O céu de suely, ao rés-do-chão

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42 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM CULTURA Leandro Saraiva O filme de Aïnouz coroa o amadurecimento do cinema brasileiro contemporâneo, afirmando uma nova estética, que se diz “hiper- realista”, aberta ao real, mas lúcida sobre seu caráter construído cinema Imagens: divulgação Acenda a luz de leve eu lhe mostro uma beleza bola de neve Será que vale falar de um filme brasi- leiro contemporâneo, muito contem- porâneo, que parece ter sido feito hoje de manhã, citando um haicai ja- ponês do mestre Bashô, que viveu no século 17? Acho que vale. Nada a ver com samurais, apesar da errância de Hermila, a protagonista de O céu de Suely. Também não pa- rece bom apelar para alguma preten- sa “condição humana”. Afinal, Hermila foi tentar a vida em São Pau- lo, ralou, se virou e resolver voltar ao Nordeste, para a sua minúscula Iguatu. Estamos bem longe de algum deserto místico ou mítico, onde “o Ho- mem vaga”. Iguatu é Iguatu mesmo. Karim Aïnouz conta que no roteiro o lugar cha- mava-se Barcelona, talvez meio por piadi- nha de moço cosmo- polita – Karim viveu entre Recife, Nova Iorque e Rio – que se volta para o interior profundo, com ares de quem tudo já viu. Mas aí ele, mais os ato- res, foram viver em Iguatu um tem- po, preparando e se preparando para a filmagem. O povo de lá, acostuman- do com eles e sem saber da tal ficcional Barcelona, devolvia a ironia: “e os artistas, quando chegam?”, diziam, rindo daquele cinema que se fazia vizinho. Caiu a ficha do Karim: que Barcelona que nada, é Iguatu mesmo. E é. E por mais que já se te- nha visto, é preciso aprender a ver. Improviso da vida A possível afini- dade entre a viagem poética de Bashô e a de Karim Aïnouz está nessa busca de um olhar inaugural, pré-codifica- do, ao que surge a cada momento, de modo imediato. Nas entrevistas que deu, o diretor de O céu de Suely conta que esse foi o lema íntimo que adotou na realiza- ção do filme: “deixa eu ver”. Prestar aten- ção no ínfimo, nos in- terstícios da vida. Nada de grandes histórias, de plot, como se diz nos manuais de roteiro. Cinema como exercício de olhar, de abrir os olhos para o que se apresenta no improviso da vida. Hermila, Mila, para os amigos e famí- lia, não está reinventando a poesia, como Bashô, lá no século 17, em suas viagens a pé pelas estradas do Japão feudal. Mas ela quer reinventar a sua vida. Por paixão, como conta para sua tia e amiga, Maria, foi “feito uma lou- ca” para São Paulo. De lá voltou com Mateuzinho, filho dessa paixão, pre- parando o terreno para a volta do pai. Volta prosaica e também muito con- temporânea: o jovem Mateus pai, fi- camos sabendo, vai logo chegar de São Paulo com uma copiadora de CDs e DVDs, para vender pirataria na pra- ça de Iguatu. No mundo digitalizado não existe centro (só periferia e repres- são, seja na paulistana Santa Efigênia, em Iguatu ou em Bombaim). Mas a aventura e a paixão engripam: Mateus e sua copiadora não vêm mais e Mila está solta no espaço. Ou talvez seja melhor dizer, rodando no vazio. Tudo isso acontece logo de cara, sem suspenses, e ficamos nós ao sabor da deriva inquieta de Mila, naquele lu- gar que é dos seus – de sua avó costu- reira, de uma amiga prostituta de pos- to de gasolina, de sua tia motoqueira e do também motoqueiro João, um O CÉU DE SUELY direção Karim Aïnouz roteiro Karim Aïnouz, Felipe Bragança, Maurício Zacharias fotografia Walter Carvalho produção Videofilmes, 2006 88 min O céu de Suely, ao rés-do-chão O céu de Suely, ao rés-do-chão

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Artigo sobre o filme de Karim Ainouz, publicado na revista Retrato do Brasil/Reportagem, no. 6 (www.oretratodobrasil.com.br)

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42 | Retrato do BRASIL | REPORTAGEM

CULTURA

Leandro Saraiva

O filme de Aïnouz coroa o amadurecimento do cinema brasileiro

contemporâneo, afirmando uma nova estética, que se diz “hiper-

realista”, aberta ao real, mas lúcida sobre seu caráter construído

cinema

Imag

en

s: d

ivu

lgaçã

o

Acenda a luz de leve

eu lhe mostro uma beleza

bola de neve

Será que vale falar de um filme brasi-leiro contemporâneo, muito contem-porâneo, que parece ter sido feitohoje de manhã, citando um haicai ja-ponês do mestre Bashô, que viveu noséculo 17? Acho que vale.Nada a ver com samurais, apesar daerrância de Hermila, a protagonistade O céu de Suely. Também não pa-rece bom apelar para alguma preten-sa “condição humana”. Afinal,Hermila foi tentar a vida em São Pau-lo, ralou, se virou e resolver voltar aoNordeste, para a sua minúsculaIguatu. Estamos bem longe de algumdeserto místico oumítico, onde “o Ho-mem vaga”. Iguatu éIguatu mesmo. KarimAïnouz conta que noroteiro o lugar cha-mava-se Barcelona,talvez meio por piadi-nha de moço cosmo-polita – Karim viveu entre Recife, NovaIorque e Rio – que se volta para ointerior profundo, com ares de quem

tudo já viu. Mas aí ele, mais os ato-res, foram viver em Iguatu um tem-po, preparando e se preparando paraa filmagem. O povo de lá, acostuman-do com eles e sem saber da talficcional Barcelona, devolvia a ironia:“e os artistas, quando chegam?”,diziam, rindo daquele cinema que sefazia vizinho. Caiu a ficha do Karim:que Barcelona que nada, é Iguatumesmo. E é. E por mais que já se te-nha visto, é preciso aprender a ver.

Improviso da vida A possível afini-dade entre a viagem poética de Bashôe a de Karim Aïnouz está nessa buscade um olhar inaugural, pré-codifica-do, ao que surge a cada momento, demodo imediato. Nas entrevistas que

deu, o diretor de O céude Suely conta queesse foi o lema íntimoque adotou na realiza-ção do filme: “deixaeu ver”. Prestar aten-ção no ínfimo, nos in-terstícios da vida. Nadade grandes histórias,

de plot, como se diz nos manuais deroteiro. Cinema como exercício deolhar, de abrir os olhos para o que se

apresenta no improviso da vida.Hermila, Mila, para os amigos e famí-lia, não está reinventando a poesia,como Bashô, lá no século 17, em suasviagens a pé pelas estradas do Japãofeudal. Mas ela quer reinventar a suavida. Por paixão, como conta para suatia e amiga, Maria, foi “feito uma lou-ca” para São Paulo. De lá voltou comMateuzinho, filho dessa paixão, pre-parando o terreno para a volta do pai.Volta prosaica e também muito con-temporânea: o jovem Mateus pai, fi-camos sabendo, vai logo chegar deSão Paulo com uma copiadora de CDse DVDs, para vender pirataria na pra-ça de Iguatu. No mundo digitalizadonão existe centro (só periferia e repres-são, seja na paulistana Santa Efigênia,em Iguatu ou em Bombaim).Mas a aventura e a paixão engripam:Mateus e sua copiadora não vêm maise Mila está solta no espaço. Ou talvezseja melhor dizer, rodando no vazio.Tudo isso acontece logo de cara, semsuspenses, e ficamos nós ao sabor daderiva inquieta de Mila, naquele lu-gar que é dos seus – de sua avó costu-reira, de uma amiga prostituta de pos-to de gasolina, de sua tia motoqueirae do também motoqueiro João, um

O CÉU DE SUELYdireção Karim Aïnouz

roteiro Karim Aïnouz, Felipe

Bragança, Maurício Zacharias

fotografia Walter Carvalho

produção Videofilmes, 2006

88 min

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antigo, discreto mas ainda apaixona-do namorado – mas não é mais dela.Como tantos e tantos brasileiros ebrasileiras, Mila caiu na vida, não exa-tamente atrás de “um sonho” (comodizem os trailers dos filmes norte-americanos), mas atrás da vida mes-mo, de si própria, talvez.Como disse o antropólogo OtávioVelho recentemente em entrevista àrevista CartaCapital, “não há maisgrotões”. Rompido esse isolamento,o sertão de Iguatu não só já não estámais para Diadorins, Lampiões, deu-ses e diabos, como também não servecomo espaço de redenção ao estilode Central do Brasil. Mila parte, voltae parte de novo. Está “correndoatrás”, como diz a expressão popularque, sem objeto, caracteriza tão bemnem tanto alguma “condição huma-na”, mas uma condição comum a tan-tos brasileiros, que não encontramlugar – nem trabalho – e, por issomesmo, não param de encontrar ereinventar, fazendo da angústia umacompanheira de viagem, sempre no-vos lugares e afazeres. São Paulo,para onde Mila partiu, é a metrópoleque concentra esses andarilhos con-temporâneos e faz dessa condição,de quem “corre atrás”, sem sabermuito do que, nem como, um modode ser. Como numa célebre cançãodo Grupo Rumo, sintomaticamenteentitulada Esboço, na qual Luiz Tatitdescreve o “paulistano” como “in-quebrável, flexível”, “meio deliran-te, meio inconseqüente, muito colo-

rido, um destaque na paisagem, étodo uma figura, um personagem”,mas que no fundo, diz o autor, mui-to auto-irônico, “é gente como agente, a gente sente, pois se apertaele chora. E ele vagueia, vagueia”.Mila poderia se reconhecer nessa le-tra que trata poeticamente da inqui-etude paulistana, filha da mais exas-perada manifestação de nossamodernidade capitalista periférica.

Escândalo e fascínio Mila, que já che-ga em Iguatu “toda colorida”, de ca-belo meio escuro, meio loiro, inventaque vai novamente embora e para issose reinventa como a personagem Suely,moça que vende uma rifa que vale“uma noite no paraíso”, com ela pró-pria, num motel da cidade. Nessareinvenção de si, ela, que não quer“ser puta – puta vai com qualquer ume só vou com o ganhador da rifa” –nem ser “porra nenhuma”, como dizpara sua tia, Mila/Suely permite umolhar também reinventado sobre suaexperiência.Primeiro, porque nessa passagem àpersonagem, ela sintetiza e mantém aambivalência entre várias determina-ções e reações. Ela se revaloriza: desubempregada (Mila lava carros numposto de gasolina) e abandonada pelomarido, ela passa a ser o centro dasatenções de Iguatu. Os homens com-pram em peso sua rifa e as famílias seescandalizam. O escândalo e o fascí-nio vêm menos do corpo oferecidocomo mercadoria do que da denega-

ção dessa mercantilização. O céu deSuely cria uma aura de fantasia subje-tiva em torno da mercantilização de si(da prostituição); uma transcendênciaem relação à mercantilização pobre eprecária que subsume a tudo e todosna beira de estrada que é Iguatu, cujaeconomia, ao que parece, se equilibranos gastos dos caminhoneiros quecirculam por ali.Não é apenas o sertão cinemanovista,ou mesmo as releituras alegóricas docinema da retomada, que parecem, àluz de O céu de Suely, datados. Tam-bém a beira de estrada de Iracema,uma transa amazônica (1973), filmede Jorge Bodanzky e Orlando Senna,parece ter ficado para trás.Ali, há mais de três décadas, pela do-cumentação da realidade de beira deestrada da Transamazônica, era figu-rada a degradação social criada comoefeito secundário da modernizaçãoconservadora em curso no regime mi-litar, que mercantiliza precariamente oPaís. Agora, na Iguatu de Suely, essamercantilização claudicante está ple-namente estabelecida. É dentro delaque Mila, jovem de 21 anos, nasceu,cresceu, viajou, voltou e se rifou. Suapostura, de consciência e reação a essacondição, é parente de outra persona-gem marcante do cinema brasileiro re-cente: em Edifício Master (2002),documentário de Eduardo Coutinho,Alessandra, garota de programa, cheiade charme, lúcida de seu desempenhocomo entrevistada, se diz “a mentiro-sa verdadeira” e produz uma “misturade espontaneidade e de teatro, de au-tenticidade e de exibicionismo, de umfazer-se imagem e ser verdadeiro”(como disse o crítico Ismail Xavier).Ambas escapam ao ressentimento, quemarcou parte importante do cinemada retomada, se reinventado comoimagem, o que as valoriza, justamentepor escancararem a fatura dessa inven-ção. São mulheres do povo que tomam

Diferente do Cinema Novo, em O céude Suely predomina a câmera notripé. Mas, esse procedimento não éonipresente: há momentos de câmerana mão – o filme não deixa de aderirmais fortemente às variaçõesemocionais da personagem, que seentrega a momentos de intensidade etransbordamento

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para si a “magia” de se fazer imageme mercadoria, tão crucial na sociedadecontemporânea brasileira.Mas O céu de Suely tem outras bele-zas, que surgem a partir dessa“assunção” de Mila ao céu de Suely.Assim como Mila foge dos papéis aela reservados, inserindo-se na gale-ria de personagens modernos, mar-cados pela deriva e não pelo cumpri-mento de uma missão, o modo deolhar – o cinema como modo dereinventar o olhar – para sua experi-ência também se abre para o não-co-dificado. É aí que o cinema de KarimAïnouz revela mais afinidades com apoética do fragmento, do insignifican-te e do contingente, típica do haicai.O modo que o filme nos dá a ver aexperiência de Mila e do outros habi-tantes de Iguatu é também um esfor-ço de desautomatização.De início, trata-se de uma narrativa desituações, muito mais do que de pro-gressão dramática. Cada seqüência fixa-se num instante existencial – uma noiteonde o filho de Mila chora e ela olha océu; um passeio de moto com um anti-go namorado; uma balada e bebedeiracom a amiga prostituta –, muito maisdo que serve ao avanço e modulaçãode alguma curva dramática. Os fios danarrativa vão se tecendo de forma tê-nue. Mila chega e parte novamente, é

abandonada pelo marido, reaproxima-se de um ex-namorado, rompe com ele,inventa a rifa, briga e se reconcilia coma família. Mas tudo isso acontece pormeio de saltos e elipses, com o rumo dapersonagem sendo composto às apal-padas, sem destino certo (ela vagueia,como diz Tatit).

Sem fronteiras Desobrigado da nar-rativa cerrada e dos sistemas de con-trole funcional da emoção (ou seja,do espectador), o filme se abre ao ime-diato. Somos mergulhados nos ambi-entes de Iguatu – a casa pobre da fa-mília, as ruazinhas, o posto de gasoli-na, sempre repleto de caminhoneiros,centro da vida social – pelos quais oolhar também vagueia. Os atores es-tão também desobrigados de rígidasmarcações de cena, de coreografiasde posições de câmera calculadas emfunção dos efeitos necessários à amar-ração e progressão narrativa. Se mo-vem de modo livre, com a câmera sesubmetendo a essa liberdade, paracaptá-la.É esse modo de operação que abre ofilme a uma dimensão documental, fa-zendo dele uma ficção que se esboçaem meio e em tensão com o ambientereal de Iguatu (e não de “Barcelona”).Isso está não apenas nas cenas em quese incorporam pessoas reais, do local,

contracenando com os atores, mas tam-bém nas filigranas do estilo.Essa indistinção de fronteiras entredocumentário e ficção, marcante nocinema moderno, no mundo em ge-ral e no cinema brasileiro especifica-mente, é brilhantemente retomadaem O céu de Suely, colocando seuautor entre um grupo de continuado-res desse cinema de fronteira –Kiarostami e Makmalbaf, AgnésVarda, Jem Cohen, para citar algunsnovos e velhos cineastas que trilhamesse caminho estreito.Mas O céu de Suely o faz de modomuito próprio. Diferencia-se, em termosestilísticos, da famosa câmera na mão,que deu o tom documental aos mo-mentos de auge do Cinema Novo. Nofilme de Karim, predomina a câmera notripé. Um certa suavidade melancólica econtemplativa, mais do que a urgênciada câmera na mão. Sinal, talvez, de ou-

Mila/Suely caiu na vida: está“correndo atrás”, como muitosbrasileiros, que não encontram

lugar e nem trabalho e fazem daangústia uma companheira de

viagem. São Paulo, para onde foi apersonagem, é a metrópole que

concentra os andarilhoscontemporâneos e torna essa

condição um modo de ser

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tra relação com o real, que escapa e quese quer flagrar. O Cinema Novo violen-tava o real, levado pelo impulso revolu-cionário do qual fazia parte. Hoje, emIguatu ou em São Paulo, no país deMila e dos espectadores contemporâ-neos, os tempos são outros e a inquie-tação de Mila e seu embate com seuambiente se processa em termos indivi-duais. De certa forma, o peso do mun-do, de suas limitações, parece maiornesses enquadramentos fixos, dentrodos quais Mila vive e se debate.

Um achado A combinação entre liber-dade de improviso para os atores ecâmera fixa resulta numa parcimônia deplanos, em geral mais abertos (dandoespaço às interpretações). Dois ou trêsângulos são suficientes para dar contada ação, deixando entrar e impregnarno quadro a materialidade dos ambi-entes, sem que essa se dissolva numamontagem volátil e frenética. A casa daavó de Mila impregna as ações com seupeso e precariedade; o posto aparececomo um palco estático, atravessadopor um movimento incessante de cami-nhoneiros. Apesar da liberdade conce-dida aos atores, nos ambientes inter-nos, de pouca luz e apertados, o campofocal é curto, o que restringe a faixadentro da qual se concede essa liberda-de de movimentos e reforça a sensação

de limites e sufoco. Há, entretanto, pe-quenos momentos, preciosos e fugidi-os, de detalhes flagrados, delicadamen-te recortados do contexto e como quebordados nos interstícios do fluxo deimagens, como a pipa presa nos fios deeletricidade ou a água caindo no corpoda protagonista, durante o banho (sãoas “bolas de neve” da poesia de KarimAïnouz).O procedimento do tripé, se predo-mina, não é onipresente. Há momen-tos de câmera na mão, colada ao cor-po de Hermila (nome tanto da atrizquanto da personagem). Se o filmenão se constrói como uma curva dra-mática, ele não deixa de, por vezes,oscilar, aderir mais fortemente às va-riações emocionais de Mila, que, im-pulsiva e visceral, volta e meia se en-trega a momentos de intensidade etransbordamento.Como nas baladas, filmadas em closesbem fechados, à flor da pele e em te-leobjetiva, o que transmite uma sen-sação de sensualidade exasperada.Ou, nos momentos líricos com João –suaves, como no passeio de moto queprecede o encontro sexual (filmadocom movimentos de grua, na estrada)ou na câmera na mão do encontrofinal, de ruptura. São momentos deirrupção da intensidade da persona-gem, em meio àquela condição detolhimento de seu impulso de mudan-ça e de busca.A fotografia do filme é um achado. Degrande beleza, sem que em nenhummomento se destaque desse corpo-a-corpo do mundo que caracteriza o fil-me de modo geral. A iluminação res-peita a luz dos ambientes. É feita dosol a pino nordestino, no meio da rua,mas também de uma luz lateral queentra por uma porta estreita na casamodesta, das luzes quentes de umforró, ou das luzes frias do posto degasolina. Fica nítido que a montagemda luz para a filmagem apenas refor-çou, sem alterar, o jogo de luzes local.Mas isso se faz com tal organicidade eharmonia com os momentos da histó-ria, que a luz se torna quase como umaemanação dos tons da experiência: ocalor sensual de um dança ou a prosai-ca melancolia de uma pausa no traba-lho, num dos planos mais bonitos dofilme, quando Mila enche um baldenos fundos do posto, numa imagem

quase em preto e branco.Essa síntese entre espontaneidade econstrução altamente elaborada (aserviço e reforço da espontaneidade)foi resumida pelo próprio diretor, que,com felicidade, caracterizou sua pos-tura nos seguintes temos: “O filmetem o desejo, o tempo inteiro, de brin-car e se apropriar do real. Mas temtambém um desejo, maior do queesse, que é dizer que não tem real, étudo uma construção. O filme não éneo-realista, ele é hiper-realista”.

Atencão e detalhe É importante perce-ber que O céu de Suely não é uma flordo deserto, surgida de modo surpre-endente e inexplicável. É resultado deum amadurecimento. Por um lado, deum grupo, com debate interno e coe-são estética, apesar das diferenças deestilos entre os filmes de seus autores.Marcelo Gomes (Cinema, aspirina eurubus), Sérgio Machado (Cidade bai-xa) e Karim Aïnouz (Madame Satã e Océu de Suely) constituem, senão ummovimento, um grupo esteticamenteafinado, como há muito não se via nocinema nacional. Buscam um cinemade atenção e detalhe, de embate comambientes e personagens reais. Dife-renciam-se, assim, tanto da honoráveltradição cinemanovista, de pendor ale-górico, quanto da produção cinema-tográfico-televisiva, que tem em GuelArraes e Jorge Furtado seus expoen-tes, que parte da constatação do mun-do tornado imagem, impossibilitando– na visão deles – outra postura críticaque não a da metalinguagem e da des-construção. Karim Aïnouz e seus com-panheiros cinematográficos acreditamna possibilidade de um corpo-a-corpocom o real que não descarta consciên-cia da construção discursiva (daí o“hiper-realismo”).Como base para esse movimento es-tético em ascensão, há a Videofilmes,guarda-chuva não apenas dos filmesdo Walter Salles – com sua antiguida-de entre redenção cristã e momentosde flerte com a “ida ao mundo”, deimpulso documental –, mas tambémdos documentários de João Salles, deEduardo Coutinho e desse trio denordestinos – Sérgio Machado, Mar-celo Gomes e Karim Aïnouz – que des-pontam como o futuro mais promis-sor da cinematografia nacional.

Karim Aïnouz (acima), MarceloGomes e Sérgio Machado são comoum time afinado. Nesse sentido, Océu de Suely não é uma exceção,surgida de modo surpreendente einexplicável – é resultado doamadurecimento desse grupo, quedesenvolve o debate interno e acoesão estética, apesar dasdiferenças de estilos