrias existentes na vaga pedaggica que se

    instalou no Brasil durante grande parte do sculo passado.

    Nessa dcada, em escala federal, Gustavo Capanema, frente do Ministrio

    de Educao e Sade, promulgava um conjunto de decretos-lei, com o ttulo de leis

    orgnicas, que reformariam todo o sistema educacional e que, em sua totalidade,

    ficariam conhecidas como a Reforma Capanema6. Uma delas, denominada como Lei

    Orgnica do Ensino Normal, com data de dois de janeiro de 1946, por tratar

    especificamente da formao do normalista, tida como um dos pontos de partida para

    a pesquisa.

    Busca-se- compreender como o conjunto de leis e, principalmente, o

    pensamento Escolanovista foi, ou no, apropriado pelas Escolas Normais, em especial

    a Caetano de Campos, no que diz respeito ao ensino de matemtica. Qual disciplina foi

    central na formao do normalista no que tange a tal questo? Quais referncias so

    6 Decreto-Lei n 4.048, de 22/01/1942 Cria o SENAI (Servio Nacional de Aprendizagem Industrial); Decreto-Lei n 4.073, de 30/01/1942 Lei Orgnica do Ensino Industrial; Decreto-Lei n 4.244, de 09/04/1942 Lei Orgnica do Ensino Secundrio; Decreto-Lei n 6.141, de 28/12/1943 Lei Orgnica do Ensino Comercial; Decreto-Lei n 8.529, de 02/01/1946 Lei Orgnica do Ensino Primrio; Decreto-Lei n 8.530, de 02/01/1946 Lei Orgnica do Ensino Normal; Decretos-Lei n 8.621 e 8.622, de 10/01/1946 Criam o SENAC (Servio Nacional de Aprendizagem Comercial); Decreto-Lei n 9.613, de 20/08/1946 Lei Orgnica do Ensino Agrcola. (HISTEDBR. Glossrio: Leis Orgnicas do ensino. Disponvel em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/ Acesso em 07/11/11).

  • 18

    chamadas para discutir o ensino da Matemtica nessas escolas? Como eram as

    atividades produzidas pelos alunos normalistas tendo em vista o ensino da

    matemtica? Essas so perguntas que norteiam a questo de pesquisa.

    Entre os trabalhos com foco na educao matemtica, destacamos as

    investigaes produzidas por Valente (2010), Santos (2006), Souza (2011) e Garnica e

    Souza (2012). Nossa investigao tem como foco a formao de professores em uma

    escola normal, e dialoga com os trabalhos acima citados, pela proximidade dos objetos

    de estudo, que de modo geral abarcam temas em relao ao ensino de matemtica em

    tempos de escolanovismo.

    Na investigao de Valente (2010), com o objetivo de compreender a

    presena da matemtica na formao dos professores paulistas, o autor destaca que

    Aritmtica, lgebra e Geometria constituem contedos de referncia, que parecem

    permanecer imutveis na formao do magistrio primrio em So Paulo, pelo menos

    at a dcada de 1930, e que o como ensinar aparta-se do o qu ensinar nos cursos

    normais. Prima-se pela formao geral do professor, com um currculo enciclopdico,

    que v capacit-lo aos ensinos atravs de estgios prticos (VALENTE, 2010, p. 114).

    Ao mesmo tempo,

    matrizes metodolgicas como o ensino intuitivo, o mtodo analtico, o mtodo analtico intuitivo etc. tm apropriao diferenciada no caso do ensino de aritmtica. Todas elas, no entanto, elegem um contraponto comum para se afirmarem: o ensino verbalstico, especialmente tratado com as tabuadas e sua memorizao, cunhado como ensino tradicional. E, mais: as Cartas de Parker constituem a grande referncia para descontruir essa representao do passado do ensino de matemtica nas escolas primrias. De qualquer forma, a educao paulista nutre-se dos Estados Unidos para organizar os seus discursos e prticas nas reformas do ensino (VALENTE, 2010, p. 115).

    Valente evidenciou, portanto, que algumas das influncias presentes na

    formao de professores paulistas, at o ano de 1930, tiveram origem norte-americana;

    dentre elas, destacou a utilizao das Cartas de Parker e a forte presena dos

    contedos matemticos de formao geral no curso normal, representados por

    Aritmtica, lgebra e Geometria.

  • 19

    A tese de doutorado, defendida em 2006, de Ivanete Batista Santos, cujo

    objetivo foi de compreender a produo de Edward Lee Thorndike referente ao ensino

    de Aritmtica, lgebra e Geometria, aponta, nesse autor:

    a defesa de problemas com enunciados semelhantes s situaes do cotidiano do aluno representa, no caso de Thorndike, um diferencial em relao aos seus contemporneos. Sua justificativa no est baseada nem na teoria da disciplina mental, nem em uma suposta necessidade interna dos contedos matemticos; est sustentada na tese de que aprendizagem conexo; da a indispensvel presena de elementos idnticos para garantir a efetiva aprendizagem. Fundamental, tambm, a relevncia por ele atribuda utilizao de situaes para o desenvolvimento do raciocnio, entendido como organizao e controle de hbitos. Por isso, Thorndike conferiu equivalente importncia seleo dos problemas e hierarquia de conexes mentais ou hbitos a serem formados (SANTOS, 2006, p.237).

    Para Thorndike os problemas que tm como ponto de partida a vida levam

    em conta a psicologia e permitem que o aluno estabelea conexes para que a

    aprendizagem ocorra. Alm disso, destaque-se, ainda, a constatao de que, por meio

    dos seus manuais de Aritmtica e lgebra, Thorndike procurou alterar, de modo

    controlado, as formas de atuar do professor e as de aprender do aluno (SANTOS,

    2006, p. 237).

    Ao investigar o Grupo Escolar Eliazar Braga, a pesquisadora Luzia Aparecida

    de Souza analisou, entre outros documentos, atas das reunies pedaggicas em que

    verificou, entre os assuntos, sobre a Escola Nova e suas propostas de projetos; sobre

    centros de interesse (que determinavam um tema a ser explorado por todas as

    disciplinas durante o ano) (SOUZA, 2011, p. 27). Afirma ainda que :

    A escola Nova envolvia um projeto de aulas globalizadas sobre as quais o inspetor Luiz Amrico Iutroini deu orientaes na reunio de 14/03/1933. Das frases primordiais (a observao, a associao e a expresso), apontadas anteriormente, a associao foi exposta como sendo a articulao de diversas disciplinas em torno de um ponto de partida, de um centro de interesse. [...] Quatro meses aps a palestra de Luiz Amrico, o diretor Brtas apresenta como imprescindvel, no sistema de aulas globalizadas, o uso de cartazes construdos com a colaborao dos educandos (SOUZA, 2011, p. 189) [...] Sintetizando palestras de inspetores de ensino sobre as propostas da Escola Nova segundo Decroly, o diretor do grupo Eliazar Braga, em 1933, apresenta como imprescindvel o sistema de aulas globalizadas,

  • 20

    bem como a utilizao de cartazes construdos com a colaborao direta dos educandos. Quanto s prticas de ensino de matemtica, possvel apontar alguns indicativos a partir dos registros encontrados como, por exemplo, aquele relativo ao aumento gradual no nvel de dificuldade dos problemas propostos a cada ano do ensino primrio e a constncia na exigncia de que cada resoluo garantisse a apresentao do enunciado, da resposta, da soluo e das operaes. Pelos registros da dcada de 1930, percebe-se que no apenas as atividades e o trabalho manual eram enfatizados, mas tambm o clculo mental (SOUZA, 2011, p. 388).

    O estudo indica que princpios escolanovistas, dos quais destacamos as

    aulas globalizadas, com forte influncia do pensamento de Decroly, esto presentes

    nos discursos sobre prticas pedaggicas desenvolvidas no Grupo Escolar Eliazar

    Braga, na dcada de 1930.

    Outra anlise obtida a partir das investigaes de Garnica e Souza a

    existncia de assimetrias no movimento Escolanovista, no citado grupo escolar,

    marcado pela existncia de permanncias de algumas prticas: as propostas da

    Escola Nova explicitamente conviviam com a defesa da necessidade de memorizao e

    treino. Isso refora nossa percepo de que iderio algum ser detectado, em nenhuma

    situao e em tempo algum, numa forma pura, apartada de prticas que se mantm em

    meio a expectativas de superao (GARNICA; SOUZA, 2012, p.8). Alm disso, os

    pesquisadores constatam ainda a presena da circulao do pensamento de Decroly,

    por meio dos mtodos dos centros de interesses e de aulas globalizadas (GARNICA;

    SOUZA, 2012, p. 11-16).

    Outro estudo, a dissertao de mestrado de Carlos Souza Pardim, cujo

    objetivo foi compreender, a partir dos manuais pedaggicos, as orientaes que

    estruturaram a formao de professores na Escola Normal em Campo Grande (Mato

    Grosso), aponta que A Lei Orgnica do Ensino Normal (1946) influenciou o ensino

    nessas escolas a partir do ano de 1948, quando o governador do estado, Arnaldo

    Estvo de Figueiredo, regulamenta novamente o Ensino Normal (PARDIM, 2013, p.

    117) dividindo-o em dois ciclos.

    Pardim destaca ainda a importncia que os manuais pedaggicos tiveram na

    formao desses professores, dentre eles o de Theobaldo de Miranda Santos,

  • 21

    Metodologia do Ensino Primrio, pois procurou atender s especificaes da Lei

    Orgnica do Ensino Normal (PARDIM, 2013, p. 119):

    diante das argumentaes de Santos sobre os mtodos ativos, aquilo que possivelmente concebe como sendo um bom mtodo. Dentro daquilo que foi apontado, o autor deixa transparecer que o mtodo deve proporcionar a participao ativa do aluno (estmulo investigao, autonomia e experimentao), proporcionar regularidade e continuidade no trabalho em sala de aula, trabalhar com problemas que envolvam situaes reais, alm das necessrias repeties de exerccios para a fixao da atividade (PARDIM, 2013, p.99).

    Como se percebe, o foco de nossa investigao um perodo conturbado,

    marcado por diversos princpios renovadores. Buscaremos compreender melhor a

    disciplina, responsvel pela formao pedaggica do professor, no que diz respeito ao

    ensino da matemtica nesse perodo. O nosso inqurito se dirige para a maneira pela

    qual os normalistas aprendiam a ensinar a referida disciplina, investigando a

    apropriao presente nessa cultura em relao quilo que se propunha a lhes ser

    ensinado e, para isso, lanamos mo das ferramentas metodolgicas que

    apresentaremos em seguida.

    2.2 Das ferramentas utilizadas

    Tendo como referncia pesquisas anteriores, o GHEMAT produz novos

    conhecimentos para a rea da Educao Matemtica com um ferramental metodolgico

    que vem sendo usado pelos historiadores da educao. Em sntese, esses profissionais

    vm utilizando a chamada Histria Cultural para a produo de tais trabalhos, tendo

    como um de seus representantes Roger Chartier.

    Para colaborar na seleo das ferramentas utilizadas para esta pesquisa

    recordamo-nos de alguns pensamentos de Marc Bloch presentes na obra chamada

    Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador, uma obra que infelizmente no foi

    acabada, pois o autor foi executado pelos nazistas em 16 de junho de 1944.

    Um dos elementos a se atentar o ttulo desse trabalho, especificamente a

    palavra ofcio, que carrega o sentido de trabalho realizado por algum, uma profisso

  • 22

    que detm um conjunto de conhecimentos especficos para a sua execuo. Tendo

    claro que o que o ttulo no diz, mas o texto sim, que Marc Bloch no se contenta em

    definir a histria e o ofcio de historiador, mas quer tambm assinalar o que deve ser a

    histria e como deve trabalhar o historiador (LE GOFF apud BLOCH, 2001, p16)7.

    A primeira das ideias de Bloch adotada para a elaborao dessa

    investigao que o historiador trabalhando sozinho jamais compreender nada seno

    pela metade, mesmo em seu prprio campo de estudos; e a nica histria verdadeira,

    que s pode ser feita atravs da ajuda mtua, a histria universal (BLOCH, 2001, p.

    68) demonstrando assim a importncia do dilogo entre diversos campos de

    conhecimentos. Nesse sentido o que se pode produzir pelo dilogo entre o

    conhecimento da educao matemtica e os procedimentos historiogrficos tende a ser

    mais relevante no sentido de conhecimento cientificamente elaborado.

    Alm disso, Bloch ensina que a incompreenso do presente nasce

    fatalmente da ignorncia do passado (BLOCH, 2001, p. 65), demonstrando a relao

    dialgica entre passado e presente, presente e passado. Sabendo-se, ento, da

    importncia do conhecimento acerca do passado, foi possvel escolher as ferramentas

    adequadas para este estudo, que passaro a ser apresentadas a seguir, buscando

    demonstrar a sua articulao com o objeto estudado.

    A escrita da histria requer a tomada de conscincia sobre a brecha

    existente entre o passado e sua representao, entre o que foi e o que no mais e as

    construes narrativas que se propem a ocupar o lugar desse passado (CHARTIER,

    2010, p. 12) o passado j aconteceu e no est mais integrando o presente, dessa

    forma ser possvel apenas conceber uma representao dessa realidade a partir das

    fontes que estiverem disponveis.

    Para isso, foi necessrio compreender o conceito de representao de Roger

    Chartier, apresentado pela tenso entre duas famlias: na primeira, a representao

    como dando a ver uma coisa ausente, o que supe uma distanciao radical entre

    7 A citao do prefcio do livro escrita por Jacques Le Goff.

  • 23

    aquilo que representa e aquilo que representado; na segunda, a exibio de uma

    presena, como apresentao pblica de algo ou de algum, ficando claro que no

    primeiro sentido a representao uma construo capaz de figurar pela coisa ausente

    sem o ser (CHARTIER, 2002, p. 20).

    Compreendido o conceito de representao, foi possvel tomar a escrita da

    histria como uma narrativa, em que entraram em jogo figuras retricas e estruturas

    que tambm so da fico, sem, entretanto negar a legitimidade dessa produo

    enquanto conhecimento, pois

    a histria um discurso que produz enunciados cientficos, se se define com esse termo a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam controlar operaes proporcionais produo de objetos determinados (DE CERTEAU, 1975, p. 64, nota 5). Todas as palavras dessa citao so importantes: produo de objetos determinados remete construo do objeto histrico pelo historiador, j que o passado nunca um objeto que j est ali; operaes designa as prticas prprias da tarefa do historiador (recorte e processamento das fontes, mobilizao de tcnicas de anlise especficas, construo de hiptese, procedimentos de verificao); regras e controles inscrevem a histria em um regime de saber compartilhado, definido por critrios de prova dotados de uma validade universal (CHARTIER, 2010, p. 16).

    O que, com efeito, diferencia a narrativa historiogrfica das demais narrativas

    o compromisso com o procedimento historiogrfico do qual depende o ofcio do

    historiador. A produo desse tipo de narrativa est sujeita verificabilidade e

    intensamente comprometida com a veracidade em toda a sua construo.

    Novamente, vale retomar a ideia de representao de Roger Chartier (2002)

    tendo em vista a importncia que esse conceito confere escrita da histria por permitir

    articular trs modalidades de relao com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificao e de delimitao que produz as configuraes intelectuais mltiplas, atravs das quais a realidade contraditoriamente construda pelos diferentes grupos; seguidamente, as prticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira prpria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posio, por fim as formas institucionalizadas e objectivadas graas as quais uns representantes (instncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visvel e perturbada a existncia do grupo, da classe ou da comunidade (CHARTIER, 2002, p. 23).

    A partir dessa definio, foi possvel realizar anlises acerca das disputas

    marcadas entre as legislaes e as prticas que tratam da formao do normalista, j

  • 24

    que no so simplesmente reproduzidas e aceitas por aqueles a quem elas visam ao

    regular as prticas. Michel de Certeau afirma que a relao de consumo dessas

    representaes que circulam (nesse caso, as leis escritas, j que o texto em si a

    representao de normas e procedimentos que no esto materialmente presentes)

    no passiva, e no indicam de modo algum o que ela para seus usurios

    (CERTEAU, 2008, p. 40)

    Existe entre a representao e a prtica uma apropriao ou uma

    reapropriao em que as maneiras de fazer constituem as mil prticas pelas quais

    usurios se reapropriam do espao organizado pelas tcnicas da produo scio-

    cultural (CERTEAU, 2008, p. 41). O estudo dessas maneiras de fazer permitiu

    perceber a existncia de permanncias (que demonstram resistncia em relao quilo

    que imposto) e rupturas (que podem demonstrar apropriaes das representaes

    que se encontram em circulao).

    Aes cotidianas como falar, ler, circular so entendidas por Certeau como

    aes do tipo tticas, o que equivale a dizer que so realizadas por aqueles que no

    detm o poder, tratam-se de um clculo que no pode contar com um prprio, nem

    portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visvel. A ttica s tem

    por lugar o do outro (CERTEAU, 2008, p. 46), em oposio a estratgia postula um

    lugar suscetvel de ser circunscrito como algo prprio e ser a base de onde se podem

    gerir as relaes com uma exterioridade de alvos ou ameaas (CERTEAU, 2008, p.

    99).

    As aulas da disciplina Prtica de Ensino encontram-se na categoria de

    tticas, em relao s leis e orientaes. Assim, interessou investigar as apropriaes

    realizadas nessas prticas e compreender em que medida elas representavam uma

    produo em relao aos documentos legais em circulao e vaga pedaggica

    escolanovista.

  • 25

    2.3 O trabalho com as fontes

    As legislaes, os programas e as prticas realizadas nas antigas escolas

    normais fazem parte de um conjunto de documentos que sero explorados em nossas

    anlises. Os elementos citados integram a cultura escolar de um tempo que ficou

    conhecido como Escolanovismo. De tal modo, a pesquisa elabora uma representao

    sobre o que se pode ler a respeito da matemtica presente na formao dos

    professores.

    Para melhor definir o conceito de cultura escolar e, portanto, desenvolver a

    anlise aqui proposta, usou-se a elaborao de Julia em que:

    Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de prticas que permitem a transmisso desses conhecimentos e a incorporao desses comportamentos; normas e prticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as pocas (2001, p. 10)

    Essas finalidades referidas por Julia podem ser lidas, segundo Chervel, em

    parte pela histria das disciplinas, j que em diferentes pocas os contedos de

    instruo so colocados a servio das diferentes finalidades que vo surgindo e sendo

    impostas escola como sua funo educativa (1990, p. 187-188). Tais finalidades se

    fazem presentes no conjunto normativo, nos programas escolares, nos mtodos etc.,

    entretanto o mesmo autor alerta que as finalidades de ensino no esto todas

    forosamente inscritas nos textos (CHERVEL, 1990, p. 189). Por essa razo, as fontes,

    leis e programas utilizados na nossa investigao so colocadas em posio de

    desconfiana, uma vez que representam apenas uma parte dos elementos constituintes

    da cultura escolar em questo, e submetidos a processos de crtica para a construo

    de fatos histricos almejando a comprovao de sua veracidade.

    Pode-se afirmar que o que sobrevive no o conjunto daquilo que existiu no

    passado, mas uma escolha efetuada quer pelas foras que operam no desenvolvimento

    temporal do mundo e da humanidade, ou seja, aquilo que permite que documentos

    sobrevivam ao tempo e continuem existindo nos arquivos, podendo ser utilizados para

  • 26

    evocar o passado, quer pelos que se dedicam cincia do passado e do tempo que

    passa, os historiadores (LE GOFF, 2003, p. 525).

    Podemos ampliar a afirmativa de Le Goff se tomarmos outros pesquisadores

    que tm como objeto a educao e que, ao longo do tempo, deixaram para a

    humanidade um legado de escolhas. Pode-se ainda ter como responsveis pela

    sobrevivncia de conjuntos de representaes, entendendo como aquilo que pode ser

    tomado para a compreenso de significados de outros tempos, a ao de legisladores e

    reformadores que, atravs de suas obras, forneceram um conjunto de significados que

    podem ser interpretados.

    devido a movimentos que rompem paradigmas, como os Annales, que

    o interesse da memria coletiva e da histria j no se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a histria que avana depressa, a histria poltica, diplomtica, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implcita dos documentos (LE GOFF, 2003, p. 531).

    Nosso interesse neste trabalho suscita um conjunto de documentos que fez

    parte da vida de homens que no podem ser chamados de grandes e de

    acontecimentos que no ficaram conhecidos mundialmente; so pessoas que

    ensinam e aprendem, que vivem em situaes de aulas e que um dia foram professores

    que ensinaram Matemtica.

    nesse ponto que podemos nos certificar do valor institudo na escolha dos

    documentos utilizados para nosso trabalho e afirmar que se tornam verdadeiros

    documentos/monumentos:

    o documento no qualquer coisa que fica por conta do passado, um produto da sociedade que o fabricou segundo as relaes de foras que a detinham o poder. S a anlise do documento enquanto monumento permite memria coletiva recuper-lo e ao historiador us-lo cientificamente, isto , com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 2003, p. 536)

    As mais importantes leis de uma nao at atividades utilizadas no cotidiano

    de uma sala de aula demonstram relaes em que os jogos de poder decidem o que

    fica registrado e constitudo, para que no futuro possa evocar a memria daqueles que

    o acessam de maneira ativa, j que reconstroem os significados destes. Por essa

  • 27

    razo, no se pode acreditar ingenuamente naquilo que encontrado sem a devida

    submisso crtica. Partilhando desse entendimento, um segundo conjunto de escolha

    reconhecido, o do historiador:

    A interveno do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto de dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua prpria posio na sociedade da sua poca e da sua organizao mental, insere-se numa situao inicial que ainda menos neutra do que a sua interveno. O documento no incuo. , antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da histria da poca, da sociedade que o produziram, mas tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silncio (LE GOFF, 2003, p. 537-538).

    Tomado dessa maneira, o documento, produzido por uma sociedade e

    preservado por esta e por outras, passa a ser entendido como monumento, j que se

    trata de um objeto produzido pela cultura de um tempo. Para que melhor possa ser

    compreendido o documento/monumento, pode-se tomar o conceito de cultura de Geertz

    como

    essencialmente semitico. Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado (GEERTZ, 1989, p. 15)

    A partir do prximo captulo, buscaremos utilizar os documentos, entendidos

    agora como monumentos, para a construo de significados acerca do ensino de

    Matemtica no Curso Normal. Como transformar em monumentos os documentos?

    Para isso, a busca em arquivos escolares imprescindvel, uma vez que neles

    encontra-se uma diversidade de materiais

    que podem permitir compor um quadro da educao matemtica em outros tempos... dirios de classe, exames, provas, livros de atas, fichas de alunos e toda uma srie de documentos esto nas escolas para serem interrogados e permitir a construo de uma histria da educao matemtica... parte a esses documentos, existe toda uma documentao oficial normativa e legislativa do funcionamento do ensino. Decretos, normas, leis e reformas da educao, constituem material precioso para a anlise de como a educao pensada em diferentes momentos histricos e de que modo se busca ordenar sua prtica (VALENTE, 2007, p. 39)

  • 28

    No texto Arquivos escolares virtuais, consideraes sobre uma prtica de

    pesquisa (Valente, 2005), o autor indica que a existncia de uma srie de valiosos

    documentos que resistem ao tempo aqui e ali, contando com acasos e circunstncias

    que resultaram na preservao de exames e provas8, possvel compor conjuntos

    desses documentos para fins de estudo da cultura escolar (2005, p. 179). Esses

    acasos consistem substancialmente em situaes de poder atuando sobre os arquivos

    e decidindo sobre o que preservado ou no. Entre os documentos produzidos no

    passado e que podem ser acessados nos arquivos escolares, encontram-se aqueles

    que foram utilizados como avaliaes, que muito contribuem na elaborao da histria

    das Disciplinas Escolares, pois nos permitem a

    anlise dos contedos selecionados pelos professores como mais significativos de seu trabalho pedaggico com os alunos;... podem ainda, atravs da anlise dos enunciados dos exerccios e questes, possibilitar a leitura que o cotidiano escolar realiza de uma determinada poca histrica, ... Em realidade, os exames e provas concentram sobre a forma de exerccios e questes todos os objetivos explcitos do processo de ensino-aprendizagem de uma determinada disciplina (VALENTE, 2005, p. 179).

    Dessa maneira, a busca nos arquivos escolares consistiu em parte

    fundamental da presente investigao, pois foi a partir dela que detectamos e

    selecionamos os documentos submetidos crtica, usados como fontes, especialmente

    os documentos que auxiliaram a responder s questes sobre os processos de ensino

    e aprendizagem da Matemtica.

    8 Em nossa investigao, utilizaremos como fontes privilegiadas um conjunto de avaliaes encontradas na Escola Caetano de Campos.

  • 29

    3 ENTRE O CONHECIDO E O DESCONHECIDO

    Com a chegada da dcada de 1930, o novo governo tomaria como uma de

    suas primeiras medidas a criao do Ministrio da Educao e Sade Pblica, sendo

    dirigido por Francisco Campos, que promoveu a primeira reforma desse governo

    (SAVIANI, 2011, p. 195). Foram criados ainda o Instituto de Educao Caetano de

    Campos e o curso de Pedagogia.

    Esses so alguns dos acontecimentos que evidenciam a ao de propostas

    reformadoras, um perodo marcado por conhecimentos de ordem biopsicolgica, que

    em alguma medida influenciaram a estrutura do Curso Normal. Verificou-se a criao de

    mais um ano no curso de formao de professores paulistas e a promulgao da Lei

    Orgnica do Ensino Normal.

    3.1 Uma nova forma de pensamento: A Escola Nova

    O perodo no qual o estudo direcionou a investigao conhecido na

    literatura por uma diversidade de denominaes, mas todas se referem ao movimento

    educacional que estava em processo de estabelecimento: escola nova, escola ativa,

    educao nova, escola do trabalho, entre outras que, de forma geral, recusavam a

    pedagogia clssica, tendo como referncia central a obra de Johann Friedrich Herbart

    (1776-1841) e que se apoiavam principalmente nas recentes descobertas que a

    psicologia fornecia sobre o desenvolvimento da criana e de sua aprendizagem

    (MONARCHA, 2009, p.23).

    Desde a dcada de 1920, possvel encontrar vestgios da influncia do

    pensamento Escolanovista no Brasil, mas tais influncias tornaram-se mais evidentes

    na dcada seguinte. Um indcio da presena dos princpios da Escola Nova o

  • 30

    Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova9, publicado um pouco depois da criao do

    Ministrio de Educao e Sade. O grupo de signatrios visualizava, naquele momento,

    uma inorganizao no aparelho escolar, pois para eles faltavam dois elementos

    indispensveis no sistema escolar brasileiro: o esprito cientfico e o esprito filosfico.

    Essa ausncia os fazia concluir que nunca chegamos a possuir uma cultura prpria,

    nem mesmo uma cultura geral que nos convencesse da existncia de um problema

    sobre objetivos e fins da educao (AZEVEDO, 2006, p.188).

    Aps a publicao desse documento, contendo alguns dos princpios do

    movimento renovador, alguns dos educadores que o assinaram tomariam importantes

    cargos pblicos.

    Foi nesse perodo que Loureno Filho10, como integrante do movimento da

    Escola Nova, trouxe o esprito cientfico solicitado para a educao, frente do

    laboratrio de Psicologia Experimental da Escola Normal de So Paulo. Esse educador

    acreditava que a medida psicolgica deve ser efetuada rapidamente e em condies

    simples, por meio de testes que permitam a verificao do valor individual, para

    posterior classificao racional dos escolares (MONARCHA, 1999, p. 303).

    Uma das obras elaboradas e defendidas por Loureno Filho foi o manual

    Testes ABC11, que supostamente deveria conferir ao trabalho escolar uma maneira de

    classificar os alunos a partir de seus desempenhos. Em 1928, Loureno Filho e seus

    9 O Manifesto dos Pioneiros da Educao um documento publicado originalmente no ano de 1932, tendo como ttulo A reconstruo educacional no Brasil ao povo e ao governo com o objetivo de indicar os caminhos pelos quais a escola pblica deveria seguir, sendo assinado por um grupo composto por 26 educadores, o primeiro signatrio foi Fernando de Azevedo, seguido por M. Bergstrm Loureno Filho, A. de Sampaio Dria, Ansio Spinola Teixeira (AZEVEDO, 2006). Trataremos do Manifesto dos Pioneiros em um captulo prprio, mais adiante. 10 Loureno Filho (1897-1970) estudou na Escola Normal de Pirassununga e, posteriormente, na Escola Normal Secundria da Praa da Repblica, em So Paulo. Foi responsvel por reformas em sistemas educacionais, das quais a primeira aconteceu entre 1922 e 1923 no Cear (FVERO; BRITO, 1999, p. 365- 373). 11 Instrumentos de uma nova psicometria articulada ao tratamento estatstico que visa a identificar lgica e objetivamente a variedade mental, os testes ABC contm oito provas destinadas a medir os atributos particulares do aluno, a fim de assinalar as deficincias particulares de cada criana, objetivando a consequente organizao racional das classes escolares. As provas psicolgicas medem: coordenao visivo-motora (sic.), memria imediata, memria motora, memria auditiva, memria lgica, prolao, coordenao motora e mnimo de ateno e fatigabilidade (MONARCHA, 1999, p. 308)

  • 31

    colaboradores aplicariam exames psicolgicos a 814 alunos matriculados no Jardim de

    Infncia, instituio anexa Escola Normal da Praa (MONARCHA, 1999, p. 307),

    demonstrando, de tal modo, a possibilidade de seu uso em grande nmero de alunos.

    De certa forma, podese afirmar que o uso desses testes possibilitaria a

    concretizao do sonho dourado da pedagogia: formao de classes homogneas,

    classes especiais de retardados e de bem-dotados de inteligncia (MONARCHA, 1999,

    p. 304). a pedagogia experimental de Loureno Filho conquistando cada vez mais

    evidncia num ambiente em que se desejava a construo de um modelo educacional

    moderno. dessa maneira que os normalistas colocam-se na posio de especialistas,

    prontos para atuar na organizao e direo da sociedade (MONARCHA, 1999, p. 312).

    3.2 Alguns pensadores do escolanovismo

    Alm do trabalho acima citado, Loureno Filho voltou-se para questes que

    envolviam a avaliao e o ensino, alm de elaborar os famosos Testes ABC. Ele

    publicou cartilhas, textos didticos e livros a serem utilizados nas escolas elementares,

    operou ao longo de sua vida como administrador, pesquisador e docente de Psicologia,

    o que lhe permitiu um grande nmero de publicaes especializadas que por mais de

    cinquenta anos circularam no ambiente educacional. Saviani afirma que Loureno Filho

    foi uma figura-chave no processo de desenvolvimento e divulgao das ideias

    pedaggicas da Escola Nova no Brasil (SAVIANI, 2011, p. 206).

    Segundo Carvalho (2002, p. 387), ao trocar cartas com o diretor da Escola

    Normal do Cear, Loureno filho estimulava a adoo do mtodo de Decroly, um dos

    diversos sistemas de pedagogia que poderia ser entendido como parte do movimento

    renovador.

    Entre os trabalhos desse educador, destaca-se o livro Introduo ao Estudo

    da Escola Nova, de 1930, pois foi

    amplamente o livro que mais eficazmente compendiou e difundiu os saberes e as crenas que deram forma verso triunfante dessa nova pedagogia. Vale a pena l-lo, aqui, como dispositivo de interveno nessa disputa e como pea de uma estratgia editorial interessada em

  • 32

    transformar a escola brasileira, promovendo uma nova cultura pedaggica do professorado (CARVALHO, 2002, p. 393)

    Ao longo de seu percurso, Loureno Filho interagiu com outros educadores;

    um de seus colegas na Escola Normal de So Paulo foi Fernando de Azevedo12. Em

    1927, a pedido do presidente da Repblica, Washington Luiz, e do prefeito Antnio

    Prado Jnior, Fernando de Azevedo assumiu a funo de diretor geral da Instruo

    Pblica do Distrito Federal, perodo em que realizou uma reforma que para Saviani

    (2011) seria a primeira concatenada ao iderio renovador da Escola Nova. Azevedo

    ocuparia esse cargo at 1930, ano em que o ento presidente e o prefeito foram

    depostos.

    A atuao de Fernando de Azevedo no campo da Educao ocorreu devido

    a relaes profissionais que mantinha com figuras importantes, pelas reformas

    realizadas e diversas publicaes em jornais e livros. Participou da fundao da USP,

    onde foi regente da cadeira de Sociologia, disciplina pela qual j manifestava interesse

    desde sua atuao na Escola Normal.

    Saviani (2011, p. 210) atribuiu a Fernando de Azevedo o reconhecimento

    como o principal divulgador e apologeta do movimento. Sua formao, diferente de

    Loureno Filho, no foi no mbito pedaggico: recebeu uma formao clssica do tipo

    jesutico, tendo como primeira ao no campo educacional a elaborao de um projeto

    introduzindo a cadeira de educao fsica em carter obrigatrio.

    Outro educador que discutiu princpios escolanovistas foi Ansio Teixeira13,

    que, durante sua vida profissional, manteve contato com Fernando de Azevedo e

    Loureno Filho. A carreira educacional sempre foi a escolha de Ansio Teixeira, tendo

    prevalecido sobre a possibilidade de tornar-se jesuta e poltico, uma vez que dispunha

    12 Nascido em Minas Gerais, Fernando de Azevedo (1894-1974) concluiu o curso de Direito em 1918. Ocupou diversos cargos educacionais, entre eles o de professor de Latim e Psicologia; tambm foi diretor do Instituto de Educao Caetano de Campos e da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP e Secretrio da Educao de So Paulo. 13 Nascido em Caetit, (1900 1971), atuou em diversos cargos pblicos e visitou a Europa e os Estados Unidos, onde pde observar diversos sistemas escolares. Faleceu no Rio de Janeiro (FVERO; BRITO, 1999, p. 56-73).

  • 33

    da presena de sua famlia na poltica baiana. Saviani (2011, p. 218) lembra as

    dificuldades que essa escolha encerrava: no final da dcada de 1920, a educao no

    estava ainda caracterizada profissionalmente e, assim como hoje, gozava de muito

    pouco reconhecimento social.

    Entre as ideias renovadoras de Ansio Teixeira, merecem destaque as que

    situaram-se no mbito da formao docente, sendo ele o responsvel pela criao do

    Instituto de Educao e transformando a Escola Normal de Professores. Atuou na

    gesto da Educao do Distrito Federal de 1931 at 1935, quando, devido ao golpe do

    Estado Novo, teve que se demitir da funo que exercia. Discordava dos rumos

    autoritrios que a educao no pas seguia (SAVIANI, 2011, p. 218-119).

    Com o fim do Estado Novo, Ansio Teixeira assumiu a funo de Secretrio

    da Educao a pedido do novo governador, Otvio Mangabeira. Ficou nessa funo no

    perodo compreendido entre 1947 e 1951. Ocupou o cargo de secretrio geral da

    CAPES e, no ano seguinte, adquiriu tambm a funo de diretor do INEP. Sobre esse

    assunto, Saviani informa que Ansio Teixeira:

    permaneceu em ambos os postos at 1964, quando, em decorrncia da ditadura militar, teve seus direitos polticos cassados e foi afastado da vida pblica, perdendo todos os seus cargos, com exceo da condio de membro do Conselho Federal de Educao (CFE), cujo mandato se encerraria em 1968. (SAVIANI, 2011, p. 220)

    O educador Ansio Teixeira entendia que a educao no poderia ser tratada

    como um privilgio para poucos, pois era um direito de todos, e o espao pblico

    deveria se ocupar em defesa dele ao invs de assegurar a defesa dos interesses

    privados (SAVIANI, 2011, p. 222).

    Dessa forma, Teixeira empenhou-se na organizao e administrao do

    sistema escolar, introduzindo servios de matrcula, frequncia e obrigatoriedade

    escolar, alm de avaliar a aprendizagem com o uso de testes escolares por intermdio

    de um servio central especializado, removendo essa responsabilidade das escolas que

    tratavam desses assuntos de maneira isolada. Ansio Teixeira trabalhou ainda na

    construo de um sistema educacional em que as diferentes etapas possussem

    articulao (SAVIANI, 2011, p. 226).

  • 34

    Admirador da pedagogia de John Dewey, durante sua vida Ansio Teixeira

    realizou duas viagens decisivas em sua formao aos Estados Unidos, em 1927 e

    posteriormente em 1929, onde obteve o ttulo de Master of Arts na Universidade de

    Columbia, perodo em que realizou estudos com John Dewey (1859-1952). Seu

    falecimento ocorreu em condies obscuras: foi encontrado morto no poo de um

    elevador no ano de 1971 (SAVIANI, 2011, p. 221).

    3.3 O Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova

    Uma das interaes desses trs pensadores escolanovistas pode ser

    entendida como a participao na elaborao do Manifesto dos Pioneiros da Educao

    Nova: atribuda a Fernando de Azevedo a tarefa de elaborar um documento que

    apresentasse solues para os problemas educacionais vividos no Brasil, 26

    signatrios apresentaram, em 1932, o documento que ficaria conhecido como o

    Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova (SAVIANI, 2011, p. 234-235)

    Fernando de Azevedo argumentava que resolver os problemas da educao

    nacional tratava-se de uma responsabilidade histrica, defendendo que, em 43 anos de

    repblica, no ocorrera ainda uma reforma associada aos problemas econmicos e

    educacionais. Apresentava ainda a importncia do esprito cientfico e do uso das

    tcnicas desenvolvidas cientificamente. Pregava uma reforma dotada de

    fundamentao filosfica e de abrangncia social (SAVIANI, 2011, p.242).

    Nesse documento, l-se a defesa de uma escola acessvel a todos os

    cidados, independentemente de suas condies econmicas e sociais; alm disso, os

    princpios de laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducao se faziam presentes

    (SAVIANI, 2011, p. 245).

    Na voz de Saviani:

    Em termos polticos, o Manifesto expressa a posio de uma corrente de educadores que busca firmar-se pela coeso interna e pela conquista da hegemonia educacional diante do conjunto da sociedade capacitando-se, consequentemente, ao exerccio dos cargos de direo da educao pblica tanto no mbito do governo central como dos Estados federados. (SAVIANI, 2011, p. 254).

  • 35

    Cargos importantes seriam ocupados, frente da educao, por diversos

    desses educadores ao longo das dcadas seguintes. Os trs representantes do

    movimento Escolanovista, Loureno Filho, Fernando de Azevedo e Ansio Teixeira,

    merecem destaque nesta pesquisa por terem exercido papis junto escola Caetano

    de Campos e em relao formao de professores.

    3.4 Uma nova racionalizao, os conhecimentos biopsicolgicos

    O sculo XX desponta novo em folha, propondo uma nova experincia de

    tempo e de espao urbanos (MONARCHA, 1999, p. 291). Pensar no futuro se torna a

    urgncia desse tempo, e os reformadores, ex-normalistas, tomaram para si a

    responsabilidade pela composio das mudanas que se estabeleceriam no pas e

    na Escola Normal os espritos se mobilizavam para uma ofensiva renovadora. Antes de educar a criana, mister [...] conhecer-lhe a alma: donde a necessidade de uma psicologia infantil. Mas esse conhecimento reclamava previamente que se olhe e estude o corpo [...] (ALMEIDA JNIOR apud MONARCHA, 1999, p. 293).

    Lemos nas palavras de Almeida Jnior14 (1882-1971) a presena do

    conhecimento de algo que at agora no era foco no processo educativo, o corpo, o

    conhecimento do funcionamento humano. Prope-se, ento, uma educao que se

    baseasse em processos cientficos, especialmente aqueles validados por cincias como

    a psicologia e a fisiologia.

    Os normalistas aos quais o autor se refere eram tambm frutos de uma nova

    maneira de pensar a educao, e, em alguma medida, as posies dos educadores

    republicanos perdem espao para aqueles que exaltavam a imagem da mquina; v-

    14 Segundo o Dicionrio de Educadores do Brasil Antnio Ferreira de Almeida Jnior atuou como professor, diretor, auxiliou Sampaio Dria no cargo de auxiliar do Diretor-Geral do Ensino da Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, Chefe do Servio Mdico Escolar do Estado de So Paulo, entre outros, formou-se em medicina e posteriormente obteve ttulo de Doutor com grande distino. Alm de interagir com Sampaio Dria, foi professor de Loureno Filho, colaborou com Fernando de Azevedo e Gustavo Capanema. Nascido em Joanpolis, So Paulo, em 1892, faleceu em 1971, em So Paulo, Capital (FVERO; BRITO, 1999, p. 82-98).

  • 36

    se nos normalistas dissidentes a disposio de herdar o mundo na construo de um

    futuro moderno, pela educao. Dentre esses normalistas, destacam-se os j citados

    Fernando de Azevedo e Loureno Filho, dispostos a construir um futuro a partir da

    sociologia, da biologia e da psicologia. Dessa forma:

    Reformadores que no rompem de fato com a cultura acadmica oficial, os dissidentes improvisam uma ruptura com o passado, assumindo-se como cultores da biologia tributria das teses eugenistas, da sociologia positivista atualizada por mile Durkheim e de uma determinada forma de psicologia objetiva ou cientfica que ultrapassa os limites da psicofsica clssica (MONARCHA, 1999, p. 297).

    O movimento Renovador, liderado por normalistas, aos poucos vai

    solidificando suas ideias nos diversos sistemas utilizando-se das reformas que

    promovem pelo pas:

    O novo florilgio retrico exalta: a tcnica, a eficincia, o rendimento e a organizao e, sobretudo, a mquina, representada como poder humano sobre a natureza, instrumento emancipador e signo de um elevado patamar civilizatrio (MONARCHA, 1999, p. 297).

    A palavra de ordem em um movimento educacional permeado pela

    psicologia o de buscar novas maneiras de entender o ensino. Dessa maneira, o

    esprito renovador atua politicamente sobre a educao. (MONARCHA, 1999, p. 299).

    Assim seriam as reformas pretendidas por Loureno Filho, que, ao assumir as cadeiras

    de Psicologia e Pedagogia na Escola Normal de So Paulo, direcionou todos os seus

    esforos no desenvolvimento desses saberes.

    Foi ainda na Escola Normal de So Paulo que Loureno Filho, frente do

    laboratrio de Psicologia Experimental, exerceu uma grande influncia sobre um grupo

    de professores que colaboraram no debate que se organizava na poca: coesos e

    sintonizados, defendiam a psicotcnica como uma das maneiras de articular a

    pedagogia com o rendimento dos alunos.

    O uso dos testes ABC, elaborados por Loureno Filho, demonstra um ponto

    de vista em que a organizao social um fenmeno que pode ser dominado por meio

    de tcnicas cientficas e, nesse caso, as relacionadas biologia; separa os alunos em

  • 37

    fortes e fracos e determina a velocidade com que aprendem, sem levar em conta outros

    fatores que possam vir a resultar na aprendizagem.

    Algumas vezes, a racionalizao dos testes na organizao das classes

    ofereceu avano nas taxas de aprovao do primeiro para o segundo ano de cerca de

    50% a 60%, e a pedagogia experimental de Loureno Filho vai elevando essa

    porcentagem, num momento de busca pela escola sob medida defendida por

    Claparde15 (MONARCHA, 1999, p. 331).

    3.5 O Ensino Normal

    Na primeira metade do sculo XX, uma das principais maneiras de se formar

    professores para o ensino primrio no Brasil era o Curso Normal, uma modalidade de

    ensino que foi se espalhando para atender o sistema educacional em constante

    expanso, sendo que os estados organizaram independentemente, ao sabor de seus

    reformadores, os seus respectivos sistemas (TANURI, 2000, p. 68 - 69). Dessa forma,

    uma diversidade de iniciativas quanto formao dos professores surgiu nos diferentes

    estados brasileiros.

    A primeira Escola Normal fundada no Brasil de 1830, em Niteri RJ. A

    de So Paulo, como segunda ou terceira tentativa, em 1875/1878, chegando em 1949

    a um total de 540 escolas espalhadas pelo pas (ROMANELLI, 2010, p. 168). Essas

    escolas formaram professores por mais de um sculo.

    Mais adiante, neste texto, veremos como tais escolas passaram a funcionar

    na dcada de 1940 diante da promulgao da Lei Orgnica do Ensino Normal, mas

    desde j importante esclarecer o funcionamento da escola Caetano de Campos, pois

    confuses podem ocorrer devido ao nome da escola.

    15 Claparde acreditava que: preciso levar em conta as diferenas de aptides, porque ir contra o tipo individual ir contra a natureza (CLAPARDE, 1973, p. 177) (CLAPARDE, E. A Escola Sob Medida. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1973

  • 38

    Um dos primeiros diretores dessa escola foi o mdico Antnio Caetano de

    Campos, que, com auxlio de Miss Mrcia Priscilla Browne, executou a reforma da

    Escola Normal da Praa16 (MONARCHA, 1999, p. 174). Essa reforma foi centrada no

    trabalho de Heinrich Pestalozzi e nas lies de coisas, proposta de N. A. Calkins

    (MONARCHA, 1999, p. 179):

    O professor ideal a encarnao do mtodo oficial de ensino: o mtodo intuitivo fundamentado na biologia e na psicologia da infncia e ao associacionismo. O emprego do mtodo intuitivo percepo e viso das coisas sensveis e formulao de conceitos exatos objetiva a obteno de conhecimento direto ou imediato do mundo (MONARCHA, 1999, p. 180)

    segundo esse esprito que a Escola Normal da Praa iniciou o sculo de

    1900. O Curso Normal passa por diversas alteraes, incluindo e excluindo anos,

    trocando cadeiras e as remanejando at que

    o novo regulamento da Instruo Pblica do Estado de So Paulo, aprovado e posto em vigor por Cesrio Motta Jnior, consolidava a legislao do que deveria ser a estrutura do ensino de novembro em diante e que, no seu aspecto tcnico-pedaggico, vigorou em suas linhas gerais at 1920 (REIS FILHO apud MONARCHA, 1999, p. 205).

    A partir da, a emergncia do novo pensamento possibilita que as questes

    psicobiolgicas preconizadas pelo Escolanovismo ganhem espao nos laboratrios de

    psicologia, considerando esta uma atividade cientfica superior (MONARCHA, 1999, p.

    299).

    Com a chegada da dcada de 1930, foi criado o Instituto de Educao

    Caetano de Campos, com a inteno de formar professores primrios em nvel superior.

    Durante o perodo de funcionamento desse Instituto, o diretor foi Fernando de Azevedo.

    Na maior parte da dcada de 1930, a formao oferecida na Escola Normal

    era realizada em nvel superior, e seguiu um modelo internacional de formao

    baseado na concepo de Ansio Teixeira. Esse funcionamento encerrou-se com a

    incorporao do curso Universidade de So Paulo, e o curso normal voltou a ser

    16 Um dos primeiros nomes da Escola Caetano de Campos.

  • 39

    oferecido em nvel secundrio. Com o fechamento do Instituto, o nome Escola Caetano

    de Campos adotado novamente.

    Com a implantao da Lei Orgnica do Ensino Normal, os estabelecimentos

    que ofereciam, alm desse curso normal, os de especializao e aperfeioamento

    passaram a se chamar Institutos de Educao. Foi o que aconteceu com a Escola

    Caetano de Campos, a partir de 1947. Entretanto, importante atentar para a questo

    do nome da instituio; apesar de ser mantida a nomenclatura, ela, no correr dos anos,

    refere-se a estruturas educacionais diferentes, j que, no Instituto de Educao

    Caetano de Campos (1947), a formao Normal era realizada em nvel secundrio,

    marcando a sua diferena com o Instituto de Educao da dcada de 1930.

    Em nosso texto utilizaremos, para melhor restringir o curso, o nome escola

    normal Caetano de Campos e quando nos referirmos ao Instituto de Educao Caetano

    de Campos trata-se do perodo que segue dos anos 1947 adiante.

    3.6 A Lei Orgnica do Ensino Normal

    No Estado de So Paulo, foco de nossa investigao, at a dcada de 1940,

    poderiam ser alunos normalistas aqueles que tivessem concludo o curso ginasial.

    Entretanto, no ano de 1944, uma mudana foi introduzida nessa formao: para poder

    frequentar o curso profissional de formao de professores, tambm conhecido por

    Curso Normal, alm de concluir o curso ginasial, o aluno deveria ser aprovado no

    recm-criado curso pr-normal17.

    Com durao de um ano, o curso pr-normal, realizado aps a concluso do

    curso ginasial, era composto por nove disciplinas18, contando com um regime de

    17 Decreto-Lei n. 14.002, de 25 de maio de 1944. Dispe sobre a criao do curso pr-normal e d outras providncias. 18 Determinado pelo Art. 2 do Decreto-Lei n. 14.002, de 25 de maio de 1944: Portugus; Histria da Civilizao Brasileira; Matemtica e Noes de Estatstica; Cincias Fsicas e Naturais; Anatomia e Fisiologia Humanas e Noes de Higiene; Msica e Canto Orfenico; Desenho; Trabalhos Manuais; Educao Fsica.

  • 40

    exames idntico ao do curso de formao de professores. Ao concluir tal curso, o aluno

    recebia um certificado de aprovao que lhe assegurava o direito de ingressar no

    primeiro ano do curso de formao profissional das Escolas Normais, todavia, no

    poderia lecionar apenas concluindo esse ano.

    A aprovao no curso pr-normal permitia que o aluno continuasse seus

    estudos no curso de formao de professores, e a reprovao o impedia de se

    matricular em tal curso. Se o aluno fosse inabilitado em dois anos consecutivos, sua

    matrcula no poderia ser readmitida19 nas escolas normais oficiais.

    Aps a concluso do curso pr-normal, o aluno seguia para o de formao

    profissional de professores, com durao de dois anos e composto por disciplinas

    agrupadas em quatro sees: Educao; Biologia Educacional; Sociologia; Artes. Ao

    concluir os trs anos de formao (o pr-normal mais dois de formao de professores),

    o aluno tornava-se professor primrio.

    Instituindo assim o curso pr-normal na dcada de 1940, o governo do

    Estado de So Paulo mudou um pouco a organizao do Ensino Normal, entretanto

    manteve essa formao realizada em um nico ciclo, em nvel secundrio. O ciclo nico

    vigorava no Estado de So Paulo desde 1920 e continuaria assim mesmo aps a

    diviso em dois ciclos estabelecida na Lei Orgnica do Ensino Normal no ano de 1946

    (TANURI, 2000, p. 69).

    Ainda na dcada de 1940, em nvel federal, Gustavo Capanema, frente do

    Ministrio de Educao e Sade, promulgou um conjunto de leis orgnicas que

    reformaria todo o sistema educacional. Essas leis ficariam conhecidas como a Reforma

    Capanema, e a ltima delas ficaria conhecida como Lei Orgnica do Ensino Normal,

    sendo promulgada em dois de janeiro de 1946.

    Para Tanuri,

    A Lei Orgnica do Ensino Normal, embora assinada logo aps o final da ditadura Vargas, havia sido gestada sob a mesma inspirao anterior, apresentando, entretanto, uma orientao menos centralizadora do que

    19 Artigo 5 Decreto-Lei n. 14.002, de 25 de maio de 1944.

  • 41

    aquela que havia presidido elaborao dos anteprojetos originais. Na avaliao de Mascaro (1956, p. 16), de orgnico para o ensino normal (ela) trouxe exclusivamente o sentido que ao termo foi emprestado pelo longo perodo ditatorial, durante o qual organicidade foi, vastas vezes, confundida com uniformidade (MASCARO apud TANURI, 2000, p. 75)

    Geralmente, as legislaes que recebem esse nome, Lei Orgnica, visam a

    organizar, mas sempre tm como origem os princpios que se encontram na

    Constituio. Cabe ainda lembrar que a palavra orgnica carrega um peso biolgico,

    ou seja, trata-se de uma palavra que diz respeito aos rgos, ao organismo, ao

    funcionamento do ser vivo e, nesse momento histrico, ideias de fundo biolgico

    permeavam a educao, principalmente a das cincias psicobiolgicas.

    A proposta da Lei Orgnica do Ensino Normal dividiu a formao do

    professor em dois ciclos20. O primeiro deles equivalia ao estudo realizado em nvel

    ginasial com durao de quatro anos; era responsvel pela formao do professor

    regente primrio e permitia a continuidade de estudos no Curso Normal. Era ministrado

    nas Escolas Normais Regionais com carter eminentemente rural e, para poder

    frequent-lo, o aluno deveria comprovar ter concludo o ensino primrio.

    O segundo ciclo, chamado de curso de formao de professores, tinha

    durao de trs anos e poderia ser realizado pelos alunos que conclussem o curso

    ginasial ou o primeiro ciclo do Curso Normal. Realizado nas Escolas Normais e nos

    Institutos de Educao, habilitava o professor primrio e dava acesso a alguns cursos

    superiores, desde que no houvesse ressalvas para a matrcula. Aps a concluso do

    segundo ciclo, o normalista tambm poderia realizar os cursos de especializao

    oferecidos pelos Institutos de Educao.

    O quadro 1 ilustra a articulao estabelecida entre o Curso Normal e os

    demais segmentos do curso secundrio.

    20 Art. 2 do Decreto-Lei 8.530 de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgnica do Ensino Normal.

  • 42

    Quadro 1 - Ensino Normal

    Lei Orgnica do Ensino

    Normal - 1946

    Curso Secundrio Leis Paulistas do Curso

    Normal

    Fonte: Compndio de Legislao do Ensino Normal

    Pela organizao do Curso Normal, presente na Lei Orgnica do Ensino

    Normal, aps concluir o curso primrio o aluno poderia ingressar no primeiro ciclo desse

    curso. Para realizar o segundo, o normalista deveria ter concludo o anterior ou o

    Ginasial.

    J a legislao paulista se apresentava de forma diferenciada, ou seja, para

    poder realizar o Curso Normal, o aluno deveria ter concludo o Ginasial; para poder

    conclu-lo, deveria realizar o primeiro ano, denominado curso pr-normal, e obter a

    aprovao neste, e, depois disso, realizar os dois anos denominados Curso profissional

    de formao de professores.

    Nos dois conjuntos21 de leis do Estado de So Paulo publicados aps a Lei

    Orgnica, nenhuma mudana no Curso Normal foi realizada, ou seja, sua organizao

    continuou sendo a de um ano de curso pr-normal e dois anos de curso de formao de

    professores. Alm das legislaes atuarem na organizao das escolas normais, como

    os regimentos internos e os programas publicados para esse curso, um compndio com

    essa documentao foi publicado no ano de 1953.

    21 Em 1947, publicada a Consolidao das Leis do Ensino, e em 1953, o Compndio de Legislao do Ensino Normal.

    Ginasial Ginasial

    Clssico ou

    Cientfico

    1 Ciclo: Formao de professores regentes -

    4 anos

    2 Ciclo: Formao de professores

    primrios 3 anos

    Pr-normal

    Curso profissional de formao de

    professores

  • 43

    De maneira geral, o escolanovismo se ope pedagogia considerada

    tradicional, como visto anteriormente, e foi possvel verificar uma apropriao da

    legislao quanto oposio, uma vez que a Lei Orgnica do Ensino Normal orientava

    no sentido de que as aulas de formao do normalista22 deveriam adotar os processos

    pedaggicos ativos na composio e execuo de seus programas.

    Conceber, ento, uma Escola como Ativa, no que diz respeito s prticas,

    deveria levar em conta que a prtica da escola ativa, como se v, exige

    preliminarmente o conhecimento terico e prtico da psicologia gentica [...], do

    domnio concreto do real: a alma da criana e o mundo, no seio do qual elas esto

    mergulhadas [...] demonstrando assim um imbricamento entre a pedagogia e a

    psicologia. O professor deve direcionar suas aes levando o aluno atividade

    pessoal e, para esse fim, despertar o interesse da classe para certo objetivo, com o

    que se consegue trabalho ativo (DVILA, 1954, p. 331).

    Esse princpio escolanovista, o ensino ativo, presente na formao de

    professores realizada nas Escolas Normais, tinha como pressuposto colocar o aluno em

    atividade pessoal. Por essa razo, o conhecimento psicolgico era posto como parte da

    formao dos professores, concebido como necessrio para despertar os interesses

    dos alunos nas aulas. No curso normal, caberia Metodologia e Prtica de Ensino

    Primrio a tarefa de formar nos normalistas a habilidade de colocar o aluno em

    atividade a partir de seus interesses.

    22 Art. 14. Atender-se- na composio e na execuo dos programas aos seguintes pontos: a) adoo de processos pedaggicos ativos.

  • 44

    3.7 O programa do curso Pr-Normal

    Apesar de ser publicado em maro de 1953 pelo governo do Estado de So

    Paulo atravs da Secretaria de Estado dos Negcios da Educao, no Compndio de

    Legislao do Ensino Normal23 consta que

    a publicao desse material em volume de fcil manuseio e agradvel disposio grfica constitua, sem dvida, providencia que se impunha, maxim tendo-se em conta a escassez dos folhetos distribudos pela Secretaria da Educao, em 1944, relativos a tais decretos e atos, de consulta diria (SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGCIOS DA EDUCAO, 1953, p. 3)

    Em sua totalidade, o Compndio era formado pelos programas do Curso Pr-

    Normal, Programas das Escolas Normais do Estado de So Paulo, regimentos internos,

    Lei Orgnica do Ensino Normal e atos que dispunham sobre a acumulao de cargos.

    importante destacar que nenhum outro programa foi encontrado de 1944 at 1953.

    Na Revista do Ensino (1947), h indicao de que os programas seriam

    publicados anexos edio seguinte do peridico. Entretanto, verificado o documento,

    foi constatada a inexistncia dessa publicao, o que corrobora a suposio de que os

    programas encontrados em 1953 tenham vigorado desde a dcada anterior.

    Vale destacar que nesse Compndio paulista constam a Lei Orgnica do

    Ensino Normal e o programa do curso pr-normal. Porm, esse ano inicial no est

    presente na legislao federal, sendo caracterstico apenas da legislao estadual.

    Uma questo se abre: esses programas foram utilizados como referncia nos

    currculos do Instituto de Educao Caetano de Campos? Compreendendo que as

    mudanas na cultura escolar no so marcadas por rupturas imediatas e tratam de

    processos construdos em grande medida pela ao interna (CHERVEL, 1990),

    podemos supor disputas na construo do currculo em que entram em jogo o

    pensamento externo e o interno das instituies. Como demonstra Certeau (2008), nem

    23 Esse documento foi encontrado no Acervo Histrico Caetano de Campos e consta em sua pgina de rosto com um carimbo da E.E.P.S.G. Caetano de Campos, Biblioteca Paulo Bourroul, Reg. sob n 2582, So Paulo, 31-08-1981.

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    sempre a deciso que emana daquele que ocupa um lugar prprio cumprida em cada

    detalhe, pois todas as estruturas esto sujeitas a falhas, das quais se aproveitam os

    que no so prprios, pelo intermdio de tticas.

    A construo do currculo executado nas escolas , acima de tudo, uma nova

    produo daquilo que pode ser lido fora do ambiente escolar, demonstrando uma

    apropriao do pensamento exterior e no uma incorporao fiel. Essa nova fabricao

    deixa vestgios que podem ser confrontados na tentativa de representar como a disputa

    ocorreu.

    Analisando o documento direcionado para o curso Pr-Normal, o programa

    em vigor desde o segundo semestre de 1944 determinava duas aulas semanais para a

    disciplina de Matemtica e Noes de Estatstica, ou seja, h uma diferena no nmero

    de aulas presentes na Consolidao das Leis do Ensino de 1947 que aumentou a carga

    horria em uma aula semanal. Essa disciplina estava organizada, pelo programa, em

    dezesseis itens, cada um representando diversos contedos matemticos e estatsticos

    a serem trabalhados durante o ano letivo.

    Entre esses contedos listados para a disciplina de Matemtica e Noes de

    Estatstica encontram-se:

    sistema mtrico; grandezas e unidades; resoluo analtica de quest