Internet Archive · 2018. 10. 30. · SUMÁRIO ILÍADA Introdução — A Questão Homérica Canto...

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  • DADOSDECOPYRIGHT

    Sobreaobra:

    ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

    Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudíavelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

    Sobrenós:

    OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:lelivros.loveouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

    "Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira

    umnovonível."

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  • BoxHomeroISBN:9788520924082Contémoslivros:IlíadaISBN:9788520924075OdisseiaISBN:9788520924051EditoraNovaFronteira,2015.

  • SUMÁRIO

    ILÍADA

    Introdução—AQuestãoHoméricaCantoI:APesteeaIraCantoII:Sonho,TesteeBeóciaouOCatálogodasNausCanto III: Juramentos, Muralhas de Observação e o CombateSingulardeAlexandreeMenelauCantoIV:AQuebradoJuramentoeRevistadeAgamémnoneCantoV:OsFeitosHeroicosdeDiomedes(AristiadeDiomedes)CantoVI:OEncontrodeHeitorcomAndrômacaCantoVII:OCombateSingulardeHeitoreAjazeaRemoçãodosMortosCantoVIII:ALutaInterrompidaCantoIX:HonraparaAquilesePrecesCantoX:OsFeitosdeDolão(Doloneia)Canto XI: Os Feitos Heroicos de Agamémnone (Aristia deAgamémnone)CantoXII:OAtaqueaosMuros

  • CantoXIII:ALutaJuntoaosNaviosCantoXIV:OEnganodeZeusCantoXV:ARevancheRumoaosNaviosCantoXVI:OsFeitosdePátroclo(Patrocleia)CantoXVII:OsFeitosHeroicosdeMenelau(AristiadeMenelau)CantoXVIII:AFeituradasArmasCantoXIX:ARenúnciaàIraCantoXX:ALutadosDeusesCantoXXI:ALutaJuntoaoRioCantoXXII:ARetiradadeHeitorCantoXXIII:PrêmiosemHonradePátrocloCantoXXIV:OResgatedeHeitorNotasApêndiceSobreoAutor

    ODISSEIA

    PrefácioNotadoRevisor

    PRELÚDIOCanto I: Assembleia dos Deuses, Conselhos de Atena aTelêmacoeFestadosPretendentes

    PARTEI

    AViagemdeTelêmacoCantoII:AAssembleiaemÍtacaeaPartidadeTelêmaco

  • CantoIII:EmPiloCantoIV:NaLacôniaeaEmboscadadosPretendentes

    PARTEII

    OsRelatosnaCasadeAlcínoo—OdisseunaIlhadeCalipsoenaFeáciaCantoV:ACavernadeCalipsoeaBalsadeUlissesCantoVI:OdisseuChegaàFeáciaCantoVII:EntradadeOdisseunaCasadeAlcínooCantoVIII:RecepçãodeOdisseupelosFeácios

    PARTEIII

    ORelatodeOdisseuCantoIX:OsCíconos,osLotófagoseoCiclopeCantoX:AcercadeÉolo,osLestrigõeseCirceCantoXI:ConsultandoosMortosCantoXII:AsSereias,Cila,CaribdeeosBoisdeHélio

    PARTEIV

    ORetornodeOdisseuCantoXIII:AChegadaaÍtacaCantoXIV:OdisseuChegaàCasadeEumeuCantoXV:TelêmacoChegaàCasadeEumeuCantoXVI:ReconhecimentodeOdisseuporTelêmaco

    PARTEV

    OdisseunoPalácioCantoXVII:NaCidadeCantoXVIII:ALutadeIroeOdisseuCantoXIX:Encontro dePenélope eOdisseu e a LavagemdosPésCantoXX:AcercadaMortedosPretendentes

    PARTEVI

  • AVingançadeOdisseuCantoXXI:AApresentaçãodoArcoCantoXXII:AChacinadosPretendentesCantoXXIII:PenélopeReconheceOdisseuCantoXXIV:SegundaDescidaaoHadeseoTratadodePaz

    NotasApêndiceSobreoAutor

  • Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela Editora Nova FronteiraParticipaçõesS.A.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquer formaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopirraite.EditoraNovaFronteiraParticipaçõesS.A.

    RuaNovaJerusalém,345—CEP21042-235Bonsucesso—RiodeJaneiro—RJTel.:(21)3882-8200—Fax:(21)3882-8212/8313

    CIP-Brasil.CatalogaçãonafonteSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

    HomeroIlíada/Homero;traduçãoeintroduçãoCarlosAlbertoNunes.-[25.ed.]-RiodeJaneiro

    :NovaFronteira,2015.536p.;23cm.Traduçãode:LiásApêndiceISBN97885209240751.Poesiagrega.I.Nunes,CarlosAlberto.II.Título.

    14-18214CDD881

    CDU821.14’021

  • SUMÁRIO

    Introdução—AQuestãoHoméricaCantoI:APesteeaIraCantoII:Sonho,TesteeBeóciaouOCatálogodasNausCantoIII:Juramentos,MuralhasdeObservaçãoeoCombateSingulardeAlexandreeMenelauCantoIV:AQuebradoJuramentoeRevistadeAgamémnoneCantoV:OsFeitosHeroicosdeDiomedes(AristiadeDiomedes)CantoVI:OEncontrodeHeitorcomAndrômacaCanto VII: O Combate Singular de Heitor e Ajaz e a Remoção dosMortosCantoVIII:ALutaInterrompidaCantoIX:HonraparaAquilesePrecesCantoX:OsFeitosdeDolão(Doloneia)Canto XI: Os Feitos Heroicos de Agamémnone (Aristia deAgamémnone)CantoXII:OAtaqueaosMurosCantoXIII:ALutaJuntoaosNaviosCantoXIV:OEnganodeZeus

  • CantoXV:ARevancheRumoaosNaviosCantoXVI:OsFeitosdePátroclo(Patrocleia)CantoXVII:OsFeitosHeroicosdeMenelau(AristiadeMenelau)CantoXVIII:AFeituradasArmasCantoXIX:ARenúnciaàIraCantoXX:ALutadosDeusesCantoXXI:ALutaJuntoaoRioCantoXXII:ARetiradadeHeitorCantoXXIII:PrêmiosemHonradePátrocloCantoXXIV:OResgatedeHeitorApêndiceSobreoAutor

  • INTRODUÇÃO

    AQUESTÃOHOMÉRICA

    Surgidasnosprimórdiosdaliteraturaeuropeia,aIlíadaeaOdisseiaaindaconservam todo o seu frescor primitivo, como se os milênios, muitolonge de ofuscar-lhes o brilho, só contribuíssem para exaltar-lhes abeleza intrínseca.Encheriabibliotecasoquese temescritosobreessespoemas tão justamente famosos, que, por sua maneira decisiva,exerceram influência nas grandes literaturas que se formaram sob oestímulobenéficodopensamentogrego.Sobreovalordapoesiaedesuaimportância social ninguém falou melhor do que o próprio Homero,quando insistentementeprometeaseusheróisa imortalidadeque lhesassegurava a arte divina. Tão grande é a consciência de seu valor, ou,digamos,desuamissão,quechegaadeclararquesóaconteceramtantascalamidades—aGuerradeTroia,oentrechoquededoiscontinentes,amorte de tantos heróis — para que ele as fixasse em seus versosimorredouros. É o que também Helena declara, com os olhos naposteridade, com relação ao seu destino e ao de Páris, causa maispróximadascalamidadesqueafligiamTroia:TristedestinoZeusgrandenosdeu,paraquenoscelebrem,nasgeraçõesporvindoiras,oscantosexcelsosdosvates.

  • [Ilíada,VI,357-8]Mas,deinício,cumpre-medeclararquenãomeproponhoafazerum

    estudosobreapoesiadeHomero,rastreando-lheascaracterísticas,nemachamaraatençãodosleitoresparaaspassagensconhecidas,que,pelomenoscomo“trechosdeouro”dasseletas,opulentamnossopatrimôniocultural. Meu intuito é mais modesto, podendo, mesmo, a um juízosuperficial, parecer demolidor; porque, muito longe de entoar loas àbelezaimperecíveldaIlíadaedaOdisseia,pretendodemonstrarqueessasduas epopeias não fogem às vicissitudes das produções congêneres, equesãomuitocondicionadas:humanas,demasiadamentehumanas.Quero dizer com isso que, em vez de convidar os leitores para nos

    extasiarmos diante das belezas desses monumentos literários, que hátrês milênios adquiriram a fama de modelos inigualáveis de poesia,disponho-me a estudá-los sob um prisma diferente. Vou apreciar aformaçãodaIlíadaedaOdisseiaàluzdadenominadaQuestãoHomérica,acélebrequestãoqueháumséculoemeiodominasoberanaocampodafilologiaclássica.E,ameuver,amelhormaneiradeconsiderarmosesseassuntonãodeveráconsistirnaenumeraçãodasváriasteoriasquetêmsurgido para explicar a formação dos dois poemas, mas o processoparcialeapaixonadodosprópriosmilitantesdomemorávelpleito.Querodizer que pretendo tomar posição no debate, para filiar-me à correnteque, a meu ver, está com a verdade, e apresentar uma tentativa deexplicaçãodagênesedaIlíadaedaOdisseia.A afirmativa de que esta explicação não passa de uma tentativa

    equivaleàconfissãodequeestamoslongedeumacordo,tantonotemaprincipalcomoemmuitasquestõessubsidiárias.Depoisdeumséculoemeio de estudos, qual mais profundo e interessante, os combatentesainda defendem com igual ardor os seus redutos primitivos, não sedobrandoosunitários—istoé,ospartidáriosdaunidadeintransigentedospoemas—aosargumentosdosanalíticos,queseesforçamemacharum critério estilístico que nos permita distinguir na trama complexa

  • desses poemas os elementos heterogêneos que convergiram para aestruturaçãodesuaunidade.Parecerão, talvez, paradoxais as conclusões a seguir, uma vez que

    pretendodefender a unidadeda concepçãoda Ilíada e a pluralidade daOdisseia.Mas espero que seja possível apresentar as razões de semelhante

    atitude, que se origina de reflexões amadurecidas, já no decurso dotrabalhodatraduçãodosdoispoemas,jánoestudoespecializadonessesetor da filologia clássica. Sobre os pontos fundamentais da QuestãoHomérica, estão divididos os dois grupos, o dos unitários e o dosanalistas,nãoaceitandoseuscomponentes,insuladamenteconsiderados,asconclusõesdosdoladooposto,noquerespeitaàgênesedospoemas.Para os unitários intransigentes— Karl Rothe, Drerup (“o gigantescotrabalhodeDrerup”,nafraseexpressivadeBowracomrelaçãoaograndemerecimento desse investigador) e, mais recentemente, Renata vonScheliha,emseulivroPatroklos(Basileia,1943),verdadeirajoiadeestiloe erudição —, para os componentes desse grupo, dizia, a Ilíada e aOdisseia são composições de um único autor, tendo chegado até nós,essencialmente, o texto desses poemas tal como brotou da menteprivilegiada do poeta. Se há discrepância entre alguns, refere-se aquestõessecundárias:épocaemqueteriavividoHomeroeumaououtraconcessãoquantoainterpolaçõestardias.Paraosanalistasavançados—Wilamowitz Moellendorf, Erich Bethe, Eduard Schwartz, para sómencionarosdemaiorrenome—éapenasaparenteaunidadedosdoispoemas, que se formaram pela união mal-ajeitada de composiçõesmenores,defácilidentificação.SobreoproblemadaformaçãodaOdisseiajámeexterneiem1941,em

    trêspalestrasdirigidas aumauditório compostoquase exclusivamentedemédicos,noanfiteatrodaclínicaobstétricadoprofessorRaulBriquet.Não forampublicadas,mas a ocorrência constou de ata especial. ComrelaçãoaoproblemadaIlíadaedesuagênese,emfevereirode1944fizduas palestras à Sociedade Filológica de São Paulo, então sob a

  • presidênciadoprofessorOtonielMota.Mas as considerações aqui têmporbaseumaconferênciarealizadaemnovembrode1950,naBibliotecaMunicipal,namesmacidade,equetrêsanosdepoisfoipublicada,semessaindicação,narevistaculturalAnhembi.Com relação à Ilíada, foi decisiva em meu espírito a influência dos

    trabalhosdeErnstHowaldedePestalozzi,adiantecitados,quevieramdarunidadeàsvisõesparciaisaqueeujátinhachegado,conduzindo-merapidamente a uma solução que se me afigura definitiva, e que tem,ainda,oméritodefazerinteirajustiçaàtesedosdefensoresdaunidadedopoema.SobreaformaçãodaOdisseia,sóserviuparaconsolidaraindamais a tese defendida nesse estudo a leitura do grande livro deMerkelbach,UntersuchungenzurOdyssee(Munique,1951).Acoincidênciadasconclusões,quedesceatéparticularidades,podeserinvocadacomoargumentoafavordaveracidadedadoutrinadefendida.Por último, observarei que não foram tomados em consideração no

    presenteestudosobreaIlíadaosrecentestrabalhosdeKakridisedeVonder Mühll, porque de publicação ou de aquisição tardia: Johannes T.Kakridis,HomericResearches,Lund,1949,ePetervonderMühll,KritischesHypommemazurIlias,Basileia,1952.

    I

    Paraentrarmoslogonoassunto,declaro-me,deinício,partidáriodoscorizontes,daquelesquedesdeaAntiguidadeeramassimdenominadospor atribuírem autoria diferente à Ilíada e à Odisseia. Por ordemcronológica, quando do aparecimento dos dois poemas como dosacontecimentosquecomemoram,eudeveriaestudaremprimeirolugaraIlíada.Masparanosmantermosfiéisaopropósitoinicialde“falarmal”de Homero, vou inverter essa ordem e começar pela Odisseia, cujaanálise, sob alguns aspectos, é mais atraente e de mais fácilcompreensão. Desse modo, poderemos mudar de atitude na segunda

  • parte, para nos reabilitarmos, ou melhor, para reabilitarmos o poeta.Posto isso, apresentareiminhaprimeira proposição apodítica, que serádemonstradaduranteaspresentesconsiderações: tantoa Ilíada comoaOdisseia representam a fase última do movimento épico da Grécia,firmando-seambosospoemasemcopiosomaterialpreexistente,istoé,empoemasdeproporçõesmenores,emsagas, lendas,mitosdeorigemvariada, que iam sendo incorporados a conjuntos cada vez maiscomplexos.MasnocasodaIlíada,umgrandepoeta—quepoderáserotãodiscutidoHomerohistórico—conseguiuumasínteseadmirávelcomessematerialheterogêneo,aqueimprimiuocunhodoseugrandegênio.ParaaOdisseiaanossaconclusãoterádeserumpoucodesanimadora:oredatorfinaldopoemaserevelainferioraoesplêndidomaterialquelheforateràsmãos.Ainda no domínio das generalidades, direi que os dois poemas se

    distinguemtambémquantoaogêneroliterário:aIlíadaéumaepopeia,ea Odisseia, um romance. Isto é, na Ilíada vamos encontrar tradiçõesmilitares das tribos domundo helênico, em suas variadas etnias, comcertabasehistórica,aindaquetransfiguradapelosmitos,aopassoqueotemadaOdisseiaéumtemauniversal,queocorrenaliteraturademuitospovosecujaaçãosepassaemtodaparteeaomesmotempoempartealguma. Isso explica o fato de serem tão fecundos os achadosarqueológicos no que se refere à Ilíada, ao passo que têm sidodesesperadoramente negativas as escavações levadas a cabo nas duasilhas — Tiaki e Leucas — que os entendidos identificam com atradicionalÍtaca.EtantoaOdisseiaéumromancedetemauniversalqueo seu enredo pode ser apresentado sem que se façamenção ao herói,conformedemonstrouWilamowitz.Repitamosaprova.Aopartirparaaguerra,umfamosobarãomedievalchamousuaesposa

    e disse-lhe: “O inimigo é poderoso; a guerra promete ser longa; oresultado é incerto. Por isso, se eu perecer na luta, ou se, decorridosvinteanos,nãotivervoltado,ficaráscomliberdadedecasar-sedenovo,para entregares a casa a nosso filho.” Feitas essas recomendações, ele

  • partiu. À medida que os anos se passavam, vinham sendo trazidasnotícias pelos bardos que percorriam os castelos dos senhores ecantavamasvariadasfasesdopleitomemorável,atéque,depoisdedezanos, chegou a hora em que ela se decidisse por novas núpcias. Semesperançaalgumadoretornodomarido,premidapelascircunstânciaseaté mesmo pela insistência do filho, que via os seus bens seremdevoradospelospretendentes, resignou-se a esposa adar aquelepassodoloroso:tendoapresentadoumarcoquepertenceraaomarido,declarouquesecasariacomquempudessemanejá-lo.Aresistênciadamadeiraeasdemaiscondiçõesdaprovatornavamopleitodificílimo.Nenhumdospretendentes conseguiu dobrar o arco e, muito menos, completar aprova,oquefoi feitocomfacilidadeporummendigoquealiapareceradias antes e a quem ninguém prestara atenção, tendo se patenteadodepois que esse mendigo era, justamente, o famoso guerreiro quechegara disfarçado à sua casa, para vir salvar a esposa na ocasião demaiorperigo.ÉesseotemadaOdisseia,temadenaturezauniversal,quetantopodia

    ser imaginado tendoocorridonaGrécia comono tempodasCruzadas,ou atémesmo entre nós, na época das Bandeiras. De Raposo Tavaresconta-sequeeledepoisdepercorrerosertãopormuitosanos,aovoltarparaSãoPauloencontrava-setãodesfiguradoqueaprópriafamílianãooreconheceu. Se pensássemos em mitos, como os gregos, esublimássemos o passado, com pequeno esforço de imaginaçãopoderíamosconcretizarao redordonomedessebandeirantemaisumavariante daOdisseia. O nomeUlisses, ouOdisseu,1 foi apenas o nomefeliz que congregou em torno de si as lendas de um povo denavegadores,demisturacomtemasdeorigemfrancamentecontinental.Éóbvioqueasprimeirasnarrativasdasaventurasdesseherói—quero

    dizer, as primeiras Odisseias — foram de proporções modestas, nãopodendoabrangerdozemilversos,comoanossaOdisseiatradicional.Emvários séculos de tradição épica, muitas deviam ter sido as variantesdessasaventuras.Emais,peloquenosépermitidoconcluirdaliteratura

  • comparada:depoisdecantadasasproezasdoprincipalherói,passavamos vates à enumeração das de seu filho, como se verificou com osromancesdecavalariadeEspanhaedePortugal,esgotadasas façanhasdos Amadises e dos Palmeirins, vinham seus filhos, e até mesmo osnetos, encher o ócio e a imaginação dos leitores, sempre interessadospelo relato de novas aventuras. O mesmo fenômeno se verificou naepopeiagrega:depoisdasaventurasdeOdisseu,vieramasdeTelêmaco,sendo fácil demonstrar dentro da trama da Odisseia tradicional aexistência de um poema independente — a Telemaquia — deincorporaçãotardia.Chegouaténósanotícia,ainda,deumaTelegonia,atribuída a Êugamon de Pérgamo: Telêgono, filho de Ulisses e Circe,depoisdecrescido,saiembuscadenotíciasdopai.AodesembarcaremÍtaca, é atacado pelo próprio Ulisses, que julgou tratar-se de pirata.Ulisseséferidoemorre.Essetema,damortedopaipeloprópriofilho,emduelo,semseconhecerem,ocorrenasliteraturaspersaegermânica.Doantigopoemagermânicosónosrestamfragmentos—odenominadofragmento da “Canção deHildebrant”, escrito em caracteres do séculoIX, na sobrecapa de um livro teológico da biblioteca do Convento deFulda, emquevemnarradooencontrodeHildebrantedeHadubrant.Essasreferênciasvisamapenasàconfirmaçãodoquefoiditoacima:queo tema daOdisseia brota mais da fantasia dos poetas do que de fatospropriamentehistóricos.Qualquer leitor desapaixonado verificará que aOdisseia começa duas

    vezes:emboraopoetaanuncienoproêmioquetratarádasaventurasdeUlisses,enoconcíliodosdeusescomqueseiniciaopoema,constituaapreocupaçãomáxima deAtena a sorte do herói detido emOgígia pelaninfaCalipso,aobaixardoOlimpodirige-seadeusaaÍtacaparaocupar-se apenas com Telêmaco, durante quatro longos cantos. Somente nosegundo concílio, no início do Canto V, é que se inicia a Odisseiapropriamentedita,quandoAtenatornaaqueixar-seaZeusdasortedeUlisses, cujo palácio fora invadido pelos pretendentes. Na resposta deZeusnota-seumcertoazedumediantedasrecriminaçõesinjustas,uma

  • vez que Atena já obtivera, no concílio anterior, consentimento paraprocedercomobementendesse:Filha,porquetaispalavrasdeencerrodabocasoltaste?Nãofostetuque,porprópriadeliberação,resolvestequesevingasseOdisseudelestodos,aovirdetornada?[...]

    [Odisseia,V,22-4]Percebe-se que o poeta está em dificuldade para iniciar a história,

    movimentandoduasvezesasuamáquina.É fácilverificarqueaTelemaquiaeaOdisseia,propriamenteditas, se

    passamemdiferentesépocasdoano.Telêmaconavegaduranteanoite,deÍtacaaPilo,paravisitarovelhoNestor,dequemesperavanotíciasdopai. De Pilo a Lacedemônia faz a viagem por terra, a todo correr docavalo,emdoisdias,comparadaemFeras,emcasadeDiocles.Aviagemédescritaemversosestereotipados,queserepetemdevolta:Odiainteirogalopameojugo,incessantes,sacodem.E,quandooSolsedeitoueasestradasasombracobria[...]

    [Odisseia,III,486-7;XV,184-5]Noentanto,aaçãodaOdisseiasepassaempleno inverno,havendoa

    indicaçãoprecisadequeavingançadeUlisses, istoé,omorticíniodospretendentes, se deu no dia dos festejos a Apolo, que corresponde aonosso25dedezembro.Hámais:quandooporqueiroEumeusedispõeacontaraofalsomendigoasuahistória, justifica-secomadeclaraçãodequeasnoiteserammuitocompridas:“Paradormir,sobratempo,depoisdeumaboaconversa.Sonodemaisprejudica[...]”(Odisseia,XV,393-4).E,nodiaseguinte,aosedisporalevarosupostomendigoparaacidade,convida-o a partirem logo, porque escurece cedo e, com a tarde, atemperaturacai(XVII).Nessaépocadoano,Telêmaconãopoderiaviajar

  • porterraatodocorrerdocavalo,nemnavegarànoite,comoofezparaevitaracuriosidadedospretendenteseaciladaqueesteslheprepararamàsuavolta.Mashámais;vejamosagoraumtrechodoCantoIVe, logoaseguir,

    um do Canto XV, para nos convencermos de que este é a sequêncianatural daquele, quando a primitiva Telemaquia ainda não foradesmembradapara ser incorporadaàOdisseia.Telêmacoseencontranacorte de Menelau, e este lhe dá notícias de Odisseu: está com vida,detidonaIlhadeCalipso,semmeiosdevoltarparaÍtaca.Souberaissode Proteu. São notícias um tanto vagas; mas já permitiam algumaesperança de que o herói voltasse para restabelecer a ordem em casa.Como de praxe, Menelau oferece um bom presente ao hóspede: umcavalodecorrida.Telêmaco,comofilhodetalpai,recusaopresente,sobaalegaçãodequeÍtacaeradesolopedregoso,impróprioparaacriaçãodecavalos,propondoumatroca.Menelaulouvaadesenvolturadorapazedispõe-seasubstituiromimo,oferecendo-se,até,asaircomTelêmacopelas cidades daHélade, a fim de angariar outros presentes. Nenhumdos senhoresdas redondezas se recusaria ahomenagearo filhode tãograndeherói.Nessaaltura,chamoaatençãodosleitoresparaessetraçocaracterísticodohomemgrego:oapegoaosobjetosdevalor.OpróprioUlisses confessa aAlcínoo, na Esquéria, que seriamuitomal-recebidoemcasasevoltassedemãosvazias:[...]MaisestimadoheidesereacolhidocommaisreverênciaporquantoshomensemÍtacaàminhachegadaassistirem.

    [Odisseia,XI,360-1]MasouçamosMenelau,nosdois trechosque constituíamumaúnica

    falanaprimitivaredaçãodopoema:Queésdebomsangue,meucaro,sevêpelomodoquefalas.

  • Outrospresentesvoudar-teemlugardosprimeiros,queoposso.Dequantascoisaspreciosasemcasaseencontramguardadas,queroofertar-teamaisbelaedemaisextremadavalia.Dou-teumataçadefinotrabalhoedelinhasbem-feitas,todadeprata,combordas,porém,deouropurobatidas,obradeHefesto,presentedeFédimo,ousadoguerreiro,reidosSidônios,notempoemqueestiveemsuacasahospedado,quandodaviagemdevolta.Essa,agora,desejoofertar-te.

    [...]Mas,sepelaHéladequerespassarderetornoeporArgos,paraqueeuprópriotesiga,fareiprepararoscavalos.Pelascidadesdoshomensiremos;ninguém—écerteza—hádedeixar-nospartirsemnosdarumbonitopresente,ousejatrípode,ousejacaldeiraconstruídadebronze,outaçadeouromaciço,ouparelhademulasrobustas.

    [Odisseia,IV,611-9;XV,80-5]Não precisarei perguntar se os leitores notaram qualquer salto na

    passagemdostrechos:asequênciaéperfeita,oquevemdemonstrarqueelesfaziampartedeumanarrativaseguida,que,nestaaltura,foicortadacomtesoura—oudequalquer jeito,paraquenãomeobjetemqueosgregosnãoconheciamesseinstrumento—,tendojogadoocompilador,entre ambas as partes, dez cantos movimentados da Odisseiapropriamente dita, ou melhor, das Odisseias em que baseava a suacompilação.Devemos esse achado ao grande Wilamowitz Moellendorf, talvez o

    maiorhelenistaalemãodetodosostempos,eatémesmotalvezporquesobre todos os aspectos do pensamento grego escreveu uma obrafundamental. Sobre a Questão Homérica escreveu duas, além de

  • trabalhosdemenorvulto:HomerischeUntersuchungen,publicadaem1884,emqueestudaaOdisseia, eDie IliasundHomer, em1916.Maisadiantevoltaremos a tratar desse autor e do valor de suas investigações dodomíniodaQuestãoHomérica.Nestaexposiçãovouseguirmaisdepertoaorientaçãodeumdeseus

    discípulos,EduardSchwartz,que tevea ideiadedesignarpor letrasosautores dos poemas que podem ser isolados dentro daOdisseia.Dessemodo, daremos o nomede “T” ao autor daTelemaquia, para designarpelas letras “O” e “K” os autores de duas narrações primitivas deaventuras de Odisseu, compiladas pelo redator a quem devemos aOdisseia tradicional, e que receberá o nome de “B”. Essa letra vem,provavelmente, da palavra alemãBearbeiter (compilador); não sei dar arazãoda escolhadasoutrasduas.Masoque é foradedúvida équeoprocesso facilita a exposição, permitindo-nos, quase, individualizar osrespectivos autores, com suas peculiaridades de estilo e suasidiossincrasias.A ideiapegou;numtrabalhorelativamenterecente(DieOdyssee,1943),FriedrichFock,apesarderejeitara“hipótesederedator”emuitasoutrasafirmaçõesdeSchwartz,jogacomasuatecnologia,semindicaçãodeorigem,porpressupornosleitoresoconhecimentodetaisparticularidades.EduardSchwartz fala,ainda,em“F”e“L”,autoresdefragmentosquenãochegamaconstituirpoemasbem-delimitados.Masisso poderá complicar a nossa exposição. Vou deixá-los de lado, parajogarmos apenas com os elementos apontados. Para facilidade daexposição, apresento o seguinte esquema, cujas vantagens se farãosentir:“O”:Trinácria—feácios—tesprotos—Ítaca“K”:Trinácria—Calipso—feácios—Ítaca“T”:TelemaquiaVoltando, agora, nossa atenção para o assunto da Odisseia

  • propriamente dita, vamos tomar como fio orientador o itinerário doherói,decertaparteemdiantedesuasperegrinações.Acompanhando-sesem preconceitos através do texto daOdisseia tradicional, encontrá-lo-emos,deinício(CantoV),naIlhadeOgígia,ondeháseteanosCalipsooretém.Depoisdeobtidososmeiosdesepôrao largoedeverasuajangada desfazer-se na tempestade suscitada por Posido, e lançado naEsquéria, regiãodos feácios,descendentesdosdeuses,ondeemquatrocantos admiráveis ele relata as suas aventuras e as de seuscompanheiros,noretornodeTroia,atéamortedosremanescentes,coma destruição da última nau, depois do sacrifício dos bois do rebanhosagradodeHélio,quesuscitoua tempestadeemque todospereceram,com exceção deUlisses, então lançado na Ilha de Calipso.O episódiodosboisdeHéliodeu-senaTrinácria,provavelmenteamodernaSicília.DaEsquériaosfeáciosolevaramdiretamenteparaÍtaca,comocumpriaaesse povo fabuloso, cuja missão principal consistia em repatriar osnavegantes extraviados. Convém prestar atenção a esta pequenaparticularidade:queos feácioso levaram“diretamente”para Ítaca.Éoitinerário que vemos indicado na segunda linha do nosso quadro:Trinácria—Calipso—feácios—Ítaca.Portanto,vamosverseépossívelencontrar, dentro da própria Odisseia, elementos que nos permitamlevantaritineráriodiferente.Já vimos que o astucioso guerreiro chegou a Ítaca disfarçado de

    mendigo, para poder estudar de perto a situação, tendo, primeiro,procurado informar-se juntoaoporqueiroEumeu,queo levou,depois,ao palácio ocupado pelos 108 pretendentes de Penélope. Logo naprimeira noiteUlisses teve oportunidade de conversar comPenélope ede dar-lhe notícias do marido, que ele, o suposto mendigo, dizia terhospedadoemCreta,quandodesuaviagemparaTroia.Diz-nosopoetaque sua fala era um misto de mentiras e de verdades(mendacia multadicens,veri similia, para citarmoso tradutor latino).Ora, evidentementefantasiosaseramasreferênciasaosupostomendigo,quesedizianaturaldeCreta, irmãode Idomeneueque teriaviajadopelo longínquoEgito.

  • Mas, por outro lado, tinham de ser verdadeiros os dados relativos aopróprio Ulisses, na terceira pessoa, sem o que o mendigo falharia nointento de convencer Penélope do retorno iminente domarido, sendonatural que em sua situação mencionasse o que se passara com elemesmo nos últimos escalões de sua peregrinação: de Fidão, rei dostesprotos,tiveranotíciasfidedignasdeOdisseu,quejáseachavadevoltapara casa, estando pronta, mesmo, a nave que deveria reconduzi-lo.Chegara a admirar os tesouros que Odisseu angariava por toda parte.Mas o herói resolvera ir primeiro aDodona, para consultar o carvalhosagrado sobre amelhormaneira de aparecer em casa: às claras oupormodo encoberto. É no começo desta fala que ele nos ministra oselementosdequecarecemos:[...]Játive,certo,notíciadavoltadoheróiOdisseu,queseachaperto,naterrafecundadoshomensTesprotos,aindacomvida,econduzparacasapreciosostesouros,queemtodaparteangariou.Masanaudecostadoescavadoeoscompanheirosqueridos,perdeu-osnomarcordevinho,aoseafastardaTrinácria[...].TodosaMorteencontraramnomeiodasondasfuriosas.Ele,porém,presoàquilha,jogadoseviucontraapraiadaregiãodosFeácios,quesãodescendentesdosdeuses.[...]

    [Odisseia,XIX,270-6,277-80]Nesse relato, duas particularidades chamam, imediatamente, nossa

    atenção: tersidoOdisseu jogadonaTrinácriaparaaregiãodos feácios,sempassarporOgígia,enãotervindodalidiretamenteparaÍtaca.Essadiferença de itinerário permitirá concluir pela existência de um textodiferentedodaOdisseiatradicional?Prossigamosnaanálise,embuscadealgumreforçoparaaconclusãoafirmativa.Há uma passagem no Canto VIII que carecerá absolutamente de

  • sentido, se não aceitarmos essa conclusão. É quandoArete, esposa deAlcínoo,chamaUlisseselherecomendaquepresteatençãonamaneiradefecharobaúemqueelaacabaradedepositarosricospresentesquelhetinhamsidoreservados:Notatupróprioofeitiodatampaelhepassaumbomlaço,deformatalqueninguémnocaminhotelese,aindamesmoquedurmassonoagradável,denovo,noescuronavio.

    [Odisseia,VIII,443-5]É incompreensível. Ulisses ia ser reconduzido a Ítaca pelos

    marinheiros de Arete. No entanto, é ela mesma que admite apossibilidade de poder ser o seu hóspede roubado durante a viagem.Seriaabsurdoemqualquercircunstância,mormenteemsetratandodosfeáciosdescendentesdosdeuses.Masaobservaçãodeixarádeseroqueparece,umaadvertência inepta, seaceitarmosadiferençade itinerário:Arete sabe que Ulisses não vai diretamente para Ítaca; ele mesmoindicaraopontoemquedesejavaficar,digamos,aTesprótia,deondeosfeáciosretornariam,umavezterminadaahonrosaegratamissão.Dessemodotransforma-seemcertezaaafirmaçãotímidanocomeço

    daOdisseiade“O”,aprimeirarelaçãomaisampladasaventurasdoherói,o itineráriodiferiadoquenos foi transmitidona redação final.Nãosófaltava nesse poema o episódio de Calipso, por ser lançado Ulissesdiretamente da Trinácria para a terra dos feácios, como não era eleconduzido a Ítacapelosmarinheiros lendários, tendopreferido alongarum pouco as suas peregrinações para maior segurança do retorno.PertenceaomesmoautoracenadoreconhecimentonacortedeAlcínoo,quenos é relatadanapassagemdooitavoparaonono cantodanossaOdisseia, cena admiravelmente traçada, em que a situação parecepericlitar,quandooheróinãopodeconteraslágrimasdiantedanarraçãodeDemódoco,aocantaresteassuasaventuras.Nossaemoçãochegaao

  • clímax quando o herói se dá a reconhecer, namuito citada passagem:“EusouOdisseu,filhodeLaertes,eaminhaglóriaatingiuoaltocéu.”Quer dizer: em um momento ficam invertidas as situações; aqueledesconhecido, náufrago, que ali fora ter quasemorto de cansaço e defome,eraograndeheróiquecombateraemTroiaeporcujaastúciacaíraa fortaleza de Príamo; e muito longe, agora, de ser ele quem pediaalgumacoisa,eraquemdavahonraàcortedeAlcínooeaseupovodemarinheiros.Comovemos,estamosdiantedeumpoetadeverdade,quesabeoquequerequedispõedeumatécnicasegura.Mas,comosedánasgrandesliteraturas,emsuafasedecrescimento,

    esse poema despertou imediatamente a emulação de outros escritores.Lembrarei, de passagem, que depois de publicada a primeira parte doDon Quixote, de Cervantes, apareceu na Espanha uma supostacontinuaçãodas aventurasdo cavaleiromanchego,porum tal bacharelFernandez de Avellaneda — criptônimo, evidentemente. O mesmo sedeu na Grécia: depois de conhecida a Odisseia de “O”, surgiu outropoema em que as aventuras do herói eram tratadas por um prismadiferente.Já demos o nome de “K” a esse poeta, que em pujança de intelecto

    nada ficava a dever a “O”. Se “K”nãopodia expandir-senuma criaçãoespontâneae livre,dispunhadavantagemdanãodespiciênciadosquevêm em segundo lugar, isto é, de poder observar os erros de seuantecessor.Foiassimque“K”sepropôsacorrigiressasirregularidades.Em primeiro lugar, era de necessidade justificar melhor o tempo deausênciadoherói,paraqueseconservasseoprazotradicionaldevinteanos: dez anos de guerra ao redor dos muros de Troia, dez deperegrinações, nãobastando,nesta segundaparte, aumentar onúmerodeaventurasque,porvezes,exigiamapenasalgumashoras.Efoiaíqueopoetacriou,comtodaapujançadeseugênio,oepisódiodeCalipso,emOgígia,ondeoherói teria ficadoretidoduranteseteanos.OnomeCalipso servepara indicar as intençõesdopoeta.Compreendeu, ainda,que tudooquese interpusesseentreaestaçãodos feácioseo retorno

  • para Ítaca atuaria como elemento de retardamento, tendo suprimido odesviopelaregiãodostesprotoseaconsultaaooráculodeDodona,parafazercomqueoheróifossereconduzidodiretamentepelosmarinheirosdeAlcínoo.Eaindanãoétudo,porquenopoemade“K”asaventurasdeOdisseusãoapresentadassobumúnicoprisma,dacóleradePosido,oquenãoacontecianaprimeirarelação,emqueosepisódiossesucediamsemnexointerior.Ao refundir o episódio do ciclope, “K” leva o herói a cometer duas

    imprudências.A primeira foi quandoOdisseu revela o seu nome, semnecessidade alguma, por pura bazófia. Podemos considerar esse atocomoo“pseudopróton”desuavidaaventureira,aodizeraogigantedeúnicoolho:“Polifemo!Sealguémteperguntarquemteprivoudavista,dizequefoiOdisseu, filhodeLaertes!”DepossedonomedeOdisseu,Polifemo se encontrava apto para lançar sua maldição, porque nasculturasmágicaséonomequedeixaalguémentregueaosexorcismosdeseus inimigos. O outro erro que culmina em verdadeira blasfêmia foiOdisseudizerquenemPosido,umdosdeuses,poderiarestituiravistaaPolifemo,oquechamacontrasiacóleradodeusejustificaaimprecaçãoúltimadogigante,quandopedeaPosidoquepriveOdisseudoretornoàpátria.MassefordosFados,dizele—eatéosdeusessesubmetiamàsMoirasindiferentes—,sefordosFadosqueeledevareverÍtaca,queofaça tarde e que até em casa vá encontrar trabalho. De passagemobservareiqueoautordaTelemaquiadesconheciaomotivodacóleradePosido, sem o que não teriaAtena invocado a proteção direta daqueledeusparaosucessodoempreendimentodeseupupilo(III).Comoveem,opoemaganhouextraordinariamenteemcoesão,porque

    atéasúltimasaventuras,istoé,ostrabalhosdoheróicomosmoçosquelhehaviaminvadidoopalácio,jáseencontramjustificadasnoproêmio.Até no tratamento dos episódios clássicos o autor da segundaOdisseiaprocuramantersuaoriginalidade,quandonãoentraemfrancapolêmicacomseuantecessor,doqueéexemploeloquenteodiálogoentreUlisseseoporqueiro,noCantoXIV.Aqui,também,omendigocontamentirase

  • verdades, como fará adiante na conversa com Penélope, com maiseloquência nas primeiras, para ser verídico no fim, ao relatar os fatosmais recentes: Fidão, Dodona e tudo o mais que já é do nossoconhecimento.A incredulidade de Eumeu não se dobra diante da eloquência das

    provas aduzidas pelomendigo; nada o convence de que o patrão estácomvida e quepoderá voltar para restabelecer a ordememcasa e emseusdomínios.Depoisdedarexpansãoaseussentimentoscompassivosem relação à sortedo supostomendigo,manifestao seu ceticismoemrelação às notícias referentes ao próprio Ulisses: “Por que, sendo tudesse modo, mentes sem ser necessário? Melhor do que tu, tenhociênciaquantoaoretornodocarosenhor[...]”(XIV,364-6).Écomoseoautordissesse: correpor aíuma relaçãodas aventurasdeOdisseuquenãovaledois caracóis.Melhordoqueo seuautor, eu sei contar comoessas coisas se passaram. Lembrarei, ainda, e isso para completar oexemplo anterior, que quando Cervantes escreveu a segunda parte doseupoema jácontavacomoDonQuixote apócrifodeAvellanedae jogacomelementos tiradosdele, em francapolêmica como seuautor.Nãoele,Cervantes, emnotas ounoprefácio,maso próprioDomQuixote:“Essesujeitoescreveuqueeuestivenas justasdeSaragoça?Poisbem:não irei a Saragoça, só para demonstrar que ele é um escritormentiroso.”E,assim,emmuitasoutraspassagenscômicasirresistíveis.Masomelhorexemplodepolêmicadentrodaobraliterárianospoderá

    serfornecidopeloteatrogrego,nafaseáureadatragédia.Valeapenaadigressão que, parecendo afastar-nos do nosso estudo, nos levará, defato, até o âmago do problema. Ésquilo, no início das Coéforas, nosmostraElectradiantedotúmulodeAgamémnone,quandopercebeuquealguémrealizaraaliumsacrifício.Surpresa,descobreemcimadalápidedotúmuloumamechadecabelos:compara-oscomosseusecertifica-sedequesãoperfeitamenteiguais;examinaaoredordotúmuloedescobremarcas de pés, em que os seus se adaptam perfeitamente, de onde seconclui que Orestes voltara para vingar a morte do pai, morto por

  • Clitemnestra e Egisto. É ingênua, confessemos, a técnica do poeta, naapresentaçãodotemadoreconhecimento,doanagnorismós,parausarmoso termopreciso.Eurípides retomaomesmomotivo eodesenvolvedaseguintemaneira:deumafeita,opreceptordeElectra—enatragédiagregahásempreumvelho,aquedãoonomedepedagogo—procuraaçodado para dizer que alguém sacrificara sobre o túmulo deAgamémnone.NãoterásidoOrestes,quevoltouàsocultasparavingaroassassíniodopai?Entusiasmadocomaideiaquelheocorrera,aconselhaElectra a ir certificar-se do que ele dissera. Quem sabe, pergunta, seOrestesnãodeixousobrealápideumamechadecabelos?Doconfrontocomosteuspoderástiraralgunselementosparaidentificaçãododono.Ou pela marca dos pés, uma vez que ele deve ter rodeado o túmulo,deixando no solo as impressões dos pés. Até pela própria roupa seriapossível reconhecê-lo, uma vez que fora Electra quem lhe facilitara afuga no dia do sacrifício de Agamémnone. Todas essas indicações sãofeitasnumdiálogoanimado,dequeeuretenhoapenasaessência.Acadasugestão do velho preceptor Electra responde quase com umagargalhada: como será possível identificar dois irmãos pela cor doscabelos? Ou pelo tamanho dos pés? Concebe-se que as jovens e osrapazestenhampésdomesmotamanho?Absurdomanifesto!Earoupa?Seria preciso que Orestes não tivesse trocado de roupa durante vinteanos,equeestativessecrescidocomocorpo...maiorabsurdoainda!Não se fazmister grande sagacidade para compreender que estamos

    diante de um legítimo caso de polêmica literária. O que EurípidesintentacomosseusargumentoscapciososélançarridículonatécnicadeÉsquilo, comoademonstrarqueestenãosabiadesenvolvero temadoreconhecimento, do anagnorismós, de tanta aplicação na epopeia e nodrama,nãopassandooterceiroexemplodeexageroelevadoàcaricatura,pois não ocorrera a Ésquilo dizer que Orestes usara uma só roupadurante vinte anos. Eurípides exorbita na sua função de crítico, sendocertoquenãopassariamdespercebidosaosespectadoressuasintençõesmalévolas.Noentanto,decorridosmilênios,aindanoscomovemoscom

  • asimplicidadeverdadeiramentegenialdeÉsquiloeficamosindiferentescomossofismasdeseutalentosoopositor.Pois bem, o tema do reconhecimento permite-nos penetrar mais a

    fundonosegredodacomposiçãodaOdisseia,pormostrar-nosospoetas“O” e “K” em toda sua originalidade e a natureza do processo decompilação do redator final. No poema de “O”, o reconhecimento deUlisses dava-se antes do morticínio dos pretendentes, tendo seidentificadoomendigopormeiodeumacicatriznojoelho,cujahistóriavemcontadacomparticularidades.Narelaçãode“K”oreconhecimentodá-se depois da vingança de Ulisses, sendo a própria Penélope quemsubmete o mendigo à última prova: revelando-se conhecedor departicularidades sobre a feitura do leito do casal, construído por elemesmo,UlissesconsegueremoverasdúvidasqueimpediamPenélopedereconheceroesposo.Sãoduasilustraçõesdiferentesparadesenvolveromesmo tema, o que condiciona diferença essencial na exposição doassunto,conservandocadaautorsuaoriginalidade.Coubea“B”afusãodasduasvariantes emumasó relação.Na fasededeclíniodaepopeia,cuidavam os compiladores de fazer apenas composições volumosas. AIlíada aí estava com suas dimensões tentadoras. Daí apresentar-nos aOdisseiatradicionalotemadacicatriz,paraabandoná-loemcertaaltura,sem chegar ao reconhecimento do herói; é que era necessário incluir,também, a variante do reconhecimento pelos sinais do leito, que pelogrande efeito emocional não podia ser posta de lado. Vejamos asconsequênciasdessafusãoarbitrária.Se a cicatriz não serviria para o reconhecimento do herói, por que

    razãoelaétrazidaàbaila?Ascoisas,nopoemade“B”,istoé,naOdisseiatradicional, se passam da seguinte maneira: depois de haver Penélopeouvidodomendigoasnotíciasarespeitodavoltadoesposo,mandaqueuma das suas criadas lhe lave os pés, para que ele fosse deitar-se.Odisseu recusa, dizendo que não permitiria que nenhuma moça lhetocasse o corpo; só aceitaria semelhante serviço, continua, de algumavelha, bem velha, caso houvesse no palácio alguma criada nessa

  • condição, que como ele houvesse sofrido muito. Percebe-se que estáconduzindo a ação para que Euricleia venha fazer-lhe esse serviço,precisamenteporquedesejaserreconhecidopelacicatriznojoelho,quea velha ama não poderia deixar de perceber. É conhecido o fato depossuíremasamasmemóriasmuitovivasarespeitodasmarcasnocorpodeseusfilhosdecriação.EssacicatrizlhevieradeumacaçadaaojavalinomonteParnaso,quando foraemvisitaaoavômaterno,Autólico,aocontarosseusdezenoveanos.Noentanto,aojulgarmospelaexposiçãode“B”,Ulissesnãodesejava

    ser reconhecido: Euricleia identifica imediatamente seu amo ao ver acicatriznojoelho.MasUlisses,segurando-apelopescoço,ameaçou-ademorteseviessearevelaraalguémaquelesegredo,queforadescobertoporsuaprópriairreflexão.Poressedescuido,apenas,desmereciaoheróido epíteto tradicional, que nos é familiar desde o primeiro verso daOdisseia: oherói solerte, astucioso, fecundo emardis, revelara-se agorade uma inépciamonumental. Outra prova da incapacidade de “B” é omodoporquejustificaofatodenãoterPenélopenotadonadadoquesepassava a dois passos de distância. Quando Euricleia reconheceu acicatrizficoutãoatarantadaquedeixoucairapernadoherói;estabateunabacia,quesoltouumsomforteelheescapoudasmãos,entornandoaágua.Foiumrebuliço.Noentanto,Penélopenãopercebeucoisaalguma,porqueAtenalhedesviouaatenção.Comoveem,éumrecursoinferior:opoeta,nãosabendocomosairdasituaçãoprovocadaporsuaimperícia,chamaemsocorroadeusa,comohádefazermuitasvezesnodesenrolardahistória.Com a fusão das duas variantes ficam modificados os próprios

    fundamentospsicológicosdacenadoreconhecimento.Narelaçãode“O”dava-se o reconhecimento antes da chacina dos pretendentes. Apóscombinação prévia com Ulisses é que Penélope propõe aos moços aprovadoarco,declarandoque se casaria comquempudesse realizá-la.NaOdisseia de “K” o reconhecimento era feito pormeio dos sinais doleito, depois da mnesterofonia, a morte dos pretendentes, na cena

  • comovedoraquenosfoiconservadanoCantoXXII.Osfundamentosdeambasascenassãoperfeitamentejustificados:afalsidadedasituaçãosósepatenteiadepoisdafusãodasduasvariantes.Émuito fácil provarquena redaçãoprimitivao reconhecimentodos

    esposos se deu antes do morticínio. No Canto XXIV, na denominadasegundaNekyia, ao baixarempara oHades, as almas dos pretendentesencontramemdiálogoanimadoassombrasdosheróisdaguerratroiana,Aquiles, Agamémnone, o grande Ajaz, que recordavam os feitosrealizadosemvida.Admiradocomacomposiçãodocortejo,perguntavaAgamémnone a uma das sombras, de Anfimedonte, de quem já forahóspedeemÍtaca,omotivodebaixarem,aumsótempo, tantasalmasdemoços para as regiões tenebrosas. Anfimedonte narra-lhe o que sepassaranopaláciodeOdisseu:comolherequestavamaesposa,instandoparaqueelasedecidissepornovasnúpcias,ecomoPenélopeprocurarailudi-loscomoartifíciodatelaqueelateciaduranteodiaedesfaziadenoite.Depois contaque algumdemônio funesto trouxerade algures oherói,quecombinoucomo filhoamortedetodoselese foi levadoaopaláciodisfarçadodemendigo, semqueninguémpudessesuspeitardasua identidade. Nem mesmo os velhos da ilha o reconheceram. Poralgum tempo Odisseu aguentou no seu próprio palácio insultos epancadas;mas,nomomentopreciso,fezretirarporTelêmacodasaladebanquetesasarmase combinoucomamulheraprovadoarco,pondoem prática, assim, seu plano diabólico. São palavras textuais daexposiçãodeAnfimedonte:Comrefalsadamalíciaàconsorte,depois,eleordenaqueaprovadoarcoedosferrosaosmoços,então,propusesse,oqueanóstodosseriaocomeçodofimditoso.

    [Odisseia,XXIV,167-9]Nesta altura da minha exposição, peço permissão para abrir um

  • parêntese,afimdeobservarquenotextodasduasediçõesanterioresdeminhatraduçãodaOdisseia,emvezde“ordena”encontra-se“sugere”,oquefazparecerqueoreconhecimentoaindanãosedera.Segundoessainteligência,omendigo,naqualidadedeforasteiro, teriaaconselhadoaPenélope a prova do arco, sem deixar entrever todo o partido quepretendiatirardasituação.Nãoéisso.Nooriginalgregolemosánogen,que foivertidopelotradutor latinocomo jussit,“ordena”.Emalemãoébefehlen. Não remanesce a menor dúvida; houve descuido nessapassagem.Oreconhecimentojásedera;aoapresentaraospretendentesa prova do arco, Penélope dava cumprimento às determinações domarido,quealiestavaparaampará-laaqualquerperigo;eéconfiantenoseu amparo que ela se declara disposta a desposar o que se saíssegalhardodadifícilprova.NaOdisseiade“K”osfundamentospsicológicossãodiferentes.Épor

    estar desesperada e desesperançada que Penélope se decidiu àquelaprova,comooúnicomeiodepôrumtermoàsuasituaçãoangustiante.Penélopenão acreditaqueomaridopossa voltar algumdia.Emváriaspassagens podemos surpreender seu estado de espírito, em que seretrata o desesperoque lhe vai na alma.Quando se refere aTroia, dizsempre:“[...]foiparaaTroiainfeliz,cujonomedizernãoconsigo”(XIX,597;XXIII,19).Quandofalaemdeixaropalácio,dizqueatéemsonhosháderevê-locomsaudades(XIX).Énesseestadodealmaquecomunicaaos moços a sua intenção de cumprir as disposições do marido,entregando o palácio ao filho, que já atingira a idade de dirigir ospróprioshaveres.Paraela,portanto,foisurpresaverificarqueomaridojáseencontravaemÍtacaequeeraomendigoqueexpurgaraopaláciodosmoçosturbulentos.NaOdisseia de “B” essas premissas se destroem. Penélope não tem

    justificativa para proceder como faz. Nunca estivera tão esperançosa,comodepoisdaconversacomofalsomendigo,quelhetrouxeraprovaseloquentesdequeomaridonão tardariaavoltar: “[...] aindanocursodesteanohádevirOdisseuderetorno;antesdealuaapagar-seeficar

  • novamente redonda” (XIV, 306-7), a ponto de Penélope dizer que omendigo,daípordiante,nãoseriaconsideradopessoaestranhaemseupalácio,masmembrodafamília(XIX,253-4).Eéassimesperançosa,éassimalegre,quevaiproporaosmoçosumaprovaarriscada,declarandoquesecasariacomoquesaíssevencedordacompita.Eseumdelesserevelasse à altura da difícil prova, não ficaria estragada a brincadeira?Penélopedeveriacontarcomessapossibilidade.Comoveemosleitores,osabsurdosseacumulamsobreabsurdos,as

    incongruênciassobreincongruências.Etudoissoporumacausaúnica:équeaOdisseiatradicionalnãoéumprodutoespontâneodeumpoetadegênio,masumarranjodepoemasdiferentes,umacompilação,emsuma.Seria muito fácil para mim aduzir outros exemplos de repetições detemas.Masnãohaveránecessidadedenosalongarmos.Direiapenasquea análise da Odisseia revela dupla redação em todos os episódiosfundamentais.O disfarce deOdisseu, por exemplo, é apresentado sobduploaspecto:oraseprocessaverdadeiratransformaçãofísica,aotoqueda varinha de Atena: enrugada a pele macia, amortecidos os olhos,ausente a cabeleira loura... ora se apresenta o herói apenas com amodificação causada pelo tempo e pelo trabalho. A luta com ospretendentes é também narrada em duas fases distintas: com arco eflechaeemcombatedeperto,comescudo,espadae lança.Atémesmono episódio de Nausícaa, tão espontâneo e natural, é possíveldescobrirmosindíciosderemodelação:oheróibanha-seealmoçaàbeiradeum rio, depoisda acolhidadaprincesa, para,momentosdepois, nopaláciodeAlcínoo,reclamarporcomida,queoventrecínicoemolestoaisso o impelia (VII, 216), e deleitar-se com outro banho, declarando,textualmente, o poeta, que o herói não havia provado a delícia de talconforto desde que deixara a ninfa de belos cabelos (VIII, 452).Observemos, contudo, que dessa vez se tratava de um banho morno;talvezseencontrenissoajustificativadocompilador.Emlinhasgerais,ameuver,éessaasoluçãodoproblemadaOdisseia.

    Seria a ocasião de declarar-me unitário, também com referência à

  • composição desse poema, cuja análise nos revela os elementos quecontribuíram para a sua unidade. Mas os unitários intransigentes nãoadmitemquetoquemosnoedifíciomajestoso,cujomaterialdeveriatersido lavrado in loco até nas últimas minúcias, tendo emmira o planopreestabelecidoporumúnicoarquiteto.QuerissodizerqueoproblemadaOdisseia,comotambémoda Ilíada,oumelhor,aQuestãoHomérica,começaondeosunitáriosterminam;porquenãobastadizerqueaIlíadaeaOdisseia são criaçõespoéticasqueobedecemauma ideiadiretriz; épreciso que as estudemos em seus elementos componentes e lhestracemosascaracterísticas.Nestaexposiçãoative-me,emlinhasgerais,às conclusões da denominada Escola Analítica, cujos representantesdiferem apenas emparticularidades, não emprincípios. É a orientaçãoquevemdeKirchhof,emmeadosdoséculoXIX,echegaatéosnossosdiascomVonderMühlleFock,comvisíveltendênciaparasimplificaçãodoproblema.ParaFriedrichFock,aanálisedaOdisseiarevelaelementosisoladosnos “CantosdoApólogo”,umaOdisseia primitiva,de “O”, e aTelemaquiade“T”.Fockrejeita,decidido,a“hipótesedoredator”,paraatribuir a “T” a compilação final. Em tese, é a solução proposta porFinsler, cuja obra é ainda hoje indispensável para quantos se ocupamcomapoesiadeHomero.OtrabalhodeVonderMühlléanterioraodeFock,mas sóme chegou àsmãos algum tempo depois (Peter von derMühll:Der Dichter der Odyssee, Aarau, 1940). Para Von der Mühll, naOdisseia tradicionalpodemosdistinguirumpoemaprimitivo,deorigemjônica, que ele designa pela letra “A”, e a Odisseia ática, de “B”. Aoriginalidade de Von der Mühll consiste em atribuir a “B” maiorcapacidade artística e, por assim dizer, plástica, do que o fizeram osanalistas anteriores, com Kirchhof à testa. “Como no caso do Hino aApoloedoEscudodeHesíodo,trata-sedeumaestruturaçãoampla,emque o material antigo — como na porção central da Basílica de SãoPedro, concluída por Miguel Ângelo — é incluído organicamente aoconjunto, sem que possamos falar em uma simples justaposição departes.” Contudo, esse processo de assimilação sofre uma exceção de

  • vulto:nainclusãodaTelemaquia(“T”),que,comooreconheceoautor,constituía um poema independente, conforme desde 1830 já odemonstraraG.Hermann,equeoredatorfinalnãosoubeincorporaremseupoemacomamesmahabilidadecomqueprocederacomaOdisseiaprimitiva. Apesar de suas dimensões modestas — uma simplesconferência realizada em Baden —, o trabalho de Von der Mühll éconsideradoporMerkelbachumpassodecisivonessesestudos.Com o livro de Reinhold Merkelbach (Untersuchungen zur Odyssee,

    Munique, 1951) voltamos com melhor argumentação à concepçãomestra de Schwartz, sendo de lastimar, apenas, pela confusão daíresultante,queoautorhouvesseadotadonovas letrasparadesignarosautores dos diferentes poemas que podem ser isolados no corpotradicional daOdisseia. Mas o poema de “A” (que já vem de Von derMühll) e o de “R”, deMerkelbach, se identificam comos poemas quedesignamosacimapelasletras“K”e“O”,respectivamente,eque,comaTelemaquiade“T”,contribuíramparaacompilaçãovolumosade“B”,aOdisseiatradicional.Pelomenosaidentidadede“A”comopoeta“K”daanálisedeSchwartzéreconhecidaemextensanotaapologética,emqueMerkelbachrebatealgunsexagerosdacríticainjustadeFockemrelaçãoaosresultadosdaanálisedeSchwartz.ParaoproblemadaformaçãodaOdisseia, devem ser consideradas definitivas muitas das conclusões deMerkelbach, que só poderão ser rejeitadas por quem não se der aotrabalho de estudá-las. Essa atitude, aliás, de desconhecimento dosproblemas fundamentais da Questão Homérica, é encontrada entre osdefensores da unidade dos poemas, o que não raramente se revela namaneiraporquesãoapresentadososassuntos,emquesãodefendidos,cominsistência,pontosque jáseencontramdefinitivamenterefutados.Como observa, com acerto,Merkelbach, a violência das expressões deWilamowitz,emreferênciaaseusopositores,nãoseexplicaporsimplesagastamento de quem vê rejeitadas suas ideias,mas pelo enfado, direimelhor, pelo desânimo, que se apodera do autor, que verifica ter sidobaldadooesforçoparafazer-secompreender.

  • II

    MasétempodepassarmosaoestudodaIlíada,campodeacaloradaeincessantepolêmicadesdeotrabalhoinicialdeWolff.AanálisedaIlíadatem sido mais fecunda em hipóteses, todas elas de duração efêmera,alicerçando-se cada vezmais a convicção da unidade da concepção dopoema.ALiedertheorie,ahipóteseda“Ilíadaprimitiva”(Urilias),daqualteriasurgidoaIlíadaporsimplesjustaposiçãodeelementosestranhos,ateoriadaspoesiasinsuladas(Einzegedichte)têmcedidocampoàconcepçãodecomplexoscadavezmaiores,até firmar-sea tesedosunitários,masagora sob melhor base e mais firme argumentação, de um poemauniforme, firmado em copioso material preexistente, de que dispôssoberanamenteumpoetadegênio.SeráoHomerodatradiçãogrega.Seaceitarmosaconcepçãodosseparatistas,maisdoqueumpoetadegênio,teria sido Homero um poeta de sorte, um eleito da Fortuna, para terencontrado, prontas para a sua compilação, tão grande número depoesias que se completavam com tamanha docilidade, o que não seriamenormilagredoqueodacomposiçãodoconjunto.O mais interessante no estudo da composição da Ilíada é ver que

    voltamos ao ponto de partida, isto é, que após um século e meio dedebates, viemos a dar na concepção de Christian Gottlob Heyne,apresentadaem1802,quandodapublicaçãodesuaediçãomonumentaldo poema. Pela primeira vez era feita uma análise do poema; para oprofessor daUniversidade de Göttingen, todo o complexomaterial dequesecompõeaIlíadaadquireunidadeporsertratadosoboprismadotemadacóleradeAquiles,aMenisdoverso inicial,queopoeta jamaisperde de vista. A interferência dos deuses serve para aproximar esseselementos,aquetambémunificacertaigualdadedesentimento.Heyneafasta a hipótese da “Ilíada primitiva”, para ver na feitura do poema oesforço de um único poeta. Essa concepção poderia ter sido deorientação fecunda, mas presentemente só tem valor histórico por terpassadodespercebidaquandodesuapublicação.ÉqueWolff,seteanos

  • antes,haviadesencadeadoatempestadeparaoutrolado.Alémdomais,Heynenãoquisabrirlutacomseudiscípuloingratoeinimigofigadal:detemperamentotímido,cometeu,ainda,afraquezadeaceitaremparteasconclusões deWolff, no que respeita ao suposto desconhecimento daescrita antes do século VI a.C. e à redação dos poemas no tempo dePisístrato,oqueenfraqueciasuasprópriasconclusões.De fato, ainda que o título do poema inculque um assunto mais

    amplo, declara o poeta que no proêmio iria tratar das consequênciasfunestas da discórdia surgida entre Agamémnone e Aquiles.Mas comumtematãoingrato,epordemaisrestrito,soube,naverdade,tratardetoda a Guerra de Troia, já pelo que nos relata dos acontecimentosanterioresàdiscórdia, jápeloquedeixaentreverquantoaodestinodofamosoburgoedeseusdefensores.OafastamentodeAquilesdocampoda luta permite o aparecimento, em primeiro plano, de outros chefesaquivos,oportunidadefelicíssimaparaincluirnaefabulaçãodopoemaaaristia de guerreiros de várias procedências e até mesmo estranhos,primitivamente,aosacontecimentosdeTroia.Agastado com Agamémnone, por lhe ter este tomado a escrava, a

    elegantíssimaBriseide,retira-seAquilesdoscombates,ameaçando,até,deretornarparaFtia,seutorrãonatal.Porsua instância,sobeTétisaoOlimpo,parapediraZeusquedaíemdianteconcedesseaostroianosavitória, para que os acaios viessem sentir a falta de Aquiles. Com aprimeiraderrotaséria (“Cumpriu-sedeZeusodesígnio[...]”, I,5),nabatalhadoCantoVIII,queculminaemviremostroianosacamparforados muros da cidade, o que em nove anos de cerco jamais haviaacontecido, reconhece Agamémnone o seu erro e resolve enviar umacomitivaaAquiles,compostadosseusamigosmaischegados,paraverseodemoviamdopropósito.Aquiles fica surdo aospedidos, só tendocedido,maistarde,àssúplicasdePátroclo,aquememprestaasprópriasarmas,deixandoqueleveseushomens,paraafastardasnausoincêndioe desafogar os aquivos da pressão do inimigo.Mas Pátroclo é vencidoporHeitor,queseapoderadasarmasdeAquiles,razãodepedirTétisa

  • Hefestoquefabriquenovasarmasparaofilho.Comaperdadoamigo,Aquiles se esquece de tudo, só tendo em mira matar o assassino dePátroclo, apesar da advertência de Tétis, de que logo após amorte deHeitorerafatalqueeletambémviesseaperderavida.Oúltimocantoédedicadoaoresgate,porPríamo,docadáverdeHeitor.AIlíada terminacomacordesbrandos,apósareconciliaçãodosdoisinimigosfigadais.OsúltimosversossãodedicadosaosfuneraisdeHeitor.É esse o assunto da Ilíada, numa súmula brevíssima,mas suficiente

    paranos fornecer os principais pontosde referência.Antes, porém,detentarmos uma explicação da formação da Ilíada, será necessárioampliarmos os horizontes e coligirmos material para melhorfundamentar nossas conclusões. Para tanto, teremos de fazer umapequenadigressãobibliográfica.NaimensabibliografiasobreaQuestãoHomérica,serájustoressaltar

    a obra de Wilamowitz (Die Ilias und Homer, 1916), considerada porEduard Tièche como marco divisório na história desses estudos, porhaver imprimido nova orientação às pesquisas nesse setor. (Numcapítulo complementar da obra de Finsler:Homer, 1924, três volumes,Teubner, Leipzig.) Mais recentemente, Schadewaldt não se cansa deenaltecer-lhe os méritos. Vale a pena, pois, demorarmo-nos naapreciaçãodesuateoria.Wilamowitz distingue na Ilíada tradicional várias camadas e procede

    comoverdadeiroarqueólogo,decimaparabaixo, istoé,discriminandoos acréscimosmais recentes, até identificar a Ilíada deHomero com aquinta faixa subposta, que, por sua vez, revela formação heterogênea.NãoprocedeudeoutromodoSchliemannemsuasescavaçõesnaTróada,atédistinguirosalicercesdeoitocidadessuperpostaseidentificarTroiaVIcomoburgohistóricodestruídopelacoligaçãoaquiva.Homeroviveuna Jônia, na segundametade do século VIII a.C., época do apogeu domovimento épico. A fase eólica da epopeia era então simplesreminiscência histórica, carecendo de importância, paraWilamowitz, oHomeroático,dahegemoniadeAtenas.Valendo-sedematerialcopioso

  • e de grande antiguidade, como revela a feitura do hexâmetro, coube aHomero a primeira síntese grandiosa, em que emprestava feiçãomonumental a epopeias menores, imprimindo-lhes cunho pessoal.Competeaosinvestigadoresdeagoranãosomentedistinguirospoemasque contribuírampara a formaçãoda epopeia, como isolar as camadasquevieramsobrepor-seàverdadeiraIlíada,cujodesfechoficouperdido,para dar lugar à conclusãopacífica que lemosnoCantoXXIV.Porque,para Wilamowitz, a Ilíada termina com a morte de Aquiles, desfechonaturalaqueopoetaaludecomtantainsistênciaemtodoodecursodopoema.Dentrodepouco tempoveremosoquehádeverdadeironessaconclusão.Deixando de lado o estudo dos elementos que contribuíram para a

    formaçãoda Ilíada deWilamowitz, vejamos apenas, emesforço rápido,quaisforamascamadasquevieramsobrepor-seaopoema,modificando-lhe, essencialmente, a fisionomia. Isso nos dará ideia suficiente dométododoautor.ParaWilamowitz,aIlíadadeHomerosecompunhadosseteprimeiroscantosdaIlíadatradicional(CantoVII)edoscantosXIaXXIII(desteúltimo),comexclusãodosepisódiosdatrocadasarmas,dadescriçãodoescudoedabatalhadosdeuses.Acenadareconciliaçãofoimodificada,nãosendosuaprimitivafeituraaquelemosnoCantoXIX.Essaprimeiraampliaçãoédevidaaocompiladorqueincluiunotraçadoadescriçãodoescudo(CantoXVIII),trabalhoindependenteequenãoserelacionavacomAquiles.Asegundacamadacompreendeabatalhadosdeuses, que se distingue pelo estilo empolado, de todo aberrante dasdemais partes do poema. Mas interessante particularidade: seu autorrevelaoconhecimentolocaldaTróada!“Ele,esomenteele,visitouovaledoEscamandro.”AterceirarecompilaçãocompreendeoresgatedocorpodeHeitor(CantoXXIV),comseufinalsereno,cabendoaomesmopoetaainclusãodosjogosdofuneraldePátroclo(CantoXXIII).Aúltima,porfim, e mais recente, consiste no trabalho do poeta que compôs adenominada Segunda Batalha (Canto VIII), com o fim precípuo deincluir no poema o Canto da Embaixada (Canto IX) e a Doloneida

  • (CantoX),episódiosprimitivamenteindependentes.Nãoousodizerqueoqueaíficasejaumresumodafamosateoria,que

    vem exposta num livro de quinhentas páginas de leitura difícil. Masparece-me suficiente para nossa finalidade. O grande merecimento deWilamowitz consiste em nos ter restituído um Homero vivo, que seintegranummovimentoépicodegrandesproporções,comoapogeunaJônia do século VIII, movimento que não se circunscreve apenas àatividadedeHomero.Antesedepoisdele,muitospoetas integravamomovimento épico da Grécia. Natural de Esmirna, viveu e fez poesiasparticularmenteemQuio, tendocausado tãoprofunda impressãoentreos seus contemporâneos, que os pósteros lhe atribuíram a autoria daTebaida e de outras epopeias. “É necessário”, conclui Wilamowitz,“identificaroHomerodatradiçãocomopoetadaIlíada”.Éaconclusãoque se me afigura vitoriosa e a que venho tendendo desde o começodeste estudo,muito embora não aceite todos os resultados da análiseacimaapresentada.Uma das mais interessantes fontes da Ilíada foi recentemente

    identificada por Heinrich Pestalozzi, num trabalho a que me permitotransferir o elogio de Finsler-Tièche, por constituir, de fato, marcodivisório na história da Questão Homérica (Heinrich Pestalozzi: DieAchileisalsQuellederIlias,Zurique,1945).Trata-sedeumsimplesfolhetode 52 páginas, mas páginas preciosas, que nos trazem a prova daexistênciadeumpoemasobreamortedeAquiles,dequeatradiçãonosconservara apenas o nome, a Etiópida, fonte literária da Ilíada, se nãoquantoàefabulaçãodopoema,porlheterfornecidotemasesugestões.Eraconhecidaaexistênciadospoemas“cíclicos”,assimdenominados

    por completarem o assunto da lenda de Troia, quer quanto aosantecedentes do grande pleito, quer quanto aos acontecimentosposteriores à queda da cidade. O poema Ta Kypria relatava osacontecimentosdesdeoovodeLedaatéodesembarquedosgregosnaplanície de Troia. Desse poema só nos restam fragmentos e notíciasdesencontradas sobre o seu autor. Nessa altura será conveniente

  • observar que o poema do mesmo nome, recentemente publicado naAlemanha, Die Kyprien, do helenista Thassilo von Scheffer, não étradução, mas criação livre de um apaixonado pela poesia grega. Apequena Ilíada, A tomada de Ílio, A Amazônia e outros completavam anarrativa dos feitos dos heróis gregos ao redor dos muros de Troia,sendocontadooretornoaosrespectivoslaresnumasériede“Nostoi”,daqualaOdisseiafoiavariantemaisfeliz.OpoemaAAmazôniatraíaoseupropósito de apresentar-se como continuação da Ilíada, por iniciar-sepeloúltimoversodesta:OsfuneraisestesforamdeHeitor,domadordecavalos.

    [Ilíada,XXIV,803]Cantava a vinda de Pentesileia, depois da morte de Heitor, para

    auxiliarPríamo.Assim,tiradaaúltimapartedoverso,erafeitaaligaçãoimediatacomonovotema:OsfuneraisestesforamdeHeitor.AAmazonafamosa,Pentesileia,chegou,filhadeAres,flagelodoshomens.Duasconclusõespareciamdefinitivamenteassentadasemrelaçãoaos

    poemascíclicos:aprioridadedospoemasdeHomeroeainferioridadedetodoselesemconfrontocomaIlíadaeaOdisseia.OgrandemerecimentodePestalozziconsisteemterprovadoaprioridadedaAquileida,ouqueoutronomeselhedê:Etiópida,etambémMemnônia,doheróiprincipal.Memnão, filhodaAurora edeTítono, que veio em socorrodePríamoconduzindo seus guerreiros etíopes. Justificava-se o auxílio peloparentesco dos avós. Logo de início,Memnãomata Antíloco, filho deNestor, escudeiro e amigodiletodeAquiles.Aquiles vinga amortedoamigo,apesardaadvertênciadeTétis,dequeelemorreria logoapósamortedeMemnão,como,defato,morre,pelasetadePáris.Darelação

  • dePróclo,autordeumacrestomatiaemquenosfoiconservadaasúmuladetodosospoemascíclicos,peloreflexoemPíndaroe,sobretudo,pelainterpretaçãodapinturadevasos,restabelecePestalozziemlinhasgeraisatramadopoema.TétiseaAurorasobemaoOlimpoparapediraZeusavitóriadosrespectivosfilhos;Zeusconsultaabalançadofado;sobeopratocomodestinodeAquiles,baixandoparaaterraopratodasortedeMemnão. Desesperada, a Aurora vai procurar o Sono e a Morte, paraentregar-lhes o corpo de Memnão e assegurar-lhe a imortalidade dafama. Outro quadro decisivo nos mostra o combate sobre o corpo deAquiles: o grande Ajaz sustenta sobre os ombros o corpo, enquantoOdisseuaparao embatedequatro troianos,queprocuramapoderar-sedele,paradespojá-lodasarmas:Eneias,Páris,GlaucoeLaódoco.É interessante observar como Homero procede com esses quatro

    guerreiros:deLaódocosómencionaonomeporhaverAtenatomadosuaformaquandobaixoudoOlimpocomaintençãodeacharPândaro,paraincitá-loaquebrarastréguasjuradaseferirtraiçoeiramenteMenelau:PalasAtena,entretanto,nasfilasdosTeucrospenetra,sobafiguradofortelanceiroAntenórida,Laódoco.

    [Ilíada,IV,86-7]Mas desse “forte lanceiro” a Ilíada nada nos diz que justifique o

    epíteto:équeseusfeitoseramcantadosemoutraparte.Osoutrostrêsaparecememcena,na Ilíada,masopoeta temocuidadodenãodeixarquesucumbam;earazãoémuitosimples:équetodosjáfiguravamemum poema que relatava acontecimentos posteriores aos relatados naIlíada.OcasodeEneias,então,é,sobesseaspecto,escandaloso:havendoesse guerreiro ousado defrontar-se com Aquiles, o próprio Posido,protetordeclaradodos gregos, sugere aApoloqueo tiredo campodebatalha,“porserdo fadoqueelesobrevivaaodestinodeTroia”.Vê-seque o poeta está atado pela concorrência de outros poemas e que não

  • podedispordoassuntocomobementender.Nesse resumo o conhecedor da Ilíada irá encontrar muitos temas

    familiares: o pedido de Tétis a Zeus, a pesagem do destino (adenominadaquerostasia),oSonoeaMorteirmãos,quenaIlíadacuidamdocorpodeSarpédone,alutaaoredordocorpodePátroclo,masdessavez comosdefensoresemnúmeroduplicado:doisgregos sustentamocorpo,MenelaueMeríones,enquantoosdoisAjazesaparamoembatedos troianos. Homero amplia o modelo, sem que possa remanescerdúvidasobrequalsejaooriginal.AissoacrescentaremosqueMemnão,como Aquiles, era filho de uma deusa e de um mortal, e que, comoaquele,possuíaarmasfabricadasporHefesto,Hephaistóteuktonpanoplian,naexpressãodePróclos.NãoadmiraquedopróprioMemnãoa Ilíadanadanosconte,porser

    datécnicahoméricanãoanteciparosfatos.MasoversoinicialdoCantoXI,quetambémocorrenocomeçodoCantoVdaOdisseia:Alça-seaAuroradoleitoondedormeopreclaroTítono[...]

    [Ilíada,XI,1;Odisseia,V,1]

    éindícioeloquentedequeestafeiçãodomitonãoeradesconhecidadopoeta.AOdisseia,também,nosfaladamortedeAntíloco,[...]aquemofilhoadmiráveldaAurorabrilhantematara.

    [Odisseia,IV,188]

    e do combate ao redor do corpo de Aquiles, recordado por Ulisses,quando a ponto de perecer no naufrágio suscitado por Posido. Osfunerais deAquiles, os jogos fúnebres, a chegada de Tétis, o coro dasMusassãorelatadosnoCantoXXIV,nasegundaNekyia.Resumindo,direiqueograndemerecimentodePestalozziconsisteem

    elehaver firmado, pela primeira veznahistória daQuestãoHomérica,

  • umpontodereferênciaparaoestudodaIlíadaedaOdisseiaforadessespróprios poemas que até então passavam como sendo osmais antigosmonumentos da literatura grega, transmitidos durante séculos portradição oral.No entanto, aí temos umpoema perfeitamente definido,queterminacomamortedeAquiles,comooqueriaWilamowitzparaaIlíadadesuareconstrução.NessepoemanãoseinspirouHomeroparaoassunto propriamente dito de sua epopeia — que os acontecimentoseramposterioresaosdaIlíada—,masfezmais:foibuscarneletemasesugestões. Essa conclusão poderá ser de consequências imprevisíveisparaafixaçãodadataqueHomeroteriavivido,istoé,oautordasíntesemajestosa, a última redação da Ilíada. Apesar de muito recente, otrabalho de Pestalozzi já encontrou consagração: em estudo de dataposterior, o humanista Ernst Howald de tal modo se imbuiu dosensinamentosalicontidos,quesedeclaradispensadodecitaraobradePestalozzi no decorrer de sua exposição: esses ensinamentos lhepermitiram nova perspectiva para a interpretação da Ilíada (ErnstHowald:DerDichterderIlias,Zurique,1946).Hámais:nasegundaediçãode seu livro,VonHomersWelt undWerk (Stuttgart, 1951), Schadewaldtdedicaumcapítuloespecialà“Memnônia”identificadaporPestalozzi,ereforça a tese do autor, desenvolvendo-lhe os argumentos eaprofundando-lheasconclusões.Somenteagora,depoisdessaexcursãobibliográfica,nosencontramos

    aptosparaestudaraorigemdotemainicial,acóleradeAquiles,quenoséindicadanainvocaçãodopoema,oquenospermitirápenetrarafundona oficina do poeta, para desvendar-lhe os métodos de composição.GrandeéadívidadeHomeroemrelaçãoa seuspredecessores,dequeelemesmonãofaziamistério,porserestranhoaomovimentoépicodaGréciaoconceitomodernodaoriginalidadeatodocusto;aoriginalidade,então,consistiananovaapresentaçãodeumassuntoconhecido,emqueocorriam transcrições longas de episódios e cenas, dispostos sob novaperspectiva. É o que se dá com o poema da cólera de Meléagro, quesugeriuaopoetaumtemaparasuacomposiçãomaisvasta,eéoquese

  • dá, também, com a descrição do escudo de Aquiles, composiçãoprimitivamente independente do assunto da Ilíada, com a batalha dosdeuses, a descrição dos funerais — ampliada, para maior glória dePátroclo—, e até mesmo com episódios que, parecendo intimamenteligados à concepção do poema, revelam, por sua colocação no traçadogeral, origem duvidosa. É assim que Jachmann, fazendo reviver comnova argumentação a Teoria das Canções Isoladas (Einzellieder),demonstrouaautonomiaprimitivadoepisódiodadespedidadeHeitoreAndrômaca,quedeviaantecederdepoucoàmortedoheróieque,emfalta de lugar mais apropriado, foi inserida pelo poeta no Canto VI(Günther Jachmann:HomerischeEinzellieder.SimbolaColoniensia; Colônia,1949).Mas omelhor exemplo do vasto trabalho de compilação deHomero

    nos será dado pelo poema à cólera deMeléagro, que vem indicado noCantoIX,ofamosoCantodaEmbaixada,nafaladeFenice,ovelhoamodeAquiles,decarátervisivelmenteparenético.FenicecontaahistóriadeMeléagro,paraexemplodecomooseupupilonãodeveriaprocedernasua teimosia de abster-se dos combates.Commuita felicidade, FinslerobservouqueHomerocitanessaalturaopoemaàcóleradeMeléagro,comoofazumautormoderno,queindicanorodapédapáginaasfontesemquefoiabeberar-se.OestudodoCanto IXvainosmostrarqueoepisódiodaembaixada

    sofreu modificações em sua redação final. Primitivamente, osembaixadoreseramapenasdois:OdisseueAjaz,sendomuitoprovável,ainda, que a embaixada se realizasse durante o dia, e não de noite,conforme se passa na redação tradicional. Fenice foi incluído porHomero,estareiquasedizendoinventadoporHomero,pelanecessidadede pôr esse discurso na boca de alguém demaior autoridade, peranteAquiles, do que os seus próprios comilitões. Peleu encontrava-sedistante; Tétis estava impossibilitada de incumbir-se de semelhantemissãopela suaprópria condiçãodivina. Fazia-semister de alguémdeautoridadequasepaterna,quepudesseadmoestarAquilese,porassim

  • dizer,chamá-loàordem,mostrandooabsurdodesuateimosia.DaítersidocriadaafiguradeFenice,quedeveráterseincumbidodaeducaçãodeAquiles,eaquemestedeviaobediênciaerespeito.Inicialmente causa estranheza encontrarmos Fenice na tenda de

    Agamémnone, ao lado dos demais chefes aquivos. Na qualidade decondutordeumadasdivisõesdosmirmídonesàpartidadePátroclocomoshomensdeAquiles,deveriaestarinativocomotodososoutros,queaofensa feitaaochefeatingiaseuscabos.Aexplicaçãodessaanomaliaéencontradanoversoaseguir,porondesevêqueosembaixadoreseramapenas dois. Depois de receberem instruções do velhoNestor sobre amelhor maneira de convencer o divino Pelida, puseram-se a caminho,dizendoexpressamenteopoeta:Ambos,então,pelapraiadomarressoanteseforam.Dezversosadiante,depoisdechegadosàtendadeAquiles,repete-sea

    indicação:Ambos,então,avançaram;serviaOdisseucomoguia.Mas ainda não é tudo, que na saudação deAquiles se nos depara a

    indicaçãoprecisaquantoaonúmerodecomissários:“Salve!Bemgraveé,semdúvida,acausadeaquiterdesvindo.Aindaquemuitoagastado,soisambososqueeumaisdistingo.”

    [Ilíada,IX,182;192;197-8]

    Porfelicidade,dispõealínguaportuguesadesseresquíciododual,quenospermitiu conservarumaparticularidadedo texto grego, verdadeiroflagrantedamodificaçãoporquepassouaredaçãodoepisódio.Depois de apresentar as suas credenciais de velho preceptor, numa

    introduçãoque sedirigemais aosouvintesdoqueaopróprioAquiles,

  • passa Fenice a tratar do exemplo de Meléagro, e o faz como quemrecorreacopiosomateriallendário,numalegítimacitaçãobibliográfica:“Asprópriasgestasdeheróisdasidadescorridasnosdizemque,quando,acaso,ficavampossuídosdecóleragrande,eramsensíveisabrindes,dobrando-seàforçasuasória[...].”E,aopassaracontarocasodeMeléagro,dirige-seaospresentes,num

    gestodeoradorcontumazquesabedominaroauditório:[...]Ora,meuscarosamigos,meocorrecontar-vosumcasonadarecente,bemvelho,talcomosedeu,emverdade.DecertavezosCureteseosfortesEtólios[...]

    [Ilíada,IX,524-6;527-9]

    combatiamaoredordosmurosdeCalidona.Resumindoacitação,direique enquanto Meléagro tomou parte na luta, ao lado dos etólios, odestino foi contrário aos assaltantes; mas quando se absteve doscombates, por causa da maldição materna, os curetes passaram àofensiva, ficando Calidona ameaçada de cair. Meléagro matara o tiomaterno, na disputa suscitada pela posse da pele do famoso javali deCalidona, para cuja caçada se reunira a fidalguia da redondeza. ÉimpressionanteacenadamaldiçãodeAlteia,postadejoelhos,banhandoo rosto de lágrimas quentes, a percutir a terra e a invocar o nome deHadesedePerséfone,paraquefizessemmorrerofilho.MeléagrosabiaqueasEríniasnãodeixariamdedarcumprimentoàmaldiçãodeAlteia;por isso se absteve dos combates, surdo aos pedidos dos amigos, dosvelhos da terra, das irmãs, como também de Eneu, seu pai, e até daprópria Alteia, só tendo cedido às súplicas da esposa, Cleópatra, dosbelosartelhos,queentrelágrimaslheevocouoquadrodosofrimentodetodos e delamesma, se a cidade viesse a cair aos assaltos do inimigo.

  • Meléagrocede,conscientedoseudestino,quenãonosérelatado.Fenicesó objetivavamostrar aAquiles as consequências de sua teimosia, emrelação aos presentes magníficos que lhe eram oferecidos, para queaceitasse os mimos valiosos e retornasse à luta: por isso terminamostrando queMeléagro não recebeu de seus concidadãos as dádivasprometidasno início, porquenãodesistirado seupropósito aopedidodosamigos,masdemotupróprio.Nãoprecisareiinsistirnoparalelodassituações: o temada cólera encontra no poemadeMeléagromagníficailustração.Mas, se bem considerarmos, esse poema não forneceu a Homero

    apenaso tema,senãomaterialabundanteparaaestruturaçãoda Ilíada.Comissoentramosnumassuntodepalpitanteinteresse,quetemdadopábulo para discussões sem fim: o do célebre muro construído pelosacaios, para proteção dos navios, a conselho do velho Nestor de Pilo.IssosedáaofinaldoCantoVIII,demaneiraabrupta,semqueasituaçãojustificasse semelhantemedida. O duelo entre Heitor e Ajax, de puroespíritocavaleiresco,terminaracompequenavantagemparaoúltimo;oânimodosaquivosestavaelevadocomarecentetraiçãodePândaroeoconsequente perjúrio dos troianos, o que lhes selava a destruiçãoinevitável.Logoadianteocorreaembaixadaporpartedostroianos,compropostas de paz, que foi unanimemente rejeitada. É nessas condiçõesqueovelhoNestorpropõepequenatréguaparaaqueimadosmortosepara que se construíssem “depressa”, a partir da pira em que fossemqueimados os cadáveres, torres e muros, com fosso e portassuficientemente amplas para a passagem de carros e cavalos. É umaconstrução gigantesca. Tão grande é essa construção que o próprioPosido semostra enciumado, commedo de que osmortais viessem aesquecer-sedosmurosdeTroiaqueeleajudaraa levantar.Noentanto,de certa altura em diante, essa construção gigantesca desaparece. NoCantoXVI,quandoPátroclosaiemauxíliodosgregos,trava-seabatalhacampal,semnenhumobstáculo,desdeanavecombustadeProtesilauatéosmuros da cidade, não havendo empecilho no caminho para deter a

  • fugadostroianos;noCantoXXIV,quandoPríamovairesgatarocadáverde Heitor, atravessa a extensa planície, passa o vau do Escamandro eatinge a tendadeAquiles; omesmo sejadito em relação ao cantodosfunerais de Pátroclo, em que as competições dos jogos são feitas emcampoaberto.Conquanto haja referências a esse muro em várias passagens, é no

    CantoXIIqueeleadquirecapitalimportância,pelabatalhadecisivaqueselhetravaaoredor.Saltaaosolhosqueanarrativalucroumuitocomesse recurso, que permite variar as descrições dos combates, queadquiremfeiçãonovanocenáriomovimentado:osembatesdeGlaucoede Heitor, o ataque dos lícios, aliados dos troianos, levados pelointemerato Sarpédone, de quem até então nada se sabia, mas que iráocupar lugar preeminente na Patrocleida quando de sua morte peloescudeiro de Aquiles; Sarpédone segura com mão forte o parapeito,deixandoomurodesguarnecidoporcima.MaséHeitorquemconseguearrombarumadasportas,firmadaspordentrocomduasbarrasemcruze com ferrolho, atirando contra ela umagrandepedra, dasmuitas quehavianocampo,pedraquedoishomensdehojedificilmentepoderiammover:rompem-seasbarrascomaforçadogolpeeabrem-seasfolhasdaporta,franqueandoapassagemcobiçada.Nasituaçãoaflitivaemquese achavam, os gregosmandam chamarAjaz, que vem agachado, peloladodedentrodomuro,postar-senopontodemaiorperigo.“[...]emtodaamuralhaobarulhoeraimenso.”(XII,289)Mas a qualquer leitor ocorrerá, imediatamente, que essa descrição

    animadanãodizrespeitoaumabatalhacampal:aspersonagensnossãoconhecidasdasoutrasfasesdocercodemorado,dasbatalhasdosCantosVeVIII,masocenárioédiferente.Équeopoeta fazumempréstimovultoso, copiando commão larga de um poema rico de descrições deassaltos a uma cidade, cujosmoradores se defendiam do alto de suasmuralhas,dastorres,parapeitos,merlões,reforçandoasportas,cavandofossos, levantando toda sorte de obstáculos para impedir que fosseinvadida a cidade, justamente como Fenice nos resume no excerto do

  • poema à cólera de Meléagro e dos combates ao redor dos muros deCalidona. Presentemente não é possível apontar as porções tiradas aopoema anterior, porque Homero não trabalhava com tesoura e cola:aindaquenos indiquehonestamenteas fontesde inspiração, imprimiacunhopróprioaomaterialemprestado.Mas, uma vez conseguida a finalidade estilística, de introduzir

    variedade nas descrições dos combates, desaparece de seu horizontepoético o motivo do muro, voltando a ação a desenrolar-se em plenocampo, como se nada tivesse acontecido. E coisa curiosa! O próprioHomero sabia que esse motivo poético constituía uma violência aotraçadodaepopeia,razãoporqueelemesmoseincumbedejustificaroseu desaparecimento, violando um dos seus mais notáveis ecaracterísticos preceitos de composição, como antecipar os fatos, paracontar-nos o destino ulterior do muro. Os próprios deuses seincumbiramdedestruí-lo,paraquede suapermanêncianão resultassequebradocréditodePosido.Sim,aIlíada jamaisultrapassasuaprópriamoldura,nãopassandodevagas indicaçõesoquesedizsobreaquedaiminente de Troia e o destino dos seus moradores, assuntoparticularizadodospoemascíclicos.Aúnicaexceçãoéesta, emqueseconta como os deuses se incumbiram de fazer desaparecer da face daTerraaconstruçãogigantesca.Apoloreuniuaforçadeoitorios,jogando-os contra amuralha: oReso, oHeptáporo, oRódio estuoso, oCaresotranquilo,odivinoEscamandro,oGrânico,oEseptoeoSimoente,tendofeitoZeuschoverdurantenovedias,enquantoopróprioPosido,[...]tridentenamão,iaàfrenteeosalicercesdetroncosepedras,quetantotrabalhotinhamcustadoaosArgivos,àsondasdomarosjogava,téquedeixoutudoplanonamargemdobeloHelesponto.

    [Ilíada,XII,27-30]

  • “Isto,emfuturo[...]”,adverteopoeta;porqueporenquantoaindaardiaao redordasmuralhasbem-feitasoclamorosocombate, ressoandonastorresastraves.Nãohámaisbeloexemplodopoderdaimaginação:paraintroduzir variedade na ação do poema e incorporar nele opulentomaterialdeempréstimo,levantaopoetaummuroondenãopodeexistirmuro, fazendo-o desaparecer por antecipação, quando já se tornaradesnecessário para a sua finalidade. Desse modo, também, aparavapossíveisobjeçõesdosouvintes.ATróada já estava sendo frequentada,comacolonizaçãohelênica,quetranspuseraapassagemdosestreitosecriara postos avançados no mar Negro. De volta dessas viagens porlongínguas terras os marinheiros de Lesbos e Mitilene que haviamacampadonovaledoEscamandropodiamobjetaraopoeta,nosfestejosanuaisemqueeramrecitadosospoemasdosfeitosdagenteargiva,queainda se viam as ruínas do burgo imponente de Príamo,mas que nãohavia vestígio damuralha gigantesca que os gregos haviam construídoparaamparodasnaves.Violando,portanto,umdosseusmaisnotáveispreceitos estilísticos, com a antecipação dos acontecimentos e fazerdesaparecer o muro, Homero tinha em vista inutilizar essas objeçõesimpertinentes, sendo concebível a existência de uma primitiva redaçãoda Ilíada semosversos iniciaisdoCantoXII,quepodemser afastadossemprejuízodanarração.Já penetramos suficientemente na oficina do poeta, para nos

    abalançarmosaapresentarumasíntese finalda Ilíada sobaperspectivaindicada,dotemadaMenis,acólera.NessaalturaconvémlembrarqueograndeFinsleravançouemqualquerpartedoseutrabalhodequequempartirdaMenisnãopoderáreconstruira Ilíada.Sãooutrasaspremissasdoautornasuainterpretaçãodopoema,nãomesobrando,agora,vagarpara uma excursão ilustrativa. Vejamos se é possível apresentar umaexplicação da Ilíada nessas bases, apesar de tão valiosa opinião emcontrário.FoiErichBethequemchamouaatençãoparaaposição,naarquitetura

    dopoema,dosCantosIXeXIX,respectivamente,oCantodaEmbaixada

  • eodaReconciliação,que,comoduascolunassimetricamentedispostas,dividem a Ilíada em três partes. É evidente o paralelismo estilísticodessescantos,oquenospoderáservirdeexemplodaacribiadopoeta,eque constitui desmentido formal do conceito romântico da epopeiaespontânea,denascimentoanônimo,queseformaporsimesmaecrescecomo as plantas. Uma formação desse gênero é incompatível comtamanhaminúcianaexecuçãodeumplanopreconcebido.ParaotemadacóleranãosefaziaindispensávelareconciliaçãocomAgamémnone:umavezmortoPátroclo,Aquilesvoltariaparaaluta,afimdevingarquantoantesamortedoamigo.MasopoetaqueriapurificarAgamémnonedequalquer senão, apresentando-o como perfeito soberano.Os presentesenumeradosnoCantoIXsãoapresentadosnacenadareconciliação,bemcomo a própria Briseide, causa involuntária da discórdia entre os doischefes,realizando,então,Agamémnoneojuramentoquesedispuseraafazerdoisdiasantes,dequenãohaviatocadonajovem,nemporforçade amores, nempor outra causa qualquer (XIX). Emuma e em outracena aparecemversos repetidos.Emambosos cantos éOdisseuquemadmoestaAgamémnone,quandonasegundaassembleiaforadeesperarsemelhante atitude do velho Nestor de Gerena. Na própria fala deAgamémnone é evidente o paralelismo, ao se lembrar do exemplo deZeus, enganado pela Culpa, quando do nascimento de Héracles,complementonaturaldafaladeFenice,noCantoIX,naenumeraçãodosefeitosdaterríveldeusanoânimodosmortais,edaaçãoreparadoradasSúplicas(ErichBethe:Homer,1ºvol.,p.70,e tambémBowra:TraditionandDesignintheIliad,Oxford,1930).Mas, se considerarmosmaisdepertoessadivisãodopoema, iremos

    descobrirparticularidades interessantes.Équepareceadivisãonaturalpara a recitação de toda a Ilíada em três seções, ou, com maispropriedade, em três dias. Sendo certo que a Ilíada e aOdisseia eramrecitadas em festejos públicos, a princípio por episódios desconexos,conformeoexigiaapreferênciadoauditório,semquefosseobedecidaaordem dos acontecimentos, depois na sequência natural da fábula, é

  • aceitável que no caso da Ilíada esse recitativo se desse com as pausasindicadas,nofimdoscantosVIIIeXVIII.UmrecitativodeseisouoitocantosdaIlíadapordianãotomariamaistempodoquearepresentaçãode uma tetralogia completa, que também exigia o dia todo, sendopossívelqueosrapsodosserevezassem.E,particularidadeinteressante:essescantosseencerramjustamentecomocairdatarde,coincidindoahora emqueosouvintes sedispersavamcoma interrupção forçadadaaçãomovimentada do poema, pela chegada da noite divina, a que eraforçosoobedecer.Masaindanãoétudo,queessastrêspartesconservamuma certa autonomia, apresentando cada uma delas um aspectodiferente do tema da cólera, que pode ser considerado um todo deacabamentoartísticoperfeito,queseintegranaunidademaiordoplanopreestabelecidopelopoetaeexecutadocomprecisãoadmirável.Façamosumapanhadodessaspartesparatermosumaideiaperfeitada

    unidadedaIlíada.Apresentareinesteescorçoapenasumapanhadomuitopor cima dos episódios fundamentais, que a ocasião não nos permiteanálise mais demorada. Desde os antigos louva-se em Homero ahabilidadecomqueelenarraosacontecimentosdaGuerradeTroiasemcomeçar“abovo”, iniciando-se o poema depois de nove anos de cerco.Há quem veja no estilo nervoso do primeiro canto características dogênero das baladas, com a ausência das imagens tão frequentes nosoutros cantos e a peculiaridade do diálogo, em que as falas daspersonagens se entrechocam com vivacidade única. Esse canto foicompostopeloautordoproêmiocomointroduçãoparaotemadacólera,causa de terem sofrido os aquivos inúmeros trabalhos e de baixarempara o Hades muitas almas de heróis esclarecidos, enquanto “elesmesmos”,istoé,seuscorpos,serviamdepastoàsaveseaoscães.Issotudo se deu em cumprimento do desígnio de Zeus, que passou afavorecerostroianos,apedidodeTétis,comofimdeenaltecerAquiles.É perfeita a sequência entre os episódios: a rixa entre Aquiles eAgamémnone,atentativafrustradaporpartedeNestordereconciliarosdois chefes, a queixa de Aquiles a Tétis e a subida desta ao Olimpo.

  • Confirmadaapromessacomumsinaldecabeça,omaisseguropenhorcomqueodeussumoseobrigavaperanteosdemaisdeusesdoOlimpo,refleteZeus namaneiramais eficiente de dar início ao seu plano paraabater os gregos. No entanto, a não ser no começo do Canto II, pormuito tempo desaparece do horizonte poético o tema da cólera,ocupando-seopoetacomvitóriassucessivasdosaquivos,queatingemoclímaxnoCantoVI,emqueosentimentogeraldostroianospressagiavaaquedaiminentedacidade.Mas é apenas aparente esse descuido; o poeta abandona por

    momentosotemaanunciadoparaapresentaraspersonagensdodramaeincorporarnoseutraçadogigantescoocopiosomaterialemquevinhamnarrados os acontecimentos anteriores à discórdia. A fábula ganha emextensão e em profundidade. Muitas poesias isoladas, sagas de tribosdistantes, são incorporadas, assim, à lendadeTroia,numa“deslocaçãodemitos”quese impunhaàvistadoprestígioalcançadopelanarrativadofamosocerco.Noentanto,aincorporaçãodetãonumerososelementosnãosefazde

    maneira canhestra, tendo sido baldados os esforços dos analistas paraisolar os poemas de proporçõesmenores em sua primitiva autonomia,que todos eles passaram pormodificações sensíveis no ato da criaçãopoética. Percebe-se que o poeta dispunha de copioso material e quemuitasvezespressupõenoouvinteparticularidadesdafábulaquedeixade mencionar. É assim que no início Pátroclo nos é apresentadosimplesmentecomo“ofilhodeMenécio”,descuidoevidentenaredaçãodacenainicial.Massãopequenoslapsosquenãoafetamaestruturaçãodopoema,não conseguindoamais exigente análisedeslocarosblocosfundamentais do edifício, sem prejuízo sensível do plano geral. Comoexemplo, lembrareiapenasacenadoencontrodeHeitoreAndrômaca,narradanoCantoVI,muitodistanciada,naopiniãodevárioscríticos,damorte do herói, e, por issomesmo, deslocada naquela altura. Adiantevoltaremos a essa passagem, quando tratarmos do cuidado comque opoeta preparava os ouvintes para o desenlace de determinados temas,

  • iniciando-os com muita antecedência. Heitor nos é apresentado noCantoVIsobperspectivainesperada,comofilho,irmãoeesposo,porquenaúltimapartedopoematodoointeresseseconcentraemtornodesuafigura.Já houve quem dissesse que a introdução da Ilíada se estende até o

    Canto VII; realmente, só depois da apresentação completa daspersonagens é que o poeta se decide a dar cumprimento ao temaanunciado. O tema da cólera impunha o afastamento temporário deAquiles, o que dá oportunidade a outros heróis de aparecerem noprimeiroplano.Ressalta, também,opatriotismodopoeta em todas assuas descrições de combates; o auditório exigia a vitória dos aquivos,razão precípua de se sucederem as relações dos feitos heroicos dosconfederados, que contrastavam com os troianos pela disciplina,eloquência e pela própria escolha das armas. Entre os aquivos, apenasTeucro—daíaescolhadonome!—manejavaoarco;todososoutrossólutavamdelançaeespada.ComexceçãodePátroclo,nãomorredoladodos aquivos nenhum herói de primeira grandeza, e assimmesmo, nocasodePátroclo,foiprecisoqueApolotomasseainiciativaparatontearoheróiequeEuforbooferisseàtraição,depoisdoquepôdeHeitorlevaracaboavitóriafácil.EmtodaaIlíadamorrem189troianosemcombatesingular,contraapenas53aquivos,sendoestesq