As naus - Lobo Antunes

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As Naus, de Lobo Antunes

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As Naus, de Lobo Antunes

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Antonio Lobo Antunes, em seu romance As Naus, de 1988, propõe uma releitura da tradição de louvor às glórias marítimas de Portugal de modo a inserir a África no novo contexto das relações políticas e sociais do século XX. O romance traz para o século XX as figuras representadas no discurso épico do registro das viagens pelo mar e as atualiza na história de Portugal, ao encenar o desfecho trágico da colonização africana, com destaque para Angola, principalmente. As várias personagens do período de glórias ultramarinas, como Luis de Camões e Vasco da Gama, entre muitos outros, retornam ao cenário português, agora no papel de portugueses expulsos das colônias africanas pela ânsia de liberdade e vingança vivida pelos nativos.

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Problemática do retorno.

Lisboa da partida e do retorno: viagens quinhentistas dos descobrimentos (séc. XVI) descolonização pós-25 de abril (séc. XX); duas histórias diferentes de um mesmo país (a contemporânea e a de há cinco séculos) que são entrecruzadas e metaforizadas de tal modo que tudo é possível.

"(...) no que à construção romanesca diz respeito optou o autor, também de acordo com o figurino da epopéia, por desenvolver histórias relativamente independentes (quer paralelas, quer consecutivas) unidas contudo pelo fio da razão que as congregou no texto - e que é o de mostrar um quadro, ilustrar uma idéia, defender uma tese."

in Jornal de Letras, Artes e Idéias, 12 de Abril de 1988

Experimentalismos de linguagem e fragmentação das instâncias narrativas canônicas (ex.: tempo organizado não do ponto de vista histórico temporal do autor, e sim do ponto de vista ficcional do narrador; tempo sincrônico, híbrido entre presente e passado).

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Temos duas esferas de “contaminação” bastante marcadas aqui; a primeira delas se dá no nível das personagens. Aqueles que retornam de Angola, principal colônia portuguesa a tornar-se independente em um processo violento iniciado em 1961 e encerrado em 1975, têm o nome das grandespersonagens da história das conquistas portuguesas no mar. Entre elas estão Pedro Álvares Cabral, Luis de Camões, Diogo Cão, Vasco da Gama e Gil Vicente. Ao retornarem, essas figuras carregam a história pessoal de pessoas que viveram a colônia em situações comuns aos portugueses que deixarama metrópole em busca de oportunidades em Angola e, ao mesmo tempo, carregam a identidade das personalidades históricas do século XVI, tornadas presentes não só no nome, mas também como uma parte dessa identidade híbrida que cada uma das personagens carrega ao longo o romance.A outra esfera de contaminação se consolida no encaminhamento do enredo quando, ao meio do relato dos eventos passados no século XX, na Lisboa contemporânea, temos cenas e imagens do século XVI a interporem-se na realidade do momento, criando um efeito ao mesmo tempo surreal efantástico.

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“Passando por uma placa que designava o edíficio incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria das invasões castelhanas, e mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a aguardar os colonos, presa aos limos da água por raízes de ferro, com almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que cheirava a pesadelo e a gardênia, achámos à espera, entre barcos a remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas.”

O discurso do narrador, nesse momento em terceira pessoa, mescla duas realidades temporais, quando relata a viagem de ida de Pedro Álvares Cabral com os elementos próprios daquele momento histórico (almirantes de punhos de renda, grumetes encarrapitados nos mastros) e ao mesmo tempo vincula esses elementos ao presente do século XX com imagens desse momento(petroleiros iraquianos).

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A estratégia narrativa de promover o diálogo entre os dois tempos históricos se revela uma constante ao longo de todo o romance. Encontraremos a mesma situação em um outro momento quando Pedro Álvares Cabral conhece Diogo Cão, na pensão que aloja os retornados de Angola, aResidencial Apóstolo das Índias.

“O primeiro amigo que fizeram na Residencial Apóstolo das Índias dormia trêscolchões adiante, chamava-se Diogo Cão, tinha trabalhado em Angola como fiscal da Companhia das Águas, e quando à tarde, depois da mulata partir para o bar, se sentava comigo e com o miúdo nos degraus da pensão a ver nas ripas dos telhados o frenesim das rolas, anunciava-me, já de voz incerta, bebericando de um frasco oculto no forro do casaco, que há trezentos, ou quatrocentos, ou quinhentos anos comandara as naus do Infante pela Costa da África abaixo.”

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O autor, através do processo da parodização, intenta desconstruir, satirizar,carnavalizar a tradição épica de Portugal, o discurso histórico e os registros lingüísticos que caracterizam e sustentam a narrativa oficial daquela nação (desmitifica figuras históricas).

Lobo Antunes, fazendo uso do que a crítica canadense Linda Hutcheon cunhou de metaficção historiográfica, problematiza o discurso histórico e permite uma reflexão acerca da constituição identitária do indivíduo na contemporaneidade.

Lobo Antunes não destrói o passado, mas o faz dialogar com o presente, já que, segundo Hutcheon, a reescritura crítica do discurso histórico – isto é, a paródia – não significa “apagar” o passado; antes, parodiar é sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo.

Toda essa atmosfera tem como fulcro a metaficção historiográfica que se “aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico (...) certos detalhes históricos conhecidos são deliberadamente falsificados para ressaltar as possíveis falhas mnemônicas da história registrada e o constante potencial para o erro proposital ou inadvertido” (HUTCHEON).

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O drama dos portugueses (ex-colonos), que retornam como estranhos à pátria, é montado através da oscilação entre real e ficcional, do diálogo entre página quinhentista e contemporânea, numa mescla de passado e presente, isto é, a história está em aberto, em movimento, da mesma maneira como uma nau em alto mar (movimento de vai-e-volta).

Em seu estudo O romance Histórico Português, M. de Fátima Marinho faz a seguinte observação acerca das personagens d’As Naus: “A colocação de personagens com tais nomes (que imediatamente emergem do inconsciente coletivo português) em ambientes degradados e atuais, não só acentua o caráter irônico da evocação, como desmitifica um período da História nacional que raramente é tratado na sua relatividade histórica”.

Como se pode observar, essa postura do autor português faz parte da tendência pós-modernista de confrontar os paradoxos da representação fictícia/histórica, do particular/geral e do presente/passado.

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Escorraçados por uma nova realidade que se lhes impunha, os colonos portugueses de África do século XX empreendem uma nova epopéia - a volta, repetindo-se a História: vai-se ao encontro do desconhecido. A chegada a Lixboa não difere em intensidade de choque e contraste da acostagem em África ou na Índia.

Critica um povo que vive, ainda hoje, demasiado ligado ao passado; parodia um género literário (romance histórico) também ele excessivamente utilizado, ao mesmo tempo que recorre a alguns dos seus condimentos; reflecte sobre a actualidade de Portugal e desmitifica uma história e alguns mitos (D. Sebastião e Alcácer-Quibir), esvaziando a memória nacional e chamando um país à realidade que continuava a ignorar. Trata-se de um povo diante da impossibilidade de se livrar de seu passado e que ainda espera por um messias vindo do nevoeiro (mito sebastianista).

A escolha pelo período da Guerra Colonial, décadas de 60 e 70 do século XX, como tempo da narrativa torna-se indício de que esse período é apresentado no romance como o contraponto crítico do discurso de louvor que alimenta a história portuguesa, passando pelos Lusíadas, pelos sebastianistas até chegar em Fernando Pessoa, em Mensagem, principalmente.

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Nesse retorno hipotético, o narrador de Lobo Antunes apresenta um grupo de homens que fracassaram em seu anterior objetivo e que, doentes, esgotados e mentalmente confusos, voltam para uma pátria que desconhecem, uma nação que não mais se recorda deles enquanto pretensos heróis e conquistadores.

Em 25 de Abril de 1974, Portugal se liberta da ditadura do Estado Novo, que tinha na figura de Antônio Oliveira Salazar seu principal líder. No poder, Salazar fez uso do poema de Camões, Os Lusíadas, como suporte ideológico e demagógico com o objetivo de elevar o sentimento de superioridade do povo português.

Depois da Revolução dos Cravos, evidentemente, aboliu-se o conceito de raça como hipérbole para o ‘ilustre peito lusitano’. À imagem do português colonizador sucedeu-se aquela do português emigrante, espalhado pelas diversas comunidades no mundo, muito por conta do fracasso das políticas sociais do Estado Novo. O poeta Camões, de nauta e soldado na Índia, conquistador a serviço da pátria, converte-se, então, em símbolo do português desterrado, expatriado, emigrado, em suma. Lobo Antunes considera As Naus o “decrescendo” que faltava d’Os Lusíadas.

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Parece-nos que antes de falar do presente degradado e depreciativo da Lisboaportuguesa de seu tempo, Antunes reflete em primeira instância sobre uma época que prometeu muito e que cumpriu pouco em todos os sentidos.

Do ponto de vista religioso, político e social, Portugal foi uma falsa promessa para todos os seus súditos do século XVI, culminando com a fuga da família real para o Brasil dois séculos mais tarde e entregando a terra lusitana na mão do então novo império francês de Napoleão.

Significativa é ainda a recorrência de determinados termos, como Lixboa e Reyno, na grafia quinhentista, estendendo, ao plano lingüístico, a denúncia de uma atitude passadista na mentalidade portuguesa. De um lado, representantes de um modelo ideológico do passado, e uma grafia arcaica; de outro, o Presente que irrompe, nas referências à Revolução dos Cravos ou à perda das colônias africanas, tempo marcado pela decadência dos sonhos e mitos.

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Eduardo Lourenço, em Identidade e Memória – O Caso Português, afirma:

“Nas relações consigo mesmos os Portugueses exemplificam um comportamento que só parece ter analogia com o do povo judaico. Tudo se passa como se Portugal fosse para os portugueses como a Jerusalém para o povo judaico. Com uma diferença: Portugal não espera o Messias, o Messias é o seu próprio passado, convertido na mais consistente e obssessiva referência do seu presente”.

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7 núcleos narrativos:

1) Pedro Álvares Cabral2) O “homem chamado Luís” (Camões)3) (São) Francisco Xavier4) Diogo Cão5) Manuel de Sousa Sepúlveda6) Vasco da Gama7) Casal de velhinhos, retornados de Guiné (“eu não

pertenço aqui”) – restaram da versão primeira, em que os personagens eram comuns, e não históricos

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Na História oficial No romance

Pedro Álvares Cabral Fidalgo e navegador português

Retornado da África, mulher (mulata) prostituída

Francisco Xavier Missionário cristão, co-fundador da Companhia de Jesus

Dono de prostíbulo

Camões Escritor português Retornado da África para enterrar o pai

Vasco da Gama Navegador e explorador português

Jogador inveterado

Diogo Cão Navegador português Bêbado

Manuel de Sousa Sepúlveda Fidalgo e militar português Envolvido com comércio ilegal

D. Manuel Rei português Louco

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Outros personagens históricos:

Gil Vicente (grande dramaturgo português)Fernão Mendes Pinto (aventureiro e explorador português)

Pe. Antonio Vieira (religioso, escritor e orador português da Companhia de Jesus)Afonso de Albuquerque (fidalgo, militar e o segundo governador da Índia portuguesa)

D. Francisco de Almeida (híbrido: vice-Rei da Índia e governador de Angola)D. Sebastião (sétimo rei da Dinastia de Avis, desaparecido na batalha de Alcácer-

Quibir em 1578 que leva a crise monárquica de 1850 e à dominação espanhola – mito sebastianista)

Antonio José da Silva (dramaturgo e escritor luso-brasileiro)Miguel de Vasconcelos (Secretário de Estado da duquesa de Mântua, vice-rainha de

Portugal, em dependência do rei de Espanha, tornando-se odiado pelo povo, por, sendo português, colaborar com a representante da dominação filipina)

Gomes Leal (poeta e crítico literário português)Garcia da Orta (Médico judeu português que viveu na Índia no século XVI. Autor

pioneiro sobre Botânica, Farmacologia, Medicina tropical e Antropologia)Federico Garcia Lorca (poeta e dramaturgo espanhol)

Luis Bunuel (realizador de cinema espanhol)Oscar Wilde (escritor irlandês)

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Camões

Num romance construído por irônicas releituras de personagens históricas, é curioso que a descrição que o narrador de Antunes faz de Camões é muito próxima da própria realidade vivida pelo poeta.

Camões carregando restos mortais do pai sem poder livrar-se deles: relações psicanalíticas pai-filho, onde pai = passado (não assimilado, fantasmagórico, autoritário) plantas carnívoras de Garcia da Orta: assimilação distorcida

Somente após livrar-se do pai, Camões termina de escrever Os Lusíadas

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(São) Francisco Xavier

Se no discurso do personagem histórico há coerência com a fé católica, no personagem fictício percebemos uma completa confiança e certeza de que o divino está ao seu lado. Se o primeiro escrevia para catequizados, ou para pessoas a serem catequizadas, o segundo também assume tal referência discursiva. Ao ler o nono capítulo, o leitor do romance é nomeado pelo narrador, supostamente a versão romanesca de Francisco Xavier, por “ó servos do senhor”, “caríssimos irmãos” e “ó povo de Deus”, não apenas aproximando o leitor atual do texto romanesco, como também o colocando no lugar dos anteriores povos colonizados.

“Em pouco tempo, e graças à benção do Pai, um desmesurado rebanho de convertidas à Fé ocupava os bairros de Lixboa até às docas de Alcântara onde o ar era de celofane em julho(...).”

(auréola mantida artificialmente)

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Diogo Cão

Lobo Antunes deposita em Diogo Cão a inocência que não deu a mais nenhum personagem.

Diogo Cão e o “homem chamado Luís” são os que se mantêm heroicizados nesta derrota das naus do grande século. São os dois remanescentes da epopéia lusíada, na narrativa de Lobo Antunes, que ainda crêem na utopia.

Metáfora da repotencialização do velho navegante: mastro pênis Portugal que se levanta por ainda crer na utopia.

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Antonio Lobo Antunes reflete esses pensamentos, não num texto político (na acepção de Barthes) esteriotipado, unívoco, mas num tecido aberto a múltiplas leituras, lúdico e metafórico.

As Naus é uma longa e sólida metáfora que, em cerca de 250 páginas, rasura a história oficial portuguesa, mostrando que o que resta de poetas, viagens, descobertas, naufrágios, epopéias etc. é um Portugal “perdido”, entre presente e futuro, e que parece perder os vestígios de um passado altamente glorioso por seus feitos, tendo os seus habitantes submersos em um ambiente de luta identitária em busca de sua reconstrução. As Naus ainda poderiam ser vistas como uma coletânea de registros de retornados de África, resultante da descolonização pós 25 de abril. Noutras palavras, uma tentativa de dar, sob a forma onírica, o relato de Portugal, em que passado e presente se misturam.

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Como visto, o romance de Lobo Antunes é uma reescrita de um passado glorioso e decadente. Sobre os personagens Cabral, Sepúlveda, Diogo Cão, Vasco da Gama e Camões, os sentimentos que dominam tais personagens são a decepção e o abandono. É uma coleção de personagens desiludida e alquebrada, afligida por uma terra num determinado sentido igual à outra que deixaram, porém destituída de promessas, ideais e ensejos de um futuro vitorioso. Abandonados por um rei desaparecido, por uma terra que não mais os recebe e por familiares e amigos inexistentes, o que lhes resta é um hospital de tuberculosos, mais tarde uma casa de repouso para loucos. Mas que tipo de loucura aflige seus pacientes, antigos heróis da história e criadores da tradição literária portuguesa? A loucura utópica de acreditar numa união coletiva em busca de um bem maior: o bem na nação portuguesa.

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- Análise de trechos selecionados -

Pedro Álvares quê?

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“Às onze, quando a espuma de cerveja do Tejo alcançou a altura das pálpebras e o que sobrava do corpo do velho sofreu um cataclismo de estremeções antes de amainar na serradura da caixa, o empregado suspendeu-se à sua frente equilibrando na palma uma bandeja de capilés e perguntou-me do cimo das condecorações de gordura do casaco, sem sequer uma mirada de interesse ao meu poema, Essa esferográfica por acaso não é minha?, e eu respondi que sim sem interromper as rimas porque me aparecera a ideia de uma imagem razoável, e decorrida meia hora se tanto tinha-o à minha mesa a queixar-se da filha da mãe da vida, ganhamos uma miséria, sabe lá, vai-se tudo em impostos e descontos, um fulano amargo, de meia idade, radioamador, que morava no bairro Alto com a esposa, cinco descendentes e o sogro inválido, num canapé, diante de um altar de pagelas, com uma manta nos joelhos, Você nem sonha o que me calhou em sorte, e quando eu ia responder, danado por me estragarem a epopeia, que todos nós temos nossas chatices, que caneco, a minha, por exemplo, é não conseguir desembaraçar-me do pai que aqui trago, os ossos, ou que sobrava dos ossos, chiaram baixinho assustando o outro, que se chamava Garcia da Orta, muito prazer, criava plantas medicinais na varanda, nascera em Manteigas e recuou apavorado (Anda a mangar comigo ou o quê?) fitando com terror os fémures do velho”. (p. 156-7)

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“Uma sentinela nos informou que o rei Filipe se reunira com os marechais na rulote do Estado-Maior a combinar a invasão de Portugal, porque D. Sebastião, aquele pateta inútil de sandálias e brinco na orelha, sempre a lamber uma mortalha de haxixe, tinha sido esfaqueado num bairro de droga de Marrocos por roubar a um maricas inglês, chamado Oscar Wilde, um saquinho de liamba”. (p.179)

“Uma carroça de comediantes marchava a duzentos metros, num pandemónio de gaitas, para um baptizado no paço, e lá ia o ourives Gil Vicente a gesticular no meio de diabos e pastores”. (p. 91)

“Emprestou dinheiro a D. João de Castro para urbanizar Goa, forneceu a Camões a possibilidade de uma edição de bolso de Os Lusíadas, com bailarinas nuas na capa, publicada numa colecção de romances policiais, ajudou o poeta lírio Tomaz António Gonzaga na benfeitoria do seu comércio de escravos”. (p. 129)

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“...Vi apenas uma humidade de gaivotas, espiões castelhanos sob as camione-tas de descarga junto do rio, e dezenas de Fernandos Pessoas muito sérios, de óculos e bigode, a caminho de empregos de contabilista em prédios pombalinos de beirais de loiça”. (p. 158-9)

“O numero do Copérnicos foi diminuindo pouco a pouco, cada um deles munido da sua receita de pastilhas contra a noção doentia da translação da terra”. (p. 192)

“Nos abandonaram por fim num pátio interior, de muros altíssimos, em que os cinquenta Copérnicos das receitas vagueavam ao acaso, igualmente em pijama, consultando, de mão em pala na testa, o comprimento das sobras e a posição do sol”. (p. 194)

“O padre António Vieira, sempre de cachecol, expulso de todos os cabarés de Lixboa, procedia a uma entrada imponente discursando os seus sermões de ébrio, até tombar no sofá, entre duas negras, a guinchar as sentenças do profeta Elias numa veemência missionária”. (p. 124)

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“Dois prédios na Morais Soares e eu sem jantar, pensou Pedro Álvares Cabral, raios partam a liberdade se a liberdade é isto, quero mais é o meus cabarés de Loanda e as minhas auroras sarnosas de cacimbo, quero os meus musseques de desgraça, quero os meus cheiros de esterqueira de África quando não tinha fome nem vergonha”. (p. 69-70)

“A crueldade dos anos magoou-o como um castigo injusto e ao voltar-se para encarar a mulher, sugando das gengivas uma remota saudade de chá, indignou-se de novo ao verificar, espantado, a erosão sem cura que o tempo provocara nela também (...) e admitiu com desgosto que Já não pertencemos sequer a nós, este país comeu-nos as gorduras e a carne sem piedade nem proveito uma vez que se achavam tão pobres como haviam chegado”. (p. 54)

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Referências Bibliográficas

ANTUNES, António Lobo. As Naus. Lisboa: Dom Quixote, 1988.

MENEGAZ, Ronaldo. Na derrota de As Naus, de António Lobo Antunes, a imagem de um velho Portugal.

SILVA FILHO, Urbano Cavalcante da. Identidade, história, paródia e desterritorialização: uma viagem n’As Naus de António Lobo Antunes.

TAVARES, Enéias Farias. O desencanto histórico e religioso no romance As Naus, de António Lobo Antunes.

OLIVEIRA, Silvana. As Naus do discurso em António Lobo Antunes.