REVEL, Jacques. Prefácio. A Herança imaterial. A história ao rés-do-chão
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5/10/2018 REVEL, Jacques. Prefácio. A Herança imaterial. A história ao rés-do-chão - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/revel-jacques-prefacio-a-heranca-imaterial-a-historia-ao-res-do-chao 1/16
"A~aparencias do peeler: a paz no kudo 2.51
NotAs 26.5
i;i
A HJ)11AN (;A IM ATERIA l
Prefaclo"227
H IS T ORI A AO RES -DO -CHA o
1. Aos leitores que esperam de um Iivro de historia algo mais do que
.uma narrativa envolvente, um exotismo previsfvel, 0 eco cle sua propria
.nostalgia, A heranca imaterial deveria proporcionar os prazeres sutis e
cornplicados de urna experiencia intelectual. 0 livre n50 lhes propoe
nada menos do que assoc ia-los ~' L ref lexao de um his toriador a procura
'de sell obj eto . Nada menos pretensioso, nada mais ambicioso tambem
.do que este pequeno l ivro, cujo primei ro merito enos oferecer a chance
de UIll verdadeiro depayscment. Chance por demais rara pam nao ser
.aproveitada,
A obra foi traduzida para 0 frances quatro anos depois de sua pu-
bl icacao em i ta liano com 0 titulo Eeredita immateriale. A heranca ima-
ter ial anunciada por essa formula crisral ina e secreta e , como logo sabe-
remos, a do poder no interior de lima comunidade rural reinserida em
seus diversos contexros . Terernos ocasiao de voltar a isso. Mas e conve-
niente lembrar que 0 l ivro foi publ icado na colecao "Microstorie" (Mi-
cro-his torias), que seu autor , Giovanni Levi, dir ige com Carlo Ginzburg
Lh44h
Levi, G iov~lIln l " P ' --
A 1}( .'r;111~am"tcri~l\; t r: lj e (J ri ;\ d c . u r n C~(~~Clst~~~ 1~s\ .~ I XVI l I Giov;lImi LeVI:' prcbuo l i t . J .\ cq I lC.
mom! . ! l 0 SCL~0 . J -a d e O llvc lr;\ . _ R io d eR e v el ; r r ad n . ;' w Cynrl l l ;l l\I,nqncs
j a ne i ro : C i \ ' il i z ;\~ : i () Br:1sHc\r~1 , 2tHlO .
272p,
I SBN : XS_2 ( 1 0-0497- t l
, S " Is XVlIl' XV llL1 C h it s: ), GU\l;\I1 B:.tr tlsm - ~ cc u () , ,• r.. I T . _ His r6ri :l - S(ocu\oXVl1. 3 .Cura
2. ExorLlsmo - r;1 tu . " ' . XVH 4 lt~ii;\~" I It ',I',,, - Hl~[Ona - Scculo .'
cspmtu:l - •.• .H i !\ (l rh \ - S (: cu t o XV l1 . 1. Tiru lo. _ ~. CDD- 94.>.! )7
CDU-94S
• E sr c p r ef ac io f oi p ub li ca do n a e di ~[ lO f ra nc es a c om ( ) t it ul o " L'h is ro ir e a ll r as d u s ol "
P a ri s, E d it io ns G a ll im a r d, 1 9 89 .
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A HERANC;A IMATERIAL
desde 1980 na editora tur inense E in au d i. 0 livro adquire sentido dentro
d e urn proje to conjunto pa ra cuja f ormu la< ; ao e i lus t ra<;ao contr ibuiu, e
ao qual deve ser relacionado,
A micro-historia nasceu a parti r de urna serie d e proposras enuncia-
das ha dez au quinze allos POl' urn grupo de historiadores it alianos de-
dicados a empreitadas comuns . Nao constitui absolurarnente uma tecni-
ca , menos a inda uma discipl inn, ao contrri rio do q u e pOl' vezes tentou-sefazer dela: uma opiniao historiogra fica avida ao mesmo tempo de novi-
clades e d e certezas, Deve na verda d e ser cornpreendida como lim sin-
torna: como um a rea~ao a u m m om ento esp ec ffic o d a historia social, c i agu:I, propoe reforrnular cerras exigencias e proceduuentos.Nso pareceu
imiti l evocar aqui os grandes tracos do deba te.
2. Hri mais de meio seculo, a imporrdnc ia da hisroria social niio para de
aumentar, ao rne smo tempo que parecia ser cnpaz de renovar incessan-
r em en te se tl~ o bj ero s e se us p ro cc dim en ro s, M esm o que, hoje, e la e s te j n
longe de ter invadido 0onjunro das pr.iticas historiograficas -;']0COlJ-
trario do que e por vezes afi rrnado com dernas iada complacencia, seja
par~ se alegrar Oll para bmentar -, e verdade que arnpliou seu territorio
de forma desmcdida. 0 sucesso dessa ruet. ifora espacial (ede horn grade
imperialism) s u g er e o s p r og r es so s d e um a disciplina iiqua l , durante rnui-
to tempo, nada parec ia poder resisti r. Eta nfio fo i capaz de unexur terri-
t(~ri~s c on sid er nd os, p or d ef in i< ;u o on tradicfio, ir re du tf ve is . o ure m , a
h is to ri a d a s c u lt ur es , h oj e, r al ve z, ,1 h.istoria politica?
Essn hist~ria t~llha por base in ic ia lr ne nr e u rn a conviccfio simples.
, Contra ( )Sm~lS .anngos habiros hisroriograficos, afirrnava que 0 destino
,co_lenvo ha:.l:l t ido mais peso d o que 0 d e st iu o d o s i nd i vf d u os , mesmo
. r ers o u h ero is, q ue as evolucoes macicas c ram as unicas capazes de des-: vendar 0 senrido ~ entenda-se a direcao e o significado - das trans-
f Ol :m a ~ 6e s d a s s oc ie d ad e s h u rn an as a tr av es do tempo. '1:11afirrnacao e
hoje banal, a t(;! ponro que nos e diffc il conceher que nao renha sido
sernpre assirn ..E no enranto recente , e inseparavel cia r eflexao que vern
sen d o c on du zid a pela s soc ied ad es d erno cniric as a seu proprio respeito
s
PREFAclO
ha dois seculos. Nao nos cabe aqui retracar sua historia, Lembremos
apenas que ela encontrou pontos de fixacao a partir do seculo XIX em
propostas de natureza muito diversa: no campo da anali se sociologies,
e cla ro, de Tocqueville a Marx e ele Durkheirn a Weber, m a s tambem em
uma reflexao psicologica desde entao esquec ida, ou ainda no romance,
para nao falar no ethos populista nunca desmentido do qual Miche let
permanece 0 profeta genial . De U111 pals a outro, segundo a forca e 0agenciarnento das tradicoes culturais nacionais , com descompassos ine-
vit aveis e atraves de forrnulacces algumas vezes muito diferentes tanto
pela argumentacao quanta pe lo tom, uma evolucao comparavel parece
rer imposto lenramente a conviccao de que nfioexis te his toria verdadeira
a nfio ser a do colet ivo.
Na Franca, como se sabe , foi 0movimento dos Annaics que, desde 0
final dos anos 20, se identif icou essencialrnente com essa inf lexf io his to-
riograf ca. Em seu nascimento hem como em suas reformulacoes , de nfio
pode ser separado de um conjunto de debates e de tensoes que arravessam
a v id a i nt el ec t un l f ra n c es a 11 0 seculo xx. 1 D e q ua lq ue r m od o, s eu su ce sso
catapultou osAnnales para rnuiro alcm das Ironreiras nacionais e transfor-m ou -es - ao prc \<\ e bern ve rd ade , de m uitos m al-en tend id os - em u m
d os term os d e referenda d o tra ba lh o h istoric o n o m u nd o. N Jo e portanto
abusive evocar em linhas gerais, a partir de seu excrnplo particular, as
consequencias para 0 trabalho dos hisroriadores acarretadas pela escolha
cia historia social. 0 privi lcgio dado ao grande mimcro, em derrimenro do"
singular, cxigia a invencao de fontes adequadas, on ainda urn novo trata- ,
m em o L ia s Io nre s r ra dic io na is, S up un ha ta ru ber n, e a o m esm o tempo, ()
ajuste de rratamentos adaprados aos materiais, na maior parte das vezes
iruperfei tos, conservados nos arquivos. A his toria dos procedirnentos de
q ua nr ific ac io e a qu ela , c om p le rn eu ta r, c bs fo rm a s d e c la ssific ac ao a in da
estfio inrcgralmente para set escritas. Elas nos interessarn aqui, sobretudo,pelas transforrnacoes que induz i r am .
Mencionarernos t rc s d e ss a s transforrnacoes principais, A primeira esta
di re tamente l igada ao proj cto de medi r os fenornenos socia is a partir de
indicadores simples 011 sirnplificados, A prirneira forma sa o os precos ou
a rcnda; depois os nfveis de for tuna e das dis tr ibuicoes profissionais, nas-
.!"
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A HERAI~<;A IMATERIAI.
cimentos, casamentos e falecirnentos; enf im, as assinaturas contadas em-
baixo dos atos notar iais ou documentos de estado civil , ou ainda clausulas
testamenreiras que permitiam reconstruir asatitudes de determinados gru-
pa s em relacao a morte. Reconhece-se, por tras desses exemplos escolhidos
dentre muitos outros poss iveis, alguns dos grandes sucessos da his toria
social f rancesa no ult imo meio seculo. Todos esses indices tern em comum
o desejo de extrair do documenro bruto uma propriedade, urn trace iso-lado cuja crf tica permita acornpanhar sua evoluqao atraves do tempo. Eles
podem em seguida ser aproximados uns dos out ros, suas corre lacoes po-
dem ser medidas, de forma que possam entrar na consti tuicao de modelos
mais ou menos complexos. Mas eles so sao pertinentes se permitirem
destacar da materia hist6rica lima realidade restrita e de natureza constan-
teo Trata -se de uma consra racao trivial, mas cujas consequencias para a
producao hisrorica nfio foram poucas.
o segundo dos efeitos evocados tambem remere a ambicao, que foi
ados fundadores dosAnnales, de uma hisror ia que se desviar ia do tinico,
, \~Io acidental , para invesr ir -se compleramenre no estudo das regular ida-
,. des - e, par que nao, das leis - do social. Aqui a referencia durkhei-rniana, retomada com vigor por Francois Simiand, e decisiva. Mas a
primazia dada a s regularidades, em detrimento do acidente, as repeti-
qaes em detr imento do incidente, perrnire sern diivida compreender por
que essa his tdria interessou-sz quase imediatamente pelos sistemas e pe-
las estabil idades , em vez de pela mudanca. His toria pesada, histor ia len-
ta, e que encontrou insrint ivarnente, nas sociedades pre-indus tr iais , em
urna Idade Media quase rni lenar e em uma modernidade que se estende
por mais de tres seculos, a Ionga duracao necessaria a execucao de seu
projeto, Tal escolha irnplicava, e clare, a remincia a um certo mimero
de objetos de estudo. Tarnbern servia de reconforto a conviccao de que
a iinica his roria imporrante escapava, para parafrasear uma celebre for-mula de Marx, ao conhecimento e, mais €linda, a vontade dos homens
cia historia.! 0 curto e mesmo ° medio prazo tornavarn-se, assim, de
di ffcil compreensao, Mas ha mais ainda. A va lorizacao diferenc ial dos
nfveis e dos r itrnos cia realidade his torica parecia, scm que isso fosse diro
de manei ra tao c lara, favorecer as evolucoes mais Iemas, no ponto delas
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Cl :
PREFAclO
tornarern-se praticamente indiscernfveis, A admiravel primeira par te de
'( 0 Mediterr/lneo, de Fernand Brandel (1947), nos deixou, depois dos
It ' Ii a co s o r ig ina is da h i st 6 ria ru ra l [ rance sa de Marc Bloch (1931L 0 pro-.'\~,
tot ipo de uma hisroriaestrutural de inicio atenta aquilo que nao mudava.
Mais perto de ~o;, 0sucesso da "historia imovel" de Emmanue l Le Roy
Ladurie (1973) junto a um publico que as vicissitudes da historia real,
a s do fim do crescimento e da crise economics mundial haviarn tornadocetico, da uma boa ideia do enraizamento de uma conviccao i rnplfcit a.?
Paradoxalmente, tude aconteceu como se oshisror iaclores se convences-
sem, de bom grado, que nas sociedades que estudavam nada acontec ia
realmente, ou talvez ate elas so fossem tao interessantes jus tamente por-
que nada acontecia.
Urna terceira grande transforrnacao remere rambern ao projeto cien-
tifico - alguns dirfio, sem indulgencia, cientista - que desde a origem
inspirou a ernpreitada dos Anna/es, ao mesmo tempo que a dinarnica de
uma pesquisa at iva, produtiva , segura de seus objet ivos e de seus recur-
sos. Bloch, Febvre e lima parte de sua geracao haviam aprendido com
seus mestres durkheirnianos que so existe obj eto de estudo consrruido. .arraves de procedimentos explicirados em funcao de uma hipotese dada,
' eem seguida submetido a validacao. Essas regras de metcdo elernenrares
foram respeitadas sempre? Sern duvida a his toria cia pesquisa e a historia
da consrrucao de objetos cada vez mais sofist icados . Os procedimentos
tomararn-se mais complexos e 1113iscontrolados. No entanto, ao mesmo
tempo, 0 cara ter experimental , hipotet ico desses obje tos foi a lgumas
vezes deixado de lado. Com frequencia f icou-se tentado a considera-los
como coisas, A evolucao da historia dos precos entre os rrabalhos do
, prirneiro Labrousse (1933) e os anos 60 e urn bom exemplo dessa ten-
dencia ao endeusamento dos recortes e das categorias, assim como 0 e ,
a u ma gera ca o de distancia, a h i s t6 r ia das classificacoes socioprofissio-, na is ou a das unidades espaciais de observacao.I A prioridade pareee ter
side dada cada vez mais a acurnulacao de dados class if icados de acordo
com categorias sedimentadas e 1150 cri ticadas, descri tas mais que anali
. sadas, e que pensa triunfar hoje com 0 estoque inforrnatizado de enor-
mes bancos de dados inertes, que deveriarn urn dia poder servir para
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A IHRANC;A IMATERIAl
tu do (o u seja , po ssiv elm ente , a na da ). T alv ez esse a ch ara men ro d a p es-
qu isa tam bern fa ca c om preend er q ue se tenh a, a fina l, refle tid o m uito
POlICO s ob re a s a rt ic u la s;o es i nt er na s c ia r ea lid a d e h is ro ri ca a ss im r ec o ns -
tituida. Duran t e muito t empo, contenrou-se em justapor seus diferentes
aspectos . Na tradicao dos Annales, sabe-se, a historia d o s g ru p os s oe ia is
entrou no molde proposto pela historia economica, e a s prirneiras ten-
t at iv as d e u rn a historia soc ia l d a c ultu ra , a pa rtir d a m eta de d os a nos 60 ,s ub m et er ar n-s e p or s ua v ez i ns tin ti va m en te a g ra d e d e l eit ur a s oc io ec o-
nornic a q ue lhe era oferec id a. Pod e-se ver a f m enos a influ enc ia d e u rn
marxisrno q u e, d ev id o a s u a p ro p ri a m e d io c ri d ac l e teorica e m n os so pais,
pro va velm enre n ao exerc eu u ma in flu enc ia d eterrn in an te na reflexa o
d os historiadores franceses, c l o q u e 0efeito d e u ma especie d e dormencia
e pi st em o lo gi ca q u e fo i e 01 11 00 c on tr ag olp e d e u m a p es qu is a s up er at iv a,
q ue m u lt ip lic ou su as a rea s d e interesse e su as c on qu ista s d ura nte q ua tro
ou c inco decadas.
3. Esse quadro c , naturalmente, tendencioso. Insiste nas dificuldades ouim pa sses d e u rn ernpreendimento generoso, inv en tivo , p od eroso e q ue
se revelo u d e u ma fec und id ad e su rp reen denre . N ao m en cio na ta mpo uc o
os esforcos, ind iv idu a i s Oll c o le ti vo s, p a ra repensar novarnente 0 proje to
e o s r ec u rs os d e U l1 1ah is ro ria s oc ia l p ro bl em a ti ca . N os p ro pr io sA n na le s,
e e m t orn o d eles , e sses e sfo rc os a pa rec era m , m esrn o se c on tin ua rn os c om
a irnpressao d e que e les ne m sernpre forum escutados c omo deveriam
t er sid o. T ra ra -se a qu i, a lia s, n fio d e fa ze r u m j ulga m en to , fa cil d er na is a
posteriori, m as sim a o c ontra rio d e c ornpreend er com o, a pa rtir d a p ro-
pria prat ica dos historiadores do socia l , nascerarn a s ref lexoes e a s exi-
genc ia s qu e esboc am h .1 c erc a d e d ez a nos u rn pon to enrico."
Ha r nu it o t em po a lgu m as p esso as vern denunc i ando 0 q ue c ha m a-
Ya m, d e m od o amblguo, "os cansacos d e C lio" - entenda-se a despro-
porcao e nt re o s a rd uo s tr ab alh os d a h isto ria q ua nt it at iv a e o s re su lt ad os
o bt ic lo s. M a s e em rorno d o fina l d es a nos 70 qu e a d u vid a pa rec e ins-
talar-se no seio d a corporacao. E enrao q ue L aw ren ce S ton e, gra nd e
pra t ic a nte c ia h isto ria soc ia l - se a lgu m d ia exist iu ta l co isa -- e urn d os
12
PREFA c iO
,~
e dito re s d e Past and Presen t, profetiza a "volta d a na rra tiva " a o m esm o~} ,
tem po q ue ofereee um diagnostico pessimista e raivoso sobre 0 t rabalho
rea liza do por su a geracao d e h ist oria d ore s.? S e, a despeito d e su as apro-
xim ac oes e d e seu s eq ufv oc os, esse exa rn e d e c onsc ien cia teve ta rna nh a
rep erc ussa o interna cio na l, foi sem d uv id a porq ue S ton e fo i u m d os p ri-
m eiro s a fo rrn ula r, sem se p reoc up ar c om su tileza s, u m m al-esta r, q ues-
t oe s e sb oc a da s pOI' tod a pa rte, e rna is a ind a porqu e c onvid a va , a seum od o, a re flet ir so bre u rn m om en to c ia h is to rio gr afia .
o ot im ism o q ue h avia a nim ad o o s grandes empreendimentos d a p es-
q uisa , e q ue c ulrnina va c om a in trod uc ao d os m etod os infc rm at iza dos,
p ar ee e en ta o se o bsc ure ce r. A in da d ev e-se b usc ar u m a e xp lic ac ao p ara essa
m u da nc a rec en te . A ssin alern os a o m eno s q ue ela rernete a ordens d e ra -
c io cfn io m u it o d iv er sa s, A lg um a s d ela s s ao in te rn a s a disciplina , E provavelq ue m u itos h isto ria dores tenh arn t id o a sensa ca o d e u rn rend im en to d e-
c re sc en te d as v asta s p esq uisa s q ua nr ir at iv as d os a no s 1 96 ()-1 97 0 (m esm o
-que 0 esr ab ele cir ne nt o d os q uest io na rio s est iv esse , sc m d u vid a a lg um a ,
. m uito rn ais n a b er li nd a d o qu e a a bord agem pesa da propria mente d ira ).
. . A o rnesmo t empo, seus pr6prios avances empurravam a hisroria socia l em ~
. d irec ao a fo rm as d e esp ec ia liza ca o tec nic a d efin id as p or c om petenc ia s e
m u it as v ez es a ceit as c om o p re ssu po st os, O s Annales q uise ra rn c ria r e on - "~ ' "
dicoes para uma interdisciplinaridade maleavel . No entanto via-se 0 rea -D ,
·.i}. p a re c im e n to d e c ir c u ns c ri co e s bern d elim ita da s, c io sa s c le s u a n ov a a ut o-
·nom ia . A "historia t ot al" o u "historic g lo b al ", e ss a palavra d e ordern alga
·~'hebulosa mas apesar d e tu do empolgante e q u e havia impu l s ionado tres
g era co es d e p esq uisa do re s p are eia e sq uec id a e m p ro ! d e fo rm a s r na is rigi-
. ' d as d e institucionalizacao. E r a e vo ea c la entao d e rnaneira n os ra lg ic a . A o
·,rn esI1 10 te mp o, essa re nd en cia a o e sfa ce la m en to , a lia s p re visiv el, e n c on - ,'. '
. : t ra va -se reforc a da por u ma evolu ca o intelec tu al rna is p rofu nd a e m ais ,(
. . . ~ ·a m pla . E sse s m esm os a no s v ir ar n 0c ola pso d e g ra nd es p ara d ig ma s, p at ti . .
. ,. cularrnenre a s d o marxismo e d o estruturalismo, q u e , j u nt os ouem con-
_ .~ ; 'c ' or re n ei a , h~v ia l 1 1do;~i~"}·adoc 1 u ~: ;I ;t ef ;I gu ~ ' te ~p o a h is to ri a e a s c ie nc i as
~ oc ia is . C o m e le s a pa ga va -s e, a o m e no s p ro vi so ri am e nt e, 0 p ro je to , e ta l-
v ez a a m bic ao , d e u m a sin te se d os sa be re s s ob re a s so cie da des,
Deve-se acrescentar a essas razoes internas, q ue a qu i a pena s ev oc a-
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A HERAN~A IMATERIAL
mas de mane ira difusa e que , algum dia , deverao ser obj eto de urn exame
r n ai s s er io , outras de a inda mais diffcil del imi tacao e que remetem a uma
mutacao bas tante repentina das ati tudes colet ivas . Os anas de crise mun-
dial foram u rn momento de revisao brutal , que anunciava inclusive as
revisoes suaves das quais 1968 havia sido 0 s intoma generalizado nas
sociedades ocidentais. 0progresso deixava de ser uma cerreza ao mesmo
tempo que se cornecava a duvidar da c apa c id ade indefinida dessas so-cie.dades p~ra resolver seus problemas latenres, A angtist ia ecologies,
hoje mundial, e um born exemplo disso. 0 passado deixava de ser urn
terreno de experiencia, 0 palco onde se const ruiam cenarios que torna-
riam 0 presente mais intel igfvel , para tornar-se 0 alvo cia melancolia
desarnparada dos contemporaneos. Dever-se-ia crer que os historiadores
escapam mais do que os outros as solicitacoes da moda? Nao e absurdopensar que 0movimento que carrega a hi storia socia l ha rnais de rneio
seculo nao e e le proprio completamenre desvinculado do dinamismo e
do voluntarismo de urna epoca que, apesar (ou na cornpanhia) dos dra-
mas que conheceu, prerendia dominar e organizar 0 seu futuro. Essa
ascensao estagnou, esse desejo e , hoje, menos cerro. Quante aos hi sto-
ri adores, eles estao talvez menos certos de se r absolutamente capazes de
administrar a duracao que pre tendem anali sa r,
Insistimos ate agora nos aspec tos negat ivos de 1 1 1 1 1 < l crise vivida de
forma confusa, pouco a vontade, e rararnente explici tada. Ser ia talvez
igua lmcnte legftimo arri scar urna inrerpre racao menos pessi rnista, Po-
demo~ sugerir, por exemplo, que 0 desaparccimenro dos principals
paradigrnas colocou os historiadores diante de suns proprias respon-
sabilidades, 0 que, alias, coincidiu C0111 0 fin: de UI11 penodo em que
.muiras vezes os prograrnas superararn as realiza~6es . 0 "esfacelameu-
to" da hisroria que se denuncia com dernasiada complacencia C011sti-
: tu i , ~erta~nente, um risco. Mas ele tambern pode traduzir 0 fato de que
os historiadores, assim como os ourros prati cantes de ciencias sociais,
Iimi tarn provisoriamente suas arnbicces a obj etos mais restri tos e mais
; f:kei s de serern manipuIados, no interior de campos ci rcunscritos de-
;finidos nao mais por habiros discipl inares ou recnicos, segundo recor-
tes conceituais preestabelecidos, mas sim por praticas. As ambicocs
14
PREfAclO
certarnente diminuem, os discursos tornam-se mais modestos, pelo
'\ menos de imediato, Mas esse tempo de recuo aparente poderia ser 0
;~ de uma reconsrrucao, A rnicro-histor ia cleve ser cornpreendida como
uma tentativa nesse sentido.
4. Os rextos que definem 0projeto micro-historico sao pouco numero-
80S, e sao breves. Poder-se-ia ver ai a c on fi ss a o de um a i ns uf ic ie nc ia
teorica radical, OLl a inda a expressfio cle uma rnodesti a insi st ente. Par
.minha parre, escolho cornpreender essa discr icfio como a reivindicacao
de princ fpios cle urn direi to a exper imentacao em histor ia, 0 que nao
desassociar ia a afirmacao de propostas gerais de urn rrabalho especff ico.
Pode ser a chance de le rnbra r aqui que a micro-historia nasceu das trocas
de um pequeno grupo de historiadores italianos reunidos em torno de
u m a r ev ist a, Quaderni Storici, q u e r et om a r am em 1970 e t r ansf orrna -
ram, em alguns anos, em urn dos palcos centrai s do debate hi storiogra-
fico. Os mais conhecidos na Franca silo sern duvida Carlo Ginzburg,
.. Carlo Poni, Edo.irdo Grendi e Giovanni Levi (mesrno se 0 movimeuto:0·;;.
':~~' qu e c ond uzem tenh a se a mplia do consideravelrnente de q uinze a nos
" 1 ' para d). 0 primeiro e u rn h istoria dor c ia cultura, Os tres outros sao
" : 'h istor iadores cia economia, Mas essas especialidades de nada irnporrarn
aqui - rnenos, em todo caso, do que a preocupacao, comum a. t odos
.eles , de redef inir cer tas mcdalidades do trabalho histor ico.
Para rne lhor cornpreender seu procedimento, parrarnos, apesa r de
.tudo, de llln t exto progra rna tico. H;'I dez anos, Ginzburg e Poni publ i-
cavam em sua revista uma dezena de paginas curiosa mente int iru ladas
"0 nome e como". (, Seu rexto abre com LIma pergunta: como pode a
his toriografia i taliana tel" s ide tao obstinadamente ret iccnte a historia
social? Certas respostas s50 classicamente conhccidas. 0 pesado legado
idea lismo crociano, trazendo consigo uma suspe ita generali zada em
rela<;ao as ciencias sociais , constituiu uma barreira eficaz para as inova-
De maneira mais prosa ica, a organizacao ao rnesmo tempo hierar-
quizada e atornizada da universidade i tali ana se adaprava mal , ate l lI11<1
epoca muito recente, a empreitadas colet ivas e anonimas, adaptadas ape-
1 5
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A KERAN<;A IMATERIAL
nas aos grandes temas da his toria nova, mesmo que as incriveis r iquezas
dos a rqu ivos da peninsula tivessem pod ido the oferecer r ec u rs os e xt re -
rnamente favoraveis , Nesse bloqueio duple, esbocado de rnaneira u rn
tanto alusiva, os autores v iam a origem de uma si tuacao caracte rfstica
de seu pais: os hisroriadores ciosos de se afastar de caminhos ja dema-
siado percorridos nao teriam tido nenhurna outra escolha a nao ser en-
trar na dependencia de model os hisror iograf icos importados, principal .
mente da Franca ou dos pafses anglo-saxoes, e aos quais seus recursos
eram decididamente mal-adaptados,
Essa analise e nv elh ec eu , U m a d ec ad a depois, su a rudeza l he e rnpre s-
ta ares i ronicamente te rcei ro-mundistas que convencern a inda menos
dev ida ao fato da cultu ra i ta liana, mais cedo obrigada a revisoes c rueis,
ter-se aberro rnais rapidarnente e C0111 mais faci lidade do que a nossa as
renovacoes externas, e soube t irar partido de urn verdadeiro cosmopo-
litis mo. Resta que, quando este texro Ioi escrito, ele propunha - e e
isso que irnporta - um convi te ao trabalho com os recursos disponfve is,
que estavam longe de ser derri sorios. Fal tava logfst ica? Convinha por ..
tanto delimitar 0 trabalho de ou tra rnanei ra, l imitar o rarnanho dos ob-
je to s e st ud ad os in ve nt an do re gra s de a p r ove it a r ne n ro i n te n si v e onc1e a s
gr an de s p es qu isa s h ist or ic as se contenravarn r nu i ta s v e ze s com u ma c ul-
tura extensiva, A rnicro-historia n50 foi portauto um eco Italiano do
small is beautiful, entf io tao em y og a ( rn esm o que tenha se beneficiado,
rnais tarde, dessa estetica perecivel). Sugeria uma resposta possivel a uma
situacao coucrera.
Ainda ass im, as l imita~6cs que pesam sobre 0 trabalho dos historia-
dores nfio sao suficienres para explicar, l11e110S ainda para justificar 0
proje to micro-hi storico. A reducao de esca la proposta por Ginzburg e
Poni, depois de Grendi," convidava a uma ourra leitura do social. A
historia social dominante refletia sobre agregados anonimos acompa-
nhados durante urn Jongo periodo. Seu proprio peso arneacava nao lhe
permi rir a rti cular entr e si os dife rentes aspec tos das rea lidades pelas
quais se interessava atraves d e categorias precocernente solidificadas. Ela
tinha dificuldades para apreender as duracoes med ia s ou curtas, e com
mais razao a inda os acontec irnen tos; nao sabia mui to 0 que Iazer com
16
PREFAclO
OSgrupos res tr itos, recusava-se por def inicao a levar em conta 0 indivi-
dual. Ass irn, vas tos terri tories perrnaneciarn abandonados , que se pode-
r ia tentar reconhecer. Aqui explica-se 0 sent ido a lgo sib ilino do arrigo
'de 1979. Apoiados pela enorrne jazida arquivisti ca it al iana, os autores
pl'opunharn urna outra "mane ira" de conceber a his toria soci.al a.c~rnpa- .; \
"nhando 0 "nome" proprio dos ind ividuos ou dos grupos de indivfduos.
O paradoxa e apenas aparente . Poi s a escolha do individual na o e con-siderada contraditoria corn a do soc ia l: torna possfve l uma abordagem
iferente deste ultimo. Sobretudo, perrnite destacar, ao longo de utn.' 0 especffico ~ 0 destine de urn homern, de umacomunidade, de
obra ~,a C9I11ple_xaedede r,ela~§esl.a .multiplic,idade dosespacos
·te~pos.l1(}~.gu~s..s.e i_t~.~~!_~ye.e cer ta maneira, e 0 a.ntigo sonhourna hist6ria total vista de baixo que Ginzburg e Poni encontram
: "A analise micro-histories tern portanto duas faces. Usada em :1 1
uena escala, torna muitas vezes possfvel uma reconstituicao do vivido has outras abordagens his toriograficas. Propoe-se por outro
a identif icar as estruturas invis iveis segundo as quais esse vivido se
Deve-se, a exernplo de 110SS08 dois autores, definir a rnicro-historia
"ciencia do vivido" ao final desra analise? A f6rmula nao conquis ta
uma adesao unanime. Evoca sem duvida 0 antigo ape-
dos ogrcs-his toriadores pela carne fresca, mas tambern corre 0 risco
d isso lver a original idade do proje to em urna gene l'al idade um pouco
u~~u~,.". u . Parece-rne mais importante 0desejo for temente afirrnado de
o social nilo como tim objeto dorado de propriedades, mas sim
o nmconjunro dej l1Jer~rG1a~6es 1l16:veis .deJJtm.de .conf ig11l 'q\ ;QG.s~!!1
. . '. adapta~ii .Q,_Percebe-se bern aqui a inf luencia de urna antropo-
..~l:lglo-sa;;i~~enos afetada do que a nossa pelas gran d es arquiteturas
'cas, mas mais a ten ta, por vezes, a construcao de papeis sociais
a sua in teracao. Reencont ra-se em todo caso uma fasc inacao COl11UJ11
. . melancolica do historiador pe la experienc ia de te rre no, privil egio
ernologo. Sente-se isso desde 0 infcio do livro de Giovanni Levi:
. portanto, estudar um minuscule fragmento do Piemonte do
XVII, utilizando uma tecnica inrensiva d e r ec on st r u ca o das VICIS-
1'!
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~
y. A H~RANI;A IMATERIAL
s it u de s b io gra fic a s d e ca d a hab itante do lugare jo de S a nt eria q u e re nh a
deixado vesttgios documenrados." Mas a fascinacao logo encontra suns
jus tificacoes : "Todas as estraregias pessoais e farniliares talvez rendam a
p ar ec er a te nu a d as em meio a um resu lta d o com um de relativo equi li -
brio. Todavia, a parti cipacao de cada urn na historia gera l e na formacao
e modificacao das estruturas essencia is da realidade social nao po de ser
ava liada somente com base nos result ados percep tfvei s: du rante a vida
de cada ur n aparecern, ciclicamente, problemas, incertezas, escolhas, en-
fim , u m a p olit ic a da vida c ot id ia na c u jo centro e a u t il iz a c a o e s tr a te g ic a
das normas sociais." A, intencao anuncia-se c la ramente: a abordagern
micro-historica deve perrnitir 0enriquecimenro da analise social, torna-
l a m a is c om p le xa , pois 1.~va~m~oI1ta aspectos cJiE,ere . ,nres,nesperados,
multiplicados da.experiencin coletiva, -,
Pode-se ver claramente: a micro-his roria nao propoe uma revolucao
e pis te m ol og ic a , n ern t am p ou c o lirn it a- se ;]0engenhoso queb r a - cabeca
recornendado por Ginzburg e Poni a seus colegas i ta lian os no inicio de
seu artigo. Trata-se de LIm procedimento pra rico - 0 que rnio quer
absolutamente dizer que nao renha irnplicacoes OLl consequencias teori-
cas. Em rodo caso, pode-se comprcender que n50 se tram aqui , ernab-
solu to, d e u rna rernincia 0 hisroria so cia l, m a s sirn d e 1 1 1 1 1 e sf orc o d c ci . .
dido a reconsiderar e aprofundar seus conceitos no rnornenro em que
seu diuamisrno pareel_a lJ_et 'c!er0 f6lego. Essa primazia da pnit ica podc
ajudar a cornpreender 0 aspecto cfec~1I lteiro de obras, um POLICOdesor-
denado aos olhos do espectador afastado ou apressado, ( las realizacoes
da micro-hisroria , 0 catalogo da colecao "Micros torie' " e testcmunhodisso: ha dez a110S, reune ti tulos cuja un idade pede nem sempre parecer
evideute, seja pel os assuntos abordados on pelos generos his torico-l ite-
ra rios usados. Ocorre que essa unidade deve SCI' buscada menos em uma
co lec aode objetos sinalizadores do que em um reperrorio cornum
d einterrogacoes, em lima certa rnaneira de proceder, em uma forma de
a tenc ao - se n os p errnirim os dizer: em u m a c erta q ua lid ad e d e se nsibi-
l idade, que ainda ternos esperanca de explicar aqui ,
Tudo isso, percebe-se , nao implica em nada Luna definicao rigoro-
sarnente unificada. No entanto, foi isso mesrno que Carlo Ginzburg pro-
1 8
PREFAclO
pes, no mesmo ano de 1979, em um artigo celebre: "Sinais: rafzes de
.um paradigma indic iario"." Decic li cJo a estabelecer a legit imidade do
procedimento que defendia C0111 seus amigos, Ginzburg sugeria, como
u rn virtuoso, que a mi c ro -h i s to r ia , no fu nd o, a pe na s m a nifes ta va a ori-
ginalidade do p ro c ed im en to h is t6 ri co em geral . Es te u l ti m o t er ia errado
ao tomar como exernplo as c iencias socia is e , mais ainda, as c iencias
exatas; te r-se-ia enganado ao se esforcar em estabelecer regularidades
enquanto sua vocacao ser ia, pelo contrar io , par tir em busca d o "indfcio",
do resto significative, autorizando u rn conhecimento "indireto" e "con-
. jectural", segundo 0 autor proximo da interpreracao psicanali r i ca on
a inda da investigacao polic ia l. Ninguern duvidara urn s6 instante que
eSSaSpropostas sa o tes ternunhas explicitas d e lima crise conternporanca
ra zfio , P are ce m a is d uv id oso q ue b asr ern para esbocar LIm paradigrna
ientifico alternative, e na rninha opiniao vestern a empreirada dos
i cr o- his ro ri ad o re s c o rn u rna ve st im ent a re oric a u o m esm o t empo 11m
co grande e urn POllCO Ia rga. Se huscamos uma unidade para as rea -
d a m ic ro -h is to ria , p od c re m os e nc on tra -la m u is m o de sra m en tc
a lgu ns tra ces qu e m e parecern s ig n if ic a r iv o s. C i t ar e i tJ'?s, para SeT
breve.
o primeiro, que pede ser deduzido com basranre clareza do que foi
anter iormente, consiste em 11111:l relacao que poderlamos qualificur
d e inventiva com a realidade his torica , Todos sabernos que os his torin-
devern se esforcar para construir seu objeto, mas rnuitas vezcs
disso conscquencias mediocres. Por rerern escolhido fazer variar
fo rm a s ist em a ti ca e c on tr ol ad a 0 fo co d e su a len te , o s m ic ro -h isto -
s t el ll em com um a qu a lid ad e d e esta rem , ta lvez m ais d o qu e
arentos a construcao do real e ao papel que af desempenham ()
se rvador e seus instrumentos, A materia historica que nos oferccern
.¢.muitas vezes rica, mas
etam bern problernritica. Encontraremos a prova
na recusa, rnuito prnticada pot ' esses autores , das hipoteses funcio-
~"",a'.u", das "expl icacoes que tendem a simpli ficar os mecanismos cau-
e a descrever 0 passado COmO Ul11 enrrelacamento inevitavel de ne-
clades biologicas, polft icas, economicas". A redL~<;aoA.~_~$Cfl!;:t ,0
resse pordest inos especff icos , por escolhas.confrontadas a I imita-
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A HERAN<;A IMATERIAl
5;oes ,con vidam a nao se deixar subjugar pela t irania do fato consumado
- "aquilo que efetivamente aconteceu" - e a analisar as condutas,
individua is e colet ivas, em termos de possibilidades, que 0 historiador
pode tentar descrever e compreender. El a movimenta as imagens rece-
bidas, pois, regulando de maneira diferente a distancia e a abertura de
sua objet iva, os observadores fazem aparecer outra trama, recortes di-
ferentes, e ao mesmo tempo a inadequa c ao parcial dos instrumentos
concei tuais de que dispunham ate entao. (Notemos que, a esse respeito,
a dimensao "micro" nao goza de nenhum privilegio part icular. Ela e hoje
a mais ex6tica por ser a mais estrangeira aos habitos intelectuais dos
histor iadores; mas esse, nao duviclemos, foi 0 case ci a dirnensao "macro"
quando, ha cinqiienta anos, cornecou-se a refletir sobre agregados. 0
ponto importante aqui e , portanto, 0 princfpio mais do que a direcao
ci a variacao.)
o segundo trace se deduz com hastante facil idade do precedente.
Os trabalhos dos micro-hisror iadores exibem deliberadamente t!!1.1A_cli-
1)1_~n~~Q_~xperil1:_e~1!al,A he ranqa ima te rial e 0melhor exernplo disso.
o terrno requer urn comentar io . 0que pode ser uma exper imentacao
em historia, ou sej a, em uma disc iplina que toma por obj eto fates ocor-
r ides e nao-reproduziveis, por oposicao aqueles estudados pelas outras
cienc ias sociais? A pergunta admire varias respostas, Ha vinre anos, os
praticantes cia N ew E co nomic H is to ry sugeriarn a seus colegas quanti-
tativistas 0recurso a hiporeses contrafactuais para a const rucao de rno-
delos alternativos. qual ter ia sido 0crescirnento econ6mico dos Estados
Unidos no seculo XIX se nao se levasse em conta a existencia e 0 desen-
volvimento c ia ferrovia? A proposta e inrelectualmente interessante na
medida em que convida a escapar da evidencia das evolucoes conheci-
das, mas sua implernentacao c necessariamente l irni tada a dados quan-
t itat ivos se desejarnos testar a validade heurist ica c ia hip6tese. 0 proce-
climento sugerido pela rnicro-historia e ao mesrno tempo mais discrete
e, provavelmente, mais suscetfvel de ser general izado. Consiste na cria-
< ; ; 5 0 de condicoes de observacao que farao aparecer forrnas , organizaco-
es, objetos ineditos. Traduz-se, por outro iado, por UTI recurso constanre
a condicoes assim definidas ao mesmo tempo, e cla ro, que a suas modi-
20
PREFACIO
ficacoes posteriores durante a ana lise. Nasce assim uma forma de expo-
si~ao que pode parecer sinuosa, complicada, mas que reint roduz a todo
in stante as regras do jogo na pr6pria narrativa do jogo. Giovanni Levi,"
gosta de comparar 0 trabalho do historiador aque le da heroina de uma, I 10 I ,.
novela de Henry James: a telegrafista trancada Na [au a, e.a reconsrroi
o mundo exterior a parti r de fragmentos de informacao que recebe para
transmi tir. Mas a rnetafora tem seus l imites: poi s 0que dist ingue, even-
" tualmente, 0 historiador da telegrafista e que , tao desmunido quanto
ela, ele sabe que sua inforrnacao e uma escolha na realidade, a qual
, superpoe outras escolhas. Ele pode tentar ao menos medir suas conse-
··qiiencias e t irar par tido delas ,
. Abordemos enfim 0terceiro trace. Dentre os instrumentos a dispo-
si'Sao clos historiadores, ha os elassicos, ou que, pelo menos, sao reco-
nbecidos como tal pela profissao. E 0 caso dos conceitos, ou ainda dos
•metcdos de invest igac;; iio, das tecnicas de medicao etc . Ha outros, nao
rnenos importantes mas sobre os quais raramente refletimos, seja por
serern objeto de uma convencao taci ta, ou porque, mais simplesmente,
paTccem ja aceitos : forrnas argumentativas , modos de enunciacao, rna-
neiras de citar , jogos de rnetaforas Oll, de maneira mais geral, fqrma~ de
, e s cr ev er a h is to ri a, Aproxirnamo-nos a q u i de u rn vasto conjunto de pro-
' lema~ que surgern hoje de modo urn tanto selvagem, em todo c a so
. co ado, nas preocupacoes dos historiadores (e daqueles que ob-
servam seu trabalho). Durante muito tempo, essas questoes nao pare-
dam sequer se prestar a inrerrogacao: a escri ta cia hist6r ia parecia a s
vezes decidida a ser apenas 0estrito protocolo de urn trabalho cientffico;
6:eqiientcmente, fazia referencia (ao menos implici tamente) ao mo-
class ico do romance de quem 0organizaclor domina soberanamente
atores e seu dest ine; tentava-se ate mesmo rnistura r os dois generos.
Essa epoca de cer tezas passou, A escri ta romanesca, desde Proust , Musil
Joyce , esta scmpre experimentando novas formulas. A escrita hi sto-
com algum at raso, faz 0mesmo: pode-se tambern, afinal, ler as tres
oral ida des inventadas por Braudel em 0 Mediterra1'leo como uma
;,!tf~ntatl·va de contar a mesma historia de tres pontos de vista e em tres
.registros di ferentes, fragmentaudo-a e recompondo-a em seguida. Em
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A HERANc ,:A tM ATERIAl
todo caso, 0 problema esta eolocado. Pa re ce -me evidente que , em seus
t rabalhos , os defensores da micro-hisror ia consideram essa dimensao de
seu trabalho tao experimental quanta os procedimentos da propria pes-
quisa. Na verdade, os dois aspectos nao sao dissociaveis , Limitariamos
abusivamente essa exigencia se nos propusessernos a rest ringi-Ia a urn
simples jogo, este tizante, com a s fo rm a s (ainda que 0 problema, aqui
rnais uma vez, esteja longe de ter uma i rnportancia secundaria). Enga-
nar-nos-Iarnos do mesmo modo se est imassernos que, devido a mudanca
de escala proposta, a escrit a biografica fosse 0 genero privi legiado, ou
ate mesmo unico, sabre 0 qual as micro-histor iadores ref letem e traba-
lham. E apenas um genera ent re out ros, e se possive! associado a outros,
como veremos em um insrante. 0 que e central, par outro Iado e a
invencao de urn modo de exposicao que contribui explic i tarnente para
a producao de urn cer to t ipo cleinteligibi lidacle nas condicoes def inidas .
o problema, hoje colocado de frente, trata de objetos de tamanho in-
condicionalmente reduzido, Mas nada impede que rrate em breve de
outras areas , outras dimensoes da pesquisa his torica,
S. Chegamos portanro, enfim, ao livro de Giovanni Levi. Trata-se, ~
primeira vista, de um obje to cornplexo, compl icado, de di ffcil apreen-
sao. De que fala, na verdade, A b er an ca imat er ia li 0 leitor apressado
percebera de passagern diversas respostas possiveis , das quais nenhuma
e absolutamente errada, mas que tampouco s50 exatas e que, por ourro
Indo, sao aparenternente diffceis de ajustar entre si. Assim: a) 0 livro
relata, como indica seu subtf tulo, a carreira de urn exorcista no Piemonte
do seculo XVII; b) 0 estudo esta centrado Ha s estraregias familiares e
individuais , com particular insistencia na logica dos comportamentos
econornicos e no funcionarnento do mercado da terra; c) podemos en-
contrar , no centro c ia anali se , as relacoes hie rarquicas, as formas de po-
der que estruturam 0Ant igo Regime; d) 0 eixo da demonstracao e for-mado antes de tudo pelas relacoes ent re cent ro e peri feria , ent re a capi tal
e uma comunidade local , durante 11mperiodo decis ive para a construcao
do Estado moderno, e) cada lim desses itens (e a lguns outros ainda) esni
22
P RE F Ac IO
presente, mas sob a forma de uma variacao mais ou menos acabada sabre
urn tema que nunca aparece.l!
o jogo poderia se r prolongado por algum tempo, sem grandes van-
tagens. Cada urn dos lei tores deste livro ted provavelmente 0 gosto de
recompo-lo como quiser. Mas 0 essencial esra em outro lugar: uma das
originalidades do t rabalho de Levi e nao se limitar a categorias acei tas.
Creio que os militares chamam de estrategia 0 engano do dispos it ive
que consi ste em atrair 0 adversario a um terreno onde ji i nao se estara.
Suspeito que 0 autor use 0 mesmo art ific io. Dare i dois exemplos. A
heranca imaterial corneca efe tivamente como uma historia de vida: a do
padre Giovan Battista Chiesa, vigario da par6quia de Santena e her6i
involuntario d e st a s p a gi na s , e nc o nr ra r no -l o em meio a uma campanha
de exorcism os que 0 leva de vilarejo em vilare jo durante 0 verfio de
1697, ate que a a tencao das autoridades eclesiasti cas sej a atra ida para
esses acontecimentos , e esta se esforce para dar- lhes fim e comece a ditar
ordens. Mas, t irando 0 fato de que nao sabernos grande coisa a sell
·respeito, Chiesa logo desaparece do l ivro. A parti r c ia pagina 72, 0 des-
tino do padre Chiesa perde-se no vazio com "as ultimas palavras [dele]
que nos foi dado conhecer' - assim como 0 de certos personagens de
Queneau ou de Tex Avery; e nada saberemos de seu destino depois disso.
Quando 0 reencontramos (no capitulo V), e em um periodo anterior de
sun vida e em condicoes que nfio nos perrnitem saciar, reconhecarnos,
nosso apeti te biograf ico. Trata-se mesmo, a prop6sito , de urna biograf ia?
Nao, no sentido clrissico do terrno, com todas as lirnitacoes que esre
implica: LIm corneco, urn f im, 11l11a cont inuidade da narrativa. Mas si rn,
sem duvida, se aceitamos ref letir "sabre 0que e importante e 0 que n50
·0 e quando se escreve Limabiografia", ou seja, sobre as condicoes e os
contextos nos quai s tal hi storia tom a corpo e sentido.l/
E st ar ia m os m a is fe liz es s e e sc olh es se rn os 0 g en er o d a m o no gr afi a
de vilarejo, genero canonico pOl' excelencia na producao his torica COI1-
ternporanea? Eisuqui uma comunidade, Santeria, si tu ada a cerca de vinte
quilornetros cle Turim. Ela foi s istematicarnente fichada, 0 rrabalho
exaustivo em arquivos, principa lmente notariais e cadast rais, serviu de
ba se pa ra u ma va sta p esq uisa pro sopogrM ic a a bra ngenc lo q ua renta a nos
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!!Ii I
A HERANC;A IMATERIAl
(1672-1709), que permitiu reunir mais de 32.000 referencias nomina-
tivas. Mas 0 enfoque dernografico e mais que lacunar, assim como nos
escapa a gestae administrativa e pohtica do vilarejo em seu dia-a -dia,
por falta de fontes. Nao conheceremos nem 0 numero aproximado de
habitantes de Santena nem as atividades de toda uma parte cia popula-
~ao, que nao de ixou vesttgios documenta is. Existem certamente cente -
nas de comunidades, na Ital ia como em outros pafses, rnais docurnenra-
das e aparenternente mais a traentes para alguem que deseje descrever as
disrruibuicoes sociais, a estrutura da propriedade e da renda, a evolucao
dos nascimentos, dos casa rnentos e das rnortes, a producao agrfcola ou
a tecnologia agra ria, rodas etapas costurneiras desse tipo de pesquisa.
A q u i, a s d e sc ri co es estao em grande par te a u se nt es . A t en d en c ia portanto
e pensar que Giovanni Levi nao teve a intencao, apesar das aparencias
enganosas, de nos dizer tudo 0 que podernos saber sobre um vila rejo do
s ec u lo XV II .
Seu l ivro nao se sirua porranto onde se poderia esperar, Parece-me
articular dois projetos, um definido cle modo muito abe no, 0 segundo
de modo mais estreito. 0 primeiro e clararnente Iormulado desde a
introducao, Consiste na tentativa de reconstrucao, tao exaustiva quanto
possfvel, de urna serie d e destines inscr itos no espaco de um a comuni-
dade res tr ita, Mas i850, parafraseando Musil, para "rnostrar quantas coi-
sas i rnporrantes podemos vel ' acontecer enquanto aparente rnente nada
acontece". Eis aqui a segunda proposra: "A hipotese da qual partimos
e [ .. . J a da aSSU1~a() de urna racionalidade especff ica do mundo campo-
nes [ .. . ] E sta racionalidade p od e ser rn ais b er n d esc rita se a dm it irm os
que ela se expressava nao s o atraves cleuma resistencia a nova sociedadeque se expandia , mas Fosse tarnbern empregada na obra de transforma-
< ; iio e u t i li za c a o do mundo social e natural. E neste sentido que usei a
palavra estrategia."
6. Inreresserno-nos urn instante por essas proposras. A primeira parece
conduzir-nos pelo carninho, j,l percorrido, da reconstituicao historica.
Ele poderia sugerir 0 50n110 de urn conhecimento integral (on quase) de
24
PREFAclO
. urn objeto convenienternente limitado. Seria ainda necessario que 0 jogo
valesse a p en a. T al n ao e a c a sa , e vid en te me nt e. 0 lu ga r d a p esq uis a n ao
e, como ja clissernos, excepcionalmente favorecido pelas fontes. Mas nao
e por mais nada tampouco: "[ . .. J escolhi um lugar banal e uma his toria
cornum. Santena e uma pequena aldeia e Giovan Battista Chiesa e urntosco padre exorcists." E , mais longe: "0que espero tenha me permiticlo
JUJ".JL(U on de aparenre rnente nada ha, nao e uma revolta aberta, Hem
a crise definitiva, uma heresia profunda, ou uma inovacao extra or-
aria, e sim a vida pol iti ca, as relacoes sociais, as regras economicas e
reacoes psicologicas de uma cidadezinha C0111um."Banalidade, 1101'-
idade : em todo caso, nenhum desses elementos de dramatizacao que
cem abrir caminhos na espessa carnada do social. Essa historia co-
e privilegiada, menos porque ser ia rnais representa tiva de uma
, 0 normal na zona rural do Antigo Regime - 0 problema, na
ade, nao se coloca nestes terrnos - do que por perrnitir vel' outra
de urn ponto de vista diferente. Ela nos mostra a hisroria ao res-
do-chao.
Nao a mesma historia dos acontecirnentos desse final de seculo
I: a guerra europeia, na qual 0 Piemonte se deixou levar contra H
s; a de L u is X IV esperando encontrar benef icios poli ticos e simboli-
incertos, mas que, a curto prazo, devasta seu territorio, a afirrnacao
Estado centralizado, de seus valo res, de seus procedimentos, de suas
t a mbem , ta l como irnpu nh am os representantes ci a capital; a
rnpeticao das gran des dinastias aristocr.iticas que tecern suas estrate-
na esca la de toda a Europa. Mas ta rnpouco urna hist6ria cornpleta-
diferente, aquela que , se acreditarmos nas cenrenas de monogra-
rurais, aconrecerin longe das principais vicissi tudes desse mundo em
especie de isolarnento fel iz 01.1 miseravel, e que s6 despertaria de
sua letargia para ser confronrada com evolucoes entao inevitaveis. A
hipotese de Giovanni Levi reune essas duas sugestces preguicosas para
nos convidar a l e , f , em Santena , a modulacao loca l da grande historia.
Ela se inscreve em acontecimentos minusculos: a multipl icacao das
e compras de terra, 0movimento incessante, porern mais diffcil
'deacompanhar, do credito; 0 destine coletivo dos conjuntos farniliares,
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A HERAN <;;A IM ATERIA l
com seus ganhadores e perdedores; a luta pelo prestfgio e pelo poder
local, que parece muitas vezes se limita r ao pagamento de a lgumas taxas
em mercadorias, a alguns galos, a uma presenca na igre ja aos domingos.
Individua lrnente, nenhurn desses de talhes te rn a menor importancia ,
Tratados juntos, permi tem reconst ruir os contornos de urn grande jogo
social e politico que e 0 verdadei ro assunto deste livro. Sem diivida,
nenhum dos habi tantes de Santena , seque l' as gran des fami lias nobresque dividem 0controle do lugar , e capaz de inf luir no destino ciaguerra
e nem mesmo nos progress os do Estado administrativo e fiscal. Mas
todos, e cada um em seu lugar, se esforcam para encont rar uma resposta
para os problemas que lhes vern ciagrande his toria. Fazern-no com mais
ou menos sucesso, com mais Oll menos cartas na mao; sao submetidos
a I im it ac oe s e solidariedades, verticais mas t ambem horizontais, que res-
tringem sua capacidade de rnanobra e sua possibilidade de invencao,
Mas pro cur am proteger-se dos acontecimentos e, melhor, neles seapoiar
para melhorar suas chances .
A heranca ima te rial e porranto uma tentativa de decifrar a repar ticao
local de uma historia que pensavarnos conhecer e que nao deve ser lidaapenas de c ima para baixo; u m e sfo rc o para colocar alguma ordem na
desordem aparenternente nao-essencial do coridiano. Esse esforco, po1 '-
tanto, vira heroicamente as costas aos dois modelos de ana lise que tern
prevalecido nas ciencias sociais contemporaneas: ao modelo funciona-
lista e ao modele estruturalista.l ' para opor-lhes uma analise de tipo
estraregico. Assim compreende-se, sem duvida, que 0 personagern cen-
tral deste livro nao seja nem 0 exorcista Giovan Bat ti st a Chiesa nem
rnesmo a cornunidade de Santena, mas sim uma nocfio abstrata e no
entanto onipresente por tras dos cornportamentos e das escolhas: a in-
certeza.
Ela e a principa l figura at raves da qua l os homens de Santeria apreen-
dem seu tempo. Eles devern entrar em 1 1 1 1 1 acordo com ela e, na medida
do possivel, reduzi-Ia. Podernos encontra-la em toda parte: na espera
dos pacientes que, junto ao exorcisra, Vel11menos procurar a cura de
seus males do que a diabolizacao da infelicidade capaz de dar uma ex-
pl icacao simples e unica de seu sofrimento; nas esrraregias coletivas das
26
PREfACIO
familias que, com suas aliancas e suas aquisicoes, esperam menos urn
resultado econornico imediaramente quantif icavel do que uma garantia
coletiva reforcada contra aquilo que pode acontecer; nos calculos dos
notaries de Santena que, atraves da diversificacao de suas atividades e
do recurso a modos sutis de transmissao de seus privilegios ao longo de
suas linhagens entrec ruzadas, buscarn a protecao de sua posicao; enfim,
no invest imento espiritual e a fetivo no sagrado, onde, qua lquer que seja
a ligacio de uma familia a urna devocao e a uma confraria, evita-se
colocar toclos as ovos em urna rnesma cesta. De cima para baixo, e em
todos os registros cia vida cotidiana, esses homens sao obcecados por
ameacas individuais e coletivas que pesam sabre eles: a incerteza das
, colheitas, a fragilidade da vida, a relacao, constanternente questionada,
do grupo familiar com as exigencias e as possibilidades da exploracao,
a relacao com 0mundo exterior. Eles respondent ao seu modo, que e amateria deste livro . Mas fazem mais ainda: "Esta sociedade, como qual -
quer outra, e cornposta por individuos conscientes da imagern de irn-
previ sibil iJade que organiza cada comportamento. Esta incerteza nao
deriva apcnas da difi culdade em preyer 0 futuro mas, t ambern, da cons-ciencia de que dispoe de informacoes limitadas quanto a s Iorcas que
operarn no ambiente social no qual se deve agir, Tal sociedade nao era,
avia, pa rali sada pela inseguranca, hosti l a qua lquer risco, passiva ou
enra izada sobre Iato res imoveis cle auroprotecao. 0 aprimoramento cia
, visibilidade para aumentar a seguranca foi um motor potente de i110-
vac;50 tecnica , psicol6gica e socia l [ .. .]." A terra , a producao agricola, as
. rendas, as aliancas, as solidar iedades locais (e, para alguns, snpralocais) ,
o alem sao portanro, e ao mesrno tempo, objeto de estrategias complexas
que nao ohedecem a uma racionalidade abstrata (por exemplo: maxi-
,m izar os ganhos, ou ainda : aumentar sistemat icamente a capital em ter-
.ras) mas a busca cia melho r adaptac iio em um mundo de alto ri sco e cujasr incipais coordenadas esr iio sempre em rnovimento. Essas estrategias
nao s5 0 livres: eS150 ligadas a val ores, cercadas pOl ' l irni tacoes. Ndo sao
ditadas por urna lei de reproducao simples. Reconhecem, ao
.mesmo tempo que 110S perrnitem ver , os intervalos, as ambiguidades
de ixadas abertas pelos sistemas de dorninacao e de cont role e pelas ins-
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,i
.'1
A H€RANC;A IMATERIAl
tancias de sociabilidade. Encontram pontos de apoio que autor izarn uma
a~ao, na maior parte das vezes coletiva, eujos caminhos podem ser si-
nuosos mas euja f inalidade e clara: a sobrevivencia biologica do grupo,
a conse rva c ao do status soc ial de uma geracao para ou tra (e , se poss fve l ,
seu forta lecimento), urn melhor controle do meio na tural e socia l.
I"
7. lssotudo~~~ diivida ajuda a compreender melhor a eomplexidade
deste pequeno liv ro . T ra ta -se a q ui de nada menos do que compreender
como uma soeiedade fortemente d iferenciada responde aos acidentes da
historia. Nao retomarei 0 detalhe das analises, longas e persuas ivas , que
Levi dedica ao agenciamento dessas estrategias. Mas vale a pena insist ir
na cons t ru c ao do social que torn a p o ss iv e l tal trabalho. Ela obedeee a
uma maxima que todo historiador poderia, me parece, tornar como sua:
por que ser simples quando se pede ser complicado? Ou, para ser um
poueo menos trivial: a papel do observador nao e [er a realidade que
estuda com os instrumentos geralrnente simpl ificadores que recebeu
(simplificadores na maior par te das vezes porque de os recebeu, na ver-
dade) . Cabe- lhe pelo conrrar io enr iquecer oreal introduzindo na analise
o rnaior ntimero possivel de var iaveis , scm 110 enranto renunciar a iden-
t if icar suas regular idades. 0 desaf io aqui e conseguir construir uma ser ie
de modelos a partir de uma informacao em parte descontfnua e em 11m
perfodo de tempo medio - meio seculo, grosse modo - com urna
sequencia de fases extremamente contras tadas. Ela e bastante dorninada,
mas ao preco de urna constante reelaboracao dos instrumentos de ob-
servacao que responde a lima nao menos radical r edefinicao dos obje tos
de estuclo. Tomarei tres exernplos.
Todo autor de monografia sabe que deve situar sua unidade de es-
tudo em urn contexte: ecologico e dernografico (a terra e os hornens,
rnais recenremente 0 clima), contexte administrativo e polft ico, conrex-
to economico e, por que nao, cultural. Cada monografia apresenta scm
duvida traces proprios, mas de uma para outra a COl1Cep~aOdo contexte
e marcadamenre repe ti tiva . Na verda de , ela e um surnario, e enquadra
as genera lizacoes mais obriga torias do campo de anal ise. Urn des inte-
resses principais do procedirnento de Levi me parece ser , pelo contrar io ,
28
PREFA c lO
sempre inventando urn contexto pertinente, ou seja, a mol dura
I01101Cl11-1,;U que tom a inteligfvel sua I lf ada camponesa, das habitacoes
.....uu~""u entre as duas pontes ate 0 tabulei ro de xadrez europeu no qua l
tracam, parcialrnente, os des tines das familias aristocraticas. Para citar
nas urn contexte particular, 0 das relacoes de poder, fi cariamos ten-
a reduzir a histo ria de Santena a urn episodic , ent re tantos outros,
tensao que opoe uma comunidade per ifer ica a s solicitacoes insistentes
absolutismo piernontes em plena expansao. Mas, justamente, os per-
,VU"""_U> da peca sao muito mais numerosos. Entre Santena e Turim se
oern, ou interfe rem, as pretensoes de Chieri, c idade de medic por-
que no entanto estima tel' sua palavra a dar; as do arcebispado de
rim, do qual a paroquia depende; as dos principais feudatarios, que
sua dominacao local . A propria sociedade do vi lare jo se divide
funcao dos interesses divergentes dos grupos especffi cos de que e
.omuosra. Esses arores cole tivos sc afrontam, mas tambcm se aliam de
rdo com as possibilidades, elas mesmas em constante mutacao. As
estao se rnpre se deslocando para em seguida se recomporem.
prec isamente a mult ipli cidade e a cornplexidade dos inte resses
jogo que perrnitiram a Santena a sorte coletiva de perrnanecer urn
escondido", como que a margem das grandes rnanobras do Estado
1 . A crise polft ica, econornica, social , ideologies dos anos 1690
mole todo esse bela equ ilibrio, nao apenas porque as necessidades de
se fazem rnai s exigentes mas tambem porque a interacao loca l das
de resistencia e a gest-io local dos poderes se desfazem, Em urn
desses vilare jos onde nada nunca acon tece, certarnente aconreceu a lgo
e como 0 avesso da historia do absolutismo - e que torna essa
ria possivel.
Meu segundo exernplo remere a um quebra-cabeca classico com a
todos os hi storiadores soc ia is tivera rn tim dia que se defrontar:
construir uma grade de leitura que represente as sociedades que
estudam? Como ident if icar asunidades per tinentes, ou seja, aquelas que
H.",u"ev integrar 0maier mimero possive l de fa tes observados? Clas-
mente opoem-se as classificacoes abstratas, ou supostamente abs tra-
(de acordo com a origem soc ial , a fortuna , 0 tipo e 0 nfvel cia renda,
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l' ·' 1
: ' , '1
I',I I,I:
1 ' , 1 , 1 1I I
A HERAN C;A IMATER IA I.
a profissao, 0 lugar no processo de producao etc.), as classificacoes in-
digenas, que par sua vez re tomam ant igos recorres, signifi cat ivos em sua
epoca (par exemplo, de acordo com 0 poder, a est ima , as diferentes
distribuicoes profissionais, de novo a fortuna etc .). Giovanni Levi nfio
ignora nenhuma das duas, e boa parte do enorme trabalho prosopogra-
fico que conduziu serviu a construcao de tais quadros descritivos -
mesmo que DUlKa aparecarn em seus textos como tais. Ainda assim, sua
concepcao das identidades socia is e diferente, me smo que n ao se ja c a pa z
de ignorar as propriedades "objerivas" da populacao analisada. Ela e ,em primeiro lugar , inseparavel da interrogacao sobre a "racionalidade
limitada" que e le tenta explicit ar nos comportamentos do mundo cam-
pones. Testemunha exemplar disso e 01011goe importanre debate sobre
a famil ia "t radic ional". Levi nao se conrenta em lernbrar que nfio sc tram
aqui de uma sociedade onde a aventura - a aventura do sucesso on, na
maior par te d o s c a se s, a lura pelo statu quo - pede scr pensada em
terrnos de empre itada individua l: ela e fundamentalmentc familiar, Ele
demonstra ainda que as estraregias familiures nao podcm SCI' comprcen-
d i d a s no nfve! c i a f am i li a t o rn a d a C01110 u nid ad e resid cn cia l (o u seja , d arealidade que e alva cle arencao dos arquivos fiscai s OLl paroquiais qlle
os regis tram enos permitern, conseqtienternente, reconstruir ), Essas es-
trategias colocam em jogo, e e esse urn dos aspectos rnais irnportuntcs
deste I ivro, "frentes familiares" forrnadas por unidades que nfio residem
juntas mas "unidas por laces de parentesco consanguineo, por al iancns
ou relacoes de parentesco I icticias" . Efetivamente, e nessc nivel que se
pode evi tar a incerteza propria as sociedades rurais do Antigo Regime,
que os calculos em terrnos de ganho ou perda tornam-se signifi carivos
ao longo de geracoes (como dernonstra, em particular, a longa discussi io
sobre 0 funcionarncnto do mercado da terra ).
Mas hd mais a ind a , Essas idenridades sociais ainda sao concebidascomo realidades dinamicas, plast icas , que se constituem e se deforrnarn
diante dos problemas com os quais os atores sociais sao confrontados, 14
E claro, os senhores continuam sendo senhores e seus assalar iados COI1-
t inuam sendo, na maior par te das vezes , assalariados . As caracterfst icas
r igidas existern e seu papel e sern duvida predominante. Mas 0 capitulo
30
PREFAc lO
dedicado aos notaries - definicao improvavel e no entanto eviclente na
.~~i: 'h is toriado vilarejo - mostra como, durante 11111 periodo relativamente
.\,'longo, u m gru po que na o pode ser l imitado nem em termos d e c l a ss if i-
'cac ;iio indlgena nem tarnpouco de acordo com uma taxinomia mocle rna
..' toma forma diante de situacoes semelhantes; como urn grupo que joga
. )"'deliberadamente com a diversificacao de SU<lS atividades e de seus recur-
,,' .sos, se rn a rransmissao, em parte oculta , cle seu capi tal social, que nunca
: ~ ; , : : ~ ' d e t e J 1 1n en hu rn p od er i ns tit uc io na l v isi ve l, s e a fi rm a de modo a vir a ter
'.' urn peso decisive na poli tica local , at e poder ele tambern ser descri to em
, suas propriedades soc iai s. 15
Chego eufim ao terna que t 1 < 1 titulo a edici io frances a dew: livre e
'que 0 atravessa de ponta a ponta : 0 terna do poder. I:' Se existe lim con-
. ceito que fascina os hi storiadores e os especiali st as em ciencias socials,
com cerrcza e este, t alvez devido a uma especie de cornpensacao melan-
colica. E se cxiste UI1l conccito constanternente e abusivamcnte endeu-
sado, m.iis lima vez e este. inclusive , talvcz as duas constatacoes nao
. J/sejam cornpleramente estranhas uma rl outra. Segundo as inclinacocs dos
" que 0 cstudam, 0 poder sera colocado do Indo do comando, de UJ11
capital de cst ima 011 de fidclidade, do lado cia detencao de am capital
-de hens materiais on culturais, ou <lindanos csforcarernos para demons-
trar que todos esses capitais obedccern a lima lei t eudcnc ial de COI1-
centraciio, que des se acurnulam de acordo l:OI)1 regras mais ou menos
... complexus. Levi parte ciah iporese cont raria : () poder n.io e urna coisa.Deci frndo ao nfvel de u rn 1 1 1 11 n d o minuscule como () de Santenn, o sis-
terna aparcce bern dife rente : identifi ca-se a uma rede tradicional cons-
tantemcnte em rnovimento . Scm diivida b e t ali, como em toda parte,
ricos e pobres; ernpreendedores "livres" e trabalhadorcs presos a laces
:i, d e d cpen den cia . S cm d uvid a ta mb ern, a lu ra p elo sim bo lic o esu i sem pre
pronta para despertar: nao se poderia de out ro modo explica r () conflito,, ao meSI110 tempo burlesco e grave, das duas principais casas ser ihor iais
• 0 ltl'olll d o livre e m SU~] e d ic ;; :1 of ru u c es a, p u bl ic n da p el u C a ll im u rd c d a q u a l f oi t ir ad e
csrc prcfucio, e L e p ot /v oi r a u v i ll age - H i st oi ra d 'u n c x or ci st c d a ns le Pidntont d u X V JJ "
s ie cl e ( N , d a T),
3 '1
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A HEflANt;A IMATERIAL
do lugar, as Tana e os Benso, a respeito de onde colocar suas armas ou
da obtencao de seu banco de honra na igreja paroquial, Mas tudo isso
faz parte da ordem das coisas e e , se nos perrnitimos dizer, taurologico,
o poder inedito, 0 que nao esperavarnos, 0 que vernos se construi r ao
longo do livro, e aquele que 1 1 a O e garantido por nenhurna ins ti tuicao e
que t ra du z u m a influ en cia im prev ist a so bre a real idade social.
E claro, a saga dos Chiesa ilustra esse faro de mane ira incornpardvel .
O f er ec e t ambem , e b om n ot a r, 0 u n ic o mome nt o d r am a t ic o de um livre
j ansenisra e que se recusa a lancar mao de qualquer efei to, 0 lei ter pode ,
efetivamente, se interrogar a respeito do que liga a campanha de exor-
CiS1110S de Giovan Battista Chiesa entre 1694 e 1697 a tentativa de des-
c ricao do mundo de Santel la que constirui 0 corpo ciaobra. No enranro,
o poder espiritual do exorci sta nfio veio do nada . Chiesa tarnbern e LI m
herde iro, De seu pa i, Giul io Cesare, rccebeu l ima "heranca imateriul"
que renton interpre tar a se ll modo. Esta heranca exisre, mas nao e sepa-
ravel de lima pratica social que th e cmpresta corpo e eficic ia. Esse pa i
apareceu no vila rejo meio seculo antes, na merade dos anos J 640, lcvado
per uma rede de aliuncas e solidaricdades, e t amhern requisitado pclo
c onflito soc iopolit ic o C lu e a ringia enta o a c om unid ad e e a rnea ca va Ira -
giliz.i-la d iante d o m nn do exterior. A conquista cleGin lio Cesare Chiesa,
que se tornou 0podcstade de Sanrena, terri sido cnconrrur os caminhos
para U111 novo equilfbrio entre os proragonistas locals ass im como entre
o v il ar ej o e a qu ele s que, d e fora, t ivessern a prcrcnsf io de inf lucnciar seu
destine. Ier,l rarnbem consisrido em rornar-se indispensavel as difcrcnrcs
faq;[)es toruando-se sell mediador obrigator io , aquelc que, justamcnte,
dispoe ciainformacao tao prcciosa ases traregias colet ivas e que a modula
segundo sua vontade. Ei -lo portanto transformado em faz-rudo e em
ho rn em ind i sp e ns a ve l. E a de que Santella deve quarenta anos d e paz e
o fato de rer se tornado 0 Ingar escondido que cscapa em grande parte
a autoridade cent ral. Em cont rapart ida, Chiesa torua-se lima espec ie de
chefe do vilarejo, 0 prirne iro dos nonirios, No enranto, sua prornocao
n ao v er n a co rn pa nh ad a de nenh urn d os sina is esperados, E Je n fi o invesre
em terms, enquanto se ria 0 hornem rnais bern capacitado para faze- lo .
Sell capital e constituido por l ima especie de crediro generalizado sobrc
32
PREFActC
a comunidade, feiro de services prestados, de fidelidade reconhecida,
c\;:~~:deespeito e d e d e pe nd e nc ia . E , ao pe da lena, i m a re ri al . N a o nos es -
':':"';l'pantamos entao com 0 fato de te r escolhido t ransmit i-lo ao mais ve lho
, de seus filhos, Giovan Bat ti st a, 0 padre, que consegue colocar como
,':::"vigario de Santena. Quem melhor do que aquele que tern a cura das
! t;almas poder ia tel ' condicoes de fazer frutificar esse capital impalpavel?
". filho herda portanto urna renda de situacao. EJa nao autoriza tudo, e
vigario pagara caro, no inicio de sua funcfio, pelo faro de nao tel'
comnre ·t"· "dido que os lirni tes do poder espir itual tambem sao clara mente
Entao se convertera, com mil sucesso inegavel, II CUr3 e ao
,t;AUJ.\.. l>WL1\J. Mas e decididamente um mal l interpre te da polit ica do vi la-
o. Nao se deu conta de que a geopolft ica local , assirn como 0equilibrio
forcas do ducado, se modif icaram. Os equilfbrios que haviam tornado
. um intermcdiar io indispensavel modificaram-se. Giovan Battista
com sua queda esse desconhecirnell to do terreno.
Portanto, a definicao do poder nao pede ser separada cia organiza- ,
de 1 1mc ampo onde agem Iorcas i ns tr iv e is e que e st a o s er npr e sendo '
ificadas, Novamcnre, 0 poder (ou cerras forrnas de poder) e a
ecornpensa daqueles que sabern explorar os recursos de uma si tuacao,
partido das ambiguidades e das rensoes que caracterizam () jogo
Alguem questionara que se trata de rufnas dcrrisorias, de uma
-esnuma de historia? Responderemos que essa arividade mimiscula , pre-
. ern perpetuo rnovimento foi provavelmente 0 que dell corpo e
' . 0 ' , . a s grnndes ent idades abst raras cuja irrepreenslve l afi rrnacao na
historia estamos sernpre evocando: 0 crescimento do Estado, 0 fim do
" " ' 1 " " " mente das zonas rurai s, a reforrna catolica e tantas outras. Tambern
ela que faz com que, lida ao res-do-chao, a hisroria de um Jugal' seja
avelmente diferenre da de rodos os out ros lugares.
Ei s que surge outro problema, que e n a v er da de i ns ep ar av el do pro-
, p rojeto c ia 1~icro-hist6ria. Adrnitamos que, ao limitar 0 campo de
, ~ao,facarnos surgir dndos 1150 apenas mais numerosos, mais re-
"i£inados, mas que alem disso se organizam de acordo com configuracoes
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A HERAN<;A IMATERIA l
ineditas e fazem aparecer uma outra cartografia clo social . Qual poder ia
ser a representat ividade de uma arnos tra tao circunscrita? 0 que ela pede
nos ensinar que seja generalizavel?
A pergunra foi feita muito cedo e r ec eb eu r es po st as que n ao c on vi-
d a v am de modo a lg um a a desa o. E m u rn a rt igo j5 antigo, E d oa rd o G re n-
e li previra a objecao criando um oximoro elegante: propunha a nocao
de "excepcional l1or111al" .16 Esse diamante obscure deu muito 0 que
falar. Exerce a fascinacao dos conceitos que gostarfamos de poder utili-
zar se apenas soubessernos def ini- los exatamente, Devemos vel ' no "ex-
cepcional normal" 11111 ceo, em total consonfmcia com a sensibi lidade
dos a1105 p65-1968, cia conviccao segundo a qual as rnargens de uma
sociedade dizern mais sobre eta do que 0 seu centro? Que as lou cos, os
m a rg in ais, o s d oe nre s, a s rnulheres (e 0c on ju nt o d os grupos dominados )
sao os detentores privi legiados de lima especie de verdade social? Deve-
se compreender isso e m u rn se ntid o d ife re nt e, 0 d e lim a fa st am en ro
signif ica t ivo (mas d e que)? O u a ind a co I II 0 u m a p rir ne ir a fo rm u la ca o d o
paradigma indiciario rnais tarde proposro por Carlo Ginzburg? Essas
diversas hipoteses, e outras a in d a , t a lv ez s ej a m v er d a de ir a s, sao em rodocaso plausiveis; e pode a te ser que renhum coexisrido no pensamenro de
Grendi, sob a reserva de serem cornpatfveis entre 5i ( 0 que nao e cerro).
Nao sendo 0 autor desse rnister io epistemologico, nao fingirei organi-
za- lo e evitarei escolher l ima dessas diferentes interpreracocs. Observe
simplesmente que qualquer uma debs deixa em aberto 0 problema de
saber quais ensinamentos gerai s podemos esperar t irar de uma pesquisa
local, p on tu al, a nc ora da em su a p ro pria exc ep cio nn lid ad e.
A e sse d eb ate a bert o, 0 livro de Giovanni Levi m e parece trazer urn
cerro mirnero de respostas que deslocarn a argumentacio de maneiru
ut i! ' Ele le rnbra em primei ro lugar que se pode reflet ir sobre a exernpla -
ridade de um faro soc ial sem ser em terrnos rigorosamente estat fsri cos.o segundo capitulo, dedicado a s estrategias desenvolvidas POt tres fa -
milias de meeiros de Santella, opera l ima escolha entre algumas centenas
de outros cases possiveis, que nfio recebern nenhum tratamento COI11-
paravel mas que estao todos presentes no dossie prosopogrrifi co. 0 pro-
cedimenro, portanto, nao consistiu em inserir esses tr2s exemplos na
34
PREFAc lO
totalidade d a inforrnacao consti tuida , mas sim em extrai r deles os e le-
mentos para um modelo. Essas tres biografias familiares, bastante con-
trastadas , sao suficientes para fazer aparecer regular idades nos cornpor-
tamentos colet ivos de urn grupo social especi fico. Testar a valida de do
modelo consiste portanto nao em uma verif icacao de tipo estatistico,
mas sim em su a exper imentacac sob condicoes extremas, qu a nd o um a
ou muitas das variaveis que 0 formam sao submetidas a deforrnacoes
excepcionais. A f ormacao de u rn dossie sistematico e precisamente 0que
torn a possfvel uma verif icacf io desse t ipo.
o pcrcurso sinuoso, cornplicado, proposto por Levi me parece por
outro lado ter 0merito de nunca fechar 0 campo restrito da pesquisa
a sobre si mesmo, mas sim examinar de rnaneira racional 0 que
podcrfumos charnar de variacoes de escala de observacao.V Da propria
S an te na , s ab er no s g ro ss e modo tude 0 que hoje se pode saber sobre
urn periodo de meio seculo: tudo, ou seja, rnuito sobre a s r ea l id a d e s
econom icas c sociais, e algurna coisa, muitas vezes vestigios mais re-
. d uzid os, sob re a d infim ic a po lit ic a que anima essa comunidade. Mas
a intcligcncia dessa aventura paroquial nao pode ser apreendida ape-. 11>15 110 nivel local. E atraves do recurso sistematico a variacoes de
· . ;, ~ li st i 1nc i a fo c a l, que permitern inscrever Santena em 11l11a se rie de COI1-
. t e xr os c n c ai xu d o s, qu e e ss a h i st o ri c torna no s pOllCOS sen ti d o. A c ad a
vel de leirura, a rculidade aparece difcrente, e 0 jogo do microisto-
r c onsiste em c onec ta r essa s real ida des em Ul11 sis tema de intern-
<;;ocs miilriplo. Da mesma forma que o destine do Estado moderno se
descnhou no pa lc o d e centenas, d e m il hares d e Santenas, 0 agencia-
mente de l i c a do e sutil dos equilfbrios no interior da cornunid ade e
u lta d o d e forcas plurais, orientadas em todos os sentidos, que ora
o ampliadas, ora obscurecidas. A manipulacao deliberada desse jogo
e escalas sugere uma paisagern toralmente diferente, ao mesmo tern-
que uma outra ideia cla represenratividade de um caso local. Os
tecimentos s a o , naturnlmenre, unicos, mas 56 podern ser corn-
ndidos, ate mesmo em sua particularidade, se forein restituidos
aos di fe rcntes nive is de uma dinarnica hi storica.
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5/10/2018 REVEL, Jacques. Prefácio. A Herança imaterial. A história ao rés-do-chão - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/revel-jacques-prefacio-a-heranca-imaterial-a-historia-ao-res-do-chao 16/16
A HERA NC ;:A IM ATER IA L
9. Contentamo-nos aqui em puxar alguns dos fios da teia sabiamente
tec ida por Giovanni Levi. Resta ao le itor recompor, de a cordo com su a
vontade e seu prazer, 0 bela objeto que the e proposto . Gostaria no
entanto de Iernbrar, para terrninar, que e no ponto ao qua l chegamos,
onde os p r iv i le g io s c i a m i c r o -h i sr o ri a parecem rnais evidentes, que estes
me parecern se dissolver e 110S remeter a lei comum dos historiadores
do social. Pais 0conjunto das exigencias e ambicoes que acabam de ser
rapidarnente citadas nao e , ou nao dever ia ser, privi legio dos micro-his-
roriadores. E justa: nao se pode ver muito bern 0 qlle poderia impedir
os macro-historiadores (ou qualquer out ro membro cia t ribo) de usar os
rnesmos procedirnentos, em particular clebuscar escalas var iaveis de ob-
se rvacao mais adequadas ao es t udo de fenornenos relacionados entre si,
o m e ri to c ia p ro po sr a r ni cr o-h is ro ric a t er ti s id o ao m enos d e ch a rna r a
atencfio, at raves do exernplo e atraves d o fa ro , para e ss a s v er d a de s de
b o rn s en se , ao sugerir lima mudanca d e parametres eficaz, De reafirrnar
tarnbem que 0 social nao e urn obj ero definido, mas que deve ser cons-
truido a par tir de interrogacoes cruzadas. Nesse sentido, A h er an ca i ma -
terial pode servir de modele, j, i que nos conduz par caminhos urn poucone gl ig e nc i a c \o s d a h i st o ri a -p r ob l er n a .
J ACQUES REVEL
NOTAS
I Cf . J . R ev el , " His ro ir e e r s ci en ce s s oc ia lc s: le s p aru d ig m es d es A nu a lc s" , Annates
E.S.C ., 6, '1979, pp. 1360-1376.
:I. E. Le Roy Ladur ie , "Lhisroire immobile" , aula inaugural n o C olle ge d e F ra nc e, 30de uovembro de 1973, publicado em Annales E.S.C., 3, 1974, pp. 673-692, e em Le
territoire de l'historien, t omo Il,Pa r is , Ga l l ima r d , 19n, pp . 7-34 . No te -s e a in fl exao do
rem a n o e sp ac o d e a lg un s a no s: Les PIlYSIIIIS de Languedoc ( 19 66 ) e vo ca va u rn g ra nd e c ic lo
u gra rio d e m ais d e q ua tro se cu lo s, c uj o im ob ilisrn o a pa re nre c nc ob riu , n a v erd ad c, o sc i-
J a~6e s rnuit o impor rantes . A estabi lidade da s nn ri ga s socicdades r ur nis ro rnou-s e rema
pred om inanre d a a ula d e 1973. N en hu mu d uv id a d e q ue e le fo i a in da m uis a rn plific ad o
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P RE F Ac IO
m u lr ip lo s a ta qu es d e l im p ub li co decididarnente n osra lg ic o d o " mu nd o q ue p erd e-
n os a no s de MOlltailloll e do C h ev al d 'o rg ue il ( 19 7 5) .
Sobre este ul t imo ponto, remero aos arr igos incisivos de J. Rougerie, "Faut-il depar-
jpn""li<pr l 'h i sr oi re d e F r an c e ?" , Annales E.S.c., 1, 1966, pp. 178-193, e d e C h ri st op h e
e, "Histoire professionnelle, histoire sociale?", A nn at es E .S .C .) 4, 1979, pp. 787-
.4 Cf., r na is r ec enre r nent e , 0 apelo "Hisroire ersciences sociales: 1111 tournant cr i t ique?",
E.S.C ., 2,1988, pp. 291-294.
L. Stone, " Th e R ev iv al o f Nar ra ti ve . Ref le ct ions on a New Old His to ry", Pa st a n d
85, 1979, pp. 3-24, bern como n um er os os o u rr os anigos do mesmo a u t o r deci-
. "revisionistas".
b e , Ginzburg e C . Poni , " I I nome e il COI11(; : mcrcaro sroriografico e scarnbio disugua-
,Qullderni Storici, 40, 1979, pp. 181-190. Ver tarnbern a aprcsenracao da colecao
par G. L e vi , T u ri m, E in nu d i, 1980.
Grcndi, "Microaualisi e storia sociale", Quadami Storici, 33, 1972, pp . .5 06-520.
Ut: t -< : : :SSCI · ' vo l umes publicados ate 1989.
~'c.G in zb urg , "S pic , R ad ic i d i u n p ara dig ma in diz iu rio ", e m A . C arg an i, Crisi del/a
Nuovi model li nel rapporto Ira sapere e attioita umane, Turirn, 1979, pp. 56-106.
H. James, D a ns 1 (1c ag e ( N a j au la ), rrad, f ru n c ., P a ri s, Stock, 1982.
111:11 e , por exernplo, 0 ponto de vis ta desenvolvido por Sergio Ber te ll i em urn inveu-
o rn ui ro n eg at iv e ( e, p od e- se d iz er, POllCO c or up rc en si vo ) p ub li ca do n a Revue d'huma-
. e t Rena is s ance , 1987, pp . 297-302.
' 12 : Sa o est es o s r erm os d e u m a d isC lI 5S [IO ,c vo ca du em L im a n ora , d o u uro r c om se u p ai,
L ev i, a q ue m 0 livro e d cd ic ud o e de m c sm o a u ro r d e l im a b ela a u ro bi og ra fi a
. <. politica.
1 3 A p ro xim a rc m os C S S,I Sp ro po sr as d a s d e I~o u re l ic l I em E sq ui ss c d 'u ne th eo ne d e II IP a ri s e GC I I (~ bw ,B r o z, 1 Y73, descnvolvidus cmLeSclIspratique, P a ri s, E e l. d e M i n u ir ,
No t emos no e nra nro q ue L ev i n c m se mp re e sc ap e d u tent,l~iio I u nc io na li sr a. ( ~o c a so ,
" " , r n C I I " ' , r q u an do u s la cu na s d nc u me nrn is 0 f orc ar n a r ec on st ru ir h ip or er ic am e nt e u m a
h is to ri ca a partir d e r es ul ta d os c o ns ta ra v ci s: a ss im e 110 r ela to ri o d e a tiv id a de s d e
Cesare Chiesa c nq ua nro p od esra de d e Santella, n o fin al d o c ap itu lo I V,
14 Dc vC lI10 s evoc ar a qu i a obra q ue c ontinu a a ser 0 m od ele d este ripo d e a na lise, o
de E. e Thompson, T he M ald llg o f th e E ng lis h W ork in g C la ss, Londres, 1963.
ts Para 11m cxcmplo conrcmporanco cornparavel, d. L. Bolranski, L .e s C ad re s. L a f or -
d'un groupe social, Paris, E d . de Minui t, 1982.
. '1 6 E . G rc n di , "Microanalisi . . .", a rt . c it .
1 .7 E ss as li nh as d ev cm m u ir o U S d i sc u ss oe s q u e r iv e s ob re esse t em a c om B er na rd L ep eu r,
d e q ue sro es q ue nos parecerarn comuns. Sou 0 unico responsavel , e evidenre, pela
aqui proposta.
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