António Lobo Antunes Exortação à vida - … Lobo Antunes,, ALA: No outro dia fui almoçar com...

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Falámos dos livros. Do silêncio. Da alegria. Da guerra. Da dificuldade em dizer o amor. Da necessidade de se apropriar do coração dos homens. Falámos da sua nudez, vulnerabilidade, do medo e do desejo. E da fé que tem nos homens. A explicação do mundo de António Lobo Antunes é tão caleidoscópica como a luz da tarde. Nela cabe, agora, a felicidade. Eis o retrato de um homem que a mãe diz ter sido sempre assim. Mas o tempo passou por ele. GRANDE ENTREVISTA Anabela Mota Ribeiro: Hoje folheei a sua fotobiogra- fia para ver como era em pequeno. A sua expressão, o seu olhar, não mudou muito. António Lobo Antunes: A minha mãe é que diz isso. A minha mãe tem na sala uma fotografia minha com um ano e diz que não mudei. Que esquisito. AMR: Pois é. Por isso queria lançar esta questão. As fotografias são um meio privilegiado de sentir a passagem de tempo. ALA: Eu não gosto de fotografias minhas, não gosto de me ver, nunca gostei. Tive sempre uma relação difícil comigo, com o meu corpo, com a minha cara [riso]. texto Anabela Mota Ribeiro > fotos Augusto Brázio Exortação à vida António Lobo Antunes «Agora já não. Ao princípio sim. Continuo a achar que os livros deviam ser publicados sem o nome de autores. Havia uma data de problemas que desapareciam. Pelo menos ao nível de competição, inveja, ciúme – tudo isso que nada tem que ver com livros e que eu entendo mal.» Antonio Lobo Antunes , ESPIRAL DO TEMPO > 53

Transcript of António Lobo Antunes Exortação à vida - … Lobo Antunes,, ALA: No outro dia fui almoçar com...

Falámos dos livros. Do silêncio. Da alegria. Da guerra. Da dificuldade em dizer o amor.

Da necessidade de se apropriar do coração dos homens. Falámos da sua nudez,

vulnerabilidade, do medo e do desejo. E da fé que tem nos homens. A explicação do

mundo de António Lobo Antunes é tão caleidoscópica como a luz da tarde. Nela cabe,

agora, a felicidade. Eis o retrato de um homem que a mãe diz ter sido sempre assim.

Mas o tempo passou por ele.

GRANDE ENTREVISTA

Anabela Mota Ribeiro: Hoje folheei a sua fotobiogra-

fia para ver como era em pequeno. A sua expressão,

o seu olhar, não mudou muito.

António Lobo Antunes: A minha mãe é que dizisso. A minha mãe tem na sala uma fotografiaminha com um ano e diz que não mudei. Queesquisito.

AMR: Pois é. Por isso queria lançar esta questão.

As fotografias são um meio privilegiado de sentir a

passagem de tempo.

ALA: Eu não gosto de fotografias minhas, nãogosto de me ver, nunca gostei. Tive sempre umarelação difícil comigo, com o meu corpo, com aminha cara [riso].

t e x t o An ab e l a Mo t a R i b e i r o > f o t o s Augu s t o B r á z i o

Exortação à vidaAntónio Lobo Antunes

«Agora já não. Ao princípio

sim. Continuo a achar que os

livros deviam ser publicados

sem o nome de autores. Havia

uma data de problemas que

desapareciam. Pelo menos

ao nível de competição, inveja,

ciúme – tudo isso que nada

tem que ver com livros e que

eu entendo mal.»

Antonio Lobo Antunes,,

ESPIRAL DO TEMPO > 53

AMR: Está a rir-se porque está a fazer género?

ALA: Não, não, é verdade. Vi isso naquele livrodas cartas [“D’este viver aqui neste papeldescripto”]. Tinha 20 e poucos anos e achava-mefeiíssimo. Achava sobretudo que não era pareci-do comigo, que não tinha aquela cara, que eradiferente daquela cara. Olhava para o espelhocom uma certa estranheza. Nunca gostei de es-pelhos. Nem de relógios, não uso relógio.

AMR: O irreconhecimento passa por onde?

ALA: A sensação era sempre a mesma: não souaquele, não sou este, não tenho fotografias minhas.

AMR: Nesse sentido, imagino que os livros sejam

fotografias suas.

ALA: Agora já não. Ao princípio sim. Continuo aachar que os livros deviam ser publicados sem onome de autores. Havia uma data de problemasque desapareciam. Pelo menos ao nível de com-petição, inveja, ciúme – tudo isso que nada temque ver com livros e que eu entendo mal. OVictor Hugo dizia que as obras de arte são comoos tigres: não se devoram umas às outras. Desco-brir um livro bom é uma alegria tão grande, umautor que a gente não conhece... é uma festa!

AMR: O sentimento de admiração é uma bênção.

Enriquece-nos.

ALA: Sinto-me grato por haver pessoas melhores.Mas as que muitas vezes admiro ninguém sabequem são, a não ser a família delas. Acho quesou humilde. Por exemplo, em relação aos livros:tudo aquilo me escapa. Aquilo é novo e é dife-rente, mas ainda é muito cedo para se percebero que é que eu trouxe. O meu medo é sempre omesmo: desiludir as pessoas que tiveram emmim uma confiança que eu nunca partilhei.

AMR: Aos 18 anos estava cheio de certezas quanto à

literatura e quanto à vida – disse-o. A soberba é

própria da juventude.

ALA: Havia uma certeza que eu tinha, era que setrabalhasse muito ninguém escrevia como eu.Mas depois fazia coisas muito más. Havia umadistância tão grande entre aquilo que eu sentia eos resultados, que eram tão pobres. Continua ahaver.

AMR: Como se houvesse um desfasamento? Entre

aquele que é e aquele que aparece nas fotografias,

entre os livros e o que quer que eles sejam.

ALA: Estava à espera que falasse nisso. Ainda não

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Antonio Lobo Antunes,

«Havia uma certeza que eu

tinha, era que se trabalhasse

muito ninguém escrevia como

eu. Mas depois fazia coisas

muito más. Havia uma

distância tão grande entre

aquilo que eu sentia e os

resultados, que eram tão

pobres. Continua a haver.»

Antonio Lobo Antunes

António Lobo Antunes no seu atelier onde dedica o seu tempo

a trabalhar. Momento de pausa só mesmo para uma rápida

fotografia.

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,

a

é isto, podia ter ido mais longe, podia ter trabalhado mais, podia ter corrigi-do mais, devia ter reescrito mais. Devia ter só publicado a partir do «Esplen-dor de Portugal», devia ter lido primeiro o não sei quantos. Ainda eramromances, e não me interessa nada contar histórias. Queria pôr a vida inteiradentro de um livro. Claro que não é possível, mas é a única maneira.

AMR: Tem falado do desejo de escrever (n)um estado que é “anterior à palavra”.

Como se o que vai revelando nos livros, descobrindo com essa mão cega e mágica,

fosse desconhecido para si e aflorasse no movimento da escrita. O que será que está

antes? Por acaso, havia fotografias em que a sua inocência estava escancarada.

ALA: Isso também depende da maneira como se olha para as fotografias, se éo nosso olhar... É isso que esteve a dizer, sim. Não poderia dizer melhor. Aomesmo tempo é uma tarefa impossível, é tentar transformar em palavras oque é intraduzível em palavras: emoções, impulsos, os próprios nexos. Gostode adormecer a ler. E quando estou a adormecer, estou a ler o que não estálá. Depois a gente volta à tona e afinal nada daquilo estava ali escrito. Então,é conseguir esse estado. Consigo-o através do cansaço. As duas, três, primeirashoras são perdidas. É tudo muito lógico-discursivo dentro de mim, osbonecos são quase cartesianos. É tentar furar no coração, do coração. Não seiexplicar bem.

AMR: Explique mais.

ALA: Não sei. Só quando se está a escrever é que é isso. Também vivo umpouco assim. Agora é que eu estava bom para nascer.

AMR: O que é que quer dizer?

ALA: Tenho agora alguma virgindade. Virgindade no olhar, uma capacidadede surpresa muito maior do que tinha há dez ou 15 anos. E também o amor.Demorei muito tempo a aprender o que era o amor. Amor, estou a falar emlato sensu. E o entusiasmo. Vivia muito autocentrado, levado pela minhatimidez. A existência dos outros foi-me revelada a pouco e pouco. Durantemuitos anos era-me difícil conceber relações horizontais com os outros.Começou um pouco na guerra. De repente percebi que havia os outros, que

eram iguais a mim e que eu estava entre eles. É muito difícil ser homem. Uma das coisas boas que tenho em ser homem é que não tenho nenhum atri-to em me relacionar amorosamente com homens. Esse aparelho [gravador] é horrendo.

AMR: Mas fala tão baixinho que se o puser longe não capta nada.

ALA: Sempre falei muito baixo. Detesto gritos e pessoas que gritam, pessoasveementes. É horrível, porque queremos dizer “gosto de ti” e temos vergonha.Eu tenho vergonha. Fica-se muito despido. Estou a falar de coisas que nor-malmente não falo.

AMR: Do quê, exactamente?

ALA: Da maneira de viver. A pessoa, a certa altura, começa a perceber que afelicidade é possível. No sentido de não haver mal entendidos entre nós.Entre nós e nós, entre nós e os outros, entre nós e a vida.

AMR: Porque é que não há mal-entendidos? E como é que se consegue esse entendi-

mento?

ALA: Ai, não sou nenhum sábio, vivo por instinto.

AMR: É uma conquista, esse abandono de uma grelha racional.

ALA: Bom, e eu era filho de um anatopatologista. Faz agora dois anos quemorreu. Era um homem que quando um dos meus irmãos lhe perguntou oque é que gostaria de ter deixado aos filhos, respondeu “o amor das coisasbelas”, seja o que for que isto quer dizer. Acho que ele nunca foi velho. Tevesempre uma capacidade muito grande de se apaixonar, até ao fim da vida. Porum livro, por músicas, por pessoas, mas isso já não me diz respeito, masespero que sim. A seguir vou deixar de fumar.

AMR: Bons projectos! Parece de facto mais novo, agora que emagreceu.

ALA: Sinto-me leve. Entro no carro, saio do carro, corro, danço, se me apete-cer, pulo – não podia fazer nada disso e era uma estupidez. Sem me dar conta, estava a matar-me. Pequei muito contra mim mesmo. Agora pareço o Francisco de Assis, que dizia: “confesso que pequei muito contra o meupróprio corpo”.

AMR: Falando do S. Francisco, lembrei-me do Santo António, e da sua viagem a

Pádua. Quer falar-me dessa viagem?

ALA: Não me lembro de nada...

AMR: Todavia, na fotobiografia elege a viagem como um dos acontecimentos cen-

trais da sua vida.

ALA: Claro que sim. Oiça, para uma criança de sete anos... Um homem, comoera o meu avô, que me fazia festas, beijava lindamente – é tão difícil uma pes-soa que sabe beijar, não é? –, levar-me de carro pela Europa... Portugal,Espanha, França, Suíça, Itália. Foi a pessoa de quem mais gostei até hoje.

Antonio Lobo Antunes

«Tenho agora alguma virgindade. Virgindade no

olhar, uma capacidade de surpresa muito maior

do que tinha há dez ou 15 anos. E também o amor.

Demorei muito tempo a aprender o que era o amor.

Amor, estou a falar em lato sensu.»

Antonio Lobo Antunes,

,

ALA: No outro dia fui almoçar com eles todos,num almoço de companhia. Os militaresfalavam em camaradagem – não é amizade, nãoé amor... É uma relação tão intensa. Talvezporque vivi com eles as horas mais amargas, maisduras, mais violentas que tive até hoje. Eu nãosabia que estava tão ligado a eles. Aquilo era profundamente comovente. Sabe, os soldadostinham 19, 20 anos, os oficiais 23. Não sei se éra-mos homens, visto agora parece-me que éramosmiúdos, e no entanto...

AMR: Nos seus livros, a marca deixada pela guerra

continua a ser central.

ALA: Foi muito importante para mim e conti-nua a ser. Eu era um miúdo precoce, fazia coisas estranhas, assustava a minha família. E encontrar iguais, encontrar pessoas... É sem-pre difícil falar disto, é sempre difícil falar deamor aos outros. Foi em Torres Novas, foi o mês passado. A maior parte vinham do Norte,num autocarro que tinha um cartaz à frente que dizia “Os príncipes do António LoboAntunes”. Temos tendência a pensar que as pes-soas humildes, que não têm aquilo a quechamamos cultura, não são capazes de uma delicadeza tão fidalga; e são. Eles eram príncipes.De coragem. A coragem é apenas uma forma de elegância. Ultimamente fico sempre surpre-endido: a maior parte das pessoas são melhores

AMR: Ele dedicava-lhe uma atenção exclusiva?

ALA: Não sei se dedicava, mas era daquelas pes-soas que a fazia sentir-se única. A Anabela estácom ele e sente que nada mais existe a não ser aAnabela. Tinha essa capacidade. E era genuíno,significava um interesse real pelas pessoas e pelascoisas. Eu era o filho mais velho do filho maisvelho dele, tinha o nome dele. Não me pareçonada com ele, que era moreno, bonito, sociável,falador. Eu sou introvertido e tímido e fechado.Não vou a jantares, vejo muito poucas pessoas.

AMR: A comunicação também se faz no silêncio.

ALA: Há pessoas que têm uma estrela na testa,mas são raras. Aquelas pessoas que a gente senteque o nosso corpo vai para elas, sem se darconta... As palavras são desnecessárias. Uma pes-soa de quem eu gosto é aquela com quem estoubem em silêncio. Com o Ernesto Melo Antunes,passávamos horas calados e com a sensação deque tínhamos dito imensas coisas. Dizíamosimensas coisas sem palavras. O Freud dizia que amaneira mais profunda de fazer amor era só comos olhos. Lembra-se de uma entrevista em que oRichard Burton dizia que ele e a ElizabethTaylor se vinham só de olhar um para o outro?Aquilo parecia-me um exagero, mas é verdade.

AMR: Essa tirada é tão apoteótica quanto a entrada

da Cleópatra em Roma!

ALA: Não vi esse filme. Mas vi uma das entrevis-tas que deram em conjunto, e a maneira comoela olhava para ele...

AMR: Há pessoas que têm uma comunicação fusional.

ALA: Se calhar, é a única que vale a pena. A genteou tem ou não tem. É como um berlinde namão, é como o talento. O amor não é um fim, é um meio, é uma outra forma de falar, é uma maneira de estar mais perto, e mais perto,mais perto.

AMR: Fala de África, da guerra, como um nascimen-

to: “Aquilo que eu sou hoje nasceu lá, comecei a ser

outro lá”...

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Antonio Lobo Antunes

«Estava convencido de que tinha nascido para grandes feitos,

que não sabia bem quais eram. Para citar o seu querido Goethe,

“a nossa única grandeza possível é não chegar. Não chegar nunca”.

Não me apetece nada falar, acho que você percebe sem eu dizer

as coisas.»

Antonio Lobo Antunes

do que eu imaginava. Durante tantos anos fuiinjusto.

AMR: Por que é que esteve tão zangado com as pes-

soas durante anos?

ALA: Não era uma questão de zanga, era umaquestão de um narcisismo idiota, da assunção deuma superioridade imaginária.

AMR: A sua superioridade baseava-se em quê? Esse

fio narcísico passava por ser o “grande autor”?

ALA: Não era o autor de nada, era um miúdo.Baseava-se sobretudo em parvoíce, era um paler-ma. Estava convencido de que tinha nascidopara grandes feitos, que não sabia bem quaiseram. Para citar o seu querido Goethe, “a nossaúnica grandeza possível é não chegar. Nãochegar nunca”. Não me apetece nada falar, achoque você percebe sem eu dizer as coisas.

AMR: Batota. Quer falar de quê então?

ALA: Não gosto de falar muito. Quero que justi-fique o dinheiro que lhe vão pagar, só isso é queme está a preocupar neste momento.

AMR: Não se preocupe. Eu gostava de saber mais,

independentemente do dinheiro que me vão pagar

por escrever estas coisas de que estamos a falar.

ALA: Eu acho que já sabe, acho que as perguntasacabam por ser redundantes. ET

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,