Antonio Lobo Antunes - Eu Hei de Amar Uma Pedra

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 António Lobo Antunes Eu Hei-de Amar uma Pedra

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 António Lobo Antunes

Eu Hei-de Amar uma Pedra

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Obras de António Lobo Antunes

MEMÓ!A "E ELE#A$%E& '()(

O* +,* "E ,"A*& '()(+O$HE+!ME$%O "O !$#E$O& '(

E0PL!+A12O "O* P3**AO*& '('

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 António Lobo Antunes

Obra +ompleta

Edi@o ne Barietur

omance

Estabelecimento do teCto por ;ra@a Abreu

D Edi@o ne Barietur de acordo com a Bontade do autor

+oordena@o de Maria Alira *eiCo

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Publica@Fes "om 9uiCote

ua +intura do Porto

,rbania@o da Matinha Lote A 7. + '(-8( Lisboa Portugal

eserBados todos os direitos de acordo com a legisla@o em

 Bigor

G 78& e Publica@Fes "om 9uiCote "esign: Atelier Henriue

+aIatte com a colabora@o de ita MJrias

eBiso: +lara >olKo

' edi@o: Outubro de 78

"epósito legal n. 7') 8)/8

Pagina@o: #otocompogrNca& Lda.

!mpresso e acabamento: ;uide - Artes ;rNcas

omance

7 edi@o

Estabelecimento do teCto por

;ra@a Abreu

+omisso para a edi@o ne Barietur

 Agripina +arri@o <ieira

Eunice +abral

;ra@a Abreu

+oordena@o

Maria Alira *eiCo

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 Nesta página estava uma dedicatória

aos meus pais. Ainda está.

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,m As otograNas

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PRIMEIRA FOTOGRAFIA 

%enho dois anos e estou ao colo da minha me: K um retrato de

estJdio assinado Photo oIal Lda a letras em releBo& caprichadas& a

cadeira onde nos sentaram serBia para os clientes todos& maestosa&

de Beludilho gasto e cunha de carto na perna direita& to alta ue os

sapatos da minha me no alcan@aBam o soalho

QpKs rRgidos& uietos& de enorcadoS

mudaBam o telo do undo

Quma cena de circo& uma pra@a de toiros& uma Toresta com

 ibóias e ebras no mencionando as camisolas sem pessoa dos

gorilas penduradas nos cabides das rBores por um Jnico bra@oS

e a cadeira continuaBa& o telo ue desta Be encostaram U

parede atrs da genteQpor sinal Ncou torto de maneira ue metade a desocar-seS

representaBa o castelo da >ela Adormecida no pico de um

monte& anelas em ogiBa& ameias& a Princesa de la@arote no cabelo

remando num baruinho de pescar limos no %eo& eCistia a marca de

um polegar no meu ombro& o empregado

- 9ual marca=

a aproCimar o nari& a mentir

- $o Beo marca nenhumaa esregar com um pano mentindo de noBo

- $em se nota

e a notar-se mais& pintaram de cor-de-rosa o la@arote e de aul

os meus cal@Fes& um pingo aul no meu oelho& outro no baruinho

ue parecia nascer-me da orelha

Qse a co@asse tiraBa-oS

cabos elKctricos no cho e a haste do reTector ao canto&

imaginaBa--se alguKm a aer sinais ou a dier no sei uV unto U

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cWmara porue a boca da minha me

- Perdo=

a Photo oIal Lda do >eato e a sua montra de noiBas alternando

com bebKs nus em almoadas& diante do mesmo castelo e do mesmo

lago ue nós mas num ormato maior e sem polegar& com o tempo

deciraBam-se mal as nossas caras& a boca para os sinais no

- Perdo=

no boca ainda ue a Princesa continue a remar& o pingo no meu

 oelho dissolBendo-se

QdissolBi-meS

Ncou parte da gola e o telo uma nKBoa& suponho ue a Photo

oIal Lda uma nKBoa tambKm& uma nKBoa o empregado de mos

amarelas dos cidos ue nos arrumou na cadeira& uma nKBoa o

espelho com uma escoBa e um pente de acertar carrapitos& melenas&

o >eato mudado& prKdios e prKdios a esconderem o rio ue o tempo

dissolBia igualmente& eu a escorregar da minha me e o empregado

austando lentes& inBisRBel a seguir as caiCas& arcos Boltaicos& panos&

a desordem de poro dos bastidores

- Aguente-o madamena parte do bairro em ue morBamos hortainhas& uintais&

adiBinhaBa-se a chuBa pela eCaspera@o das gaiBotas& lamentos ue

procuraBam naBios e encontraBam gasóleo& tinha a certea ue eram

as noiBas da montra a solu@arem nos pWntanos de cani@os ou

empoleirada nos algeroes catando algas das asas& os bebKs de nari

para cima e as noiBas a enNarem-lhes peda@os de peiCe na goela&

sacudidas& grasnando& iam e Binham U tarde sobre os telhados

arrastando grinaldas& Torinhas brancas& BKus e a montra da PhotooIal Lda deserta& as molduras somente& o empregado roRdo pelos

cidos chamaBa-as em Bo da soleira& os bebKs arreganhaBam-se de

ome nas almoadas de cetim dos ninhos& lembro-me da tarde em ue

o hidroaBio

Qou um albatro=S

caiu& Binha a planar direito a +abo uiBo espreitando alorrecas

e nisto a carlinga a arder& as noiBas encolhidas de medo no petroleiro

persa ue se decompunha na margem& passeaBa-lhe no conBKs e um

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eco antigo no ual parentes muito idosos estremeciam

- Pimpolho

ou sea senhoras a erguerem-se bengala acima de camarotes na

penumbra apontando chBenas de ch

- %u Ks Nlho de uem=

perumes estagnados& escaletas& noBenas& um cacho de bebKs

na chaminK reclamando os meCilhFes da Baante& o empregado da

Photo oIal Lda trotaBa no ponto& o albatro inclinou-se a suspirar&

perdeu um Tutuador& uma hKlice& topaBam-se os passageiros nos

 Bidros de goela aberta e nari para cima se calhar a agitarem-se por

comida tambKm& um rastro de gasolina aBan@ou no lodo incendiando

os cani@os& +abo uiBo um deserto de charcos em cuas erBas se

escondiam patos braBos e andorinhas do mar& suspeitaBa ue

 Alcochete para alKm do silVncio& uma noiBa ro@ou-nos a anela e logo

as parentes muito idosas ue escutaBam a missa pelo rdio nos

camarotes do petroleiro persa

- O ue K isto=

oliBeiras de proBRncia ue a cidade esuecera& relógios de

ponteiros ao longo do corpo desinteressados do tempo& o hidroaBioreconheceu um carangueo porue tombou de unhas de ora numa

nódoa de rio despindo-se de sacos& malas& roupa ue a enchente

traia e as noiBas em torno da roupa proBocando-se& discutindo&

rasgando tecidos no meio de ragmentos de alumRnio e madeira&

preeria ue tiBKssemos tirado o retrato num telo assim& uer dier

o petroleiro& as gaiBotas e o ipe da ;uarda a augentar os pssaros&

o empregado da Photo oIal Lda

- Aguente o pimpolho madame ue lhe escorrega do coloe de acto eu a descer para o tapete ue os sapatos da minha

me no alcan@aBam& toda a noite U cabeceira da cama& desabitados&

ela cabelo e len@óis e eu percorrendo os len@óis

- 9ue ser eito dos seus pKs meinha=

ombros ue protestaBam ao mudar de lugar& talBe olhos

debaiCo das madeiCas mas onde param os olhos& um deles Beio a

custo do traBesseiro atK mim desembrulhando-se de pestanas

- $o se pode dormir esus +risto=

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principiou a desocar-se e dJias de plpebras& sobrepondo-se&

leBaram-no& os ombros no protestaBam seuer& ancorados

- %ornou-se o petroleiro persa meinha=

Qo motor dos pulmFes a trabalhar em surdinaS

ual motor& o petroleiro sem motor& uma camioneta estrangeira

desmontou-o& meteu-o na arrecada@o e portanto no o motor dos

pulmFes& cardumes ue entraBam nela e a deiCaBam& o empregado

da Photo oIal Lda acabando de regular as lentes

- *ente-se bem madame=

o lago& o castelo& a Princesa a remar no baruinho& uma das

noiBas da montra desatou a sorrir& imensa& no caiCilho& pedi-lhe

Qeu uma Nta de lRuenS

- $o me coma

as ue se mantinham no %eo abandonaram o ponto e

ocuparam a loa& o primo +asimiro pegaBa-me pela cintura& erguia-

me no ar& aia-me cócegas& angaBa-se

QcuidaBa eu ue angadoS

- Ests a rir-te de uV=

depois de o meu pai se ir embora a aastar-nos- %rambolhos

estrangulaBa-me com o guardanapo& a Bo da proprietria.

solene

- $o te sues pimpolho

instalaBa-se no lugar do meu pai a eCplorar a terrina& a distribuir

o almo@o& ralhaBa U minha me

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

e ao- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

o meu pai em casa de noBo& U mesa connosco apesar de no ter

colher& no ter prato& no sRtio onde a minha me o interrogaBa

Qela nesses momentos duas palmas nas bochechas& os olhos

iguais Us lentes do otógraoS

- PoruV=

ao passo ue o meu pai no ombros nem olhos& cotoBelos ue

desdenhaBam

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- %rambolhos

o ue Ncou dele oi o pincel da barba no laBatório com espuma

seca nos pVlos& cruetas ue a minha me remeCia no armrio a

uestion-las

- PoruV=

as cruetas baloi@aBam no Baro motiBos ue ninguKm entendia&

echBamos-lhes a porta e calaBam-se& a minha me acabou por

deitar o pincel da barba no liCo& gastou eternidades a limp-lo

Qno precisaBa de ser limpoS

e a pedir-lhe desculpa& imaginaBa o meu pai a tossir nas tardes

de unho e aNnal um cano& ualuer coisa na rua& o estalar da

mobRlia& o primo +asimiro deBolBia a garraa ao aparador& as palaBras

no ganhaBam or@a na boca& pingaBam& recolhia-as no len@o ue

depois de alhar a algibeira se preocupaBa no interior do casaco

Qo len@o& Bisto ue o primo +asimiro mudoS

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

introduiu o cacha@o no buraco do telo da Photo oIal Lda com

 ibóias e ebras& surgiu no retrato a matar uma on@a mas o capacete

colonial no coincidia com a cabe@a& o corpo pintado agachaBa-senum tronco& uma das pernas gorda e a outra magrinha& o primo

+asimiro a comparar espessuras

- Magrinha uma gaita pimpolho

haBia uma rasgadura num lombo de ebra e pela rasgadura os

trapeistas do circo& no buraco do segundo ca@ador& desocupado& um

indiano de turbante euilibraBa espadas no ueiCo

Qas noiBas abandonaram U uma a Baranda do engenheiro& num

ruRdo de papel pardo uando um pauete silBouSno ue sobraBa do buraco do primo +asimiro uma por@o de

circo igualmente ou sea uma nesga de oca a ogar com uma bola&

ualuer coisa de coelho no ocinho da on@a& a delicadea& os

dentinhos& a garraa ergueu-se do aparador indecisa mas com

esperan@a

- Estou bem em 3rica no estou=

nos dias sem clientes o empregado das mos amarelas& audado

por uma lata de tinta e uma brocha& dromedrios& rinocerontes&

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carregadores com uniorme de ascensorista de hotel ue

transportaBam baJs& o empregado& didctico

- X a selBa madame

talBe o baJ da nossa casa

Qcom uem dentro=S

ue a madrinha da minha me oereceu& BisitBamo-la num

segundo andar do ardim +onstantino longRssimo do %eo& sem

hidroaBiFes nem noiBas& onde a madrinha da minha me& ou sea

mantas e Cailes& oculta numa poltrona entre sombras de plantas ou

de cantoneiras dado ue as cantoneiras se moBem tambKm& deBagar&

U tardinha& um brilho de aian@a& sempre o mesmo

Quma terrina presumo euS

a espreitar-nos ora aR ora acol& agudo& urtiBo

QaNrmo ue a terrinaS

e a aastar-se de nós

Qa terrina ou um gato=S

a madrinha da minha me uma sombra igual Us outras& as

mantas sombras& os Cailes sombras& a Bo sombras& uma sombra

emergiu das sombras& tornou-se indicador ao encontrar-me& retraiu-se de imediato e de noBo no mais ue a poltrona& os Cailes para a

minha me a sacudirem uma lata de biscoitos& de sRlabas conundidas

nas migalhas& no a@Jcar

- O pimpolho cresceu tanto este ano

Quem moraBa no nosso baJ acontecia achar-me& eu minJsculo

no so

- $oS

na Biinhan@a da terrina um casti@al de piano oscilou ummomento e adeus& a minha me abria o baJ e toalhas& echaBa-o e

uma pessoa ue no gostaBa de mim reBolBendo-se na alaema a

desordenar os Bincos& os biscoitos pegaBam-se Us gengiBas

impedindo-me de respirar& eu encostado de embara@o U minha me a

pisar-me e a pisar-me

Q- $o me agradeces pimpolho=

para me sentir a mim próprio& certiNcar-me uem era& no uso

as botas do meu pai& uso sandlias

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Q- %rago cal@Fes reparemS

de crescer tanto este ano tornei-me adulto e no me apetece ser

adulto& no me conhecerem no >eato

- $o pertences ao bairro

o do baJ no suocado por biscoitos ue eu bem o entendia

atraBKs da alaema

- Auda-me

e se no perten@o aui a solu@o K dormir com as noiBas na

Photo oIal Lda ou nos armaKns do rio& perseguir numa Jria a

espuma das traineiras& alimentar os bebKs nus& de garganta para

cima& ue nascem de oBos de tule& a criada do engenheiro a eCpulsar-

me da Baranda

- Estragam-me tudo rua

e o casti@al do piano com as alhas de metal a crescerem& discos

de ópera em ue o tenor e o soprano& amparados a Bioloncelos& se

amea@aBam aos berros lan@ando um ao outro clarinetes e tubas& as

sombras interromperam-se um instante uando o Bento bisbilhotou

nas cortinas e dei com os arbustos do ardim +onstantino l ora& o

talho carneiros to despidos nos ganchos& os parentes da camilha emcercaduras oBais com

*empre 9uerido

por baiCo a decidirem de mim

- O ue lhe aemos cunhado=

- Metemo-lo no baJ=

- oubamo-lo=

acendia-se o candeeiro e eles mascarados de pessoas de dantes&

inoensiBos& aprisionados no Bidro& apagaBa-se o candeeiro e umrenesim de gabardinas

- oubamo-lo=

o papel de parede a descolar-se e sob o papel de parede um

segundo papel mais escuro& mais na trama& a descolar-se tambKm&

retirando-o Lisboa isto K uma senhora a massaar o tornoelo num

banco entre rBores& pombos& uer dier noiBos para c e para l de

mos atrs das costas& U espera enuanto as gaiBotas coscuBilhaBam

cheiros de Baante no >eato& o lbio da gua ranido ao retirar-se e

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uma rana de detritos penso ue muito usada dado ue eneites de

caraBela& mastros& barricas& as ortunas da Rndia ue no Baliam um

chaBo& no telo ue eu mais gostaBa punha-se o ueiCo no rebordo de

maneira a acertar com um pulYBer de ciclista

Qo empregado a orientar-nos

- ,m palmo para a esuerda cuidado com os pregosS

e pedalaBa-se uma bicicleta Bermelha a caminho da meta com

um dos pneus oBal U medida ue a assistVncia sem membros nem

ei@Fes& desenhada a trouCe-mouCe

Quns riscos e prontoS

aplaudia& pedalar para longe na noite em ue o primo +asimiro

e a minha me no eCistiam& eCistia o seu oelho& um pK descal@o de

rente e o primo +asimiro a respirar de costas

Qou o >eato inteiro ue ungaBa por ele& um galho de laraneira

inchando e desinchando& os trope@os do %eoS

com a graBata aos uadradinhos pendurada da nuca& os obectos

estranhos& da mesma cor& do mesmo eitio e estranhos como se no

estiBessem habituados a nós& os houBessem colocado de propósito na

sala para me magoarem& me aerem mal& a miniatura da Esttua daLiberdade& a arra& o *anto ECpedito ue preBenia

- $o olhes

e no olhes poruV& aconselhaBa

- $o compreendas

Qpedalar muito depressa na bicicleta BermelhaS

e no compreendas poruV& se lhe perguntasse

- $o compreendas poruV=

ele a teimar- $o compreendas ponto Nnal no posso dier-te

eu de nari no guiador& a assistVncia desenhada a trouCe-mouCe

a aplaudir& o empregado da Photo oIal Lda

- $inguKm te apanha pimpolho

o so ora do lugar& o tapete enrugado e o so e o tapete

- $o compreendas

ue mania& eu a aceitar

- Acabou-se a conBersa no compreendo deslarguem-me

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ou

- Acabou-se a conBersa para ue me deslarguem dado ue tudo

gritaBa apesar do silVncio e mistKrios& segredinhos& cochichos

- A tua me

- O Bosso primo

eu

- A minha me e o nosso primo o uV=

em lugar de me responderem& conBersarem comigo& soslaios de

condescendVncia& de pena& isto no unicamente a Esttua da

Liberdade e o *anto ECpedito& umas notas ue a arra prendia e as

notas

- A tua me rica Biste=

a casa inteira cheia de moBimentos& gestos

Qela sempre to uieta& alheada das marKsS

a tentar eCplicar-me alRnea por alRnea o ue eu recusaBa saber&

apetecia-me a bicicleta do telo& a minha cabe@a a acertar com o

pulYBer e nisto o oelho da minha me imóBel& mais aguado e branco

do ue se eu lhe tocaBa& o pK imóBel& no semelhante ao dela e no

entanto seu& o galho de laraneira de ue comecei a contar aslaranas na mira ue a rBore sem inchar e desinchar& tudo

regressado U normalidade de dantes

- $o preciso da bicicleta obrigado

ao passar de seis para sete laranas o primo +asimiro imóBel por

seu turno& uma pupilainha a dar por mim& espantada primeiro e

alerta depois

Qcontinuar com as laranas& noBe& de& oneS

ocando-me do BKrtice da graBata& eu empanado no doe- Após o doe=

e Baio& atirem-me o nJmero após o doe ue coisa& no

deasseis& no deanoBe& a laraneira a auCiliar-me

- %ree

e embora ouBisse

- %ree

uase a alcan@ar o

- %ree

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e a saar-me& eu

- $o consigo

 Boltar U Photo oIal Lda& declarar ao balco

- eTectindo melhor preciso da bicicleta senhor 9uerubim

desculpe

no momento em ue o cKrebro se me desimpedia e

- %ree

os meus lbios radiantes

-%ree

o pK da minha me a alargar-se no tapete& elimente o pK dela

Qnessa Kpoca conhecia-lhe melhor os pKs do ue a caraS e com o pK o

 oelho& o resto do corpo a ganhar espessura a partir do oelho& a

pupila ue altaBa ao primo +asimiro a untar-se U primeira assim de

perto to esuisitos

Qorelhas& testa& bochechas& coisas sem rela@o entre elasS

a graBata no na nuca& direita

Qa moinha a assegurar-se ue a graBata direitaS

os obectos no estranhos& nossos

Qol mesa& ol arraSum bater de solas aproCimando-se rpidas e por aar eram as

bielas de uma corBeta na margem& no o meu pai ue BoltaBa& no

me recordo só de

- %rambolhos

recordo-me de canas de pesca na maruise& de tempos a tempos

ele para a minha me

- Anda c

e o oelho& e o pK& o meu pai a respirar de costas para mimQou o >eato inteiro ue ungaBa por eleS

os obectos dierentes mas menos dierentes ue com o primo

+a-simiro& uma parte nossa e uma parte no& o empregado

sugerindo-me a bicicleta e eu a hesitar

- <amos esperar um minuto

o meu pai aastaBa-se conorme na capoeira da minha aBó em

+ondeiCa os galos se aastaBam das galinhas sacudindo a papada&

nem a miniatura da Esttua da Liberdade nem a arra

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- $o olhes

ocupadas consigo mesmas& naturais& distraRdas& o meu pai

solitrio no ponto com as canas de pesca

Qo umo do cigarro maiorRssimo ue eleS

e a minha me a liBrar-se da cali@a e da terra copiando as

rangas mal os galos chauinho& eCaminaBa-lhe a saia e nem cali@a

nem terra e sem cali@a nem terra a liBrar-se de uV& eu para a ranga

ue se limpaBa ainda

- Est a liBrar-se de uV=

o primo +asimiro um par de pupilas e a graBata direita& um galo

de +ondeiCa sacudindo a papada& eu

- Após o doe=

 Bendo bem to cil& tree& ualuer pessoa

- %ree

sem diNculdade& sem pensar

- %ree

o primo +asimiro a aBaliar o dinheiro entalado na arra e a

desistir do dinheiro aNando os esporFes& Binte e uma laranas isto K

tree mais oito& nunca mais esue@o& tree& atK hoe& se me Bem essanoite U ideia& eu

- %ree

sem me aer cócegas& me pegar ao colo

Qtenho dois anos e estou ao colo da minha me na Photo oIal

LdaS

- Ests a rir-te de uV=

o empregado a espanear o castelo& desconNando de mim

- Ests a rir-te de uV se ainda no comecei=uando no me lembro de rir& lembro-me ue sentia medo dos

gorilas e das ibóias pintadas& dos crocitos das noiBas a inBadirem a

montra adeando grinaldas& dJias de noiBas porue se calhar a

minha me e eu uma mancha de gasóleo no %eo& uma suspeita de

enguias& uem me garante ue as ebras e os euilibristas indianos

no trocaram o cenrio pelo reposteiro destinado a impedir a anela&

o empregado a sossegar-me

- $enhuma ebra no BVs=

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mas as riscas do estore no sobrado& ora brancas ora pretas&

disparaBam a galope mal o reposteiro ondulou& a tra@a inBentou um

olho no tecido e o olho a esBerdear-se do %eo arregalado para mim& o

empregado deiCou cair o reposteiro procurando enganar-me e ao

deiC-lo cair o estore encabritou-se de raiBa& o senhor 9uerubim

ciente ue a ebra permanecia na loa

- 9ual ebra pimpolho=

a minha me tentou audar-me e o empregado cruciNcou-a no

espaldar com as mos amarelas

- $o me estrague a pose madame

de relógio de pulso osorecente idVntico Us <irgens de mesa de

cabeceira ue aumentam na insónia& os ponteiros abertos perdoando&

a aurKola o cRrculo dos nJmeros& se a minha aBó desse por ele em

+on-deiCa no Bia as horas& reaBa-lhe& atK ao degolar a cria@o

continuaBa a rear& as caudas abanaBam-se eternidades contra o

aBental& as patas imóBeis& os crWnios imóBeis e as caudas

uca uca

to Beloes uanto o moinho da rega& os cabos dos holootes

 ibóias BiBas U espera ou enguias ue as noiBas cobi@aBam com obaton dos bicos& o primo +asimiro emigrou para a AmKrica e choBia&

 ulguei ue lgrimas e no lgrimas& chuBa no bigode& o perume de

 Berbena da lo@o

- ,m dia destes Bolto pimpolho

comigo a pensar Bolte se lhe der na gana e entretanto seue a

chuBa com o len@o senhor& daBa-me nerBoso a tremurainha do bei@o&

o no achar a mala& o acto de a poisar uando a achou e as

sobrancelhas Bibrando- uro ue um dia destes Bolto pimpolho

a dirigir-se no a mim& U minha me atraBKs de mim& e men@o

de me pegar ao colo& me aer cócegas& se espantar

- Ests a rir-te de uV=

buscando engolir a chuBa antes ue a chuBa no ueiCo& a minha

me no

- PoruV=

como sucedia com o meu pai& a escapar-se de um abra@o ue

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no chegou a abra@o& as mangas do primo +asimiro dan@aram um

momento& Bacilaram& desistiram& uma delas ro@ou na minha me&

gague-ante& tRmida& desceu em espiral& sem acreditar em si mesma&

para o cimento do cais

- urei ue um dia destes BoltaBa

Qe eu a amolecer de piedadeS

em ue pin@as desaeitadas de gruas só mKdio e polegar

Qa pin@a do a@ucareiro da madrinha da minha me assimS

erguendo no torrFes& suidade& Bapores& uma carro@a da Kpoca

das naus esuecida num telheiro& ustamente a ue transportaBa os

condenados U orca em >elKm& o poBo de Portugal& coitado& a sonhar

;oas& >rasis& a minha me com Bontade de Boltar para casa seguindo

as gaiBotas e a propósito de gaiBotas o Bestido de noiBa dela no baJ

sob ronhas& len@óis& deseando libertar-se de tanto aroma antigo&

tanta recorda@o

Qla@os& Ntas& BioletasS

a suplicar

- Pimpolho

eu sem or@a de abrir o baJ e Baler-lhe- A chaBe do baJ meinha ue o seu Bestido pediu-me

a minha me arrependida do oelho& do pK& a seguir as gaiBotas&

a@a-me cócegas se o aliBia primo +asimiro& no me importo&

consinto& corria o bigode& tire essa gota com o punho da camisa

 B

pergunte de ue me estou a rir& no choBa& se ao menos a minha

me uma simpatia& uma mostra de interesse& por eCemplo

- PoruV=um eitinho me tenha paciVncia& no comece a leBar-me& repare

nele Nngindo ue me a cócegas a assobiar num murmJrio

- Ests a rir-te de uV=

a pegar Nnalmente na mala no modo como me pegaBa ao colo e

eu pesado& eu grande& ainda magro mas grande& eu isto& as borbulhas

do acne& a Bo ue alha o degrau dos graBes e me atrai@oa ao

desliar num agudo& os meus tra@os incompletos e o casti@al do piano

a concordar

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- %u isto pimpolho

deiCei de sentir o perume de Berbena e Bi-o no portaló

esticando e encolhendo os dedos num Jltimo belisco& os lbios

impossRBeis de entender deriBado Us caldeiras dos barcos& ignoro se

- Ests a rir-te de uV=

se

Qa calcular pelo emcolher de ombrosS

- %u isto=

em chegando ao >eato me no uer pYr o Beuinho& a grinalda&

esBoa@ar ponto ora na Wnsia ue o meu pai com o cigarro e as

canas de pesca& BocV deseosa de uma rao

- PoruV=

o primo +asimiro nunca escreBeu da AmKrica a censur-la

- %rambolho

no eCistia seuer& nunca eCistiu pois no me& oerecia-lhe

pacotes de broas& oBos de chocolate sem bebKs de goela aberta

trepidando de ome a romperem a casca& ele a matar uma on@a num

telo desbotado e a minha me& sem pegar no retrato& a obserBar o

meu pai ue descia as escadas& ue no Bai ordenar- Anda c

consoante no me apertaBa o guardanapo ao pesco@o nem se

ralaBa comigo& BocV nenhum aceno para a Bigia do pauete

meinha& o retrato do primo +asimiro na gaBeta da lista dos

teleones do ano passado& do martelo ue se uebrou& das lWmpadas

undidas

- Hei-de atirar ora estas tretas

entregue-o ao senhor 9uerubim orgulhoso da sua- >ela obra no acham=

prendendo-o com um polegar ue os cidos roeram& a assinatura

Photo oIal Lda caprichada& em releBo& o perume de Berbena do

primo +asimiro permanecia em AlcWntara entre a suidade& os

 Bapores& se ao menos pacotes de broas& trotes na escada aos

domingos& o bigode eli

- Ora BiBa

o dedo da madrinha da minha me a emergir comoBido das

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sombras

- O +asimiro K assim

e a terrina

Qou o gato=S

de acordo com ela& se a beiaBa U despedida um gostoinho

poeirento de sóto& daui a nada a cercadura oBal e o

*empre 9uerido

por baiCo& em lugar da poltrona a camilha unto aos outros

Nnados& no diga

- O pimpolho cresceu tanto este ano

madrinha& diga

- O ue lhe aemos cunhado=

- Metemo-lo num saco=

- oubamo-lo=

se o candeeiro aceso BocV Cailes& rugas aTitas a piscarem na lu&

uma pagela em ue o rei de uniorme& uase nada portanto& se o

candeeiro apagado o escuro a preguear-se de tosse ue se

despenhaBa em mim enuanto o casti@al do piano TameaBa ternuras

- Pimpolhoo rei no se compreendia onde deriBado ao pigarro modiNcar a

posi@o dos obectos& deu-me ideia ue o perume de Berbena

connosco e o primo +asimiro a surgir da terrina

- +ucu

para a minha me enadada& o segundo andar do ardim

+onstantino cubRculos e cubRculos nas treBas& o haloito plido do

ue seria a coinha& uma torneira algures

Qmais perto& mais distanteSsem se NCar nunca& escutaBa-se uma gota e NcaBa-se em pulgas&

contando os segundos a suplicar a próCima& a próCima

plac

mais espessa ue um Ngo esmagado descendo de origens

inimaginBeis muito acima do tecto& ganhando Bolume enuanto a

gota seguinte& lentRssima& principiaBa a ormar-se& o dedo da

madrinha da minha me BagueaBa perdido designando sombras

- A Bista alha percebes=

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a proteger-se com elas amontoando-as sobre os Cailes e as

mantas

- +resceu tanto este ano o pimpolho

 A enBaidecer a minha me

- 9uase da altura do casti@al reparaste=

mais alto ue o casti@al& o casti@al em baiCo ou ento com o

girar dos meses os móBeis sumindo-se deBagar no soalho& uma

muina de costura ao undo passaando o silVncio num

compartimento de arrumos

Quma despensa& uma copa=S

o som da muina uase pegado a nós apesar da distWncia&

monótono& nRtido& alinhaBando a terrina

Qo gato=S

e a uni-los U gente& a madrinha da minha me a anunciar

- A minha Nlha coitada

to ugidia& to nerBosa

Q- 9uase nem Bai U rua sabias=S

no instante em ue outra gota e portanto alinhaBem a torneira

igualmente& a Nlha com o seu guarda-chuBa e a sua malita usada noreceio ue a mandasse embora porue desde a morte da madrinha

da minha me eu o responsBel& o tutor& eu o dono& a mandasse

embora a ela ue no morou seno nesta casa em sessenta ou

setenta anos de Lisboa

Quase setenta& sessenta e oito anos de LisboaS

e em sessenta e oito anos de Lisboa se manteBe no a costureira

em ue se tornou depois mas a camponesa de um lugareo a one

uilómetros de Arganil ue no deiCou de ser& Bestida como umacaricatura das senhoras da cidade para as uais trabalhaBa

Qse K ue persistiam senhoras na cidade ue lhe dessem

trabalhoS

a roupa de luto proBaBelmente oerecida

Qia apostar ue oerecidaS

e no bem negra& cinenta ou outrora negra e ue o tempo

acinentou& por ter acinentado lha oereceram

- %oma

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e U ual substituiu os botFes de madrepKrola ue altaBam por

botFes de massa& o brocheinho em orma de cora@o ue lhe

cerraBa a gola

QtalBe presente em estampas remotas e ue ninguKm tra hoe

em diaS

uma caricatura das senhoras da cidade no cabelo diBidido ao

meio& nos modos

Qademanes delicados de Ngurinha de consola ue se topaBam

nos balcFes de penhores moldando o ar Baio com palmaitas de

loi@aS

a Nlha ue a madrinha da minha me eCpulsou para o

compartimento de arrumos com um postigo de trinco soldado pelo

óCido e pelo pWnico dos gatunos

Q- $em sonhas a uantidade de ladrFes nesta terra pimpolhoS

a ue altaBam rBores& telhados& somente Bidros suos

um Jnico Bidro suo e após o Bidro suo uma ausVncia sua

tambKm em ue alguns melros suos em setembro iluminando uma

cama

Qo empregado da Photo oIal Lda- $o meCeriues na NchaS

uma espKcie de cama& Bamos dier um colcho numas tbuas& a

roupa oerecida pelas senhoras da cidade num armarioito sem

porta& eu o responsBel& o tutor& eu o dono a pensar

- $o deBia ter entrado aui

a pensar

- Pe@o-lhe desculpa por ter entrado aui=

a decidir- $o lhe pe@o desculpa por ter entrado aui Bou Bender esta

casa

e ao decidir

- <ou Bender esta casa

a assistir-me a inormar a Nlha

- AtK ao Nm do mVs tem de sair de c

ela de pK U minha rente com o seu guarda-chuBa

Q- *eue a chuBa do bigode primo +asimiroS

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e a sua malita usada& no surpreendida& no uriosa& uando

muito tocando no broche a tentar adiBinhar uanto dariam por ele no

ouriBes& ciente ue nem uma nota& moedas& repetindo no interior do

seu espanto

 - +inco ou seis moedas meu "eus

ela uase sem clientes eCcepto as ue mantinham por esmola

- Ao Nm de tanto tempo a pobre

concordando comigo& respondendo ue sim& submetendo-se

porue o notrio na semana anterior& preocupado com um dente ue

se entendia pelo moBimento da lRngua no interior da bochecha& o

uniBerso de repente parado aBaliando a gengiBa& substituiu a lRngua

pela caneta& solicitou

- ,m momento

para a bater no siso de palma adiante da boca

- ,m segundo andar no ardim +onstantino a@a o aBor de

assinar nesta linha

enuanto a lRngua regressaBa ao trabalho& a caneta se achataBa

numa cru a lpis

- Auie a bochecha diminuRa no meio de cadernos e pastas

semelhantes na teCtura e na cor ao papel de parede sobre papel de

parede da madrinha da minha me& o escritório do notrio uma

diBiso de poltronas e sombras em ue

Qera eBidenteS

uma muina de costura

Qou de escreBer=S

numa despensa ou numa copa com um postigo de trinco soldadopelo óCido e pelo pWnico dos gatunos a ue altaBam rBores&

telhados& somente Bidros suos

um Jnico Bidro suo uma ausVncia sua igualmente onde alguns

melros suos em setembro se K ue setembro& se K ue melros

- ,m segundo andar no ardim +onstantino a@a o aBor de

assinar nesta linha

a comproBar o nome ue escreBi no papel semelhante

Qna teCtura& na corS

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ao papel de parede sobre papel de parede da madrinha da

minha me

- Assinou=

ao mesmo tempo ue a muina de costura ou de escreBer

come@aBa a uncionar& se percebia ue ualuer coisa mudara pela

inuieta@o dos pssaros& a Nlha interrompia a bainha& NtaBa-me e

um brilho de terrina nos olhos dela

Qde terrina ou um gato=S

o empregado unto ao telo da bicicleta

- $o te meCas nem um milRmetro agora

a Nlha um desses rangos ou galinhas ou patos ou noiBas ue a

minha aBó em +ondeiCa aogaBa nas pernas& saias

Qou caudas=S

contra o aBental enuanto o perume de Berbena do primo +asi-

miro desaparecia de AlcWntara e eu deiCaBa de o sentir& ao colo da

minha me na Photo oIal Lda& eu dissolBido no postigo em ue nem

uma rBore& um telhado& somente Bidros suos& um Jnico Bidro suo

no ual nenhum mindinho

- O pimpolho cresceu tanto este anoescreBeria o meu nome.

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SEGUNDA FOTOGRAFIA 

O primo +asimiro teimaBa ue no matou uma on@a no retrato

ue oereceu U minha me: na opinio dele tinha ca@ado um leo e

desaNaBa ualuer pessoa a garantir ue no se trataBa de um leo

 Berdadeiro mas de um bicho pintado de cenrio de otógrao&

desaNaBa ualuer pessoa a sugerir por maldade

- A proBa ue K pintado est em ue nem seuer Neram as

ebras como deBe ser

uando as ebras pereitas

QtrVs ebras& uma grande e duas peuenasS

a galoparem com mais patas do ue se esperaBa

Qa ebra grande seisS

no capim desbotado& proibia a conBersa ue uma rasgadura naebra grande Bisto ue se notaBa logo

Qpara uem entende de animaisS

no passar de uma listra no lombo& angaBa-se com o primeiro

ue aNrmasse ue só a cabe@a dele autVntica no acertando com o

chapKu nem com o corpo& sobraBa-lhe buraco U Bolta& o segundo

eCplorador

Qo audante do primo +asimiro

- O meu audante um rapa coraoso um heróiSnem cabe@a possuRa& o buraco apenas e uma das mos o

desenho de trVs dedos em lugar de cinco& argumentos ue apenas

mostraBam desconhecimento de 3rica& lugar ue deBora sem

piedade os brancos por intermKdio de mosuitos& gua choca e a

intolerWncia das hienas& a minha me habituada ao %eo e a uem

estas no@Fes altaBam designaBa-lhe uma ibóia na pelRcula

- O senhor 9uerubim enNou enguias aR=

e esuecia a otograNa na bancada da coinha& sentRamos as

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gaiBotas na Baranda do engenheiro aguardando a marK& algumas&

mais distantes& no >airro da Madre de "eus ou na +al@ada do ;rilo&

diia-se ue deiCaBam os oBos nas palmeiras do Ateneu e mentira& os

oBos nas rachaduras da muralha de orma ue U noite& uando o

primo +asimiro se despedia da gente& guinchoinhos de crian@a

uase a subirem da gua e as Vmeas num rebuli@o de asas

protegendo-os dos ratos em ue o lodo se transorma no escuro& eu

guinchoinhos tambKm se me pegaBa ao colo& mesmo antes das

cócegas

Qguinchoinhos achaBa ele& eu nem um guincho& mudoS

e o primo +asimiro a Nngir-se espantado

- Ests a rir-te de uV=

a minha me nenhum rebuli@o de asas& nenhuma curiosidade

por nós& a enchente cobria deBagar a margem& mais próCima da

porta a cada aBan@o& o primo +asimiro a suspeitar

o primo +asimiro com a certea ue a minha me a pensar no

meu pai& o som da gua apagaBa o dos legumes nas hortas& haBia

ocasiFes em ue se me aNguraBa ue uma pessoa

Qum de nósSa chorar& atentaBa-se melhor e aNnal o Bento no casco do

petroleiro& ninguKm& um gato ao comprido do muro& as patas

mindinhos cautelosos& arredondados de sono& uma andorinha do mar

demorou-se no parapeito da maruise olhando para dentro& emitiu

uma palaBra ue no nos diia respeito

Qno um gemido& uma palaBra inteiraS

e eBaporou-se a desprear-nos na direc@o dos cani@os enuanto

a minha me& de cara numa gota coaguladaQuma gota a balbuciar silVnciosS

continuaBa

Qna impresso do primo +asimiro e pode ser& sei lS

a lembrar-se do meu pai& mal lhe perguntou

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

as sobrancelhas uase uma sobre a outra a Ntarem-no& o resto

das ei@Fes longe do primo +asimiro& surdas& ele conBencido ue as

sobrancelhas o detestaBam procurou a garraa no aparador& ao pois-

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la no naperon as sobrancelhas no lugar

Qum par de cardosS

e a minha me a raspar com a unha uma nódoa da blusa

detestaBa-o menos& o primo +asimiro no percebia se a unha raspaBa

a nódoa ou o raspaBa a ele

QraspaBa-o a eleS

as sombras reugiaBam-se nos uintais com o inRcio do escuro

apagando os galhos da laraneira embora os rutos permanecessem

na lu& sete da tarde nos ramos e meio-dia nos rutos& mesmo com os

candeeiros acesos um resto de sol ia tremendo neles e continuou a

tremer l em baiCo U medida ue a minha me desdobraBa a toalha&

o primo +asimiro& para se aer perdoar& audaBa com os talheres e

eu a mir-la& a mir-lo& a ter medo do ue no Bou conessar e

contando as laranas a apontar-lhes o garo& chegaBa ao doe e

interrompia-me porue a partir do doe um desespero& uma agonia& o

garo suspenso se por acaso daBa com as canas de pesca do meu pai

contra a parede do ogo onde uma moldura de noiBa& igual Us da

Photo oIal Lda& se recusaBa a desBanecer& de bra@o dado com o

meu pai ue partiu h de anos no comboio dos emigrantes de Parise nem uma carta& um postal& o Biinho declarou ue o meu pai a

sacudir-nos nas escadas

- %rambolhos

no as escadas para o %eo& as das traseiras& sem corrimo& de

ue só percebRamos os primeiros degraus e logo após diluRdas no

beco para alKm do ual uintaiinhos& oliBeiras& o lugar onde o

criaram& primo +asimiro& a ruRna da sinagoga lembra-se ou sea um

arco e uns calhaus& o meu pai sem se despedir& numa Boita ma@ada-%rambolhos

e o chapKu a aastar-se no beco& no o casaco ue no se

distinguia o casaco nem a bagagem& a larana do chapKu num galho

inBisRBel na direc@o do elKctrico e da insRgnia da pastelaria& o

 Biinho relatou ao primo +asimiro ue a minha me de cabelo por

alinhar repetindo a meio da escada

- PoruV=

 Bestida de noiBa no caiCilho da parede& unto Us canas de pesca&

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embrulhada em cetins ue lhe atenuaBam o espanto no

mencionando eu

Qo pimpolhoS

a somar rutos& a esbarrar no doe& a tentar ultrapassar o doe

regressando ao princRpio de larana em larana& sete& oito& noBe& de&

a enerBar-me

- E agora=

danado comigo na certea ue se chegasse ao tree o meu pai

no >eato& na nossa casa ou a umar no ponto cercado de crocitos&

bicos& patas e tudo normal& tudo bem& o *anto ECpedito& a Esttua da

Liberdade& a arra de ue o primo +asimiro mudaBa as Tores com o

meu pai a Bigi-lo e eu a Bigi-los a ambos& substituRa a gua&

aparaBa caules& daBa um retoue Us olhas e os móBeis da sala menos

riscados& mais caros& ao passo ue se o aia depois da recorda@o do

- %rambolhos

e do chapKu no beco dJias de riscos no Berni e o pre@o dos

móBeis o mesmo ou sea continuaBa a pegar em mim& a Nngir ue se

admiraBa

- Ests a rir-te de uV=embora nenhum de nós com calma suNciente para acreditar&

nesse ogo& desiteressados& amargos& a minha me traia a terrina

com o

- PoruV=

sempre presente a empalidecer-nos a alma& de Be em uando

um chuBisco ou o relógio da igrea do >eato a anunciar uartos de

hora& o teleone da inBlida da caBe a batalhar com o silVncio& a ser

 Bencido por ele& a calar-se& a gente igualmente calados num uartode hora sem Nm& eu de boca cheia pegando na lapela do primo

+asimiro a anunciar

%ree

e por mais ue anunciasse

- %ree

e espreitasse da cortina outras pessoas na rua& nunca o chapKu

e a bagagem& outras canas de pesca& ainda ue o primo +asimiro se

ocupasse da garraa no aparador percebia a minha me a Bigiar o

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ponto como eu& manchas no rio se calhar algas ou decalues de

nuBens& a igrea& gra@as a "eus& decidia-se por um uarto de hora

alheado& a garraa chamaBa o primo +asimiro e para contrariar a

garraa era ele uem leBantaBa os pratos a obserBar o arco da

sinagoga e o Wngulo de parede ue os calhaus ormaBam& recordaBa-

se de oliBeiras mais antigas ue estas e de haBer encontrado uma

corua no oriRcio de um tronco de eCpresso aumentada por óculos

de ue se no Biam as lentes e uma espKcie de orelhas com pVlos

alerta para si& ao entrar na sala esregando as mos nas cal@as

Qe detergente& gorduraS

 ulgou entrar numa sala dierente& muito tempo antes& em ue a

tia penduraBa tran@as de cebolas em ganchos& um senhor impreciso&

de corrente de a@o no colete

o aBY=

QrecordaBa-se das mos& no se recordaBa dos tra@osS

comia uBas num tripK& a lRngua da cadela spera e dura uando

lhe lambia as palmas& ao entrar na sala por causa da garraa no

aparador

Qo teleone da inBlida uma baorada de angaSeu de imediato

- %ree

a encostar-me U minha me protegendo-a& uma traineira Binda

de Alhandra assanhaBa as gaiBotas e o ponto deserto& a muralha

deserta& o petroleiro persa sem nenhum albatro na chaminK& o aBY a

estender--lhe as uBas do seu canto ou sea bagos minJsculos& o cacho

depenado

- $o h maneira de ganhares corpo +asimirouma delas& acabadinha de nascer& um ponto Berde e eu

- %ree

a deender a minha me como se o

- %ree

a salBasse no entendia de uV& isto K pela maneira de me

colocar entre eles a desBi-la do primo +asimiro ue desde a ida do

meu pai nos pagaBa o aluguer e entalaBa notas na arra& diga ao seu

aBY ue ganhou one uilos de corpo ainda ue no pare@a& obrigue-

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o a reparar nas marcas da NBela no cinto& o primo +asimiro no se

dando conta ue o aBY alecido l atrs no passado& enBenenaram a

cadela uando BocV e oito anos& encontraram-na deitada de banda

nos tomateiros a transpirar cansadRssima& a sua tia chamou-a e

reconheceu-Bos sem se leBantar& a cauda bateu uma ou duas

pancadas nos apoios do eio& escutaBa-se o comboio pela Binha do

rancVs e o primo +asimiro

- O bicho Bai morrer no Bai=

no acreditando ue alguKm& nem mesmo um bicho& morresse

em agosto com a serra de Arga aul& borboletas sobre as couBes e o

moinho parado& no teleonaram ao Beterinrio& no aBisaram a sua

aBó& esperaram ue a cauda batesse de noBo e a Jnica coisa ue

sucedeu oi um peda@o de mandRbula crescer entre os bei@os& a pele

das costelas retraRa-se e dilataBa-se sem um ritmo certo& uma

borboleta Berde

uma borboleta roCa entre borboletas brancas distraiu-o da

cadela e cambaleou na Beda@o& a sua tia picou o animal com uma

 Barinha

Qh ocasiFes em ue nos deBRamos picar com uma Barinha noK=S

e a Barinha& embora no lhe tocasse& contra o seu umbigo

tambKm& eu obrigando-o a galgar lustros ao rodear a minha me com

o bra@o

- %ree

as borboletas cruaBam-lhe a memória e perdeu-as conorme

perdeu a serra de Arga e o moinho.

QaltaBam uatro ps no moinhoSperdeu a cadela& a tia

QdeBia picar-se com a Barinha mais BeesS

a serra de Arga ue a ausVncia do aBY apagaBa& BocV com a

garraa do aparador na mo e a suspeita ue em ualuer ponto da

sala onde o candeeiro no chegaBa o meu pai a reparar-lhe nos

gestos na indieren@a com ue reparaBa nas canas de pesca&

empoleirado num rolo de cordas a umar& deBolBer a garraa ao

aparador com o gosto das uBas na boca& no uBas adultas& cor-de-

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rosa& cidas

Qual uatro& altaBam cinco ps no moinho& BocV a descobrir

ue altaBam cinco ps no moinhoS

e o rolo de cordas do meu pai deserto& o casco do petroleiro

adornando com a marK num som de erros doridos& escapei ao tentar

pegar-me ao colo& apertar-me a barriga& Nngir ue se admiraBa

- Ests a rir-te de uV=

e eu

Qou o meu pai& eu o meu paiS

a abra@ar a cintura da minha me Bigiando-o

- %ree

apesar de nos pagar o aluguer& nos entalar notas na arra& a sua

cauda bateu uma ou duas pancadas no cho& um peda@o de

mandRbula cresceu entre os bei@os

Qao outro dia moscas& moscasS

as sobrancelhas da minha me uase uma sobre a outra a

Ntarem--no numa eCpresso de corua aumentada por óculos de ue

se no Biam as lentes& no retrato do casamento no na sua

companhia porue& uem lhe muda a gua das Tores& lhe leBanta amesa& se atormenta por ela& a sua tia para o bicho& ao dar K da

mandRbula

- Ests a rir-te de uV=

a pegar-lhe no cacha@o no angada& um sentimento dierente

- Ests a rir-te de uV=

enBenena-se uma bola de carne& uma bolacha& a tigela de arro&

deiCa-se ue o animal as coma e indignamo-nos depois

- Ests a rir-te de uV=aNgurou-se-lhe ue a tia choraBa no lagar& se BocV soubesse de

Lisboa nessa altura um petroleiro persa adornaBa com a marK tal

como& depois de eu me deitar e BocV soinho com a minha me o seu

corpo erros doridos& desistir da garraa

Qa cadela castanha com uma malha cinenta& na Kpoca

imaginaBa-a grande e hoe reconhecia ue no grande& uma cadela

mKdia

menos ue mKdia& uma cadela insigniNcante& acabou-seS

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 Bia-se a colcha da cama uase sempre por compor no

compartimento Biinho& o colar ue a minha me costumaBa usar na

Kpoca do meu pai e depois do comboio no puCador da cómoda& o

colar para BocV& com o seu echo oCidado

- $o sou autVntico pois no=

laranas nRtidas no galho aBermelhando o silVncio& o primo

+asimiro leBantou-se para se ir embora

Qou a marK leBantou o soalhoS

decidiu

- <ou-me embora

ao dar com o retrato da noiBa na parede& demorou

- <ou-me embora=

lembrou-se ue era altura de pagar a renda e sentou-se de noBo

planeando como tirar o dinheiro da carteira de modo ue a minha

me pudesse simular no Ber& oi separando notas tentando

perceber--lhes o Balor pela espessura& o tamanho e a enganar-se na

uantia receoso ue eu acordado& U escuta& pronto a abra@ar a minha

me e a recus-lo

- %reeU medida ue alanges a mais diNcultando a escolha

Qonde arranou tantas alanges=S

a mo ue no procuraBa na algibeira pereita& a mo ue BocV

no Bia uma dJia de tentculos independentes de si& eCtraRa-a do

casaco para BeriNcar o caso e ora do casaco igual U outra isto K

cinco dedos tambKm incluindo a Berruga ue o enermeiro ueimou&

apoiou-a no ombro da minha me o ombro logo duro& no a aceit-lo

nem a recus-lo& uieto& a perna a escapar-se sem mudar de sRtio& otronco a recuar permanecendo imóBel& um boto ue se negaBa&

cedia e apesar de ceder continuaBa echado& era a pele do retrato

ue lhe apetecia tocar& no a da minha me& a grinalda& o Bestido

branco& as Tores em lugar da blusa de Cadre do meu pai demasiado

grande na ralda& da toalha nos rins a serBir de aBental& a suspeita

ue a blusa o BigiaBa num rolo de cordas com as gaiBotas em cima&

uma alcoa e duas canas de pesca arrumadas contra a parede nesta

casa ue apenas eCistia uando a chuBa a obrigaBa a conessar

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-Estou aui

e logo o algero& as anelas& o som de arca da laraneira ue se

dobraBa no Bento

Qou eu no meu sono

- %reeS

o rio a cauda de uma cadela ue os ciganos enBenenaram a

bater na muralha& a tia para o bicho

- Ento=

os caules dos melFes de repente to negros& as Binte alanges da

mo direita conBergiram por Nm a entalar o dinheiro na arra e a

minha me U espera no so sem ser BocV ue esperaBa& esperaBa o

chapKu no beco a uem ela

- PoruV=

e um cigarro a abandon-la& esperaBa a surpresa do cigarro de

 Bolta& o chapKu no cabide ordenando

- Anda c

e eu no aTito& no

- %ree

no a rodear ninguKm com o bra@o& calado enuanto a chuBatornaBa os caiCilhos presentes& a anela para nós com receio ue no

acreditssemos no ue nos garantia

- *ou uma anela no BVem=

o tecto ue mudaBa consoante os passos de cima e a localia@o

dos pingos& no grande& diminuto& ora do tamanho de uma pantua

ora do tamanho de uma gota& por Bees uma moeda ou um pires ue

rodaBa a direito e a seguir em cRrculos demorando a achatar-se

- *ou o tecto pareie o tempo& atK ento desatento& recome@aBa com demasiada

pressa enBergonhado de se distrair nos uartos de hora da igrea& ao

separar-se da minha me os olhos dela abertos para l do primo

+asimiro num tempo a ue BocV no tinha acesso senhor& Esmori

por eCemplo onde os pardais& da cor das pedras& se misturaBam com

elas ao ponto de no se destrin@ar uem pulaBa na rua& olhos ue

no o conheciam

nunca o tinham conhecido

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Q- $unca te conhecemos palaBraS

a despedirem-se de si no pauete em AlcWntara& esses apitos dos

naBios ue arranham por dentro& essa gente

Qesses pardais ue borbulhamS

e ninguKm de chapKu no meio deles& tudo muito peueno& muito

ampliado& muito peueno de noBo& motores ue lhe lembraBam a

casa da cunhada da sua tia no ardim +onstantino com a muina de

costura pie pie ao undo& um piano adensando sombras

Qum dos casti@ais uebradoS

ue no tocaBa& a eneitar& a cunhada para a Nlha

Qa muina de costura imóBel& um Bultoito entre portasS

- O +asimiro K assim

o Bultoito eBaporou-se das portas e a muina de costura a

suturar-lhe a alegria

- O +asimiro K assim

unindo-a a uma bainha& uma ronha& escutaBa a cunhada da sua

tia mastigando de palma sob o ueiCo a amparar as migalhas

QBocV a imaginar ue ela indicador apenas e aNnal a palma

inteira a amparar as migalhasSao engolir o Caile desliaBa dos ombros e subia outra Be&

proibia-o de abrir a cortina

- Os meus olhos percebes=

o casti@al ia e Binha no escuro de modo ue a casa inteira

respiraBa atraBKs dele& isto K a camilha& as otograNas& uma segunda

pagela do rei com uma espingarda e um bonK de almirante diante de

um telo ue no representaBa osse o ue osse salBo racturas&

manchas& uma legenda impossRBel de ler& no*empre 9uerido

outra rase mas ual& no uarto da Nlha

Qno bem uarto& um compartimento de arrumosS

o postigo Baio sem telhado nem rBores& talBe melros em

setembro numa dessas nuBens com ue o Bero ao crepJsculo Bai

desmontando o calor& Us uintas-eiras a Nlha entregaBa a roupa Us

clientes e a mude da muina de costura aproCimaBa os obectos&

tudo melancólico& puRdo& a terrina a imitar chinesices& o tapete

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desproBido de ranas& o primo +asimiro sem cumprimentar ninguKm

nos retratos

Quma rapariga de tran@as& um grupo de padres& um caBalheiro

de gabardinaS

consoante no o cumprimentariam a ele se desembarcasse da

 AmKrica& AlcWntara mudada& o >eato mudado& o petroleiro ue as

marKs arrastaBam pe@a a pe@a

Qo casco& os camarotes& os depósitos ocosS

na direc@o da o& pode ser ue as gaiBotas idVnticas e as

andorinhas do mar girando sobre erBitas de pWntano tal como se

 Boltasse U serra de Arga um deserto de pinheiros e calhaus ue no

resistiam ao Bento& o ue porBentura sobrasse da Binha ou da casa

Quma empena& uns auleosS

 unto aos tomateiros secos& o primo +asimiro a apostar ue o

aBY& de colete& a erguer o cacho de uBas

- $o h maneira de ganhares corpo +asimiro

pode ser ue desembarcando da AmKrica as gaiBotas e as

andorinhas do mar mas proBaBelmente as gaiBotas

Qse K ue gaiBotas aindaSmais acima& em +abo uiBo& e as andorinhas do mar na %raaria

ou AlgKs& nenhum pimpolho para uem BocV& admirado

- Ests a rir-te de uV=

o primo +asimiro ulgando ue uma muina de costura apenas&

onde no podia BV-la& a persistir no escuro& eCcepto Us uintas-eiras

uando o segundo andar do ardim +onstantino desabitado& a Nlha a

entregar a roupa as clientes e eu

no eu& um homem ue no se lembraBa dele sentado napoltrona da sala sem se atreBer a moBer-se apesar de agora o

responsBel& o tutor& o dono& obserBando as silhuetas da minha me&

do meu pai& encontrando a otograNa ue o primo +asimiro oereceu

QPhoto oIal Lda a letras caprichadas& em releBoS

com BocV a matar no uma on@a& um leo e desaNando ualuer

pessoa

Q- *ea uem or pimpolhoS

a dier-lhe na cara ue no se trataBa de uma on@a

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ue no se trataBa de um leo de cenrio

Q- A proBa ue K um cenrio est em ue no desenharam as

ebras como deBe serS

trVs ebras& duas grandes e uma peuena ou uma grande e duas

peuenas

QcompreensRBel ue passados tantos anos no se recorde primo

+asimiroS

a galoparem na saBana atK ao Nm da imagem e ue no lhe

 Biessem com a conBersa de uma rasgadura nas ebras grandes

Qna ebra grandeS

remendada por trs com adesiBo e cola

Qo senhor 9uerubim a remendar por trs com adesiBo e cola

- $inguKm d K +asimiroS

porue se entende logo para os ue entendem de animais ue

nem adesiBo nem cola& uma listra do lombo

Qas ebras so assimS

a otograNa ue a minha me no Biu& deiCou na bancada da

coinha sueita a espirros de molho com os seus macacos e os seus

gorilas autVnticos& o audante do primo +asimiro sem cabe@a apreBenir de bra@o ao alto& medroso

- $o se chegue demasiado patro

ele do outro lado do cenrio onde mais telFes& mais cabos& em

cima de um caiCote a Nm de alcan@ar o buraco enuanto o senhor

9uerubim BeriNcaBa o conserto da ebra

- $o me digas ue no parece BiBa +asimira

o rio a tingir a muralha de limos& deBagarinho& l ora& o leo

Qa on@aSo leo

QB lS

arremelgado por um oco assustaBa-o& se BocV tentasse correr as

suas pernas pintadas& ue amoleciam num tronco& no se moBiam

apesar de uma ibóia a aproCimar-se gulosa& no caso de pedir

QK um suporS

U minha me

- LiBra-me desta

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- >ssss bsss

e mal eles se chegaBam perseguia-os com um pau

- "etesto-Bos

 BocV um retrato entre tantos retratos no segundo andar do

 ardim +onstantino primo +asimiro& BocV ento

*empre 9uerido

 BocV noBo percebe& seue o bigode& no chore& de ue serBe

chorar& descanse ue no alo mais de si& adeus& se calhar estas

marcas de polegares& estas nódoas nas pelRculas so a gente a uerer

dier e no pode& BocV tentando despedir-se da minha me e incapa

de abra@-la& pegar na bagagem

- $o consigo tocar-te

poisar a bagagem a pedir sem palaBras

- "eiCa-me tocar-te

a minha me a aastar-se de si ainda ue parada& igualmente

sem palaBras

- $o

de modo ue BocV a pegar na bagagem e to pesado tudo& haBia

noitesQno sabe eCplicar bem no K=S

em ue ao Boltar do >eato o traBesseiro& palaBra de honra& uma

lgrima enorme& a cunhada da sua tia& alarmada

- $o ganhaste corpo +asimiro=

no se lhe percebiam os olhos nem o nari nem a boca&

percebia-se o indicador a preocupar-se consigo& comparando-o com o

rei

- $o ganhaste corpo +asimiroo rei de espingarda tambKm a olhar para acol porue a manga

do senhor 9uerubim autoritria& Nrme

- Para acol maestade

e a maestade a obedecer ue remKdio& perguntando pelo

caminho da boca

- X desta maneira ue pretende caro amigo 9uerubim=

com a ideia no sauinho de restos de polBo e nos insultos aos

gatos& o senhor 9uerubim a esconder-lhe uma prega& a corrigir-lhe a

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calBRcie

- Essas costas para trs essa barriga encolhida aprume-se

maestade

se houBesse um cacho de uBas por ali aceitaBa& o inBerno em

 AlcWntara e a minha me a arredar-se mais depressa ue Lisboa do

pauete& no escreBeu

Qpara uV escreBer=S

garantiu

- uro ue um dia Bolto pimpolho

e a mala uma lgrima& no BocV& nenhuma chuBa no bigode& a

recorda@o do senhor 9uerubim perseguindo os gatos com um pau a

ordenar-lhe das lentes

- Mostra ue no tens medo sorri

 BocV em cima do caiCote com receio ue uma ripa se uebrasse&

de cabe@a no buraco do telo notando as ebras& as ibóias& um

hipopótamo ue se lhe aNguraBa um sapo& BocV cego pelas lues a

aBan@ar o pesco@o& a dar com o leo

Qconsinto ue leoS

a assustar-se e apesar de assustado a encarar um colete ue lheacenaBa do escuro& proBaBelmente baloi@ando um cacho de uBas

depenado de ue sobraBam bagoitos cor-de-rosa& pontinhos cidos&

 Berdes& BocV para o otógrao

- Assim=

o otógrao contente

- $o perdes com o rei +asimiro

U medida ue as gaiBotas l ora& untando-se U entrada da loa&

comiam o seu nome e ao comerem o seu nome o ue restaBa de si&procurar um homem de corrente de a@o nos telFes do >eato& ach-lo

na latada a emendar suportes

- $o tenho nome aBY

o seu aBY ue no sabia escreBer e portanto no daBa pela alta

das letras ue as gaiBotas leBaram& uma consoante& um arabesco de

 Bogal

- O teu nome o uV=

costumaBa sentar-se no degrau a limpar a testa num pano e

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nisto Beio a carreta dos unerais e pronto& Ncaram uns baguitos secos

onde o seu aBY esteBe& um BestRgio de sola& BocV para o BestRgio de

sola

- ABY

se a sua tia no degrau indignaBa-se& agarraBa-lhe a saia

- X o meu aBY no pise

a sua tia a erguer o tornoelo e somente terra em baiCo

- $o piso o uV palerma=

a perdigueira areaBa a sola& demoraBa-se um instante& ia U

 Bidinha a trote conBocada por um cheiro

Qde codornies& de lebres& de raposas=S

ue a mudan@a do Bento traia& uando a minha me Beio de

%omar para o Minho BocV a BV-la correr

Qnunca correu para siS

aceitaBa ameiCas& ma@s& no agradecia

- Obrigada

o primo +asimironpartia-lhe as noes com o martelo& no

calculaBa o golpe ou ento gostaBa dela porue esmagaBa tudo&

casca& miolo& a casa da sua tia a trVs ainhagas da nossa& uer diera da sua tia unto U Baranda do engenheiro onde as gaiBotas

dormiam& o %eo entraBa-lhe no sono e aogaBa o seu aBY& BocV a

preBeni-lo

- +uidado com as ondas senhor

e ele desentendido das marKs a boiar com os detritos& o seu aBY

um peiCe& uma anKmona& um peda@o de petroleiro a soltar-se de

banda

- As ondas o uV=se precisaBa de escreBer pedia ue escreBessem por ele&

palaBras desaeitadas a mancarem no papel& trabalhou na Alemanha

e de uando em uando dinheiro& uma notaita estrangeira ue

tentaBa alisar sem sucesso

QUs Bees sinais do erro das camisas nelaS

a sua tia a pasmar para a nota

- O ue se a com isto=

a deiC-la no enBelope& a perdV-la& o primo +asimiro roubou uma

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delas para a minha me

Qas palaBras inseguras& a lpis& no se compreendiam & auelas

ue no lograBa ler no alaBam de BocV

oi o seu nome ue as gaiBotas leBaramS

- %oma

e ulgo ue a minha me teria dito

- Obrigada

se no osse um chapKu a esper-la no ponto& o mesmo das

otograNas dos noiBos unto Us canas de pesca& a cunhada da sua tia

para si

- +asimiro

o som da muina de costura to orte ue no lograBa ouBi-la&

para uV alar se no lograBa ouBi-la& BocV enerBado com a poltrona&

as mantas

- $o insista estou bem

o indicador a recolher entre sombras& os móBeis& se caRsse na

asneira de se aproCimar& igualmente Belhos& inJteis& os parentes da

camilha

QPhoto oIal Lda na assinatura impressa pelo senhor 9uerubimcom uma espKcie de carimboS

- +asimiro

num dó amarelado ue elimente a muina de costura

anulaBa& se o otógrao com ele uma ordem das lentes& um aceno

imperial

- Para acol rapa

um oco Bindo ignoraBa-se de onde a atraBessar-lhe a

ineCistVncia das pupilasQ perdi as pupilasS

- Mostra ue no tens medo sorri

claro ue no tinha medo& os ca@adores no tVm medo das

 ibóias& das ebras e por conseguinte sorria& o buraco do telo uma

corda de enorcar& o senhor 9uerubim

- ,ma corda de enorcar como=

e ainda bem ue a muina de costura impediu o senhor

9uerubim de dar K do ue BocV disse primo +asimiro& ainda bem

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ue anulou a chuBa em AlcWntara& uem por acaso compreendeu

- ,m dia Bolto pimpolho

enganou-se& ual,m dia Bolto pimpolho

no Bolta conorme o seu aBY no Boltou& Biaam& andam por

ora& nunca tVm saudades& de tempos a tempos

Qou sea uase nuncaS

uma nota estrangeira& uma carta& palaBras desaeitadas a

aNrmarem comprei uma casa& montei um negócio& no tenho tempo

de pensar em BocVs& no caso do pimpolho

supondo ue o pimpolho

imaginando ue o pimpolho

apesar de no acreditar no pimpolho mas no caso de

Qsupondo& imaginando ue o pimpolhoS

- Primo +asimiro

a@o de conta ue a muina de costura ao undo no permite

impede. no nesse carto& no me chego a ti& no te pego ao colo&

no insisto nas cócegas e portanto ests rir-te de uV

- Ests a rir-te de uV=

eu no a mangar& sincero- Ests a rir-te de uV=

dado ue no me interessas consoante a tua me no me

interessa& por aBor no me lembrem a cadela nos tomateiros ou um

cacho de uBas cor-de-rosa& minJsculas& ue no me interessam

tambKm& moro nas traseiras de um restaurante italiano entre

gorduras& relentos& um +oliseu de gesso& caiCas de cartolina

QoeZs PiaS

 Baias& metade da insRgnia iluminada& a outra metade apagadaQUs Bees promete acender-se& oge& regressa& torna a ugir&

desisteS

o auecimento do uarto a estalar em eBereiro toda a santa

noite& o rosrio ue o coinheiro antes de mim deiCou preso na cama&

um compartimento semelhante ao cubRculo de arrumos do ardim

+onstantino com um postigo demasiado alto& de trinco soldado pelo

óCido e o pWnico dos gatunos

Qto distante do marS

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em ue nem telhados nem rBores& no comprei uma casa& no

montei um negócio& penso em BocVs acho eu& oi@o gar@as Us Bees em

+abo uiBo& nos pWntanos& Beo-as erguerem-se de pesco@o

estendido& algumas uase brancas& lilases& castanhas& ro@ando as

asas no lodo& uma delas com uma r no bico a engolir a r U medida

ue sobe& Beo pargos ue Tutuam de barriga para cima& camarFes&

laBagantes& se eu de chapKu no ponto& U tarde& soinho& a me do

pimpolho correndo para mim a sorrir& eu espantado

- Ests a rir-te de uV=

e ela a ir-se embora oendida

- O +asimiro ue coisa

no dinheiro portuguVs& dinheiro americano ue hei-de entalar

na arra& cartas com palaBras desaeitadas& linhas ue se

sobrepunham& torciam& o nari unto U mo a procurar gui-la& to

hbil para achar a garraa no aparador e to aselha com as rases&

no apenas o nari unto U mo& a lRngua de ora& apertada nos

dentes& ue auda os mJsculos a doerem do esor@o& se ao menos

conseguisse escreBer caprichado& em releBo& depois da Jltima letra

um tra@o ue se ia tornando mais grosso a sublinhar as restantesPhoto oIal Lda

o senhor 9uerubim a mandar-me descer do caiCote& a entregar-

me o retrato

- +a@aste o teu leo +asimiro

no uma on@a pimpolho& ue on@a& um leo& a uba encarnada e

aul

- ,m daueles do deserto conheces=

incisiBos como os hamsters e portanto um leo tal e ual& depoisde o matar bateu uma ou duas pancadas da cauda& a mandRbula

aumentou& a minha tia a pic-lo com a Barinha

- !sto um leo=

deBia tV-lo entregue no segundo andar do ardim +onstantino

para ue abaiCo da cercadura oBal

*empre 9uerido

se recordassem de mim e o pimpolho agora o responsBel& o

tutor& a interrogar-se intrigado

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- 9uem Ks tu=

como se perguntar

- 9uem Ks tu=

igual a perguntar

- 9uem sou eu=

uando o ue ele era to simples& uma crian@a de cinco ou seis

anos a surgir na sala e a contar laranas num galho& a Bo ueC

principiaBa baiCinho cada Be mais alta& noBe& de& one& doe e no

doe& de repente& silVncio& nenhuma gua nas Bidra@as

QchuBa ou enchentes ou Baantes ou acontecimentos do gKneroS

nenhuma muina de costura& nenhum pauete a largar para a

 AmKrica& a casa do >eato calada& eu calado Bisto ue o senhor

9uerubim

- $o respires agora

inBisRBel no centro dos cenrios& eu a Ntar o leo apoiando os

 oelhos num tronco pintado a carregar a espingarda& a cunhada da

minha tia& orgulhosa

- O +asimiro K assim

o +asimiro aui na AmKrica sem a enBergonhar senhora& um diadestes rico& casado& no com este aBental& bem Bestido& gordo

Qum ato noBo garanto-lheS

a entrar na Photo oIal Lda para minha admira@o no

pomposa& modesta& descem-se dois lances e baNo& odores de canos

rotos& eu sem olhar para as noiBas e os bebKs das montras& no

- *enhor 9uerubim

apoio o cotoBelo no balco sem dar graCa ao empregado

- <ocVQBocV ou tu=S

- <ocV

eu nem seuer graBe& displicente& uma criatura de mos roRdas

pelos cidos a surgir de uma portinha lateral onde tinas e rascos&

negatiBos pendurados de molas& a criatura

- *enhor +asimiro

respeitosa& humilde& no a propor-me a paisagem de 3rica e os

seus bichos mal amanhados& idiotas& a desenrolar-me o cenrio do

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rei& isto K o ue me pareceram

Qno me pareceram& eramS

os armaKns de AlcWntara na manh da partida& a chuBa no

bigode ue seuei com a manga a olhar para acol porue o senhor

9uerubim

Qo meu Bassalo 9uerubimS

- Para acol maestade

ou no eCactamente

- Para acol maestade

antes

- Para acol ". +asimiro com mais orgulho chega

acol onde barracas& uma mulata a pedir esmola& a misKria de

Lisboa

Q- Os Nns do mVs so diRceis ". +asimiroS

o >eato talBe& o petroleiro persa& adornado no lodo erguendo-se

com as correntes& eu& ue regressei da AmKrica& atracado no ponto

numa coroa de gaiBotas e andorinhas do mar U medida ue o

pimpolho chegado ao Nm do ramo

- %reeou o pimpolho no

- %ree

o pimpolho

- Acabou-se

comigo nas traseiras deste restaurante italiano entre gorduras&

um +oliseu de gesso& caiCas de cartolina Baias& o pimpolho& maior

ue eu& a leBantar a cabe@a da camilha cheia de otograNas

Q*empre 9ueridosS- A sua Bida acabou

o radiador a estalar na parede& a metade iluminada da insRgnia

aclarando a cama& o meu casaco no cho& o ue a cunhada da minha

tia inelimente no Biu& ela para a Nlha& contente comigo

Quma sombra ue se tornaBa indicador& uma sombra entre

sombrasS

- O +asimiro K assim

de orma ue antes da muina recome@ar pimpolho pe@o-te ue

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lhe eCpliues ue eu bem& com saJde& mais gordo& escreBo esta

semana sem alta ou para a semana ou para o mVs ue Bem ou para o

ano& seco a chuBa do bigode ao assinar o nome& letras desaeitadas

no& letras caprichadas& em releBo& Photo oIal Lda& um

estabelecimentoinho ue no eCiste consoante a me do pimpolho

no eCiste& desaparecendo por seu turno onde as calhas do elKctrico

se dobram no sentido do rio e de ualuer orma

Qdisso tenho a certeaS

eCiste o senhor 9uerubim

- Alcan@a o caiCote e sobre para cima dele 9uerumim

traendo um par de ocos em lugar de um apenas e eu uese

no os Bendo& eu sem os Ber& Bia contornos& aurKolas& circunerVncias

de lu& depreendia pelo som ue o senhor 9uerubim a transportar

um escadote ou uma cadeira& osse o ue osse ue resistia&

protestaBa& se auietaBa Nnalmente& adiBinhaBa-o dispondo um telo

adiante do meu

Qum restaurante italianoS

com remendos& agraes& o alNnete de ralda de um dos bebKs da

montra dado ue um brilho de metalQum brilho de metal=S

um brilho de metal& uma cintila@o rpida ue surgiu e

desapareceu a entrar-me no corpo

Quma lWmina=S

a tornar a entrar& a aleiar-me& a desaparecer outra Be ou sea a

aca do audante de coinha procurando o dinheiro ue no haBia na

almoada& nos meus bolsos& na bagagem sob a cama& a ue trouCe de

 AlcWntara& a me do pimpolho nem seuer- Adeus

distraRda de mim& eu de regresso ao >eato onde o empregado de

mos roRdas dos cidos

- EnNa a cabe@a no telo +asimiro

mas ual telo& um espa@o branco& todos os ocos acesos& no

dois& trVs uatro cinco ue conBergiam& aumentaBam& me impediam

de procurar a origem da lu& a origem da lWmina ue me aleiaBa nos

rins& na barriga& no peito& o senhor 9uerubim a aconselhar-me ao

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ouBido

- Mostra ue no tens medo sorri

e portanto eu& pimpolho& a sorrir no retrato& eu um cordeiro de

matadouro& eu um boi de pesco@o erguido& cabe@a para acol& ambas

as mos na cintura

- Pareces uase o rei +asimiro

enuanto as gaiBotas comiam letra a letra o meu nome& esta

consoante& esse arabesco de Bogal& o audante de coinha do

restaurante italiano

 Qou a muina de costura do ardim +onstantino=S

me aleiaBa e aleiaBa e eu para ti& como sempre

- Ests a rir-te de uV=

 a Nngir-me angado.

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TERCEIRA FOTOGRAFIA 

$esta otograNa demasiado peuena& demasiado turBa& eita

durante a guerra em >issau e ue enBelheceu mais ue as outras

QdeBe ter permanecido meses a oCidar-se na muinaS

sou o oitaBo a contar da esuerda diante do muro do uartel&

no se percebem as caras nem as mos& percebe-se a sombra de uma

rBore ao centro

Quase ao centroS

camuTados& cartucheiras& adiBinham-se botas& sou o oitaBo a

contar da esuerda porue na barriga uma cru a tinta ue

enBelheceu tambKm& no aul& plida& mais Bincos ue tinta

Qapenas um restinho onde os Bincos se tocamS

se continuo a olh-la a sombra da rBore aumenta e engole-nos&escutam-se camionetas& Boes& os ditongos de um pssaro& mesmo

ue no haam morrido em 3rica aNgura-se-me ue todos no retrato&

a come@ar por mim& mortos agora& esconderam-lhes os bra@os atrs

das costas& endireitaram-lhes os corpos na rigide dos deuntos& no

se escutam apenas as camionetas e as Boes& escutam-se os tiros& o

helicóptero ue nos recolhia o espanto de conusFes de arbustos ou

margens lamacentas e oretrato a esBaiar-se de soldados& somos

one& somos cinco& somos trVs& sou o próCimo a ir-se embora do murocom a sombra da rBore a comer-me os tornoelos& Ncam os Bincos

da cru a tinta no meu lugar& soinhos& uem olheasse o lbum a

apont-los isto K a designar a parede do uartel se K ue eCistiu um

uartel

- $o est ninguKm aui

e nem uartel talBe& Beio um morteiro e sobram as olhas da

rBore e os ditongos do pssaro& o dono de um dos uintais do >eato

estudaBa a horta& angaBa-se& traia a espingarda de chumbinhos&

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 BisaBa os legumes e erguia do cho cartuchitos de penas

ensanguentadas& sem cabe@a

QnósS

esmagaBa-os Bingado

- no me estragam as alaces agora

entregaBa-os ao capelo& aos maueiros e elimente ue a

otograNa demasiado peuena& demasiado turBa& nem aproCimando a

orelha se entendiam os canhFes sem recuo& a otograNa em silVncio&

nada salBo os murmJrios do cacimbo ou do %eo mas o ue era o %eo

em 3rica seno umas canoas& umas erBas& a espingarda de

chumbinhos na arrecada@o& coisas sem importWncia alguma

Qe por no terem importWncia alguma as recordo to bemS

como por eCemplo a minha me uando o mKdico lhe deBolBeu

as radiograNas e chamou outro doente

- PoruV=

a censurar as canas de pesca e a chuBa em lugar do meu pai no

ponto& tudo isso passado com estranhos& sem me dier respeito& o

ue me diia respeito era o Biinho a matar-me e eu tentando

permanecer no retrato& tirei a muina otogrNca ao colega mal eleum cartuchito de penas ue a rBore do muro do uartel dissolBeu& o

tenente ou o dono dos legumes para mim

- Ests a roub-lo tu=

pronto a disparar a espingarda de chumbinhos na minha

direc@o ou na direc@o da mata isto K legumes enormes crescendo

de pWntanos& no os prKdios do >eato& cubatas ue ardiam& pessoas

uase nuas de oelhos& uma cabra a empinar-se& mais cubatas ue se

aundaBam na gua& a minha me descal@a comigo ao colo& o senhor9uerubim Qou um sargentoS

- *egure o pimpolho madame

e nem seuer um tiro& um instante de magnKsio e ual de nós

dois caiu primeiro& ual de nós dois de olhos abertos

- PoruV=

num telo ue representaBa soldados& galinhas esparBoadas&

labaredas& gritos& o palcio da >ela Adormecida uma casa negra de

eCplosFes& sem telhas& em cua ausVncia de portas uma cabra assoma

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a balir& as lWmpadas da Photo oIal Lda mudando todo o tempo de

posi@o na loa& acendiam-se e apagaBam-se derrubando gente&

palhotas& a minha me ue tornaBa a leBantar-se e cuos cotoBelos

moles desistiam de se apoiar num Balado& os dedos dela& pretos&

amarrotaram um Wngulo de pano& soltaram-no& um cabo a ue altaBa

metade do peito a sorrir& o senhor 9uerubim aproBando

- Aumente esse sorriso um minutinho nosso cabo

eu debru@ado para a minha me a aud-la embora no sei

poruV no me respondesse& no Bisse& o tenente

- +arrega no lan@a-chamas estJpido

e o palcio da >ela Adormecida a tingir-se de Bermelho tiolo a

tiolo& dJias de pssaros sem cabe@a

*empre 9ueridos

incapaes de estragarem as alaces& a marK principiou a descer

e no aui& na ;uinK

Qna ;uinK ou aui=S

os passageiros do hidroaBio enrodilhados na areia& as noiBas

ou a tropa

ou as Belhas do >eatoa despirem-nos aos puCFes entre bicadas& unhas& procurando

eCplosiBos& mapas& armas& enuanto a cabra continuaBa a manuear

com um grumo de saliBa baloi@ando no ueiCo& se eu pudesse

leBantar o nari como os bebKs da montra e grasnar embora esta

otograNa demasiado peuena& demasiado turBa pata ue alguKm

desse K

QUs Bees na primaBera os comboios de *anta Apolónia

chegaBam atK nós U noiteSse Boltar a pgina do lbum nenhuma tropa& nenhuma aldeia&

esueci mesmo ue os comboios de *anta Apolónia

Qou um rebocador em outubro& de palma na cintura& a ueiCar-se

das costasS

me ueiram lembrar& ainda me acontece pensar no >eato& no

pensar na ;uinK& e o >eato

Qcomo ser hoe em dia=S

mais remoto ue 3rica& a cabra Binha sem pressa de pata

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doente no ar atK esregar-se em mim& o tenente

- $o gastes balas com a cabra

o animal os olhos da rapariga ue trabalhaBa na modista

Qno a gorda& a aprendiaS

U anela& a pata da cabra a tremelicar& a garupa a tremelicar&

claridades de magnKsio mas sem importWncia& inocentes isto K o

senhor 9uerubim atrs da muina a garantir

- Estamos uase no Nm

a pedir

Qcomponham os uniormes& untem-se maisS

- ,m aspectoinho descontraRdo se me aem aBor

os Jltimos passageiros do hidroaBio de bru@os na picada& ao

irmo-nos embora a cabra a balir& BiJBa& nos torresmos das palhotas

coCeando para nós conorme no dia seguinte U partida do meu pai eu

a trope@ar no ponto& nenhum chapKu lhe pertencia& nenhuma cana

de pesca era a sua& na camioneta de regresso a >issau deu-me ideia

ue gaiBotas e andorinhas do mar em Be de morcegos de mangueira

em mangueira e dos insectos da tarde& restos de poBoa@Fes& misKria&

mais cabras ou sea as raparigas da modista& a gorda e a aprendiaQora do estabelecimento menos Bistosas& mais eiasS

rindo-se de mim a caminho do elKctrico

- ,m magala

se o tenente me deiCasse gastar balas com elas ao demorarem-

se U hora do almo@o no telheiro dos barcos as raparigas dois

cartuchitos de penas ensanguentadas& sem cabe@a& o urriel a pis-

las

- #oste tu=o oitaBo a contar da esuerda diante do uartel de >issau neste

retrato demasiado peueno& demasiado turBo& sem letras

caprichadas& em releBo

Photo oIal Lda

no canto& percebia-se por um uadrado mais plido e os

 BestRgios da cola a otograNa maior ue tirei a caniBete do lbum e

no eram as palmeiras da ;uinK nem um eriado com as minhas

Nlhas na praia

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Qeu magro& com cabeloS

nem a minha mulher na Kpoca em ue nos conhecemos

Q- Perdeste o retrato ue te dei no oi=S

as palmeiras da ;uinK ao Bento e nós cabras ue mancaBam& nós

balindo& se o primo +asimiro comigo

- Ests a rir-te de uV=

ele ue no ria nunca a pedir esmola U minha me com os olhos&

talBe eu no uma cabra a mancar& eu em Portugal a salBo& no no

>eato nem no ardim +onstantino& no uarto ue aluguei na >aiCa& a

mala com a roupa no Bo e a porta a bater contra a cama& no se Bia

o %eo& Biam-se esttuas de loi@a

QlRuen nas órbitas Baadas pingandoS

as plantas e as Torinhas amarelas& sem nome& ue crescem nos

telhados& a minha mulher a enteada da senhoria& comia U mesa com

elas& escolhia-me a pescada& cheiros de ornais antigos& móBeis

espessos recusando o sol& o abaur cuas borlas se emaranhaBam

trocando-se logo ue uma Bisita subia os degraus& a enteada deiCaBa-

me um bombom no traBesseiro& no $atal os botFes de punho do pai

aposto ue achados por acaso na cómoda do corredorQ- H uanto tempo estaBam BocVs na cómoda digam-me=S

a otograNa dela

- Perdeste o retrato ue te dei no oi=S

num enBelope de estrelinhas prateadas& no papel a cobrir a

otograNa no conte U minha madrasta pela sua saJde& uma ocasio

encontrei-a a beiar uma camisa minha na maruise com um ladrilho

solto& o ladrilho

- +uidado ue eles dois aui dona +Kua cara do primo +asimiro na cara dela

Q- *e a minha madrasta sonhasseS

a amarrotar-se de aTi@o& a manuear& a balir& o grumo de

saliBa& a perna doente e nisto& no apenas na maruise& casa ora&

restos de poBoa@Fes& misKria& as metralhadoras de sJbito& as pessoas

a ugirem& a deiCarem de ugir& a ugirem de noBo& o senhor

9uerubim girando lentes a aer-nos sinais

- <oltem a disparar por aBor

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tantos cartuchitos de penas ensanguentadas& sem cabe@a e no

era a otograNa dela no lbum antes deste retrato demasiado

peueno& demasiado turBo& a madrasta poisaBa-se a si mesma nos

patamares untamente com as compras& um saco& dois sacos& ela&

tudo bambo& sem Bida& demoraBa sKculos a reconciliar-se com a asma

atK Boltar a apanhar-se& uma das mos pegaBa no próprio corpo e a

outra nos sacos

- <amos l

no se sabia se um pVssego ou o cora@o da madrasta a rolar

nos degraus& ia l baiCo apanh-lo

- O seu cora@o ou o seu pVssego tome

o pVssego ue pulsaBa& o cora@o com uma penugem roCa&

impedir a enteada de o descascar U sobremesa

- Aten@o

a madrasta negociando com os pulmFes incapa de palaBras

conorme a gente no dia em ue cercmos uma poBoa@o e nos

surgiu da mata aos arrancos& sem acertar com a picada& o ipe com

uma pedra no acelerador e o nosso coronel morto a dan@aricar no

assento ultrapassando-nos ao ultrapassar um riacho& Bacilante&teimoso& atK um tronco o impedir e as rodas a trabalharem em Bo& o

coronel um Jnico oriRcio de reBólBer no pesco@o ue o colarinho

escondia& ao desligarmos o motor as palmeiras ao Bento& a enteada

largou o pVssego ensurdecida pela chuBa da ;uinK

- Perdo=

os sacos das compras cora@Fes e cora@Fes amontoados na

despensa& a certea ue o coronel entre eles sem ue eu adiBinhasse

ual era& eCaminaBa-os um a um buscando ecos de minas& tiros& um ipe ue emudecia& cabras

- $o K este

o pai da enteada uma cigarreira& um alNnete de graBata& uma

escoBa e a partir da cigarreira& do alNnete& da escoBa eu a compor

um homem Us pancadinhas na lWmpada do abaur uando o soalho

oscilaBa

- "ecides-te ou no=

ao apagar-se Lisboa imensa l ora e o uinto andar ineCistente&

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haBia as nossas Boes& no haBRamos nós& as lues de outros prKdios&

nKons& escutBamos os taipais da pastelaria distante ue o

empregado colocaBa a dois metros de mim& a lWmpada de regresso e

o uinto andar somente& nem pastelaria nem nKons& o pai da enteada

nenhuma pancadinha& nenhum

- "ecides-te ou no=

Us escuras no meu uarto sentia-o a BeriNcar o trinco& a echar

melhor as torneiras& o meu cora@o um pVssego a rolar por mim

mesmo& o coronel sentado no ipe sem ue ninguKm lhe tocasse& tiBe

medo ue outro ipe Bagaroso& de aróis nos mCimos e comigo

dentro a nascer da mata& a sombra da rBore no meu lugar no muro&

a otograNa demasiado peuena& demasiado turBa& deserta& sentia as

molas da cama da enteada atraBKs do tabiue& se ao menos remasse

num baruinho& de la@arote no cabelo& no telo do >eato& a madrasta

pulmFes ue sugaBam e eCpeliam a casa retraindo ou abaulando

paredes& pretos ue aoelhaBam diante das metralhadoras sem tempo

de pedirem o ue uer ue osse& as chaminKs da >aiCa na anela ou

as palmeiras de 3rica

Qno estou certoSa minha Bida alteraBa-se consoante o ruRdo de um cano& uma

placa de cali@a no soalho ou a muina de laBar ue pulaBa de

surpresa

- Estou BiBa

e aliBiada por estar BiBa se incluRa nas treBas& o mKdico no

deBia ter entregue a radiograNa U minha me& deBia tV-la deiCado a

balir& manca& entre cubatas a arder cuidando ue eram o hidroaBio

ou o petroleiro persa em chamas e no consultas& tratamentos inJteisna esperan@a ue o meu pai

- %rambolho

se o comboio de Paris e o chapKu no beco ao nosso encontro& o

primo +asimiro

- Peuena

seue a chuBa do bigode primo +asimiro& deiCe-se de mariuices

enuanto inBenta optimismos& procura a garraa no aparador e se

calhar isso o amor no K& essa aTi@o& esse medo& esse beicinho ue

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tenta combater a chuBa engolindo-a

- A tua me pimpolho

ainda bem ue BocV na AmKrica senhor sem nos incomodar com

acanhamentos e cócegas& no diga nada& pegue na bagagem e

desapare@a-nos da Bista& no prometa

- ,m dia Bolto pimpolho

a espreitar o ponto no receio ue o meu pai onde detritos&

limos& no o uero aui uando o ipe sair do uarto aos arrancos

com a minha me a dan@aricar no assento& a ultrapassar o tapete&

continuando na direc@o da coinha atK o baJ o impedir de aBan@ar e

os pneus a girarem em Bo neste cheiro de 3rica& uma crian@a a

Ntar-nos

Qeu=S

com o pVssego do cora@o ou uma rai de mandioca na palma&

acocorada na lama e as noiBas do >eato em torno& esses grasnidos de

criaturas humanas meu "eus& essas grinaldas& essa alsa pa nas

molduras& o senhor 9uerubim a compor-lhes o BKu de craBo no

casaco& a serBir-se no da nossa garraa& do espumante ue lhe

daBam no portal da igrea- %rato-te por menina ou por madame agora=

mas no oi o retrato da minha me ue tirei com o caniBete do

bum nem as palmeiras da ;uinK nem agosto com as minhas Nlhas

na praia em %aBira

 Qa mais Belha de cotoBelo em gessoS

e eu magro& com cabelo

Qtorne as ondas mais nRtidas senhor 9uerubim& desenhe a ponte

romana como deBe ser& acrescente-lhe cor-de-rosa e aul& unte-lhesereias gorduchas a tocarem harpa& peiCes de boca aberta& gulososS

nem o retrato da minha mulher na Kpoca em ue nos

conhecemos& a minha Nlha mais noBa inBeosa do gesso

- 9uero um aparelho nos dentes

desliguei o motor da cama da minha me e nem um pVssego

rolou nos degraus para amostra& ulguei Ber o meu pai no cemitKrio e

mentira& um caBalheiro de Bassourinha a espanear uma campa&

uando me aproCimei no

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- %rambolho

a Bassourinha diante do peito no medo ue eu Biesse roub-lo& o

dRstico da lpide

*empre 9uerida

embora nenhum piano& rBores dierentes do ardim

+onstantino& cheguei a pensar ue a muina de costura e aNnal

guindastes num ediRcio em constru@o& o muro no o muro do

uartel& no sombras& tirei o retrato do lbum para ue no

- Esta uem K=

o caBalheiro da Bassourinha a assoar-se

- <enho aui todas as seCtas-eiras

as ei@Fes passaram-lhe da cara para o len@o& Ncou uma espKcie

de sorriso

- %odas as seCtas-eiras

orgulhoso ou a desculpar-se& no se entendia bem& nessa tarde

 Bisitei o >eato& haBiam remoBido o petroleiro da margem e pergunto

em ue sRtio as senhoras idosas escutaro o seu ter@o e os bebKs de

nari no ar a trepidarem de ome& Biinhos ue no sonhaBa uem

eram& a igrea sem uartos de hora& muda& o caBalheiro arrumou a Bassourinha na Pasta onde me pareceu ue a marmita do almo@o&

suponho ue se se acomodaBa num desnRBel a mastigar um ranguito&

eu

- $o pergunta U deunta se K serBida=

Qaposto ue o primo +asimiro& to cuidadoso& no altaria a esse

respeito com a minha me

- Xs serBida=S

o caBalheiro a limpar-se no len@o e ao limpar-se no len@o nem osorriso & eCplicar U minha mulher echando o lbum

- ,m retrato da ;uinK ninguKm

e no estaBa a mentir& o uartel Baio tirando a sombra da

rBore& tudo demasiado peueno& demasiado turBo& sempre uma

nKBoa nos pWntanos& manchas

nós no camuTados& no armas& manchas& eu na praia com as

minhas Nlhas uma mancha& ual magro& ual com cabelo& uma

mancha& eu uma mancha& elas nRtidas& uma senhora dois toldos

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adiante mais nRtida ainda& a senhora sim& nRtida& a cara& as mos&

 Bestida como no retrato ue tirei do lbum com o caniBete e ao tir-

la do lbum pessoa alguma

- ,ma dessas paisagens da ;uinK pessoa alguma

a senhora no sanatório em +oimbra onde no me deiCaram

entrar& as cartas sem resposta ao princRpio e deBolBidas depois

Qmais carimbos& mais selosS

pessoa alguma& pinheiros e pessoa alguma& um parue e pessoa

alguma& o ardineiro ue nem seuer me respondeu a aparar buCos

num escadote& as anelas echadas& deu-me ideia ue me espiaBam

mas um reTeCo de cortinas& pessoa alguma& portanto uma otograNa

da ;uinK& o muro do uartel deserto tirando a sombra da rBore&

tudo demasiado peueno& demasiado turBo& o rolo ue se oCidou

durante meses na muina& ao entregarem-mo na loa soldados de

ue no se percebiam as caras& eu o oitaBo a contar da esuerda

numa Nla de pessoas algumas ou sea charcos& aldeias destruRdas&

pretos diRceis de separar das raRes ue trotaBam para nós ao

cuidarem escapar& uantas Bees olhos ue me obrigaBam a echar os

meus& no se daBa por gente& daBa-se por olhos& uma ocasio embranco com eles& no portuguVs& mais alto& estrangeiro& dobraBa-se a

cada bala sem cair& o senhor 9uerubim mudou a muina de posi@o

para enuadr-lo no cenrio das ibóias& das ebras& a sugerir o rei

como eCemplo

- Mostre-lhes ue no tem medo no caia

o estrangeiro a endireitar-se& a apoiar-se num ramo e a mirar-

nos do ramo& no caiu todo& caRram os bra@os& as costas& uma das

pernas sustentaBa o resto e o resto a cair por seu turno& umcamuTado melhor ue os nossos& botas mais caras& postais& no bluso

dele& da *uKcia& por um instante ulguei ue no o estrangeiro& o

primo +asimiro

- Ests a rir-te de uV=

apesar do primo +asimiro na AmKrica& se calhar rico& de anKis&

sem se lembrar de mim& o indicador da madrinha da minha me a

libertar-se do Caile Basculhando sombras

- O +asimiro escreBeu=

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e a ausentar-se desanimado para alKm do casti@al& da terrina& se

ao menos a muina de costura nos pregasse uns aos outros

abolindo o tempo& nos cosesse contra o reposteiro& o piano& o papel

de parede conorme o retrato da ;uinK nos coseu contra o muro&

postais da *uKcia& uma pata de coelho ue no lhe deu sorte Biu& no

audou em nada& um sueco a beber gua choca e a comer grilos com

os pretos& o depósito de gasóleo dos carros e um ósoro em cima

para o ueimar com os amigos& uma crian@a ergueu um dos pKs e

calou-se

Qpreg-la com a muina de costura tambKmS

o caBalheiro do cemitKrio echou a pasta& emendou uma arra&

estudou o eeito& emendou-a de noBo& Boltou-se uma ou duas Bees

enuanto se ia embora

Qos passos dele to cómicosS

seis arras& trVs U direita e trVs U esuerda& cada ual com a sua

Tor a embaciar-se dentro& nós uma arra apenas onde o primo

+asimiro entalaBa as notas de modo ue a trouCe U campa da minha

me na Bisita seguinte& um obecto l de casa& uma companhia

meinha- #ica mais conortBel na terra=

o sueco igual aos colegas 9uando o gasóleo acabou& negro& o

tenente a espalhar ossos& cina

- $unca houBe um branco aui compreendem=

conorme nunca houBe outro retrato no lbum& ual retrato& a

senhora no de ato de banho& Bestida& mais nRtida ue as minhas

Nlhas& ue eu& todos os BerFes dois toldos adiante em %aBira& no se

incomodaBa connosco& no nos alaBa& a minha Nlha mais Belha aeCibir-lhe o gesso

- Parti o cotoBelo sabia=

e ela assustada

Qno se descal@aBa seuerS

a apressar o crochet& uma proBinciana& uma estranha& pessoa

alguma da mesma orma ue o sueco e o primo +asimiro pessoas

algumas& uns ossos escurecidos& um pauete para a AmKrica ue as

noiBas desistiram de acompanhar a partir da o& as cegonhas do

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 Ateneu imóBeis& mais de uma ocasio& no Nm de agosto& ao regressar

a Lisboa& BRamo-la no banco da paragem do autocarro a esconder-se

da gente piscando os olhos ao sol& a minha mulher

- A proBinciana do toldo coitada

U noite encontrBamo-la no caK& no meio dos ingleses&

embeBecida com as lanternas do mar conorme talBe no sanatório

em +oimbra se entretinha com o ardineiro a aparar buCos em

tesouradas ue me doRam a mim& as lanternas do mar de %aBira uma

constela@o de 3rica de ue no sabia o nome

Qno uero saber o nomeS

crescendo para me aborrecer de lembran@as na gua do

 AlgarBe& a minha mulher

- $o ests aui pois no=

e eu sem poder responder-lhe dado ue BiaaBa na estrada de

>issau a caminho da mata& terra gren& mandioca& no bem uma

inuieta@o& outra coisa& o peito rio& gelado& rio e uente e gelado&

as minhas pernas geladas& as minhas mos geladas& palpaBa o

cora@o e no tinha& eu uma coisa dierente& tudo dierente& conhe@o

e no conhe@o este silVncio& algo ue no terminaBa de tombar& euQ- Eu=S

sentado nos len@óis

- <ou morrer

no

- <ou morrer

sentado nos len@óis

- Morri

U medida ue a terra gren dos dois lados da estrada& BiBendascoloniais a ue altaBam paredes com a roupa colorida a secar numas

guitas& a Bo do primo +asimiro um martelo no andar de baiCo e eu

morto sem sentir as cólicas do mogno& os pregos& a seguir U estrada

de alcatro uma estrada no capim& erramentas abandonadas unto a

um caldeiro de britar& a minha me

- Ests a chorar poruV=

altaBam-lhe ganchos no cabelo& os botFes da blusa

desacertados& a cara esuisita& o primo +asimiro atrs& esuisito

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tambKm& a graBata na nuca como sempre ue uma só pupila& o

 oelho& o pK& ao largarmos de >issau as coisas despediam-se da

gente& atK o mastro da bandeira& os emblemas dos batalhFes em

gesso ue iam perdendo pintura& a pena das coisas to óbBias

-<ais morrer

do mesmo modo ue se alguKm desaparece os seus pertences

maiores& uma dignidade e uma importWncia ue ignorBamos terem&

os pertences o deunto mas seBero& oendido

- $o te custa no Ber-me=

atK a roupa garanto& abre-se uma gaBeta e as camisas acusam-

nos& uanto mais bem dobradas mais hostis connosco& um cheiro

angado de perume a repelir-nos

- <ai-te embora

no sei o uV de pele BiBa ue permanece no uarto& o primo

+asimiro

- $o Bais morrer pimpolho

a palma uase na minha cabe@a sem me tocar

Qa metade do meu pai ue achaBa em mim impedia-oS

os aróis da camioneta no trilho e logo arbustos monstruosos& oneBoeiro de gotas suspensas do primeiro rio& um gancho de cabelo

da minha me escorregou para a manta sem ue ela desse conta no

eCacto momento em ue as metralhadoras come@aram& deitei-me na

cama antes ue apagassem a lu& o primo +asimiro puCou-me o

len@ol para cima& uis pedir-lhe

- Espere

- ,m momento

- "eiCem-me Ncar um bocadinho com BocVs por aBore emudecido& aceitando& seguro ue no ponto um rolo de

cordas e o meu pai

- %rambolho

o chapKu no direito& de banda& a tro@ar-me& morri

as lanternas do mar de %aBira NCas e no entanto seguindo-me&

pescadores diem eles& traineiras encandeando os cardumes& partiam

ao Nm da tarde a chocalhar bielas& a pergunta da minha mulher

traia-me de Bolta da noite do >eato onde o primo +asimiro& no

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corpo& no pupila& só o paBioinho da Bo

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

e sentaBa-me ao seu lado no caK de %aBira

- $o estas aui pois no=

o retrato da proBinciana da paragem do autocarro no lbum& no

Photo oIal Lda nem assinatura nenhuma& a imagem de uma menina

em roupa de comunho solene& o cruciNCo& as mos postas& sem

cenrio por trs

Qo senhor 9uerubim com despreo

- $em seuer telo pimpolho no haBia de dar uma noiBa

decenteS

uma mesa de pK-de-galo com uma bailarina no tampo& a

 ustiNca@o aTita

- $o tenho outra desculpe

a mesa de pK-de-galo de ue engomaBam a toalha o melhor

móBel ue haBia& eu a imaginar a casa u o ue osse numa aldeia a

one uilómetros de Arganil com ones em torno& Bespas no tanue& o

ogo

Qtal como no >eatoSem ue só um dos bicos acendia& bonecos de pano nas camas

Quma adista& um maruoS

a mesa de pK-de-galo importantRssima& no eCacto centro da sala&

daBa-se corda U bailarina

Q- Podia dar-se corda U bailarina sabia=S

e ela a rodopiar empenada detendo-se no primeiro ressalto& com

um toueinho na base estremecia num pulo& entortaBa-se mais&

continuaBa a girar& tinha a certea ue se a criatura carregasse napelRcula a bailarina Us Boltas como tinha a certea ue o mecanismo&

com o tempo& um engasgo enerruado& o pai

Qou o tio ou o irmo mais BelhoS

uma gota de aeite a disar@ar e a bailarina um cambaleio& um

impulso& o aeite ue alastraBa na toalha& a me dela

Qou a tia ou a irm mais BelhaS

a designar a nódoa

- E agora=

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de orma ue BoltaBam a nódoa na direc@o da parede

Qa bailarina de perNlS

a Nm de ue a desgra@a escondida

Qum sorriso medroso de desagradar-me

no desagradas

de embara@o

- O meu pai

ou o meu tio ou o meu irmo mais Belho

manchou-aS

e no sei uem com uma muina& ia urar ue antiga& barata

Qno o pai nem o tio nem o irmo mais Belho o padrinho talBeS

comprada aos espanhóis do contrabando

Q- aponesa muI caraS

o padrinho a mirar o aparelho

- !sto carrega-se onde=

uma alaBancainha em lugar de boto& um rectWngulo de Bidro&

espreitar pelo rectWngulo

- +hega-te mais U mesa

Qna anela os montes Berdes durante a tarde& eno& eucaliptosSe ela a chegar-se mais U mesa& a inuietar-se comigo

- $o gosta=

o retrato ue antes de me casar substituR pelo muro do uartel

em >issau demasiado peueno& demasiado turBo& a sombra de uma

rBore

Qno palmeiraS

a aumentar e a apagar-nos& se ao menos tiBesse conseguido

apagar a cola do lbum& a bailarina e o Bestido de comunho soleneue rasguei sem olhar e ento a Bertigem ue me impedia de

adormecer em crian@a& sentado nos len@óis

- <ou morrer

consoante ulguei ue morreste no sanatório em +oimbra dado

ue as cartas sem resposta de inRcio e a seguir deBolBidas& mais

carimbos& mais selos& o ardineiro a aparar os buCos no escadote& a

reira ue me abriu a porta misturando chaBes no cinto

Qno abriu a porta& uma corrente na porta e para alKm da

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corrente cheiros de remKdios& um eco longo de igrea

- <-se embora senhorS

e porue o poBo de uma aldeia a dois ou trVs uilómetros do

alcatro& ainda antes da mata& se amontoou na igrea mais as

galinhas e os ces

Qnenhuma cabra desta eitaS

isto K um barraco de madeira l deles a imitar uma igrea& uma

sineta num sonito rachado ue nem sineta era& uma lata com um

badalo de pau& o tenente mandou ue incendissemos o capim nas

traseiras obrigando-os a sair e a gente a disparar contra o umo de

modo ue dJias de bailarinas sem necessidade de um pinguinho de

aeite a girarem tossindo

Q- Pode darse corda sabia=S

e estreme@Fes& impulsos& Ngurinhas tortas& uma mulher

abra@ada a uma santa de gesso

- Patro

Qse eCistissem palmeiras estalaBam tanto no BentoS

aer de conta ue na barriga dela uma cruinha a tinta

Qdois BincosSe apontar U cruinha& deriBado U Bertigem o primo +asimiro

audou-me a deitar ou sea e men@o de deitar-me& decerto ue o

chapKu por ali Bisto ue ele

- $o te toco descansa

o primo +asimiro

- #oi um sonho pimpolho ual capela uais tiros no morreste

percebes=

rasgar a otograNa& incendi-la no capim& BV-la arder no cineiro&uma labareda aguda no Bestido branco& na cara

- Patro

o papel cor de pe& o papel cinento& um cisco de pelRcula

Qou uma galinha ou um co ou um padre mulatoS

esBoa@ou na secretria& desapareceu na alcatia& o tenente a

eCigir

- +alca-a

o tenente no eCigiu& no disse nada& caluei-a e no uma

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ueiCa& uma pergunta ue se dobraBa em si mesma& um

murmurioito tRmido

- Achou-me ridRcula oi=

no uma igrea ue ideia& uma cabana& o ue h na ;uinK seno

cabanas senhores& pretos calados se nos dirigRamos a eles& se no

tiBesse o retrato nem me lembraBa de >issau& passou-se h muitos

anos& esueci& o ue K >issau contem l& talBe um dos telFes da

Photo oIal Lda& auele do primo +asimiro com buracos de enNar a

cabe@a e gorilas e ibóias e ebras

Quma das ebras rasgadaS

o primo +asimiro a ca@ar uma on@a

Qum leoS

o primo +asimiro a ca@ar um leo com dentes de coelho e

ocinho de coelho& o empregado de mos roRdas dos cidos

- Mostra ue no tens medo sorri

a cara no acertando com o chapKu e o corpo& a ;uinK uma

loeca no >eato de molduras de gaiBotas na montra& grinaldas&

almoadas de cetim& bocas de aguarela cor-de-rosa ou aul& descem-

se trVs degraus e mais gaiBotas na parede& mais crias& um guarda-Nscal& um bombeiro de medalha e atrs $oBa !orue isto K um

cenrio de arranha-cKus e discos Boadores no ual o senhor

9uerubim& de *uper-Homem& entre planetas& estrelas

- %ambKm gostaBas de ser o *uper-Homem pimpolho=

 Boares de capa encarnada

Q- H-de haBer aR tinta encarnada eu desenho-te a capaS

sobre a ;uinK& sobre %aBira& na direc@o de uma bailarina

Q- Pode dar-me corda sabia=Sue ia girando a custo com montes Berdes em torno& eno&

eucaliptos& cercas de pedra

Qalgumas delas caRdasS

ue separaBam uintas

vim de Arganil para Lisboa primeiro de camioneta e depois de

comboio sozinha aos dezasseis anos antes da camioneta nem sequer 

nos despedimos porque não havia muita coisa a dizer 

(dizer o quê?

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o meu pai a vinte metros da minha mãe e de mim e a minha mãe

calada e partes da gente ao sol e partes nas mimosas e assim que a

camioneta chegou

(não a camioneta ainda longe lá em cima

o meu pai !oi"se embora e a minha mãe demorou"se um minuto

ou dois a não dizer nada e não me abra#ou abra#ou a minha mala e

apesar de ser a mala que abra#ava encolhi"me para que não me

apertasse muito es!reguei logo o bra#o a retirar os seus dedos e se

tive de retirar os dedos $ claro que me abra#ou a mim ambas

sentimos que me abra#ou a mim e mau grado largar a mala depressa

arrependemo"nos de me haver abra#ado

- %ambKm gostaBas de ser o *uper-Homem pimpolho=

de uma maneira di!erente das mimosas ao espiolharem nas

partes escurecidas uqe temos aquelas que me pareciam de terra e

chamavam sem que ningu$m ouvisse con!orme as ovelhas chamavam

e os chocalhos partes escurecidas que me dava medo serem minhas

e as quais a%an#ava

" &ocês não e'istem

elas concordando um momento e chamando depois e e'igênciase pedidos ao tomar banho %ngia não sentir e no entanto as minhas

pernas e a minha barriga pronunciando o meu nome o!erecendo o

meu nome contra a minha vontade ao assobio do empregado do meu

pai lá !ora o assobio que me percebia

(o empregado gra#as a eus não percebia

mais agudo mais !orte mesmo que !ugisse dele a en'ada a cavar 

e a cavar 

(consigo e'plicar"me?não as minhas tripas outras coisas minhas que não eram tripas

nem m)sculos nem carne * vista de todos e eu esquarte+ada e'posta

as minhas pernas e'postas a minha barriga e'posta o empregado e o

meu pai cegos continuando a cavar de modo que pude sem que me

vissem

(nunca contei isto a ningu$m nem ao pimpolho a quem o!ereci o

retrato da comunhão solene depois

ocultar"me na cama apertar a almo!ada na boca e a!undar"me no

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colchão da +anela da camioneta notava a minha mãe cravada na

paragem

o chapKu do meu pai craBado no ponto apesar do Bento e em

>issau as palmeiras ue estalaBam

enquanto os montes esses sim deslocando"se o !eno os

eucaliptos eu aos dezasseis anos na casa da antiga patroa da minha

mãe a %m de tomar conta dela !azer"lhe o comer ler"lhe o +ornal lavá"

la e ningu$m que as minhas partes escurecidas chamassem silêncio

mesmo quando conheci o pimpolho silêncio passava diante do pr$dio

demorava"se a olhar e silêncio apenas meses depois na altura em

que

uando regressei ao >eato uase nenhuma gaiBota no petroleiro

persa& todas na montra a Ntarem-me sacudindo as asas U espera&

desci os dois degraus da Photo oIal Lda e o senhor 9uerubim agora

de óculos alongando o pesco@o& no me reconhecendo& mudando a

posi@o das hastes

- Pimpolho=

no uma aNrma@o& uma pergunta porue uase nenhuma lu

eCcepto a claridade do %eo ue eu traia comigo consoante se trario e chuBa no inBerno

- Pimpolho=

os óculos a detalharem-me& a espantarem-se& no

- +resceu tanto este ano

como a madrinha da minha me no segundo andar do ardim

+onstantino

Qe por um instante o casti@al do piano& a terrinaS

a adicionar sombras Us mantas e aos Cailes e a reugiar-se nelas&o senhor 9uerubim rodeou o balco& mais lento& mais curBo& com

uma diNculdade nas articula@Fes acho eu

Qainda ter um sauinho com restos de polBo& perseguira os

gatos=S

- Pimpolho

um dos bebKs ergueu o bico e come@ou a agitar-se& um albatro

Qno o hidroaBioS

atraBessou a imagem do bombeiro de medalha e planou sobre os

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lados de Alcochete onde pombos braBos& uma locomotiBa ue

mergulhaBa na gua& o senhor 9uerubim a necessitar de um pingo de

aeite designando-me os telFes

- 9ual preeres pimpolho=

o muro do uartel de >issau demasiado peueno& demasiado

turBo& o circo& o castelo da >ela Adormecida com a princesa a remar

num baruinho& almoadas de cetim para os oBos das noiBas& os

discos Boadores de $oBa !orue e o senhor 9uerubim

- Ainda gostaBas de ser o *uper-Homem pimpolho=

entre planetas com o nome por cima& $eptuno& <Knus& +rRpton&

isto na aBenida de +hicago em ue o primo +asimiro rico& sem se

importar connosco

- Esto a rir-se de uV=

Qa minha mulher a sacudir-me o cotoBelo

a minha Nlha mais noBa adormecida ao meu colo& a minha Nlha

mais Belha

- $o ests aui pois no=S

 Boar atraBKs de 3rica& de %aBira& ao encontro de uma bailarina

 Bestida de comunho soleneQ- Pode dar-me corda sabia=S

girando numa mesa de pK-de-galo com uma toalha engomada e

na toalha malmeueres bordados& uma nódoa ue encostaBam U

parede a disar@ar deeitos

- E agora=

a me& sem a abra@ar& a real@ar uma manga tuada& uma renda&

melhorando a Ntinha da Bela& o senhor 9uerubim a preparar as

muinas- Muito bem muito bem

a Photo oIal Lda& outrora grande& acanhada& modesta& a

cadeira onde me instalaram em crian@a despreada a um canto&

cortinas desbotadas pelas lues e eu acima de 3rica& de %aBira&

cruando a <ia Lctea a caminho de Arganil

- Es o *uper-Homem pimpolho

montes Berdes& eucaliptos& elimente nenhuma cabra da ;uinK&

no tiros& ulguei ue um muro de uartel& soldados ue a guerra ia

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dissolBendo um a um& um homem de chapKu a doer-me num beco e

mentira porue

Q- $o tenho pai sou soinhoS

por sorte minha nenhum rio por ali& nenhuns uartos de horas

de igrea& apenas poeira de cometas& cinas de acaso& astros mortos e

nisto alguKm

QpalaBraS

ue de inRcio me custou perceber deriBado aos ocos do senhor

ue se preocupaBa comigo& disse

- Pimpolho

e ento o primo +asimiro com o ato dos domingos a subir as

escadas mais o pacote de broas& a enralar dinheiro na arra a pegar-

me ao colo& a largar-me espantado

- Ests a rir-te de uV=

no& no

- Ests a rir-te de uV=

o primo +asimiro

- +uidado

porue o dono de um dos uintais do bairro a estudar a horta& aangar-se& a traer a espingarda de chumbinhos

Qou a metralhadora diante das palhotas& gente ue corria para

nós em lugar de ugir& o tenente

- "isparaS

o dono de um dos uintais do bairro a traer a espingarda de

chumbinhos& a apontar aos legumes& a erguer do cho um cartuchito

de penas ensanguentadas& sem cabe@a

Qeu=S- no me estragas as alaces malBado

a entregar-me ao capelo& aos maueiros e por sorte o retrato

do lbum demasiado peueno& demasiado turBo& nem aproCimando a

orelha se entendiam as minas& o retrato deserto salBo os murmJrios

do cacimbo ou do %eo mas o ue era o %eo em 3rica seno lama&

barca@as& o ue ulguei um homem a umar

- %rambolhos

no seu rolo de cordas& o homem em #ran@a sem uerer saber da

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gente caminhando noutro ponto unto as marKs de outro rio Qnunca

 Boltou de #ran@aS coisas antigas sem importWncia alguma& o senhor

9uerubim

- Aten@o

e na claridade de magnKsio de um tiro isolado eu a olhar sem

me Ber

- Morri

enuanto a bailarina a cinco ou seis mesas da nossa no caK de

%aBira no me Bendo tambKm

Qnunca nos olhaBmos na praia nem na esplanada a seguir ao

 antarS

dado ue na pelRcula apenas uma cru a tinta na barriga do

oitaBo soldado a contar da esuerda

no& do seCto

no& do terceiro

no& do segundo

no& do Jnico soldado do lbum

no& de nada no lbum eCcepto uma rBore

Qa copa de uma rBoreSnada no lbum eCcepto a copa de uma rBore e a minha Nlha

mais Belha a mostrar-ma

- O ue K isto=

sem notar uma cabra a balir soinha entre torresmos de palhota

coCeando para ela a pedir

- Auda-me.

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QUARTA FOTOGRAFIA 

%iBe de pYr aui a otograNa de nós dois a cortarmos o bolo de

casamento com a minha mo sobre a sua na aca porue a minha

mulher gosta& enternece-se& olha para alKm do retrato

ou leBanta a cabe@a e olha para alKm de mim& a sorrir

acariciando a pelRcula com a ponta do dedo& ualuer coisa só dela

de ue no a@o parte e a ue no tenho acesso ao compreender ue

o sorriso me eCclui& Us Bees U noite sorria assim uando acabBamos

e Bia-a to longe na outra almoada ue apagaBa a lu para Ncar

soinho a sKrio& uer dier eCistia um corpo ao meu lado mas sem

pessoa dentro& eCistia o sorriso& percebia-se pelo estore ue o sorriso

de perNl& percebia-se o dedo a acariciar a almoada& o sorriso e o

dedo& BestRgios de uma ausVncia& desaparecendo atK ue ninguKmderiBado U minha mulher noutro sRtio& leBantaBa-me a Nm de

procurar o piama& beber gua& sentir ue BiBia e a coinha surgia U

minha roda conorme o tubo do tecto ia e Binha antes de resolBer

Q- Acendo-meS

isto K chegaBa por um segundo a bancada com o laBa-loi@as e os

pratos do antar e sumia-se& chegaBam os chinelos de tratar da casa&

um losango de ladrilhos e adeus& um relWmpago de armrios

Qum deles de porta sempre abertaalta-lhe a mola

o dos copos& copos de pK& copos normais& clices& as canecas das

minhas Nlhas com os nomes estampados ue elas riscam com a unha

ou melhor cada uma risca a caneca da outra

- $o moras c os pais só me tVm a mimS

e eBaporaBam-se os armrios& chegaBa a bancada de noBo& desta

eita acompanhada pelo rigorRNco e o peda@o de parede com a ilha

de Madagscar de humidade ue pintei por cima

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Qa ilha mais atenuada mas presenteS

tudo a interrogar-se& a Bacilar& a comunicar-me

- %alBe Nue talBe no

a desmaiar& a recompor-se traendo a mesa com a tigela de

laranas para as constipa@Fes& metade da tigela primeiro e a outra

metade a untar-se-lhe num pulo

Q- + estouS

o tubo pereito& sem umbir& normal& a coinha inteira

anunciando

- Pronto ests contente=

os meus pKs descal@os l em baiCo duas raRes torcidas& se a

minha mulher comigo em lugar do sorriso

- Enuanto no apanhares uma pneumonia no descansas pois

no=

eu surpreendido ue a coinha tanta coisa ue serenaBa a

brilhar& torneiras Basos potes& o rasco de detergente com a tampa

leBantada

- ,sa-me

abrir o rigorRNco e uma claridade brancaQmargarina& Nambre& pacotes de leiteS

ue se derramaBa no cho aumentando-me os pKs

- Apetece-te mesmo adoecer no K=

os prKdios Rmpares& Belhos inimigos no lado oposto da rua&

aperei@oados a lpis num cuidado de desenho U Bista& a chaminK ue

se interrompia no caiCilho e continuaBa depois& desBiada um

milRmetro& na Bidra@a seguinte com um hotel por trs a acentuar-lhe

o deeito& a Jltima olha de uma rBore ue se eu respirasse comor@a estremecia de certea& o nosso andar& todo presente no escuro&

a poisar-me no ombro uma cabe@a de sono& o uarto das minhas

Nlhas& o outro de ue tinham medo a ue chamBamos escritório o

ue signiNca ornais& uma trela sem co& a sorBeteira aBariada& eu de

repente com medo do escritório tambKm

Qum gatuno escondido& um cadBer a caminhar para mim

- Anda cS

e portanto de regresso U cama a desBiar a cara de ladrFes e de

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mortos Nngindo ue no me importaBa

- Posso bem com BocVs

o interruptor eCtinguiu a coinha de golpe mais o aparelho das

tostas e a panela elKctrica ue rebentaBa os usRBeis e os meus pKs

leBaram logo sumi@o& um senhor ue lia no 75-> Boltou-se para mim&

no sei o uV na minha ideia porue eu

-Pai

e no era o meu pai& o meu pai da minha idade

Qno& mais noBo ue eu agora e no lia liBros& pescaBaS

permaneceu a chaminK desaustada por culpa do caiCilho& a

olha da copa ue a alta de chinelos& auleos e bancada digniNcaBa

tornando-a o umbigo do mundo& se me aproCimasse o resto da

rBore& a rBore seguinte& uma terceira rBore em ue se pressentia

o Bento guardado l no undo U espera da manh& moBendo os bra@os

a assustar os ramos

Qe se calhar um gatuno e um cadBer tambKmS

no espelho do laBabo eu adulto ue sorte& capa de entrar no

escritório enrentando de mos nos bolsos

- *e pensam ue as receei enganam-sea sorBeteira e a trela& o sorriso da minha mulher apagou-se da

almoada& ela de Bolta sem mistKrio& a dormir& abandonando-me para

se Birar de costas a arrastar os len@óis& um dos meus oelhos rio& o

outro a ocupar a tua coBa numa guinada de ciJme

- Onde estiBeste tu=

o ombro ue me no responde& se torna agudo& me repele& h

uantos anos nenhum bombom& nenhum enBelope de estrelinhas e a

enteada a espiar-me de longe Apreciou=

a enteada

- $o se Bai rir de mim=

aperei@oando o aBental& nenhum sorriso& nenhuma gaiBota a

lembrar-me o ue no uero lembrar& o saco da madrasta tombando

no so cheio de pVssegos ue se tornaBam oles ciciando& unindo& a

pulsarem da asma& nunca Bi pupilas to estagnadas& narinas to

redondasPreciso de respirar audem-me

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a enteada sem acreditar em mim

- Eu casar-me consigo=

no apenas as narinas redondas& a coCa a espalhar-se no

assento& lRuida& uma gotinha da testa encontrou a auda de uma

ruga e seguiu pela ruga& uando a ruga acabou a gotinha parada&

daui a pouco endurecia e uma noBa gotinha ue no chega a

ormar-se endurecida tambKm& seria ue algum pVssego no saco a

contrair-se ainda& um arrepio de pestanas em ue o sangue Bibrasse

no só as gotas paradas& os tornoelos coisas& a pergunta da

enteada suspensa na sala

Qa pergunta uma gotaS

- !sso de casar comigo K a sKrio=

atK o pesco@o ou o cora@o da madrasta pulsar outra Be& dois

batimentos& uma pausa& as narinas menores& os ponteiros ganhando

conBic@o nos relógios a aproCimarem-se de amanh numa pressa

cruel

Qo amanh uase ontemS

deseando ue a gente enBelhe@a& o saco a inormar no diB

- passoua reconhecer os obectos& a alterar-lhes o sRtio a Nm de se

conBencer ue era capa de alterar-lhes o sRtio& a congratular-se

Estou bem

sapatos a caminho do corredor no como os nossos& diRceis&

conscientes de sim mesmos& a madrasta ue pensaBa

- MeCo este B l tento meCer auele

transportando as toneladas do saco& a Bo colocaBa as palaBras

em medita@Fes de dominó no intuito de no desarranar nem umasRlaba

- <o-se casar BocVs=

a no@o de casamento agitou as noiBas no >eato& a Photo oIal

Lda um renesim de asas& a bailarina rodopiou acusando-me& tentei

eCplicar

- $o me deiCaram entrar no sanatório ulguei ue tinhas

alecido

contornaBa o parue pelo lado de ora das grades e daBa com

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uma cadeira de inBlido ue parecia acompanhar-me tombada& onde

uer ue estiBesse a cadeira& para onde uer ue olhasse a cadeira&

a cadeira para mim usando o alento das aias& os cochichos sem Bo

ue atraBKs delas me chegam& segredos ue a gente unta e ao untar

entende

- #aleceu Bai-te embora

ninguKm nas Barandas& nenhuma lu U porta eCcepto o brilho

dos troncos ou uma garraa esuecida& ao tornar U esta@o dos

comboios um aruipKlago de ces sei l onde

Qno pinhal=S

horrios encaiCilhados numa claridade de insónia& um homem

num ardo ou num rolo de cordas

Q- PaiinhoS

e reparando melhor no um homem& uma balan@a antiga

Qa minha me pesaBa-me na balan@a da armcia com um ginete

empalhado a espreitar dos Caropes

Carope disto& Carope dauilo& Carope de rai de beterraba

o armacVutico tomaBa nota no caderninho& procuraBa o meu

nome Birando as pginas com um polegar de cuspo& animaBa-se aoachar-me

- Aui est

echaBa o caderninho num Bagar pomposo

- Engordou seiscentas gramas o atreBido

oerecia-me um uadrado de penso para imitar um lanho

- PFe-te a andar pimpolho

e l ora o petroleiro persa muito mais gordo ue eu

- 9uanto pesa o petroleiro senhor ;omes=o senhor ;omes a emergir do caderninho& ero

- LeBas um puCo de orelhas malandro

eu sem compreender& magoadoS

a carruagem partia da esta@o cercada de ces comigo a

lembrar--me da esposa do senhor ;omes anunciando da porta com

Laboratório

escrito

- A sopa est a Ncar ria ouBiste=

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o armacVutico a meter o caderninho na algibeira

Q- O ue ser eito de si senhor ;omes=S

diga-me o ue ser eito de si& uanto peso agora& uantas

seiscentas gramas engordei& aposto ue me reconhecia ainda Qno

reconhecia senhor ;omes=S

- O pimpolho

no haBia de ordenar

- espeita a tua me meu corrKcio

o corrKcio a eCibir o adesiBo na escola

- $o posso pegar no gi dona >eta aleiei-me

os meus colegas solidrios& graBes& a dona >eta a arrancar-me o

uadrado

[*eu palha@o

o palha@o conBencido ue morreste dado ue as aias Qsegredos

ue a gente unta e entendeS

- #aleceu

a madrasta poisaBa-se de patamar em patamar aeitando o

pVssego para o interior das costelas a designar a enteada

Q- !sso de casar comigo K a sKrio=Sa designar-me a mim& arrependido& nerBoso

- A minha enteada tem noiBo

Quanto pesaria a madrasta na sua balan@a senhor ;omes=S

de modo ue trVs ou uatro meses depois a cortarmos o bolo

com a minha mo sobre a sua& no segundo andar do ardim

+onstantino onde nem se suspeitaBa do %eo

Qde tempos a tempos uma andorinha do mar transBiada& em

noBembroSa Nlha da madrinha da minha me

Q- EscreBeu o peso dela no caderninho senhor ;omes=S

a austar-me o casaco ue o meu pai despreou aproBeitando

entretelas

- #ica uieto pimpolho

a terrina desagradada

- $o acredito ue tu

o casti@al do piano

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QestaBa capa de garantirS

uase com pena de mim& eu sem ninguKm ue me deitasse um

pingo de aeite nos ossos para eBadir-me dali com o Bestido da

comunho solene e a bailarina na ideia

Q- A bailarina no pesaBa nada senhor ;omesS

enuanto um comboio a meio da noite no paraBa de arribar de

+oimbra enCotando pinhais& perseguido por ces inBisRBeis ue

desistiam

Qsó latidos& passinhosS

o sorriso da minha mulher na almoada em lugar do bombom& se

o senhor ;omes o pesasse na armcia o ponteiro no se deslocaBa

um risco& ele no acreditando

- E esta=

o laboratório no uma coinha& balFes& pin@as& cpsulas& a

esposa a impacientar-se de almoari ao lume

- Agora pesas sorrisos=

o sorriso na otograNa de nós dois com a minha mo sobre a

dela incapa de a sentir& escutaBa as aias no sanatório desproBidas

de garganta- Ai pimpolho

um pssaro num Boo molhado entre uma copa e outra e

relmente& pensando melhor& uanto pesa um sorriso senhor ;omes

conte-me& uanto pesa uma bailarina ue no pra de me girar na

memória& a madrasta comoBida a esculpir gotinhas com o len@o&

bebKs de nari ao alto reclamando comida e as mes a enNarem-lhes

crouetes sacudidos na goela& um Belho perseguia-me com a amea@a

de um rissol num palito- ,ma esta catita uma esta catita

distraRdo do rumor do %eo ue ia crescendo& crescendo& ao lado

da minha mulher& com o rio a aogar-me& ligaBa o abaur da cabeceira

e o uarto de imediato ali& no no gKnero da coinha ue eCiste por

ragmentos antes de eCistir toda& o uarto inteiro ali& os móBeis do

pai dela arrogantes& hostis& em cada armrio no uma ueiCa de

carBalho& uma Jria

- 9uem K este c em casa=

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e a casa& por respeito aos armrios& uriosa tambKm& Nna ue

no emigrou para a AmKrica e empreste-me a garraa do aparador

primo +asimiro& essa de ue bebia para ganhar coragem& deBo ser

mais alto ue BocV e portanto deiCe-se de patetices& no me a@a

cócegas& no me pegue ao colo& diga ue me desculpa& por estranho

ue pare@a no imagina as ocasiFes em ue me lembro de si& se

tiBesse sido a Photo oIal Lda a ocupar-se do casamento entraBa na

loa& ordenaBa

- Pinte-a de cor-de-rosa se lhe der na gana mas tire-lhe o sorriso

senhor 9uerubim a@a-me o obsKuio

e a minha mulher sKria como em %aBira em agosto& ora

obserBando a criatura dois toldos adiante& sempre Bestida& sem nos

cumprimentar& sem olhar-nos& ora obserBando-me a mim

- !a apostar ue se conhecem

conorme poderia ter dito ia apostar ue no só conheces a

penso onde Nca& l em cima& antes da pra@a& uma tbua escrita a

tinta de caiCotes

ooms +hambres Habitaciones

e cubRculos no oara o mar K claro& para um ptio desertoQerBitas& ungos& salsa em copinhosS

as ooms +hambres Habitaciones ue ela no te deiCaBa pagar

recusando-te a carteira& as notas

- $o preciso do seu dinheiro

Ou

- $o K pelo seu dinheiro ue Benho K por si

como ia apostar ue a conheceste antes de morares na minha

madrasta e me conheceres a mim& o sanatório em +oimbra& o ardineiro a interromper as aias& a descer do escadote& a apontar-te

a esta@o dos comboios com a tesoura

- X melhor para si ue se B embora amigo

de modo ue eche a boca da minha mulher senhor 9uerubim

com um risco de tinta& a@a dela uma noiBa aguardando as ragatas

na Baranda do engenheiro& a minha mulher auele bico alaranado&

auelas penas ba@as& patas no corredor& um crocito a arrancar-me da

sala

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durante uase cinuenta anos dois toldos a seguir

- !a apostar ue a conheces

apesar de no se distrair do crochet os gestos dela dierentes ao

chegarmos U praia& aperei@oaBa o cabelo& desamarrotaBa o Bestido&

no nos NtaBa nunca& uando a minha Nlha partiu o cotoBelo e lhe

estendeu o bra@o

- %enho gesso repare

em Rmpetos de bailarina a criatura uma tenta@o de dar-lhe

corda primeiro& um embara@o depois

- "esculpe

e ainda ue o meu marido parado o corpo a recuar no interior

do corpo& as mos a chamarem a nossa Nlha permanecendo inertes& a

garganta apesar de calada

- +hega aui

a nossa Nlha a girar e a girar numa espKcie de dan@a e a

criatura a proteger-se com a palma& a garganta do meu marido no

calada

- +hega aui

uase um grito- +hega aui

o meu marido a pegar-lhe ao colo ao pegar-lhe ao colo& B l

saber-se o motiBo

- Ests a rir-te de uV=

e pensando em casamentos sempre me intrigou ue no lbum

apenas a otograNa de nós dois a cortarmos o bolo& nenhum retrato

de mim com o BKu e a grinalda como nas montras das loas& a minha

madrasta por eCemplo substituiu a minha me& se K ue podiachamar-se me a ei@Fes impossRBeis de adiBinhar entre borrFes&

palidees& pela sua cara intacta na moldura& o meu pai a concordar

em silVncio porue talBe para ele a minha me borrFes e palidees

igualmente e portanto uma tarde& de Bolta da escola& dei com ele U

minha espera na rua sem conessar ue me esperaBa e a minha

madrasta& ue no Bira nunca& a caminhar para nós com o aBental

ue nem ele nem eu dependurBamos do prego& a encontrar de

imediato o sRtio das coisas moBendo-se ao longo da bancada numa

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seguran@a tranuila& manobrando os caprichos das tampas das

geleias e a calha da segunda gaBeta& lembro-me de pensar

Qno pensar& sentirS

uase agradada& eli

- ANnal a minha me no so só aueles borrFes no Bidro a

minha me chegou hoe

a saber os lugares de cada um de nós& a escolher-me o prato ue

eu gostaBa& o do rebordo de peiCinhos& a colocar-me de rente para a

 anela em ue as rBores

Qno amoreiras nem carBalhos& tipuanasS

diante da basRlica iluminada& ora castanhas ora amarelas ora

esbranui@adas consoante as nuBens e o Bento& e o castanho& o

amarelo& o esbranui@ado iluminando-me as mos

- epare nas minhas mos senhora

por diNculdade em dier e com Bontade de dier

- epare nas minhas mos me

o meu pai ulgo ue com a otograNa da ue chamaBa minha

me na ideia no entendendo ue a minha me esta ue me despiu&

me deitou& apagou a lu como se deBe apagar a lu& no como o meupai apagaBa& a errar o boto& a esmag-lo& a embater na ombreira&

demasiado cheio de rases para conseguir eCprimir-se& esta ue se oi

embora como deBia ir-se embora& no esmagando o boto& no

embatendo na ombreira& no um saco ainda e apesar de eu na cama

a casa BiBa ue sorte& sons& Boes

Qno Boes nossas& a delaS

a tbua do sobrado ue costumaBa protestar com o meu pai&

protestar comigo& aborrecida& aeda& a insistir connosco- $o K assim

no protestou com ela& mesmo depois de doente no protestou

com ela& Boltou a protestar com o meu marido conorme o meu corpo

protestou& uer dier o meu corpo no uma tbua de sobrado& um

sorriso& o meu marido para um sueito de mos roRdas pelos cidos&

oculto sob muinas antigas entre telFes e ocos

- $o consegue tirar o sorriso U minha esposa senhor 9uerubim=

o sorriso da minha esposa do retrato de casamento& da

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almoada& do segundo andar do ardim +onstantino depois ue eu

para a Nlha da madrinha da minha me interrompendo-lhe a costura

no cubRculo do undo

- "ou-lhe atK ao Nm do mVs para sair de c

 Bisto ue eu o responsBel& o tutor& e portanto eu o dono&

designando no apenas o cubRculo mas os dois uartos& a sala& o

reposteiro ue aastei e apesar de aast-lo as mesmas sombras& os

mesmos Cailes e as mesmas mantas na poltrona deserta

- "ou-lhe atK ao Nm do mVs para sair de c

a Nlha da madrinha da minha me

Qa madrinha da minha me&

- "esde peuena uma rauea do cKrebro coitadaS

ue em cinuenta e noBe anos de Lisboa no conhecera outro

bairro& outra casa dado ue a me no lhe consentira conhecer outro

bairro& outra casa& a me ue lhe inBentou a rauea do cKrebro

Q- "esde peuena uma rauea do cKrebro coitadaS

para ue no se apercebessem

Qe entendia agora as cortinas& a ausVncia de Bisitas& o escuroS

ue ela sua Nlha& o pecado de uma Nlha semQ- $o minha Nlha uma hóspedeS

marido& a graBide disar@ada& a Binda de noite para a cidade

Q- Para a cidade tu=S

a Nlha a uem permitia ue trabalhasse de costura

no permitia& ordenaBa ue trabalhasse de costura a Nm de

conseguirem BiBer ocultando no só a Nlha

- $o Nlha hóspede

como a misKria do andar cercando-o de saneas& descendo aspersianas& aogando-se a si mesma sob mantas e Cailes& recebendo o

dinheiro

Q- $o Nlha hóspedeS

como uem recebe um aluguer& aceitando a minha me e o

primo +asimiro porue a minha me uma mulher soinha igualmente

e o primo +asimiro

- O +asimiro K assim

to ineli uanto ela& a secar a chuBa do bigode imagine-se

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- Ests a rir-te de uV=

e a comprar pacotes de broas ue NcaBa a deBer na leitaria& a

proBa ue no uma Nlha& uma hóspede& estaBa em ue eu o

responsBel& o tutor& eu o dono

- AtK ao Nm do mVs para sair de c

a madrinha da minha me na esperan@a ue eu& depois ue ela

morresseAtK ao Nm do mVs para sair de c

e ao ordenar

- AtK ao Nm do mVs para sair de c

Nlha alguma& no tiBe Nlha alguma& no ligue a alsidades& eu

solteira senhor& ue maldade uma Nlha& a Nlha com as suas roupas de

luto

QporuV& por uem=S

com as suas roupas de luto por si mesma& obediente& humilde

- $o sou Nlha sou hóspede

para a ual a madrinha da minha me se calhar

- %rambolho

Qno só eu o trambolhoS

para a ual a madrinha da minha me- +ontinuas aR tu=

de orma ue ao eCplicar-lhe

- AtK ao Nm do mVs para sair de c

concordando& aceitando& roupas de luto ue as reguesas por

pena

- %oma

pareceu-me ue os parentes da camilha

*empre 9ueridosa despreaBam ou no daBam por ela

a senhora da bengala& uma rapariga de tran@as& um grupo de

casais numas termas com os nomes

Ponciano Esther Alberto

oblRuos no peito procurando preBenir-me do ue no me

apetecia escutar& no como dantes

- O ue aemos com ele=

- Metemo-lo num saco=

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- oubamo-lo=

no indignados comigo& mais desocados& benKBolos& a senhora

da bengala

- Pimpolho

e no um cumprimento nem uma censura& um aBiso& pode ser

ue se lhe tiBesse perguntado me eCplicasse& ue chegando-me U

camilha ela ou a rapariga das tran@as ou os casais das termas me

audassem a compreender impedindo-me& ao Boltar na semana

seguinte& de achar ualuer coisa de estranho no ardim

+onstantino& um desassossego& atra@o um "esses ue rolaBa no

interior de mim& ue desatou a rolar cada Be mais depressa&

tombando e tombando U medida ue me aBiinhaBa da casa& tiBe a

certea ue o primo +asimiro inuieto comigo

- Ai pimpolho

no& ue a proessora da escola a retirar-me o adesiBo do dedo

- Palha@o

tambKm no& ue a minha me a desBiar a Bista uando chamei

por ela -Me a eBitar responder

- Estou auia no uerer responder

- Estou aui

e em lugar onde

- Estou aui

a censurar-me

- PoruV=

eu ue no era o meu pai me& no a abandonei& audei-a a

procur-lo no beco& na +al@ada do ;rilo& na esta@o dos comboios enunca ele entre a bagagem& o chapKu& o cigarro& as canas de pesca&

agora ue BocV deBia estar comigo eu a empurrar a porta soinho e a

muina de costura calada& nem um brilho de terrina nem o casti@al

do piano e no entanto a terrina e o casti@al ali& a poltrona no lugar do

costume& as molduras

*empre 9uerido

ento sim

- Pimpolho

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apesar de eu o responsBel& o tutor& eu o dono& a ausVncia da

muina de costura a tornar a casa sem Nm& tiBe a certea ue os

melros contra o postigo do compartimento do undo ou ento o meu

receio ue os melros ou ento a chuBa mas como chuBa se ulho ou

ento os meus dentes ou ento o sangue na minha cabe@a& em mim

todo& se a bicicleta ao menos

- A bicicleta senhor 9uerubim por aBor

mas o >eato to longe& o senhor 9uerubim alecido& a Photo

oIal Lda uma sapataria& um escritório& eu a chamar e ninguKm

no& eu sem coragem de chamar& ao longo do corredor como nos

camarotes do petroleiro persa em ue os ecos se combinaBam com os

grasnidos das noiBas e a inuieta@o dos bebKs& os seus naries ao

alto& a sua gula de peiCe& eu a cruar o uarto da madrinha da minha

me& um outro uarto& a coinha& tudo limpo& arrumado& esperando-

me

- #a@a aBor a@a aBor

nem um tacho ou uma colher por arrumar no escoadouro& as

toalhas engomadas& o soalho esregado& uma Tor noBa na arra& esse

cheiro de cera com ue se recebe as Bisitas& tudo como a Nlha damadrinha da minha me imaginaBa ue eu ueria

Qela submissa& humildeS

de orma a ue pudesse mudar-me& habitar ali& ocupar-lhe o

andar& tudo eCcepto o ue de inRcio se me aNgurou um Bestido

pendurado no Baro do reposteiro por um arame de estendal e

nenhuma nuBem& nenhum peda@o de cKu& nenhum pssaro& um par

de biueiras ue no ro@aBam o cho& o Bestido aNnal no Baio&

osse o ue osse dentro mas sem espessura de corpo& o Bestido- Ai pimpolho

no estou a eCagerar& o Bestido

- Ai pimpolho

no momento em ue lhe tocaBa e ao tocar sim& um corpo& tiBe a

certea ue um corpo no interior do algodo& o pesco@o apertado no

arame dobrando-se do colarinho sem ue eu notasse as ei@Fes&

aastar o cabelo consoante aastaBa em crian@a o cabelo da minha

me na cama topando um ueiCo ue embora dela no lhe pertencia&

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 Bolumoso& inerte& sem respirar

Quase sem respirarS

sem respirar& uma boca a imitar a sua e no entanto diBersa&

dentes ue amea@aBam morder-me e eu com a imensidade do >eato

em torno e as primeiras andorinhas do amr& as primeiras gaiBotas& o

ue supus o comboio de #ran@a e era uma corBeta no rio ou a

garraa de Bolta ao aparador ou os suspiros da muralha se uma onda

mais orte& eu a subir para a cama aastando cabelos

- Me

eu o responsBel& o tutor& eu o dono& o ue cresceu tanto este

ano& o ue haBeria de crescer ano após ano atK poisar a mo na mo

da minha mulher na otograNa do lbum& eu continuando a crescer

no segundo andar do ardim +onstantino cuas rBores se

engelhaBam& dobraBam& daBam a impresso de torcer-se no cubRculo

do undo unto U muina de costura em repouso& eu em busca de

uma tesoura para cortar o arame do estendal& em busca de um

colcho onde deitar o Bestido e nisto o teleone

Qno sei ondeS

uma campainha no orte& diminuta& uase um balido de cabra amancar na ;uinK& uase o terror de uma crian@a

- Me

uase um solu@o de um bebK com ome

Qe eu sem peiCe para dar-lheS

ue principiaBa a tocar& ue continuou a tocar durante horas&

minutos& sKculos& ue segue tocando Us Bees sem ue as minhas

Nlhas o oi@am& elas surpreendidas comigo

- O ue oi=eu a leBantar-me& a sentar-me& a pedir-lhes

- ,m momento

a aNnar a orelha na direc@o de nada& a minha Nlha mais Belha

- Pimpolho

no

- Pimpolho

eBidentemente ue no

Pimpolho

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Qnunca soube do primo +asimiro nem da minha Bida no >eatoS

a minha Nlha mais Belha

Qagora sim& est correctoS

- Pai

a minha Nlha mais Belha

- Pai

 ulgando-me demasiado idoso& com as ilusFes& os caprichos& as

patetices dos idosos& a Ntar a minha mulher& a perguntar-lhe em

segredo

- %em ido ao mKdico ele=

a perguntar& com o bico do lbio& U irm

- reparaste no pai=

e elas a conBersarem entre si ue eu bem as entendia apesar de

mudas& a minha Nlha mais Belha tem setenta anos o pobre& setenta e

um uase& a minha Nlha mais noBa& de mo diante da cara& setenta&

a setenta e um em ulho e portanto o raciocRnio& a memória& as

artKrias& tudo auilo ue deriBado ao tempo se estraga& repara como

anda& como se interrompe a meio do caminho a ouBir no sei uV&

garante ele ue o teleone e o teleone moita& na semana passada uraBa ue a muina de costura

- $o sentem a muina de costura=

e muina de costura uma oBa& um dia destes endireitou-se a

meio do antar& uase oendido

Qou no oendido& admiradoS

a responder no sei a uem& muito sKrio

- $o estou a rir-me de nada

e agoraQpor ue rao meu "eus=S

atento ao uarto do undo& a atraBessar o corredor& a olhar a

porta& a demorar-se& de mos nos bolsos& para nós

- Bou

a tornar U sala murmurando

- O arame do estendal

Murmurando

- O Baro

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e ue arame de estendal& ue Baro se no uarto do undo o liCo

ue desde eu peuena oram empurrando para l& uma poltrona

esNada& Cailes& mantas& o ue em certas ocasiFes se assemelha a um

gato& a gente

- +omo diabo K ue um gato=

e apenas uma cintila@o de terrina& ue tonta& o piano a ue

altaBa um casti@al& a pagela do rei& otograNas numa camilha

*empre 9uerido

ue nenhum de nós descobre uem eram& uma senhora de

bengala& uma rapariga de tran@as& um grupo de casais nas termas& a

gente a mostrar-lhos

- Pai

e ele

- $o est aR

dado ue a Nlha da madrinha da minha me sumida dos

retratos& a Nlha da madrinha da minha me o ue de inRcio se me

aNgurou um Bestido Baio e no interior do Bestido os ossinhos de um

bra@o& um pesco@o tombado impedindo-me de notar as ei@Fes&

aastar-lhe o cabelo consoante aastaBa o cabelo da minha me no>eato& eu aTito a sacudi-la

- Me

eu no cubRculo do undo tocando um ueiCo demasiado inerte&

sJbitos incisiBos ue amea@aBam morder-me& eu abra@ando uma

nuca

- <ocV

no abra@ando uma nuca& abra@ando um Bestido de luto ue as

clientes lhe deram por esmola- %oma

e ela humilde& submissa& concordando& aceitando

Q- "esde peuena uma rauea no cKrebro coitadaS

e nisto o teleone no sei onde& uma campainha no orte&

diminuta& uase um balido de cabra a mancar na ;uinK& uase o

terror de uma crian@a& uase o solu@o de um bebK com ome

empinando a goela

Qe eu sem peiCe para dar-lheS

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ue principiaBa a chamar& continuou a chamar durante horas&

minutos& sKculos& segue chamando sem ue a minha mulher ou as

minhas Nlhas o oi@am& elas espantadas comigo

- O ue oi=

sem repararem ue deito o Bestido no cho& me demoro a Nt-lo&

tento cobri-lo com um pano e elas ento sim

- O ue K isso pai=

isso setenta anos ue ueres& setenta e um em ulho e uma

pessoa tontinha& K natural& repara ue um dos olhos& o esuerdo&

uase echado& sem Ber& em certas alturas as ei@Fes rRgidas desse

lado& os Bincos mais undos& a plpebra ue demora a moBer-se&

lembras-te

- O ue est a aer pai=

lembras-te de uando nos leBaBa& ainda antes de ter carro& ao

outro eCtremo de Lisboa ue nos parecia nos antRpodas& nem

esttuas nem pra@as& predioitos de dois andares& BiBendas de

telhado de ardósia a imitar rancesas& ninhos de cegonhas no ue ele

diia

- O Ateneuonde cobras ue ulgBamos Benenosas& um lagarto num tanue

seco e ele eli

- ,m lagarto

como se o Ateneu lhe pertencesse& isto K uma moradia sem

reboco de anelas deseitas& ele inantil& to contente

- A +al@ada do ;rilo

ele orgulhoso

- O rioou sea relentos de esgoto& barcos ue no prestaBam& urados

Qe ele garantindo ue prestaBamS

uma espKcie de sóto abandonado& uma lata de gerWnios e o

nosso pai diante dos gerWnios ue o bao do %eo ueimaBa& a gente a

ungarmos de tro@a e o nosso pai muito sKrio

- Morei ali sabiam=

como se osse possRBel morar numa sacada e numa lata ue no

interessaBa Us gaiBotas sem alar nos restos de um petroleiro ue a

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marK dispersaBa& num ponto com um rolo de cordas onde um

homem de chapKu a umar Bigiando duas canas de pesca& ele a

correr para o homem

 Qual a correr o pateta& ele pensando ue corria para o homemS

ele a correr para o homem a perder o Ylego& a garantir

- $o K nada

setenta anos& setenta e um em ulho& as pernas ue amolecem& o

cansa@o& os pulmFes& a tornar a garantir& no a nós& a si mesmo& a

conBencer-se a si mesmo sem se conBencer a si mesmo

- $o K nada

o homem do chapKu caminhando ao comprido do %eo na

direc@o dos comboios no momento em ue o senhor 9uerubim

surgiu da Photo oIal Lda com um sauinho de restos de polBo

destinados aos gatos

Qnenhuma Photo oIal Lda& l est o ue eu aNrmo& as artKrias&

setenta e um anos ue horror& uma oNcina ou uma loa de móBeis

mas uase de eira& mas pobres& mais buracos ue oNcinas ou loasS

no momento em ue o senhor 9uerubim a reconhecer-me& a

alegrar-se- Pimpolho

o deseo de entrar no ue o senhor 9uerubim apelidaBa de

estJdio

- Entra aui no estJdio pimpolho

a muina e os trVs ocos apontando um telo acabadinho de

armar& no o da ca@ada em 3rica ou do palcio da >ela Adormecida

com a princesa de la@arote no cabelo a remar num baruinho& um

telo com buracos de enNar a cabe@a ue representaBa um casal denoiBos a cortarem um bolo

Qe as gaiBotas agora& calem as gaiBotas agoraS

de mos por cima uma da outra na aca& um Belhote com um

rissol num palito

- ,ma esta catita uma esta catita

e eu a obedecer& a subir para um caiCote& a ouBir no& sem ouBir

as minhas Nlhas

Q- O ue K isso=

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- O ue est a aer=

- "es@a daR antes ue caia senhorS

porue ninguKm haBeria de impedir-me de introduir a cabe@a

no buraco ue o senhor 9uerubim indicaBa e de surgir no retrato ao

lado de um sorriso

Qto distanteS

ue escarnecia de mim.

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QUINTA FOTOGRAFIA 

O uinto retrato no oi tirado num estJdio dado perceber-se

ue as rBores do undo Berdadeiras& no pintadas& se ossem

pintadas eram peuenas& com Tores e todas untas e estas grandes&

separadas e sem Tores nenhumas& nota-se ao longe uma senhora

mais um co& o ue parece uma senhora mais o ue parece um co

mas pode muito bem ser um caBalheiro com um saco de compras ou

um empregado a Barrer olhas para um balde& obserBando melhor

apanha-se inclusiBe o moBimento das copas dado ue um bocadinho

turBas como sempre acontece Us otograNas no caso de uma das suas

partes meCer& apanha-se a Bida deriBado U

QeCactamente como na BidaS

nitide diminuir e cada olha Brias olhas sobrepostas eimprecisas& portanto

Qdiia euS

arBores& um lago com um trito de olhos ocos no meio

Qnunca pensei ue os olhos ocos to circulares& ocupando uase

a pelRcula inteiraS

bancos de parue desertos& um deles com uma casca de

tangerina

Qacho ue tangerinaSe uma garraa de cerBea esuecidas& uma esplanada onde se

distinguem pessoas& um criado de aBental e bandea de rente para a

muina& o criado da amRlia do trito uma Be ue os olhos dele ocos

tambKm& logo um retrato no de estJdio nem de uem entendesse de

enuadramentos Bisto ue a gente no direitos& oblRuos& para alKm

de ue me alta metade da cabe@a& a saia da minha Nlha mais noBa e

as pernas da boneca dela decepadas& deBo ter dito Us duas

- "eiCem-se estar

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a Nm de eCplicar o aparelho U minha mulher ue lhe pegaBa a

medo aastando de si auele rato deunto& segura-se desta maneira&

espreita-se por este lado& carrega-se aui& sosseguei-a

- $o K um rato deunto descansa

recomendei

- $o te meCas

 Boltei a trote para o canteiro& alisei as tVmporas e colouei-me

de oelhos entre as minhas Nlhas& um preto de sapatos sem

atacadores e barrete de l atrs da minha mulher a Ntar-nos& um

soldado disparou sobre ele na ;uinK e uma cubata incendiou-se

numa chama instantWnea& reparei numa crian@a numa Bala& o preto

oi-se embora a estalar os calcanhares no cascalho e crian@a

nenhuma ue alRBio& a minha mulher ue no reparou na ;uinK

anunciando da muina

- <ou come@ar

e a crian@a de noBo com um peda@o de mandioca abra@ado no

peito& aastei 3rica com as costas da mo antes ue as minhas Nlhas

tombassem& o trito& de concha ao ombro& Bertia gua no lago& receei

ue ele nu conorme os mandmos despir ao ocuparmos a aldeia maspor sorte o escultor cobrira-lhe as Bergonhas com uma espKcie de

toalha& o preto a mendigar um cigarro nas bombas de gasolina ao

uncionrio ue Bai molh-lo de petróleo& Bai chegar-lhe um ósoro e

em lugar de uma labareda e uma camioneta a derrubar palhotas o

preto agradecido

Q- $o est mortom ue penaS

a umar& a minha mulher carregou ali& em Be de tiro um

estalido& o rolo a deslocar-se no interior do aparelho& nenhuma Ntade metralhadora posto ue nós intactos& a esplanada intacta& o trito

ocupado com a bilha& aNguraBa-se-me ue no lago moBimentos

rpidos de catanas

Qde peiCesS

estacando de sJbito na Bibra@o das lWminas& um salgueiro cheio

de dedos reTectido na gua& dedos& bra@os magros ue no

protestaBam& desistiam& TutuaBam um bocadinho poisados na erBa&

manchas cinentas

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Qde sangue=S

manchas cinentas de nuBens& suidade& terra& um pato uase de

brinuedo a remar aNan@ando-me ue estou em Lisboa& estou BiBo&

rBores como deBe ser& auelas a ue me habituei e entre as uais

cresci& a minha mulher desapareceu na espingarda

Qna muinaS

- Para o caso da outra ter Ncado mal aoelha-te mais

aoelha-te preto& cala-te e aoelha-te& os automóBeis na aBenida

de imediato unimogues& camionetas& ipes& os passageiros na

paragem do autocarro Belhas descal@as U espera& alisar as tVmporas&

 BeriNcar a camisa& propor U minha Nlha mais noBa ue enNaBa a mo

entre o colarinho e o pesco@o

Q- ,ma ormigaS

e eu a puCar-lhe o pulso enuanto a tropa ia rodeando as

palhotas e um trio de reormados baralhaBa dominós numa tbua

- $o te esregues agora

os automóBeis na aBenida automóBeis a sKrio& ue estupide

estas lembran@as& estes medos idiotas& o indicador da minha mulher

no botoQno gatilhoS

o estalido& o rolo a deslocar-se

- Pronto

eu a limpar as cal@as desse pó dos canteiros& a minha mulher

com um Bestido ue me recordo ainda

 QlilsS

- !mportas-te de dar um eito no colchete de cima=

encontraBa sardas& um tra@o de unha& sinais& respirar-lhe ocheiro da pele ao enganchar os arames& o cabelo da nuca mais

Rntimo& mais hJmido& a minha lRngua ali

Qporue no a minha lRngua ali=S

os caninos onde o releBo de um osso& uma palma sobre o ombro

a procurar-me Us cegas

- #aes-me cócegas pra

ela um esticar de cabe@a reerindo-se ao aspirador na sala ue a

adiBinhar pelas mastiga@Fes turbulentas engolia cadeiras&

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reposteiros& bules& uma das minhas Nlhas a desaparecer tubo dentro&

o abanar de cabe@a

- *e a empregada entra pensaste=

a empregada alongaBa o pK e o aspirador calaBa-se meneando o

estYmago numa espiral de sacFes& com o tempo o Bestido lils no

canto do guarda-ato& despreado& a empregada recebendo-o sem

entusiasmo

- Obrigadinha senhora

e por baiCo do

- Obrigadinha senhora

- O ue a@o com isto=

o marido ue se amanhe com os colchetes no buraco onde

moram& Binha busc-la de bonK ue permanecia na cabe@a mesmo ao

guard-lo na mo& uedaBa-se no capacho a trope@ar timidees de

bochecha arrepanhada por uma ueimadura& um peda@o de ósoro

 BiaaBa boca ora lutando por eCprimir-se e nisto o ósoro num

pulinho

- A Augusta=

por conseguinte a ;uinK uma Nga& o ardim +onstantino& pormais ue enCotemos as recorda@Fes elas connosco& tenaes& a

 Bergonha ue a madrinha da minha me me designasse de repente

- +resceu tanto este ano.

e a minha mulher Ntando a poltrona deserta

- Perdo

de tempos a tempos as narinas da madrasta da minha mulher e

o pVssego no topo a meditar

- +aio ou no caio=escorregando um centRmetro& euilibrando-se a custo& nós

- *ente-se mal senhora=

as sobrancelhas a responderem por ela Bisto ue a garganta

ocupada com as resistVncias do ar& as minhas Nlhas especadas diante

da madrasta da minha mulher abrindo a boca tambKm& a mais noBa

com a boneca suspensa pelo tornoelo desalecendo no cho&

interessadas no pVssego ue se contraRa& oscilaBa& o retrato

Qas rBores do undo Berdadeiras& no pintadasS

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com demasiada lu no canteiro onde demoraBa a reconhecer-me

numa nKBoa parda

- *ou eu=

ao passo ue a casca da tangerina e a garraa de cerBea no

banco pereitas& deciraBa-se o rótulo& a marca& se a bailarina de

corda no tiBesse alecido no sanatório em +oimbra eCibia-lhe a

nKBoa no dia em ue me deiCassem entrar& o porto aberto& o

 ardineiro a descer do escadote

- Essa porta aR em cima

senhoras de touca& Belhotes ue tossiam em camas muito

antigas& essas lues sem destino dos chalKs abandonados a

esperarem ignoro o uV de nós e de sJbito& unto a uma mesa de pK-

de-galo& tu de comunho solene aguardando-me& esconder a alian@a&

esconder as minhas Nlhas cortando os lados do retrato& aproCimar-

me

- *ou eu

ou mandaBa a otograNa pelo correio e por baiCo no

*empre 9uerido

por baiCo& numa letra ue me demorou a desenhar para ueNcas bonita

- Lembra-se de mim=

no

- Lembra-se de mim=

no tinha conNan@a para

- Lembras-te de mim=

o ue eu passaBa& U espera de encontr-la

Qe se por acaso a encontraBa desBiaBa a cabe@a Nngindo no BerSno no >eato& no na +al@ada do ;rilo& no na Madre de "eus&

para l na direc@o do centro& deBes ter demorado semanas a dar-te

conta e dei conta ue te deste conta dado ue corria a escapar-me de

ti& se a bailarina de corda no tiBesse alecido no sanatório em

+oimbra eCibia-lhe a nKBoa

- *ou eu

com a mo esuerda no bolso tentando retirar a alian@a com os

outros dedos e deBo ter engordado

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Qengordei& a minha mulher di ue engordei

- Engordaste sabias=S

porue a alian@a presa& se no tiBesses alecido tu ue me

trataBas por BocV& por senhor& por

- Olhe

a alongares-te no retrato& cerimoniosa& atenta& comigo a calcular

- Mesmo ue tire a alian@a Nca a marca estou eito

mantendo todo o tempo a mo no bolso& impedindo-te de me de

 BolBer a otograNa

- X para ti

no& nessa Kpoca

- X para si

consciente dos pinheiros e do aruipKlago de ces ue daui a

pouco U noite& antes ue eu

- Posso Boltar para a semana menina=

ou sea a reunir coragem na esperan@a de conseguir

- Posso Boltar para a semana menina=

sem reparar nos apeadeiros e nas passagens de nRBel& eu de

testa no Bidro enuanto a bailarina ia rodando& antes ue eu- Posso Boltar para a semana menina=

uma campainha& ondula@Fes de goma& a religiosa de aBental

- A hora da Bisita acabou

de modo ue no lbum a otograNa a ue dobrei os lados& o da

minha Nlha mais noBa a esregar-se& o da minha Nlha mais Belha a

eBitar o sol com o bra@o& se por acaso tu interessada

Qse por acaso a menina interessadaS

mentir- $o so minhas Nlhas

e portanto eu no canteiro soinho apesar da sombra da minha

mulher na relBa& uebrada na cercadura de tiolos e continuando a

dirigir-se a mim

- $o K a minha mulher K um desses pretos ue no altam em

Lisboa a pedir cigarros nas bombas

ou um estranho a uem eCpliuei como o aparelho uncionaBa

- *egura-se assim carrega-se neste boto assim

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na Photo oIal Lda no botFes& maniBelas& cada impulso de

maniBela uma noiBa na Baranda do engenheiro& um bebK a trepidar

eCigindo o seu peiCe& se mostrasse o >eato U minha mulher ela a

aastar os pssaros com a carteira procurando penas nos ombros

- <inhas aui tu=

enuanto dentro de mim& depois ue o primo +asimiro enCugou

o bigode no len@o& se moBimentaBam !odos de encontro U muralha& o

Jnico retrato com as minhas Nlhas ue tenho& era sempre a minha

mulher com elas& cada Be maiores& nas otograNas& uando muito a

minha sombra nos canteiros a untar-se Us sombras da minha me e

da madrinha da minha me no ardim +onstantino& a muina de

costura trabalhando unicamente para mim ao undo e na Bolta do

emprego eu calado& eu gordo& a aumentar nas almoadas

- O ue tem o pai me=

tenho ue o pVssego Bai cair-me do peito conorme o hidroaBio

no cessa de tombar no rio& tenho ue toda a semana& a seguir ao

ano em ue Boltei a encontrar-te

- Em ue Boltei a encontr-la menina

a pensar nas uartas-eiras na hospedaria da ;ra@a mais altaue o miradoiro e na anela uma trepadeira de ue nunca soube o

nome da mesma orma ue esue@o os Bossos nomes Nlhas& tento

lembrar-me e no consigo& uma ruga no nari ue no consegue

tambKm

QtiBe esperan@a ue a ruga se lembrasse e enganei-meS

- *etenta anos setenta e um anos em ulho

oito de ulho& acho eu

Qou noBe=Sno mVs em ue a trepadeira umas petalainhas claras& uase

nem pKtalas& uns pontitos alegres& desde h uanto tempo nós Us

uartas--eiras aui& se as minhas Nlhas

QK um suporS

me perguntassem demoraBa-me U procura& as minhas Nlhas ue

nunca sonharam& no haBeriam de sonhar& se por acaso sonhassem

eu

- 9ual hospedaria da ;ra@a ue inBen@o mais palerma uma

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reunio na empresa

ao Nm de um mVs a dona ue alaBa por um tubo na garganta só

ditongos& só BRrgulas a oerecer-me a chaBe

- O uartinho do costume senhor

mais alto ue o miradoiro& as noiBas& um sRtio em ue a minha

me no poderia atormentar-me de corpo inclinado para diante a

 BeriNcar o beco

- PoruV=

por Bees a meio da noite um comboio de *anta Apolónia mais

orte ue os barcos& a hospedaria da ;ra@a o Bentinho apenas

mudando a trepadeira de lugar& escreBi-te pelo menos trinta cartas

para o sanatório e por no me responderes

Qagora sim& por tuS

tiBe a certea ue tinhas alecido& a chaBe& os nJmeros das

portas

- Esta

e eu to nerBoso ue no conseguia abrir& a trepadeira sem

Tores porue noBembro& ao acender a lu tudo puRdo& eio& pensei

- Arrano um preteCto ualuer e saRmos daui  a alian@a no porta-moedas& o retrato das minhas Nlhas na

carteira& digo-lhe ue me casei& no lhe digo ue me casei& ueria

casar contigo

Q- O ue tem o pai me=S

palaBra de honra ue ueria casar contigo mas passaram tantos

anos percebes& se eu imaginasse ue estaBas BiBa uro-te ue nunca a

minha mo num bolo& nunca uma coinha ora aui ora ali a eCistir

aos peda@os& nunca as minhas Nlhas& dobrei os lados da otograNamas no ui capa de mentir-te

- *o estas

Q- Arrano um preteCto ualuer saio daui no BoltoS

a lWmpada do tecto entristecia o uarto& gente no corredor& uma

mulher

Qulgo ue uma mulherS

a rir-se& a dona do tubo na garganta sopraBa uma palaBra hoe&

uma palaBra passados sKculos e as palaBras iguais Us da minha me a

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 Basculhar ausVncias

- PoruV=

a chuBa embaciando tudo a humedecer-me por dentro& com esta

chuBa assim no consigo& deBia estar no emprego ou em casa ou no

>eato ou onde uer ue osse desde ue longe daui& sobretudo no

estar aui& uro ue no Bolto aui& no pensar em ir-me embora& ir-

me embora de acto e ao decidir ir-me embora pedir senta-te ao pK

de mim para te contar as coisas como deBe ser& no tenhas medo&

 uro ue no te toco& cruo os bra@os olha& no consigo tocar-te com

os bra@os cruados& se ao menos um candeeiro na mesa de

cabeceira& se auele galho no insistisse nos caiCilhos& se a mulher

Quma mulher& simS

deiCasse de se rir l ora e depois estes pregos onde dantes

estampas& a ronha cerida& o senhor 9uerubim

Q- $o reparesS

a sugerir-me ue te Bista de noiBa& o BKu& a grinalda

- $o a@a uma cara to assustada menina

traias um No com uma cruinha ao pesco@o desses ue nos

colocam em crian@aQuma crian@a com um peda@o de mandioca abra@ado no peitoS

e a cruinha comoBeu-me& a crian@a um ou dois passos para nós

sem consciVncia de caminhar para nós& se permitisses ue meCesse

na cruinha era eu ue me sentaBa a esconder-me nas palmas

mesmo ue o aleres

- LeBanta-te

eu uieto mesmo ue me dessem corda e um pingo de aeite nas

 untas& mesmo ue uma metralhadora a obrigar-me a dan@ar norodopiaBa& NcaBa-me& miraBa os oriRcios das balas como se um

arranho no dedo& só me preocupou ue uma arra se despenhasse

num uarto Biinho e cada ragmento um estilha@o de morteiro a

doer-me& no apenas a cruinha no peito& os teus sapatos a ue

altaBa graCa comoBendo-me tambKm& se te echasse uma nota na

mo oendias-te& as minhas Nlhas como se eu no pudesse ouBi-las o

pai no tem setenta anos& ue setenta& oitenta e dois em ulho& o

Rgado ue desiste& a anlise do a@Jcar& o mKdico de indicador no

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processo oitenta anos no so oitenta meses amigo& a gente

sossegados e nisto uma ma@ada& um problema uando o Jnico

problema era aastar as madeiCas da minha me sem lhe encontrar a

cara ou tu leBantando-te da cama

Qe o senhor 9uerubim agradado

- Aguente essa eCpresso menina essa atitude dos bra@osS

tu encostada U parede em ue do outro lado Boes& a cruinha

sumida na blusa a reaparecer

- $o

uma cicatri num tornoelo ue me comoBeu tambKm&

aproCimei-te o pesco@o e o pesco@o a recusar-me

- $o

isto K a bailarina girando para onde era impossRBel impedi-la de

continuar a dan@ar& a tua Bo como se um tubo na garganta

igualmente& palaBras uase só ditongos& BRrgulas e enuanto as

palaBras a cara impassRBel& os lbios cerrados

- $o deBia ter Bindo

portanto no eras tu uem alaBa conorme no era a dona da

hospedaria& em BocVs sem rela@o com BocVs& o das bonecas poreCemplo& uma coisa automtica a trepidar

- O seu uartinho senhor

e os olhos noutro sRtio& o pensamento noutro sRtio& no era

- $o

o ue tu uerias dier& no podia ser

- $o

e a proBa ue no podia ser

- $oestaBa em ue a cruinha do pesco@o consentindo ue lhe

meCesse& isto K tu

- $o

e a cruinha& independente de ti& a concordar comigo& o riso da

mulher mais orte e o riso de um homem com ela& a dona da

hospedaria sempre sKria

- *enhor

ao meCer na cruinha eu para mim

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- #uo daui Bou-me embora

inBento uma desculpa& uma mentira sobretudo agora ue te

sentaste na cama& ue no

- $o

o ueiCo no peito& as palmas nos oelhos& tu escondida no cabelo

conorme a minha me ao dormir& arredar-te as madeiCas e

- Me

arredar-te as madeiCas e pingos de aeite& no lgrimas& no a

cara impassRBel& no os lbios cerrados& as ei@Fes da comunho

solene ou sea uma miJda de oito ou noBe anos cuas bochechas

estremeciam

- $o abuse de mim

no por tu& por BocV& uma gotinha ue preeri no Ber no Wngulo

da plpebra& a demorar-se no rebordo& a no cair& no chores& por

aBor no chores

- $o abuse de mim

no Bou aer-te mal& no chores& sou parecido contigo& BVs

auele homem no ponto sobre um rolo de cordas& BVs um garoto

 BVs-me a mima correr para ele& BVs um sueito a secar o bigode no cais& sou da

tua idade no chores& uase todos os sbados eu no comboio de

+oimbra& escreBi-te dJias de cartas com as rases& por Bees

Qapesar do meu cuidadoS

a ultrapassarem as linhas e nas cartas

Menina

*into a sua alta menina

uando te pedi namoro num bilhete com uma cercadura decasais de rolas com Ntas no bico

no noiBas& no peda@os de peiCe& rolas de cauda em leue com

Ntas no bico& disse se no aceita ter namoro comigo eche a anela e

tiBe medo de ir Ber& decidi no Bou Ber& eu na Madre de "eus& no

 Ateneu& na +al@ada do ;rilo

- $o Bou Ber

dia oito de agosto

- $o Bou Ber

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eu a chegar aos prKdios antes da igrea com tantos auleos e

tantos nardos no altar& eu na esuina para a aBenida do rio seguro

ue no ia Ber& posso espreitar as achadas mas no o rKs-do-cho do

nJmero Binte e seis e ao aNrmar

- $o Bou Ber

a anela aberta& a anela aberta& aanelaaberta& ninguKm no

peitoril& uns palmos de tecto& um canrio de eltro numa gaiola

cromada& tentei descobrir a mesa de pK-de-galo& a bailarina& uando

a chuBa parou na hospedaria da ;ra@a a trepadeira calou-se& os

ramos suspenderam-se U escuta& tu no

- $o

isto K& eu no

- $o

a consentir ue o empregado do meu pai me sachasse por

dentro da terra& me abrisse sulcos para a batata& o cebolo& parasse a

 BeriNcar o cair e o meu oai sem se dar conta& no estaBa com o

senhor na ;ra@a

- O seu uartinho

estaBa em Arganil perto do pomar& da Binha& deu-me ideia ueuma mulher a rir-se no uarto ao lado& passou-me pela cabe@a

- X a chuBa ue Boltou

apesar dos galhos da trepadeira uietos e aNnal a respira@o do

senhor& a cara como se me odiasse

- Odeia-me=

e no ódio uma espKcie de sorimento arredando-me o cabelo da

cara& espreitando sob o cabelo

- Meuma pressa ue me e pena

- Para uV tanta pressa=

e por me aer pena a minha mo na cara dele

- Para uV tanta pressa=

eu ensinando-o ue os sulcos no se abrem dessa maneira

senhor& alongam-se um após outro& direitos& no enCugue no o sei

uV na manga& no se inuiete com o hidroaBio& as gaiBotas&

ninguKm para si

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- %rambolho

eu no disse

- %rambolho

no o mandei embora& estou aui& hei-de Boltar todas as

uartas--eiras consigo& Beo o retrato das suas Nlhas& oi@o-o

no sanatório& em +oimbra& os pinheiros toda a noite a alarem

comigo prosas ue no entendia e o senhor& tendo estudos& haBia de

entender

entende

no me deiCaBa adormecer para ue o aruipKlago de ces no

me espalhasse os ossos& a tesoura do ardineiro ia-me cortando os

pulmFes& uando alguKm morria atraBessaBa o corredor num len@ol&

um ombro a baloi@ar ora da maca& unhas ue continuaBam a crescer&

dedos de gi& da Jnica ocasio em ue o meu pai em +oimbra trouCe-

me cenouras& uma galinha de patas atadas num cordel

- "o-te de comer rapariga=

as asas da galinha espaneaBam em torno& o corpo do meu pai

para trs e para diante& embara@ado& medindo-me as raueas

esuecido do bicho- Ao menos do-te de comer rapariga=

uma graBata ue no lhe pertencia

- 9uem lhe emprestou a graBata=

a escorrer do colarinho

Qa minha me contaBa ue no Bero um irmo dela enorcado

antes de eu nascer Binha beber-nos a gua do po@o assimS

o casaco ue parecia ao mesmo tempo altar-lhe e sobear-lhe&

olhos ue se escapaBam& lbios perguntando ao tecto- %ens a certea ue te do de comer=

o enorcado Binha beber-nos a gua do po@o assim& a minha aBó

a apont-lo U minha me& em segredo

- O aime

elas as duas num cachoinho de espanto& o corpo do enorcado

para trs e para diante& a graBata ue outro deunto lhe deu

Qa minha aBó

- $unca teBe auela graBata Nlha usam a roupa dos colegasS

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demoraBa-se um momento a aBaliar os limoeiros& ia embora sem

 Bontade& no dia seguinte sinais de botas nos coentros& a ma@aroca de

pano de alarmar os pssaros uebrada& o empregado do meu pai U

espreita com a naBalha e ninguKm& ao cruar-se comigo a mulher

dele punha as ei@Fes no cho e murmuraBa& aNguraBa-se-me ue a

esposa do senhor em %aBira murmuraBa tambKm& a Nlha do cotoBelo

em gesso

- Parti o bra@o olhe

o senhor a remeCer-se& eu a entrar crochet dentro& a me logo

- Anda c

pouco antes de morarmos em Lisboa o empregado a emagrecer

de repente& umas Bertebrainhas& umas arripas& uns tornoelos de

nada& uma crian@a uase& de mos cruadas no ue tinha sido a

barriga& U entrada de casa& com o guarda-chuBa aberto a deendV-lo

do sol& o meu pai

- Hermano

o empregado uma espKcie de gesto ou antes nem um gesto& a

mo

a erguer-seQparte da mo a erguer-seS

e a desistir deBagar& a mulher audaBa-o a sumir-se arrastando

sandlias no buraco da casa e isto com a terra do meu corpo pronta&

angada com ele a eCigir aos gritos

Qe eu a cal-laS

a batata& o cebolo& uem me arranca estas erBas& uem caBa os

sulcos agora& eu de boca na almoada e o colcho a indignar-se por

mim ue eu bem escutaBa a minha Bo& todas as minhas Boes norecheio dele& eu U mesa com Bergonha ue adiBinhassem& soubessem&

a minha aBó de colher no ar

- Perdeste o apetite=

e ualuer coisa nela a adiBinhar& a saber& a espreitar o

empregado antes de me espreitar a mim isto K uns pauitos de ossos&

umas BRsceras bambas& a seguir ao uneral a mulher Beio despedir-se

da gente e cuspiu no cho ao Ber-me& nessa noite o enorcado

demorou mais tempo no po@o sem se interessar pelos limoeiros

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Ntando-me a mim& ao achar-me de manh no espelho achaBa-o

tambKm& a cara dele e a do senhor na hospedaria da ;ra@a a odiar-

me

- Odeia-me=

e no ódio& uma espKcie de sorimento arredando-me o cabelo

da cara& espreitando sob o cabelo

- Por aBor no sorrias

ele de oelhos como no retrato com as Nlhas a pedir

- $o sorrias

as crian@as na ;uinK no sorriam& no se assustaBam seuer&

acocoraBam-se unto aos cadBeres U espera& NcBamos numa aldeia

trVs dias e ao terceiro dia a mesma garota unto U mesma criatura

deitada a reder& partilhando moscas& lagartas& esses urubus ue

poisam nos Nnados sem se ralarem com a gente puCando pela carne

e nós no os augentando seuer& ao irmo-nos embora continuou ali&

o urriel entregou-lhe uma lata de conserBa e no tocou na lata& h

alturas em ue me pergunto se uma aldeia realmente ou um cenrio

de aldeia& cubatas pintadas& labaredas de guache& cada soldado um

tra@o de carBo& o ipe ue a mina eCplodiu uns noBelos de riscos& euacocorada unto dele na hospedaria onde um operrio a martelar um

cano& a martelar-me num uarto de repente próCimo como os ces

por eCemplo& de sJbito Biinhos ao ladrarem ao longe ou certas Boes

ou a mangueira de rega ou os sinos do meio-dia em outubro

Qos sinos no Biinhos& no interior de mimS

o operrio a martelar o meu corpo ou ento o bater do meu

sangue ou ento a lembran@a do empregado do meu pai

Qsei lSue se pegaBa no sacho eu sentia-o& acocorada& U espreita&

sentia os meus sulcos e torrFes e pedras e as raRes da nespereira

ue apodreceu dos bichos e o meu pai cortou& ao cortarem-na o

tronco

ia dier ue o tronco a gemer mas no gemeu& outra coisa& um

som proundo de guas Bisto ue deBe haBer guas no interior de

tudo conorme sei ue guas em mim& da primeira Be ue eu mulher

a minha aBó a designar-me U minha me

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- As guas da menina

e eu um liuidoinho roCo igual ao da nespereira& as cartilagens

dela& os tendFes& na hospedaria da ;ra@a no topo da cidade& mais

alta ue os paBFes do castelo& telhados& pombais& a trepadeira ue eu

no tinha coragem de perguntar o nome no caso de haBer nome para

ela& se calhar só trepadeira& mais nada

- +hama-se trepadeira apenas

o senhor aastaBa-me o cabelo da cara& os dedos dele to

nerBosos e eu

- Para uV tanta pressa=

eu

- "eiCe-me aud-lo espere

como audei o aleres aue mandou parar a camioneta e me

ordenou acaba com a garota antes ue se ponha a crescer e acabe

connosco

 Qa lata de conserBa apertada na moS

coloue Nos de trope@ar na picada& armadilhe o capim& lhes

conte onde estamos& desconhecem a gratido& piores ue os ces&

esses ao menos ladram e os pretos calados& se a gente a empurr-losou a bater-lhes

- $o sei

os ces ogem& eles no& para ali empoleirados como o meu pai

no seu rolo de cordas a detestar-nos

- %rambolhos

o aleres para o condutor

- Espera

as outras camionetas a seguir a nós& o cabo U procura do uartelno mostrador do rdio& acaba com a garota percebes antes ue se

ponha a crescer e acabe connosco ou desate a parir os ue acabaro

connosco& eu sem descer

Qpara uV descer=S

apontar no a ela& U lata de conserBa& Uuele brilho de metal e a

garota habituada Us larBas& Us moscas& aposto ue a aproBar-me& ela

 unto ao cadBer& uieta& ou sea primeiro uieta sentada e uieta de

bru@os depois& uma perna alongou-se um bocadinho e pronto& o

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aleres para o condutor& mirando-me de uma orma esuisita

- Acelera acelera

apertou a mo dos outros& no apertou a minha ao chegarmos& a

ue seguraBa a minha Nlha mais Belha no retrato do parue e eu com

medo ue ela abra@ada a uma lata de conserBa uando a minha

mulher disparou

- *egura-se na espingarda assim aperta-se aui carrega-se assim

eu a BeriNcar se tu uma lata de conserBa apertada no peito Nlha&

se descal@a& se uma blusinha sua& a minha mulher oendida

- *ua de uV= 9ual sua=

enuanto eu sempre a limp-la

Qpode ser ue lama& pode ser ue ormigasS

a muina Boltada para nós e eu

- Espera por amor de "eus espera

a colocar-me entre a muina e ela& o aleres enoado de mim

- <ai-te embora

a lata de conserBa nem seuer e ruRdo no cho& continuou a

brilhar& um de nós pensou em apanh-la

- no lhe serBe de nadae o aleres de dentes ao lKu urioso com a gente todos

- Acelera acelera

rBores Berdadeiras& no pintadas& se ossem pintadas seriam

peuenas e com Tores& todas untas e estas grandes& separadas& sem

Tores& obserBando melhor notaBa-se o moBimento das copas dado

ue desocadas como sucede Us otograNas no caso de alguma coisa

meCer& cada olha Brias olhas sobrepostas ou sea a mesma olha

cinco ou seis olhas simultWneas& no a preto e branco& cinentas eportanto rBores no de telo& a sKrio& a minha mulher a aproCimar-

se um passo

- <ou disparar

no& a minha mulher na camioneta acompanhando o aleres& o

 oelho nas minhas costas& o cano a pesar-me no ombro& acabar com a

minha Nlha antes ue se ponha a crescer e acabe connosco& ela a

espantar-se U mesa& a cobrir a pergunta com a mo

- O ue tem o pai me=

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tenho ue no setenta anos nem setenta e um em ulho& oitenta&

onde Bai ele Us uartas-eiras senhora& onde Bai ele na primaBera aos

domingos& o mKdico no mandou ue repousasse& no Nesse

esor@os& no saRsse de casa& lhe Bigiassem o pulso& no respeitou a

dieta& bebeu um clice de Binho& repare ue d trVs passos e cansa-

se& encosta-se U parede a Nngir-se distraRdo& a disar@ar os pulmFes&

se lhe diemos alguma coisa aceita por alheamento& concorda por

cansa@o& o tempo ue ele demora a serBir-se& a comer e depois esse

cuidado a pentear-se& o perume& o lencinho& ual almo@o com os

colegas senhora& uais colegas& ao despedirmo-nos no regresso da

;uinK& em Lisboa& o aleres

- +hega-te para l no me ales

- $o me ales

tu no uartinho do senhor

- O seu uartinho senhor

na hospedaria da ;ra@a sob a chuBa

- "esculpa a chuBa

no& ainda por BocV& por menina

Q <ou busc-la longe da sua casa onde uer ue B busc-la=S- "esculpe a chuBa

a hospedaria da ;ra@a em ue no uerias entrar e por causa do

teu pai ou dos Biinhos ou de uma prima ue continuaBa a tomar

conta de ti ui buscar-te ao >eato& no ueria alar no >eato& esueci-

o h ue tempos& oste tu uem

- +onhece a igrea do >eato senhor=

nas imedia@Fes do Ateneu e da +al@ada do ;rilo& loas onde Us

 Bees a tua prima& tu e eu- *abe onde Nca o ponto h-de haBer um rolo de cordas no

ponto

as noiBas da Photo oIal Lda nos caiCilhos da montra sem ue o

senhor 9uerubim

- Pimpolho

uma traineira& um pauete& o petroleiro persa ue remoBeram

h sKculos e com ele as senhoras idosas ue escutaBam o ter@o nos

camarotes aundados& os uintais substituRdos por prKdios de

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habita@o& garagens& uma ou duas oliBeiras com as suas borboletas e

os seus pssaros de proBRncia& eu para ti

Qno por tu& por meninaS

- *abe onde Nca o ponto h-de haBer um rolo de cordas no

ponto

esperando como continuo a esperar& como hei-de continuar U

espera de um chapKu a umar& de duas canas de pesca

Qa minha Nlha mais noBa a desculpar-me

- A idade dele meS

e ao aproCimar-me tu

- %rambolho

a sacudires-me com um gesto

Q- +hega-te para l no me alesS

tu

- *enhor

eu

- *enhor

 Bisto ue o sacho de regresso destruindo erBas& caBando&

abrindo sulcos na terra& eu- *enhor

e as guas do meu corpo a subirem& subirem

portanto inelimente tu no

Qno

- %u noS

a menina no

- %rambolho

consoante no o Bestido de comunho solene& um Bestido demulher& nenhuma Bela com uma Nta& uma carteira de pessoa

crescida& sapatos de mulher& no sapatos de bailarina a girarem& o

comboio de *anta Apolónia comigo na carruagem a partir para

+oimbra& eu no idoso& com trinta anos& menos idoso ue BocVs hoe

em dia a decidir

- <ou-me embora

subo para o caiCote

- " licen@a senhor 9uerubim=

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tomo cuidado com os pregos para no aleiar o pesco@o& enNo a

cabe@a no telo da bicicleta Bermelha ue deBe estar na caBe

Qest de certea na caBeS

entre rascos de reBelador& baldes& Bou-me embora a pedalar e

adeus pensando ue no caso de aceitar uma lata de conserBa e a

apertar contra o peito alguKm numa camioneta

Qum soldado ue um aleres despreouS

me h-de audar a Bir& eu pela primeira Be na hospedaria da

;ra@a& a dona alaBa "or um tubo na garganta ainda no minha

amiga& ainda no

- O seu uartinho senhor

a eCigir-nos dinheiro adiantado desconNada de nós& as portas

numeradas& a suspeita ue em cada porta o primo +asimiro para a

minha me com receio ue eu entrasse

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

a chuBa na anela a desolar a tarde& uma pessoa ue chamaBa

- %adeu

pareceu-me ue rolas mas como rolas no inBerno& a pessoa ue

chamaBa uma oitaBa acima- E para hoe %adeu=

e no >eato a Baante a pingar mgoas de lodo& a muralha a

descoberto& o ponto mais comprido& homens da minha idade& ue

surpresa& eles ue sempre tinham sido maiores& um deles

antigamente

- Pimpolho

e desta eita no

- Pimpolhocomo se no me conhecesse& de cal@as pelos oelhos a recolher

detritos& Alcochete mais Basto ou ento o Montio a brandir lues&

no lues& reTeCos de telhados& de chaminKs ou isso& uando tinha

uine anos uma mulher num arco mais adulta ue a minha me&

mais orte

- %raes dinheiro rapa=

se eu osse o primo +asimiro um pacote de broas& a pressa de

agradar& sorrisos& a segunda pupila a untar-se U primeira

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- Ests a rir-te de uV=

e a mulher

- Perdo=

ests a rir-te de mim na hospedaria da ;ra@a uando a chuBa

parou e a trepadeira calada& a rir-te da mo na minha cara& na nuca

- PoruV tanta pressa=

a audar-me eCplicando ue os sulcos no se abrem dessa

maneira senhor& segura-se desta orma na enCada e alongam-se

direitos ao longo do corpo& no enCugue no sei uV na manga& no

se inuiete com o hidroBio& as gaiBotas& ninguKm para si

- %rambolho

eu no disse

- %rambolho

no o mandei embora& estou aui& hei-de Boltar todas as uartas-

eiras consigo& Beo o retrato das suas Nlhas& Beo-o& no acho ue

setenta anos& setenta e um anos em ulho e as artKrias& a memória

ue alha& ulga ue uma garota na ;uinK com uma lata de conserBa

apertada no peito& ulga ue uma espingarda& um tiro e no houBe

tiros garanto-lhe como no houBe o aleres- +hega-te para l no me ales

h o senhor& h nós dois& pode ser ue uma mulher num arco

- %raes dinheiro tu=

e ue importa a mulher& BocV

Qposso trat-lo por BocV senhor=S

 BocV de punho redondo no bolso a mentir como se no casaco

notas& moedas e o bolso Baio

- %rago dinheiro uer Ber= BocV sem barba ainda& com tanta inWncia na cara& a acompanh-

la a um resto de muro a seguir aos uintais onde a mulher

- Aui

ou sea uma panela numas pedras e trapos no cho& ou sea um

peda@o de lona em ue deBia dormir& ou sea a mulher

- %ens um cigarro ao menos=

e um comboio de sJbito& de Paris ou +oimbra& a mulher uma

bailarina ue principia a girar atK ao Nm da corda& no Nm da corda

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- O dinheiro=

ela mais orte ue o senhor Qmais orte ue BocVS

- O dinheiro=

e no pode ugir no K& ugir para ue lado& no adianta ugir&

ainda percebe o rio& a marK& ainda percebe o caniBete

- O dinheiro=

ainda percebe a sua Nlha mais noBa

- Pai

a sua Nlha mais noBa

- O ue aconteceu pai=

e BocV a amparar-se U mesa com essa coisa no estYmago

QsupFe ue no estYmagoS

ue o impede de respirar& de moBer-se& a responder

Qto surpreendidoS

- $o sei.

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SEXTA FOTOGRAFIA 

E aui est o meu sogro penteadinho& graBe& todo catita

Qpercebe-se ue e a barba com mais cuidado& passa as costas

da mo na bochecha& a minha sogra com as minJcias habituais ue

no sei como o pobre aguentaBa

- Espera

a endireitar-lhe o casaco& a limpar com a ponta do len@o o ue

no estaBa suo na cara& a recuar obserBando-o só boca ranida& só

plpebras& a inBentar um tra@o ue ninguKm notou

- *aiu-me na ria uma crian@a grande meu "eus

a molhar a ponta do len@o na lRngua e a esregar o tra@o& a

reparar nos sapatos

- H uma coisa na gaBeta ue se chama graCa e outra coisa uese chama escoBa sabias=

embora os sapatos normalRssimos& limpos& por Bontade dela

engraCaBa a sola tambKmS

portanto aui est o meu sogro obediente& gorducho& depois de

o melhorarem com a coisa a ue se chama graCa e a coisa a ue se

chma escoBa

Q- $o Bais meter a perninha em cima da cadeira para me

estragares o estoo pois no=Sno dia em ue o promoBeram na empresa& sempre ue passamos

por esta otograNa a minha mulher costuma contar pela milKsima Be

e por no ser pessoa de se repetir muito suponho ue o acto a

enternece& no caso de cair na asneira de perguntar

- Enternece-te=

um soslaio de anga

- Xs to parBo

de modo ue por prudVncia eu calado a Nngir interessar-me

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enuanto a minha mulher igual U meinha

Qa Belha história dos genesS

ela ue embirra com a me& salBa o retrato de um gro de

poeira ue mais ninguKm percebe

Qsó lhe alta molhar a ponta do len@o na lRnguaS

a contar-me ue o pai

Qno me conta a mim& conta-se a si mesma& no K comigo ue

ala& sirBo-lhe para se escutar& claro ue se eu

- *ó sirBo para te escutares

um soslaio de noBo

- nasceste assim tonto=

e um Nnal de dia

mais a manh seguinte

de respostas tortas& amuosS

conseuentemente e abreBiando para eBitar o lbum echado de

estalo e partes gagas& cenas& sempre ue passamos por esta

otograNa a minha mulher a demorar-se numa espKcie de sorriso

 Boltado na direc@o da inWncia

Qno de mimSue se enche de sJbito de episódios aos uais no tenho acesso

e ue uma lgrima une

Qcontinua a surpreender-me o nJmero de recorda@Fes ue se

podem pendurar lado a lado no No de uma lgrimaS

o indicador a sair do sorriso e a insistir na pelRcula um dois trVs

toues& ao terceiro toue o sorriso a desalecer e os olhos dela em

mim

Qno olhos& duas lgrimas com os olhos dentro ue desaleciamtambKmS

- $unca entendi porue K ue o meu pai uis tirar o retrato

numa loeca to reles

ou sea uma caBe na outra ponta da cidade unto aos edores do

rio ue eu nem sonho onde Nca& a minha sogra no automóBel

- A ue misKria nos leBas meu "eus=

a minha mulher e a irm

Qsaiu-me uma boa pe@a a irmS

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a discutirem a propriedade de uma blusa

Qainda hoe discutem a propriedade da blusa ue acabou h

sKculos no liCoS

gritando-se amea@as no banco de trs& a minha mulher e a irm

catitas como o meu sogro& penteadinhas& engraCadas& no sugiro ue

gorduchas para ue

Qinesperadamente de acordoS

se no engalNnhem em mim& a minha sogra a Bigi-las no

retroBisor ue o meu sogro inclinou para si conorme U noite

negociaBam com certea& centRmetro a centRmetro& o cobertor da

cama

- Pela Bossa saJde no desengomem os Bestidos meninas

U medida ue Lisboa

Qcidade estranhaS

se transormaBa em subJrbios& uarteirFes encaBalitados&

restaurantes U beira da estrada com mais cachorros ue clientes& eu

de testa no lbum a imitar curiosidade e o No de lgrimas da minha

mulher carregando auilo tudo& os uarteirFes& os restaurantes etc

com o dedo do sorriso a insistir na pelRcula ou sea no sorriso& sódedo& um dos olhos uase a descer a bochecha& eu a lembrar-me da

minha primeira esposa ue me Bencia uando os olhos lhe chegaBam

ao nari e os ungaBa

- "eiCa-te de pieguices e empurra o olho para cima

Qao ue me consta continua por aR a ung-los com um cretino

ualuerS

elimente o olho

Qpouco Nrme K BerdadeSaguentou-se mais ou menos na plpebra& regressou ao lugar e a

minha mulher a repetir para ela& no para mim ue sou um Berbo de

encher

- $unca entendi porue K ue o meu pai uis tirar o retrato

numa loeca to reles

e a proBa ue sou um Berbo de encher consiste em ue se

iniciasse uma rase e a enCotasse com o desdKm de um suspiro

- %u no percebes isto

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a coitada da rase a amarrotar-se para aR& logo gasta& amarela&

uma cina de ideia enuanto o meu Nlho

Qum 3tila em boto ue nos h-de destruir a ambos mais cedo

ue se pensaS

martelaBa um brinuedo& as lues ao acenderem-se na rua

destin-gem para mim& eu essa palide dos telhados& esse roCo das

rBores& esses sons mais tKnues ue por um motiBo ue me escapa

me doem& a Bo da prima diBorciada de regresso como nas tardes de

gripe

- Pedrito

eu ue no esperaBa uma destas a empurrar o olho para cima U

socapa& a empurr-la a ela

- %enha paciVncia prima "ina no me leBe a mal no tenho

tempo agora

e com pena ue se osse& palaBra& apetecia-me estar consigo&

espregui@ar-me ao seu colo& sentir-lhe as molas da carne& adormecer

nos seus cheiros& os meus pais recebiam a contragosto o amigo

espanhol

- ,m pianista "ina=alaBam consigo a ignor-lo& estendiam uma colher de a@Jcar

para o ch com dois groitos no undo

- !sto ou menos=

O pianista ensaiaBa uma aruela nos oelhos& embara@ado& os

gestos da prima ue costumaBam contrariar o crepJsculo desistiam

 Bencidos& eu a melancolia da rua& sons ue doRam& doRam& a

argumentar com o prato

- $o me apetece antara gua no num arro& num rasco acetado em ue as lWmpadas

do lustre mudaBam de cor& a prima um sinal sobre o lbio com um

pVlo espetado

Qo ue eu gostei do sinal e do pVloS

um dente um bocadinho ora do sRtio

Qno& doisS

ue ainda hoe acho lindo

Qdois ou um=S

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desde ento as gripes uma ma@ada solitria sem perumes nem

colos& pules incompletos& reBistas a ue altaBam pginas& o liCo

ue a minha me retiraBa da prateleira das doen@as onde tambKm

um ano da >ranca de $eBe maneta e um apito ue se reorma de

apitar& sopraBa-se e cuspo& eu a amontoar-me de raiBa nos

cobertores$o uero

esperaBa ue

- Pedrito

e em lugar de

- Pedrito

o silVncio da casa& a minha me sacudia o termómetro e eu a

pensar& pela BeemVncia do gesto

- $o pode ser o termómetro K um penso rpido ue se lhe colou

U pele

aloaBa-mo no soBaco& apertaBa-me o bra@o contra as costelas a

contar uatro minutos no relógio de pulso

- 9uieto

com a sombra das pestanas a aumentar-lhe a ace& uase a

prima diBorciada gra@as ao abaur cor-de-rosa& sonhos conusos emue o pianista espanhol me arrancaBa acordes de tosse dos pulmFes&

a minha Binha do auarto dela meio a andar meio a tropre@ar&

aeitando al@as e apertando o roupo

Qa pele sem Bi@o& moleS

deitaBa-se comigo mas altaBa-lhe o sinal sobre o lbio e eram os

cheiros do meu pai& a desodoriante e a cerBea& ue lhe encontraBa

no corpo

Qse o meu pK ro@aBa os seus oelhos de certea ue no iriaalecerS

a minha mulher contemplando uma rana torta no tapete ue

no sei poruV se lhe aNguraBa decisiBa& mantendo o dedo na

otograNa

- $unca entendi porue K ue uis tirar o retrato numa

espeluncato reles

e por baiCo do meu sogro& gorducho& catita& todo importante&

sKrio& Photo oIal Lda a letras caprichadas& em releBo& a ue altaBa

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o doirado& isto na outra ponta da cidade& longe da o do %eo na

ual& entre cani@os e charcos& Bo morrer os naBios& o meu sogro ao

longo de muros de tiolo& colmeias Baias& uma oliBeira uase deunta

a pular de um baldio

- +omo isto mudou

se calhar uma dJia de recorda@Fes penduradas num No de

lgrima igualmente

Qa Belha história dos genesS

episódios a uem a gente agradece por continuarem connosco

mesmo desbotados& Bagos& amontoando-se numa caiCinha de ue

cerramos a tampa com medo ue se eBaporem& Bisitamo-los em

segredo protegendo-os com a mo

- $o me roubem o ue ui

missas do ;alo& patins& rebu@ados a ue o papel se colaBa& o

sinal sobre o lbio ue me persegue

- Pedrito

no chichi a meio da noite uando horas improBBeis

Qse eu acordado no eCistem& eCistem horas a sKrio ue podemos

contarSno relógio da sala& no uma e meia nem sete nem uatro& trinta

e oito da madrugada& duentas e one da manh e uma escurido

inNnita& tudo to misterioso& to grande& o próprio ruRdo do chichi um

arame de gotas a Berrumar o silVncio& a claridade do uarto de

banho irreal& um sueito de cabelo no ar ue me encara do espelho a

co@ar a cabe@a

Qele canhotoS

com os botFes do piama nas casas erradas espantado comigo eeu com ele& o sueito a Boltar para a cama

- <olta para a cama sueito no preciso de ti

dado ue talBe a prima diBorciada U minha espera na sala e eu

a espregui@ar-me ao seu colo& a adormecer nos seus cheiros& mora

em *alamanca

Qdisseram-meS

e se soubesse o endere@o& palaBra de honra& escreBia-lhe& ainda

tenho gripes sabia& dores nos ossos& momentos em ue por assim

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dier necessito de si& deriBado aos candeeiros da rua eu telhados& eu

rBores& esses sons mais tKnues ue mesmo hoe& no calcula&

magoam& a minha mulher a Ntar os candeeiros& a Ntar-me

- 9ue tolice

uando tenho a certea ue a magoam tambKm& se a gente

aceitasse o colo um do outro& nos pendurssemos lado a lado como

as recorda@Fes de uma lgrima e em lugar disso& para no dar parte

raca& o dedo a narrar ue o meu sogro na outra ponta da cidade& um

lugar de mendigos a ue chamaBa >eato onde a roupa a secar

enCugaBa desgostos com a auda do Bento& o meu sogro pisando um

regador amolgado nas pedras

Qa prima diBorciada sem ligar ao regador ou a mimS

- Era por aui acho eu

ou sea o rio de sJbito& passarada& no a habitual em Lisboa ue

no oende ninguKm& esses maiores ue se a gente no se acautela

 BVm Por aR abaiCo e nos comem& armaKns& isto K uns barracos

inclinados para a gua se pode chamar-se gua a um peda@o de

concertina a bater na muralha& um oonto de pescadores com um

rolo de cordas e chegados a este capRtulo da história o dedo daminha mulher

 Qcomo sempre prima "ina& como sempreS

a abandonar o retrato& a compor o olho& em acabando de compor

o olho

- AdiBinha o ue o meu pai oi aer ao ponto=

Qprocurei *alamanca no globo do escritório mas na Espanha&

 Berde

Espanha Berde& a #ran@a aul& Portugal amarelosó uma circunerVncia com uma bolinha ao centro e Madrid&

*alamanca mentira& mentiram-me& porue me mentiu me&

*alamanca no eCiste pois no=S

e o ue o pai da minha mulher oi aer ao ponto podia tirar-lho

da sua lgrima ou de tanto a escutar incluR-lo na minha& narr-lo de

cor ou sea um conBKs de petroleiro& ragatas sem motor& os tais

pssaros& a minha sogra

- <ais sair do automóBel tu=

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e o catita& o gorducho a trotar no ponto a caminho do rolo de

cordas& a minha mulher no Bagar dos sonhos& com a bolhinha de uma

rase a escapar-se da boca e a subir U tona

- Parecia-lhe ue um homem de chapKu a umar

o meu sogro a chegar-se e nem suspeita de homem K claro& a

minha sogra para a minha mulher e para a prenda da minha

cunhada& esuecidas da blusa

- #icou totó no est bem

enuanto ele a passar a mo pelas cordas& a regressar ao

automóBel& a instalar-se ao Bolante& decepcionado

- !a urar ue o meu pai

e tambKm um No de lgrima com remorsos pendurados& uem

podia supor imagine-se& o dedo da minha mulher a ascender do

retrato a Nm de mostrar Paris localiado num ponto algures entre o

reposteiro e uma graBura moderna@a com uma pVra Us pintinhas

- O meu aBY pescaBa nauele rolo de cordas antes de emigrar

para #ran@a

isto K o homem do chaoKu "rimeiro a umar no comboio e depois

num desses cemitKrios estrangeiros em ue os deuntos transidosporue o inBerno no pra& a minha mulher por reTeCo a encolher-se

no Bestido& o meu sogro abismado no ardim +onstantino NCando

 Bidra@as& daBa-me ideia ue a olhar as copas e a enternecer-se

Qa Belha história dos genesS

no a@o a menor ideia com uV& a angar-se de se enternecer

receando ue o houBKssemos acompanhado sei l onde e desBendado

sei l ue segredos& a tornar& batendo asitas& num saltinho de ganso&

a minha sogra a espi-lo- Onde K ue estaBas tu=

e o meu sogro a comer mais depressa& a ocultar-se no prato

como se o prato Bertical& a escondV-lo& ao limpar a boca limpou a

cara toda na mira de limpar da cara o ue eu ia urar

Qno destrin@aBa bemS

ser um galho de trepadeira ou assim

- EstaBa aui

para a direita e para a esuerda segundo a chuBa de outubro e

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uase garantia

Qsem poder urarS

ue uma mulher com ele& o meu sogro a aastar-se do ponto

ue a enchente ia leBando bloco a bloco conorme leBaBa o >eato

inteiro no sentido da o& demorou-se nos ediRcios de um beco ue

uma distrac@o da graBidade ia mantendo de pK& Barandas& anelicos&

um sueito com um pacote de broas a espantar-se para um garoto

inBisRBel

- Ests a rir-te de uV=

ou a minha mulher para mim& desconNada& alerta& a compor-me

o casaco& a transerir para o cineiro uma linha ou um cabelo Qa tal

história dos genesS o ue ela deseaBa uma linha& um cabelo

- Ests a rir-te de uV=

logo adiante na bainha da margem& espremidos por capelistas&

escadinhas& caBes& dois degraus ue a aBaliar pela espessura das

treBas deBiam conduir ao centro do uniBerso& o letreiro

Photo oIal Lda

numa caligraNa idVntica U do retrato do meu sogro mas

enBelhecida& riscada& como uerubim K maricas

a carBo por cima& com

elisa adora beto

a gi sobre o carBo& um pKnis suponho ue das grutas de

 Altamira ue talBe pertencesse ao beto e a enBolBer a elisa& o

letreiro no horiontal& de BiKs porue um dos pregos caiu

QproBaBelmente o despeito do beto ue no teBe ocasio de

aperei@oar o trabalhoSo meu sogro para a minha sogra& para a minha mulher& para a

pe@a da minha cunhada a largar o automóBel

- +hegmos

contra rebotalhos de tapetes& cadeiras& o liCo ue o dia descobre

nos passeios sem lhe conhecer a origem e me e sempre sonhar

QUs Bees um auleo com cercadura de erro orado e a

argolinha do parauso

a minha casa K o meu mundo

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eu conBicto ue a prima diBorciada

- Pedrito

as molas da carne& o colo e a minha gripe eli& uando a Bida K

diRcil palpo o sinal do lbio& sinto a companhia do pVlo

o pVlo basta-me

repito-lhe o nome no mais priBado de mim& elimino com o ciJme

do ueiCo

- *ome-te

o pianista espanhol& aNan@o-lhe

- <ossemecV no eCiste

e sossego& a minha mulher

- O ue ests a aer com o ueiCo

eu a recuar o ueiCo temendo ue o pianista de Bolta& a roubar-

ma

- $ada

se pudesse leBar para casa o auleo& os tapetes& mobilar-me de

prima dona diBorciada& reaBV-la& suportaBa o roCo das rBores ue

me obriga a empurrar U socapa o olho para cima e continuar a BiBerS

com a emo@o deste paleioQh coisas ue so undasS

perdi-me& acho ue Ramos no carta e no elisa adora beto

no& Ramos no momento em ue o meu sogro largou o automóBel

contra o liCo do dia

Q"ina& prima "inaS

anunciou

- +hegmos

e as escadinhas& as casas& os tais degraus ue conduiam aocentro do uniBerso

Q*alamanca onde Nca=S

a aBaliar pela espessura das treBas& o letreiro Photo oIal Lda

Qcomo se Biaa a *alamanca& de aBio& de comboio=S

de BiKs porue um dos pregos caiu

Qde carro senhores& hei-de ir de carro um diaS

uma montra de noiBas e bebKs nas prateleiras poeirentas&

ualuer coisa de gaiBota nas noiBas e de crias nos bebKs e agora

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imagine-se por um momento tudo auilo a remeCer-se& a erBer& a

 Boar& a minha sogra de cotoBelo ao alto

- %ens a certea ue no h perigo tu=

inuieta com a passarada de pesco@o esticado ue planaBa no

rio& albatroes& patos braBos& andorinhas do mar& um sueito nos

degraus para o meu sogro

- Pimpolho

e a minha mulher

Q- Pimpolho ue engra@adoS

balan@ando entre o uerubim ue era maricas e o beto da elisa&

toais molduras de talha& mais noiBas e mais crias& entre as noiBas um

toagala& um padre& amRlias dispostas por tamanhos ue estudaBam a

gente e em cada uma Photo oIal Lda na caligraNa em releBo com a

Jltima letra a sublinhar as restantes num arabesco pomposo& o

uerubim ou o beto com um ato no gKnero do meu aBY !smael aos

domingos a orgulhar-se da aenda& nenhuma elisa e por conseguinte

o uerubim

Qno o betoS

com um sauito de restos de polBo e uma espKcie de moca- O ue temos pimpolho=

a minha sogra a ecoar

- Pimpolho=

desconNada da higiene das Bitrines eCperimentando-as com o

mindinho indeciso& perscrutando o mindinho e deiCando-o no ar

enuanto a minha mulher e a prenda da irm a suarem-se por ali

ro@ando no balco& o uerubim ue tinha a chaBe de acesso ao

passadoQ"ina& prima "ina& "ina "inaS

a adular o meu sogro

- A tua me uma mrtir pimpolho

por aar nenhum No de lgrima em ue pendurar memórias de

modo ue a prima diBorciada teria ido e Bindo U Bontade no me

apertando no colo

Q- Adeus sinal adeus cheirosS

no compartimento depois de uma cortina meia dJia de

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muinas& ocos& um laBatório de manchas castanhas com uma tampa

de pipa de Binho e um pente gorduroso de embelear melenas& a

minha sogra alarmada

- Aastem-se do pente

a minha mulher numa Bo de crian@a Binda estou para saber de

onde e ue me e sonhar

Q- Pode ser ue a gente os dois ainda sea possRBelS

transormando o indicador num leue eCtasiado

- %antos telFes a um canto

no apenas a Bo& a atitude do corpo& osse o ue osse de bicho

despreBenido& peueno no modo como a cabe@a dan@aricou pelos

ombros& eu uase um beio sabias& uase a mo no teu bra@o&

*alamanca esuecida& crepJsculos habitBeis& o ue me interessa o

- Pedrito

mais os pules dele& os liBros das gripes& de capa Bermelha& ue

aumentaBam a ebre& moBe o cabelo outra Be tem paciVncia& deiCa-

me arear o teu cheiro& sentir as molas da carne& esses telFes de

eira ridRculos por muito ue o teu pai goste deles& um palerma o teu

pai& um pobre diabo do >eato e ue pepineira o >eato& um gorduchocatita no horror do ardim +onstantino& no te incomodaBa esse

 Belho& no te aborrecia o saloio& to graBe& to banana& to escraBo

da tua me& to pronto a aceitar tudo& encantado com buracos de

enNar a cabe@a& pra@as de toiros& bicicletas& circos& tu igual a ele

Qa Belha história dos genesS

nas preerVncias& nos gostos& tu uma pobre tambKm

Qcompreendes=S

a espreitares dos buracos eli de ser toureira& ciclista&ca@adora& a tua irm ao menos

- $o uero

conorme no me uis a mim

Quma boa pe@a& uma prendaS

mal o meu oelho no seu abriu a porta da rua

- <ai-te embora

Ncou unto U porta de beicinho a pular com os olhos echados

- $o me apare@as mais

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antes ue o eleBador chegasse a echadura trVs Boltas& o ue me

pareceu um copo a uebrar-se no cho& o meu receio ue te Nesse

ueiCa& ela ao teleone

- O Pedro

e no e ueiCa K óbBio& uem acredita numa pega sem marido&

numa mulher soinha& se a cumprimento por educa@o em casa dos

teus pais um silVncio enerBado& o pesco@o grossRssimo& a minha sogra

sem entender ora em mim ora nela& a tua irm

- EnCaueca

tu a debru@ares-te para a alcoa preocupada com o miJdo

Qh alturas ue me pergunto se preocupada com o miJdoS

a tua cara l dentro e

QeCagero meu& sem dJBida& eCagero meuS

a respira@o mais depressa& um mJsculo nas costas a contrair-

se& a contrair-se& ao tornares a pegar no garo a tua cara morta mas

regressando ao ue interessa e deiCando a prenda da minha cunhada

em pa no outro eCtremo da cidade& a Photo oIal Lda e os seus

telFes pintalgados& um deles mais gasto& sem buraco& um castelo e

uma menina de la@arote a remar& o catita do meu sogro redondinho&graBe

- X este

a desencant-lo entre tripKs aBariados& latas de tinta& escadotes&

a medir o compartimento BeriNcando distWncias& repetindo uma

cerimónia encontrada numa lgrima

Qno No de uma lgrimaS

limpando a lgrima para Ber melhor e

Qtendo BistoSa desembara@ar uma parede de rascos e cacos& a encostar-lhe o

telo& a anunciar

- 9uero aui

traendo uma cadeira de Beludo a ue altaBa um dos bra@os

Qpodia tV-la descoberto na manh de um passeio untamente

com unis& panelas& um auleo com uma BiBendinha

a minha casa K o meu mundo

e a argola de pendurar o meu mundo na salaS

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a uem ele e o uerubim depois de lhe aplicarem uma

 Bassourinha destinada aos cadBeres de insectos ue permaneceram

no damasco

Qmais damasco ue BeludoS

escoraram uma das pernas com a lista teleónica& o meu sogro

para o uerubim

- $ota-se a lista=

o uerubim

Qlógico ue uerubim& no beto& sem idade para elisasS

a preparar os ocos& a mudar uma lente

- $em um bocadinho pimpolho

esuecendo a minha sogra de mindinho no ar& ambos num tempo

dierente em ue se adiBinhaBa

Qou sou eu ue imagino ou o ulgando

ue deBo imaginar a Nm de ue o romance melhoreS

em ue se adiBinhaBa uma rapariga com um garoto ao colo ou

no com um garoto ao colo& na escada para um beco QK desta

maneira ue est certo& na escada para um becoS a rapariga

- PoruV=e o

- PoruV=

dirigido a um chapKu e um cigarro longe dela& nos carris do

elKctrico& o uerubim para o meu sogro ue se agrupou na cadeira

- Ests pronto=

os dois alegres porue um petroleiro persa e o ter@o no rdio&

um concerto de sapos em cani@os de pWntano& o uerubim

Qsenhor 9uerubimSo senhor 9uerubim de mos roRdas dos cidos

- +omo na Kpoca de dantes um sorriso pimpolho

e a Photo oIal Lda de sJbito noBa& as molduras pereitas& o

balco enBerniado& as noiBas a alisarem os tules com o bico na

 Baranda do engenheiro aguardando a marK& as almoadas desertas

dado ue os bebKs numa coBa da muralha a piarem de gula& uma

garraa ue no sei uem poisaBa num aparador

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

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o meu sogro a melhorar-se na cadeira

- Este sorriso serBe=

competente& direito& mais digno ue o magala& o padre& as

amRlias& a espingarda

ou o aparelho

apontado ao cora@o

- Aponte-me ao cora@o senhor 9uerubim

e eBidentemente no um tiro

Qual o motiBo de palaBras destas me saRrem sem mais nem

menos da boca& uantas Bees sem dar por isso te chamo pelo nome

da prenda da tua irm e l Bem a decep@o da tua cara morta& o

mJsculo das costas a contrair-se& a contrair-seS

no um tiro& um claro de magnKsio e o meu sogro congelado no

lbum com a menina a remar atrs dele& o uerubim

o senhor 9uerubim a compor-lhe as ei@Fes com um pincelito

de tinta da +hina

- Ainda no acabmos pimpolho

a traer os guaches de uma gaBeta de desperdRcios& a corrigir as

bochechas a cor-de-rosa& a aardinar-lhe a calBRcie- "s ares do teu pai pimpolho

e um moBimento do meu sogro na direc@o do ponto em ue as

gaiBotas gritaBam& dJias de gaiBotas no rolo de cordas& dJias de

penas ue tombaBam na loa& tantas ue no se distinguiam o

Montio& Alcochete& as chaminKs das bricas contra o branco do cKu&

distinguia-se o senhor 9uerubim a embalsamar o meu sogro

diminuindo-lhe a barriga ao mesmo tempo ue as noiBas

principiaBam a inuietar-se na montra tuando os Bestidos& o magalae o padre desraldaBam-se como os albatroes em ganas de partir& a

Photo oIal Lda um charco onde a passarada erBia& amRlias

dispostas por tamanhos empurrando-se& escapando-se& o meu sogro

sem atentar nos bichos a esperan@ar-se para o senhor 9uerubim

- "ou mesmo ares do meu pai a sKrio=

como se um chapKu e um cigarro& como se duas canas de pesca&

uma palma a eBit-lo

- %rambolho

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uma malita entre hortas& uintais& escutaBam-se os sapatos& no

se escutaBam os sapatos& percebeu-se

- %rambolho

e no silVncio a seguir a minha me

minha me uma oBa. a minha me uma senhora& no Bestida

dessa maneira& no arranada assim& a me dele

- PoruV=

ou sea eCactamente a pergunta ue espero da minha mulher

durante os almo@os de domingo no paBor sombrio do ardim +onstan-

tino uando a pe@a da minha cunhada o corpo todo rRgido& os olhos

echados& a bochecha ue se urta ao meu beio& a pergunta ue a

minha mulher nunca a debru@ada para a alcoa do miJdo a compor

o ue no necessita de arrano& um Wngulo de len@ol& a coberta&

guios cretinos ue tilintam& ao surgir da alcoa no

- PoruV=

calada consoante a me do meu sogro calada na primeira

otograNa do lbum igualmente com o castelo e a menina a remar&

penso ue o meu sogro conBencido atK ao Nm ue um castelo e uma

menina a sKrio& a me na cadeira em ue o meu sogro agora& oempregado de mos roRdas dos cidos

- +opia a tua me pimpolho

U medida ue as gaiBotas se multiplicaBam a solu@ar na loa

embatendo nos cenrios& nas cortinas& no tecto& andorinhas do mar&

patos braBos& uns compridos& escarlates com uma penugem no alto

Qno um pVlo no sinal sobre o lbio& uma penugem no altoS

e cuo nome no sei

Q- "ina=So senhor 9uerubim a uem as gaiBotas no incomodaBam

entalou a otograNa numa prensa

Qhoe ue sou grande posso trat-la no por prima "ina& por

"ina& por tuS

premiu o carimbo e Photo oIal Lda na margem do retrato&

passaBa-se o polegar e sentiam-se as letras& o senhor 9uerubim para

a minha sogra

- Passe o polegar madame ue atK um cego as lV

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o polegar para a direita e para a esuerda

Qnunca na minha nuca dessa maneira& nunca na minha orelhaS

lento& sedoso e eu a crescer em mim. se a prima "ina chegasse

de *alamanca

 Qe o riso dela meu "eus& o riso dela na entradaS

- >oa tarde

auele colo& aueles cheiros& as sobrancelhas depiladas e eu a

apostar ue autVnticas& pedia-lhe

- ECperimente a marca prima "ina ue atK um cego a lV

polegares lentos& sedosos e dado ue eu um espRrito sensRBel

ue reage aos estRmulos as minhas pernas mais duras& o meu Bentre

maior& a minha mulher e a prima diBorciada uma de cada lado no

so a preteCto do lbum& o senhor 9uerubim inclinaBa o retrato a

 BeriNcar os guaches& embrulhaBa-o em papel de seda num enBelope

em ue Photo oIal Lda igualmente mas sem releBo& normal&

entregaBa-o ao meu sogro

- Ora aR tens pimpolho

diRcil de ouBir deriBado Us gaiBotas& a um motor de arrasto& a

ualuer coisa ue insistia na muralha l oraQeu a tocar U campainha da prenda da minha cunhada& ela a

empurrar a porta e eu

- %ens coragem de me deiCar aui=S

ualuer coisa na muralha l ora& o meu corpo talBe& de bra@os

abertos& ue a marK traia e leBaBa& tentei chamar a prima

diBorciada e a garganta altou-me& ela cumprimentando os meus pais

sem

- Pedritonessas conBersas sem Nm dos adultos& esmagar uma loi@a um

cristal& para ue desperte& me Bea& o senhor 9uerubim surpreendido

com o meu sogro

- *o tuas Nlhas pimpolho=

como se o meu sogro uma crian@a

Qo meu sogro para ele uma crian@aS

a loa a encolher de tamanho e no loa& uma espKcie de poro

com um reTeCo do %eo& um brilho de guas densas a correr tecto

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ora& a seguir ao beco um uintal de uma só couBe& um borrego num

interBalo de prKdios& eu ue podia ter casado na amRlia de um

doutor& um aruitecto& a acompanhar-te no a um bairro decente& ao

 ardim +onstantino& ediRcios baratuchos& uns arbustos sem gra@a& a

minha rnulher designando uma Baranda com uns Basos nas grades

no de barro& pretensiosos& de cobre

- Moro ali

em cada lance de escadas ampolaitas racas porue temos de

poupar no K& bilhas de gs nos capachos& nenhum sol santo "eus&

tudo eio& modesto& um cachorro a lamentar-se numa maruise ou

num ptio& a tua mo tacteando a minha e eu a tirar a mo& se os

meus pais Bissem isto& se os meus pais me Bissem& te Bissem

- Onde arranaste esta Pedrito=

se lhes entrasses na sala a tua blusa percebes

Qno percebesS

os teus anKis& os teus brincos& os modos& eu a alcan@ar-te no

segundo andar do ardim +onstantino

 Belhas de perna ao lKu a secarem maleitas& uma camioneta de

barris de cerBea atraBessada na rua& tu de chaBe na porta e eu aaBisar-te calado

Qcom os olhos dos meus pais nos meus olhos Bia melhor uem tu

eras& ue parBoRce a minha& ue estJpidoS

- *e ulgas ue me caso contigo tira daR o sentido

sons de coisas arrumadas U pressa& esses renesins do poBo

sempre pronto ao eCagero& ao barulho

- O noiBo da tua irm auelinha

e a minha sogra no BestRbuloQcomo se pudesse no reparar na casaS

Us Boltas com o echo do colar& móBeis por aui e por ali ue o

mar abandonou meio enterrados na areia do cho& uma estampa do

rei o piano um candelabro ue emergiu a lamentar-me

- Pedrito

como se pudesse no reparar na casa& papel de parede sobre

papel de parede& o lustre pingando lgrimas ue choraBam por mim&

como *e pudesse no reparar no meu sogro todo pinoca a ascender

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do seu canto e a minha sogra

- Espera

a minha sogra

- <ais receber o senhor engenheiro nessa Ngura tu=

a corrigir-lhe o casaco& a retirar o len@o da manga& a limpar o

ue no estaBa suo na cara& a inBentar um tra@o ue ninguKm Bia

- ,ma crian@a grande meu "eus o senhor engenheiro perdoe

a molhar o len@o na lRngua e a esregar o tra@o& a atentar nos

sapatos

- H uma coisa na gaBeta ue se chama graCa e outra coisa ue

se chama escoBa sabias=

e o senhor engenheiro no reparaBa minha senhora& o senhor

engenheiro perdoa minha senhora& o senhor engenheiro a aBan@ar

um passo ao acaso& outro passo& a estacar& o senhor engenheiro

Q- O ue K ue eu a@o agora=S

com um ramo de Tores na mo esuerda e uma garraa de

espumante na outra

Qelimente o senhor engenheiro compreendeu ue no Balia a

pena champanhe& um espumante ualuerSaperei@oando um sorriso ue custaBa a ormar-se

Qa boca resistiaS

a conseguir no bem um sorriso& uma careta amBel& a oerecer-

te a careta

- %oma

por cima da ual os meus olhos procurando um al@apo& um baJ

onde pudesse esconder-me dado ue a minha sogra me impedia o

caminho para a rua com a sua gratido agitada- Mas ue Tores to bonitas ue Tores to bonitas

ualuer coisa tua& de ue preeri no dar conta& principiaBa a

descer cara abaiCo e nisto o ue me interessaBam o al@apo& o baJ

uma Be ue a tua irm no limiar do corredor& no gorducha como

 BocVs& elegante& a tua irm

Quma rica prenda caramba.

- <ai-te embora depressa

só ue na Kpoca eu crKdulo& um aninhoS

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a tua irm ia apostar ue de sinal sobre o lbio com um pVlo

espetado a chamar-me

- Pedrito

o seu colo& os seus cheiros& as suas molas de carne& um dente

um bocadinho ora do sRtio

Qno& doisS

ue ainda hoe acho lindo a proteger-me dos meus sogros& do

 ardim +onstantino& de ti conorme em crian@a me protegia dos

telhados& das rBores e dos candeeiros do crepJsculo ue doRam&

doRam.

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SÉTIMA FOTOGRAFIA 

Eis agora um retrato de Photomaton e eu arremelgado&

assimKtrico& to pouco parecido ue demoro a compreender ue sou

eu& mandaram-me sentar no interior de uma caiCa& giraram o banco

rotatiBo atK ue o meu nari U altura da cWmara& echaram a cortina

de modo ue apenas Bia os sapatos do empregado

- #iCe a cruinha e no pisue os olhos amigo

enuanto um claro dois clarFes trVs clarFes me iluminaBam no

o corpo& o esueleto a ogar-se contra as paredes metlicas

Q- Esto a assassinar-me auiS

a cada claro eu cego a lutar com a cruinha

Q- $o pisue os olhos amigoS

ossos osorescentes& auis& com um casaco por cima ue se iamtransormando em cina& ao uarto claro um silVncio& um sossego&

uma penumbra de tJmulo& a cruinha apagada

Q- MorriS

os sapatos do empregado& um deles com o atacador a uebrar-

se& encolhendo a cortina

- Pode sair comigo

 Boltar a construir-me pe@a a pe@a reunindo tronco& BRsceras&

nerBosQ- *erei capa de me leBantar do banco& de andar=S

os sapatos do empregado l em baiCo sem lhe pertencerem& ele

um antasma ue me amparaBa o ombro eBitando ue eu tombasse

de mim mesmo nos meus ossinhos auis

- *ente-se bem amigo=

c ora& no mundo a ue tornaBa a pertencer deBagar& uma

rapariga escutaBa um cliente& uma crian@a desistia de dar

cambalhotas na loa para se interessar por mim entendendo ue eu

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deunto sem se aperceber ue entendia& esuecendo-se de entender

para dar cambalhotas de noBo

- Xs capa de aer isto tambKm=

uando a minha especialidade consistia em assobiar com as

alangetas na boca& no mundo c ora uma senhora de idade a

instalar-se no banco& uis preBeni-la

- Aten@o

mas antes ue eu

- Aten@o

echaram logo a cortina proibindo-me de a audar& coladas na

caiCa tiras de otograNas de cadBeres inclinadas em diBersas

direc@Fes

Qpresumo ue dispersas pela muinaS

num mostrador de Bidro& inchados& disormes& mais um minuto e

eu no meio deles& a senhora de idade com a sua roupita barata no

meio deles igualmente& o empregado ue daBa a sensa@o de

desconNar de mim pronto a amea@ar-me& a eCpulsar-me

- #iCe a cruinha e no pisue os olhos madame

uma pausa horrRBel na caiCa sem um arrepio na cortina emboraeu com a certea ue a senhora de idade alongando o bra@o para

mim

- Aude-me

a rapariga distraRda do cliente a Ntar-me& a boca dela

- $o interrompa

a crian@a despeitada

- Ento assobia l para eu Ber:

no momento em ue introdui as alangetas na boca um clarodois clarFes e dli a nada

Quem duBida=S

o corpo da senhora de idade desistindo de lutar com a cruinha

Q- $o pisue os olhos madameS

no cho& na mala aberta um rasco de comprimidos& chaBes& no

reparaBam nela& no se incomodaBam com ela& Nngiam no a Ber& a

minha mulher no ardim +onstantino desconhecendo ue eu morto& a

crian@a a preparar uma cambalhota Nnal despreando-me

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- $o assobias nem meia

Qem dJias de ocasiFes assobiei para o meu pai na esperan@a

ue ele escutasse& numa das tardes da hospedaria da ;ra@a em ue

nem seuer nos despRamos& NcBamos para ali diante da trepadeira&

da cidade& assobiei e tu Baidosa de mim com uma pinta de sol no

sorriso& tu bonita

- Parece mesmo um cachopo

tu bonita& a gente os dois radiantes& o meu pai connoscoS e

apesar disso a crian@a na Photomaton a acelerar as cambalhotas

reduindo-me a um aselha& um inJtil

- $o assobias nem meia no Ks capa

comigo a oender-me porue ninguKm assobia como eu& sou

capa só ue no estou para aR Birado meu parBo& o empregado

retirou uma tira da caiCa e uatro eus em Nla& arremelgados&

assimKtricos& entregou--os U rapariga ue os cortou com uma tesoura

QusaBa anel no polegarS

a minha Bontade de perguntar-lhe

- Estou muito morto no estou=

e contiBe-me& usaBa anel no polegar e ualuer coisa na Bistaesuerda& uma nKBoa& se calhar deunta tambKm QBontade de

perguntar

- "esculpe o atreBimento mas est deunta tambKm=S

a estender-me as otograNas numa bolsa de papel com um

espa@o rectangular em ue um dos eus de bochecha mais acima e os

lbios pendentes& um dos soldados da ;uinK com terra no cahelo& na

arda& ue a gente

Quer dier um a segurar as pernas e um a segurar os soBacosSRamos despeando nas urnas

Qno ueria Ber& no os Bia& despeaBa-os apenasS

o anel do polegar uma cobra de prata com uma pedrinha

amarela a aer as Bees da lRngua& talBe deriBado U cobra o polegar

imenso& a articula@o& a unha& tudo auilo a meCer

Q- *e eu no aceitar a bolsa dos retratos o polegar Bai matar-me

menina=S

pensei em pedir-lhe

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- Aude-me a entornar a senhora de idade na urna

dado ue a caiCa sem clarFes& a cortina cerrada& uma mude de

mau agoiro dentro& um cigano tocaBa acordeo na paragem do

autocarro com um macauinho sobre o instrumento segurando o

copo das esmolas na boca& a mJsica a remeCer melancolias ue eu

 ulgaBa seguras& acontecimentos ue regressaBam sem aBiso e de

ue me custa alar& a minha aBó doente em +ondeiCa

Q- >ela manh pimpolhoS

a BeriNcar ei@Fes ue se conundiam com a almoada no se

achando nelas

- >ela manh menina

a cortina aberta& o banco rotatiBo U espera& a cruinha com uma

aparVncia inocente& o cigano cocou para mim num idioma ue

ninguKm eCcepto nós dois traduia& onde ter aprendido a minha

 Bida& onde soube da hospedaria da ;ra@a& dos BerFes em %aBira& dos

passeios na primaBera em *intra

Qa minha mulher

- %rabalhar aos eriados ue estranhoS

uando as accias Toriam& apanhaBa-te nos pltanos da esta@odos comboios para ue no dessem por nós& o macaco muito uieto

sobre o instrumento& com o copo das esmolas Baio& a narrar Us

pessoas na paragem do autocarro

- ApanhaBa-os nos pltanos da esta@o dos comboios para ue

no dessem por eles

a dentadura posti@a maior ue as gengiBas& no a encontro com

mau aspecto senhora oi a sua Bo ue mudou& uma desistVncia entre

suspiros& uma interroga@o lenta e a crian@a Us cambalhotas sobre si&sobre mim& a calcar-nos& a minha me com uma pVra coida e ela a

recusar o garo ou sea a minha aBó submersa& só ronha& a ronha a

recusar o garo

- "eiCa-me dormir pode ser=

na tal Bo ue me intrigaBa Binda de uma ona ue prosseguia

ainda misturada com a Binha ou o solu@o da tarde no meloal

- >ela manh pimpolho

no a minha aBó em +ondeiCa& eu a pagar U rapariga do polegar

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imenso ue me entregaBa os eus deuntos e a impresso ue a

senhora de idade ora da caiCa& BiBa

no bem nos pltanos& num banco unto a um muro& tu no

mesmo banco durante cinuenta anos de crochet nos oelhos& de

repente to rgil

Qe o acordeo a eCplicar ue to rgilS

oculta pelo pudor das olhas& obrigar o cigano a sentar-se na

Pho-tomaton& correr a cortina& um dois trVs clarFes e mat-lo& o bicho

sem um protesto aguardando ue uma moeda por Nm& eu de bolso

em bolso atK descobrir o dinheiro

- %oma a esmola palerma

no a minha aBó a noite inteira a gemer& as plantas ao rKs da

terra uando a lua entre duas rBores antes de se esconder na casa&

no era BocV aBó& BocV curada& um pouco magra mas curada& eram

rabanetes& coentros& as calhas da rega& eCaminei-a com aten@o e

eram as calhas da rega a seguir U anela sem ue eu compreendesse

o motiBo de as calhas no se leBantarem da cama& trabalharem na

coinha& pedirem U minha me ue as audasse na copa& disse

-ABóe nada nos len@óis& BocV no no colcho& BocV distante& no

colcho uma criatura ue por no saber uem era me recusei a olhar.

- >eia a tua aBó pimpolho

no tinham o direito de me obrigar a beiar uma durea ria& a

minha aBó no se arrana assim& no se Beste de noiBa com uns

arrapos no brancos& amarelos& ue retiraram entre bentinhos e

 ornais da arca& uma grinalda ue no lograBam austar e ainda ue

austassem se entortaBa de noBo& umas Tores secas nos dedos& asTores o mesmo ruRdo ue o limoeiro do po@o reTectido na gua

Qno os galhos BerdadeirosS

a aproCimar-se da gente& o empregado da Photomaton ue o

acordeo uase me impedia de ouBir apertando-me a bolsa de papel

nos dedos

- $o gostou dos retratinhos amigo=

e a minha aBó a recuar de imediato& inoensiBa& acenei para ela

- >ela manh senhora

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sem ue o meu aceno

Q estaBa U esperaS

alcan@asse +ondeiCa& o cigano do acordeo leBou-a Us costas&

 unto com o instrumento& atK ao clube recreatiBo onde ignoraBam

uem a minha aBó era& uando muito

- >ela manh pimpolho

mas um cochicho to sumido ue ninguKm daBa K ou se dessem

tomariam pelas rases sem neCo ue a regio do cKrebro& desperta

nos sonhos inBenta recombinando a memória& a gente perpleCos

Q- Onde ui buscar isto=S

a admirarmo-nos com o tamanho da Bida& os retratos da

Photomaton destinados ao passaporte de ir a #ran@a procurar o meu

pai& Paris um ponto como no >eato& rolos de cordas& gaiBotas& uma

casa igual U nossa só ue muito mais casas& Brios petroleiros persas

oblRuos no lodo e uantos homens

Qpergunto euS

de chapKu e canas de pesca a rumarem em baiCo& a minha

mulher para mim

- Ao estrangeiro=eu para o meu marido

- Ao estrangeiro=

na anela a cerca do hospital e um ediRcio ue no acabaBam de

construir

Qno acabariam de construir ulgo euS

com gruas e andaimes& a Jnica coisa ue o meu marido disse oi

- $o se BV o %eo senhora=

Qno menina& senhora- $o se BV o %eo senhora=S

alongando o pesco@o a Nm de espreitar sobre as casas sem um

olhar U cama& U colcha noBa& ao reposteiro& desiludido porue no

pssaros suos ue gritam& no Baantes e enchentes a perturbarem

a noite

Que para isso as rBores do hospital me bastaBam a insistirem

comigo

- Xs to eia

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- Xs solteira

- $unca te hs-de casarS

eu

- Ao estrangeiro=

e o meu marido a dobrar uns nos outros os cordKis dos dedos

dando-lhes nós e desaendo nós como no dia em ue alugou o

uarto U minha madrinha e a mim& auilo ue o ouBi perguntar ao

aliBiar-se da bagagem

Qdois sacos

no& uma espKcie de arca e um sacoS

no oi

- 9uanto K=

nem

- Posso usar a banheira=

a Jnica coisa ue o ouBi perguntar esmiu@ando o prKdio em

rente

Qo da unta em ue Us Bees uma oruestra& bailes& homens a

beberem cerBea U entrada

- $unca te hs-de casarS$enhum relento de gasóleo entrando por aui a enoar-nos

 Qeu para as rBores

- +alem-seS

a Jnica coisa ue o ouBi perguntar oi

- $o se BV o %eo senhora=

a dobrar uns nos outros os cordKis dos dedos em nós ue no

iria conseguir desla@ar alando-me do rio& eu para as rBores depois

de me certiNcar ue a minha madrinha alinhando geleias nadespensa

- X melhor calarem-se ue nem seuer Bos compreendo

percebem=

e um riso de galhos a escarnecer de mim apontando-me rugas

na opinio deles& eu no espelho

- 9ue rugas=

cabelos brancos onde cabelos brancos o tanas& os galhos

- #ieste Binte e sete anos em mar@o no oi=

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enganaram-se& no mar@o& ual mar@o& deanoBe de abril& os

cordKis dos meus dedos uns nos outros em nós ue no iria

conseguir desla@ar& a minha madrasta pelo BKrtice da boca a poupar

na asma

- +asares-te com o hóspede=

o espanto na testa somente a Nm de ue o pVssego

permanecesse tem-te no caias no saco& o resto das ei@Fes

concentradas em si mesmas a procurarem BiBer& o peito ascendeu na

direc@o do tecto porue o ar menos espesso& mais cil

- Estou melhor

com outras ei@Fes a admirarem-se para alKm da testa& as

orelhas por eCemplo& uma cicatriinha da plpebra

- !sso de casares com o hóspede oi a brincar no oi=

e no era a brincar madrinha eram as rugas& as articula@Fes

Qsobretudo o oelho esuerdoS

ue antes da chuBa um desconorto& um peso

- $o admira Binte e tantos em mar@o

e o meu marido sem encontrar o %eo no bairro& sentia-o

leBantar--se U nnire numa iluso de ondas& esnreitar& desistir& uasedeseaBa por ele ueum albatro ou um pato braBo no telhado da

 unta com um peda@o de lodo a pingar-lhe do bico& estendia-se ao

meu lado sonhando naBios& esses mugidos sem origem dos Bitelos

aogados e os olhos dos Bitelos

Q- %omem conta da genteS

ue o neBoeiro dissolBe& uando das Jltimas cheias na terra da

minha madrasta Bi bichos mortos assim& uma mulher ue moraBa no

arrabalde e a corrente leBou& as coCas sem Bestido a embaterem namargem

Quma delas sangraBaS

imobiliando-se um instante& continuando a ir& no dia do

casamento as minhas coCas iguais& apesar de conhecer o andar

Qsempre morei auiS

neBoeiro a toda a roda impedindo-me de escutar o meu marido

ora perto ora longe& um ombro dele& nenhum ombro

- "esculpa

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eu sem entender

- "esculpa=

sem entender poruV

- "esculpa

desculpa de uV se ninguKm culpado desta chuBa& esta lama&

sangue na minha coCa& os olhos

- %omem conta da gente

eu sem rela@o com os meus olhos a pensar

- X isto

a pensar

- $o K mais do ue isto

a pensar uando a enchente parou

- Acabou-se

limpando-me com o len@ol da chuBa e da lama a compreender o

ue signiNca soinha& a palaBra soinha& o horror de soinha& mesmo

depois das minhas Nlhas eu soinha& embora soinha o meu marido

cuidando-se comigo a perguntar pelo %eo e a arrepender-se do %eo&

o meu marido no uma traineira& o meu marido

- "esculpaele ue no sangra& no choBe& nenhum lodo para amostra

- "esculpa

as rBores do hospital

Que remKdioS

serenas dado ue o meu corpo parado na margem

Qo meu corpo soinho& eu soinhaS

no

- Xs solteirano

- $unca hs-de casar

serenas& olmos pltanos tileiras um salgueiro a crescer& eu

soinha& apercebia-me das minhas Nlhas em mim& moBendo-se&

aumentando& repetindo o meu nome

- Me

comigo a pensar

- 9uem sou eu=

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atentBamos nela& eu para o meu marido

- Ao estrangeiro=

a minha mulher para mim uando lhe mostrei o retrato da

Photo-maton arremelgado& assimKtrico& to pouco parecido ue

demoro a reconhecer ue sou eu

Qeu deuntoS

a minha mulher ignorando ue o meu pai em Paris U minha

espera num >eato maior& com mais hortas& mais oliBeiras& mais becos

- Ao estrangeiro=

um carBalho branco

Qcomo pude esuecer o carBalho& ue coisaS

antes da colina& uma ocasio tentei escreBer o meu nome na

casca conseguir ue a lWmina& ou sea a lWmina romba e nem um

entalhe& um BestRgio& eCperimentei com um caco de garraa& um

prego e nome algum& no eCisto& no eu morto& no K esse o

problema& no cheguei a eCistir& no ui a Paris porue tu na

hospedaria da ;ra@a ou no banco de *intra

Qna hospedaria da ;ra@aS

- %enho de alar consigoconundida com o ramo da anela para a direita e para a

esuerda em outubro de orma ue no posso aNrmar se tu ou o

ramo

- %enho de alar consigo

sempre cerimoniosa& por BocV& por senhor Us Bees& osse o ue

osse em ue preeri no reparar& em ue reparei e

- $o chores

eu uase a transtornar-me- ProRbo-te de te pores a chorar

e no apenas os olhos& osse o ue osse na garganta ue no

paraBa de engolir e eu no pWnico ue ao engolires desaparecesses de

mim

- $o engulas

tu ue sim com a cabe@a& no se transtorne comigo& no me

ralhe e eu a pedir sem diV-lo

- $o desapare@as de mim

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com Bontade de gritar-te e incapa de gritar ou a gritar

- Acaba de abrir e echar a mala ue gaita

porue me enerBa o estalinho& porue me enerBas tu& essa cara&

esses modos& a orma de segredar como se pedisses desculpa

- %enho de alar consigo

sabendo ue no iria desculpar-te ou tendo receio ue no te

desculpasse& sob o

- %enho de alar consigo

outro cochicho& outro segredo

- <ai-me desculpar no Bai=

ninguKm no corredor da hospedaria da ;ra@a& a trepadeira

apenas& uma cegonha cruciNcada entre dois Bentos

Quando era miJdi os bicos delas

ts ts

em +ondeiCa& a minha aBó

- $o K Vmea as Vmeas no

e o resto da rase os castanheiros comeram

- $o K Vmea as Vmeas no

um ouri@o a tombar& um segundo ouri@o a tombar& se eu tiBesseuma pedra esmagaBa-osS

ninguKm nas escadas& nos uartos& nenhum som de torneiras&

uma cJpula de mosteiro& outra cegonha uieta

Qcomo K ue o Bento as segura=S

na altura do euinócio as accias de *intra iam perdendo as

Tores& uma ocasio em aneiro saRmos U procura& no encontrmos

nenhuma e nisto a tua mo no meu bra@o

Qa Jnica Be ue a tua mo no meu bra@oS- "eBemos estar Belhos no K=

eu sem coragem de pYr a minha mo nos teus dedos a entender

de repente ue um dia destes

h alturas em ue alo demais& ponhamos

Qe K tudoS

ue eu sem coragem de pYr a minha mo nos teus dedos e os

dedos a irem-se embora de mim& nenhuma Tor em *intra& as

esplanadas desertas& os arbustos do inBerno a aumentarem na tarde&

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na tua pele pintas castanhas& sardas de modo ue deBemos estar

 Belhos de acto& pintas castanhas na minha memória igualmente

apagando acontecimentos& pessoas& o primo +asimiro

Qpor eCemploS

largaBa-me no cho

- Ests a rir-te de uV=

mas no consigo lembr-lo& lembro a garraa no aparador& no

ele& lembro a manga ue seguraBa a garraa& no me lembro da cara&

pacotes de broas

-<ais Ncar a pensar ne

e a seguir um espa@o em branco e a seguir

le a Bida inteira peuena=

lembro-me do primo +asimiro secar a chuBa do bigode em

 AlcWntara& da trepadeira na hospedaria da ;ra@a e tu no sentada na

cama Qse eu ordenasse

- *enta-te

sentaBas-te sem largar a malinha& no me audaBas a tirar-te o

casaco& a desabotoar-te o BestidoS

tu no sentada na cama& conundida com os ramos- %enho de alar consigo

ou

- %enho de alar consigo senhor

K diRcil passados tantos anos

Q- ,m dia destes nósS

esclarecer neste momento& esclare@o ue os estalinhos do echo&

a garganta ue no deiCaBa de engolir& de engolir-se& recordo-me de

um brocheitoQum bJio& acho euS

com uns eneites Berdes& tu no em Bo alta& em segredo como

se me pedisses desculpa

Qpedias desculpa& repetias baiCinho porue pedias desculpaS

- %enho de alar consigo senhor

e deriBado U hospedaria da ;ra@a em silVncio a tua Bo to orte&

um dos enchuma@os deslocado do sRtio& a gola no sei de ue tecido&

com brilho

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Qao princRpio uando tentei dar-te dinheiro a Bo mais baiCo

ainda& as pupilas oendidas dois ces ue no ladraBam eBitando-me&

recuando a babar-se

- 9uer oender-me poruV=S

a palma do Bento euilibraBa as cegonhas na cJpula do

mosteiro& os ninhos delas em +ondeiCa carrapitos de arame na

chaminK do adBogado

Q- >ela manh pimpolhoS

tu no conundida com a trepadeira& tu a trepadeira ao desligar-

se de mim

- $o

tu no comigo& na parede l ora& um cansa@o nas bochechas& na

boca& tu no alarme da minha mulher ao dar-se conta ue nós

ue ela

ao dar-se conta ue a minha Nlha nela porue nenhum sangue&

nenhumas coCas nuas a embaterem na margem& somente o corpo a

crescer

de modo ue eu sentado na cama U alta de um rolo de cordas&

um ponto- %rambolho

e osse o ue osse em ue tentei no reparar& em ue reparei e

- $o chores

no uase urioso& urioso

- ProRbo-te de te pores a chorar

embora tu no lgrimas& mos ue abriam e cerraBam a mala& o

peito para diante e para trs& eu

- %rambolhoe arrependido do

- %rambolho

eu

- Perdoa

nenhuma Tor nas accias de *intra& a tua mo ue procuraBa o

meu bra@o sem apertar o meu bra@o& o bJio do brocheito ue deBo

ter arrancado porue o brocheito no cho& porue o meu sapato a

esmag-lo

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- $o o apanhes

no consinto ue o apanhes porue o meu sapato de noBo e no

era o broche ue eu esmagaBa& sabias ue no era o broche ue eu

esmagaBa& sabias uem eu esmagaBa ao calcar os eneites& o metal

- EngraBidaste como a minha mulher tu=

osse o ue osse nos olhos em ue tentei

QpreeriS

no reparar e nesse instante sim& onos a girarem& troteinhos

rpidos& a dona da hospedaria

- Mais respeito

passos& uma gargalhada de mulher no corredor

- Edmundo

um homem ue or@aBa uma ma@aneta& ordenaBa

- <em c

no eu para ti& eu a segurar-te o Bestido& a desaboto-lo sem dar

K ue desabotoaBa& eu

- EngraBidaste tu=

eu apenas

- EngraBidaste tu=no o homem ue ordenaBa U gargalhada da mulher

- <em c

outros passos& outros risos& a dona da hospedaria

- Mais respeito

eu a sentar-me na cama de noBo

- <arre o broche depressa

tu de oelhos no soalho a engolires-te e gra@as a "eus ue a

trepadeira da anela me impedia de Bergra@as a "eus ue a trepadeira da anela impedia o senhor de

 Ber o meu corpo ue laBraram& plantaram

Qa batata& o ceboloS

daui a nada uma olhita a erguer-se da terra e no oi o

empregado do meu pai& no oi o sacho l ora& a minha boca na

almoada no a protestar nem a pedir& apenas

- %enho de alar consigo

apenas

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- *e uiser mande caBar em mim e arranue-me a batata o

cebolo antes ue a tal olha e o meu pai sua cabra e o primeiro

murro o primeiro encontro antes ue a mulher do senhor e as suas

Nlhas

tu sem te engolires a ti mesma com o Bestido desabotoado e os

pedacitos ue restaBam do broche na palma

Qa trepadeira diminuRa na anela& as cegonhas cruciNcadas&

tranuilasS

- $o Bou preudicar a sua mulher e as suas Nlhas senhor Nco

consigo aude-me

Qas cegonhas cruciNcadas& tranuilasS

o echo da mala pendente& nunca eCigiste ue BiBesse contigo&

nunca aceitaste dinheiro

- $o me oenda

NcaBas dois toldos adiante em %aBira sem um protesto& um

pedido& sem anunciar

- Estou aui

dado ue no precisaBas de anunciar

- Estou auidado ue

- $o pe@o nada no o incomodo pois no=

tu em *intra U minha espera nos pltanos tu

- *enhor

enuanto eu pedia com a minha mo nos teus dedos sem ue a

minha mo nos teus dedos

- $o me deiCes nas accias soinho

nenhuma accia na praceta ora de Lisboa em cuo rKs-do-chome proibiram de entrar

Q- Aguente um instantinho l oraS

no prKdios& um morro

Qdois morrosS

de BiBendinhas baratas construRdas com restos de BiBendas

caras completadas com sobeos de andaime& olhas de inco&

papelFes& ualuer coisa do >eato mas sem gaiBotas nem gua& gatos

ue o senhor 9uerubim no perseguia de pau atrs das costas com o

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saco de polBo

- <enham c Benham c

o rKs-do-cho em ue me proibiram de entrar

- Aguente um instantinho l ora

um rumor nos teus olhos ue no uis perceber e a garganta a

engolir de noBo& iuleuei aue o meu nome

Qoi a Jnica altura em ue ulguei ouBir-te o meu nomeS

no uma Bo de mulher& uma Bo de crian@a& a seguir U Bo de

crian@a K ue a Bo de mulher

- "esculpe

os olhos aNnal secos& a garganta Nrme& o echo da mala cerrado

e por conseguinte se calhar nunca disseste o meu nome& supus&

inBentei& proBaBelmente no alaste seuer& eCprimiam-se por ti& por

eCemplo o sueito da boina basca ue grelhaBa peiCe c ora e eu

para os olhos do peiCe

- $o chorem

uase a angar-me

Qa angar-meS

- ProRbo-Bos de chorar entenderam=olhos brancos& com medo& a suspeita ue os meus olhos

idVnticos aos dele& brancos& com medo& a gola do Bestido de onde te

arranuei o broche amarrotada& rasgada& os teus olhos no de peiCe&

tranuilos

Qaposto ue a trepadeira tranuila igualmente na hospedaria da

;ra@a& nem um raminho a aTigir-se& tudo imóBel& eternoS

o sueito de boina basca ou a criatura ue resolBia o problema a

abrir-nos a porta e ao abrir-nos a porta metade de uma mesa de BiBenda cara com uma *anta de gesso& a criatura ue resolBia o

problema a espiar-te& a espiar-me

Qmais a aBaliar-nos ue a espiar e nisto dei conta de uma

palmeira direita ao cKu num Rmpeto entre uma ainhaga e um taludeS

o sueito de boina basca ou a criatura& no sei ual ao certo

Qno a *anta da mesa& o ue lhe importaBa& U *antaS

- Aguente l ora um instantinho

a@a de conta ue est em *intra& passeie& distraia-se& BeriNue

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por aR na ainhaga& no talude& no ue lhe parece o >eato& onde lhe

der na gana compadre

Qno senhor& compadreS

se primaBera& se maio& se as accias em Tor& distraia-se da gente

e omite a rararias. se nela a si mesmo

- PrRbo-o de se engolir a si mesmo

no sinta isso& no chore e agora a trepadeira

Qou o meu sangueS

a oscilar uando a porta se echou& eu encostado U porta& um

sino em ualuer ponto urando ue meio-dia

QdeBia urar ue meio-dia Us one horas da noiteS

mulheres surgindo das anelas em Beniaitas de cucos& o umo

do peiCe

Qse assim me posso eCprimirS

o umo do peiCe ou a gordura do peiCe ou os olhos do peiCe

Qno a chorarem& secosS

ou as aJlhas do carBo pegaBam-se-me U cara& escorriam-me da

cara

Qno lgrimas- ProRbo-te ue chores

no lgrimasS

e ao esregar-me com o bra@o no lgrimas& eBidentemente ue

no lgrimas& eBidentemente ue nada& a minha cara limpa U medida

ue a palmeira continuaBa a subir& um tordo

Qacho ue um tordoS

surgiu de um telhado num cRrculo rpido e aundou-se nas

sardinheiras alKm& em *intra no sardinheiras& pltanos& etos&accias claro& centenas de rBores de ue no aprendi o nome sem

contar os arbustos& as trepadeiras

Qno a da hospedaria da ;ra@a ue nunca Bi outra no gKnero& de

corolas to recortadas& to bonitasS

eu em *intra sem ti porue tu no rKs-do-cho da praceta

tu

Qsuponho euS

deiCando-te despir& tu nua& inerte

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Qno bem inerte mas K diRcil eCplicarS

conorme se eu te despia tu com outro homem noutra cama

noutro lugar noutro tempo

eu em casa do meu pai com medo ue o meu pai se apercebesse

enuanto o sacho do empregado ia caBando a terra para a batata& o

cebolo e o almo@o por aer& o rango no alguidar& a minha me a

chamar-me e no escutaBa a minha me

Qeu sem lugar para a minha me no meu corpoS

escutaBa o ue dentro de mim tomaBa orma e crescia& antes de

entrar no rKs-do-cho notei uma palmeira direita ao cKu entre a

ainhaga e o talude& osse o ue osse nos olhos do senhor e o senhor

- $o chores

apesar de no ser eu uem choraBa

Qo meu pai morreu e no chorei& a minha me morreu e no

chorei& se penso nisso acho ue no sei chorar& sei ue um suor como

lgrimas e no lgrimas nunca& mesmo ue Nesse or@a no

lgrimas nunca& na tarde em ue me eri com a naBalha designei a

palma ao meu pai

- Auie no lgrimas nuncaS

o senhor angado por chorar

- ProRbo-te ue chores

o senhor uando eu na hospedaria da ;ra@a

- %enho de alar consigo

porue no posso dier

- %u

poderia dier- %u

ao empregado do meu pai se o empregado do meu pai comigo e

se o empregado do meu pai comigo eu

- *im

no a pedir& a comandar

- *im

ele com receio do meu pai a espreitar em torno sem coragem&

parado& no era eu& era a terra em mim

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- "epressa

antes ue a terra seca& morta e ele parado& ele

- $o uero problemas menina

e parado& se eu tiBesse a Bergasta da carro@a erguia a Bergasta&

obrigaBa-o& o senhor na hospedaria da ;ra@a no alto da cidade onde

me enBergonhaBa ir porue uem uer ue leBantasse a cabe@a em

Lisboa daBa por mim e toda a gente sabia ainda ue eBitando a

 anela ou reugiada na parede& o senhor mal eu

- %enho de alar consigo

igual ao retrato da Photomaton no lbum& arremelgado&

assimKtrico& to pouco parecido ue demorei a reconhecer ue era

ele& mais baiCo ue eu& mais gordo& com as mos melhor tratadas&

uase como os sobrinhos do droguista ue se riam de mim& a partir

de eu aer tree anos deiCaram de se rir& suspendiam-se a olhar-me

curiosos& amBeis& entregaBam-me papelinhos na missa&

acotoBelaBam-se& cochichaBam-se sKrios

- $unca supus

o meu pai aia men@o de lhes largar os ces& o droguista para

o meu pai- O ue K isso=

e o meu pai

QlogicamenteS

a pedir desculpa porue o droguista nos alugaBa a courela e

deriBado a no termos dinheiro o meu pai atrasaBa a presta@o& o

droguista para o meu pai a demorar-se em mim& a apontar-me o

 ornal

- Atrasaste a presta@ode modo ue no Nm do mVs a minha me me passou a erro a

blusa& me estendeu a escoBa

- Penteia-te

e mandaram-me ao estabelecimento com um caba de

damascos& o meu pai di ue entrega o dinheiro no dia uine sem

alta senhor e o droguista acabando de aBiar uma reguesa a

designar-me com o ueiCo U medida ue Bertia uma garraa para um

rasuinho comprido

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- A Nlha de um rendeiro meu

rolhaBa o rasuinho sem me dar aten@o

- Espera

e eu U espera enuanto ele a aer contas num papel

- X tanto

o lpis a escorregar um bocadinho obrigando-o a enganar-se

- Esta aritmKtica

a corrigir a soma& a cliente torcia a cabe@a para a corrigir com

ele estudando cada parcela antes de se ir embora& eu a aperceber-me

de uma ueimadura de erro na blusa e disar@ando a ueimadura& o

droguista estendeu-me ao acaso um dos damascos

- %oma

desceu a persiana da montra sempre sem me dar aten@o só ue

os gestos sacudidos& rpidos& o bigode dele amarelo& mais idoso ue

o meu pai& mais grisalho& do tempo do meu aBY penso eu Bisto ue

sob o ueiCo uma espKcie de pele ue oscilaBa& daBa ideia de encher-

se como a goela dos pssaros& se crispaBa Bermelha& colocou na

ma@aneta da loa um carto

Encerradoe o carto a dan@ar& no me apetecia o damasco& no Bou comer

o damasco& o droguista do tempo do meu aBY& a perna esuerda mais

lenta& a garraa com ue entornaBa o lRuido no rasuinho comprido

cheiraBa a terebintina& nas traseiras ardos& Bolumes& um postigo

para a igrea e uma Jnica camioneta Baia& o droguista a respirar-me

no pesco@o e eu

- $o me estrague a blusa senhor

no momento em ue o teleone principiou a tocar e durante todoo tempo& mesmo ao deiCar de Ber a igrea e de tombar um Bolume o

teleone a tocar& to orte ue se o droguista

- Espera

no poderia entendV-lo conorme no entendia o meu corpo

preocupada em segurar o damasco& se a minha me comigo aposto

ue a chocalhar-me

- Agradece o damasco idiota

de maneira nenhuma& eu com o cheiro da terebintina no nari e

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OITAVA FOTOGRAFIA 

!sto no K uma otograNa como as outras K um desses postais de

pacotilha a preto e branco ue se compram em *intra com o Palcio

da <ila ou Monserrate ou o +astelo

Qno caso a estrada de *eteais e umas accias num muroS

ue o meu pai no sei poruV meteu no lbum ue me

emprestou num domingo em ue ui ao ardim +onstantino para

eBitar ue a minha me continuasse a sarrainar-me o uRo ao

teleone na choradeira habitual& no ueres saber de nós& no nos

 Bisitas& no nos ligas nenhuma& eu a suspirar de nari no tecto com o

aparelho aastado do ouBido& a estender o bra@o o mais longe ue

podia

Qao menos a@o eCercRcioSe mesmo assim continuando a escut-la& eu uando te calars

minha chata e uma pausa nos lamentos& a minha me intrigada& o

anol de uma pergunta ue no mordi

Qconhe@o-te as manhas de cor espertinhaS

- "isseste alguma coisa tu=

eu ue tenho o rabo pelado e ando a pau com armadilhas a

aproCimar o aparelho& a apagar o cigarro e a soprar uma resposta

 untamente com o umo- "eBe ser o noticirio no disse nada senhora

o

- "eBe ser o noticirio no disse nada senhora

a enrolar-se em Bolutas& a estirar-se num boceo& a desaparecer

no ar& um solu@o ou uma ungadela eCagerados

Qtopo-te U lKgua percebes=S

na outra ponta do No ou sea a minha me iniciando a todo o

 Bapor o seu amoso nJmero da desditosa com os ingredientes

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completos& a Belhice& os achaues& o abandono das Nlhas e nem isso K

 Berdade senhora& ue teatro& ue drama& h-de lembrar-me para lhe

dar um prKmio& tem sempre a guarda de honra da minha irm com o

crian@o e o parBalho do marido ue h coisa de um ano& cheio de

salamaleues e dedos& me e uma parte gaga aui em casa& a

arrulhar descendo a manga do so para as minhas costas

- +unhadinha

enuanto o oelho me ia entrando em retóricas com a perna

Qa ausVncia de subtilea dos homens h-de desapontar-me

sempre& to imbecis& to primrios& denguices de carneiro mal morto

ue só U boetada& piadas de pano encharcado nas trombas a ue

ninguKm salBo eles acha gra@a& carRcias

carRcias uma oBa

ue aem cócegas em lugar de eCcitarem& o soslaio aos

compinchas

- %enho a gaa no bolsoS

e eu ue me artei de dar para esse peditório no tempo em ue

acreditaBa ue os meninos Binham de Paris na cegonha e hoe em dia

no ando neste mundo por Ber andar os tCis& a auCili-lo a tomarnota dos aimutes do capacho no patamar

- #ora

as denguices de carneiro mal morto substituRdas por um sorriso

uase heróico ue lhe deBia pesar arrobas na cara.

 Qpercebia-se a ginstica dos lbios a aguentarem-no a custoS

as carRcias ue aem cócegas suspensas

Q- Olha ue te cai a mo no tapete apanha a mo ue se parteS

o oelho actiBo mas a perder energia& a amolecer& a murchar e aminha perna liBre& o arrulho engrenando sem transi@o

protestoinhos magoados

- #ora=

ele indigna@Fes& surpresas& capa de Bencer& ou pelo menos dar

rKplica& U minha me nos teatros

Qtiro-lhe o chapKu por issoS

ela nas lgrimas a tactear len@osApanho uma trombose e tu nem

ds por nada

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ele atestadinho de inocVncia a aer-se de lucas

- #ora=

uando em lugar de

- #ora=

Qe eu a BV-lo poisarS uma oscila@o de medo

Qto cobardes os homensS

- $o me Bais estragar a Bida cunhadinha no Bais contar U tua

irm pois no=

a amRlia de sJbito importante& a letra do carro& a Bidinha& se

osse capa de ter pena teria pena dele mas com auilo ue os anos

me oram dando resseui-me por dentro& areia& pedras& cacos de

emo@Fes& nada inteiro a meCer& nem uma olha BiBa para amostra e

as pessoas no reparam& no sonho ou sonho restos de sonhos&

ragmentos ue me inuietam& alguKm ue no distingo

Qtento distinguir& no distingo e no distinguir aTige-meS

a inclinar-se para mim

- auelinha

e a ir-se embora antes ue eu

- Espere- %enha paciVncia espere

- "eiCe-me BV-lo um momento

e no espera& no tem paciVncia& no me deiCa BV-lo um

momento

Quem ser=S

isto no propriamente uando durmo& a partir da meia-noite ao

dar-me a rauea na sala& esses instantes em ue o corpo ora no

eCiste ora eCiste& eu sem membros& sem cabe@a& a beCiga a pesaraNrmando

- *ou eu

uma tosse ue me no pertence e ao sobressaltar-me K minha& o

corpo a ormar-se de noBo a partir dos disparos dos brYnuios& de um

molar em desacordo com o dentista e no bem dor& a resBalar para a

dor e a uedar-se U bordinha sem a atingir realmente& apenas

- Eis-me aui

a beCiga e o molar

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- Eis-nos aui

e com o molar a lRngua

Qtenho lRnguaS

contrariando as minhas ordens sem cessar de eCplor-lo

Qo chumbo& uma arestaS

e a seguir tenho pKs& tenho rabo

Qdi-me o so ue tenho rabo& ossos no rabo a necessitarem de

mudar de posi@o& cansadosS

olhos cegos ue esbarram numa parede tornada uadros&

mobRlia& o saCoone num prego

Qpor ue carga de gua o comprei=S

ue ulgaBa diBertido e no me diBerte mais& muito maior ue

ele mesmo acol a ma@ar-me& a nusea dos obectos& o gato na

mesinha marrouina& aspirando a bibelot& ue desperta em unRssono

com o molar& o gato a estirar-se no soalho e o molar ueiCo ora& as

unhas Uo molar a magoarem-me a carne& as do gato no parue&

ambos parados Ntando-me

- auelinha

e aNnal o- auelinha

no era uma pessoa a salBar-me& a leBar-me consigo no importa

para onde desde ue me leBasse& eram eles& o bicho e o dnete as

Jnicas coisas BiBas desta casa e lateando-me as duas& enadando-se

de mim& adormecendo de tKdio& deiCei de ter boca& ceguei outra Be&

o gs da caldeira& deeituoso& assobiaBa na maruise e a auelinha&

sem Bi@o

Q- A minha Nlha mais noBa sempre to respondona to rebeldeno h marido ue se interesse por uma mulher assimS

desistindo de esperar

Qesperar o uV=S

- %enham pena de mim

sem ue& reo eu& o parBalho do meu cunhado topasse& a

auelinha to respondona& to rebelde& a comer com os pais ao

domingo num segundo andar escurRssimo& a casa a cair de Belha de

ue nunca gostou e em ue os móBeis se assemelhaBam a despoos

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de cerco

- Olha o ue parece um louceiro o ue parece uma cómoda

nem o destro@o de um piano altaBa& carregaBa-se numa tecla e

silVncio& carregaBa-se numa segunda tecla e um gemido humano

- Aleiaste-me

como se o martelo do dentista a bater no molar& rBores

aparentadas com o piano a ue altaBam gemidos ou com gemidos a

mais se o Bento& por desastio& se distraRa nelas antes de passar uma

palma rpida no estendal da Baranda um brilho de terrina ou uma

poltrona deserta onde se me aNguraBa ue um indicador

- +resceu tanto este ano

a eCibir-me num Jbilo Bacilante Us otograNas da camilha& uma

senhora de bengala& uma rapariga de tran@as& um grupo ue

almo@aBa

QgarraFes& charutosS

numa orla de pinhal com automóBeis de Nlme antigo na clareira

ao lado& nomes a apagarem-se da pelRcula e um

*empre 9uerido

inapagBel em letras de metal& a auelinha a aborrecer-seentre os mortos no mencionando a humidade do papel de parede

Qdois papKis de parede a descolarem-se um por cima do outroS

desbotando para mim o seu mau gosto e o seu bolor apesar dele&

tudo mais suportBeis ue o beato& onde o meu pai morou entre

relentos de marK& e ue omos obrigadas a Bisitar uando o

promoBeram na empresa a Nm de ue ele posasse diante de um telo

de eira com umas pinturices uaisuer& U altura do papel de parede&

para um cria-turo emocionado pela sua presen@aQh gente para tudoS

ue tresandaBa a polBo maneando ocos inseguros a alar-lhe no

pai dele& a chamar-lhe pimpolho e o meu pai& para no Ncar em

dRBida& a emocionar-se tambKm Ntando um rolo de cordas num

ponto& Ntando as gaiBotas& a mostrar-nos umas escadas com Basos

de begónias ue o ar do %eo comeu

- Morei ali sabiam=

caiCilhos sem Bidra@as& um abandono suo& ele saudoso dos

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caiCilhos

Qh gente para tudoS

percebia-se pela eCpresso ue a entrar l dentro

QU procura de uV=S

sem subir as escadas e aposto ue um aparador com tampo de

oleado e uma garraa em cima& o meu pai com cinco ou seis anos&

indeciso& gordo& nisto uma Bo a amedront-lo

- Ests a rir-te de uV=

um Bulto to plido como os *empre 9ueridos& ugido da

camilha a secar promessas no bigode

- ,m dia destes Bolto pimpolho

e o >eato um telo de eira tambKm& cani@os de aguarela& barcos

desenhados& uma ilhota com andorinhas do mar e tudo esborratado&

miserBel& mais as lues de uma Bilória sem nome duplicando o

horionte

Qse enNssemos a cabe@a num dos buracos do cenrio BoBamos

como as andorinhas do marS

a minha me a admoestar cachorros leBantando a sombrinha& a

minha irm U procura de cobras nuns calhaus com erBas& o meu pai aregressar sem nunca ter saRdo e eu a compreender ue Boltou

Q no era da minha idade adultoS

porue os olhos se alteraram& o criaturo emocionado endireitaBa

uma tabuleta com as mos ue os cidos dissolBiam

- Agora ue Ks importante nunca ulguei ue te recordasses de

nós

o meu pai

Qh alturas em ue dou por mim a pensar incrKdula- Este K o meu pai ue improBBel

este K o meu pai& esta K a minha me& esta K a minha amRlia

imagine-se& h uantos anos no digo

- Me

no digo

- Pai

digo

- <ocV

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digo

- Olhe

no por rancor& por aborrecimento& eu oca& oca& no culpa de

nenhum homem

ue homem=

no culpa de ninguKm& K o meu eitio& sou eu& um dia destes tiro

o saCoone da parede& ogo-o no contentor& ao og-lo no contentor K

a minha Bida ue deito ora e pronto& passa bem auelinhaS

o meu pai podia no se lembrar mas no Bou esuecer a gua na

muralha ora acima ora abaiCo& repare-se na uantidade de liCo ue

se nos pega U memória sem ue a gente dV conta& andei sKculos por

eCemplo com a imagem de um homem a embalar um carrinho de

bebK sem bebK algum no ardim +onstantino e a pedir silVncio aos

 Biinhos& no propriamente a imagem do homem& a aTi@o dele se

barulho& o dedo na boca

- +aluda

um sapato castanho& o outro sapato branco& de repente a cara

sem palaBras

- #a@am de conta ue acreditam em mimcontinua a suceder-me comparar os olhos dele com os meus& a

humildade& a esperan@a

- #a@am de conta ue acreditam em mim

um dia sumiu-se do ardim +onstantino mas U cautela& se me

aproCimaBa do banco& alaBa sempre mais baiCo& disseram-me na

capelista ue uma urgoneta atropelou o carrito& uma das rodas

soltou-se e continuou soinha& muito direita& atK ao Nm do passeio& eu

a interessar-me pelo bebK inBentado- #aleceu=

o dono da capelista supondo ue eu brincaBa com ele

- Ensinaram-te na escola a brincar com as pessoas crescidas

palerma=

atK me reparar nos punhos duros& nas lgrimas& a capelista

desocada ou sea metade do balco imenso& a metade ue sobraBa

encolhida& o dono a meio de um gesto

- Palerma

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no a aNrmar& a perguntar

- Palerma=

e eu a correr para casa com a mochila dos liBros ue me

esporeaBa ao bater-me nas costas

- Mais depressa

Qnunca usei rabo de caBalo& a minha me no deiCaBa& apertaBa-

me a toalha de banho ao pesco@o& surgia com a tesoura

- abo de caBalo nem sonhes

e o meu cabelo na toalha& pegaBa-lhe e desaia-se-me nos

dedos& sem peso& por essas e por outras no gosto de si meS

correr para casa onde agora só Bou

Qe o menos ue possoS

para ue no me moa os ouBidos& pelo menos deiCei crescer o

cabelo& mudo-lhe a cor& pinto-o& a@o-lhe o ue me apetece& puCo-o

daui& puCo-o dali& o mVs passado uma tran@a e a denguice do

parBalho do meu cunhado a crescer ue eu bem o notaBa a aagar a

graBata& a minha irm arrebitando as antenas com as de unhas de

ora& a minha me

Q- Estou a aNrmar-lhe ue no gosto de si me no percebe=Sa reproBar-me sem ralhos Qera o ue me altaBa ralhosS de

labioinho ranido

- 9ue tal o meu penteado senhora=

e ainda ue o lbio mais ranido

Q- "iga o ue pensa B no se atreBe a dier=S

a tesoura em pa na gaBeta dos papKis de embrulho& das bolas e

das luinhas de cor da rBore de $atal ue se acendem e apagam

Quatro ou cinco desligadas da sua tarea de alegrarem a gente&aplica-se uma pancadinha e ressuscitamS

palpitando grinalda ora numa pressa cardRaca& o carneiro mal

morto ue só U boetada a estender-me um rasco insigniNcante

numa caiCa enorme

Qo rasco representaBa uma mulher nua& sem cabe@a como o

parBalho as aprecia& no lugar da cabe@a o pulBeriador prateado&

eCperimentei-o no pulso& sacudi o pulso e um edor de tombarS

- ,m perume uente para uma mulher uente só te alta um

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sinalinho com um pVlo

uase pegado a mim a uerer cheirar-me o pulso& o meu pai ue

no reparaBa

Qno reparaBa em nada& nunca reparou em nada& se ao menos

ele

no Bou entrar por aRS

a minha irm ue depois do parto engordou da cintura para

baiCo e se desespera em nata@Fes& massagens

- Pedro

no alto& uma sJplica erida e no interior da sJplica a Bergonha

da celulite& dos tornoelos papudos

- Engordei tanto no oi=

a inBea de mim a alastrar como um cancro& o lbio da minha

me a culpar-me o cabelo

Qessa tran@a& essa tran@aS

- Ests a Ber=

e as luinhas& as mesmas desde eu miJda& a enganarem-me no

ritmo implorando

- ,ma pancadinha senhorao bacalhau triste& o espumante triste& a meia-noite tristRssima& o

meu pai noutro sRtio& se ao menos ele

Qno Bou entrar por aRS

chamBamo-lo e BoltaBa a trote& sem necessidade de moBer-se&

numa espKcie de despertar surpreendido

- Perdo=

o meu pai se calhar no >eato& saudoso dos caiCilhos sem

 Bidra@as e dos Basos de begónias ue o %eo comeu& compreendendoue aNnal no perto do rio& no ardim +onstantino e deu-me ideia

ue a cumprimentar& cerimonioso& a poltrona Baia& Bontade de estar

com ele a sós

Qnunca estiBemos a sósS

perguntar-lhe como K a sua Bida senhor e no entanto conorme

ainda agora disse no Bou entrar por aR& como K a sua Bida& o ue

gostaria& o ue uer& semanas antes da história do cora@o ou o ue

oi& e sea o ue tenha sido o carneiro mal morto a dier-me& isto K

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contando os actos por ordem& ainda no saRra do eleBador e a

malBada da campainha do teleone a chamar aos guinchos& meter-lhe

uma chupeta como ao Nlho da minha irm para aceitar calar-se& se

calhar cólicas& a ralda molhada& o primeiro incisiBo a romper& o

teleone uma boca desmedida& solitria& ue gritaBa& tossia& gritaBa&

eu U procura das chaBes ue todas as tardes se escondem debaiCo de

óculos escuros baton-pastilha elstica etc a mangarem comigo& o

teleone no na sala& nas minhas orelhas& eu surda& pFe a chupeta no

teu Nlho& pFe a chupeta no teleone mana& obriga-o a adormecer&

pega-lhe ao colo& impede ue o teu marido pomposo& solene& com a

 Bo das desgra@as& isto K uma pausa& nem

-Ol

nem

- Ora BiBa

a pausa a aumentar& na pausa uma respira@o de catstroe

- *ou o Pedro

e pausa de noBo& se a minha me assistisse roRa-se de inBea

Q- O seu genro K melhor actor ue BocVS

atK ue por Nm& uma oitaBa abaiCo& cada sRlaba precisa& eCacta&e em cada uma delas a imita@o pereita do desgosto& do luto

Q- <ocV e ele me ue parelhaS

- O cora@o do teu pai auelinha

a minha casa

Qno K curioso=S igual& eu igual a pensar

- O ue K ue sinto=

a sentir ue um dedo do pK desconortBel no sapato e o

desconorto do dedo to presente& to BiBo& a minha casa um cenriocomo o do >eato onde se eu enNasse a cabe@a o meu pai

- %ambKm habitas por c=

o meu pai coitado a indicar unto ao rio os seus Basos& os seus

caiCilhos& satiseito& gorducho

- Morei ali

e nisto o cora@o e no morou ali& no mora em parte alguma

eCcepto numa caiCa& de atinho engomado& com um pano na cara& a

minha irm ao lado da minha me na capela& dois ou trVs colegas do

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emprego& arrastando bocados& aueles com uem depois da

reorma se encontraBa Us uartas-eiras& a cumprimentarem o

carneiro mal morto

- $inguKm c Nca doutor

o carneiro mal morto& to amigo dos contactos& desta eita

Qa incongruVncia das pessoasS

a acenar ue sim tentando soltar a mo a espreitar-me e por um

momento as pestanas compungidas a darem com a urna& a decidirem

esuadrinhando-me

- 9uando o enterro acabar

 Belas ue cheiraBam a Tores& solinhas noBas num ruRdo de

gonos& uma penumbra ue me daBa sono& o segundo andar do

 ardim +onstantino com crepes nos espelhos& a caneta dos problemas

de damas do meu pai

Qas brancas ogam e ganhamS

assente no ornal& parecia-me ue alguma coisa de BocV a

continuar na caneta& pegaBa na caneta para pegar em si e uma

caneta somente& um bocado de plstico& perdi-o senhor& no lhe

sobra nem isto e no K ue me a@a dieren@a& no me a dieren@a&intriga-me& semanas antes da história do cora@o o meu pai ue

nunca alaBa comigo

- Anda c

uma mo traBessa menos alto ue eu de orma ue lhe notaBa a

alta de cabelo em cima ue ele disar@aBa mudando o lugar da risca

ano após ano a aproCimar-se da tVmpora

Qa risca na tVmporaS

um truue ue me aTigia por signiNcar para mim a Biinhan@ada morte e B-se l entender a rao

Qtanto mais ue no ue di respeito a aecto entre nós estamos

conBersadosS

a morte do meu pai perturbaBa-me

QleBou-me ao circo em peuena& ainda me lembro hoeS

proBaBelmente porue a minha a seguir e dessa sim tenho medo&

como ser& uando ser& de ue orma& uma doen@a comprida& uma

coisa de repente& eu assim muito tranuila a coinhar ou a ler ou a

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decidir abrir a porta ao parBalho do meu cunhado porue de tempos

a tempos& para no entrar em parauso& tenho de abrir a porta a

alguKm e pumba& nem seuer uma tontura& uma trabuanada

instantWnea& acabou-se& o parBalho

- auelinha

e para uV

- auelinha

se o meu pai no enBelhecesse& e sempre achei ue a culpa de

enBelhecer era dele& a mesma distrac@o& a mesma alta de amor

Quanto ao amor entre nós estamos conBersadosS

se o meu pai no enBelhecesse eu no morria nunca& a minha

me K como o outro& uma trombose ue a limpe e chauinho& agora

ele& no sei poruV. macaBa-me. leBou-me ao circo em peuena&

ainda me lembro hoe e trVs ou uatro Nlhos adiante& por

coincidVncia& a senhora

Qmais mulherita ue senhoraS

ue costumaBa estar soinha perto de nós em %aBira& por um

segundo deu-me ideia ue entre ela e o meu pai

Qnunca os apanhei a olharem-seSum entendimento ue me escapaBa

e

QclaroS

no podia ser& antasia minha& os pais das minhas amigas talBe&

no o meu pai& ue raio de suspeita o meu pai& na Kpoca haBia em

mim a certea

Qcusta-me coness-lo e no entanto continua a haBer em mim a

certeaSue o meu pai era meu& K meu& se ao menos ele

Qse por um milagre eleS

- auelinha

eu to contente

Qe isso irrita-meS

ue daria uma trabalheira echar as glWndulas a cadeado para

no me desaer em lgrimas& leBou-me ao circo& agarrei-lhe a mo

com medo dos palha@os e o meu pai no retirou a mo& apertou-ma

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trVs Bees e eu apertei-a trVs Bees& apertou-ma cinco Bees e eu

apertei-a cinco Bees& apertou-ma Binte& no& Binte e uma Bees

 Binte e uma Bees

e eu apertei-a& a cont-las& Binte e uma Bees tambKm&

apertmos a mo um do outro Binte e noBe Bees ao todo e U

mulherita de %aBira

Qno só U mulherita de %aBira& a nenhuma mulherita do

mundoS

no lhe passou pela cabe@a ue a gente Binte e noBe Bees ao

todo atK os palha@os acabarem e eu me distrair com os caBalos& se

por hipótese

Qsenti isso com tanta intensidade palaBra& continuo a sentirS

se por hipótese o homem dos caBalos& melhor ue o meu pai&

mais elegante& mais magro& me tentasse apertar a mo uma Be ue

osse

Qual uma Be& meia Be osseS

eu no ueria& ueria a sua paiinho

QaNnal herdei da minha me a Boca@o das cenas trgicas& dos

grandes lances& do teatroSue estupide

- 9ueria a sua paiinho

ue aldrabice& o ue me interessaBa a sua& papuda& redonda& eu

mentirosa como o meu cunhado& um pantomineiro& um also& deBo

estar pRrulas& ando pRrulas de certea& a auelinha to

independente& to sem ligar a ninguKm& toda imbecil& toda pieguices

- 9ueria a sua paiinho

ela ue nunca- Paiinho

ue tonteira& ue tratamento imbecil

- Paiinho

no tonteira& pura estupide

- Paiinho

a auelinha ue eu conhe@o& a normal& a Boltar costas ao

careca& ao Belho& ao gorducho

- < U merda paiinho

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esuecida das mos apertadas& dos palha@os& do circo& teleonar

ao meu cunhado& permitir-lhe ue Benha& ele desconNado

- A sKrio=

cuidando ue uma dessas armadilhas da rica prenda da tua irm

ue no K Tor ue se cheire& auele nari empinado& auele

despreo& uma alta completa de amiade por ti& notaste-lhe a

indieren@a uando o Bosso pai aleceu& deste por alguma lgrima&

algum sinal de desgosto& disse uma Jnica rase

- Pare com as cenas me

e sentou-se a um canto com o ornal do Bosso pai

Qo Bosso pai nem seuer rio no caiCoS

distraRda de tudo& sem mgoa nenhuma& a acabar de resolBer o

problema das damas como se o problema das damas a coisa mais

importante do mundo& como se o teu pai lhe houBesse pedido

- Acaba-me o problema auelinha as brancas ogam e ganham

e a presun@osa da tua irm conBencida ue ganhaBa por ele& ue o

teu pai lhe agradecia& ue auilo ue o teu pai mais precisaBa

nauele momento& esticado como um bacalhau& era ue as brancas

ganhassem& se as brancas ganhassem ele ganhaBa tambKm& as Bisitasa acompanharem a gente e a tua irm sem dar por elas a

eCperimentar este lance& auele& no respondendo& no alando& as

pessoas a cumprimentarem-na por educa@o e a rica prenda de

palmainha no ar

- ,m momento

entretida com as damas por uem nunca se interessou& as

damas o Jnico assunto importante da Bida

- "escanse ue eu acabo-lhe o problema paiinhoas Bisitas oram-se embora e a tua irm nem um aceno ali as

 Boltas com o ogo& lembras-te da tua me a contar ue a malcriada só

dobrou o ornal depois das trVs da manh& pYs-lhe a caneta em cima&

anunciou para ninguKm U rente dela salBo os móBeis& o piano& as

rBores ue me bolem com os nerBos a repetirem-nos o nome

Que pretendem elas de nós=S

e a tua irm& Bitoriosa& a arrumar as pedras na caiCa& a arrumar

a caiCa no armrio& a aproCimar-se da anela como se o teu pai o

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 Bento nas rBores& o teu pai

- auelinha

e a tua irm supondo ue o teu pai nas copas ela ue detestaBa

o pai& nos detestaBa a todos& nem um pingo de sangue a correr-lhe

por dentro& só rochas& cimento& desdKm& ela

- Acabei o problema no Biu=

e acabado o problema teleonar ao meu cunhado& permitir-lhe

ue Benha

- X o ue te apetece a partir da altura em ue come@aste a

namorar a minha irm no K=

desde ue no me aperte a mo e nem palha@os nem caBalos

nem a mulherita umas Nlas U esuerda& ordenar-lhe logo de entrada&

a desabotoar-me

- *erBe-te

isto K o parBalho de Tores em riste no capacho& as denguices de

carneiro mal morto& o bra@o pronto a descair como por acaso do so

para os meus ombros& a apert-los& um polegar ansioso por me aer

cócegas ao comprido da nuca& o soslaio para os compinchas ue no

haBia- %enho a gaa no bolso

e eu a cortar-lhe os cochichos& as cócegas& de pK no meio da sala

a acilitar-lhe o trabalho& poupando incómodos de echos e elsticos&

nua

- $o percas tempo serBe-te

as Tores a descerem coitadas ao comprido do ato& to rosas U

altura do peito& to legumes ao alcan@arem os oelhos& um passo no

para mim& para o lado& no era só o ramo ue descia& era a caratambKm& uer dier olhos& boca& uma parte do ueiCo& outro passo

para o lado

Qe as Tores de roo no cho sem ue ele se apercebesse& sem ue

eu

- Olha as Tores de roo no choS

a procurar o uRsue e eu a impedir-lhe o uRsue no com um

gesto& imóBel

- $o Ks capa de te serBir cunhado=

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as Tores coitadas a Barrerem o parue& a Berdura ue

acompanhaBa as Tores a desliar soltando-se& umas olhas& uns la@os&

no me perdoo ter-me distraRdo com os caBalos e as mudan@as de

lues e retirado a mo pai& diante da minha casa no rBores como

no ardim +onstantino& prKdios noBos& Barandas& cada Baranda um

compincha do meu cunhado a espiar-nos

- tens a gaa no bolso=

os caBalos de penacho colorido ue galopaBam U roda& o chicote

do artista de arda de alamares estalando compridRssimo e o carneiro

mal morto a deter-se& a mudar de direc@o& a galopar de noBo& o

branco do olho apaBorado& uma espKcie de baba no reio& a certea

ue a mo do meu pai U espera na plateia e eu

- Aguente um bocadinho senhor enuanto acabo este nJmero

ou sea o abaur aceso

Qpor sinal com um buraco de ueimadoS

o carneiro mal morto a limpar a baba do reio sem despir o

casaco& deseando de casacos diNcRlimos de despir a protegerem-no

de mim& as Tores no cho e ele a calc-las sem notar ue as calcaBa&

um bilhete com um cora@oinho impresso agraado ao la@arote e elea calcar o bilhete

Q- Est uase pai daui a nada aperto os seus dedosS

patinhando a suar& o abaur iluminaBa-lhe as narinas& a crina& o

meu cunhado no

- auelinha

uando lhe perguntei

- $o te despes tu=

Qnem um minuto pai& menos de um minuto& isto K o Nm donJmeroS

o carneiro mal morto no uma resposta& um relincho

- +abrona

a caminhar para trs buscando a ma@aneta& a achar o louceiro e

suponho ue a aleiar as costelas na esuina& a achar a parede e eu

- ;alopa

ele sem compreender

- Perdo=

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e a ma@aneta por Nm ue no giraBa& ue girou& o capacho e o

pontinho do boto do eleBador alternando o Bermelho com o plido

enuanto um som de erros e cabos se aBiinhaBa a assobiar em

meneios& suspiros& eu no capacho com o carneiro mal morto

- Ests certo ue no te apetece cunhado=

e mais cara ue descia& mais branco do olho& mais baba& ele

uase um boneco a rebentar em peda@os por um eCcesso de corda&

ue me lembre o meu pai nunca me Biu nua& nunca assistiu ao meu

banho& perguntaBa ualuer coisa U minha me do corredor& no se

atreBia a entrar& por ue motiBo no era BocV a tirar-me o sabo dos

olhos senhor& a esregar-me com a toalha& a enCugar-me& acha ue

apertar a mo no circo uma tarde h trinta anos bastou& ue

emprestar um lbum de otograNas

- %oma

a BeriNcar em torno ue nem a minha me nem a minha irm

 Biram bastou& uma deena de retratos e um postaleco de *intra&

desses ue se compram nos mostradores das capelistas por de rKis

de mel coado e nem seuer o Palcio da <ila& Monserrate& o castelo&

um postaleco com umas accias num muro e BocV orgulhoso dasaccias como se as tiBesse eito a designar umas BRrgulas mais claras

- Esto em Tor auelinha

esto em Tor auelinha& gostas de accias auelinha& da

primaBera em *intra auelinha e para mim *intra uma canseira de

 Beredas todas iguais suocadas de plantas onde a gente se perde&

sobem e descem mas para mim sempre a subir& a matarem-me& de

 Be em uando no meio do neBoeiro a esmola de um solito

acanhado& apressamo-nos para o sol e ao chegarmos l no eCistesubstituRdo por um chuBisco Bago& eu para o meu pai

- O ue a aui o postal=

o meu pai com receio da minha me e da minha irm a chegar-

se ao piano como se o piano um lugar U proBa de som ou assim& um

conessionrio& um abrigo

- As accias

sem me tocar& K eBidente& sem me apertar a mo QtambKm para

ue ueria eu ue me apertasse a mo& ando parBaS a desear ue

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percebesse o ue no podia perceber& o ue no percebi

Qno K Berdade& agora perceboS

- As accias

com o dedo nas copas e nas BRrgulas mais claras& aueles dedos

redondos ue gra@as a "eus no herdei

- As accias

isto K os pltanos unto U esta@o dos comboios& um banco meio

oculto na pedra& o meu pai a apear-se do comboio puCando os

cabelos sobre o crWnio um a um& a compor-se

Qto engra@adoS

na camisa& a aBan@ar para o banco e no entanto para mim

apenas

- As accias

e o dedinho redondo com a unha mal cortada porue os gestos

lhe escapam& enBelheceu senhor& o cora@o& os diabetes e eu

enBelhe@o consigo& enBelhe@a BocV& mate-se U Bontade& estenda-se no

colcho ue l ho-de estar a minha me e a minha irm para lhe

botarem crisWntemos em cima e deiCe-me em pa& sossegada& o

dedinho redondo a acertar por NmQ no era sem tempoS

com o postaleco enuanto eu pensaBa nunca me alou em

*intra& nunca me disse nada de *intra& no me recordo de irmos a

*intra enuanto morei consigo& Ramos a +ascais ou ao Estoril ou U

outra banda no naBio da carreira& os pssaros a grasnarem sobre nós

atormentando-me agora *intra nKpia uanto mais as accias& se a

minha me porBentura

- PodRamos passear em *intra nas Kriaso problema das damas& de sJbito complicado& a chup-lo para o

interior do ornal& um musculoito ue no sabia ue tinha a pin@ar-

lhe a narina

Qaperte-me noBe Bees a moS

e Bai na Bolta ia a *intra clandestino& soinho& sem me conBidar&

compraBa postais& passeaBa mas como se no saRa de casa ouBindo o

rdio sem ouBir o rdio& de olhos echados& no a dormir ue eu bem

 Bia& a minha me

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- $o a@am barulho ue o Bosso pai est a descansar

e descansar uma oBa dado ue uma rinchinha nas plpebras& a

boca a mastigar pensamentos& ideias& a rinchinha em mim

Qno na minha irm& em mimS

ia urar ue a sua mo a apertar-me duas Bees& seis Bees& one

 Bees sem pedir a minha e contudo mesmo aastada de si eu sentia-o

compreende& sentia-o& gordo& penteadinho& miJdo& nem seuer bonito

senhor comparado com o homem dos caBalos& os russos do trapKio&

o ue atiraBa ao ar uatro bolas e nenhuma caRa& uatro chapKus&

uatro pratos& com uma audante loira de Bestido de baile cuo

trabalho& ue se me aNguraBa sublime& consistia em passear atrs

dele e sorrir e contudo

Qto imbecil no K=S

no consigo descobrir a rao

Qno rao& idioteira minhaS

mas no os trocaBa por si& de ue modo os postais de *intra

Qinterrogo-me euS

se no saRa de casa atento Us rBores no ardim +onstantino e as

rBores- +resceu tanto este ano

Qreerindo-se a uem=S

eCcepto em certas semanas ao domingo

Qdomingo ou sbado=S

para almo@ar com os colegas& uma raseinha casual ao sero

sem olhar para a gente

- Almo@o com os colegas domingo

Qsbado=Sa aBaliar-nos U socapa U medida ue o casti@al do piano BogaBa

por ali& ue o brilho da terrina se apagaBa& ue um som como de

muina de costura a embainhar no sei uV& talBe a minha Bontade

de ser adulta depressa& ir-me embora& em certas noites na cama& ao

resBalar para o sono& Binha-me um estico as pernas& alegraBa-me

- *ou grande

acendia o candeeiro para me BeriNcar no espelho e igual& one

anos sempre e os arbustos a goarem U minha custa

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- One anos

isto durante a noite& durante o dia arbustos somente para onde

as pessoas atiraBam latas& papKis

Qe eles aguentando com paciVnciaS

de mVs a mVs a um ardineiro com uma tesoura e um balde

aparaBa-os& mal escurecia deiCaBam de se armar em coisas e logo

- One anos

a minha irm

- O ue oi=

e eu

- Os arbustos

a minha irm parecida com o meu pai& as Bacila@Fes& a

gorduchice& a cara& o carneiro mal morto esperaBa-a na rua& Bia-se o

automóBel do tio dele da Baranda& um cotoBelo no rebordo da anela

ou a pressa das unhas a rasparem a chapa enuanto a minha irm

espalhaBa Bestidos na colcha

- O das aplica@Fes auelinha=

diBidida entre o das aplica@Fes e o de l& colocaBa-os diante do

corpo& desiludia-se& remeCia cabides& traia do armrio uma blusaamarela

- Esta blusa=

o carneiro mal morto a acelerar o automóBel& a buinar& a

desligar o motor& a lig-lo de noBo& a buinar outra Be

- O das aplica@Fes=

o dos eneites mas o echo a meio das costas recusando subir de

orma ue o de l com um boto inseguro

- "-se um eito com a agulhao de l ue pertenceu U minha me& cheio de mariuices&

doirados

Quma pinderiueira pegadaS

e ue a apertaBa no rabo& os sapatos com um salto assim assim

ue era preciso cuidado& descia as escadas a consertar a rana& a

colocar os brincos lutando com a rosca& o cotoBelo do carneiro mal

morto desaparecia ao abrir-lhe a porta sem sair do carro e contudo

parecia-me ue as unhas continuaBam a tocar piano na chapa& o

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automóBel come@ou a andar com uma perna da minha irm de ora& o

das aplica@Fes e a blusa amarela abandonados na colcha Neram

Qsei l poruV& elucidem-meS

sentir-me ór dela& peguei no Bestido a Ber se melhoraBa e

nada& a orandade idVntica& as rBores do ardim +onstantino

dilatando-se em unRssono no escuro& os passos do meu pai no

corredor ue daBa a impresso de no acabar nunca& o inuilino de

cima a arrastar ualuer coisa pesada

Qo rigorRNco=S

ue estremecia o prKdio& uns sinaiitos de Bida

Qcoinhas acesas& um homem de piama na maruise ao ladoS

ue me no diiam respeito& os passos do meu pai a uilómetros

de mim e no entanto próCimos& continuando a aastar-se para o outro

lado do mundo e eu deste a cont-los& cento e one& cento e tree&

aagando um Bestido Baio

Qcento e deoitoS

o meu pai ue principiaBa a perder

Q- O cora@o auelinhaS

dirigindo-se& ulgo& na direc@o das accias porue no o Binuma caiCa& no o Bi na capela& no est no cemitKrio& o meu pai no

K esse magro& de bochechas caBadas com um dos olhos a abrir-se

Qno uma rinchinha& a abrir-seS

o meu pai K o ue me aperta a mo e a uem aperto a mo oito

 Bees& catore Bees& cinuenta Bees se nos apetecer& ao meu lado

no circo e nem a senhora

ou sea nem a mulherita de %aBira d K consoante a minha me

e a minha irm no do K& o meu pai caminha no interior de umpostal

Qcento e uarenta e um passosS

passando o dedo no Berni a mostrar-me os ramos sobre os

muros& as Tores

- $ascem com a primaBera auelinha

e se alguKm na companhia dele no K uma mulher sou eu&

esperei--o com esta blusa amarela& o Bestido das aplica@Fes& o colar

de pacotilha rabe ue roubei U minha irm sob os pltanos da

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esta@o dos comboios& no Beio no primeiro& no Beio no segundo e

eu ue em matKria de teatro tambKm no ando mal

- $o me morra paiinho.

como se ele osse morrer& como se pudesse morrer

Qeu artinha de estar segura ue no morria& no morreS

e a proBa ue no morre

Qcento e deanoBe passosS

K ue o meu pai no terceiro comboio& no untamente com os

restantes passageiros& depois& a demorar-se perto dos tCis atK ue

ninguKm& a certiNcar-se ue ninguKm dado ue as pessoas se sabe

meCericos& conBersas& de modo ue uando ninguKm no largo o meu

pai no sentido dos pltanos e eu no no banco& eu

Qoito& noBe& de passosS

a trotar para ele

no trote algum& ual trote& eu digna& compassada a ir-me

chegando ao meu pai& no preciso de lhe resolBer os problemas das

damas

Qas brancas ogam e ganhamS

ou de gastar a noite na igrea a assistir ao carneiro mal morto aencarregar-se dos pVsames& a perseguir o meu peito& as minhas

pernas& one

QdoeS

doe saltos e estou consigo uer dier estamos untos neste

postal baratucho a preto e branco no lbum

Q*pring in *intraS

ue se compra por de rKis de mel coado em ualuer loa do

centro& estou consigo nesta traBessa perto de *eteais penso eu& BocVpara mim

- As TorRnhas auel

o menos alto de nós dois& o gorducho& o contente& o ue

apontaBa uns caiCilhos no >eato

- Morei ali

e as ondas na muralha& as gaiBotas& um sueito a surgir de uma

caBe com um sauito de polBo a demorar-se em si& a reconhecV-lo& a

pasmar

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- Ora BiBa pimpolho

e o meu pai para ele& andando sempre Qduentos e setenta e sete

passosS

- "esculpe senhor 9uerubim no me interrompa ue passeio a

minha Nlha nas accias agora

a mo ue me apertaBa a mo uma Be e eu apertaBa uma Be&

me apertaBa seis Bees e eu apertaBa seis Bees& me apertaBa tree

 Bees e eu apertaBa tree Bees& a mo ue no cessaBa de apertar a

minha& as Tores sobre o muro uase ro@aBam em nós e pode Bir o

homem dos caBalos& podem Bir os russos do trapKio& pode Bir o

caBalheiro ue tira pombos e echarpes e a bandeira nacional de uma

pgina de reBista ue antes nos mostrou dos dois lados& Bagaroso&

didctico& anunciando

- <aia

ue eu no lhe largo a mo& inBento mais accias

- Mais accias ali

e a gente

Qseiscentos e deasseis passosS

sumindo-nos no lbum dado ue acabamos de alcan@ar o outrolado do mundo.

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NONA FOTOGRAFIA 

Este retrato de %aBira& a praia& toldos& o homem dos bolos de

biBaue

senhor Alredo

a caminhar para nós com o cesto

oi a minha Nlha mais Belha ue tirou: no ueria emprestar-lhe

a muina dado ue por princRpio no empresto coisas Baliosas a

crian@as ue no descansam enuanto no as estragam& piam a

parte elKctrica com gua ou deiCam entrar areia l dentro& ela a

pegar nauilo ao contrrio

Qo ue se espera de uma catraia de sete anos=S

- Prometo ue só uma pai

Qno se trata de uma uesto de preerVncia& K Berdade& a irm

com cinco metia-a num chineloSe o resultado aR est& apare@o de costas ou nem seuer de

costas& o angulo de um ombro e um bocadinho de nuca ue tanto

podem ser meus como de outro homem ualuer& nota-se ue sou eu

apesar do eCcesso de lu porue a minha mulher a discutir comigo

Qpresumo ue a deender a miJda

- *ó uma ue mal tem=

sempre pronta a deender a miJdaS

a minha mulher sim& nRtida no anel ue usaBa unto U alian@a&inclusiBe na cicatri da Bacina no bra@o e se colei a otograNa no

lbum no K por nenhum de nós nem pelo senhor Alredo todo torto

deBido ao peso dos bolos mas porue tu de perNl& sumindo-te no

crochet com uma madeiCa no ar dois toldos adiante

Qa tua madeiCa a Jnica coisa BiBa no lbumS

na cadeirinha de lona ue traias da penso e gosto de olhar-te

percebes& gosto de olhar-te& mal come@o a passar da poltrona para a

 anela no ardim +onstantino abro a gaBeta da escriBaninha&

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encontro a madeiCa& tranuilio-me imaginando ue continuas

comigo& tocas& num interBalo do crochet& o colar ue te dei e daui a

pouco gra@as a "eus uarta-eira& ao pedir-lhe a muina a minha

Nlha mais Belha echou-a nos bra@os

- $o dou

enuanto ia apertando o boto

pic pic pic

atK ao Nm do rolo& no AlgarBe no eCistem ces como no >eato&

preocupados& de cabe@a baiCa& a alarem soinhos& na ;uinK Binham

depois de nós arear os mortos& mesmo dentro dos caiCFes eles de

ocinho contra a madeira na atitude de uem recebe mensagens& se

me aproCimaBa a escutar os deuntos calaBam-se ao darem por mim&

uando muito uma desculpa

- Eu no ui

Qa partir do terceiro dia& U hora do calor& borbulhaBam de ebre

conBersando uns com os outros do ue tinham passado

- *ucedeu isto sucedeu auiloS

assim ue o Jltimo pie a minha Nlha ogou o aparelho no cho

- $o me apanhase desatou a ugir& acho ue nunca

Q- Mesmo depois de trinta anos o meu pai nunca me perdoou

auela história do rolo

acho ue nunca lhe perdoei auela história do rolo& cada pic a

indignar-me e a seguir a cada pie um solu@o& um trrr de uem engole

imagens& o aparelho recomposto& a conBid-la proBocando-me a mim

- Aperta o boto outra Be

de modo ue acho ue nunca lhes perdoei a ambos& se Bemalmo@ar c a casa com o marido e a alcoa a@o de conta ue no

sinto nada mas sinto& ela aposto ue esuecida

- Pai

de boca na minha bochecha e eu rRgido& pensando em como

estas coisas se pegam a um homem& teimam& Ncam tal como o

passado continua a acontecer em simultWneo com o presente& a

minha Nlha mais Belha

- Pai

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e na Berdade ela no grande& no casada& no

- Pai

com sete anos e pata-choca& sem gra@a& a escapar-se

- $o me apanhas

o marido ue de oelho tra@ado ocupa espa@o ue se arta a Nt-

la e a Ntar a irm no seu lugar da mesa acol& a irm com uma

tanguinha Berde buscando bJios na areia e o oelho tra@ado a

demorar-se-lhe na perna

- +unhadinha

ue se aasta ao mesmo tempo em %aBira e no ardim

+onstantino& a minha Nlha mais noBa por uem eu

de uem eu

Q- *empre a preeriu a mim diga a Berdade paiS

talBe por me recordar a minha me

Qtanto uanto recordo a minha meS

em certas atitudes& certos gestos ou no modo de olhar& a minha

me BiBa na minha Nlha ue igualmente& embora no me perguntasse

nada& no se ralasse comigo& no se interessasse por mim me

sopraBa- PoruV=

sem ue ninguKm desse isso& sem ue ela desse por isso& a

impacientar-se connosco& a aborrecder-se da gente e contudo& sob o

aborrecimento e a impaciVncia& a sua Bo to antiga& no para mim

ou para um homem a umar ue caminhaBa num beco& para nós

todos& para si mesma

- PoruV=

ela no retrato de %aBira- PoruV=

e tu ao undo& no muito noBa& de perNl a espessar-se

Qos teus lbios dierentes& o teu pesco@o dierenteS

numa cadeirinha de lona no muito noBa tambKm& ao tentar

dar-te dinheiro na hospedaria da ;ra@a

QdeBia ser deembro atendendo a ue a trepadeira sem olhas&

um Bisco de humidade a escurecer os len@óisS

para uma cadeira decente& as notas

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Qo Bento atraBessaBa os caiCilhos rendilhando-me os ossosS

sobre a cama cuo espaldar para c e para l na parede do

uarto Biinho após um sapato

Qum Jnico sapatoS

ter caRdo no soalho de mistura com arrancos& suspiros& um

segundo sapato e a cama mais orte& uma espKcie de tosse& o

espaldar muito depressa& um sueito

- Meu "eus

Qa impresso ue o meu genro e claro ue no o meu genroS

e o espaldar tranuilo& a impresso ue com o meu genro a

minha

Nlha mais noBa& os sapatos dela no cho

Qomos ao circo uma tarde e acho ue nem uma rase para

amostra

entre nós& agarrou-me nos dedos com medo dos palha@os e ulgo

ue

para a acalmar

- Por ue outro motiBo=

no retirei os meus& K possRBel ue lhe tenha correspondidoapertando-os mas no acredito bem nisso& no seiS

a trepadeira sem olhas uns ramitos no Bidro e óbBio ue no os

sapatos da minha Nlha mais noBa nem o meu genro ali& pessoas ue

no tinham nada a Ber connosco

QclaroS

portas ue saltaBam& gritos& a dona da hospedaria Bogais

indignadas no tubo

- Est c o senhor respeitinhoum ulano

Qno o meu genro& este moreno& de óculosS a aconchegar a

graBata

- Perdo

a minha Nlha mais noBa gra@as a "eus no ali& nenhum receio

dos palha@os& nenhuns dedos& cabelos pintados mas no seus& ela a

aer um buraco na areia para cobrir os pKs

- $o tenho pKs Biu=

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os pKs de outras mulheres& a da cama cuo espaldar para c e

para l na parede ao passo ue a minha Nlha mais noBa uma crian@a

a apertar-se na toalha& uando chegarem os palha@os ela assustada

audem-na& no diBertida& a chegar-se a mim numa aTi@o de paBor&

tu a Barreres as notas da colcha

- "esculpe mas este dinheiro no me pertence no K meu

e a mesma cadeira de lona sempre& uase o mesmo Bestido

- #ico consigo se no me der nada

moraBas com o teu pai e a irm do teu pai& o teu pai na Baranda

de piama e um dia destes eu idVntico& de barba mal semeada& no

 ardim +onstantino& Bestirem-me& empilharem-me no banco&

ordenarem-me

- *egure as urinas senhor

e eu trocando gestos& remoendo nadas& plpebras ue

engordaBam de gua sem ue a gua caRsse& a minha Nlha mais noBa

uma intrusa ue me chamaBa na orelha

- Pai

e eu a pensar

- +onhe@o-teou sea ulgo ue te conheci& di-me o teu nome& auCilia-me& uma

das plpebras a dobrar-se& Bermelha& a calcar coisa a inchar-me na

gargant& a tornar-se palaBra e eu no o teu nome& eu

- Pai

a cansar-me de reTectir& a esuecer-me& numa ona brumosa da

minha cabe@a %aBira& uma senhora a chegar U praia com uma cadeira

de lona& a desembrulhar o crochet sem me dar aten@o& eu angado

com a senhora- %u

e no sei uem& ue me costuma abotoar& alegrando-se para a

minha Nlha mais Belha

- Olha para ele a rir coitado conheceu-te

a praia& toldos& o homem dos bolos& de biBaue

Qsenhor Alredo& ia urar ue senhor AlredoS

a caminhar para nós com o cesto& chamar o homem e uem me

costuma abotoar

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Qa roupa dantes apertada e agora largaS a segurar-me as

costelas

- Obriga-o a Ncar sentado ue uer ele=

o senhor Alredo

QAlredo=S

um cesto coberto por um pano& tiraBa os bolos com a pin@a& a

minha Nlha mais Belha ue no sabe seno pedir

- +hegue-me uma moeda pai

uem me abotoaBa ou sea uma criatura da minha idade

eternamente a ueiCar-se para onde eu no Bia

- $o ueres saber de nós auelinha no Bisitas a gente

Qauelinha=S

a aproCimar-se enerBada

- O ue se passa com ele=

e a intrusa ue me chamaBa na orelha a adiantar

- Parece ue pediu uma moeda ou assim parece ue chegue-me

uma moeda pai

madeiCas oCigenadas& a boca escarlate& anKis& os dedos no circo

sem anel algum e por conseguinte a auelinha no& uma pessoadierente& empresti-lhe o meu lbum

- $o mostres isto U tua me toma

os olhos do meu genro dois bichos moles ue se lhe enrolaBam

nas coCas diNcultando o andar& os anKis direitinhos ao retrato ue a

minha Nlha mais Belha tirou

- +onhece esta=

e elimente o casti@al do piano a saar-me respondendo por

mim& como sempre nessas ocasiFes eu escondido no >eato atK asgaiBotas me ensurdecerem porue um naBio passou& atK no poder

alar porue os albatroes gritaBam& o casti@al do piano ou a terrina

por mim

- *alBo erro K a mulherita da cadeira de lona dois toldos

adiante

e os anKis& sem me acreditarem& desBiando-se do lbum& no a

mulherita dois toldos adiante pai& a sua amante pai& a ue encontrou

antes da minha me nessa ponta da cidade onde BocV moraBa& um

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logradouro de pobres pai

Qe o seu pai a umar

- %rambolho

o seu pai

- Pai

ue no paraBa de umar nas tintas para siS

oliBeiras ue no serBiam para nada senhor& petroleiros deuntos

com o ter@o no rdio& patos braBos ue o %eo reunia e dispersaBa e

reunia de noBo& a sua amante

pai

no bem na ponta da cidade& mais para c& menos longe& num

rKs do cho depois da igrea duentos ou treentos metros

QuinhentosS

a seguir U +al@ada do ;rilo& ao Ateneu& U palmeira& uns prKdios

ue BocV consideraBa noBos e no eram senhor& barbeiros&

merceariainhas& pardais& no gaiBotas e no entanto o rio próCimo&

um som de pranchas ue abanam& cuida-se ue pranchas& Bai-se Ber

e o rio& sobrados a deslocarem-se& copos uns nos outros na

cristaleira& nós intrigados o ue ter dado aos copos& Bai-se Ber e orio& nos prKdios& BocV achaBa noBos a mulehrita de %aBira& a sua

amante pai& no ainda sua amante& sua amante depois& na hospedaria

da ;ra@a ue no eCiste no lbum e de onde o carneiro mal morto

acabou por traV-lo dado ue o cora@o& os diabetes& a sua idade

senhor& a sua amante nessa Kpoca um retrato de comunho solene de

proBRncia& uma mesa de pK-de-galo& uma bailarina& uma Bela& BocV a

espreitar o rKs-do-cho U distWncia com Binte ou Binte e um anos

senhor& uma primeira carta& uma segunda carta& o sanatório de+oimbra mal ela respondeu U sua terceira carta e depois carta

nenhuma& ela Nnada& pinheiros ue U noite se diria um apenas& o

comboio de Lisboa na esta@o e ento a minha me& o casamento& a

minha irm mais Belha& o ardim +onstantino a partir da altura em

ue eCpulsou a Nlha da madrinha da sua me ue a madrinha da sua

me escondia no por ser doente mas por no ter pai& nunca se

perguntou por eCemplo

pai

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olhar-se& ela descanse ue Nco consigo senhor& no lhe pe@o nada&

ninguKm d por nada& %aBira sim& *intra sim& as uartas-eiras na

hospedaria sim& o pai dela e outra parente idosa

Qno a meS

de uem tomaBa conta& para o mVs de agosto no AlgarBe tinha

de contratar uma pessoa& pagar-lhe mas no com o seu dinheiro

- $o me oenda senhor

auele com ue BocV tentaBa desculpar o acto de no ser um

homem pai& a minha me por meias palaBras& pausas& as meias

palaBras

- O teu pai

eu como se no percebesse

- $o uero saber

eu

- +ale-se

e no entanto

- O teu pai

- O teu pai

- O teu paia incomodar-me& a mulherita em %aBira a aer-se de lucas

igualmente& Bontade de perguntar-lhe

- $o tem ninguKm Us escondidas BocV=

uma tarde segui atK U penso a sua amante da cadeira de lona e

do embrulho de crochet e homem algum& soinha& dali a pouco um

Wngulo de primeiro andar aceso& uma dessas lWmpadas de tecto

penduradas de um No ue no iluminam as coisas& as empalidecem

apenas e como podia acontecer ue um homemQeu a imaginar

- 9ue homem=S

chegado antes dela U sua espera no uarto

Qda idade do meu pai& mais noBo& mais Belho=S

atraBessei um cubRculo de auleos em ue um alguidar de

erBilhas& um aBental num prego e nem um resto de sol no mar& ondas

roCas incapaes de moBerem-se idVnticas aos penedos e a estes

pssaros ue nunca dei com eles noutro lado& no gaiBotas& mais

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peuenos& no sei dier o nome& aendo ninho na ponte

QtambKm me sucede no saber dier o meu nome e nisto uma

descoberta& auel& sou auel& ue neCo entre auel e eu& se

teimo

- auel

O

- auel

no um nome& um som e ue estamos em neCo ue neCo entre

esse som e eu=S

pssaros ue nunca dei com eles noutro lado e deBem aer

ninho na ponte& suponho-os escondidos nos buracos dos pilares& os

pssaros

- auel

e o som pegado a mim para sempre& auel& auelinha& dona

auel

Qdona auel no emprego& as pessoas& U sKria

- "ona auelS

de modo ue agora sim& aperte-me a mo deanoBe Bees pai&

atraBessei o cubRculo de auleos a escutar os tacFes da auel nocho e continuei a escut-los aNrmando a cada passo dona auel

dona auel dona auel& proclamando aui Bai a dona auel meus

senhores& trabalha numa companhia de seguros& mora soinha& toma

um comprimido a Nm de suportar a noite

Qe mesmo assim sabe "eusS

est Nnalmente disposta a receber o cunhado

Qo carneiro mal mortoS

porue a auda do comprimido no chega& se ele no patamar- +unhadinha

a dona auel ao contrrio do ue se calculaBa a mudar os

brincos& a erguer o penteado&

- Entra

no

- ua

no

- *erBe-te

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a dona auel sem desaNo algum

- Entra

mas por enuanto no& por enuanto em %aBira a subir as

escadas menos suas ue eu ulgaBa ou pelo menos no to suas

uanto eu ulgaBa& um candeeiro no primeiro andar ue era um

cWntaro com a ampola no interior a aBermelhar portas e presumi ue

a do undo porue na rua o Wngulo do primeiro andar aceso e Bou

encontrar a sua amante com um homem pai& no um homem como

 BocV senhor& um homem a sKrio capa de ser homem com ela

Qa minha me meias palaBras& pausas

- *e conseguisse contar-te ue o teu pai

enuanto eu apertaBa deanoBe Bees nenhuma mo a no ser a

minha& eu a apertar a minha mo direita com a minha mo esuerda

com tanta or@a

no calalculaBa ue tiBesse tanta or@a

- +ale-seS

e no hesitei& no esperei& no bati U porta para eBitar ue a

amante do meu pai e o homem separados& girei a ma@aneta e a

ma@aneta oendida comigoQcom as angas das ma@anetas posso eu bemS

- "ona auel

a procurar impedir-me ou talBe nem a procurar impedir-me& um

suspiro de escWndalo

- "ona auel

o meu chee sem tirar nem pYr uando lhe respondi ue no

 antaBa com ele e a indigna@o& o despeito

- "ona auelpor conseuVncia girei a ma@aneta e uma cama barata mais

estreita ue a minha em crian@a& a mala aberta no cho e uase nada

na mala& um retrato de Photomaton ue demorei a descobrir ser de

 BocV pai

QBocV ora da nossa casa ue inesperado& acho ue ciJmes

no ciJmes& para eCistirem ciJmes seria necessrio ue eu e eu

no& o ue me rala a sua Bida pai& BocV no um homem& o carneiro

mal morto apesar de tudo e contra o ue eu esperaBa& depois de

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algum encoraamento da minha parte ue tambKm ali estaBa para

isso& aproCimadamente um homemS

como ia diendo a cama mais estreita ue a minha em crian@a& a

mala aberta no cho e uase nada na mala& a sua amante na cadeira

de lona ue ocupaBa na praia

Qum dos pssaros da ponte passou rente U penso

ou pode ser ue uma corua

e adeusS

a comer uma banana ou uma pVra& eu a segurar a ma@aneta

Qapertar deanoBe Bees a ma@aneta e talBe a ma@aneta

respondaS

- "esculpe

e a mulherita a olhar-me sobre a banana ou a pVra& de palma

horiontal sob o ueiCo amparando migalhas& uantas noites eu na

coinha assim& encostada ao laBa-loi@as corada uma bolacha ou isso&

surtida\\ a migera trabalhaBa a dias deiCou sobre o rigorRNco a

interrogar-me

- !sto K meu=

na esperan@a ue a bolacha me aperte a mo& me serene& aamante do meu pai igual a mim& a atitude& os olhos

Qse o carneiro mal morto uma hora por semana ao menosS e eu

para a amante do meu pai& eu para nós

- "esculpe

ela na cadeira de lona a obserBar-me apenas& no me conBidou a

Ncar& no me mandou embora& a palma horiontal sob o ueiCo& o

embrulhito do crochet no colo& um cabide onde um casaco morto

Qno baloi@ando& mortoSe eu a pensar no meu pai e em mim

- PoruV isto=

os palha@os Nlha chegaBam a seguir aos leFes& ainda no tinham

desarmado as grades uando a oruestra isto K uatro ou cinco pino-

cas num estrado& uase todos Belhos eCcepto um garoto magrinho no

tambor

Qum ruiBo com sardas& os ruiBos cheiram a leite coalhadoS

principiou a tocar e atrs de uma cortina passos

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Qestrondos de passosS

boetadas& gritos& a cortina ranida de repente& um grupo

desses monstros ue nos atormentam nos sonhos& nos perseguem&

nos leBam& a gente

- $o

eles sem sentimentos& eroes& a minha Nlha mais noBa

- Pai

e eu sem poder Baler-lhe dado ue botas enormes Us

cambalhotas na pista esbarrando umas nas outras a cumprimentar a

assistVncia

- Meninos meninos

ela apertando-me a mo a sossegar-me uma duas trVs Bees& a

minha Nlha a tomar conta de mim

- $o se assuste

e os dedos seis Bees& os palha@os aNnal no

- Meninos meninos

os palha@os

- Estea uieto senhor

de bata U minha Bolta& diRceis de entender deriBado U oruestraQuase só o tambor agoraS

mais cambalhotas& mais pinos e eu sentado com a minha Nlha&

eu deitado& a mo dela one Bees

- Estou aui pai

enuanto um dos palha@os me eCperimentaBa o pulso& me

aplicaBa uma espKcie de a@aime

- $o K a@aime K oCigKnio pai

comigo a calcular ue se conseguisse erguer-meQme deiCassem erguer-meS

alcan@aBa o >eato num instante e no >eato eu a salBo& conhe@o

um armaKm antes das hortas em ue se guardam coisas sem

prKstimo do mar

Qbóias de corti@a& barricas& cabosS

e onde posso ocultar-me sem ue dVem por mim& uma ocasio

um albatro no armaKm& os olhos amarelos& as penas amarelas& as

asas amarelas mas de algas& de lodo& se eu agitar os bra@os como ele

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para cima e para baiCo no conseguem pegar-me& um dos palha@os

prendeu-me os cotoBelos

- 9ue K isso=

o Bento ao rodar para norte augentaBa os pssaros&

espaneaBam-se na igrea& alinhaBam-se antes da chuBa na crista dos

telhados& a minha mulher ue eu bem a ouBia gritar

a minha mulher baiCinho

Qenganei-me& trinta e duas Bees& uarenta e trVs Bees& um dos

anKis da minha Nlha a beliscar-me ela ue no circo no usaBa anKisS

- "esmaiou=

no cortinas& um biombo e paredes ue no terminaBam nunca&

uma anela em cuos caiCilhos nem cKu uanto mais rBores& nada e

no nada uma Bo

- Os diabetes minha senhora a gente isso resolBe

eu para eles o ue uer dier diabetes& o ue uer dier minha

senhora

- O ue uer dier minha senhora=

eu untamente com as andorinhas do mar& muito alto& espiolhan-

do os barcos& segurem-me nos cotoBelos se uiserem e digo seuiserem porue no me apanham

Qa minha Nlha mais Belha em %aBira

o ue uer dier Nlha=

- $o me apanhamS

no me apanham& eu Boo& lembro-me pereitamente deste

retrato de %aBira& a praia& toldos& o homem dos bolos& de bonK

- *enhor orge

no orge& senhor Alredo- *enhor Alredo

a aBan@ar para nós com o cesto& nunca lhe aias sinal& nunca

comias bolos& traias uma garraNta de gua& ualuer coisa num

papel& limpaBas-te no a um guardanapo& ao teu len@o& o senhor

 orge

senhor Alredo

o senhor Alredo no te cumprimentaBa seuer& mal te Bia

Qmal te Bia=S

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tinhas de recuar a cadeira uando ele passaBa com o cesto

Qaia de propósito& Bia-teS

a minha Nlha mais Belha

- Ela no tem dinheiro no K=

e a minha mulher com dó de ti

- +ala-te

a minha mulher a espreitar-te e uma garraNta de gua& ualuer

coisa num papel& tu em %aBira porue te disse& U procura da carteira

no casaco

- 9uero ue tu em %aBira

no

- ;osto de ti

no

- %enho saudades tuas

e o ue signiNca

- ;osto de ti

o ue signiNca

- %enho saudades tuas

o palha@o ue mandaBa nos outros- Est a Boltar a ele

e eu sem ue a minha Nlha me apertasse os dedos

- <oltar a ele o ue K=

U procura da carteira no casaco

- 9uero ue tu em %aBira

as paredes normais& o biombo pouco maior ue uma pessoa& tu a

recusares-me a carteira e um Binco na tua bochecha em ue no

atentara& um dente mais escuro em ue tambKm no e por insólitoue pare@a apreciei esse dente

QhaBia uma traBessa na ;ra@a sempre& osse a ue horas osse&

metade ao sol e metade U sombra& em ue nunca encontrei tanto

gatoS

- $o preciso da sua auda senhor

e mentira ue eu bem notaBa nas sandlias& na roupa e apesar

de mentira

QdJias de gatos& um deles de cauda branca e o resto listradoS

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no aceitaBas ue eu& no admitias ue eu& recusaBas-me a

carteira sem um gesto& com os olhos

- $o preciso do seu apoio senhor

se tiBesse adiBinhado ue no morreste em +oimbra eu contigo

garanto-te& apertaBa-te a mo uma duas trVs Bees& deitaBa um pingo

de aeite na bailarina e ela a girar& a girar

Q- epara na bailarina a girarS

morBamos no no ardim +onstantino& no teu rKs-do-cho

uase unto aos comboios e pode ser ue o meu pai no ue Binha de

Paris& Belho K claro mas aposto ue decidido a uma tarde no ponto U

pesca em %aBira nem em *intra& a assistirmos aos pombos da esta@o

ue o rpido de Madrid esparBoaBa& a nossa Nlha mais Belha

dierente da minha Nlha mais Belha& a nossa Nlha mais noBa igual U

minha Nlha mais noBa uase a chamar-me ue lhe percebo os modos

e eu homem contigo& palaBra de honra ue eu homem contigo& no

NcaBa na borda da cama a baloi@ar uma peJga ao ritmo da

trepadeira& no precisaBas de ter pena de mim& consolar-me

- 9uer ue dV corda U bailarina outra Be=

o palha@o Us cambalhotas na pista& eCagerado& ero& deundilhos pendentes a cumprimentar-me

- Menino menino

no& no

- Menino menino

o mKdico para mim

- Podemos melhor-lo se controlarmos os diabetes

a bailarina torta ue rodaBa aos solu@os& o Bago de Paris e o

meu pai a desdenhar-me- %rambolho

a bailarina imobiliaBa-se com os cotoBelos erguidos& de lado

para mim& tu igualmente de lado para mim a mentires-me

- $o me Bou embora no chore

e no estou a chorar ue patetice& estou bem& a minha mulher U

mesa no ardim +onstantino

- $o te apetece comer=

a minha Nlha mais Belha com a alcoa& o meu genro a alastrar no

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canapK& a minha Nlha mais noBa

Qno sei poruVS

a Ntar a irm& a eBit-lo& a esuecer-se da irm e a deiCar de

eBit-lo& pela atitude dos corpos estaBa capa de sugerir ue um

 oelho& uma perna& o grupo da camilha a sorrir-me

- $o nos Bamos embora no chores

de repente inuietos prestando-me aten@o& um dia destes

uando menos espere dou por mim no retrato com eles a dissolBer-

me& a apagar-me& as minha roupas a tornarem-se cómicas& as minhaa

ei@Fes

Q- "escansa ue no choroS

um sorriso perpKtuo& mesmo ue se diluam h-de Ncar o sorriso

*empre 9uerido

e olhos plidos ue me no pertencem& de outro& continuando a

olhar& aueles com ue eu para a minha mulher& a dobrar o

guardanapo na argola

- +hega aui

o uarto da madrinha da minha me no para o ardim

+onstantino& para uma rua de loas de tecidos& pneus& chinesices&cedros& no tipuanas& cedros& tantos anos sem me ter apercebido ue

uma rua de cedros& a minha mulher ue no dobraBa o guardanapo

na argola& o traia consigo

- O ue oi=

e eu a echar a porta

Qa Ber-me echar a portaS

a caminhar para ela

Qa Ber-me caminhar para elaS- $o sou homem eu=

a segurar-lhe a cintura e ualuer coisa a rasgar-se"i-me na

cara se no sou homem eu=

tal como gostaria de perguntar ao meu pai"iga-me na cara se

no sou homem eu=

de uem nem as canas de pesca conserBei& deiCei-as no >eato&

esueci-me& as canas de pesca& o cesto dos robalos& a garraa do

aparador ue agora me aia eito conorme aia eito ao primo

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+asimiro

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

e o bigode para cima e para baiCo& o primo +asimiro um bigode

ue insistia

- <ais Ncar a pensar nele toda a Bida peuena=

cedros no uarto do ardim +onstantino& a mobRlia cedros& o

reposteiro cedros& o cruciNCo cedros& eu para a minha mulher& para ti

- "i-me na cara se no sou homem=

apanhar-lhes o cabelo& mago-las& obrig-las a alarem-me

comigo& a minha Nlha mais noBa no corredor

- Pai

Qe o ue K

- Pai

o ue signiNca

- Pai

o ue me interessa

- Pai

se me apertares a mo uma duas trVs Bees eu no aperto a tua&

Nca sabendo ue no aperto a tua& a seguir aos palha@os BVm oscaBalos& deiCa-meS

a minha Nlha mais noBa contra a porta em silVncio com medo do

circo& perdoa no te pegar ao colo auelinha

Qsaiu-me o teu nome Biste=S

no sou pessoa de conBersas& de colos& no dou troco a BocVs&

resolBo os problemas de damas do ornal

Qas brancas ogam e ganhamS

arrumo-me a um canto& Nco mudo na sala& se porBentura aminha irm

- $o d aten@o ao seu neto pai=

o ue ele supunha interesse& o ue ele supunha um sorriso& o

meu pai nas otograNas da camilha& no no so connosco& olhos

plidos ue no lhe pertenciam& de outro& continuando a olhar para

nós& onde oi

- Onde oi buscar esses olhos senhor=

aueles com ue esbarro neste retrato de %aBira& a praia& toldos&

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o homem dos bolos

Qno estou certa mas senhor Hugo parece-meS

de camisa branca e cal@as brancas para a gente pensarmos

Qacho ue no senhor Hugo& senhor 3lBaroS

ue a higiene dos bolos& no micróbios& cuidado e assim& no

apenas camisa branca e cal@as brancas& uma espKcie de biBaue

branco tambKm e depois os dedos suos e a barba remanchada& a

bolsa do dinheiro a tiracolo ue lhe enodoaBa a cintura

Qsenhor AnRbal& senhor Aonso& no& senhor Alredo& de repente

lembrei-meS

e no era o meu pai ue o chamaBa& era a minha me

- +hegue aui

a leBantar o pano e a espreitar para dentro& mais noBa ue eu

agora e na minha opinio BelhRssima& trinta anos para aR

Qou cinuenta ou sessenta porue cinuenta ou sessenta a

mesma coisa ue trinta& eu a pensar

- "urou tanto tempo ue no deBia estar BiBa ue horrorS

um dos dedos do pK

Qo peueninoSa ue altaBa a unha& a enBelhecV-la mais& mudaBa-nos a roupa e

nós enBergonhadas& nuas& toda a praia ia reparar ue nós nuas

- Olha auela

Quanto mais parecia ue no mais as pessoas reparaBam como

uando a minha me

- $o se repara nos coCos

e a gente a reparar U socapa come@ando por ela ue se BoltaBa

na rua- %o coCo meu "eusS

nós a colocarmos dJias de cotoBelos e oelhos U rente& nós pior

ue coCas& ue cegas& enroladas na toalha& a minha me

marimbando-se para a Bergonha

- $o te meCas ue chata

e só nessas alturas me daBa ideia

Qno posso aNrm-loS

ue o meu pai a espreitar a mulherita dois toldos adiante e a

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mulherita

QdaBa-me ideia tambKmS

a espreit-lo a ele e digo daBa-me ideia porue a acontecer uma

coisa rpida& uma uesto de segundos& sentia os corpos de ambos

mais tensos& uma mudan@a na eCpresso ue no seria capa de

deNnir e no estou segura de ser capa hoe em dia& a minha me

acabaBa de mudar-nos e enuanto o senhor 3lB

o senhor Alredo tornaBa a passar com os bolos& o senhor

 Alredo ue me aprendeu o nome

Qse calhar a praia inteira aprendeu-me o nome U custa de me Ber

nua todos os diasS

- auelinha

eu a apanhar uma ponta de cigarro da areia para ue me

cumprimentasse com respeito

Q- Perdoe se ui indelicado senhora dona auelS

ao perceber ue eu crescida& a umar& a minha me

- Larga imediatamente isso

e a senhora dona auel ue remKdio

Qno me deu outra alternatiBa me& sinto muitoSa apontar-lhe a pistola do indicador e a mat-la& a minha me

apesar de morta ou ignorando ue morrera

- $o te mandei largar isso=

Qos ue ignoram estar mortos so os piores de aturarS e o

resultado oi o senhor Alredo& num primeiro tempo admiratiBo ue

se lhe notaBa na eCpresso

Q- ANnal enganei-me K to crescida ue umaS

a mudar o cesto de bra@oQduas gaiBotasS

e a desconsiderar-me

- ,ma ponta de cigarro ue porcaria auelinha

duas gaiBotas no parapeito do restaurante a obserBarem com

inBea um alguidar de marisco& uma nuBenita redonda encalhou

num telhado e Ncou a aguardar ue uma alma caridosa decidisse

tir-la& eu para eBitar conBersas

Q- Auda-me

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e tal e coisa ue bem lhes topo o eitioS

alertando a nuBem a ue ninguKm daBa aten@o

- +omigo no contes

U medida ue as gaiBotas se iam chegando ao marisco& ue

estamos a nas gaiBotas sempre gostaBa ue me eCplicasse como se

distinguem as gaiBotas-rapaes das gaiBotas-raparigas

- 9ual a dieren@a entre uma gaiBota-rapa e uma gaiBota-

rapariga me=

eu de cigarro nos dentes disposta a deiCar de umar em troca de

esclarecimentos U sKria& a mulherita dois toldos adiante& ue

continuaBa a arrepender-me no a ter morto com o dedo tambKm&

aundando-se no crochet& o empregado do restaurante em Be de

elucidar-me

- As gaiBotas-raparigas

pegou numa Bassoura& eCpulsou-as e o resultado oi o cachorro

de uma cliente horas a No a ladrar-lhe eito parBo atK descreBer uma

curBa sobre si mesmo

Qual a rao da curBa sobre si mesmo=S

antes de se deitaruantas ocasiFes& U noite& continuo a pensar nisto& cheguei ao

ponto

palaBra

de descreBer uma curBa para compreender& o carneiro mal

morto estendido na minha cama

Q- %enho a gaa no bolsoS

- O ue ests a aer cunhadinha=

no preocupado com as horas porue atK Us sete podia- A tua irm oi com o crian@o ao mKdico Bem c ao patro

maroteca

e o mindinho em gancho a encolher e a esticar& dobraBa tudo

pelos Bincos num cuidado lento

- Aguenta aR no me abraces

nunca descal@aBa as meias& U saRda procuraBa cabelos no

casaco& esticaBa o peitilho& beliscaBa-me a bochecha abanando-a

- %anto tempo a aeres-te de cara para uV cunhadinha=

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se o meu dedo ainda uma pistola ele de bru@os no cho mas com

o tempo essas Birtudes perdem-se& aponta-se& dobra-se o gatilho do

mKdio e nem pólBora molhada seuer& o dedo sem prKstimo

QdeiCmos crescer as unhas& K a nossa asneira& e desaparece o

reBólBerS

de orma ue o carneiro mal morto& BiBo da costa

- Anda c

como se calhar o meu pai em %aBira& como se calhar nesse

domingo no ardim +onstantino

Q"eus sabe o ue detesto o ardim +onstantino& auele

rectWngulo sem gra@a& auelas rBoresS

uando dobrou o guardanapo na argola a ordenar U minha me

- +hega aui

uase a trat-la mal& a minha me acompanhando-o a estranhar

- O ue oi=

uma Bolta de chaBe na porta do uarto& um silVncio e no silVncio

- O ue oi=

o Bento a mudar de leste para norte arrastando o sol consigo& o

 ardim +onstantino& sem sol& da cor da insónia e da angina& assombras no interior da casa aumentando a sombra l ora& os cedros

das traseiras a escurecerem o uarto& ualuer coisa

Qum rasco& um solitrioS

ue tombou a rolar& uma das molas da cama& outra mola& a

minha me no

- $o te meCas ue coisa

no

- $o te mandei largar isso=calada& eu

- Pai

 ulgo ue eu

- Pai

sem entender porue eu

- Pai

eu apenas

- Pai

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aTita como uando os palha@os no circo e a mJsica aos gritos&

eu ao seu colo sem estar ao seu colo& uieta no meu lugar mas com a

certea de BocV entender ue eu ao seu colo senhor& eu no

- Pai eu

- Paiinho

e logo ue eu

- Paiinho

a gaiBota-rapa e a gaiBota-rapariga Boltaram ao restaurante

com uma gaiBota-rapariga com elas& mais eminina& mais dócil no

sei se por causa do marisco se por causa da gente e digo gaiBota-

rapariga porue se aparentaBa a mim& a orma de caminhar& o cabelo

pintado& o modo de pedir

- Pai

as gaiBotas-raparigas do >eato paiinho por cima de BocV no

ponto& um senhor a umar& de chapKu& num rolo de cordas& um

petroleiro ue atK hoe nunca Bira a adornar nos cani@os& a gaiBota-

rapariga contra a porta do uarto no ardim +onstantino

Qas sobrancelhas a lpis& o cabelo pintadoS

enuanto rascos e solitrios a rolarem no cho e BocVQacho ue BocV& uma gaiBota-rapaS

- "i-me na cara se no sou homem eu

uma gaiBota-rapa mas diRcil de perceber dado ue de costas no

retrato ue a minha irm tirou

Q- Prometo ue só umaS

e no retrato um Wngulo de ombro e um bocadinho de nuca ue

tanto podia ser dele como de outra gaiBota ualuer& uma otograNa

de praia de muina barata ou sea areia& toldos& as ondas nem simnem no& antes concebidas ue Bistas como nos telFes do >eato

QaltaBa-lhes a menina a remarS

acinentando-se ao undo& o senhor Hugo

o senhor 3lBaro

o senhor Alredo a caminhar para nós com o cesto dos bolos& a

caminhar para nós uma or@a de eCpresso porue eu uma gaiBota-

rapariga ue no Ncou na pelRcula& alis no bem uma gaiBota-

rapariga& uma gaiBota menina

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Qcinco anos no mCimoS

a abrir uma coBa atK ao centro do mundo na ual coubessem o

 ardim +onstantino& a minha me& a minha irm& o carneiro mal

morto& o crian@o& a mulherita ue aia crochet sem olhar para a

gente& se alguKm crescido perguntasse

- O ue ests a aer=

respondia logo

- Estou a abrir uma coBa atK ao centro do mundo

e podem rir-se U Bontade ue no me perturba& eu sei& sei ue

todos na coBa atK ao centro do mundo& sobrBamos c em cima o

meu Belhote e eu e no preciso de lhe apertar a mo uine nem sete

nem uma Be seuer dado ue os palha@os acabaram& esto a chegar

os caBalos e eu sem medo nenhum& sem necessitar de BocV& eu

soinha no meu lugar em pa& eu serena& U medida ue os penachos

passaBam por mim num galope eli.

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DÉCIMA FOTOGRAFIA 

Esta K a otograNa num restaurante da >aiCa dos cinuenta anos

de casados dos meus pais: tem seis meses se tanto e l estamos nós U

mesa& a minha me e o meu pai de sJbito to Belhos ue me custa

reconhecV-los

Qapesar de tudo uando se meCem repara-se menos na idade&

eCiste alguma Bida dentroS

o meu pai de colher na mo& a minha me& consciente do retrato&

a endireitar a gola

Qdedos dierentes dos seus& magros& torcidos e ue no entanto

lhe pertencem

a alian@a dela& o anel dela

apesar da diNculdade em achar o BestidoS

a minha me e o meu pai sentados e nós de pK U Bolta& a minhairm& eu& o meu marido& o meu Nlho& o empregado com a traBessa U

espera& um uadro ue se distingue mal

Qo mar=S

ui eu ue trouCe a muina& a estendi ao gerente& pedi-lhe

- $o se importa=

Qem miJda roubaBa a do meu pai em %aBira e ugia a apont-la

Us ondas& aos Biinhos de toldo& ao homem dos bolos

senhor Alredoue de de em de metros poisaBa o cesto a descansar& lembro-

me das costelas muito depressa e ue U noite& sem cal@as brancas

nem camisa branca& com uma roupa como a nossa em mais usado& o

encontrBamos no balco da esplanada& de narinas eroes& a beber

aguardente com o mindinho em argola

se calhar teBe estudos

consoante me lembro de tentar compreender o ue aria no

inBernoS

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a boca do gerente sob a muina

Qa cara do gerente apenas bocaS

- Apertem-se para no Ncar ninguKm de ora

o meu pai a perder sopa pela colher inclinada& a minha me ue

no entendera e ulgaBa ue a censuraBam

- %enha termos

o meu marido& cuo cabelo diminuRa& contra a minha irm&

ultimamente o Rgado

Qou pelo menos ele

- ,ltimamente o Rgado

e a palma na barriga a seguir a comer& cautelosa& eCplorandoS

ultimamente o Rgado amolecia-o no cadeiro onde se escutaBa a

si mesmo contando e recontando as BRsceras em silVncio

Qos lbios

- 9uatro cinco seisS

no pWnico de altar alguma& se suspeitaBa ue eu iria alar-lhe

guardaBa as ue tinha separado

$o me interrompas

e recome@aBa a soma a partir da BesRcula ou do ba@oQ- "e one doeS

deiCndo o cora@o para o Nnal conrome com os oBos estrelados

cortaBa a clara em Bolta e terminaBa na gema& acabando de contar

metia tudo no corpo& alinhaBa um rim ou a aorta na aten@o com ue

se corrigem molduras& acompanhaBa o trabalho das glWndulas& do

sangue& da medula dos ossos a acertar-se pelos ponteiros de relógio

em punho& sentia-o de olhos abertos na cama porue o pWncreas

Qa tiróide=So chamaBam e ele ue nunca se debru@ou para o Nlho debru@ado

para o pWncreas

Qa tiróide=S

- O ue h=

ele um co de rebanho conduindo auelas oBelhas esponosas

ao comprido dos dias& um homem sem nome substituiu o senhor

 Alredo na indJstria dos bolos atK um bar na praia o substituir por

seu turno& os Biinhos de toldo mudaram eCcepto a mulherita ue

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chegaBa de camioneta na tarde em ue chegBamos& enNada mais as

agulhas no interior do crochet& nunca pensei ue um naperon

peueno escondesse uma pessoa inteira e escondia& a minha irm

no Binha connosco& o meu marido NcaBa a somar duodenos em

Lisboa e a aumentar as plpebras no espelho da barba calculando

anemias enuanto eu& Binda do sono em pe@as separadas sem

nenhum papelinho a eCplicar& aparausaBa articula@Fes& trocaBa

cotoBelos e BKrtebras diRceis de encaiCar no len@ol da manh

Q- Este pK em ue sRtio este oelho onde Nca=S

a impresso ue me altaBam polegares e sobeaBam tRbias ao

caminhar no uarto& a cabe@a a deseuilibrar-se porue me enganei

num mJsculo& a rótula tomada por engano

Qse calhar do meu maridoS

obrigando-me a mancar& ele e a minha irm untos na otograNa&

o meu Nlho e eu do lado da minha me e o empregado da traBessa

entre nós& no a NCar a obectiBa mas osse o ue osse nas costas da

minha irm& eCactamente a curBa de uando a minha me lhe

acariciaBa a nuca a apresent-la Us Bisitas

- A minha Nlha mais noBae ela a desBiar-se

- " comicho largue-me

ao passo ue no caso do meu pai embora no me recorde do

meu pai nos beiar uanto mais& tinha a certea ue ela obediente&

deiCando& portanto Bisto ue a minha me sentada e o meu pai a

entornar a colher restaBam o empregado e o meu marido para lhe

acariciarem a nuca& o empregado no deriBado U traBessa e U

surpresa na cara de modo ue o meu marido um dedinhoQou a palma inteiraS

deBagar na pele dela& o meu Nlho

Qum espeBitado de deoito anos ue o tempo passa na mecha&

ainda h segundos outubro e outubro outra BeS

a aer-me cornichos de tro@a& o Bestido na primaBera largo e no

outono no& o dedinho

ual dedinho& a palma na cintura da minha irm& no rabo& o

pesco@o mais curBo& ela a desBiar-se

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- " comicho largue-me

e also& erro meu& a consentir& uando comecei a namorar olhaBa

o prKdio da rua e a minha irm na cortina a cocar-nos& despeaBa o

meu perume& escondia-me o baton& se me ueiCaBa U minha me e a

minha me lhe ralhaBa o meu pai a interromper os ralhos

- chega

ele ue nunca interrompia nada& nem seuer daBa por nós& se

lhe abria a porta na Bolta do emprego eu em bicos de pKs

- Pai

e uma bochecha ue se ia embora antes de conseguir alcan@-la&

eu a insistir

- Pai

e palaBra alguma& silVncio& se a minha irm lhe abria a porta a

bochecha ia-se embora tambKm& silVncio tambKm e contudo achaBa-

me pronta a aNan@ar ue um entendimento entre eles apesar da

minha irm a eBit-lo& durante as otites por eCemplo

- $o o uero aui

e todaBia escindido no

- $o o uero auia anga de gostar do meu pai e a detest-lo por isso& um No de

 Bo ue comandaBa

- ProRbo-o de entrar no uarto senhor

e ele para meu espanto caminhando na direc@o da sala a

submeter-se U Boinha& a errar a solu@o do problema das damas

Qas brancas ogam e ganhamS

a regressar se ela dormia para a acompanhar de longe no

preteCto de um obecto ualuer de ue no precisaBa no armrio douarto& o meu pai de caneta ou chaBe de endas ou manipulo de

torneira na mo e a caneta& a chaBe de endas& o manipulo de

torneira eram a minha irm ue eu bem Bia pela maneira de pegar-

lhes& de os manter na palma demorando-se neles& de aer de conta

ue os esuecia continuando a segur-los& a minha me a agarrar na

caneta

Qou na chaBe de endas ou no manipulo de torneiraS

- O ue a isto aui=

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e o meu pai a deendV-los de repente eri@ado& abrigando-os com

o bra@o

- "eiCa estar

atraBessaBa a casa iluminada pelos candeeiros do ardim

+onstantino ou sea escamainhas plidas ao comprido do tecto para

a Ber dormir& de punhos nos bolsos a impedi-los de saltarem do

casaco e se ocuparem dela& no daBa pela minha cama mais próCima

ue a da minha irm e eu no$o o uero aui

eu calada ou sea

- <enha

o meu pai sem atentar em mim Qno eCisto pois no=S

no eCisto para si consoante no eCisto para o meu Nlho& para o

meu marido

QeCisto para alguKm=S

o meu marido

- ,ltimamente o Rgado

e no eCisto ou eCisto para ninguKm& dissolBo-me nos trastes&

sou uma coisa a um canto& as Bees descobrem-me na sala a

consertar roupa ou assim& botFes uase soltos& meias& o meu marido- Ests aR=

a enNar-se no escritório& no uma pergunta& um enado& do

nosso apartamento o +asino U noite& as peónias do Estoril& uma

nesga de mar& o cheiro das peónias comigo o tempo inteiro& to

presente ue uase uma pessoa BiBa pronta a receber-me& U espera

Qas peónias um homem ue no se desgosta de mim& no se

aborrece se eu alar& me aceita U sua beiraS

uis morar neste sRtio pelo cheiro apenas& to intenso depois dachuBa& a descobrir-me& eu deitada para ue o cheiro descubra em

mim o ue o meu marido no sabe por no lhe interessar saber e o

ue eu no sabia ue sabia& os meus dedos o cheiro& a minha mo o

cheiro& um cheiro no de homem& de mulher

Qse conhecesse uma mulherS

os dedos dessa mulher o cheiro& as suas mos o cheiro& a

proessora de geograNa do liceu esse cheiro& mais Belha ue a minha

me& sem pintura& os olhos dela a medirem-me& olhos de proessora e

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de repente outros olhos& Bontade ue me medisse aendo-me

distraRda& nessa Kpoca o cheiro dos acarands& no das peónias& a

minha irm

- O ue ests a aer=

e eu no

- Estou com o cheiro dos acarands

como eCplicar-lhe

- Estou com o cheiro dos acarands=

eu

- $ada

o ue ulgaBa outros olhos olhos de proessora aNnal& no me

medindo& desprendidos de mim& uando muito

- $o se pode dar seno uma negatiBa no teste

e acarand algum& o marido alecido na guerra diiam& nunca

outros olhos& olhos de proessora somente& os acarands enganaram-

se& a minha irm

- Ests a chorar poruV=

e ainda ue uisesse responder no conseguia& se lhe contasse

das rBores- Os acarands

no acreditaBa em mim& ria-se

- +horar por meia dJia de rBores onde se Biu=

essas Torinhas delas ue hoe detesto& amarrot-las& rasg-las

- Enganaram-me

no tinham o direito de me enganar e enganaram-me& o marido

ue aleceu em 3rica& a proessora de geograNa no se incomodaBa

comigo- $o te posso dar seno uma negatiBa no teste

topei-a uma ou duas Bees a sair do cinema com um senhor de

orma ue se passaBa por um acarand no lhe sentia o cheiro& os

 acarands no eCistiam conorme eu no eCisto& o meu marido a

enNar-se no escritório

- Ests aR=

surpreendido& a esuecer-me& eu a consertar roupa ou assim

QbotFes uase soltos& meiasS

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elimente ue as peónias em baiCo embora no acredite ue se

inuietem comigo& to mentirosas uanto os acarands& em

come@ando a anoitecer a nesga de mar transparente& risonha

Qos das caraBelas& l no tempo deles& uma Bida de santosS

ganas de teleonar U minha me e ela surda

- O ue K=

atK descobrir ue sou eu e come@ar com os lamentos& nem

- +omo ests Nlha=

nem

- O ue se passa Nlha=

ueiCinhas& a tua irm no se lembra de nós e no sei onde

mora& o teu pai sem poder com uma gata pelo rabo ue insiste Us

uartas-eiras em almo@ar com os colegas& elimente ue tu o teu

marido& o teu Nlho& sem imaginar ue eu nem marido nem Nlho& o

consolo das peónias e K tudo& se me deito o cheiro& ue possui uma

pele

Quma pele mesmoS

a ro@ar-me na pele& dedos ue guiam os meus

- Por aui por auichegando primeiro a mim mesma e audando-me a chegar

- Por aui

depois da chuBa mais lentos& mais certeiros& o seu cuidado

comigo& as suas aten@Fes

- Por aui

demoram-se nas ancas U minha espera& leBam-me consigo&

encontram-me& tenho-as neste prKdio& no prKdio a seguir& na

primaBera passada nos canteiros do +asinoQse conhecesse uma mulherS

se agora& aos uarenta e oito anos& conhecesse uma mulher ue

ao enNar-se no escritório no uma pergunta& um enado

- Ests aR=

cuos olhos se transormassem noutros olhos ou em partes suas

ue no ossem olhos e no entanto me compreendessem e por

conseguinte me Bissem reconciliando-me com os acarands da Pra@a

da Alegria& do ardim >otWnico& dauele sRtio de Lisboa ue no

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recordo o nome

Qseria +ampolide=

+ampolide no me pareceS

e de ue lembro os ediRcios& as ruas& o prKdio em ue a

proessora de geograNa moraBa porue a Bigiei Us escondidas& NcaBa

no BestRbulo a abrir a caiCa do correio e eu c ora senhora& com o

teste a ue no podia dar seno uma negatiBa no era

Qenganei-me nos usos horrios& nas ilhas dos A@oresS

enganei-me de propósito dado ue tinha a certea ue com uma

em mim. eu c ora enuanto BocV em lugar de reparar em mim ia

obserBando uma a uma& sem suspeitar ue eu acol& sem pressa& a

publicidade& as cartas& passaBa a da rente para trs e continuaBa a

estud-las sem as riscar com a caneta como riscaBa o ue eu escreBo

e na margem

!ncompleto

na margem

Errado

uando

!ncompletopor amor e

Errado

por amor& repare em mim& no presto& consoante o meu pai

reparaBa na minha irm ue no prestaBa tambKm

- $o o uero aui

e ele NcaBa& a proessora de geograNa sentada no degrau a ler

uma das cartas& a mir-la do outro lado& a tornar a ler e se calhar

!ncompletose calhar

Errado

eu com pena de si uase a atraBessar o passeio para o caso de

lhe agradar um consolo& uma auda

- $o puderam dar-lhe seno uma negatiBa senhora=

 BocV a abanar a cabe@a sem dar por mim

Que deseitaS

a separar a carta& a subir as escadas mais deBagar ue o

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costume& a erguer& aos arrancos& o estore do primeiro andar

QBocV com óculos agoraS

a permanecer contra o Bidro sacudindo o enBelope batendo-lhe

com as chaBes e eu numa aTi@o& comoBida& se hoe no Estoril lhe

mostrasse as peónias talBe se distraRsse da carta& colaborasse com

os botFes& as meias

Q- #a assim a assadoS

me ensinasse os actores de eroso

Qaos uarenta e oito anos os actores de eroso compreende& aos

uarenta e oito anos só actores de erosoS

os rios de !tlia& o mistKrio dos Bentos& a nesga de mar enegrecia

sem lues& a insRgnia do +asino ia aulando a sala& o meu marido sem

dar por si

- $o ligas o candeeiro=

e no ligaBa o candeeiro Bisto ue se ligasse o candeeiro o

cheiro das peónias eBaporado& a ugir-me

Qa ugir-nosS

e BocV a ugir-me igualmente da memória& acho ue o cabelo

castanho ou pretoQpreto talBeS

no me recordo das ei@Fes& recordo-me da maneira de colher o

gi& anunciar

Qum cRrculo sobre cada palaBra no uadro& a ponta do gi a

teimar pac pac& a roupa ue nunca se lhe austou Tutuando nas

ndegas

- $o sou m em costura eu audo-a

e ela sem me ouBir- Ora c temos os actores de erosoS

uando os actores de eroso so o corpo ue no pra de

espessar--se& os artelhos ue engrossam& eu incapa de correr em

%aBira

- $o me apanham

e por conseuVncia eu numa cadeirita de lona como a Biinha

dois toldos adiante& os actores de eroso so o meu marido& ue no

me procura h um ano& no eCtremo oposto da cama enuanto eu Us

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 Boltas com as peónias ue mesmo sem chuBa se dilatam& me meCem&

me conduem a mo& eu prestes a pedir-lhe auda

- Pedro

para ue me deenda das Tores& acho ue acredito em "eus

QdeBo acreditar em "eusS

mas no me Bale nunca& as plantas uma espKcie de ebre& o

colcho inNnito e o meu marido perdi-o& uer dier se eu ora da

cama notaBa ue o colcho peueno& se l dentro no acabaBa

palaBra& uilómetros e uilómetros para encontrar uma respira@o&

um bra@o ao passo ue o resto do apartamento& muito menor ue a

cama& as dimensFes de sempre& as peónias tornaram tudo to

incompreensRBel& diRcil& estes dedos l em baiCo ue deiCam de ser

meus& os meus no to Nrmes& to agudos& a desencantarem uma

saliVncia& a insistirem na saliVncia& eu

- Acredito em "eus acredito em "eus

e deriBado U saliVncia eu do tamanho da cama& maior ue a

cama e& mal o nerBo da saliVncia me abandona& a cama a caber no

Estoril primeiro e no apartamento depois& "eus resolBeu interessar-

se e nenhuns dedos& nenhum nerBoQno

- Acho ue acredito

acredito& tiBe uma medalhinha de $ossa *enhora em miJda& um

dia no a senti no pesco@o& espero ue "eus no se angueS

na nesga de mar uma claridade cinenta& por um instante o

calcanhar do meu marido e a proessora de geograNa esuecida&

nunca ui ao +asino& escutaBa a mJsica& os carros& Bia as pessoas na

entrada& procurei a medalhinha no traBesseiro& no choQ$ossa *enhora de LurdesS

e em Be da medalhinha ganchos de cabelo& um alNnete& uma

moeda onde no lugar da santinha epJblica Portuguesa e um homem

de perNl& o meu pai uase de perNl no retrato dos cinuenta anos de

casado a escorregar untamente com a sopa do interior da colher& a

cada Bisita ao lbum tem uma idade dierente& ontem por eCemplo a

idade em ue leBou a minha irm ao circo& no diia o meu nome mas

em duas ou trVs ocasiFes escutei-o

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- auelinha

no aectuoso& tentando ue o

- auelinha

uma palaBra sem importWncia a tombar-lhe da lRngua por

descuido& a minha me

- $o leBas a outra=

e o

- $o leBas a outra=

"espreado sem ue ninguKm o apanhasse& no dia seguinte

ainda o achei na sala

Qno achei a medalha mas achei a pergunta

- $o leBas a outra=S

suspenso de um espaldar& altaBam-lhe letras

- $o as trago

O ponto de interroga@o& o til& uando a pergunta intacta

- $o leBas a outra=

o meu pai a despedi-la com a mo

Qno o bra@o inteiro& a mo& a pergunta uma moscaS

no sentido da Baranda& por sorte o casti@al do piano onde Ncouenredada impediu-a de sair de orma ue o

- $o leBas a outra=

uma chamainha de Bela& o meu pai para a minha irm num tom

de ralho& angado

Qas rBores do ardim +onstantino no cheiraBam a nadaS

mandando-a traer o casaco

- <ais ao circo percebes=

Qpassado um bocadinho uma corrente de ar e a perguntaeCtinguiu-seS

as rBores do ardim +onstantino nem a rBores cheiram&

uando muito cheiro de cola& papel de seda de olhas& cartolina de

galhos ue uma tesoura canhota recorta ao acaso& um som de

enciclopKdia nas copas com o rioinho da tarde& reTectindo melhor

sei l se acredito em "eus& ulgo ue no acredito& no caso de me

encostarem U parede

- Acreditas em "eus=

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e me obrigarem a ser sincera eu calada& suspeito ue se estiBer

com otite acredito mas a otite d-me sono& interpFe um encolher de

ombros entre mim e o resto& o aspirador da empregada& uma oitaBa

mais graBe& engole o apartamento de mistura com "eus& deBe ter

comido as peónias porue no dou por elas& no Nm do antar o meu

pai estudaBa na sala dobrado sobre o tampo de cotoBelos em cima&

sem maneiras embora no um garo& lapiseira& leBaBa a lapiseira U

boca com a gramtica inglesa e mastigaBa a gramtica& se um Berbo

o aleiaBa ia com a unha e titaBa-o& limpaBa o Berbo Us cal@as

Q- Acredita em "eus pai=S

ou sublinhaBa as olhas das rBores do ardim +onstantino ue

cheiraBam a liBro a tomar nota delas em cadernos e as rBores em

outubro& daBa-me conta dos dentes

Qdois dentes& uma alha no meioS

uando as repetia em silVncio& ao Ncar doutor leBou-nos U outra

ponta da cidade a tirar o retrato& umas hortas unto ao rio ue a

minha irm achaBa eio e eu bonito

Q- A sKrio ue bonito paiS

- Morei aliQum dia destes mando-o buscar o casaco e leBo-o ao circo

comigo& eu angada a ralhar-lhe isto K a aogar coisas no interior de

mim ue preNro no reBiBer& ue disar@o

- <ai ao circo comigoS

 BocV

- Morei ali

um degrau& uma anela sem Bidro& um ponto com um rolo de

cordas ao undo& BocV- O ponto

no ponto um homem de chapKu a umar preparando canas de

pesca& a minha me para o meu pai

- 9ual homem=

ue incompreensRBel a minha me no Ber& a gente BRamos pai&

 BocV a aproCimar-se dele a dar K ue eu notaBa& a estacar ma@ado

comigo por lhe impedir o homem

Q- 9uem K o homem paiinho=S

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e ento uma caBe com ocos& telFes& cenrios de meter a cabe@a

de ue os !odos da Baante iam roendo a pintura& o %eo a acotoBelar

as paredes e um sueito a nascer de uma muina e a Balsar-nos em

torno com um sauito de polBo

- Pimpolho

designando uma cadeira de Beludo ue ia limpando com a

escoBa e apesar de limp-la continuaBa sua& o meu pai e ele& por

raFes obscuras& considerando-a importante

- *enta-te aR onde a tua me contigo ao colo pimpolho

QaNnal no obscurasS

U medida ue os ocos se acendiam a custo reBelando

inutilidades& ornais Belhos& mais poeira

Qse me encostassem U parede

- Acreditas em "eus=

respondia

- Acredito

pelo sim pelo no preNro acreditar em "eus& no me a mal

nenhum& a gente di

- Acreditoe "eus& ue remKdio& aceita ue acreditamos e ocupa-se dos

*eus negócios ue na minha perspectiBa deBem ser uma lua-lua

pegada com toda a gente a interrompV-lo o tempo inteiro coitado e a

pedir-Lhe milagres& só doentes nos hospitais no K& apaBorados com

a morte& a importunrem-no. as dJiasS

 ornais Belhos& mais poeira& um sapato sem atacadores& ao

contrrio

Qoi o rio ue deiCou=Sdetritos de naurgio ue o tempo abandonaBa& a minha aBó& ue

no conheci& na cadeira

Qa minha me e a minha irm no perceberamS

a agitar-se

- PoruV=

e o meu pai para mim ao notar ue eu escutara a pergunta& no

em Bo alta& a Nngir-se calado

Qe para a minha me e a minha irm caladoS

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- $o lhes contes

se caRsse na asneira

Qno caio na asneiraS

de lhe alar na me atiraBa-me logo

- $o tiBe me sou soinho

eCigindoue me contentasse com a resposta e contento-me com

a resposta pai& como BocV uiser& como lhe der na gana& se decidir

ue soinho K como acreditar em "eus& no me apetecem discussFes&

aceito& no teBe me& K soinho e estamos conBersados pai& parece-

lhe ue andorinhas do mar e andorinhas do mar& seam andorinhas

do mar& no comento& ao ponto a ue chegmos concordo com tudo&

no teBe me& K soinho& o sueito da Photo oIal Lda

- A tua me contigo ao colo pimpolho

e no alou em me nem em pimpolho descanse& mania minha&

inBentei& morou ali& na anela sem Bidros& soinho& uma barraca

semelhante a esta caBe ue se inclina ao aundar-se no %eo& um telo

com uma menina a remar& as cotoBeladas das ondas& o sueito a

emocionar-se

- Olha onde tu chegaste pimpolho Ks doutorcomo se o meu pai osse doutor por ele igualmente ou pelo

bairro inteiro e bem Bistas as coisas se calhar era mais lógico ue

no pimpolho me& o meu pai no um bebK de montra como esses aR&

um adulto

Qem %aBira a mulherita dois toldos adiante

haBia alturas

no tenho a certeaS

a Ntar o sueito ue aperei@oaBa os ocos no como umpimpolho K óbBio& um caBalheiro& um doutor

- Endireita-te como os doutores pimpolho a uma cara de gente

haBia alturas

Qno tenho a certeaS

haBia alturas& no me perguntem como& em ue me daBa o

pressentimento ue a mulherita e o meu pai uma intimidade entre

eles& no se cumprimentaBam& no ligaBam um ao outro e no entanto

ia urar mesmo no tendo a certea

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Qeu mais segura disso& salBo sea& ue da eCistVncia de "eusS

ue um no sei como se eCprimia entre eles do tipo da

proessora de geograNa

- $o posso dar-te seno uma negatiBa no teste

e os olhos a medirem-me& olhos de proessora e de repente

outros olhos& estou certa agora& aos uarenta e oito anos& ue se

demoraBa de propósito no BestRbulo a eCaminar o correio e eCaminar

o correio era a sua orma de chamar-me

- Anda c

ao aparecer U anela com a carta insistia

- Moro no andar assim assim anda c

se tocasse nem uma pergunta nauelas ranhuras abaiCo das

campainhas nas uais as Boes nos interrogam ordenando entre

estalos

- 9uem K=

portanto se tocasse

Quarenta e oito anos para aprender isto& ue idiotaS o echo

elKctrico logo aberto

QplicSe eu para mim

- #oste to estJpida tu

plic ou sea

- Entra

a porta ue desanda antes de se chegar ao capacho e eu

surpreendida com a casa& uem me d negatiBas nos testes no pode

morar entre móBeis mais escuros ue os do ardim +onstantino&

consolas& escriBaninhas& arrFes& deBia ter um apartamento cheio deglobos terrestres& mapas

Qo sueito da caBe a regular a muina

- LeBanta-me esse ueiCo pimpolho

e só ento reparei ue as noiBas daBam ar de gaiBotas& uatro

ou cinco de grinalda desraldando os seus BKus a espadanar no

pontoS

e nem globos terrestres nem mapas& cómodas como nós& uma

criatura de idade com um rasco de detergente ue a trataBa por

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menina& um homem numa moldura

Qo marido da guerraS

comportando-se com ela U maneira do meu pai com a mulherita

de %aBira& no a cumprimentaBa& no daBa mostras de conhecV-lo e

 Bai na Bolta eu a entender

s

QeCactamente dessa maneira& s& no entendemos mas

entendem& Bendo bem era isto e tudo a articular-se& episódios ue

no aiam sentido to ceis agoraS

a proessora mais idosa ue a minha me& sem pintura& os olhos

a medirem-me& antes ue outros olhos a moldura do homem e outros

olhos nenhuns& o cheiro dos acarands a eBaporar-se de sJbito e

adeus Torinhas brancas

Qno ardim da Estrela penso ue h e contudo o ue me Ncou do

 ardim da Estrela era o rapa ue se aproCimaBa& abria a gabardina

- %omem

tornaBa a ech-la a solu@ar palaBrFes e desaparecia a correrS os

olhos da proessora nunca outros olhos& BacilaBa& apercebia-se da

criatura de idade com o detergente- Menina

e acho ue deriBado U criatura de idade& no ao homem da

moldura& um soslaio U criatura& um soslaio ao homem& o soslaio a

regressar U criatura& no era a mim ue media era a ela atK ue um

sopro cansado

- X melhor ires-te embora

uando a proessora daBa aulas o nari moBia-se-lhe& a minha

colega de carteira o mesmo com as orelhas& concentraBa-se& NCaBa ouadro preto

- epara

e as orelhas aastando-se e untando-se ao passo ue o nari a

alargar-se e a aNlar-se sem a proessora atentar& de tempos a tempos

a meio da aula a intui@o ue me obserBaBa& um cheiro ue eu no

sabia o ue era e hoe sei& peónias& as peónias depois da chuBa& to

presentes uanto uma pessoa BiBa& U espera de me receberem

consoante a mulherita dois toldos adiante

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Qperdoe dier isto meS

U espera de receber o meu pai& a minha mo ue principiaBa a

prender as minhas pernas& a minha barriga e eu espantada com a

mo& a proessora recome@aBa a aula e a minha mo suspensa& penso

ue errei uase tudo no Jltimo teste e no entanto a proessora a

inclinar-se para mim

- $o K uma negatiBa descansa

no a Bo do liceu& um suspiro rpido& a colega das orelhas

- O ue se passa com ela=

no precisamente um suspiro rpido& esses guinchos de prKdio

- 9uem K=

só ue em lugar de

- 9uem K=

um segredo entre silBos a urar-me o ouBido

- $o K uma negatiBa descansa

a proessora a dirigir-se U secretria dela

Qse eu conhecesse uma mulherS

isto no Nm do Jltimo perRodo e no ano seguinte um cretino

dissertando no estrado sobre a deriBa dos continentes e a origem dasmon@Fes& no prKdio da proessora ninguKm& a caiCa do correio

lacrada& a anela Baia& touei e o echo elKctrico mudo& a porteira

ue Barria os degraus

- E uma das aNlhadas dela BocV=

e eu a trotar para casa& no me apetecia respirar& no me

apetecia comer& a minha me

- O ue oi=

a minha irm peBa& passou-me pela cabe@a ue tinha adiBinhadoe odiei-a

- Odeio-te

o acto de no alar deu-me a certea ue adiBinhaBa& sabia& as

rBores do ardim +onstantino

- *abemos

prontas a contarem U minha me& eu antes ue lhes Biessem

ideias

- $o sabem nada BocVs

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só reencontrei a proessora no Estoril com o cheiro das peónias

se as rBores do ardim +onstantino sincerasS

- *ó te posso dar uma negatiBa no teste

os canteiros to presentes ue uma pessoa BiBa a conBersar

comigo& sobretudo depois da chuBa eu em casa da proessora outra

 Be& arcas de cWnora& louceiros& coisas ue se herdam dos parentes e

os parentes a anunciarem sem ei@Fes& sem corpo& dos interBalos das

tbuas ou do empenado de um gono

- ulgaBas ue alecemos no era=

os parentes um alNnete de graBata na cristaleira& um selo com a

rainha& um peda@o de Nta

- $o alecemos garanto-te

e no entanto se nós

- <enham c

retraRam-se& tornaBam-se esses climas lilases ue continuam a

desprender-se das caiCinhas de costura e dos boiFes de brilhantina

 Baios& a proessora de geograNa nem caiCinhas nem boiFes& peónias&

os meus dedos parados na barriga& ansiosos

Q"eus K um ser omnipotente criador do +Ku e da %erra& acreditonele.& uro pelo meu Nlho ue acredito neleS

e a cama sem aumentar& o meu corpo echado& a minha me

soinha desde noBembro no ardim +onstantino& surgia-me na cabe@a

ue apesar da poltrona sem ninguKm a ualuer momento o meu pai

com o problema das damas

Qas brancas ogam e ganhamS

no& o meu pai antes de sumir-se de noBo& desatento do

problema das damas- #i o ue pude Nlha

pela primeira Be

- #ilha

o meu pai nunca

- #ilha

no Bou garantir mas pode ser ue para a minha irm

- #ilha

comigo no e todaBia agora& unto ao piano& sem ue a minha

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me reparasse& de ornal a escapar-se-lhe do colo uando ele se

leBantou& se dirigiu ao corredor e os passos cada Be mais leBes dado

ue de sJbito o corredor compridRssimo& portas de um lado e outro e

abrindo as portas os nossos uartos primeiro e depois os parentes de

uem herdmos a mobRlia e deiCmos sem nada& Us Bees aTige-me

ue os deuntos to pobres& procurar uma nota na carteira e

entregar-lhes

- %omem

os parentes ue no entendiam o dinheiro moderno a

mostrarem--na uns aos outros duBidando de mim& se abrRssemos as

portas do corredor l estaBam eles

Qcamaeus de porcelana& raues& sombrinhasS

anunciando por intermKdio dos interBalos das tbuas ou do

empenado de um gono

- ulgaste ue alecemos no oi=

e na realidade ainda ali estaBam& de polainas& pince-ne& cabelo

diBidido ao meio

Qos boiFes de brilhantina BaiosS

aeitando os craBos da botoeira& eu curiosa- O ue comem BocVs=

cabaes de piueniue& um serBi@o antigo& rachado

Qpratos com monograma& desenhos& canecas sem asa ue

perderam o Berni do rebordo& BV-se o barro por baiCo

- X por aui ue bebem=

num undo de armrio descobri luBas& carimbos roCos de loa

QAlmeida ] Lima& PharmaciaS

ue no carimbaBam& os tristes& porue a tinta secou& aplicaBam-se num papel e o Almeida somente& o Lima e o Pharmacia um

borroito rosado& eu a inorm-los

- Acabou-se o negócio

e apesar de acabado o negócio os parentes com acanhamento de

aceitarem a nota& l Binham por Nm uns dedos em cuos anKis& no

lugar& a miniatura libra os ganchinhos ue a prendiam ao aro&

relógios de colete ingleses

Hinghins Manchester

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sem ponteiros nem Bidro& de mostrador de esmalte Qacredito na

essurrei@o da +arne& na +omunica@o dos *antos& na <ida Eterna&

 AmenS

os passos do meu pai ue por Nm terminaram

- #i o ue pude Nlha

a proessora de geograNa a par dos paRses todos& das cidades&

dos golos

Qa par do >eato=S

h-de ensinar-me onde ele est& oi o meu marido ue teleonou

- O teu pai

o cora@o parece& numa dessas uartas-eiras em ue ele e os

colegas

Qum caK ou issoS

embora nenhum colega no Belório connosco& a minha irm sem

ocupar o banco da capela unto U minha me e a mim& encostada U

parede de mos sumidas no casaco com o lbio nos dentes e nisto&

sem motiBo algum& Beio-me U lembran@a o postal do lbum de

otograNas com as accias de *intra num muro enuanto a minha

cabe@a tentaBa entender& Us Boltas e Us Boltas& o poruV das accias&uma ocasio& num desses sbados em ue se reunia com os amigos

QUs Bees aos sbados& na primaBera& reunia-se com os amigosS

trouCe ueiadas para a minha irm& uer dier ao cruar-se com

ela deiCou-lhe o pacote na mo como se no desse por isso& nem

- ,ma prenda

nem

- *o para ti

deiCou-lho na mo& sKrio& aborrecido com ela& e unindo as pontassoltas a no@o de ue principio a entender& uem aBisou o meu

marido ue o meu pai

- 9uem te aBisou ue o meu pai=

Quando tiBe a certea ue no podiam notar-me leBei o lbum

para a maruise& desprendi o postal e por trs as iniciais dele& uma

data& outras iniciais numa caligraNa dierente e ento

- #i o ue pude Nlha

entendiS

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acredito nos !nimigos do Homem& Mundo& "emónio e +arne& nas

 Almas do Purgatório e na Misericórdia !nNnita& trouCe a cola da

secretria& apliuei uma gota em cada canto& guardei o lbum na

estante e dei com a minha irm a encarar-me de lbio nos dentes& o

lbio mudo

- $o contes U me

acho ue oi a Jnica conBersa ue tiBemos na Bida& de mistura

com os arbustos do ardim +onstantino e o meu Nlho

QEste K o meu #ilho em uem pus toda a Minha complacVnciaS

na alcoa a chorar& apetecia-me

Q- #i o ue pude NlhaS

acreditar com toda a or@a em "eus& acreditar ue um dos

colegas das uartas-eiras no escritório do meu marido

- O seu sogro coitado

e no entanto as accias de *intra& as iniciais& a data& a

mulherita dois toldos adiante com uem o homem dos bolos

Qsenhor AlredoS

no só no perdia tempo como no a cumprimentaBa seuer&

oculta no naperon de crochet& Bontade de me chegar a ela& agarrar-lhe no ombro

- *o as suas iniciais conesse l=

e contudo a minha irm

- $o contes U me

contudo o meu marido ue ignoraBa os colegas do meu pai

- ,m colega do teu pai no escritório a inormar-me

no retrato dos cinuenta anos de casados l estamos nós a meio

do antar& o meu pai de colher na mo& a minha me a endireitar agola sem acabar o gesto& nas alturas em ue o meu marido mente K

uando deiCa de Ntar-me continuando a Ntar-me

Q- ,m colega do teu pai no escritórioS

em busca de uma desculpa ue se lhe percebe na cara& ao

chegar tarde da minha irm por eCemplo

- +hatices com um cliente

e eu

Que posso aer=S

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aceitando

- +hatices com um cliente

a pensar nas peónias& digo

- "ói-me a cabe@a

digo

- $o dormi nada esta noite

digo

- Estou eCausta desculpa

e na cama uma nesga de mar& o +asino& os canteiros e com a lu

apagada as peónias o tempo todo comigo& to presentes ue uase

uma pessoa BiBa pronta a receber-me& as peónias um homem

ou antes as peónias uma mulher ue se no desgosta de mim&

no se aborrece se me estender ao seu lado& no se espanta

- Ests aR=

no me aconselha

- E melhor ires-te embora

o cheiro das peónias nRtido depois da chuBa& se por acaso o meu

marido

Qembora no haa perigo ue o meu maridoS- O ue ests a aer=

eu para ele no

- Estou com o cheiro das peónias

Qcomo aer-lhe BerEstou com o cheiro das peóniasS

eu

- $ada

e a minha mo o cheiro no pesco@o& na barriga& nas pernas& to

certeira& to sbia& a desencantar uma saliVncia& a insistir nasaliVncia& eu a lutar com o nerBo

- Acredito em "eus acredito em "eus

e U medida ue o cheiro me abandona nenhuma mo& nenhum

nerBo& a sensa@o ue o meu pai a endireitar-me o cobertor e a sair

do uarto caminhando l nauele sRtio onde morou

Qe eu

- Adeus pimpolhoS

direitinho ao rio.

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"ois As consultas

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PRIMEIRA CONSULTA 

"oente de 7 anos& seCo (& idade aparente coincidindo com a

real. Orientada no tempo e no espa@o& alo e heteropsiuicamente&

memória conserBada de acordo com os parWmetros etrios& contacto

adeuado& sintónico embora retraRdo& com diNculdade em Berbaliar

o motiBo da consulta

Q^no sei porue Bim& se calhar no sou capa de dier nada&

etcS

ao responder-lhe ue isto K um hospital& no uma clRnica priBada

e tenho outros pacientes U espera

Qsempre gostaBa de saber o motiBo de me transormarem em

burro de cargaS

olha na direc@o da porta e a men@o de leBantar-se. AlKm dacarteira acompanha-a um sauito de crochet e a enermeira conta

ue passou o tempo na sala de espera sem comunicar com uem

uer ue osse a aperei@oar um naperon. Lembra-me no sei ue

pessoa h lustros e lustros& na Kpoca em ue ui crian@a

Qou adolescente& no consigo precisarS

e a recorda@o& a alisar de conusa& aTóra-se-me agradBel mau

grado no ser capa de locali-la

Qsorrisos& cheiro de sabonete& uma palma na minha cara& coisasdessasS

de modo ue lhe sugiro ue torne a sentar-se

Qna anela do gabinete uma ambulWncia& um internado com

princRpios a abrir uma larana e a guardar as cascas no bolso& regra

elementar ue por eCemplo o pessoal no cumpre& suam tudo& deBia

apresentar-lhes o internado como modelo

- %omem notaS

e por respeito aos tais sorrisos& ao tal cheiro de sabonete& U tal

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palma pe@o-lhe ue me desNe as suas ueiCas enuanto desenho uma

estrela paciente no bloco de receitas& a seguir U estrela um uarto

minguante& a seguir ao uarto minguante uma casinha com uma

chaminK a deitar umo& a meio da espiral de umo percebo ue a

doente& mesmo no olhando para ela& est a interessar-se pela

casinha e a imaginar Barandas& porta& cortinas o ue me leBa a Boltar

o bloco ao contrrio& articula

Qnunca este Berbo oi to bem empregueS

uma rase ue no entendo

QeCtraordinria designa@o& articular& se aplicada U Bo& ue

espertalha@o a inBentou conessem-me& articular palaBras como se os

ditongos dobradi@as& gonos& um boneco articulado aceita-se& um

bra@o articulado B l& agora articular palaBras

encaiC-las umas nas outras& dobr-las

santo "eusS

a doente a uem priBei da casinha

Qe agora do uarto minguante& da estrelaS

um murmJrio de noBo& coloco a tampa na caneta para impedir o

bico de deBaneios plsticos& mudo o calendrio de posi@oQesses calendrios de argolas em ue cada olhinha um dia&

acaba o dia& e passa-se a olha nos anKis cromados

- $o hsde regressarS

 Binde a horas a menos ue gaita& uantos milhares de olhas

 Boltei nestes anos& numa delas& longRnua& acho ue um sauito de

crochet tambKm& irrecuperBel& a doer-me& mudo o calendrio de

lugar distanciando-o de mim

Qsome-te da minha rente com os teus dias passados& ineliSinterrogo a doente

- Perdo=

sem me atreBer a obserB-la porue eCistem assuntos ue

mesmo ue no se ueira Bo meCendo com a gente& episódios ue

erem& a minha primeira mulher

Qpara mencionar só umS

uma bela tarde& sem mais nem menos& chego do consultório e

ela no me dando seuer tempo de poisar a pasta

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- "eiCei de gostar de ti

eCactamente desta maneira& no acrescento nem tiro& deiCei de

gostar de ti& e eu com a argola das chaBes a baloi@ar do indicador& eu

parBo& a Bo do costume& a entoa@o do costume& tudo igual& a

perninha cruada& o cigarro& só ue em Be de ol

- "eiCei de gostar de ti

e a mala em cima da cama U espera& o secador desaparecido da

casa de banho& eCceptuando o secador no altaBa nada e no entanto

se desse um passo o soalho abria-se atK ao centro da terra e engolia-

me& as chaBes& mais leBes ue eu& a baloi@arem atrs de mim no

 Baio& eu caindo& caindo& a urar os apartamentos sob o nosso&

dKcimo primeiro& dKcimo& nono& onde os Biinhos comiam sem ue

nenhum se preocupasse& nem um adeus ao menos& uma curiosidade&

um espanto

- Olha auele

uma amostra de dó

- L Bai o mKdico do dKcimo segundo coitado

a ambulWncia oi-se embora na anela mas o internado da larana

enNaBa as grainhas no bolso tambKmQum parouiano e pVras meus irmos em +risto& se mandasse

metia-o numa Bitrine a educar os portuguesesS

enuanto eu tentaBa identiNcar uem seria a pessoa ue a

doente me lembra& ue sorrisos& ue cheiro de sabonete& se ao menos

a palma& ualuer ue osse a dona& me Bisitasse aui

Qh momentos em ue a gente por muito orte ue seaS

o monte dos dias passados maior ue o dos dias uturos no

calendrio da secretria e o ue N desses dias& como consenti uepartissem& uantos altam ainda& de repente no meio deles

Qum dia igual aos outros e poruV esse dia=S

acabou-se& depressa

Qou sea a dar por isso e a cessar de dar por isso no instante em

ue daBa por issoS

ou deBagar com tratamentos e seringas e dores& acabou-se e por

se ter acabado os sorrisos por aBor& a palma depressinha& o cheiro

de sabonete

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Qem +astelo >ranco=S

e eu eli

- +heiro de sabonete obrigado

Qem +astelo >ranco no& ou antes ou depoisS

porue no cheiro um conorto& uma pa& eucaliptos sim& as bagas

dos eucaliptos& um triciclo com um guiador cor de pKrola& um terra@o

e aonde& o internado contaBa as grainhas com o indicador minucioso&

o terra@o em Almada& uma muralha de granito& a delicadea de um

gato uase no tocando na pedra& cada pata uma alange de pianista

em cuidados sem peso& tomando aten@o percebiam-se as notas&

peueni-ninhas& lentas

QAlmada ou EiBas em ue muralha ao certo=S

a doente de 7 anos& seCo (& idade aparente coincidindo com a

real a dar um nó no sauito do crochet prendendo o polegar ue

passou a aer parte do nó

Qas asneiras ue nos impingem na #aculdade& o ue K idade

real=S

- $o durmo senhor doutor

uase nunca dormem& sempre a mesma cantiga& deBem ulgarue eu durmo& o senhor doutor estende-se no colcho& Bira-se de

barriga para baiCo& desea

- AtK amanh.

para o lado e uca& adormece e se K assim Nuem sabendo ue o

senhor doutor acordado a medir os batimentos do pulso

Q- <ai alhar Bai alharS

com ganas de acender a lu porue de candeeiro aceso& na

companhia da mobRliaQa mobRlia protege e K a obriga@o dela& comprmo-la& trouCemo-

la da loa& pusemos-lhe porcarias em cima& conBertemo-la em parte

da casa& audmo-laS

na companhia da mobRlia ue est ali para isso os paBores

diminuem& receito aos doentes comprimidos ue no tomo porue se

os tomar o cora@o sei l& tenho de permanecer desperto a Bigiar-lhe

o ritmo& a impedir-lhe os caprichos& a tomar conta dele e mesmo

tomando conta dele atrai@oa-me& dispara& cala-se e o meu arrano de

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tomos no de piama& esticadinho& de graBata& sobre a colcha& a

doente orientada no tempo e no espa@o

Qoutra asneira da #aculdade& ue tempo e ue espa@o& orientada

no tempo em rela@o a ue tempo

o dos relógios& o da inWncia=

e orientada no espa@o ue ninguKm elucida em ue consiste&

mudando constantemente de eitio e sentidoS

contacto adeuado& sintónico embora retraRdo& com diNculdade

em eCprimir-se& saou o polegar do nó& uedou-se a mir-lo& eu a

perceber ue ela hesitando

Q- #ar parte do nó ou ar parte de mim=S

a resolBer ue o polegar aia parte de si porue o encolhe e

estica& a articular

Ql Boltamos ao mesmoS

- E depois a tristea

uando

- E depois a tristea

no se articula& di-se& Bontade de Boltar U casinha e ao umo&

cobrir a estrela com uma nuBem& transormar o uarto minguante emrBore& acrescentar o sol com uma segunda nuBem ao lado& ue raio

de sina a minha& escutar aR para onde entrei a mesma lengalenga& a

tristea& se a cada manh giressem uma olha de calendrio nas

argolas e dessem K do ue perderam& do ue perco& no Binham&

contentRssimos& aborrecer-me com tristeas& ontem& por eCemplo&

 Binte e noBe de maio e adeus Binte e noBe de maio& no te recupero

mais& em crian@a punha-me a olhar o relógio de parede um minuto

inteiro sentado no tapete- ANnal um minuto K isto

surpreendido por um minuto ser isto& um espacinho& um Bcuo&

o ponteiro no tra@o seguinte e o minuto ue K dele& a minha dJBida

acerca de se o recuperaria ou no no caso de andar com o ponteiro

para trs& uantas Bees seria preciso andar para trs de maneira a

chegar antes de ter nascido e ao chegar antes de ter nascido o ue

sucederia ao dedo ue empurra o ponteiro& tentei eCpor estas

elucubra@Fes U minha me& ela entre portas& com um cesto de roupa

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- %enho mais ue aer

e todaBia passado um bocado& isto K passados uns tracinhos& no

muitos& dei com o cesto de roupa no cho e ela a rodar o ponteiro

com um dedo diligente& ulgo ue na esperan@a de liBrar-se dos meus

irmos e de mim& ela solteira& noBa& uase da minha idade e eu aTito

com uma me mais insigniNcante ue eu& incapa de coinhar& de

engomar& o cesto abandonado& a gente só com camisas suas

- Me

a minha me no aui& em +astelo >ranco com a me dela& trVs

assoalhadas minJsculas& o limoeiro& no inBerno& toda a santa noite a

ueiCar-se

- Os meus oelhos senhores

Qo limoeiro ou o meu aBY=S

e os doentes com a lata de me contarem tristeas& no consigo

trabalhar senhor doutor& choro por tudo e por nada& trago um calhau

no peito& noBelos na garganta& uma coisa c dentro& o ue eu deBia

propor-lhes& em lugar de medicamentos& era ue andassem com os

ponteiros para trs atK aos limoeiros deles e agora recomecem sem

aer as <iagens& lhes anunciem de pernonah cruada& de orma aocuparem o Bosso lugar no diB

"eiCei de gostar de ti K só isso

e U medida ue BocVs tombam de andar em andar um Biinho

para a Nlha& pegando-lhe no bra@o e obrigando-a a acenar-Bos

- L Bai o mKdico do dKcimo segundo coitado a caBar-nos um

buraco no estuue di-lhe adeus >eatri

ue simplicidade

- X só issoa eCistVncia inteira no matKria importante& só isso& a minha

primeira mulher de repente considerBel& a perninha cruada no diB

gigantesca& o dedo no ponteiro a alcan@ar a tarde na ual ela& a

desligar o teleone ao sentir-me

- $o te esperaBa to cedo

isto K a largar o auscultador no no descanso& no cineiro& os

gestos demorando a achar as ei@Fes& a distribuRrem-nas pelos

lugares ue lhe competem na cara uase pedindo

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- +hega-me essa aR

os mJsculos necessrios para compor um amuo

- Assustaste-me

a bochecha a desBiar-se num beio desbotado& o ombro a mirrar-

me na mo& colocar o ponteiro em seis meses antes& oito meses e

contudo h oito meses o beio desbotado& o ombro a mirrar& se

tornasse a encontr-la

Qnunca nos encontramosS

perguntar-lhe por desastio apenas

Qual desastio& mal desse por mim l estaBa eu a cair e di

adeus ao mKdico com a tua mo >eatriS

- O K só isso come@ou em ue altura=

portanto no me Benham com tristeas& insónias& calhaus no

peito& lerias& no so mais ue eu& aguentem-se soinhos conorme c

o rapa se aguenta& uase daBa pelo perume das cascas de larana

do internado do banco a co@ar-se no piama& uando alguKm se co@a

pega-me logo a comicho em lugares a ue as unhas no chegam&

encolho-me& dobro-me& ricciono-me no espaldar e a comicho

continua& se ao menos na anela& no sRtio do internado& uma casinhacom a chaminK a deitar umo& ignoro se a minha actual mulher

deiCou de gostar de mim mas ao menos calada& pelo sim pelo no

tento no balan@ar as chaBes ao entrar-lhe na sala& Us Bees ao

 antar& durante a sopa& se uma sobrancelha num lugar dierente da

testa tenho medo ue a colher uieta& a sobrancelha a NCar-me

"eiCei de gostar de ti

mas no doe andares& acautelei-me& escolhi um rKs-do-cho

alto& no uro seno a caBe da porteira ao cair e depois da caBe e dasgaragens estou no centro da terra entre Nos elKctricos& canos& o

entulho de colunas ue os romanos deiCaram& Bolta no Bolta a

+Wmara pFe c ora uns peda@os de mrmore sem utilidade alguma&

arruma-os em cRrculo por ordem de tamanho e enBaidece-se deles& se

a minha actual mulher

"eiCei de gostar de ti

nem uma menina a acenar-me& K nessas alturas ue se

compreende a alta ue nos a um adeus& a gente um membro para

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cada lado e a misericórdia de uma rase a acompanhar-nos& no bem

misericórdia& o orgulho de mostrar ue a menina aprendeu& K capa

-$o cumprimentas o mKdico >eatri=

a >eatri a pasmar para o buraco no parue

- Era o doutor rapariga

a doente de 7 anos& seCo (& idade aparente coincidindo com a

real& debru@ada para o buraco mais a insónia e a tristea& segurando

o sauito do crochet

Qpara alKm do crochet a reBista de bordados de onde copiaBa o

na-peronS

 Bestida de luto& eneitada por um medalho de esmalte com o

retrato de um homem& mal cheguei aos Nos elKctricos& aos canos e ao

entulho do undo ela antes ue me limpasse da poeira

- $o podia ir ao Belório nem ao uneral percebe=

a minha primeira mulher

- $o te incomodes tem rodas

a puCar a mala na direc@o do eleBador& a proBa ue tinha rodas

estaBa no acto de imprimir na alcatia um rastro de borracha ue

me caberia a mimQa empregada de Krias atK one de ulhoS

esregar com detergente e uma espona& Bontade de perguntar-

lhe mostrando o detergente

- $o Nca uma aurKola espero=

U medida ue a mala

Quma das rodas chiaBaS

a sumir-se no eleBador& unto com a mala uma mochila de

companhia de aBia@o ue eu supunha no serBir para nada e serBiapara se pYr ao resco& alKm da mochila a promessa

- *eCta-eira uando estiBeres no hospital Benho buscar o resto

e ento compreendi ue eCistia outro centro da terra sob o

centro da terra e me cabia em sorte despenhar-me mais& a cunhada

da minha aBó apanhaBa-me no uintal& pegaBa-me ao colo& beiaBa os

arranhFes

- +om um beiinho meu no pode doer

porKm a cunhada da minha aBó h ue sKculos nas olhas do

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lado esuerdo da agenda e com milhFes de olhas em cima& uma

campa de cemitKrio& uma gaBeta de erro no meio de gaBetas de

erro em ue nenhum beio cabia& talBe uns limos de ossinhos

Qno me Benham com tristeas& desamparem-me a loaS

e por conseuVncia garanto ue os arranhFes doem& gastei um

ter@o do detergente a apagar a borracha e com ue detergente se

apaga o detergente ensinem-me& nódoas cada Be maiores& a alcatia

careca& em +astelo >ranco a minha me a rir-se& o ue tenho mais

presente& para alKm das bagas dos eucaliptos numa caeteira e a

gente a aspirar o Bapor K a minha me a rir-se& sempre ue ela se ria

os calendrios uietos& o cinco de agosto ou o Binte e trVs de outubro

ou o deoito de aneiro congelados& o meu pai para ela a angar-se

- $o cresces.

e mesmo ue ele angado

- Assim no consigo cala-te

Qno consigo o uV=S

ela a rir-se no uarto& pedia

- $o seas tonto anda c

sons do meu pai penso ue no enCergo e ela a rir-se de noBo&cessou de rir em Almada& depois de imensos ponteiros& na Kpoca em

ue a minha irm adoeceu& NcaBa num banuinho no escuro& perto

dos rascos de Carope& a tomar nota da ebre num papel& durante

mais de uma hora no permitiu ue lha tirassem para a Bestirem

como deBe ser& a cal@arem& a leBarem numa caiCa& e ento no era o

riso ue me surpreendia& eram os olhos dela amarelos& perguntem-

me

- 9ue cor tinham os olhos da tua me=e eu depois de esclarecer

- +astanhos

demoro-me um bocado no assunto& emendo

- "urante uma semana amarelos

uando o meu pai a obrigou a largar a minha irm a minha me&

uriosa com toda a gente& bateu-lhe& uma boetada no meu pai& uma

segunda boetada e ugiu a correr& abra@ou-se ao limoeiro& na tarde

do uneral ela abra@ada ao limoeiro& o meu pai oi cham-la

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Qos olhos do meu pai castanhos& perguntem-me

- 9ue cor tinham os olhos do teu pai=

e eu depois a esclarecer

- +astanhos

demoro-me um bocado no assunto& emendo

- "urante trVs ou uatro dias metiam medo amarelosS

acabado o uneral o meu pai oi cham-la& tocou-lhe nas costas e

ela para o limoeiro

Qos olhos do limoeiro amarelos tambKmS

- "esculpa

o meu pai um limoeiro& o meu pai uma rBore& o meu pai de

graBata& ela para o meu pai

- "esculpa

de palma na cara dele e aNnal o ue me lembra a doente de 7

anos& seCo (& idade aparente coincidindo com a real K a palma da

minha me na cara dele

- "esculpa

no uma lembran@a ue no consigo precisar& tudo claro

- "esculpae o sorriso e o cheiro de sabonete depois& assim ue ela

- "esculpa

os olhos do meu pai no amarelos& castanhos Qno trocem de

mim& a minha primeira mulher tro@aBa de mim& das minhas manias&

de lhe contar ue os olhos do meu pai amarelos

- $inguKm tem olhos amarelos palerma

e sei ue tem& eu Bi& de maneira ue por aBor no trocem de

mimSos olhos da minha me castanhos& os do meu pai castanhos&

ponham a palma na minha cara durante um tra@o de ponteiro ue

no lhes pe@o mais prometo& assisti ao leBantarem a tampa& U minha

irm na caiCa& ao echarem a tampa& assisti U terra na caiCa e os

meus olhos nunca amarelos& castanhos

Q- $inguKm tem olhos amarelos palermaS

no me abracei a nada& ia espiar a minha irm e só choupos&

abetos& pardais a trocarem de lpide& o meu pai tirou o ber@o dela do

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uarto

Quma chaminK com umo& um uarto minguante& uma estrelaS

transportou-o atK ao Wngulo do uintal em ue no se cortaBam

as erBas e haBia sapos e isso& uebrou as tbuas com o martelo&

rasgou os panos& abriu uma coBa& escondeu-o& no trocem do meu pai

ue era magro& moreno& adoeceu do pWncreas& ui Bisit-lo na

,nidade e ele mudo& dedos

Qesses sim amarelosS

ue no cumprimentaBam ninguKm& deiCem a gente em pa& no

hospital no pardais& o internado da larana a conBersar soinho& o

condutor de uma urgoneta lendo o ornal ao Bolante enuanto

retiraBam grades de garraas da parte de trs& os ponteiros

continuaram a moBer-se depois da morte do meu pai e creio ue

continuaro a moBer-se a seguir U minha& se no tomasse cuidado e

no a segurasse a caneta& mesmo sem eu dar ordens& recome@aBa a

desenhar ainda ue no Ncasse parecido

Qe no NcaBa parecidoS

uma crian@a& um ber@o& a >eatri a acenar-me U medida ue

caio& em lugar do desenho escreBer& debaiCo do nome& morada&Nlia@o

QNlia@o pior ue articular raios parta& ue enómeno

desencantou estes termos=S

doente orientada no tempo e no espa@o& memória conserBada

atendendo ao grupo etrio e U dierencia@o cultural& contacto

sintóni-co& adeuado embora retraRdo& diNculdade em eCprimir o

motiBo da consulta& após uns engolires pensatiBos& essa orma ue os

 Belhos tVm de raciocinar com a bocaQa lRngua a passear ideias de gengiBa em gengiBaS

adiantou o medalho com o retrato de um homem

- $o podia ir ao Belório nem ao uneral percebe=

e a lRngua a prosseguir o seu trabalho na bolsinha dos lbios&

acabam de alar para nós e continuam a conBersar para eles mesmos

dedu@Fes de saliBa& o ueiCo alonga-se& encurta-se& as plpebras no

cor--de-rosa como as nossas& eCibindo o orro& Bermelhas

Qplpebras ou algibeiras gastas=S

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tudo mostra o orro nos Belhos& se choram no so lgrimas de

agora& so guas suas& antigas& desgostos ue permaneceram

esuecidos e Boltam U tona por uma uesto de leis da Rsica& no de

sentimento algum& os sentimentos arrapinhos sem neCo num espa@o

rareeito& o bra@o tenta unt-los

- O ue ser isto=

Qum regador& um co doente& os Belhos nem curiosos& pasmados

- O ue ser isto=S

e perdem-nos

QNlia@o& calcule-seS

se lhes mencionasse& K um supor& o problema dos ponteiros& a

lRngua repetia

- Os ponteiros

e a cabe@a ausente Bagueando entre o regador e o co& repetiam

- Os ponteiros

e mal repetiam

- Os ponteiros

animaBam-se

- O co=ou sea um bicho de h centenas de calendrios e por

conseguinte nem bicho& erBaitas& raRes& ue de tempos a tempos&

anónimo& de ocinho U procura& galopaBa na memória l deles& sumia-

se na esuina do tanue& no o percebiam mais

- <iste o co=

dentro de Binte anos no mCimo eu assim& a minha actual

mulher a dier-me sea o ue or e as palaBras arrapinhos sem neCo

ue se untam a outros arrapinhos sem neCoQo meu pai na ,nidade& o episódio do ber@o& um Biinho

- L Bai o mKdico do dKcimo segundo a caminho do centro da

terra >eatriS

para Bogarem& dispersos& num espa@o rareeito& a minha cabe@a

ue os encontra e ue treme& eu

- H=

e lgrimas antigas& suas& ue deBia ter chorado h sKculos e

como de costume

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- Agora no tenho tempo choro isto outro dia

colocando de lado& adiando untamente com outros desgostos

numa pasta ualuer& a ma@ada das lgrimas a importunar-me

uando no deBia& eu descansado& de Krias no estrangeiro ou num

prKdio dos arredores de Lisboa& a cem metros do mercado

Qa minha otograNa no almo@o do *erBi@o a embelear a cómodaS

com uma enermeira

QU minha esuerda na otograNa& de penteado trabalhosoS

ue uraBa ter engraBidado de mim& a gente a argumentar um

com o outro& ela a agarrar-me na lapela

Qse ao menos substituRsse os abaures

menos rendas& menos olhos

se ao menos no aueles caBalos a galope obrigando-me a

galopar tambKm e a perder o Ylego e a cansar-me na moldura da

sala& dJias de caBalos esgaeados& sem or@asS

e as lgrimas a despropósito

- Ento e nós=

comigo a enCot-las

- $o me aborre@am sumam-sea enermeira a reparar nelas& a apiedar-se de mim& a aeitar-me

o casaco

Qdetesto ue me aeitem o casacoS

aproBeitando os estreme@Fes de um autocarro na estrada& ue

me chocalhaBam contra ela& para passar da anga U ternura& NCaBa-

me nos olhos e nas rendas a Nm de me impedir de tocar-lhe mas o

galope dos caBalos

QcaBalos inumerBeis& pardos& brancos& alguns pretos& malhadosSobrigaBa-me a correr ultrapassando Beda@Fes numa desordem

de crinas& eu de brYnuios nas amRgdalas incapa de deter-me

- Onde arranaste este uadro=

uma reprodu@o numa esuadria a imitar talha com um dos

 BKrtices rachado e sem Berni deBido U pressa dos cascos& um so de

almoadas de tricot por baiCo do uadro& mesas de bambu&

prateleiras de bambu

Quma sucursal de PeuimS

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um pierrot com carinha de loi@a a amolecer entre potes& as

lgrimas postas de lado& sem a no@o das conBeniVncias& a picarem-

me& a doerem-me

- Ento e nós=

um camio ue no partiu& se demorou em manobras

desengon@ando os bambus e esuarteando o pierrot& eu conBencido

ue disrtaRa as lgrimas e abrandaBa os caBalos

Qa espuma no reio no era deles& era minhaS

- Onde arranaste este uadro=

a seguir ao prKdio um recreio de escola com um campo de

basuete e no campo de basuete um papel Us cambalhotas com ue

o Bento brincaBa& a enermeira de roupo

Q- Em casa gosto de andar U BontadeS

e uma madeiCa oblRua a atraBessar-lhe o nari& ao alar a

madeiCa ganhaBa Bida& desenrolaBa-se& era a madeiCa ue gritaBa

comigo

- Eu em tiras com o problema do teu Nlho e Bens-me com caBalos

caramba=

um dos bambus perBerso& bicudo& do partido dela& a lacerar-mea ndega& a cama de bambu tambKm& por este andar o toucador de

bambu um bJalo abanando a papada no arroal da sala& o Bento

aborreceu-se do papel& preeriu moitas ue saracoteaBam

discordando de mim e as cambalhotas cessaram mas o galope

continuou e eu com ele& saltei uma barreira& uma sebe& um arbusto&

enruguei o tapete& entortei o rdio& uase tombei um banuinho& a

enermeira a proteger o banuinho& de madeiCa a regressar-lhe ao

nari- $o Ks capa de estar uieto=

o roupo desla@ou-se e um peda@o de barriga ue BibraBa&

tremia& ela a echar o roupo num meneio apressado

Qela a galope tambKmS

- $o tens emenda tu

estaBa a pagar o apartamento& o automóBel& a muina de laBar&

só no estaBa a pagar o anel ue lhe dei comprado a uma uncionria

da secretaria ue Bendia oiros para amaciar o ordenado& a

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enermeira a obserB-lo no espelho& de mo no peito& aBan@ando ora

a metade esuerda ora a metade direita para ue a pedra brilhasse

- ,ma saNra no K=

no seria saNra mas possuRa ambi@Fes de saNra e nos arredores

de Lisboa isso basta& no se discutem miudeas& a primeira Be ue a

conBidei para almo@ar apareceu-me sem bata e& desproBida do

encanto do uniorme& uma criatura modesta& com demasiado baton

num dos cantos da boca& uma blusa ue a mina primeira mulher

 Bisse

- 9ue horror

e a enermeira toda alanges redondas a debicar talheres& óculos

escuros puCados para cima segurando o cabelo& os caro@os das

aeitonas depositados na lWmina da aca aBan@ando o pesco@o numa

espKcie de beiinho& eu arrependido

- Meto-me em cada uma

eu

- E agora=

a planear retiradas& uma desculpa& um preteCto

- %enho o consultório mais cedo Bergonha dos colegas no restaurante a notarem a blusa& o

gerente tratando-a com uma reproBa@o benKBola& as mulheres das

outras mesas sem alanges redondas& porue no a loira com uma

amiga gorducha ue lhe daBa a ler um teleone na agenda

Q- oubei-o ao +risóstomoS

e o baton pereito& a blusa discreta& as unhas tratadas e nisto&

obrigando-me a olh-la& a pergunta da enermeira amortecida pelo

ueio na boca& o turbilho de uma migalha ue me aterrou no prato- Ao menos no K casado doutor=

eu tentando separar a migalha com os prKstimos do garo e a

migalha a esconder-se nas batatas& nos brócolos& minto-lhe& no lhe

minto& se lhe minto perco-a& se no lhe minto descobre e acusa@Fes e

cenas& uso a estratKgia ue acabo de aprender com a migalha

escapando-me& iludindo& um desses gestos Bagos com ue se adiam

as crises mas eu a galope sem me dar conta& de dentes ao lKu a

sacudir as crinas& a come@ar a entender

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- $unca mais paro agora

no Bou a tempo de parar& acabou-se& a primeira barreira& a

primeira sebe& o primeiro arbusto& ultrapassa-os& salta& continua a

correr& pedir ao cheiro de sabonete e U palma na minha cara ue me

audem e no audam nem meia

Qem ue olha do calendrio Bos deiCei a BocVs=S

- precisaBa de Brios almo@os para responder a isso

as alanges redondas em guarda& o deeito do baton atento& o

caro@o& em euilRbrio na lWmina& a eCaminar-me& a estudar-me& a

agrupar--se com os anteriores na beirinha do prato& os óculos

escuros& ue seguraBam o cabelo& apontando o candeeiro do tecto

ue era uma lanterna de alpendre& nas paredes rodas de carro@as&

 anelicos de aenhas& uma mó de moer comigo a pensar nada disto K

 Berdade& elimente ue nada disto K Berdade& a enermeira& o

almo@o& tranuilia--te& sossega& ests no interior de um

documentrio sobre a Bida no campo& Bo aparecer um a@ude& um

pelourinho& beerros& daui a pouco os sinos

Qtranuilia-teS

as BindimasQsossegaS

uma dan@a de tamancos no adro da igrea com acordeFes&

pandeiretas& a procisso da *enhora da ;lória& um uneral de aninho

ou sea a minha irm numa caiCa& pardais a mudarem de lpide& a

minha me no uintal& de olhos amarelos

Qos rutos do limoeiro insigniNcantes& BerdesS

o meu pai comigo pela mo a Ber echarem a tampa& a Ber a

terra na caiCa& a enermeira muito ao longe A minha pergunta incomodou-o doutor=

a alongar-se na direc@o da aca

Qo pesco@o dela um telescópio& ue horrorS

e um beiinho& um caro@o& se lhe ro@ar o oelho& se uando pegar

no copo os meus dedos no seu bra@o

Qo relógio com dois mostradores para uV=S

espero ue a minha irm no me aTia& estas lgrimas suas&

antigas& regressem U inWncia e no me embrulhem as pestanas& se

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galopar depressa& me desBiar dos choupos& dos bambus& do roupo

- Eu em tiras com o problema do teu Nlho e tu Bens-me com

caBalos ue K isto=

e encurtando a história no uma graBide& um atarso& um

glWndula distraRda ue Ncou para trs sem ue ela

- <em c

e a uem custou lembrar-se& o mKdico de amRlia ao ual as hor-

monas obedeciam

- Ento=

e a glWndula a bater a mo na testa& a tornar ao trabalho& a

apressar os oBrios

- "esculpe

por um instante o galope adiado& o ponteiro uieto& o Binte e trVs

de ulho eterno& basta BeriNcar a olhinha& o pierrot uase aceitBel&

os bambus agradBeis& os olhos dos meus pais castanhos& a minha

me a rir

Qo som das gargalhadas cristaiinhos coloridos e tudo a arranar-

se senhores& o ber@o inteiro& a graBata de luto no mostrador da loa&

ual morrer& ual BelórioS- ia outra Be me

comprei uma pulseira com um cora@o suspenso U uncionria

dos oiros& a enermeira& apaiguada& a mostr-la Us colegas

- E esta=

obrigando-as a estudarem a perei@o da corrente& a

conNrmarem o peso& um soslaio agradecido para mim e eu a recuar o

colarinho deriBado ao baton& deenas de caBalos a galope ue me

atropelaBam& pisaBam- %o uerido

o roupo pendurado num cabide de bambu

Qde ue K ue haBia de ser=S

a cicatri da apendicite a alegrar-me porue a enermeira um

passado

Qum regador& um coS

lgrimas como as minhas ue Us Bees

- +ontinuamos U espera

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tentaBam assomar& recolhiam numa careta& se resignaBam ao

undo amortecidas mais nRtidas& se nos inclinssemos dBamos com o

brilhoinho ue oscila

- Operaram-me em >ragan@a aos seis anos

e o brilhoinho mais próCimo

- +omo eras tu aos seis anos=

uma gaBeta de cómoda ue demorou a puCar& ela a indignar-se

com a gaBeta

Q- X sempre a mesma coisaS

porue no Bero um incha@o da madeira ou ueando& um

enBelope de otograNas entre ligas e cintos& a enermeira mais

barriga ue eu supunha& as primeiras estrias& só uns risuinhos por

enuanto porKm Bo crescer& Bo crescer& porue no te apaiConas

por um interno& um maueiro& um parente& no me dies

- "eiCei de gostar de ti

e eu aceito& eu mais leBe& as estrias no risuinhos& sulcos& a

glWndula ue se distraiu para meu aar cheia de escrJpulos&

demasiado empenhada& em Be de

- "eiCei de gostar de tia tua mo na minha perna& a minha perna a pedir

- Larga-me

dado ue a barriga a amanteigar-se& um oanete impreBisto& a

cintura mais grossa& tu a esconderes os retratos

- %enho Bergonha

numa eCpresso Binda do lugar onde se ocultam as lgrimas e

ue me e esuecer por um instante as cortinas transparentes com

la@arotes de gae miudeas prontas a uebrarem-seQeleanteinhos& gatinhosS

um galhardete de #amalico num mastro cromado& eu a

interrogar em silVncio

- *entes-te menos soinha com esta tralha aui=

antes ue as lgrimas se moBessem& a cunhada da minha aBó a

arrumar-me no colo e eu uma diNculdade em alar& o teu retrato de

adolescente magrinha apoiada a uma Belha hostil de narinas inelies

- A prima $RBea coitada

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ue desatou a rosnar-me& um magala embiocado ue uma

mancha de gordura atenuaBa

- O meu pai na tropa em Abrantes

e em ue descobri& surpreendido& o teu ueiCo& tu no meio de

cem alunas de enermagem& na penJltima Nla

Ql estaBa o ueiCo do soldadoS

embiocada tambKm& no se distinguiam a espingarda e as

polainas porue as restantes tapaBam& tu a acenares adeus na praia

com um chapKu de palha ue engolia as ei@Fes de magala& um rapa

contigo

Qna minha opinio demasiado próCimoS

ue cumprimentaBa igualmente e a otograNa da praia

desapareceu de imediato& uma outra com o mesmo rapa no ue se

me aNgurou um baile

Quns manericos& uns balFes& *ociedade ecreatiBa&S

e ue

- Esta no interessaS

leBou sumi@o tambKm& se calhar o mesmo rapa com uem a

minha primeira mulher a desligar o teleone ao sentir-me- $o te esperaBa to cedo

isto K a largar o auscultador no no descanso& no cineiro& os

gestos a demorarem a acertar nas ei@Fes& distribuindo-as pelos

lugares ue lhes competiam na cara& ela a coleccionar os nerBos

necessrios para abricar um sorriso

+hega-me esse tendo aR

e o sorriso diRcil

 Assustaste-mea cara a desBiar-se num beio desbotado& o ombro a mirrar-se na

palma& pensaBa ue tinha caRdo tudo uanto tinha a cair e aNnal l

 Bou eu

- "i adeus ao mKdico com a tua mo >eatri

neste prKdio sem eleBador dos arredores de Lisboa

QautomóBeis baratos& pracetas sem canteirosS

com um papel Us cambalhotas no campo de basuete da escola&

o Bento a trocar& aborrecido dele& por uns cartaes& uns buCos& no

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apenas a minha primeira mulher um sorriso diRcil& eu um sorriso

diRcil U medida ue as otograNas na gaBeta e a gaBeta demorando a

echar& encalhou& aBan@ou empenada

- X sempre a mesma coisa

eu de olhos amarelos a leBantar-me da cama dando conta ue a

nude tira dignidade ao ciJme& a procurar a roupa sem achar uma

das meias

Qto cómico o doutor& >eatri& a Basculhar nos len@óisS

a encontrar a meia& a Bestir-me aos arrepelos& o doutor

embara@ado nos atacadores& nos botFes de punho& na braguilha&

enuanto caminhaBa Bigiando o sobrado como se no sobrado um

buraco e o centro da terra amea@ando leB-lo

QNos elKctricos& canos& inscri@Fes em latimS

a enermeira no patamar& descal@a& a boca como se uma

aeitona e no aeitona& um suspiro

- Porue K ue ests angado comigo=

lgrimas suas ue no chegam a Bir& estagnam atrs dos olhos

embaciando as escadas& apoiar-me U parede tacteando os degraus&

no procurei a Baranda para no dar com a enermeira l em cima eela no lgrimas suas& lgrimas noBas& limpas& no tiBeste uma irm&

no te enterraram um ber@o& no gastaste tantos calendrios ao

comprido dos anos& tanta olha da direita para a esuerda& Binte e

sete de outubro& trinta e um de maio

QdJias de Binte e setes de outubro& de trinta e uns de maioS

no me sobra um centRmetro no cora@o onde no haa uma

erida& atinar com a auto-estrada entre ruas inacabadas& sem saRda&

restos de uintas& andaimes& chegar a casa& deitar-me& a minhaactual mulher a ascender do traBesseiro& preocupada comigo

- A reunio correu bem=

um piama descosido na aCila com a noiBa do rato Mic_eI

estampada a arregalar-se para mim mas a rao

Qno me mintasS

do teleone do escritório U cabeceira da cama

Qdisse ue no me sobra um centRmetro no cora@o onde no

haa uma eridaS

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- 9ual o motiBo do teleone do escritório aui=

doente de 7 anos& seCo (& idade aparente coincidindo com a

real

Qo ue K idade& o ue K real=S

apresentando-se de luto& orientada no tempo e no espa@o

Qmesma conBersaS

memórias recente e remota conserBadas nos parWmetros

normais

Qmesma conBersaS

raciocRnio adeuado a uma inteligVncia mKdia

QdesistoS

contacto retraRdo com diNculdade em eCprimir o motiBo da

consulta& ueiCas de depresso sem irritabilidade nem seuelas

psicomotoras ue atribui ao alecimento de uma pessoa chegada

ocorrido h trVs meses& em companhia da paciente& num hotel

numa penso

numa hospedaria de Lisboa cuo nome e localia@o no reere&

relacionando o dito alecimento com o inRcio dos sintomas no

apenas pela morte em si mas pelo acto de no haBer podidoparticipar& como era seu deseo e por raFes ue no adu& no Belório

e no enterro& limitando-se a assistir Us cerimónias Jnebres

distanciada da amRlia como se Bisitasse outra campa ualuer

Qolhos amarelos& no castanhosS

e apesar de outra campa ualuer& mais campas& aigos&

pardais a mudarem de lpide e uma chuBita sem peso Biu echarem a

tampa da caiCa& Biu a terra na caiCa& no uma cru ainda& um

nJmero& de orma ue talBe& nesse lugar do cemitKrio& ninguKm eportanto olhos no amarelos& castanhos& gra@as a "eus um engano&

nós BiBos& eu para a minha actual mulher

- %rouCeste o teleone do escritório para o uarto para alares

com ue pessoa=

a doente a alegrar-se

- $ós BiBos

enuanto uma estrela& um uarto minguante ue transormei em

nuBem e chilreaBam para mim conorme ocultaBam o meu pai ue

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era magro& moreno& aleceu de pWncreas

 Qno trocem da genteS

o sauito do crochet no rebordo da secretria e a doente a

mastigar ideias& plpebras no cor-de-rosa como as nossas

mostrando o orro& Bermelhas

Qtudo mostra o orro nos BelhosS

seCo (& 7 anos& idade aparente coincidindo com a real& a lRngua

de gengiBa em gengiBa

- O senhor doutor compreende=

perdi o internado da larana e o condutor da urgoneta lendo o

 ornal ao Bolante

Qdois sueitos retiraBam grades de garraas pela parte de trsS

e l Bai o mKdico do dKcimo segundo& >eatri& a galope num

uadro mais os restantes caBalos nos arredores de Lisboa& o crochet

a animar-se

- #icaBa ao lado da amRlia dele em %aBira senhor doutor nunca

trocmos uma palaBra nunca nos cumprimentmos se me achassem

no cemitKrio o ue iriam pensar=

alando comigo como se eu pudesse escutar e no escutaBaconorme no escutaBa o limoeiro ramalhando toda a noite no

inBerno& nem o meu pai a uebrar tbuas

Qde uV=S

com o martelo& a escondV-las no cho

- Onde arranou essas tbuas paiinho=

Qas tbuas do ber@o a ue rasgou os panosS

no a escutaBa deriBado U minha actual mulher a pretender

enganar-me- A reunio correu bem=

de piama descosido na aCila com a noiBa do rato Mic_eI

estampada a arregalar-se para mim& argumentando ue o teleone do

escritório porue a me dela doente uando estaBa na cara ue um

amante& um homem& o dos retratos da enermeira& o ue anos antes

da enermeira me obrigou a cair& >eatri

Q- X o mKdico do dKcimo segundo coitado no lhe dies deus=S

a minha actual mulher

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- O ue K isto=

a deender-se com os oelhos& o bra@o& a minguar na cama

- <ais bater-me=

e a gente& a doente e eu

Q7 ano& seCo (& idade aparente coincidindo com a realS

continuBamos a alar de %aBira& de um sanatório em +oimbra&

de uartas-eiras num hotel

numa penso

numa hospedaria de Lisboa e ento desliguei o teleone l em

casa& cortei o No& abracei-me ao limoeiro dado ue os sinos de

+astelo >ranco mais ortes

Qos sinos to ortesS

dado ue o meu pai& alecido do pWncreas& enorme nesse tempo

QBocV no era enorme& paiS

a apertar-me o cotoBelo uando tudo acabou e mais ninguKm

connosco a no ser os pardais.

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SEGUNDA CONSULTA 

 A doente ue continua de luto com o retrato do homem no

medalho reere ue os sintomas se mantVm

Qadoram sorer os camelosS

- A tristea no esmorece

e l esto eles com a tristea& a mania da tristea& a elicidade

da tristea& depois da morte do meu pai a minha me um medalho

idVntico& a mesma otograNa ue na mesinha da sala& sempre com

Tores ao pK& enuanto da minha irm nem otograNas nem Tores& ao

enterrarem-lhe o ber@o nunca houBe irm no passado& Ncou o

limoeiro alguns anos mas os limoeiros esuecem e num outono

ualuer a molKstia da rBore& a princRpio no se daBa por nada&

passaBa-se-lhe pela sombra sem notar ue mais diusa& mais rala&nesses momentos depois da chuBa em ue as coisas nos surgem tais

uais so& laBadas

Q- ANnal era isto=S

percebia-lhe o sorimento no por contor@Fes nem por ueiCas

Qsempre digno& o limoeiroS

pela molea dos ramos

Qo meu pai dessa orma ao adoecer& o meu aBY idem& no se

lamentaBam& desistiam& olhaBam de uilómetros& mesmo chegados anós& com eCpressFes to antigas& ausentesS

se por um capricho de unho o Bento nas olhas escutaBa um

son-inho de musgo em lugar da Bo da minha me com ue

aprendeu a alar& o riso por eCemplo& a admira@o

- Ainda agora nasceste e uase adulto meu "eus

Qdurante muito tempo a minha me no ineli& contenteS

U noite a rBore tingia o uintal com o seu silVncio& deduia-se

pela cor do silVncio ue renunciara a aguardar a manh& os dias

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tinham deiCado de importar-lhe& um Jnico limo& ue no nos soube

a nada& amadurecendo por hbito a despedir-se de nós& no sumo&

uns pinguitos aguados& a minha me deitou o limo no balde e com o

estalo a minha irm a alecer outra Be& no me recordo de a ouBir

chorar& recordo-me dos cabelos ue se agarraBam U testa& da cara

ue me aTigia por no acusar ninguKm& pegaBa-se-lhe no pulso e o

pulso

Qela toda o pulsoS

tombaBa& a solenidade do armacVutico

- %Vm de preparar-se

e o nó do papillon dele apertaBa-me a mim& nunca pensei ue um

nó me suocasse tanto& as cartilagens bem tentaBam resistir coitadas&

o meu pai

- Ai sim=

a alargar o colarinho com o dedo& U or@a de sermos comuns

ninguKm se assemelhaBa U gente e pela primeira Be na Bida uma

certea de naurgio& guas Bindas no sei de onde

Qisto em +astelo >ranco& cidade a ue o mar no chegaBaS

cerrando-se num atrito de al@apo sobre a minha cabe@a e noera a minha irm ue deNnhaBa& era eu& a minha irm uma boneca no

cho& se lhe perguntBamos osse o ue osse& de boca unto ao

traBesseiro& o meu aBY estagnado& h alturas em ue continuo a

ensinar-lhe

- espire comigo aBY

e nada& um pulmo a despertar& um halitoinho

Que banalidade tudo istoS

esperaBa ue o meu nome no hlito e nome algum& ele ocoQsaberia uem somos=S

- *abe uem somos BocV=

algo ue concordaBa& no concordaBa& uma cortesia

Qoi sempre um homem educado& leBantaBa o chapKu Us

nogueiras& o prior apontaBa-o como eCemplo na missaS

dirigida a outra pessoa inBisRBel para nós& com uma oice& a

mesma ue procurou o meu pai na ,nidade ao tirarem-lhe os tubos

da garganta& da beCiga& do soro

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e de ambas as Bees& no instante em ue a pessoa os leBou& uro

ue a boneca da minha irm no cho& de madeiCas no loiras&

grisalhas& unhas comidas pelos anos& rugas& uando chegar a minha

altura oguem-na pela anela& no a deiCem aui& a propósito de

 anela na anela do hospital uma empregada de touca subindo a

ladeira com o carrinho do almo@o em ue tilintaBam panelas

Qno me agradaria ue tiBessem notado a boneca& +astelo

>ranco& cheiros de mato ue me embalsamaBam de amorasS

a empregada curBada na ladeira& a doente

Q7 anos& mais cinco meses e 4& com ue K ue uma criatura de

4 anos se preocupa& contem-me=S

a destapar um Wngulo do medalho

- Encontrei-o aos deassete senhor doutor

encontrou-o aos deassete porue lhe patrulhaBa a porta a Bigi-

la

Quer dier um relance& o passinho apressado e eu a Nngir ue

ouBia acrescentando uma espiral de umo Us espirais de umo da

casa& a aperei@oar a estrela com um dos bicos romboS

peueno& tRmido& redondo e a doente enternecida com aredonde

- ;orducho

isto num lugar onde os pWntanos do rio& no mencionou gaiBotas

talBe porue gaiBotas K o ue no alta em Lisboa& o homem do

medalho moraBa no >eato& calculo ue um desses bairros

Qgra@as U caneta o uarto minguante daBa lugar ao limoeiroS

nos uais os barcos ue Bo partir nos ensurdecem ao passo ue

no sRtio onde moro o mais ue pode ensurdecer-me so asambulWncias U noite no desistindo de transportar o meu pai para

uma clRnica entre rKsias e no posso Baler-lhe& a doente Bestida de

comunho solene a apoiar-se na mesita sobre a ual uma bailarina

empenada

Quns pingos de aeite para soltar o mecanismoS

ia girando& girando& o carrinho do almo@o sumiu-se na esuina

do balnerio carregando consigo o ruRdo das panelas ue me

lembraBa a tropa em ElBas& o aueduto& os diBersos cheiros de

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agosto& U noite teleonaBa U minha primeira mulher do uartel e a

sua Bo um Noinho reticente com a tosse do irmo

Qdo irmo=S

por trs

Qnunca diia ue gostaBa de mimS

enuanto na messe de oNciais se percebiam os candeeiros de

Espanha& a mania& mesmo aui na consulta& ue se leBantar o

auscultador a tosse e a Bo l dentro& para tirar peneiras leBanto o

auscultador e nada ou ento& da +entral

- "iga doutor

e o doutor desiludido& nunca Boltei a ElBas onde a geada de

noBembro ardia nos caiCilhos

Qcristais Bioletas& auisS

o homem do medalho uma carta& outra carta& eu a cocar de

esguelha o teleone na esperan@a ue me chame e no chama ou se

chamar K a enermeira a medo

- Podes alar agora=

e os bambus ormando no gabinete prateleiras& mesas& tento

eBitar o uadro dos caBalos embora sinta em mim um inRcio degalope& a doente ocupada com a resposta U segunda carta lutando

com o alabeto

Qtantas letrasS

de mo desaeitada& sem ler palaBras me desobedeceriam U

caneta& monstruosas& disormes& o homem do >eato

Qcomo ser o >eato=S

 Bontade de perguntar U doente enuanto o meu aBY sorria e o

sorriso dele me assustaBaQ- Pela sua saJde acabe com isso aBYS

- O >eato como K=

talBe a enermeira conhe@a& talBe ao Bir para a cidade com a

auda dos pais& ue Benderam uma terra ou uns beerros& haa

morado num uarto de aluguer num sRtio do gKnero mais o rio na

muralha e naBios podres e tal& os pais ue de Be em uando lhe

mandam chouricitos& oBos& batatas& a preocupa@o deles

- %ens dinheiro Nlhinha=

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a me esteBe c o ano passado e eCtasiou-se com o gosto da

casa& os cortinados& as borlas& os anitos de madeira pintada sobre a

cama

Qasas de Berni& bocas Bermelhas& o pK ue lhes altaBaS

- %o lindos

uma camponesa ue achou a enermeira caBada nas bochechas&

bateu armrios sobre o laBa-loi@as

- <ou aer-te uma gemada Nlhinha

na otograNa do uarto dois saloios chapados& a enermeira

orgulhosa

- $o so simpticos di l=

iguais aos inelies ue esperam horas na consulta Bestindo-se

para o mKdico em luCos de baptismo& uma garraa de uRsue no $atal

a agradecer a indieren@a

- "esculpe a modKstia da lembran@a senhor doutor

uando olho o retrato dos pais da enermeira

Q- Os teus brYnuios sempre oram racos NlhinhaS

tenho remorsos de lhe mentir& no gostar dela& a sua aTi@o para

agradar-me- ECplica-me como te apetece ue me arrane como ueres o

cabelo

os teus pais orgulhosos de ti e eu a escolher mesas discretas nos

restaurantes sem coragem de pedir

- $o te penteies dessa maneira no Bistas isso ue eio

no so apenas as aeitonas na aca& o po no molho em

moBimentos de uem desinecta um lanho com tintura de iodo& a

batuta de maestro do garo ao conBersares& coisas ue me recordamo ue de +astelo >ranco preeria esuecer& na altura do pWncreas

trataBam o meu pai por tu na ,nidade e indignaBa-me

Qno indignaBa a minha me& para a minha me natural& os

mKdicos pessoas importantes& ricas& ela com o seu uRsue em papel

de seda

- "esculpe a modKstia da lembran@a senhor doutor

o senhor doutor colocaBa o uRsue numa prateleira secundria&

eu urioso com ela e com o mKdico

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- Hei-de Bing-la me

e no Binguei& no prestoS

a doente de 7 anos& seCo (& idade aparente etc etc

Qas tretas do costume& para uV escreBer isto=S

e o homem do medalho um namoro de cartas entre o >eato ue

a enermeira aNnal& na Jltima ocasio ue a gente os dois nos

bambus

- $o sei bem onde Nca

a esta@o dos comboios para o estrangeiro ue essa sim& no h

uem no diga o lugar& cheia de altialantes& pressas& nódoas de

chuBa

Quem me eCplica poruV=S

mesmo durante o Bero

Qse calhar no nódoas de chuBa& óleo& os horrios das partidas a

insistirem

- X tarde

e as nódoas de chuBa a traerem-me U ideia o recreio da escolaS

a doente Bestida de luto ue h-de oerecer-me tambKm

- "esculpe a modKstia da lembran@ao seu uisuiinho de $atal se a cisma das tristeas e das

insónias lhe durar atK l& para alKm do sauito do crochet o sauito

da garraa& o homem do medalho ue eu pensaBa mais ou menos

como ela Bai na Bolta com escutos& no estudos uando se

conehceram& nessa Kpoca trabalhaBa numa oNcina& um escritório

 Qeu ue no N mal a ninguKm a aturar o relato destas Bidas

minJsculasS

estudos depois& a doente libertou duas ou trVs andorinhas domar e uma palmeira ao reerir-se ao bairro em ue o homem

habitaBa& encheu-me o gabinete de uintalecos& hortas& sobeos ue

nos miram na insistVncia do remorso& o meu pai a despertar-me

tocando-me no bra@o

- *ou o teu pai

e eu a tentar recordar-me enuanto ele se esumaBa

- Em ue K ue o desiludi pai=

apesar de esumado o cheiro dos cigarros& Bontade de

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tranuili-lo U medida ue acordo& me descubro adulto e ainda ue

adulto& com uarenta e um anos

- +omo preere ue eu sea senhor=

o meu pai no com o ato das semanas& o das riscas de ue a

minha me se orgulhaBa& ela de mo U rente da boca

- Para uarenta e um anos no est mal pois no=

Qnós dois com uarenta e um anos reparou senhor=S

a minha primeira mulher um resmungo na almoada

- 9ue conBersas so essas=

colocando uma por@o de tempo impossRBel de transpor entre o

meu pai e eu e detestei-a por isso dado haBer contas a resolBer pela

gente& mal entendidos& mentiras& a minha primeira mulher

- #alas soinho agora=

a minha actual mulher sem coragem de desagradar-me&

aceitando& calando& a enermeira ue por estranho ue pare@a me

daBa Bergonha enBergonhar-me dela& a certea ue das trVs a ue o

meu pai preeriria se o pWncreas consentisse& nunca passou de Nscal

da +Wmara o pateta tRnhamos o limoeiro& a casa ue no Balia de

rKis de mel coado e o cachorro a adiBinhar-nos antes de nosadiBinharmos a nós mesmos& no morreu como a minha irm& areou

um horionte de perdies& empinou-se& teBe a certea ue sim& oi-se

embora& a minha me ue assobiaBa melhor ue nós e se osse

preciso atirar pedras acertaBa sempre imaginou-o durante semanas

em todos os raeiros

Qteria preerido a enermeira igualmente=S

chamaBa-o

Qpor ue rao pergunto& sei pereitamente ue simSe aNnal um bicho manco ou de pVlo comprido ou mais escuro&

esse ao menos no me Bisita U noite

- *ou o co

deiCa-me em pa& deBe caminhar pela serra inBestigando buCos&

abri a anela do gabinete e enCotei as andorinhas do mar& uanto U

palmeira as empregadas da limpea ue a Barram uando a doente

Qo ue me interessa isto& mais insónias& mais tristeasS

saRa U rua escoltada pelos alarmes de uma tia

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Qo ue me interessa realmente isto=S

e o homem do medalho atrs& se estacaBam BoltaBa-se de

costas tentando dissolBer-se numa montra& o reTeCo no Bidro& ue

espreitaBa U socapa& recome@aBa a andar obrigando o homem a

apanh-lo e a ser um de noBo& palaBras ue lutaBam umas com as

outras cartas ora inBentando promessas respeitosas& de tempos a

tempos a enermeira depositaBa-me um enBelope no bolso

- $o leias agora

pKtalas autVnticas dentro& ondinhas a tinta aul em ue um

cora@o escarlate de baton

Qo baton ultrapassaBa os contornosS

nauragaBa& no lhe respondia Us perguntas& desabotoaBa-a

pressa

Q- %enho duas horasS

embora ela

- Espera

pedia-me um Nm-de-semana& uma noite& um eriado& ao cabo de

alguns meses no pedia nada& um dia destes sem ue eu espere

- "eiCei de gostar de tie ualuer coisa empurrada pela delicadea do anular a Nm de

ue a plpebra se no manchasse& despedir-me dos bambus& dos

caBalos& do tamborete com aspecto Belho apesar de noBo traido das

Krias em Marrocos com uma amiga antiptica sempre agreste

comigo

Q- Esse doutorS

Marrocos diapositiBos de chapKu de palha diante de ediRcios

suos ou sea isto aui em mais descal@o& mais conuso& maismiserBel e mal o

- "eiCei de gostar de ti

comichFes esuisitas na barriga& no peito

Q- <ai dar-me alguma coisa=S

um peso com o ual no contaBa a obrigar-me a aoelhar& as

lgrimas adiadas

- $o precisas de nós=

remeCendo-se no lugar onde escondia a minha irm& o meu pai&

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eu para a enermeira

- *e acabaste de consertar a plpebra empresta-me o anular

agora

a Biinha com uem esperaBa casar durante a instru@o primria

e a meningite roubou& eu surpreendido de a Ber depois de tanto

tempo& com um bibeito de Cadre& a mostrar o gato ue lhe deram

nos anos

- $o esperaBa ue continuasses comigo !sabel

o ue Bamos untando sem reparar santo "eus& atK um bibe

Qlembro-me to bem dos botFeinhos nacaradosS

a !sabel ueria ser pianista

- <ou ser pianista

de maneira ue suponho nascer dela essa toada nas erBas U

noite& a proessora um discurso acerca da precariedade da eCistVncia

ue nenhum de nós calculaBa o ue osse& apontou-nos o lugar na

aula& colocou-lhe uma Tor

Qacho engra@ado o nome miosótisS

endireitou a plpebra tambKm& o andar nos arredores de Lisboa

a apeuenar-se na direc@o do passado& impedir a enermeira de seunir ao sorriso do meu aBY& ao cachorro& a tantos acontecimentos

ue lateaBam doendo

- $o a@as isso

no a@as isso ue te dou um Nm-de-semana prometo& uma noite&

um eriado conorme te dei o anel e a pulseira e gostaste do anel e da

pulseira no oi& aceito as aeitonas na aca& no eBito mostrar-te nos

restaurantes ue eCagero& a sKrio ue tenho orgulho em ti& gestos

ue me irritaBam pensando melhor comoBentes& a tua cara& aodespedir-se& to desamparada& to só& o trinco da porta enterraBa-se-

me no estYmago ao echar-se& a cada Bolta mais impiedoso& ero&

no deiCaste de gostar de mim conessa& deiCa-se de gostar

deBagarinho& de desiluso em desiluso& no assim& na anela do

hospital nada salBo umas rBores claro& a mania das rBores& a

chatice das rBores& oNcinas& as ambulWncias na garagem sem

desenrolarem as sereias do pWnico& a doente o sanatório em +oimbra

deriBado aos pulmFes& a tia a despedir-se U porta e a conBic@o de

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- <ais morrer

no seu beio& tudo a insistir

- <ais morrer

balan@as de pesar ossos sob a pele porue no eCistiam

mJsculos nem tendFes& ossos B l e no de osso& de barro& nenhuma

lgrima ue no cabem lgrimas no medo& o espanto ocupa o mundo

com as suas botias de oCigKnio& os seus algodFes& os seus pensos& o

corpo a transormar-se noutra coisa& a me da !sabel pegaBa-lhe nas

mos& alinhaBa-as sobre a mesa eCibindo eBidVncias

- "edos de pianista no se nota=

e de acto desde a meningite as erBas& se tomarmos aten@o&

uma Balsinha contente& pegar na mo da enermeira como se a mo

da enermeira a mo da !sabel e a garantia de ir pensar no diBórcio

Qno penso no diBórcio& no K uma uesto de amor& habituei-

meS

a doente contacto adeuado& sintónico& alguma reticVncia no

ue concerne a sua Bida pessoal& dois anos em +oimbra& noites

demasiado Bastas em ue um empregado do pai lhe sachaBa no o

 Bentre& as costelas impedindo-a de respirar& a desconNan@a ue ohomem do medalho

Qgordo& baiCinhoS

a BigiaBa das portas& a bailarina girando aos trope@os mas to

longe& a mo da enermeira a consentir& uase lRuida& a proessora

da Tor eCaltando-se comigo

- Prometeste ue te diBorciaBas no oi=

Qno me censure dona Luia nunca aldrabou BocV=S

e no caminho da escola para casa o celeiro onde a gente ia Usescondidas com duas mulheres l dentro& a surda-muda e a prima& a

sur-da-muda percebia-nos pela Bibra@o das tbuas e Binha ao nosso

encontro numa espKcie de gritos& a prima para a gente

- Os caramelos dela=

e a surda-muda nuns ardos& tranuila& a mastigar& a prima

disciplinaBa os clientes de machadita em riste

- %u aR mais depressa

QBi o meu pai sair de l uma tarde& uer dier no tiBe a certea

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ue o meu pai& inBestiguei-lhe o casaco e um caramelo aindaS

os ue tinham acabado de uma banda& a darem conta dos grilos

Q- $o ds conta dos grilos=S

a prima enrolaBa o dinheiro num plstico& dobraBa-se para o

cho

- $o olhem agora

sumia-o nos barrotes& NCaBa-se num de nós ao acaso a amea@ar

- %u Biste

e a machadita para cima e para baiCo a crescer& Nuei a olhar o

caramelo no bolso do meu pai detestando-o& uis deitar ogo ao

celeiro com ornais Belhos& palha mas os ósoros ue prometiam

arder espirraBam uma chamainha& apagaBam-se& um lagarto ou

ualuer bicho da terra assustou-me& ulguei ue o meu aBY Bindo do

cemitKrio com um len@o na cara a acusar-me& as ei@Fes dele um

buraco

- $o me aborre@a aBY sacuda essas raRes do ato essas olhas

Qcomo se sentiria com a chuBa no inBerno=S

a enermeira enuanto lhe procuraBa o echo Kclair do Bestido

aNnal no nas costas& de ladoQo ue as modistas inBentamS

- epete ue te diBorcias ento

subi echos U minha me& U minha primeira mulher& U minha

actual mulher& todas de costas para mim& uma delas

Qual delas=S

um sinalito no ombro& outra uma Berruga peuena

- Auda-nos com o echo anda

no Bos posso beiar porue uma de BocVs& tu ou tu& a minhame

e se o meu pai sonhasse mataBa-me& a minha primeira mulher de

nari demasiado próCimo

Qoi sem uerer meS

- Paraste de repente o ue se passa contigo=

o corpo da minha me& o Bentre& as aCilas

- $o se passa nada uma dor

no oi culpa minha me& oi culpa do meu pai& se no osse ele

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no me atreBia uro& nem me surgia na ideia ue horror& sou seu

Nlho& mas uando estiBe com a surda-muda& depois do caramelo no

casaco& oi consigo ue estiBe& os seus modos& a sua maneira de olhar

- Aconteceu alguma coisa tens ebre=

a sua boca no meu pesco@o& os calcanhares no meu rabo

apertando e largando

Qno tarda nada "eus Bem por aR abaiCo e mata-meS

o meu pai chegado do cemitKrio tambKm a retirar o len@o da

cara& ulguei ue uma censura e silVncio& raRes e olhas penduradas

do ato& no angado comigo& angue-se comigo ao menos para ue

eu& a cal@ar as meias U pressa

- "esculpe l o mau eito paiinho

a minha primeira mulher a abanar-me interrogando o tecto

- A sKrio ue eu no gosto de brincadeiras o ue se passa

contigo=

por sorte no pensaBa na minha me& pensaBa nas amigas& a

sócia

da loa casada com um Belho& a das saias apertadas ue se

diBorciou em outubro& só uando a minha primeira mulher no uartode banho entre torneiras raiBosas o meu pai se ia embora a sacudir-

se de liCos& comigo a pau no receio ue o Bissem

- $o o tratam bem no cKu paiinho=

eu a Bestir-me nos arredores de Lisboa pesuisando tra@os de

creme e o lpis dos olhos ue recusa sair& os Biinhos a eCistirem

todos ao mesmo tempo porue a constru@o barata& discussFes&

correrias& um perurador ue se interrompia e come@aBa de noBo&

diBorcio-meQo tanas& diBorcio-me agoraS

mas inelimente as coisas no se aem como nos apetece&

partilhas& dinheiro& adBogados brandindo códigos ue no se

entendem& demoram& o apartamento em +ascais& a uinta de +astelo

>ranco

Qno haBia apartamentos& no haBia uinta algumaS

na amRlia h ue sKculos e os pais da minha actual mulher& no

tanto a minha actual mulher& os pais

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Qa dona Eduarda e o senhor Medeiros ue no aem mal a uma

mosca com as orelhas a arderS

sem direito algum eCigem

- *enhor Medeiros perdoe

o carro deles um caco de ue o senhor Medeiros se enBaidece e

onde a dona Eduarda mal cabe& suspiram por um neto e U conta do

neto serBem-me primeiro ue a Nlha& o cachimbo do senhor Medeiros

e a dona Eduarda a arear-me com o leue

- $o o incomoda o tabaco=

portanto os diBórcios complicadRssimos BVs& papelada& uies&

e depois o teu corpo& seamos obectiBos

Qa crian@a do piso de cima auda U obectiBidade& no h melhor

ue uns peinhos no tecto para ue eu me torne impiedosoS

mais um ano e piou ue essa pele no engana

Qno se apouente dona Eduarda hei-de continuar a ir U sua casa

as seCtas-eirasS

da Baranda deste prKdio só prKdios& os auleos da coinha

cestos de ruta impressos& de cinco em cinco uadrados um aiso a

olhar-me& por trs dos prKdios tipuanas ue no lograram Bingar& unscauleitos sem cor onde nem os ces urinam& tu com orgulho

imagine-se

- A minha casa

comigo a pensar na doente de 7 anos& seCo (& os dedos dela

no de pianista& inchados& o naperon no sauito& como seria BocV

uando eu miJdo& Belhota& as cartilagens dos ombros contra o

 Bestido de luto

Qno um bibe de Cadre- $o sabia ue continuaBas comigo !sabel

aendo BKnias no uintal para uma assistVncia inBisRBel

- Obrigada obrigadaS

ainda direita& digna

Qoutra palaBra ue me diBerteS

o sanatório em +oimbra entre pinheiros& as grades da cerca

altRssimas e a seguir Us grades talBe os choupos da minha irm& do

meu pai& no só choupos& ciprestes& de regresso a Lisboa o homem do

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medalho no se desdobraBa nas Bitrines& no a seguia na rua& ulgou

 BV-lo no >eato& teBe a certea ue ele& aproCimou-se e no ele& um

desconhecido& uma sombra& acontece-me com a minha me tantas

 Bees& eu muito sossegado no automóBel por eCemplo ou a ler e a

minha me

Qno a minha primeira mulher& no outras mulheres& a minha

meS

pedindo-me ue a auCilie com o echo& de costas para mim& a

 Berruga peuena& o sinal

- "esencraBa-me isto garoto

o cotoBelo da enermeira no meu estYmago admirada

- +hamaste-me me tu=

na anela do hospital uma ambulWncia de >ea de pra-choues

uase a arrastar no cho ue consertaram com guitas& a doente no

>eato& no >airro da Madre de "eus& na palmeira do Ateneu& em

MarBila& no mencionando as gaiBotas

Qnunca me alou de pssarosS

um otógrao surgiu de uma caBe com retratos de noiBas

Q- "Jias de bebKs e de noiBas senhor doutorScom as mos deseitas dos cidos

- +onheceu o pimpolho=

e a doente& conusa

- O pimpolho=

Qem Be de transormar o uarto minguante em rBore Bou

escreBendo ao acaso U medida ue a ambulWncia de >ea se dirige ao

paBilho nJmero sete no o do meu pai outrora& o do meu pai to

longe e a percoSo otógrao a mostrar-lhe pelRculas e o homem numa delas ao

colo de uma mulher embeerrada de timide& a mo dos cidos

espalmou-se-lhe em cima

- O pimpolho

o ponto onde o otógrao lhe contou ue o pai do homem

umaBa antes de embarcar para #ran@a& a me sem entender

- PoruV=

a impresso ue o %eo se retiraBa do mundo conorme aem os

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galos antes da chegada da noite& uietinhos na capoeira a pensar na

manh& de uando em uando moBia uma anca de rebocador e

serenaBa outra Be& os bambus da enermeira acalmaBam-se no

escuro& os caBalos paraBam& despedia-se de mim sem uma ueiCa&

uma prega na boca ue me no censuraBa& entendia& se conseguisse

dier amo-te

- Amo-te

sentar-me no banuito em ue deiCas a roupa

Qno te estrago a roupa descansaS

beiar-te a testa preparando-te o sono dado ue o perurador

mudo& o trote da crian@a cessou e a amargura

Qtristea& lamentam-se elesS

a impregnar os obectos& podia morar contigo em instantes

assim atK ue um estreme@o na parede& um ralo a sorBer espumas e

o Bento de *intra& a tua cabe@a no peitoril ao ir-me embora

QJnica cabe@a BiBa no bairroS

o bracinho ue se unta U cabe@a para dier adeus e no acaba o

adeus& demora-se na plpebra a amparar decep@Fes& se adiBinhasses

o ue K cair doe andares como eu caR h anos e a >eatri a Ber-mesem se ma@ar comigo& o corpo continua a doer em partes ue

ninguKm d por elas e K em nome da dor

Qora aui tens a BerdadeS

ue no Nco& no posso Ncar e contudo no aborre@o as pessoas

com tristeas& insónias& aguento conorme hei-de aguentar a alglia&

o tubo no estYmago& o soro& aprendi com o meu pai

- +omo se acha pai=

e ele um olho na gente& um olho no biombo& mais olho no biomboue na gente e calado& a minha me com um po-de-ló numa caiCa

Q- $o eCperimentas ao menos=S

ganas de perguntar

- "aBa-lhe arrano o limoeiro me=

no corredor U saRda tentou pegar-me no pulso e recusei-lhe o

pulso antes ue o olho na gente

- $o me toue

comemos o po-de-ló do meu pai U sobremesa& a minha me a

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necessitar do limoeiro de acto

- ;ostaBa tanto do bolo

aposto ue a boneca da minha irm acol mas no uis BV-la&

ugi& eu mKdico nessa Kpoca a aturar pessoas como esta de idade

aparente coincidindo com a real& lJcida& calma& aspecto cuidado&

aten@o mantida& discurso coerente& ue trope@ou no pimpolho de

anos depois

- H cinuenta e trVs senhor doutor

e por conseguinte boa capacidade mnKsica& numa pra@a da

>aiCa& ele casado& mais gorducho& mais calBo e a propósito de

calBRcie a uantidade de cabelo ue me Nca no laBatório& no pente& o

barbeiro sugeriu-me ampolas& colocou um segundo espelho e uma

aurKola de santidade na moleirinha& o barbeiro& compassiBo

- "isar@o=

e a partir de ento os encontros Us uartas-eiras numa

residencial numa pensoita

numa hospedaria da ;ra@a& um espasmo no saco do crochet&

uma pausa& o crochet a hesitar

- Era Birgem senhor doutorno deu com a surda-muda& desconhecia o celeiro& era Birgem& o

ue eu poderia dissertar sobre a Birgindade meninos& a etimologia& o

sentido& portanto a hospedaria no alto da ;ra@a Us uartas-eiras& um

galho de trepadeira para c e para l& um caBalheiro sempre

- Henriueta

a pensar ue deBia ser a Henriueta

- L Bai

e eu senhor doutor to aTitaQaTi@Fes& tristeas& insónias& um suoco aui& Bo U aBaS

a hospedaria da ;ra@a Us uartas-eiras& *intra na primaBera

uando as accias Toriam& %aBira dois toldos adiante

- OlhaBa para ele chegaBa-me

recusaBa-lhe o dinheiro porue o amaBa senhor doutor& 7 anos&

seCo (& ra@a caucasiana& instru@o rudimentar& escolaridade uase

nula& estado ciBil solteira& antes do homem do medalho o audante

do pai a sachar

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- Menina

e a lata da doente igual aos outros doentes ue só sabem mentir&

eu ue lhes ature os caprichos

- Era Birgem senhor doutor

enuanto o do sacho cada Be mais largo& mais undo& lhe diBidia

o corpo abrindo sulcos& regos& pelo menos uanto a Birgindades a

enermeira sincera& Ncmos conBersados& um bancrio cuo nome

esueci

Qno esueciS

e a uem um separador de auto-estrada

Qobrigado separadorS

pYs dois tra@os por cima

Qtenho a certea ue o retrato dele numa gaBeta aRS

na cauda do bancrio e isto contado meses depois a seguir a

 Brios

- %enho acanhamento em dier

a Brios

- Promete ue no te angas comigo

de reBista U rente da cara- $o olhes para mim seno no tenho coragem

a aastar a reBista

- Acho ue no Bou dier no sou capa de dier.

Eu de inRcio diBertido a impacientar-me agora& igualinho ao

pirrot na estante a desliar do bambu& espreitei as horas e

tardRssimo& a uma EnciclopKdia de Mulheres #amosas com oana

dZArc e uma actri americana ue estou arto de conhecer e no me

lembra o nome na capa& se no osse a meningite a !sabel ali& a meseparando-lhe os dedos a comandar

- *epara mais os dedos songamonga

apontando U minha me dedos BulgarRssimos& curtos

- "e pianista no so=

e se calhar eram porue as erBas da campa& no caso da gente

atentos& um estudo& um prelJdio& a enermeira muito depressa

- Após o Marcelo

QMarcelo=S

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tentando parar mas era diRcil parar& a conNsso apesar dela

- Após o Marcelo um mulato

e eu& K natural& a Bacilar com o mulato& dVem-me doe andares

para cair de noBo atK ao centro da terra& Nos elKctricos& canos&

pedregulhos latinos& o meu pai a Bogar nas redondeas& a surda-

muda e os seus assopros de ganso uando alguKm mais coraoso ue

eu

Qa minha me=S

incendiou o celeiro& Bi a minha me sair do uintal com ornais&

uma bra@ada de palha& o meu aBY a dar corda ao relógio do armrio

- $o ales disto Us pessoas

eu& nos arredores de Lisboa& dKcimo primeiro& dKcimo& nono&

procurei a >eatri sem achar a >eatri

Q- $em um boa Biagem >eatri=S

eu soinho

- ,m mulato=

os arredores de Lisboa to eios& to porcos

Q- %u eia porca um mulatoS

a reBista a aBan@ar para mim embara@ada- Eu bem tinha a certea ue no deBia contar

com o Bento de *intra os caBalos iniciaram o seu galope na

moldura. Ha sala e eu neles. no locraBa moBer-me

Qto complicado moBer-meS

e no entanto eu com eles& a minha me mais palha& mais ornais&

um ósoro& eu a designar o teu prKdio

- Este sRtio aui me

e agora se uiseres tenta abrir a porta& escapar-te& nem seuercalcei as meias& guardei-as no bolso& no lacei os sapatos& um dos

 oelhos contra o barinho ue gaita& a enermeira a recuar no diB

- >em tinha a certea ue no deBia contar-te

o trinco automtico da porta da rua ue se negaBa a saltar& a

minha me curBou-se com os ornais e a palha& eu a correr em

+astelo >ranco a caminho de casa& o meu aBY suspendendo o relógio

- $o ardeu celeiro algum ual celeiro=

a minha me na coinha a cortar cenouras& lombardo& a enCotar-

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me com a aca

- $o me empates garoto

e portanto a enermeira BiBa& a surda-muda BiBa& eu BiBo& posso

cal@ar as meias& la@ar os sapatos& descer o Bidro do automóBel para a

cara l em cima a endireitar a plpebra ue diminuiu aos poucos&

desBaneceu-se no ar

Qse eu

- Amo-te

tu agradecida apesar de no acreditares em mimS e regressando

U consulta doente de 7 anos& seCo (& ra@a caucasiana& educa@o

rudimentar& escolaridade uase nula& estado ciBil solteira& durante

cinuenta e dois anos senhor doutor Us uartas-eiras na hospedaria

da ;ra@a& agosto em %aBira& reere ue ele ueria-me perto de si& ue

um mVs de ausVncia um do outro era muito tempo percebe& discurso

coerente embora repetitiBo& idea@o pobre& personalidade submissa&

contentaBa-se com as accias de *intra

- As accias de *intra senhor doutor em maio

eu ue desconhe@o o ue seam Tores nas accias& dois Belhos

na esta@o dos comboios em horrios dierentes& ela primeiro& aaguard-lo num banco& o pimpolho mais tarde& peuenote

Qmais baiCo ue a doenteS

atento ao cora@o& aos diabetes& Us artKrias do cKrebro&

dirigindo-se no sentido de Monserrate a eCaminarem as copas& a

instalarem-se num caeinho& a enermeira e eu uma primaBera

destas em *intra tambKm& eu para a enermeira

- As accias

ela eCultante- As accias

eCplicar U minha actual mulher ue uma urgVncia no hospital&

um problema na +lRnica& o pedido de um colega

- A esposa dele ue ma@ada

o meu cora@o& os meus diabetes& as minhas artKrias do cKrebro

e mau grado o cora@o& os diabetes& as artKrias do cKrebro& muito

remoto Qde ou doe uilómetrosS adiBinhaBa-se o mar& a gente

hesitando a obserBarmos um ardim

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- *ero accias isto=

sem o mulato na lembran@a dado ue no rodar do tempo ui

esuecendo o mulato consoante esueci a minha me& o meu pai& a

minha primeira mulher& esta doente de luto mais o crochet e a

tristea& dado ue no rodar do tempo a Jnica coisa de ue me

apercebo so o limoeiro do uintal& a minha irm no ber@o& o

cachorro ue perdemos& o peso do compadre do meu pai no meu

ombro a propósito de uma caiCa

Qual caiCa=S

e da terra na caiCa

- %ens de preparar-te garoto

no precisa de recomendar ue me prepare senhor >arbosa& eu

a postos& no oi@o os sinos BV& o discurso do padre& adiBinho o mar

Qde ou doe uilómetrosS para alKm das accias& se a minha actual

mulher

- 9ue tal oi=

amontoo-me na poltrona eu ue costumo sentar-me& inclino a

cabe@a para o apoio da almoada

- #oi bemou antes no lhe respondo

- #oi bem

adorme@o enuanto o mar se aproCima da gente& no K a minha

actual mulher& K o mar ue se aproCima de mim& tra uma manta

para os oelhos& Bai-me cobrindo com a manta& segreda sea o ue or

para si mesmo e eu ento

- #oi bem

 ulgo ueQno estou seguroS

- #oi bem

suponho ue eu

- #oi bem

dado ue o mar& aliBiado& descansado comigo& retira o crochet

do sauito para continuar o naperon.

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TERCEIRA CONSULTA 

E aui estamos nós outra Be ue seca& eu numa cadeira de

bra@os deste lado da secretria e a senhora numa cadeira de bra@os&

mais peuena& do outro& na ual de tempos a tempos me apetece

sentar para alar comigo& o eu preocupado dirigindo-se ao eu ue

mal o escuta& Nnge ue o escuta& no o escuta de acto& arruma

papKis& torna a arrum-los& muda de sRtio um carimbo& a caneca das

eserogrNcas sem tampa

QporuV sem tampa sempre=S

 BeriNca uma alha da parede na desiluso de um cabelo branco

QatK os hospitais enBelhecem senhoresS

a chicotada de um pombo na anela assusta-o& recorda-lhe outras

 anelas& outros medos& outras chicotadas no de pombos nem depenas& mais undas& ue gostaBa de contar e no K capa de contar e

o eu ue mal o escuta distrai-se consoante me distraio de si& no me

leBanto nem estendo a mo uando chega& designo com a caneta a

cadeira sem bra@os no a olhando seuer enuanto termino a Ncha

do sueito anterior& um homem triste tambKm& com insónias tambKm

Qno Beo outra coisa na BidaS

parecido com o eu preocupado diante de mim& tilintando

recorda@Fes no bolso da memória sem coragem de mas oerecerQno o limoeiro& no a minha irm& outras coisas mais secretas&

mais intensasS

ou sea doente de 87 anos& seCo O& idade aparente

Qai de mimS

superior U real& uma idade se assim me posso eCprimir de acarK

ou tartaruga& dando ideia ue orientado no tempo e no espa@o ou

sea& como os mKdicos aNrmam& alo e heteropsiuicamente e contudo

no orientado no tempo e no espa@o& U deriBa entre +astelo >ranco e

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Lisboa e caindo& percebe& para alKm de todos os centros da terra& atK

um lugar em ue nem ele se encontra& no gKnero da adega sem lu

onde acompanhaBa a criada e o corpo da criada& respirando no

escuro& desumano consoante acontece uando alguKm ue no

 Bemos respira ao nosso lado

Qto perturbador uma pessoa BiBa no acha& cada BRscera a

eCistir soinha& roupa ue murmura mal um gesto e no interior da

roupa uma Bo ue nos conhece o nome a chamar-nosS

eu na cadeira de bra@os deste lado da secretria a designar a

cadeira sem bra@os com a caneta e apesar de uieto tombando& mal

dando conta ue BocV de luto

Q- <ai usar luto atK ue altura=S

com o sauito do crochet& as suas ueiCas& a sua história e ue

Nnalmente uase me olha

Que Nnalmente me olhaS

e ao olhar-me no K a si ue Beo& K a criada a entregar-me

garraas antes de descermos U adega& o primeiro degrau ainda claro&

os seguintes inBisRBeis e a minha me l em cima onde as pessoas

continuam a ser& se pudesse tocar-lhe no medalho para me sentiracompanhado e a certea ue se aBan@asse a manga BocV recuaBa

conorme recuou sem palaBras ou com demasiadas palaBras e

portanto sem palaBras na primeira tarde da hospedaria na ;ra@a&

amedrontada pela boca do homem

Qo resto das ei@Fes no lhe aia impresso mas a amea@a da

bocaS

 Bontade de pedir-lhe

- $o respire senhorsea uma pedra& no respire& no tussa& Nue sossegadinho aR& o

empregado com o sacho a assobiar l ora e eles os dois& o

empregado e o homem& Bo esuartear-lhe os ossos& abrir-lhe regos

no corpo& a sua me assim certas noites& o seu pai na coinha depois

e se BocV entrasse no uarto

- Me

ela deitada como as Bitelas amolecidas no estbulo mal os bois

se aastaBam

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- 9ue oi=

no bem a sua me por enuanto& uma criatura ue se ia

aparentando U sua me& uma espdua sob o len@ol

- 9ue oi=

aNnal a espdua dela com a omoplata ue o mKdico operou a

agu@ar-se na pele& a sua me igualinha U criada na adega a deiCar

de ser ela& a ser ela de noBo& ao no ser ela cada BRscera a eCistir

soinha& um suspiro ue atraBessaBa grutas e grutas antes de o

acharmos no ar& BocV para o homem& na esperan@a ue a trepadeira

Qa trepadeira sim& o chicote de um ramoS

a protegesse

Qou o laBatório& ou o cabideS

- Espere um bocadinho senhor

do mesmo modo ue hesitaBa em contar-me& discurso adeuado

embora reticente& demoras& circunlóuios& eBasiBas& l entendi ue

durante cinuenta e trVs anos as uartas-eiras U tarde& ^das duas Us

cinco e meia& eu saRa primeiro

QtranscreBer& sempre ue possRBel& o discurso do pacienteS

e de tempos a tempos& da parte dele& no da minha& silVncios&enados& no se despia seuer& tomaBa os comprimidos do cora@o&

dos diabetes& miraBa a rua do uarto& animaBa-se no caso de uma

gaiBota

- $o Biste

e esuecia-se& miraBa em torno a custo a enrugar-se

- $o sei

e BocV do outro lado da secretria& na cadeira sem bra@os&

suponho ue igualmente- $o sei

um desconorto idVntico de silVncios& enados& no seu lugar ue

me diria a mim& ue se diria a si mesma& ainda antes do pWncreas o

meu pai em silVncio& oi com ele ue aprendi o caminho da adega& dei

K ue no apenas eu porue demasiados passos& uma tbua de

caiCote a aBisar-me

- O teu pai o teu pai

um gargalo a rolar& nessa Kpoca um postigo rente aos canteiros&

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eu aoelhado U escuta e no postigo duas respira@Fes desumanas& se

acordo a meio da noite a minha actual mulher dessa maneira

Qestou deitado com uem=S

acendo a lu e a minha casa& os meus móBeis& no a adega&

nenhum postigo& eu crescido& a minha actual mulher um solu@o

QconBersa com uem& pensa em uem=S

e continua a dormir& ela na adega com o meu pai pisando tbuas

de caiCote& desalinhando garraas& pergunto-lhe ao ouBido

- Era com o meu pai ue tu estaBas=

e pKs a despontarem na coberta ao undo& a doente mais o

medalho e o luto na cadeira sem bra@os

- $o entendi senhor doutor

ou na hospedaria da ;ra@a com o empregado do pai& no com o

homem& BocV no em Lisboa& num cubRculo de proBRncia da mesma

orma ue no uma trepadeira nos caiCilhos& o pomar& a Binha& se a

criada da adega continuar BiBa a sua idade acho eu& tinha Nlhos

crescidos& o marido na Alemanha& umas cabras& aproCimaBa-me da

cancela e logo as cabras a rirem& no me trataBa por menino nem por

senhor& o meu pai por senhor& com respeito& a mim por tu& diBertida&a doente a endireitar o medalho

- $o estaBa a rir senhor doutor tenho alma para risos

cinuenta e trVs anos U espera das uartas-eiras U tarde& dos

domingos em *intra& de %aBira em agosto ao passo ue eu teria ido a

sua casa

Qum uadro de caBalos tambKm& os bambus& o pierrotS

demoraBa-me consigo& oerecia-lhe uma pulseira& mentia-lhe&

uando o meu pai adoeceu desci U adega por ele& a criada a mangarcomigo

- Achas ue tens idade tu=

mais noBo ue os Nlhos& uase neto& eu cego& podia BV-la se

descobrisse o postigo ou acendesse a lu e no entanto cego& os meus

gestos cegos

- Espere

a Bo cega tambKm ue tacteaBa

- Espere

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achando uma ndega& o pesco@o& uma gargalhada de bicho

Qas cabrasS

consentindo& apiedando-se& no me mandando embora

- +heiras a leite tu

o meu pai na ,nidade alheado de nós& a minha me entregou na

recep@o

Q- X melhor ir traendo a roupa dele compreende=S

enBoltos na toalha da mesa

Q Porue no um ornal me=S

os sapatos

Qos sapatos num ornal para ue a graCa no enodoasse a

camisaS

o ato& a graBata& por causa dos sapatos& do ato& da graBata eu a

tactear

- Espere

apercebendo-me ue tacteaBa e detestando-me pelo meu pai&

pela minha me& pelo ato ue aguardaBa

Qum dia& uma semana& duas semanas ainda=S

o momento de o Bestirem lutando com a resistVncia dosmembros

- $o uer Ncar bonito o palerma

pela criada ue se no ralaBa com o meu pai& brincaBa U minha

custa

- +heiras a leite tu

sem perceber ue era a Jnica orma de o manter BiBo& ue

talBe o meu pai a agradecer-me por isso

- #ilhoa aceitar a gua ue lhe serBiam no num copo& com um len@o

molhado

Q- +hupe o len@oS

e escorria do ueiCo& era o senhor ue eu no ueria encarar

pai& no a criada& os olhos mortos& o nari morto& no bem uma

distWncia da gente& se tentaBa alcan@-lo BocV impedia-me& o pulso

magrRssimo abandonado na colcha& a cabe@a ignoro onde ou cabe@a

nenhuma sabendo ue os sapatos& a graBata e o ato& to largo agora&

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na ,nidade U espera com os Bincos no lugar& os botFes apertados e

eu em busca da criada& entre garraas& para impedir ue lhe

cal@assem os sapatos sem peJgas& os tornoelos demasiado plidos a

pedirem-me auda e eu

- +alcem as peJgas do meu pai por aBor

U cata na toalha sem as achar& a camisola interior sim& os cal@Fes

sim& sacudir a criada atK os dentes dela& as cartilagens dela& garraas

ue tiniam e os dentes de noBo

- *e o meu pai morrer mato-te

eu a sacudir a criada sacudindo a minha me

- 9ue K das peJgas do pai me=

proRbo-a ue o meu pai descal@o& o meu pai no Bai descal@o

ouBiu& a criada no

- +heiras a leite tu

uma Belha da idade da doente e a doente uma resposta a medo a

certiNcar-se do medalho como se o medalho a deendesse de mim

- As peJgas do seu pai senhor doutor=

percebia-se o Bento de +astelo >ranco em outubro& os ramos do

limoeiro& o uadrado de terra em ue a minha me balsaminas e umraminho a augentar os pssaros. obserBaBa-as U tarde sorrindo-se a

si mesma

- As minhas Tores

como se as Tores rostos elies& amigos& a minha irm com a

gente& a minha me noBa e assim& irritaBa-se com os pssaros

Qarmei aos tentilhFes tantas BeesS

perseguindo-os pelas balsaminas& a criada um cani@o de trapos&

o trapo da blusa& o trapo da saia& o trapo de uma segunda saia& acriada um espantalho& a doente um espantalho& eu a interromper o

desenho no bloco

- "iga-me ue cheiro a leite atreBa-se

rasgar os trapos& rompV-los& um caba na adega& um alambiue

antiuado& a mo encontrou a cara dela& uma orelha

- "iga-me ue cheiro a leite B

uma coCa a desBiar-se de mim& a segunda coCa& cabelo

inesperado entre ambas

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Quma ocasio& tempos antes& tinha-me parecido ue a minha me

igualmente& no uis acreditar e era Berdade me& no imaginaBa

ue as mulheresS

e N isto para ue amanh ou depois BocV apresentBel& cal@ado&

na nossa sala pai& com os panos negros& os casti@ais& os lRrios& sem

enBergonhar a gente diante das Bisitas& as palmas da criada na

minha cintura& nas costas dado ue eu

- PFe as mos na minha cintura nas costas

no por BocV& por tu& eu U criada por tu& pelo ruRdo dos insectos

esregando naBalhinhas l ora adiBinhaBa-se a noite& costumaBa ter

medo da noite e no tenho percebe& no tenho& trato-a por tu notou&

trate-me BocV por senhor& a minha primeira mulher

- %ratar-te por senhor ests doido=

a libertar-se de mim

- +uidadinho com o Bestido no rasgues

a endireitar-se a tremer

- O ue K isto=

 <isitaBa a criada a enCotar-lhe as cabras ue mancaBam de

saltos altos no uintal e ela nunca mais- Achas ue tens idade tu=

respeitosa& a motoriada do marido decompunha-se no tanue& o

ogo demasiado grande ue o meu pai lhe oereceu

Qse calhar a doente um ogo demasiado grande ue o homem

lhe oereceuS

uns trastes& uns baJs& a roldana do po@o& isto ora da cidade e na

cidade hoe em dia& uma brica& bairros& a minha primeira mulher

- $o me sacudas ue coisa deiCa-me a gola em pae apesar dos meus esor@os o mKdico do meu pai no corredor&

no na ,nidade

- Pronto

escusaBa de ter dito

- Pronto

 Bisto ue a eCpresso dele

- Pronto

nós parados e

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- Pronto

as peJgas na algibeira do casaco aNnal& um arrano nas lapelas&

a graBata pereita& o eCcesso do casaco e das cal@as disar@ado com

Tores& BocV ue no pYde disar@ar o homem do medalho& ocupar-se

do Belório& despedir-se dele uando h uns sete meses

Qseis ou seteS

a trepadeira suspensa na anela ou pelo menos BocV a lembr-la

suspensa& sem olhas deriBado ao inBerno e na sua ideia olhas& um

ramo insigniNcante e BocV capa de garantir ue grande& pensaBa

ue silVncio na hospedaria e no entanto

Qcomo supor de outra orma=S

o ruRdo dos clientes& no apenas homens com mulheres& homens

com homens& homens com rapaes& mais esuiBos& mais aTitos&

escondendo-se de BocVs& acreditaBa ue silVncio e ual silVncio&

respira@Fes desumanas& o prKdio inteiro acossando-me tambKm a

mim ue a escuto& eu sem desenhar o ue uer ue or no bloco&

todo agrupado na cadeira a ouBi-la esuecido da minha irm coitada&

do meu pai coitado& de mim coitado& tal como BocV eu a dar com a

trepadeira ue batia no Bidro ainda ue na realidade no batesse no Bidro& com a cama& o cabide& as duas estampaitas na parede& numa

delas um casal de rades a beberem& na segunda uma menina nua

abra@ada a um coelhinho e ambas gastas& riscadas& com legendas em

rancVs ue BocV no percebia e eu percebo mal

Qtanta consoante escusada e a impresso deeituosaS

no mencionando o reTeCo do Bidro ue untando-se ao pó

diNcultaBa a leitura& por conseuVncia& e regressando ao mobilirio&

a cama& o cabide& as estampas e respira@Fes desumanas& nosilVncio& a doente e o homem do medalho chegados uma hora antes

Quma hora e Binte minutos antesS

por um instante lembrou-se de *intra e do ue ele designaBa de

accias e BocV a emendar dentro de si

- Mimosas

por um instante lembrou-se de accias ou mimosas ou o ue

osse em *intra sobre pedras escuras

Qsempre pedras escuras recorda-se=S

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e esueceu-se de *intra porue ualuer coisa com o homem&

uma espKcie de sacudidela& de aBiso& o seu nome ele ue nunca

pronunciaBa o seu nome e o nome no baiCinho& numa Bo clara&

espa@ada& BocV surpreendida por ter nome& h dJias de anos ue

ninguKm o seu nome

Q- 9ue esuisito o meu nomeS

 BocV curiosa do nome

Q- ANnal tenho nomeS

a aBali-lo& a medi-lo

Q- O meu nomeS

o empregado do seu pai

- Menina

o Jnico ue

- Menina

o seu pai e a sua me uma alma me barria num tampo ou num

pigarro ou

- Aui

nunca o nome& as palaBras desnecessrias& sem sentido e nisto&

na hospedaria da ;ra@a& o seu nome e com o nome a madrinha& umatia& um passeio a Lamego por Bia de uma promessa e a doente

enoada na camioneta a rear ABe Marias com medo de morrer

enuanto no sei uV por dentro remeCia torcendo-se da mesma

orma ue aldeias tortas no caminho& campanrios tortos& carro@as

tortas& bicicletas tortas unto de uma armcia tortRssima e no só a

paisagem torta& as cores mal pintadas ultrapassando os obectos& no

o medo de morrer& a certea de morrer& a cara da tia dois naries

- $o desmaiesU medida ue a doente se eCpulsaBa de si mesma e no um

 Bómito& memórias& cheiro de eno em abril& missas das almas& a perna

de metal da aBó encostada U muina de costura& a madrinha a

tapar-lhe a boca com o len@o

- $o nos enBergonhes aui

o som da perna de metal dierente da outra& no caminhaBa& ia

esmagando o soalho em estrondos repetidos& o corpo rodaBa ao

moBV-la ogando-a para diante e a doente pasmada

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- Ande mais um bocadinho aBó

a inBea de poder deslocar-se pela casa numa autoridade de

gigante& respeitada& admirada

- *ente-se bem senhora dona maruesa=

atK os ces se aastaBam em cRrculos dierentes U medida ue o

metal trucidaBa o passeio& uando a aBó aleceu a perna ao lado da

urna& o empregado da agVncia a desenganar a amRlia

- $o se leBam pernas para a terra

de modo ue se colocou um sapato sem nada unto ao sapato

com pK& deBolBemos a prótese U muina de costura atK Ber mas

trope@aBa-se nela e conorme o desgosto se diluRa

- <endemos esta coisa no Bendemos o ue se a a isto=

onde uer ue se colocasse a perna l estaBa ela a empatar& o

óCido ue surgia do Berni cor-de-rosa sempre U Bista de nós& ao cabo

de duas semanas a minha me

- %ira-me isso da rente

e a perna no saRa da rente& tena& a estorBar-nos& o meu tio

acabou por deiC-la na capoeira com os rangos& ao construRrem a

capoeira maior oi na carro@a de mistura com as estacas& os poleiros&a rede& Ncaram as marcas no sobrado ue nem esregando com cera

nem aagando a madeira& o eco dos estrondos atenuou-se&

desapareceu e depois do eco nada embora proBaBelmente auelas

guinadas de setembro ossem ela de Bolta& os pobres dos deuntos

to ocupados a esuecerem a morte

- ;ostBamos de BiBer como BocVs ue aar

deseosos de audar& enCugar loi@a& leBantarem a mesa& a gente a

senti-los de um lado para o outro pelo Bentinho ue aem&obstinados& actiBos& em contrapartida o homem na hospedaria da

;ra@a Bentinho nenhum& a doente e ele cada Be mais& Us uartas-

eiras& silVncio& horas de silVncio diante da trepadeira& das estampas

e sem atentarem na trepadeira& nas estampas& num espaldar contra a

parede& num rapa ue choraBa& nisto o homem uma espKcie de

sacudidela& de aBiso& no Nm da sacudidela o seu nome& h dJias de

anos ue ninguKm o seu nome

Q- 9ue esuisito o meu nomeS

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 BocV curiosa do nome

Q- ANnal tenho nomeS

satiseita do nome& a aBali-lo& a medi-lo

- O meu nome

a compreendV-lo melhor ao notar ue o homem sem moBer-se&

no propriamente uieto& no diria uieto& de noBo por um instante

Quase nem um instanteS

*intra& pedras escuras

Qaccias& esttuas de lago no brancas& BerdesS

arbustos& etos& o homem do medalho uma perna artiNcial

tombando deBagar& aNgurou-se-lhe ue o seu nome ainda& a alegria

de ter nome

- %enho nome

responder reconhecida& contente& uase a pegar-lhe no bra@o

- *enhor

e ninguKm& BocV soinha no uarto embora acompanhada por

ualuer coisa de sobretudo e bonK& no uma pessoa K eBidente& as

pessoas no assim& ualuer coisa incómoda por enuanto no em

busca de carrinhos de linha& tesouras& deseoso de audar& tentandoeCplicar-lhe ue podia aer isto e auilo& se ocupaBa do ue osse

preciso

- ;osto tanto de BiBer como tu

por enuanto no insatiseito de estar morto& a eCaminar-se

- $o entendo o ue aconteceu o ue oi=

sem dar K ue BocV a olhar o cho dado ue o homem no cho

- Estou no cho=

e ento sim& no antes& ento sim o silVncio& ninguKm a subir oua descer a escada& nenhum rapa ue choraBa pedindo

- %enha paciVncia senhor

a dona da hospedaria a entrar& uer dier no a entrar& a

demorar-se U entrada

- Estamos eitos

um ulano& outro ulano& o gordo em mangas de camisa ue se

ocupaBa dos uartos de modo ue aui estamos nós outra Be ue

seca& nós BiBos

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Qo gordo

senhor Onore

de ósoro na boca mudando-o de lugar com a lRnguaS

eu na cadeira de bra@os deste lado da secretria e a doente a

escutar-me na cadeira sem bra@os& mais peuena& do outro&

conorme escutou o homem em *intra& conorme assistiu na praia U

esposa dele& as Nlhas& conorme na Jltima tarde na hospedaria da

;ra@a escutaBa no os regueses mas os pinheiros do sanatório em

+oimbra ou as ondas na penso do AlgarBe a alisarem a areia no

modo ue as mos dos Belhos nos parues Bo alisando os oelhos e

em ualuer ponto de %aBira& numa penso igualmente só ue mais

cara& mais próCima do mar& na ual palmas maiores em oelhos

maiores& o homem e a amRlia do homem& as duas Nlhas& o genro& o

seu pai assim& no Bero& ao deiCarem-no na latada depois de ter

cegado& apontando l em baiCo

Q- $o sentes=S

o esueleto da mula ue ia surgindo da terra e a doente a

escutar o >eato& uer dier no as casas

Qto poucas casas meu "eus& hoe prKdios no sRtio onde hortas&uintinhas& restos de pombais desertosS

no a igrea& o %eo& um desconhecido no eCtremo do ponto

recusando um miJdo com o despreo da manga

- %rambolho

o otógrao ue assomou de uma caBe a hesitar

- Pimpolho=

a compreender ue BocV no a esposa U medida ue o homem

teimaBa ue a doente numa espKcie de trono diante de um telo comum castelo e uma menina de la@arote a remar num baruinho& a

acender ele mesmo os ocos de um compartimentoito em ue mais

telFes pelos cantos

Quma bicicleta& uma ca@ada em 3rica& uma cena de circoS

e cortinas& rascos de reBelador& poeira& sobretudo poeira& o %eo

contra a muralha e poeira& proBaBelmente andorinhas do mar&

gaiBotas de ue BocV no me ala e poeira& nunca se reere a

pssaros

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Qnota ao *erBi@o de Psicologia +lRnica: como interpretar o

desinteresse por pssaros=S

os restos do ue se presumia um petroleiro e poeira

Quma chaminK& um depósitoS

sobrando entre panos ue boiaBam& detritos& o homem de bru@os

antes de o estenderem na cama com o desenho do seu nome

Q- ANnal tenho nomeS

na boca& cada sRlaba do seu nome e os dentes mordendo-as& os

do seu aBY tambKm ao apontar o esueleto da mula no termo da

uinta

- $o sentes=

lembran@as a somarem-se ao esueleto da mula& banhos na

selha& o senhor <irgRlio a urinar nas tamargueiras de sorriso

dan@anco de uma orelha U outra untamente com a roupa a secar

entre a arrecada@o e o poste& o seu nome e BocV agradada com o

nome

- %odos sabem uem sou

o homem a habituar-se U morte sem um resmungo seuer& a

esuecerQK uma uesto de tempoS

o caminho da Bolta& no procurando uma chaBe de parausos&

uma lWmpada ue substituRsse a lWmpada undida& limitando-se a

calcular a própria ausVncia& BocV intimidada no >eato com os telFes&

os ocos& a suspeita ue o rio& em mudando a marK& os aogaria a

ambos& o ue teria acontecido U bailarina ue giraBa& giraBa& na

hospedaria da ;ra@a o galho da trepadeira imóBel& tudo imóBel& nem

uma respira@o para amostra& o rapa ue choraBa calado& a dona dahospedaria com receio da polRcia

- Estamos eitos

o senhor 9uerubim emergiu das lentes para corrigir a pose&

rodou as lentes de noBo

- ,m instantinho madame

QBocV no a esposa dele& a amante e o senhor 9uerubim

escandaliadoS

o homem ao lado do senhor 9uerubim

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- Pareces a minha me

e o escWndalo do senhor 9uerubim a crescer

- As pessoas no se comparam pimpolho

preocupado ue a me do homem aborrecida com eles& a

muina um estalinho e o mundo& liberto do senhor 9uerubim&

principiou a andar& nunca trouCeram a otograNa do >eato

Qse calhar permanece& a desditosa& l na tina dos cidosS

na ual BocV sem crian@a ao colo de mos apertadas esperando&

consoante nos agostos de %aBira esperaBa o homem ue no Beio

nunca& Binha o empregado do seu pai mais o sacho e principiaBa a

caBar. lanternas de arrastóes numa constela@o misteriosa& no se

assistia U partida das tarineiras& a noite colocaBa-as no horionte sem

ue se desse K e a claridade ue antecede a manh estendia o bra@o

e retiraBa-as& se pudesse contar ao homem as Bees ue o

empregado do seu pai consigo consoante eu com a minha primeira

mulher& no com as outras e aos Nns-de-semana o buraco no soalho&

doe andares e adeus& eBito o bairro& acho ue consigo no localiar

onde Nca& um uarteiro recente com boutiues& esplanadas&

 Biinhos ue nem sonho uem seam passeando ces e euQ se sabeS

dKcimo primeiro& dKcimo& nono& ninguKm ue me puCe para

cima& me aude& a >eatri& empoleirada numa cadeira para atingir a

mesa& entretida com a cópia da escola& o pai ue se me habituou Us

passagens nem um soslaio compassiBo& a criada na adega a recusar-

me auCRlio

- asgaste-me o aBental aleiaste-me

o meu pai a adiar o pWncreas num impulso de recusa cada Bemenos orte& a doente para mim

- "epois dele morrer ainda ui ao >eato procurar o otógrao

mas deiCara de eCistir a caBe& ruas dierentes& garagens& no

mencionou os pssaros

Qno ue se reere ao problema dos pssaros o *erBi@o de

Psicologia +lRnica propFe testes de personalidade e aBalia@o globalS

mencionou ue desapareceram o ponto& os ragmentos de

petroleiro& o desconhecido a umar e enuanto a doente alaBa

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Qcontacto menos reticenteS

eu& apesar de aperei@oar a casa no bloco& caindo& caindo&

soinho na pensoita em %aBira& na praia dois toldos adiante& no

comboio de *intra a espreitar as accias& eu Us uartas-eiras na

hospedaria da ;ra@a

Quma cama& um cabideS

sem olhar a cidade& a enermeira magoada comigo

- Encontramo-nos numa hospedaria como se eu osse uma

ualuer K isso=

e to diRcil eCplicar ue no uma ualuer& sou eu ue sou um

ualuer& to diRcil eCplicar ue as coisas no esto em ti& esto em

mim& por eCemplo um teleone ue no acerta com o descanso& uma

perna cruada& uma Boinha tranuila

- "eiCei de gostar de ti K só isso

a trepadeira nos Bidros sem ue eu repare na trepadeira como

no reparo num reguVs descal@o ue abre uma porta de repente a

subir os suspensórios e alguKm nu

Qum rapa=S

a espreitar-lhe do ombro& no bem homens& homens Bestidos demulher com cabeleira posti@a& a enermeira a diminuir no colcho

- "esagrada-te a minha casa conessa

e os bambus a cercarem-me

Quma lgrima nas pestanas do pierrotS

um barinho de espelhos onde o uadro dos caBalos&

multiplicado por cinco& sacode as crinas& galopa& o retrato do pai& o

retrato da me

- %ratam-te como deBe ser Nlhinha=um primo ue morreu em 3ricaAos Binte e trVs anos

num acidente de ca@a e cuo relógio guardaste& ao mostrares-me

o relógio

- O relógio do meu primo coitado

o primo no na moldura& connosco& B l ue no hostil&

compreensiBo& a minha dJBida

- ,m primo=

a comparar malares& o ormato da testa& mas a otograNa pouco

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nRtida& as ei@Fes diluRdas& o primo deBolBido U prateleira& um sorriso

ao relógio e o relógio num armarioito chinVs nacional em ue

bibelots& lbuns& um embrulho com uma Nta

- X a tua prenda de anos no olhes

e como o embrulho comprido uma lapiseira ou uma caneta acho

eu& ualuer coisa ue possa usar

Q- Pensaste nisso no oi=

sem perigo de interrogatórios& ciJmes& declarar aos pais ue a

Nlha pensou nisso a espertinha& o ue deBe ter custado pensar nisso

U espertinha& uma camisola no& um cinto no& no graBar o nome na

lapiseira& no untar bilhetes com Techas e ursinhos

Qo urso-macho de graBata& o urso-Vmea com batonS

a enermeira a espanear decep@Fes

- Meu ursinho

e o

- Meu ursinho

no alegre& no esperan@oso& uma arsa ue se destinaBa U

otograNa dos pais& ao primo cua espingarda

- #e-lhe um buraco de um palmo ao eCplodirse desentendeu com ele e o primo& embora pouco nRtido& a

conNrmar na estante

- "esentendeu-se comigo

um turbilho de olhas ergueu-se da terra e deBorou-lhe a

barriga U medida ue eu& inteiro& Bou descendo& descendo

Qnono& oitaBo& sKtimoS

se a surda-muda ao menos e a surda-muda a reugiar-se entre

assopros num Wngulo do celeiro& a prima para mim- 9uiseste aer-nos mal tu

de maneira ue seCto& uinto& uarto& no uarto o ginecologista

casado com uma bailarina& os moBimentos dela no eleBador sempre

longos& de metros& metros para pegar no saco& achar as chaBes na

mala& arranar o cabelo e o ueiCo altiBo& U procura& a distWncia entre

as caiCas do correio e a porta& ue ulgBamos curta& inNnita& dedos

ue desapareciam numa espKcie de Boo sobre as nossas cabe@as&

alcan@aBam o tecto& regressaBam U mo& eu pasmado& sem coragem

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de pedir

- Outra Be

e o ginecologista de olhinho duro em mim& uma Nlha de tran@as

espetadas carregando nos botFes todos& determinada& ero& com o

olhinho duro do pai& o eleBador a desconuntar-se& a parar e ela um

pulo a pKs untos para ora e um pulo para dentro estremecendo o

prKdio& a gente a Nngir ue achaBa piada e por dentro da piada uma

garra ue ignorBamos ter a sair da manga& terrRBel& peluda&

podRamos desculpa ao ginecologista

- $o K minha aNan@o-lhe ue no K minha

e a garra a echar-se no pesco@o da Nlha e a suocar as tran@as&

duas órbitas untaBam-se atK ue uma só órbita aguada& os bra@os

patas de rango ue pendiam e acabaram-se os botFes e o prKdio a

oscilar& chegando ao uarto piso a bailarina desenrolaBa um bra@o de

 Binte ardas& espiralaBa sobre si mesma

Qa cara ora perNl ora rente& ora perNl ora rente& ora perNl ora

renteS

e transportaBa o cadBer mais o saco das compras& o homem

sobre a cama a habituar-se U morte sem repetir o nome da doente&dando ideia ue a BV-la por um Wngulo de plpebras& o mesmo com

ue eCaminaBa as accias em *intra ou aperei@oaBa a risca antes de

se ir embora& a enermeira um pulYBer h alguns $atais& por sinal

menos eio ue eu temia& antecipando-se ao meu embara@o

- X para usares aui

enuanto eu pensaBa no relógio do primo paralisado nas seis

horas da tarde& em chegando a minha altura os ponteiros nem uma

aten@o ho-de ter& para mais estes relógios modernos ue no sedetVm nunca& na Kpoca dos meus pais haBia um na sala a ue era

preciso dar corda com uma chaBe de despenseiro ue se enganchaBa

num anol nas traseiras da caiCa& um mecanismo de cora@o precrio

atrasando-se constantemente um ou dois passos em rela@o U Bida&

tudo se antecipaBa a ele& almo@os& galos& crepJsculos& a minha ome

anunciando

- Meio-dia

e o relógio num troteito de gordo& com o pVndulo a oscilar

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ndegas culpadas

- Meio-dia menos de no consigo perdoa

o meu pai aperei@oou parausos com uma turuVs& comparou

com o pulso& aperei@oou mais& desistiu

- Ele bem ueria e no pode o ineli

de orma ue aui estamos nós minha senhora ue seca& eu

numa cadeira de bra@os deste lado da secretria& BocV numa cadeira

sem bra@os& mais peuena& do outro& na ual h ocasiFes em ue me

apetece sentar para alar comigo& o eu preocupado

Que monótono o eu preocupado& a tristea& a insóniaS

dirigindo-se ao eu indierente ue mal o escuta& Nnge escut-lo&

no o escuta de acto& acena a cabe@a a pensar noutra coisa

- $o me dies adeus >eatri=

arruma papKis& torna a arrum-los& muda um bloco de receitas

Qo da casa e da espiral de umoS

 BeriNca uma alha da parede na desiluso de um cabelo branco

inesperado

QatK os hospitais enBelhecem& as casuarinas da entrada

grisalhasSa chicotada de um pombo na parede ue o assusta& lhe recorda

outros medos& outras chicotadas no de asas nem de penas& mais

undas

Qto undasS

ue gostaBa de contar& no K capa de contar e o eu indierente

a seguir-nos U medida ue caminhamos& BocV e eu porue eu

consigo& a cair e todaBia consigo& em *intra& em %aBira& na ;ra@a

Qem %aBira no& em %aBira encontrBamo-nos na praia uandochegBamos ao toldo e a minha Nlha mais Belha a tentar roubar-me a

muina

- $o me apanhaS

tu dois toldos adiante com o teu naperon de crochet ue no

terminaBa nunca& a agulha prosseguia e o naperon igual

Qcomo K possRBel ue o naperon igual=S

sem me Beres

Qsei agora ue sem me Beres realmente& era o empregado do teu

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pai uem Bias a aastar-se de ti& a aastar-te

- Menina

com receio da tua amRlia& da esposa dele& do co ue ladraBa

sem se aproCimar e todaBia mais pertoS

nós na hospedaria da ;ra@a no untos& separados

Qda mesma orma ue em *intra no untos& separados para o

caso de algum colega de emprego& algum parenteS

e a enermeira

- Por ue motiBo no haBemos de ir um com o outro para casa

no tens orgulho em mim=

eu U tua espera no uarto& a cama& as estampas& o cabide& a

pensar Qno bem pensar mas K diRcil dier de outro modoS ue a

minha obriga@o era Boltar ao sanatório& procurar-te& casar contigo

em lugar desta trepadeira na anela& da minha Nlha mais noBa ue

no me responde& da minha Nlha mais Belha a embalar o crian@o& nós

dois no >eato compreendes e talBe um comboio de #ran@a& o meu

pai a acender um cigarro no ponto

- %rambolho

e apesar do- %rambolho

eu bem disposto& a enermeira a or@ar-me a olh-la

- Ests doente=

eu no nos arredores de Lisboa entre bambus Qe o pierrot a

entender-me acho eu

no K uma uesto de achar& percebia-se na cara ue a

entender-me

- Obrigado pierrotSeu no nos arredores de Lisboa nem deste lado da secretria no

gabinete do hospital a acrescentar um limoeiro U casinha do bloco&

eu na hospedaria da ;ra@a onde num uarto próCimo um rapa

choraBa& onde um reguVs no corredor& onde uma criatura maior ue

eu& de cabeleira posti@a& passa por mim com uma carteira de Berni

- <elhote

onde tu agora ao meu lado& sem medalho& sem luto& doente de

7 anos& seCo (& idade aparente coincidindo com a real& lJcida&

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orientada no tempo e no espa@o& personalidade reticente& contacto

reserBado& eu sem responder U enermeira

- Ests doente=

dado ue inJtil responder& no estou doente& no saR daui pois

no& um dia destes diBorcio-me& trago a mala& Nco

Qe no me diBorcio& no trago a mala& no NcoS

eu sem responder U enermeira Bisto ue o cora@o& os diabetes&

uma artKria do cKrebro& o mKdico para a minha mulher

- As artKrias do cKrebro

me impediam de alar& isto K

Qembora no estea bem certoS

 ulgo ue disse o teu nome

Qnunca diia o teu nomeS

e com o nome a madrinha& uma tia& o passeio a Lamego deriBado

a uma promessa& tu enoada na camioneta& com medo de morrer& a

rear enuanto no sei o uV dentro de ti erBia& torcia-se& aldeias

tortas no caminho& campanrios tortos& carro@as tortas& bicicletas

tortas unto a uma armcia tortRssima& no só a paisagem torta& as

cores mal pintadas ultrapassando os obectos& no o medo de morrer&a certea de morrer& a cara da tua tia

- $o desmaies

U medida ue escorregaBas no no banco& no interior de ti

mesma& eu de noBo o teu nome& a enermeira ue no lograBa ouBir

- $o me chamo assim

aNan@o ue tentei ouBir e no lograBa ouBir conorme tentei

ouBir a empregada da consulta

- *enhor doutorlocaliar a sua Bo entre tantas Boes na hospedaria da ;ra@a&

os clientes& o gordo& uma criatura de roupo& a empregada da

consulta

- %em seis pessoas U espera

a abeirar-se de mim

- H aar senhor doutor=

uase a sacudir-me o ombro& a tocar-me nas costas e eu de

bru@os no soalho a ser capa do teu nome& talBe ue nenhum som e

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no entanto o teu nome& proBaBelmente no completei o teu nome

Q- +ompletei o teu nome=S

o teu nome ou o nome da minha Nlha mais noBa& a ue receaBa

os palha@os& a ue me apertaBa os dedos cinco& sete& de Bees e a

uem eu apertaBa os dedos cinco& sete& de Bees e contudo os teus

dedos

- *enhor

endireitando o medalho no Bestido de luto a conBersar com o

mKdico de tristeas& insónias

Qa doente reere ue tristeas& insóniasS

e no importaBa ue eu tiBesse alecido& chamassem o meu

genro

Qa minha Nlha mais noBa

- O palerma do meu cunhadoS

para ue a minha amRlia ulgasse ue morri com os colegas do

emprego

Q- Esto artas de saber como ele K eCagerou no Binho no

respeitou a dietaS

no importaBa ue eu no ardim +onstantino ou na capela entreTores

Qbalsaminas=S

no importaBa porue a gente em *intra

Qa enermeira

- E tu a dares-lhe com *intraS

a gente em *intra na primaBera onde as copas

QdJias de copas deitando sobre um muroS

nos protegiam& nos escondiam dos outros& nós uase de modada

Qde mo dada& pela primeira Be de mo dadaS

nós de mo dada nas tintas para o ue pudessem dier& dois

 Belhos de mo dada como nos casamentos Berdadeiros caminhando

ainhaga acima num turbilho de accias.

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QUARTA CONSULTA 

"e manh encontrei o meu marido sentado U mesa da coinha

diante da torrada intacta& no Bestido& descal@o& de piama& com uma

nódoa de barba mais grisalha ue eu supunha amarrotando as

bochechas e os olhos& grisalhos tambKm& na anela& no obserBando

nada& apenas pegados ao Bidro despeda@ando o prKdio em rente

numa espKcie de raiBa& perguntei-lhe se estaBa com gripe

- Ests com gripe=

e respondeu-me com o dedo ue no enuanto ia arrancando

aos Biinhos& num ódio minucioso& algeroes& Barandas& perguntei-lhe

se ia aer a consulta do hospital e ele calado& mais um algero& uma

 Baranda& no óculo da muina de laBar camisas suas Us Boltas&

percebia-se ue palpaBa um dente porue a cara toda do ladoesuerdo concentrada no ueiCo& percebia-se ue continuaBa a

eCamin-lo uma Be ue as sobrancelhas

Quma direita e a outra oblRuaS

apontadas Us gengiBas U medida ue desenhaBa& na pgina de

caderno em ue eu escreBia as instru@Fes U empregada& uma casa

com circuloitos de umo a saRrem da chaminK e uma mulher

abra@ada a uma rBore& anulou a rBore& a mulher e principiou o mar&

 Bagainhas& baruinhos& duas barracas de praia com listras& naprimeira barraca aranhi@os de criaturas disputando um aparelho

otogrNco& na segunda barraca um Jnico aranhi@o numa cadeira de

lona com um naperon de crochet num sauito& o meu marido

interrompeu-se para leBar as sobrancelhas ao dente& de olhos a

regressarem ao lugar distraRdos do prKdio enuanto ia engolindo a

lagartiCa do mindinho ue se remeCia a desolhar molares& uis

aBis-lo

- <ais Ncar sem mindinho e depois=

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mas as camisas estacaram no óculo da muina& soprando

espuma& a alarem por ele& engra@ado como este apartamento

conBersa& a cantoneira ue pertenceu ao meu aBY& por eCemplo& a

enternecer-se comigo

- Minha cadela negra

a ulgar ue continuamos nos A@ores obserBando as ondas a

seguir aos antJrios& tinha a <irgem do PerpKtuo *ocorro U cabeceira

numa esuadria de pano

- Minha cadela negra

o meu aBY sem me aagar& me beiar

Qno aagaBa nem beiaBa ninguKmS

chorou uando me Bim embora& nunca sonho com ele& sonho

com os antJrios& os antJrios

- epara nas ondas a seguir a nós

isto nas alturas em ue menos me conBKm& eu longe de <ila

#ranca do +ampo& da ilha& esuecida das gaiolas dos pssaros& dos

morangueiros pasmados& das gardKnias e Bai na Bolta os sinos ue

nos mandam rear& eu em Lisboa na rua& no emprego e pumba& o

aruipKlago& me sucedeu inclusiBe na cama com o meu marido eento seco-me de propósito enchendo a garganta de calhaus e areia&

torno-me cardos& rodeio-me U pressa de uma coroa de escarpas

- $o ulguem ue me comoBo diante de ninguKm

e embora eu aBise um perumeinho de charuto& depois do

perumeinho de charuto

- Minha cadela negra

e antJrios e ondas& o meu marido a suspender-se& de pesco@o

empinado- $o sentes o cheiro=

a mo para c e para l& sem dar com o interruptor& na ideia de

acender a lu para BV-lo& perguntar ao cheiro o ue uer& eu com

medo ue me pe@a eCplica@Fes dos antJrios

- Onde arranaste essas Tores=

e elimente antJrios nenhuns nem charuto nem ondas& +arcaBe-

los& a minha cadela negra no com de& com trinta e cinco anos e

ancas ue Bo desistindo de modo ue por este andar daui a uns

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tempos no uma cadela& uma coisa& o meu irmo padre no +anad a

echar o sacrrio sumindo a chaBe na batina& a minha irm ;oretti no

LuCemburgo onde choBe o ano inteiro sem alciFes nem milhares&

deBe restar uma cinaita de tabaco na ilha deserta incapa de

- Minha cadela negra

a desaer-se na terra& eu apesar dos meus pais to soinha

aui& no K bem o meu aBY ue me alta& nem seuer me despedi dele

Qpara uV se tinha um retrato meu pegado U <irgem do PerpKtuo

*ocorro=S

so assuntos ue eu c sei e Bou guardando Us escondidas& a

lagoa K claro& posso mencionar a lagoa& o resto no ue me

transormo em cardo& ao meu marido oi a primeira esposa& acho eu&

ue lhe secou a alma& acompanhei U consulta a minha me ue

pingaBa suspiros no ogo& arrastaBa nos tapetes tristeas& insónias e

o mKdico do outro lado da secretria& numa cadeira de bra@os maior

ue as nossas sem bra@os& a escapar-se para os caiCilhos do gabinete

onde uma ambulWncia ou um internado ue descascaBa laranas& a

certa altura escapou-se na minha direc@o de olhos pegados a mim e

eu nua& por sorte a minha me ocupada a retirar o len@o da carteiraa Nm de enCugar tristeas ue se aloaBam em narinas sucessiBas

Qcontei cincoS

após a Jltima narina o mKdico trocou-me pela minha me de

orma ue apanhei a roupa da secretria

Qsem contar uma palaBra desliou para o choS

e multipliuei logo os botFes e os echos& antes de assinar a

receita os olhos dele a insistirem mas segurei a blusa a mos ambas&

a impresso ue desta eita a minha me entendeu& eCibiu o meuretrato em crian@a entre o bilhete de identidade e o carto do metro&

as narinas diminuRram

Qsó duasS

e o len@o por ali perdido sem consolar ninguKm& a mo do

mKdico na minha garganta a preteCto da medalhinha da <irgem do

PerpKtuo *ocorro ue se aproCimou para Ber& a outra mo na minha

mo

Qpor sinal morta no oelhoS

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ao Birar a medalha ao contrrio

- E deste lado=

deste lado a pombinha do EspRrito *anto e a marca dos meus

dentes& o meu aBY a oerecer-me a medalha

- Minha cadela negra

a cadela negra submissa dado ue o polegar na minha palma

para diante e para trs& o mKdico& sem secretria& um homeninho

ualuer& eu a tranuiliar o meu aBY por se me aNgurar ue o

charuto indignado comigo& os antJrios indignados& uma onda no

ilhKu indignada igualmente

- X um homeninho ualuer

no retrato ue a minha me eCibiu a medalhinha enorme&

reparando melhor uase se nota o mar& a minha irm ;oretti cua

otograNa a minha me traia debaiCo da minha por Bergonha dos

óculos com uma lente tapada& as pessoas curiosas da lente e a minha

me a agoniar de embara@o

- O estrabismo

a minha irm ;oretti angada com a <irgem deriBado ao deeito&

perdeu a medalha dela no LuCemburgo& na otograNa uma ramada deginas bicadas pelos pssaros e durante o antar

Qo primeiro antarS

o mKdico brusco tambKm a bicar-me a orelha& aleiou-me no

brinco`em em amRlia. reBistas de insónias e tristeas e uma

embalagem de iogurte com a colher espetada& anos e anos de óculos

com a lente coberta no corrigiram estrabismo nenhum& o meu aBY

para mim

- Minha cadela negrae para ela

- +egueta

Qlembraste-te do aBY e deitaste a medalha ora ;oretti& no a

perdeste pois no=S

a noite inteira no apartamento do mKdico a pensar no

estrabismo& a pensar no iogurte& o meu aBY a designar-me as ondas

- O +anad por ali

um sRtio de ue chegaBam primos no $atal com nomes absurdos

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a alarem inglVs& bonecas de toilettes mais caras ue a minha

gagueando solu@os estrangeiros e das uais por no as perceber no

podia ser me& no lhes pegaBa ao colo no receio ue ordenassem

"eslarga-me

o mKdico adormeceu primeiro e eu a massaar a orelha& acabei

por me leBantar& Bir U sala& comer o resto do iogurte a assistir aos

aróis na auto-estrada segura ue a <irgem do PerpKtuo *ocorro&

com uma aurKola de estrelinhas& a decepcionar-se comigo& o meu

irmo padre aastou as reBistas para se instalar no cadeiro

- Pecado

o apartamento assim no escuro ruRnas& h dois anos nos A@ores

uis mostrar a casa ao meu marido e ruRnas& o uintal ruRnas& um

mar Belho& sem gra@a& ulguei ue uma das bonecas canadianas Us

gargalhadas na erBa e aNnal o Bento num cano& uase o som dos

aróis na auto-estrada isto K um assobioinho e adeus& a cadela negra

trotando daui para ali U procura na ilha& o meu aBY guardaBa os

charutos no arro& nas bolachas& na copa do mKdico apenas um ter@o

de um pacote de caK& echado com uma mola de roupa& um dos

primos tentou encontrar-me no interior da sala e ugi& o mKdicoapertou-me os bra@os e nódoas brancas de dedos

- 9uantos homens antes de mim& conta l=

o ,rbano de ue nunca mais me lembrei

Qnunca mais me lembrei=S

passou por mim sem me Ber e sem ue o mKdico o Bisse& eu a

mentir

- $enhum

o ,rbano a Nngir ue no me conhecia e por conseguintenenhum& a minha irm ;oretti tiraBa os óculos e sem óculos uma

intrusa& Beio de onde& como se chama& porue K ue mora connosco

- 9uem Ks tu=

colocaBa os óculos& o olho desBiado sumia-se na pala e a minha

irm de noBo& só se relacionaBa com a metade direita do mundo pelos

 Bistos auela em ue o ,rbano eCistia dado ue os achei uma tarde

onde os alciFes punham oBos e de inRcio no era a ;oretti& era a

intrusa sem óculos& ue asneira tV-los posto& se os no tiBesses posto

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no me angaBa contigo& a minha me a enrugar-se

- $o se alam BocVs=

o ,rbano a eCplicar aos meus pais ue um emprego no

LuCemburgo e eu na despensa a escut-los& abri a torneira com or@a

e as bocas nem pio

Q- $o so noiBos ue a torneira no deiCaS

apesar da torneira a igrea& a palma do meu aBY na minha nuca

- Xs a minha cadela negra no ligues

e por no ligar estiBe o casamento inteiro calada& no sei se com

o ,rbano a minha irm ou a intrusa porue os óculos somente para

cortar o bolo& atK a Bo mudaBa ao despir-se das lentes& gestos ue

gastaBam tempo a aceitar com as coisas e ao acertar demorando a

aprender-lhes o uso& por no poder garantir se era a minha irm ue

ia morar no LuCemburgo no ui ao aBio despedir-me& o ,rbano a

entrar no tCi

- *omos cunhados no K=

o charuto do meu aBY aumentou de sJbito& arrependeu-se&

encolheu& reparei ue a ponta toda mordida& os lbios amarelos&

restos de tabaco no ueiCo& seu eu osse homem- "eiCe-me morder o charuto um bocadinho aBY

e U alta de charuto permaneci nos antJrios atK contar trinta

ondas& uebrei os oBos dos alciFes com uma pedra& um pescador

numa arriba& sessenta e sete ondas

no& setenta e a ideia ue o pescador me Bia& a urgoneta

abandonada com uma espKcie de algodo a sair dos estoos no lugar

em ue o ,rbano e eu& oereceu-me a carrapeta da alaBanca das

mudan@as e eu comoBida com a prenda- Obrigada

tinha-a na gaBeta untamente com Ntas de cabelo& bJios&

postais& nos bJios um halitoinho salgado& Us cento e cinuenta ou

Us duentas ondas Bertiginosas gaBeta inteira no caiCote dos sobeos&

a carrapeta de esuema das Belocidades graBado tombou primeiro no

undo

- Adeus ,rbano

se no tiBessem roubado os pneus U urgoneta cortaBa-os com

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um prego e U alta de pneus risuei-lhe mais a pintura& ainda hoe se

topo uma urgoneta arrependo-me de no traer pregos na mala& a

minha irm ;oretti dois Nlhos& eu nada

Q 9uantos homens antes de mim conta l=S

isto na manh de sbado no apartamento do mKdico& no aróis

na auto-estrada& carros autVnticos

Qnenhuma urgonetaS

a caminho da praia& ao erguer os estores uma desarruma@o

maior& a embalagem de iogurte deBido ao sol espeBit-la

- >om dia

as pernas do mKdico ue no imaginaBa to magras& gestos

iguais aos da minha irm sem óculos eCperimentando& tacteando&

embaciados de sono& pKs sem orma de pKs ue aprendiam a andar e

ento dedos& unhas& canelas& ele a transormar-se em pessoa& pensei

- OCal o roupo no se abra

no interior do roupo o ue no me apetecia encontrar& a

urgoneta sem pneus no meio dos carros& ela ue nunca se moBeu

nos A@ores& com o ,rbano ao Bolante a caminho da praia& o ilhKu Beio

e oi-se& oitocentas e doe ondas& nemhum oBo de alcio intacto& ocaBalo coCo

Qo Jnico de <ila #rancaS

do Biinho ue morou na AmKrica e punha a bandeira deles U

entrada da casa leBantaBa o ocinho da aBeia obserBando-me& eu a

desculpar-me logo

- $o N nada

Qno tiBe coragem de uebrar os óculos da minha irm ;oretti

porue a <irgem do PerpKtuo *ocorro- Aten@o ao inernoS

o mKdico sem uma palaBra de ol em busca de comida nos

armrios no meio de chBenas& copos& um tubo com um desenho de

um insecto no rótulo

Qmanter ora do alcance das crian@asS

em ue se apertaBa a tampa& saRa um uminho e os mosuitos

grelhados& eu uase com pena dele

- *erBimo-nos de um bocado de uminho senhor doutor=

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- Eu em Lisboa esto doidos=

de modo ue ele antJrios agora& uma recorda@o de charuto ue

me acompanha um momento& uase uma palma na minha nuca& tento

prendV-la e esBai-se& um apartamento maior em +arcaBelos isto K

ondas mas no alciFes& no oBos& cuidei ue o ilhKu e gra@as a "eus

no ilhKu& um arol& ue alRBio& um castelito com uma luinha

encarnada a tilintar U noite& o meu marido para o gerente da

imobiliria ao mesmo tempo ue os nossos passos enormes nos

compartimentos Baios ue os móBeis encolheram e acabaram os

ecos

- $o uero um andar muito alto

e logo ue

- $o uero um andar muito alto

o meu marido para mim

- $o insistas em tratar-me por senhor doutor ue mania

U medida ue perguntaBa ao gerente

Qe a testa do gerente a preguear-se de pasmoS

se no prKdio uma rapariga ue Bia pessoas caRrem do tecto&

rentinho ao lustre& e se chamaBa >eatri- "Kcimo segundo dKcimo primeiro dKcimo

um oriRcio nas tbuas atK ao centro do mundo& estiBe o meu

casamento inteiro na esperan@a ue o meu aBY

- Xs a minha cadela negra no ligues

e uando muito um arrepio de goiBos na igrea em lugar dos

antJrios& um milhare

Qou um seraNm=S

 Bogando no retbulo de um altar lateral embrulhado numroupo como deBe ser ue no se abria nunca& no sei se oi o

mKdico ou o ,rbano a colocar-me a alian@a& as mos do ,rbano

desabotoando-me num instante

Qoitocentas e uarenta e noBe ondasS

sem repuCarem o brinco& BeriNuei melhor e o mKdico no lugar

do ,rbano

Q- 9uantos homens antes de mim=

- $enhum

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a <irgem do PerpKtuo *ocorro h-de perdoar ulgo euS

empurrando-me o anel pelo dedo& o paBor ue o roupo a imitar um

ato se desla@asse e no desla@ou elimente& no Biamos numa

urgoneta sem Bidros a partir de uma escarpa e mil e cinco ondas&

um Bentinho de chuBa a desorientar as grainas& eu no no banco de

trs a compor-me& ao lado do senhor doutor com os antJrios

Qcom os goiBos no colo chamando-lhe antJrios em segredoS

- AntJrios

no apartamento de +arcaBelos o arol daBa ares do ilhKu& l

estaBam as Bacas de *o Miguel mugindo na humidade& o meu irmo

padre a abra@ar-me na sacristia& a cumprimentar o senhor doutor&

muito sKrio

- #elicidades

nunca sorriu a nenhum de nós& ia inundando a casa de gaiolas

de pssaros& dJias de gaiolas& a minha me diante daueles bichos

todos& atK uma codorni& atK poupas

- $o ser luCJria Nlho=

l estaBa o caminho para casa sempre oculto nas erBas& o meu

pai de colete a eCaminar sementes& eu para o meu marido- $o N de propósito saiu-me senhor doutor perdoa

o gerente da imobiliria a contemplar o tecto sem buracos U

medida ue rubricaBa papKis

- Este primeiro andar serBe=

e para mim serBia porue no se daBa pelo ilhKu& pelas ondas&

uando o senhor doutor

uando o meu marido no consultório os meus pais de Bisita& no

terminaBam de esregar as solas no capacho& cerimoniosos& a medo- $o ueremos incomodar no te incomodes no incomodamos

pois no=

contemplaBam com erBor um boneco de bata e estetoscópio ue

se empurraBa com o dedo e baloi@aBa a barriga num BaiBKm

importante& um comboio U distWncia ou uma corrente de ar

estimulaBam-lhe as opiniFes

- Engula inteiro no mastigue com meio pJcaro de leite morno a

seguir ao antar

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os meus pais daBa ideia ue percebiam o

- Meio pJcaro de leite morno a seguir ao antar

porue graBes& de acordo& o ,rbano doente no LuCemburgo&

uma coisa no Rgado& biópsias& dietas& na carta da minha irm ;oretti

uma gota no nome& outra gota na segunda pgina Bisto ue a rase

manchada

- EstaBas com sede ao escreBeres=

se no tomamos cuidado acontece& um pingo por descuido a

apagar as notRcias de modo ue no decirei a palaBra graBe nem a

parte em ue diia no garantem nada antes da opera@o& esses dois

bocados impossRBeis de ler& tentei uma por@o de Bees& cuidei ue

leBe

ue

traBe

Quem pensaria ue

graBe

no K=S

a desistir como ualuer um desistia& a linha da opera@o

Qno garantem nada antes da opera@oSproibida tambKm& claro ue rasguei a carta por Bia dos pingos&

respondi

cumprimentos ao ,rbano

acrescentei

continua@o de boa saJde K o ue Bos deseo

sem me passar pela cabe@a eBidentemente ue lgrimas& no

descobri motiBo para lgrimas& os dois com emprego& os dois bem& se

o senhor douse o meu marido e eu de Krias no LuCemburgo

Qno Bamos ao LuCemburgo& no me apanham no LuCemburgo

por nada desta Bida& ue raio de tretas eCistem no LuCemburgo ue

possam interessar-me=S

no se esue@am de nos Bisitar no hotel ue depois mando-lhes

a morada& saudades& abra@os& a partir da carta mal a pergunta

- 9uantos homens antes de mim=

declaro de consciVncia tranuila sem indignar a <irgem do

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PerpKtuo *ocorro

- $enhum

se o meu aBY desiludido comigo

- Minha cadela negra

nem oi@o& BocV morreu aBY& no K nada& a cina do seu charuto

ao "eus dar nos A@ores sem ninguKm se ralar& no me mace&

passeie atK U praia soinho se lhe der na gana

Qonda nJmero trVs mil uatrocentos e noBenta e trVsS

diBirta-se com os alciFes& uem uer saber de si& tire-me a pata

do ombro& tome o partido da ;oretti& ue dieren@a me a& ainda

outro da a minha me enCograda comigo

- %ens alguma coisa contra o meu pai tu=

isto na casa deles& um par de assoalhadas na ua da Palmeira

onde os Biinhos só pretos e a dona +idlia a unir com as artrites&

na minha no se atreBem por temor do boneco para a rente e para

trs ordenando

- Engula inteiro no mastigue com meio pJcaro de leite morno a

seguir ao antar

a minha me ue apanha os sentimentos na atmosera& ela sim acadela& no eu

- %ens alguma coisa contra o meu pai tu=

no tenho nada& aleceu& por mim unte os deuntos todos

senhora& os seus pais& os seus cunhados& a tropa andanga ue BocV

colecciona

Qlembro-me de um ue tocaBa na Nlarmónica& Agnelo ou Angelo&

casado com uma ruiBa toda a arder de sinaisS

regale-se com eles& impina-os Us Bisitas- Este K o Agnelo casado com a Laurinda toda a arder de sinais

empanine-se de recorda@Fes& no os uero& o meu pai

incomodado

- #ilha

eu ue no suportaBa a ideia do ,rbano doente e eles

mesureiros com o meu marido& cheios de bicos de pKs& de noBe horas

Q- $o uero o seu pai me no os uero a BocVsS

gratos pelo meu casamento& a tralha ue Bisto& o dinheiro& no

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sonhando& os pobres& ue se o roupo se desla@a um pssaro a bicar

e eu de cara na parede a pensar nos antJrios& deiCem-me os antJrios

a mim ue no preciso de mais& eCperimentei-os num Baso mas

reguei-os sem lgrimas ou do-se mal com o clima& saudosos das

escarpas& come@aBa por arrancar olhas& esta olha& essa olha& U

or@a de arrancar olhas depenaBa tudo& destruRa caules& raRes&

 Bontade de os enrolar num trapo& entreg-los na ua da Palmeira&

tomem& Nuem tambKm com os antJrios ue eu Bou-me consolando a

mirar o arol& U noite iluminaBam a praia e eu cinco mil ondas esta

semana palaBra& daBam-me eito uns alciFes& uns milhares& umas

 Bacas unto ao mar a moerem sossego& a urgonetainha sem motor

com o recheio dos estoos U Bela& daBa-me eito o ,rbano mesmo com

o Rgado em iscas& no me perguntou uantos homens& no me

perguntaBa nada& U terceira Be a porta da urgoneta aberta& uma

chuBinha branda& eu soinha& se escreBesse nesse dia a alguKm& por

alta de cuidado& pingaBa gua na carta

Qa gente uando est com sede distrai-seS

ainda a semana passada o meu marido com medo dos buracos

no soalho- E nos A@ores conta l=

e nos A@ores eu U espera& o meu aBY

Q- %ome o seu pai me leBe este empecilho dauiS

oi a Jnica criatura ue Beio& no dei por ele ao longe& apanhei-

lhe a cabe@a& com dó de mim& na porta aberta& a chuBa presa nas

sobrancelhas antes de tombar no nari

Q- EscreBeu uma carta como a gente aBY=S

o charuto ue rodaBa nos dentes& eu minJscula contra o Bolantecom gotas de gua na blusa e ele apesar de eu minJscula a segurar-

me o bra@o& no aleiando-me& manso

- Anda comigo atK ao mar cadela negra no Bale a pena Ncares

o mar da cor do umo do charuto& das gotas de gua na blusa&

no sei como dier-te mana mas o caminho& embora no inclinado&

to diRcil de andar& o meu aBY

Q- Pegue l o seu pai meS

a audar-me& percebia-lhe a aten@o& o cuidado e irritaBam-me a

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aten@o& o cuidado& os olhos dele gotas igualmente mas presumo ue

tabaco& nunca mostrou ternura comigo& me agarrou& deu um beio& se

eu alaBa distraRa-se& no meio da distrac@o

- +adela negra pateta

e se calhar

- +adela negra pateta

o beio ue ele imaginaBa dar-me& pegue l o seu pai me&

misture-o com o Agnelo

QAgnelo ou ngelo=S

desampare-me dele& uantos milhares de ondas& deenas de

milhares de ondas& centenas& e no chegam para me proteger dos

alciFes U minha roda aos gritos& a ;oretti e o ,rbano tiBeram dois

Nlhos parece-me

Qno parece-me& sei& a <irgem do PerpKtuo *ocorro ue no

brincaBa em serBi@o& implacBel

- A mentira K pecado mortalS

dois Nlhos& come@aram o primeiro na urgoneta ue me

pertencia Qdois Nlhos& eu nenhum& o mais Belho de óculos com uma

pala igualmente& a Jnica órbita& aumentada pelas dioptrias& em mim&a casa em <ila #ranca ruRnas& os canteiros ruRnas& a hortainha

ruRnas& mesmo as nuBens de *o Miguel no inteiras& ragmentos&

peda@os& tentei unt-las e nadaS

era minha porue oi ali ue o meu sangue& o meu corpo

diBidido a echar-se de noBo& pensei ue os meus pais notassem

Qeu notaBa& no acredito ue Ponta "elgada em peso no

notasseS e os meus pais no notaram& eu a uerer mostrar-lhes

uriosa com eles- Esto parBos=

o meu aBY notaBa e silVncio& o charuto a apontar-me em silVncio&

no interior do meu embara@o uma espKcie de orgulho Qoutro pecado

mortalS ue me enerBaBa no Berem& eu a desaN-los

- 9ue saloios no Berem

no Berem o nadinha de sangue nos estoos ue limpei com um

trapo& eu com deassete anos e mulher& atentem em mim ue eu

mulher& ual o motiBo de o charuto em silVncio

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- $o me di nada aBY=

e o charuto a apagar-se& o charuto apagado& os olhos dele

apagados& os dentes no uriosos& amargos& ue mordiam& mordiam&

a minha irm ;oretti a surgir com a traBessa& o mesmo desaNo nela

Que coincidVnciaS

- Esto parBos=

a mesma orma de andar de pessoa importante e os dentes& mais

rpidos& continuando a morder& o meu aBY para o ,rbano

- *ome-te da minha rente malBado

no um grito& um cochicho

- MalBado

e durante uma hora os dentes ue tremiam& o bigode a respirar

perdigotos

Qo meu aBY uma ocaS

a minha me a encar-lo e o bigode

- $o K nada

os dedos ue tremiam U procura do relógio no bolso em ue no

haBia relógio& para a minha me nem um pio& para mim a mo uase

na minha nuca e mo alguma& um soslaio aos antJrios& um soslaio aoilhKu& o bigode de regresso ao ilhKu

- +adela negra pateta

dois Nlhos no LuCemburgo& eu nenhum& o mais Belho de óculos

com uma pala igualmente& a Jnica órbita& aumentada pelas dioptrias&

em mim& a casa de <ila #ranca ruRnas& os canteiros ruRnas& a

hortaita ruRnas& mesmo as nuBens de *o Miguel no inteiras&

peda@os& tentei unt-las e nada& o cKu desmantelado

- ECiste alguKm por aR ue me componha este cKu=metade da carripana mas sem bancos& Bolante& umas erBas&

umas corolas peludas no lugar do motor& eu para o meu marido

- $enhum homem antes de ti descansa

e no mentia garanto& neste momento mais de Binte e duas mil

ondas desde ue comecei a contar& as ondas de *o Miguel e as de

;arcaBelos a seguir U Baranda& na muina de laBar as camisas U

roda em cotoBeladas de adeus ogando espuma no óculo& cada camisa

dJias de mangas& o meu marido um polBo& alguns bra@os num Bagar

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de aurio aleiando-me o brinco& tudo o ue em mim no era brinco

conundido com os naBios no penedo do arol e uase os A@ores& *o

Miguel& o sRtio onde com o meu aBY o mar& o meu pai a chegar de

motoriada& a minha irm ;oretti a perguntar-me do espelho onde se

arremelgaBa de banda

- Est menos torcido o olho no est=

e talBe no torcido& mais acima ue o outro& as metades da cara

ue no sei uem separou austadas U pressa& o meu aBY no

- +adela negra

se necessitaBa de cham-la

- Menina

a cadela negra era eu ue trotaBa a arear& me suaBa de terra&

sentaBa nos degraus sem atender aos meus pais& audaBa o meu

irmo padre

Qoo oo oo oo ooS

a mudar as tacinhas de barro nas gaiolas& a Berter a comida de

um cartuchinho de sementes ue no sabiam a nada tal como o

casamento no sabia a nada isto K conBersaBa com a empregada&

ma@aBa-me& U primeira corrente de ar ou guinada do estore o bonecoineBitBel& pomposo& a badalar a barriga

- Meio pJcaro de leite morno a seguir ao antar

demorando a calar-se& sempre ue passaBa por ele a empregada

estendia o dedinho e a bata de imediato

- Engula inteiro no mastigue

nas suas BKnias enKrgicas& uma mude eCcessiBa na mobRlia& nos

uadros& ue o assobio do eleBador ao interromper-se aumentaBa& o

teleone agachado pronto a um salto de campainha e campainhaalguma& uma espessura de obecto& marcaBa o nJmero das horas

para me sentir acompanhada e uma mulher monótona a cortar o

tempo em segundos& o meu marido desconNado Bigiando o soalho

- 9uem era=

comigo a hesitar entre o senhor doutor e o tu& ele sem acreditar

ue era o tempo cortado em segundos& a opera@o no LuCemburgo os

 BentrRculos ue alharam& cogulos& muinas a substituRrem a gente&

um tracinho horiontal no mostrador do aparelho e ao ler isto o ue

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sobraBa da urgoneta& ue alguKm empurrou da escarpa& a desaer-

se na praia& a perder chapas& a auietar-se aguardando a enchente e

por conseuVncia o ,rbano morto embora essa palaBra com um

pingo em cima dado ue a minha irm no se preocupaBa com as

garraas& pingos tambKm ao mencionar o uneral no estrangeiro e

portanto se calhar no cogulos& no uneral& no LuCemburgo&

percebi tudo ao contrrio& enganei-me& o ,rbano com ela& o charuto

do meu aBY ue rodaBa nos dentes

- $o Bale a pena aTigires-te

só no entendia por ue motiBo a urgoneta na praia a Bogar

com as marKs& girou sobre si mesma& pareceu regressar e antes de

aundar-se um alcio pesou nela um momento& em <ila #ranca o mar

no deBolBe aogados& em crian@a apanhei uns murmJrios acerca de

uma parente da minha me e de uma boina na areia mas ao animar a

conBersa a <irgem do PerpKtuo *ocorro preBeniu-os e os murmJrios

cessaram& oguei a carta no balde porue um eCagero& um engano&

oi o olho da minha irm ;oretti sem ue ela desse K

Qgosto tanto de antJriosS

ue alterou as palaBrasQhei-de pedir U minha me ue me aude com os BasosS

o comboio do Estoril uase sem ruRdo& o sobrinho da BiJBa

Qdona ;lóriaS

umaBa Us escondidas na arrecada@o do prKdio& as rBores

desassossegadas como em toda a parte

Qual a rao=S

com a chegada da noite

Qpenso ue tVm medo conorme& apesar de neg-lo& tenho medodo escuroS

o meu marido

Qno disse senhor doutorS

a largar as chaBes na mesinha de laca sem aten@o ao Berni& o

desassossego das rBores na Bo dele& um agitar de olhas& a mesma

angJstia nos ramos

- $o conheces %aBira=

ou sea um uartel& uma ponte romana e uma praia onde nunca

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estiBemos

QBi num desdobrBel de turismo& num carta parece-meS

o meu marido mais idoso& mais curBo& com um ato antiuado

ue o meu aBY usaria

Q- Minha cadela negraS

eu na iluso ue as marKs trariam a urgoneta dos A@ores a

+arcaBelos

Qao menos um pra-choues& o manipulo& o pedal da

embraiagemS e nada salBo algas& alcatro& uma alorreca ue tomei

por um antJrio& um seiCoRnho rosado& se eu

- ,rbano

um brilhoito de areia& nada salBo o meu pai a Boltar do trabalho

e a minha irm ;oretti na cancela& audaBa a minha me com os

coelhos& uma pancada e pronto& um pingo

Qno de gua& BermelhoS

nos ocinhos lilases& o meu aBY para uma sombra ue ugia

- "eBia matar-te malBado

e a sombra campo ora

Qse me proBassem ue era o ,rbano no acreditaBaSa desaparecer no pomar& desde ue o meu aBY uma luita de

isueiro ao acaso na ilha no h uma pessoa ue se preocupe com a

cadela negra& se interesse& a cadela& igual U cina& de ocinho rente

ao cho por aR nos antJrios& buscando& sem dar com ele& um Noito

de cheiro& uma presen@a& uma Bo uando a Jnica Bo ue chegaBa

era a do boneco de loi@a

- Engula inteiro no mastigue com meio pJcaro de leite morno a

seguir ao antarno o meu aBY& no o ,rbano& no a <irgem do PerpKtuo *ocorro

- Pecado pecado

o pateta do mKdico meneando a barriga a insistir

- Leite morno

no o meu irmo padre ue introduia alace nas gaiolas de

regresso da areia. um milhare a NCar-me na amendoeira do notrio&

tudo perdido& disperso& a cadela negra& coitada& reugiando-se num

muro

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- Adeus cadela negra acabou-se

a cauda um segundo e depois da cauda ero e Bai daR& na

 Baranda& em lugar de +arcaBelos e da lanterna do arol ue se

repetia no mar um rectWngulo de rBores& prKdios antigos& o senhor

doutor

Qno o meu marido& o senhor doutorS

a indicar-me a Baranda

- O ardim +onstantino

pensei ue

- Engulia sem mastigar com meio pJcaro

e no& o senhor doutor

- O ardim +onstantino

isto K uma tabacaria& um armaKm& um mendigo aos sobeos e l

dentro uma camilha& um piano& uma terrina na sombra& o meu irmo

padre& o Jnico ue me sobraBa& a eCpulsar-me das gaiolas

- $o preciso de auda

onde os pssaros andam de poleiro em poleiro& esses bichos de

eltro a ue se d corda e um trinado sem alma

Qumas palhetas ue eu BiSinterrompendo-se de sJbito& os pssaros espantados

Q- #ui eu ue cantei=S

no carecem de alace nem de sementes& imóBeis como eu

imóBel agora enuanto o meu marido

- O ardim +onstantino

telhados& sótos& mais telhados& mais sótos& gente

desconhecida na atitude dos deuntos nos retratos antigos& o senhor

doutor no outro lado da secretria numa cadeira de bra@os& a minhame e eu em cadeiras mais peuenas& sem bra@os& nos caiCilhos um

sueito ue descascaBa laranas& ambulWncias& um ediNcioito

#armcia

com um alpendre de ripas em ue uma planta de ue no sabia

o nome ia deitando gaBinhas& o meu marido da cadeira de bra@os& ou

antes da cadeira de bra@os& de uma cama com uma colcha sua

- A hospedaria da ;ra@a

cabides& rapaes de cabeleira posti@a& alguKm

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Que no era euS

a chorar& nem na tarde em ue a minha irm ;oretti casou um

pingo de gua& uma lgrima& sou um cardo& uma pedra& uma cadela

negra& no choro& dedos ue me aleiaBam

- 9uantos homens antes de mim conta l=

a <irgem do PerpKtuo *ocorro a eCaltar-se

- $o mintas

e Bisto ue o ,rbano aleceu no LuCemburgo eu sem medo de

ninguKm& sentada na cama ao lado do senhor doutor

- $enhum

talBe o primo estrangeiro ue tentou encontrar-me no interior

da saia e ugi& por lhe ter ugido nenhum& K o senhor doutor o

primeiro

Q- $o rode o charuto aBYS

a casa de <ila #ranca do +ampo ruRnas com uma nuBem eita de

propósito em cima& o uintal ruRnas& o mar ruRnas& ulguei ue uma

das bonecas canadianas Us gargalhadas na erBa e aNnal o Bento num

cano& o atrito das piteiras ue alongaBam a cerca& os sinos daBam as

horas e osse o mVs ue osse um noBembro longo nos sinos& o >eatono limite da cidade a embu@ar-se no rio& o meu marido

- O ponto

ou sea um corredor de cimento paralelo U margem& um ou dois

barcos& gasóleo& eu a ladrar para as ondas

Quarenta e sete mil ondasS

 Bilórias onde se percebiam cais de embarue& o ue supunha

uma brica& a cadela negra

Q- Minha cadela negraS- $o aes a consulta hoe=

e o meu marido

Qcontinua a sair-me senhor doutor Us BeesS

na mesa da coinha diante da torrada intacta& no Bestido& de

piama& com uma nódoa de barba mais grisalha ue eu pensaBa

amarrotando as bochechas e os olhos grisalhos amarrotados

tambKm& pegados U anela& adiante do corpo

Qo meu aBY

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- Minha cadela negra minha cadelinha negraS

despeda@ando o prKdio em rente numa espKcie de raiBa&

perguntei-lhe se estaBa com gripe

- Ests com gripe=

e respondeu-me com o dedo ue no enuanto ia arrancando

algeroes& Barandas& umas plantas em Basos

Qno antJrios& ainda bem ue no antJrios& haBer antJrios em

*o Miguel hoe em dia=S

perguntei-lhe se ia aer a consulta do hospital e ele mais um

algero& umas plantas& um Wngulo de empena& no óculo da muina

de laBar camisas suas as Boltas& percebia-se ue palpaBa um dente

porue a cara toda do lado esuerdo concentrada no ueiCo&

percebia-se ue continuaBa a eCaminar o dente uma Be ue as

sobrancelhas

Quma direita e a outra oblRuaS

apontadas Us gengiBas U medida ue desenhaBa& na pgina de

caderno em ue eu escreBia as instru@Fes U empregada& uma casa

com cRrculos de umo e uma mulher abra@ada a uma rBore& anulou a

rBore e a mulher com dJias de riscos e principiou o marQuantas ondas& digam-me uantas ondas ue lhe perdi a contaS

ou sea duas barracas de praia& numa das barracas aranhi@os de

criaturas disputando um aparelho otogrNco& na segunda barraca

um aranhi@o com um naperon de crochet num sauito& o meu marido

interrompendo-se para se concentrar no dente& de olhos a

regressarem ao lugar distraRdos do prKdio& o meu marido para mim

- Engula inteiro no mastigue com meio pJcaro de leite morno a

seguir ao antarno instante em ue as camisas se interromperam no óculo&

soprando espuma& a responderem por mim& engra@ado como apesar

dos anos o apartamento continua a alar& a cantoneira ue pertenceu

ao meu aBY& por eCemplo& a enternecer-se comigo

- Minha cadela negra.

como se continussemos nos A@ores espreitando o ilhKu de

modo ue disse ao senhor doutor

Qao meu maridoS

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- Anda c

eu ue nunca com o ,rbano

- Anda c

esperaBa na urgoneta onde o ,rbano e eu& com a carrapeta da

alaBanca das mudan@as na mo& sentia os grilos& as erBas& de uando

em uando uma lebre& esses suspiros da terra& eu para o meu marido

- $enhum homem aNan@o-te

para o meu marido

- uro pela <irgem do PerpKtuo *ocorro ue antes de ti nenhum

homem

audando-o a esuecer %aBira& a hospedaria da ;ra@a& o >eato&

eu uma cadela negra ue lhe lambia as mos& o seguia como as

cadelas nos seguem e lhe lambia as mos& podes magoar-me no

brinco& apertar-me nos bra@os

- Aperta-me nos bra@os

eCigir-me eCplica@Fes dos antJrios

- Onde arranaste estas Tores to esuisitas=

podes adormecer ue no consinto ue um buraco no soalho&

no consinto ue caias& estou contigo percebes& uase gosto de ti&podes abrir o roupo& aproCimar-te& ordenar

- Anda c

e nem um corpo estendido na cama de graBata e casaco& tu a

respirares& tu BiBo ue uma cadela negra

Qposso garantir-teS

no lambe as mos a um morto.

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QUINTA CONSULTA 

+omo acabarei de dier isto antes de me calar para sempre&

como eCplicar o ue se passou nas consultas da doente de 7 anos&

seCo (& idade aparente coincidindo com a real agora ue me K diRcil

alar porue tombei atK ao centro do mundo& mais abaiCo ue os

cabos elKctricos& os esgotos& os destro@os romanos em ue leio

mensagens de ue no entendo o sentido

Que pretendem dier-me=S

uem l em cima onde BocVs eCistem entre dKcimos segundos

andares com um buraco no soalho& mulheres ue garantem

- "eiCei de gostar de ti K só isso

meninas ue nos BVem cair sem se preocupar connosco e um

limoeiro ao ual nenhuma me se abra@a& uem l em cima&pergunto eu destas raRes ue me bebem e esuecem& alar de mim

a um pierrot numa prateleira de bambu ou a uma cadela negra

areando antJrios nos A@ores& ambos sem me acharem na memória

- 9ual mKdico

e ual mKdico de acto se o gabinete do hospital deserto& na

metade de cacio ue eu ocupaBa cabides apenas& o pierrot uando

muito

- %enho uma ideia delepara ue o deiCem em pa e sem ideia nenhuma& a cadela negra

perseguindo cinas e ondas& eu a pedir

- >usuem-me em *intra

e talBe dVem por mim numa ladeira ualuer

Qem maio& no era=S

a medir as Tores nas accias& caminhando com cautela deriBado

ao cora@o& aos diabetes& a uma Beia do cKrebro ue ao secar leBou

dois ter@os das lembran@as consigo& a doente

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- *enhor

ao meu lado& a minha actual mulher

- *enhor=

ela ue no deu pelo buraco no soalho e talBe continue U minha

procura em casa& no aTita com a minha ausVncia& intrigada&

proBaBelmente repetindo o meu nome& ao pronunci-lo daBa-me ideia

ue um nome dierente& de um camponVs l das ilhas ue no

adiBinho uem sea& casmo-nos h cinco ou seis anos

Qseis anos uase& estranha coisa o tempo& a parte esuerda do

calendrio cheia de pginas ue gastei no sei como& dias de ue no

recordo nada ou se limitam a episódios ue pertencem a outro Bisto

ue eu assistindo sem emo@o alguma a +astelo >ranco& U minha

irm& ao granio no limoeiro& surpreendido ue o outro chorasse uma

rBore deunta& eu pouco atreito Us lgrimas

- +horas por uma rBore tu=

e a cara dele a minha& ou antes a ue aNan@am ser a minha

numa moldura nos arredores de Lisboa e decerto no minha

conorme o limoeiro no meu& o granio uebrou-nos dois Bidros

atraBKs dos uais o Bento nas cortinas molhadas& uase seis anos decasado e uantos homens antes de mim conta l& no me mintas&

aui ou num apartamento ualuer& Us escondidas& U tarde& tu

agradecida& contente& a trotares para elesS

a cadela negra U minha procura e eu no centro do mundo

incapa de responder-lhe& ela a tocar na Ngurinha de bata r óculos

uen dan@arica a barriga para ue a Ngurinha

- Meio pJcaro de leite morno a seguir ao antar

ela sentindo-se acompanhada- EstaBas c aNnal

uando a alar Berdade ignoro onde estou& se na cadeira de

bra@os deste lado da secretria& com uma nuBem nos caiCilhos

Qduas nuBensS

e a tripula@o das nuBens

Qsubindo cordas& descendo cordasS

a gui-las para leste& uma ambulWncia no de >ea& de #aro& ue

no se destrin@a bem se chega ou se parte& a doente acol na cadeira

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sem bra@os no me reerindo tristeas nem insónias& a mirar nas

minhas costas o ue era um deeito da parede e ela

Qessas coisas das pessoasS

 ulgando ue um ramo de trepadeira numa hospedaria da ;ra@a

atK ue nem gabinete nem eu nem o ruRdo dos pacientes& a

trepadeira apenas& a minha actual mulher

- O ue h aR na Baranda ue te interessa tanto=

uns Basos com antJrios ue no cresceram nunca& a praia de

+arcaBelos& o arol ou sea nada& eu a assistir sem tristea nem

insónia Us pginas ue se acumulam no lado esuerdo das argolas

distraRdo da doente

- Perdo=

sem me dar conta ue retiraBa o naperon do sauito

- Perdoe a modKstia da oerta senhor doutor K para si

e portanto

Qaudem-meS

como acabarei de dier isto antes de me calar para sempre&

como eCplicar o ue se passou nas consultas agora ue tombei atK ao

centro do mundo& mais abaiCo ue os cabos elKctricos& os esgotos& osdestro@os romanos em ue leio mensagens de ue no entendo o

sentido& a doente

- Estou menos triste senhor doutor durmo

no de luto& de cinento& conBencida ue eu lhe aceitaBa o

naperon& nem

- +om licen@a

da porta uando toda a gente um compasso de espera

- " licen@a=e eu a Nt-los sem reparar neles antes de acenar ue sim

conorme os gatos aem olhando para nós a pensar na sua Bida& toda

a gente

- " licen@a=

e eu com Bontade de saltar da secretria& ir-me embora

Qeu um gatoS

deiCando-os ali& o gato ue tRnhamos em +astelo >ranco

desapareceu uma semana inteira a seguir ao uneral do meu pai& a

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minha me

- O gato=

tal como os doentes para a empregada da consulta

- O senhor doutor menina=

a minha me chamando-o em barulhinhos de boca& a inuietar-

se

- Onde se ter metido o idiota do bicho=

uando deBeria perguntar

- Onde se ter metido o teu pai=

a esuecer-se do meu pai& a no contar com ele para o almo@o& a

sorrir& uma tarde encontrei-a a pentear-se no espelho procurando o

rasuinho de perume

Qo Jnico ue haBiaS

- $o Nm de contas tenho só uarenta e trVs anos sabes=

Us Bees a porta do uarto echada& percebia-se ue eles dois l

dentro no por passos ou Boes ou gorgoleos de mobRlia& unicamente

porue a casa mudaBa& a casa para mim

- Os teus pais

e eu oendido com a casa& um indicador em cada orelha emesmo assim ouBia& eu no pomar e o perume alcan@aBa-me& eu para

o pomar& para a casa

Qprincipalmente para a casaS

- $o me interessa escut-los.

e palaBra de honra ue no me interessaBa escut-los

Q- $o me interessa escut-losS

oendido com a casa e oendido com eles& o meu pai a abotoar-se

- O ue ests a aer nesse banco=e o cheiro da minha me nele& ao acabar de abotoar-se no

sentia o perume mas endireite o cabelo pai& desamarrote a camisa&

gestos

Qonde oi buscar esses gestos=S

ue demoraBam a tornarem-se seus& BocV com a surda-muda ou

a criada na adega& no insinue ue a minha me& no acredito& Nue

com a surda-muda ou a criada se lhe apetecer& tire-me as patas de

cima& no simpatio consigo& o meu pai a segurar-me os pulsos e ao

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segurar-me os pulsos mais perume& deu-me ideia ue a minha me a

cantar na despensa ou ento o rdio& loi@a& a Bassoura nos ladrilhos&

a minha me no canta& o ue K ue BocV lhe e& o meu pai

- 9ueres bater-me garoto=

a erguer a mo para mim& a desistir& a ir-se embora& a perguntar

no corredor onde gra@as a "eus o perume se dissolBia na anela

aberta

- *ucedeu alguma coisa ao teu Nlho=

a doente no de luto& de cinento& conBencida ue eu lhe

aceitaBa o naperon& sentando-se sem esperar ue lhe indicasse a

cadeira

Qodeio ue se sentem sem esperar ue lhes indiue a cadeiraS

- Estou menos triste senhor doutor durmo

consoante a minha me meses depois do uneral do meu pai e

uando escreBo meses uais meses& cinco ou seis semanas se tanto e

o perume de Bolta& as palmas sobre um Bestido cor-de-rosa

Q- 9ue K eito desse luto meinha=S

a aBaliarem a cintura& os olhos desaNando-me

- %enho uarenta e trVs anos sabias=parecida com a surda-muda e a criada na adega& para uem K

ue BocV se peruma conesse& o gancho na nuca& as rodelas de pó

nas bochechas& os oelhos cruados

Q- "escrue os oelhos senhoraS

o gato de noBo na sala NCando-a sem a Ber conorme as pessoas

dos retratos no atentando na gente& se por eCemplo eu para a

imagem do meu pai

- Lembra-se de mim pai=no se lembra porue apesar de obserBar-me no eCisto& no

sou& a doente

- Perdoe a modKstia da prenda senhor doutor K para si

igual U minha me dado ue se lhe acabou o luto& a tristea&

%aBira& *intra& a hospedaria da ;ra@a

Q- $o Nm de contas tenho só oitenta e dois anos sabia=S ue se

lhe acabou a insónia& se o homeninho Boltasse

- "eiCei de gostar de si K só isso

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sem culpabilidade nem dó& ou sea no me importo ue caia doe

andares& ue o pai de uma menina

- $o cumprimentas o senhor doutor >eatri=

de orma ue talBe por esse motiBo o meu pai calado na

,nidade& no nos saudaBa& no se despedia da gente& os dedos

compunham o len@ol em lugar de agarrar-nos e pregueaBam-no mais&

as bolachas na cabeceira untamente com os sumos& passada uma

semana o mKdico

- X melhor leBarem isso daui

a sua boca aberta pai e eu a dar-me conta ue lhe altaBam

dentes& BocV no mais ue boca senhor& a minha me a aBan@ar sobre

a cama

- Perdo=

comigo a pensar se K ue pode chamar-se pensar a um

ressentimento antigo

- $o aproBeita para se trancar no uarto com ela no a

desabotoa poruV=

com a alta do meu pai o porto ue no echaBa& o uintal por

tratar& a gente com receio dos gatunos U noite& a minha me encostoua ca@adeira U cómoda mas em ue parte se metem os cartuchos Nlho&

como se dispara isto& morBamos onde a cidade acabaBa& para a

banda da serra na ual as chuBas tinham inRcio em noBembro&

histórias de relWmpagos ue mataBam pessoas

Qossos eitos carBoS

mas se o meu pai connosco as troBoadas no amea@aBam

ninguKm& mesmo hoe em dia& se choBe& +astelo >ranco Bolta e com

ele um rapa a espreitar a gua das cortinas& a assistir aos sulcos noscanteiros ue arrastaBam olhinhas& a desliar com as olhinhas aos

trope@os& rodando& a enermeira

- Pareces comoBido tu

se tiBesse coragem de contar ser ue a doente entendia& eu ue

peguei no naperon& o abandonei na secretria& tornei a pegar-lhe e

nisto ela U espera das uartas-eiras num rKs-do-cho ue no sei

onde Nca& perto da esta@o dos comboios& presumo& uando as

carruagens se imobiliam a Bida mais depressa ue uando se

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deslocam& pessoas atK ento paradas num renesim repentino&

bagagens ue principiam a andar& a clarabóia do tecto a empardecer

de cegonhas& um rKs-do-cho a cem ou duentos metros da esta@o

dos comboios& Bibra@Fes de gonos ue interrompiam o sono& Us

uartas-eiras o homem na hospedaria& de tempos a tempos o corpo e

detestaBa ter corpo& a maior parte das ocasiFes o homem Bestido& o

corpo elimente tranuilo& silVncio& os rapaes de cabeleira posti@a&

ainda ue Biinhos& longRssimo& o empregado do pai longRssimo

tambKm sem lacerar a terra onde ela estaBa aguardando-o& deiCando

de aguardar e uma espKcie de pa

Quma bailarina de corda girou um instantinho e parouS

horas de sino U tarde& uma debandada de rolas e eu no centro do

mundo a aperceber-me das asas& a minha primeira mulher mirando-

me centRmetro a centRmetro comigo a pensar

- Andas arta de mim

em +astelo >ranco no respondia U minha me& a cara dela

como se me ouBisse& encontraBa uma rai no uintal& apontaBa a rai

- 9ue rBore oi esta=

e a minha me abra@ada ao limoeiro durante o uneral da minhairm aendo parte do tronco& as rBores do hospital pltanos a ue

ninguKm se abra@a

QBergonha de me abra@ar a um pltano e U medida ue a

 Bergonha aumentaBa percebia as Boes na sala de espera& um rdio&

o teleoneS

a minha primeira mulher curiosa& a impresso ue ao cabo de

tantos meses era a primeira Be ue lhe sucediam Ber-me

- $o imaginaBa ue tinhas tido uma irmmas poder chamar-se irm a uma crian@a num ber@o& o

galinheiro sem galinhas ue se encostaBa ao alpendre& a cali@a onde

dantes rangos arrepelando a tarde& engolindo-a& uando a minha

irm aleceu o meu pai Bestiu-a com roupa por estrear ainda

embalada na arca& eri@ada de alNnetes ue no podiam doer-lhe e

no doeram dado ue a minha irm serena& entalou-a numa cadeira&

chamou o otógrao

- %ire o retrato

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o otógrao inuieto

- $o ser pecado=

a enganar-se no tripK& a minha me aos cRrculos no uintal

encerrada no interior de si mesma pela chaBe de um desespero sem

lgrimas& a cabe@a Us Bees na anela entre a capoeira e o tanue&

regressando& partindo

Qa minha me uma cadela negra entoS

o meu pai para o otógrao

- Espere

a colocar Tores unto U cadeira

Qdiospiros& acho ue se chamam diospirosS

a minha primeira mulher inclinada para o aparador onde a

minha irm de olhos abertos& de inRcio sem acreditar em mim e

depois de mo na boca& com medo& o meu pai mandou-me abrir o

reposteiro a Nm de aumentar a lu e na lu a minha me ue pegaBa

numa pedra& a ogaBa contra a capoeira deserta e a rede a amolgar-

se& rangos ue no eCistiam a esBoa@arem ugindo& o meu pai para o

otógrao num remoinho de poeira& de penas

- %ire o retrato agorade modo ue estando a minha irm de olhos abertos no tenho a

certea se no a enterraram com Bida& a minha primeira mulher

- +ala-te

a detestar o meu pai e a detestar-me a mim& se lhe pegaBa no

bra@o o bra@o desaparecia a astar-se& a minha me enCotando-me

- $o achas ue Ks grande demais para Ncares no meu colo=

e no entanto a enermeira aceita-me& a proBa ue me aceita est

em ue as ei@Fes se alongam& uando me Bou embora& os obectosdescem um degrau inBisRBel& mais baratos& mais eios& os pais da

enermeira

- %ens a certea ue te tratam como deBe ser Nlhinha=

e eu para eles

- "esculpem

porue a Nlha soinha entre bambus& acenando-me do peitoril

sem ue eu tomasse conta dela& me preocupasse com correntes de

ar& problemas de dinheiro& a obrigasse a engordar

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- $o consintas ue no te tratem como deBe ser Nlhinha

assegurasse aos pais

- %rato-a como deBe ser descansem

a enermeira aceita-me& a minha actual mulher aceita-me

embora me dV ideia de no ter saRdo da ilha& auieta-se na Baranda

escutando um outro mar& descobrindo presen@as ue no Beo& a cara

de sJbito redonda

- $o sentes o umo do charuto=

e eu palpando e no sinto& sinto a cera da empregada& o

detergente na coinha& Beo a marca de um pK no sobrado

Qde uem=S

demoro-me na marca& uem esteBe aui& uem Beio& nunca

pensei ue as minhas mos to grandes prendendo um enchuma@o

de blusa

- 9uantos homens antes de mim conta l=

a seguir ao meu pai a minha me

- %enho só uarenta e trVs anos sabes=

e o perume de Bolta& a mobRlia mudada de lugar

- Pega nesse lado da mesa e auda-me a traV-la para auiuma toalha do enCoBal retirada pela primeira Be do armrio& a

minha me aos cRrculos como na tarde do limoeiro com a dieren@a

ue no ogaBa pedras a ninguKm do mesmo modo ue no

desesperada& risonha& alando alto demais uma Be demais com uma

 Bo ue parecia uebrar-se nas arestas das rases& um senhor da

+oBilh uma ou duas noites por mVs e a minha irm ento sim&

deunta& no lhe Balia de nada abrir os olhos nos retratos

Q- Para uV mana=Sdado ue o senhor da +oBilh mais importante ue a morte&

enCotando-a com o bra@o do cigarro para o caiCote das inutilidades

esuecidas onde o meu pai e eu a aguardBamos de mistura com

uma embalagem de pregos& pontinhas de lpis& um porta-moedas

rasgado& a minha me soinha com o senhor da +oBilh& nós no

somos& eu no caiCote a indignar-me com o riso dela

- A sKrio=

compreendia ue CRcaras& a tampa ue no pertencia ao bule a

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oscilar-lhe por cima& som de lRuido nas CRcaras& no interior do

lRuido a Bo da minha me

- A sKrio=

e no

- A sKrio=

a minha me ue se aproCimaBa do senhor da +oBilh

aperei@oando os caracóis U medida ue o perume se eCpandia

Qnunca aperei@oou os caracóis para nósS

- $o Nm de contas tenho só uarenta e trVs anos sabe=

era de certea com ele ue a minha primeira mulher ao teleone

- A sKrio=

e a minha actual mulher antes de mim nos A@ores

Q- +onta lS

o senhor da +oBilh de guardanapo na graBata e mo espalmada

no guardanapo a beber com cuidado& os oelhos unidos por educa@o&

respeito& a enermeira impressionada

- ,m caBalheiro no K=

um caBalheiro ue a trataria como deBe ser& no se ia embora Us

sete& a minha actual mulher- O meu aBY chamaBa-me cadela negra

e os ces

Qera atalS

perseguindo-a& uantos ces antes de mim conta l& tu a trotares

nos A@ores de cabe@a baiCa& consentindo& e um rastro de cachorros

detendo-se para urinar e acuando-te de noBo& o senhor da +oBilh um

latido ue borbulhaBa mais abaiCo ue a boca& na garganta& a minha

me desta eita no- A sKrio=

uma pausa de cadela ue no oge& se curBa num canteiro&

aceita& a ueiCada pendente& as patas ue Bacilam& o senhor da

+oBilh de garupa arrepiada apoiando-se nela& o meu pai para o

otógrao sem coragem de olhar a minha irm& desmontando a

muina

- 9uero o retrato

uma rola no telhado da capoeira Baia& a minha actual mulher de

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lombo na minha direc@o& U espera& a minha primeira mulher

obserBando o tecto onde nenhuma rola& no um rasco de perume e

colares e anKis

- $o estou para aR Birada

um cotoBelo sobre a cara& o outro ao comprido do corpo sem

pertencer a ninguKm lembrando-me o meu pai na ,nidade& a mo

ue aleceu antes dele& auela com ue martelaBa& consertaBa

echaduras& comia& um obecto agora& carne a Nngir carne& unhas a

Nngirem unhas& ossos de cartolina no ossos& as minhas mos hoe

assim na cadeira deste lado da secretria e acol a doente& no

triste& no com insónias& a estender-me o uadradinho de crochet

ue os meus dedos alsos no conseguiam reter

- Perdoe a modKstia da prenda senhor doutor

eu tentando desenhar uma casa& uma rBore& uma campainha a

chamar no sei uem e mesmo ue me chamasse no me diia

respeito a enermeira e a minha actual mulher no me diem

respeito Bisto ue tombei atK ao centro do mundo& mais abaiCo ue

as unda@Fes dos prKdios& os cabos elKctricos& os destro@os romanos

Qcolunas& um arco& BestRgios de uma espKcie de sala mas sembambus nem pierrotsS

em ue leio mensagens ue se me destinam

Qa uem mais se eu soinho=S

e de ue no entendo o sentido

Qo ue procuram contar-me=S

e portanto em saindo do hospital depois de escreBer

9uinta +onsulta: Alta

na Ncha da doente de 7 anos& idade aparente coincidindo com areal& apresenta@o cuidada

Qou relatiBamente cuidada=S

orientada no tempo e no espa@o& contacto sintónico se bem ue

reserBado

QreserBado ou reticente=S

contacto sintónico se bem ue reticente& sem altera@Fes

signiNcatiBas da memória nem actiBidade delirante& em saindo do

hospital e sem ue me dV conta eu na hospedaria da ;ra@a de ue

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no conhe@o a morada& sei ue uma trepadeira na anela& rapaes de

cabeleira posti@a Bestidos de mulher& um Jltimo piso

Qum sóto=S

em cuas escadas discussFes& amea@as& osse o ue osse

Quma garraa& um copoS

pelos degraus abaiCo& uma parente nossa neste bairro

Qtia <ioletaS

recebendo-nos de pKs num alguidar de borato& cantou ópera em

noBa de modo ue Bestidos de escraBa egRpcia num gancho& discos de

maniBela e um paBioito de gritos U beira de eCtinguir-se& apoiaBa-se

em trombones e recome@aBa a tremer o seu aeite comoBido ue no

ligaBa com o borato& a tia <ioleta

- *ou eu

isto K uma agulha de gramoone a saltar nas espiras

mergulhando na rase palaBras adiante& nomes italianos de maestros&

tenores& aogados trgicos lan@ados U praia no Nnal de um acto com

o pJblico aplaudindo os cadBeres ensopados de mis& o marido

Tautista ue a corrente de uma ria entrela@ou com uma soprano

rancesaQuma emo@o nos antJrios& o ue me deu ideia de uma urgoneta

empoleirada sobre o mar e alciFes e milhares& um Belhote de

charuto

- $o te apouentes

eu a acotoBelar o Belhote ue buscaBa o relógio no bolso sem

relógio

- Ela uantos homens antes de mim conte l

e uma rapariga com uma pala na lente esuerda dos óculos amentir-me

- $enhumS

o marido da tia <ioleta depositado pela ria num teatro em

>ordKus& sobraram uns trapitos de roupa ue se entrega sempre U

amRlia a atestarem-lhe a morte conorme eu morto& soinho& aui no

centro do mundo

Qcomo acabarei de dier isto antes de me calar para sempre=S

aceitando o naperon sem me despedir da doente

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Qno cumprimento os doentesS

deiCei-o Ncar na secretria entre blocos de receitas e a agenda

onde as pginas dos dias passados

Qnum ualuer deles o otógrao a entregar o retrato da minha

irm ao meu pai e na anela aberta a capoeira& o muroS

cresciam U esuerda das argolas

Qh sKculos ue no eCiste o muro& +astelo >ranco aumentouS

sair do hospital& encontrar-me com as ambulWncias e o carrinho

do almo@o no ptio das traseiras

Qbancos de pedra& arbustosS

pouco antes do pWncreas o meu pai come@ou a construir um

pombal& Bieram-lhe as dores

Qo espanto dele

- O ue K isto=S

eCperimentou a barriga

Q- $unca tiBe isto o ue K isto=S

enuanto as erramentas no cho& ualuer coisa a apertar-se

de terror em mim ao olh-lo

- Paie a pele morena& branca o no acreditar& a surpresa& a dor ue

deBia ter mudado de posi@o porue os dedos nas costas

Qele to solitrio com a dorS

a cara em mim na ideia ue NCando-me completaria o pombal&

agarrei numa tbua& tentei martel-la mas sem cuidado& U pressa& o

meu pai sobre a caiCa das erramentas aberta

Qo niBelador& o serroteS

a notar ue a tbua torta& o serrote& mais ue os dentes dele- $o Ncou bem a tbua

leBei um mVs a mentir-lhe na ,nidade

- l tem o pombal

enuanto a caiCa das erramentas U chuBa& o rasco de perume

rolhado& nenhum cheiro na casa& a minha actual mulher a cirandar

nos A@ores& a enermeira com o primo da ca@a sei l onde& duas

cadelas sem goBerno ue se no ralaBam comigo& abre-se um buraco

no soalho& a gente buraco adiante e nem BVem& NcaBa-me a criada na

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adega a perguntar entre degraus

- $o descemos senhor=

ou sea outra cadela de cabe@a baiCa& aceitando& no caso da

minha primeira mulher& para no ter de enrent-la& apagaBa a lu a

Nm de lhe apagar a eCistVncia& ao apagar-lhe a eCistVncia o perume

Qno o da minha meS

apagaBa-se igualmente& eu um latido ue borbulhaBa mais

abaiCo ue a boca& na garganta& no estYmago& de garupa arrepiada

apoiando-me nela& eCpulsar a minha me ue perguntaBa

- A sKrio=

no me aborre@a me& B-se embora& o latido ue se engasgaBa

trope@ando de pressa a ordenar no te meCas cadela& e o corpo

obediente& as patas ue Bacilam

- "isse no te meCas no disse=

alKm do perume um cheiro uase spero& mais denso& mais

 BiBo& tento pronunciar o teu nome e arrancos sem neCo& uma aTi@o

conusa& morder-te os uadris& as orelhas& a cauda ue me escapa

- $o te meCas.

!mpulsos desordenados& partes minhas ue escorregam& o corpoa alhar o Biinho

- $o ueres dier adeus ao senhor doutor >eatri=

enuanto atraBesso o estuue& a mobRlia& o sobrado e no K a

>eatri ue me acena& K a cadela da minha primeira mulher no

dKcimo segundo

- ;ood-bIe

ou a cadela ue procurei na hospedaria da ;ra@a de ue no

sabia a morada& sabia a trepadeira e os rapaes de cabeleira posti@a&o serrote ou os dentes do meu pai

- $o Ncou bem a tbua

o pombal desarticulou-se aos poucos com as ebres do inBerno

uando a encosta lan@aBa pinheiros e amoras braBas para cima de

nós& o inBerno ou o homeninho da doente

- Por aBor

a minha me a uem os pinheiros assustaBam encolhia-se na

coinha

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- Meu "eus

o meu pai sob a terra& a minha irm no retrato& os olhos iguais

aos das cadelas uando a gente

- $o te meCas

e elas submissas& U espera& no

- "eiCei de gostar de ti K só isso

U espera& eu para os pais da enermeira to ansiosos na moldura

- <eam a cadela da Bossa Nlha U espera

 Beam as minhas unhas a agarrarem-lhe a cintura& a minha

barriga a pesar-lhe nas costas& eu o inBerno de +astelo >ranco& eu

pinheiros ue chicoteaBam a casa& a minha me escondendo-se nas

mangas

- Meu "eus

eu para os pais da enermeira preocupados com o rio& as

bronuites& a nossa Nlhinha sem ninguKm em Lisboa& mandamos-lhe

oBos& cebolas& enchidos& algum dinheiro Us Bees& enBelopes com

os selos e a morada e no escreBe& no teleona& promete Bisitar-nos

no $atal& porue no uma carta& eu para os pais da enermeira no

percebem a minha boca no seu ombro& aleiando-a& Beam a cadela da Bossa Nlha com um homem casado ue no deiCa a cadela da mulher&

uma cadela negra dos A@ores a ladrar para as ondas

- 9uantos homens antes de mim conta l=

e a cadela negra a mentir porue as cadelas mentem& todas

 BocVs mentem

- $enhum

e talBe porue a cadela negra

- $enhuma sorer no por um homem casado& por um co tombando andar

a andar sem ue os Biinhos se importem dado ue ninguKm se

importa com um bicho

ele

Qo coS

a sair do hospital areando as esuinas da ;ra@a& perguntando&

insistindo& uma hospedaria com uma trepadeira se no se importa

menina& uma penso barata

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Qtenho a certea ue barataS

onde se alugam uartos por uma hora ou duas senhor& um co

bem Bestido& no um raeiro& um mKdico& a inormar as pessoas

- *ou mKdico

num latido ue borbulhaBa mais abaiCo ue a boca& na garganta&

no estYmago& com um Jnico dia U direita no calendrio de argolas&

one de ulho& seCta-eira& hoe& a ue horas

QperguntoS

o hoe do lado esuerdo tambKm e Nm do calendrio& eu sob as

unda@Fes dos prKdios& os cabos elKctricos& os destro@os romanos

onde as mensagens ue se me destinaBam apagadas por Nm& se ao

menos um limoeiro no uintal

- "eiCe-me abra@ar o limoeiro me

a mo do meu pai uase a alcan@ar-me& haBia momentos em ue

me parecia ue ele& ue eu& ue a gente os dois e enganei-me& no

conseguimos& nunca conseguimos& conseguimos com a surda-muda

do armaKm& com a criada na adega& tenho a certea ue BocV ciente

ue eu na adega com ela& de Bentre a arrepiar-se& desaeitado& a

tentar& tenho a certea ue lhe diia- meu Nlho

me apontaBa

- meu Nlho

e ela comigo porue BocV mandaBa senhor& Nngia no dar conta

para ue eu pensasse ue me BingaBa& o derrotaBa e o meu pai a

designar-lhe a adega& a designar-me

- O meu Nlho

a estender para mim uma coberta nas laes enuanto a cadelanegra atraBessando escarpas nos A@ores a caminho de uma

urgoneta sem rodas& o ue lembro dos A@ores so neBoeiros& pedras

de pssaros ue tombaBam na gua& umas Tores monstruosas a ue

a minha actual mulher chama antJrios& ondas a cobrirem os degraus

de uma igrea& ela mostrando um camponVs com um charuto

- O meu aBY

e camponVs nenhum

- 9ual camponVs=

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camponVs nenhum& esses umos do cho& eCperimenta-se com a

palma e cinas a moBerem-se& torrFes escuros& Bapores& a hospedaria

da ;ra@a no mais ue um sóto antigo unto ao miradoiro& um

largoito& telhados& a dona com um tubo no pesco@o ue lhe

transormaBa a alma num silBoinho ineli

- X da polRcia BocV=

e uma trepadeira de acto& no mentiu a doente

Quns ramos& umas olhas& umas gaBinhas plidasS

eu mais baiCo& mais gordo& mais Belho

Qo cora@o& os diabetesS

no& eu como no tempo da surda-muda na esperan@a ue no se

percebesse ue nem traia dinheiro& a dona da hospedaria a

procurar alKm de mim no largoito& nos telados

Q- "espede-te do senhor doutor do dKcimo segundo >atri

e a >eatri um gesto contrariado regressando de imediato U

cópia da escolaS

a dona da hospedaria

- $o tra uma mulher ou um homem ao menos=

U medida ue eu lhe eCplicaBaQno eCplicaBa& um latido borbulhando mais abaiCo ue a boca&

na garganta& no estYmagoS

lhe eCplicaBa ue uma doente de 7 anos& idade aparente

coincidindo com a real& orientada no tempo e no espa@o& discurso

adeuado embora reticente U minha espera no uarto dado ue o

meu pai& cua mo no chegou a alcan@ar-me& a indicar-lhe

- O meu Nlho

Qa mo no hospital um obecto de cali@a e arame ue no toueitambKm por medo ue eu de cali@a e arame igualmente

- Morra BocV pai no me leBe consigoS

uma Baranda& uartos& nenhum rapa de cabeleira posti@a& deu-

me ideia ue o perume da minha me mas se calhar enganei-me&

isto K aposto ue me enganei& +astelo >ranco to distante e nenhum

rasco de perume h ue tempos& um dia completo o pombal me

prometo& sento-me na sala consigo& NCo-lhe auela porta ue

bamboleia no gono e encontro-a amanh a pendurar roupa nos

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moBimentos de sempre& BocV sem reparar em mim& em bicos de pKs e

de bra@os erguidos& prendendo camisas e toalhas nas molas& a minha

irm no ber@o& o meu pai a encontrar uma ma@ na coinha e tudo

isto em silVncio palaBra& em silVncio& se penso na minha inWncia

QK curiosoS

 ulgo sempre ue ruRdo e Bai na Bolta silVncio& nenhum insecto&

nenhum atrito de passos& uma lentido ue me no parecia estranha

nas coisas& todas as pginas no lado direito do calendrio& milhares

de pginas porue no ia morrer& ninguKm morria& ue história K

essa de morte& aguardando ue as usasse uma a uma e no Nm da

agenda& a ue agora cheguei& esta hospedaria& esta cama& a

estampainha dos ardes& a da menina nua

- +umprimenta o senhor doutor enuanto ele cai >eatri

e a menina nua

- Adeus senhor doutor

U medida ue eu nono& oitaBo& sKtimo& U medida ue eu para ela

- Adeus

a enermeira no peitoril l em cima

Qe o pierrot& os bambusSconorme entro no carro& des@o o Bidro& Nno ue lhe mando um

beio e so apenas dedos

Qum beio ue toliceS

a imitar um beio& aV-la supor ue um beio eu ue eBito beiar&

no beio cadelas

- 9uantos homens antes de mim conta l=

eu dia one de ulho& seCta-eira& de pK ao lado da cama em ue

no interior da coberta de damasco ou a imitar damascoQa imitar damascoS

len@óis ue no mudaram& uma almoada com cabelos da cadela

anterior e o silVncio ue aumenta& o da trepadeira no caiCilho& o dos

compartimentos Biinhos& o das escadas desertas& cuidei por um

instante ue um relento de Binagre e a criada a chamar-me da adega

porue o meu pai

- O meu Nlho

Qagrade@o-lhe sinceramente pai& no estou a brincar& agrade@o-

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lheS ou a minha actual mulher a regressar dos A@ores enganando-me&

cercada de antJrios e ondas a aNrmar

- $enhum

como se

- $enhum

me importasse consoante no me importa o trabalho no hospital

nem a doente de 7 anos& idade aparente etc& nem a minha primeira

mulher& nem ue terceiro segundo primeiro rKs-do-cho& nem a

Jltima pgina do calendrio& dia one de ulho& onde uma pessoa ue

desconhe@o uem sea escreBeu a tinta na olha a hora em ue

estamos& como se alguma coisa me pudesse amedrontar com a minha

me l ora a estender roupa e este sossego& esta pa& o meu pai a

acabar a ma@a no degrau calculando se chuBa pela origem das

nuBens e sei ue pouco a pouco eu no centro do mundo

Qeu o centro do mundoS

no ual eCiste um limoeiro a ue posso abra@ar-me& Binhas

acol& a capoeira Baia& a minha me ue regressa do estendal com o

cesto& me obserBa da porta e nem seuer necessito de comprimidos

para a tristea e a insónia& basta-me esta garraaQamarela com um rótulo aulS

ue entorno no clice ao mesmo tempo ue as cadelas se

aBiinham& me procuram& me lambem& de patas a tremer& agachadas&

submissas& aastando-se a contragosto& ciciando despeitos& uando a

criada me Bier acordar.

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%rVs As Bisitas

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PRIMEIRA VISITA 

$o sei h uanto tempo o pimpolho me mandou embora do

segundo andar do ardim +onstantino& Binte& Binte e cinco anos&

trinta& nem o ue uerem dier Binte& Binte e cinco anos ou trinta

para mim ue desconhe@o os ue tenho. *e por acaso pensar na

minha idade o mais antigo ue lembro so caBalos aogados unto U

casa rodopiando na gua& o %eo ultrapassaBa os campos e chegaBa

ao uintal& notaBam-se Bimieiros l em baiCo girando tambKm& um boi

contra um choupo uebrando as patas no tronco e os caBalos to

gordos& o mais antigo ue lembro K o meu tio para a minha me

- $o te ueremos aui

e a insónia dos caBalos deuntos toda a noite a aTigir-me

Quem lhes ouBia o galope=Sos barcos dos bombeiros desciam a rua de lanternas acesas& as

mulheres e os ces choraBam no corredor& tinha a certea ue a gua

ia ultrapassar os móBeis da coinha& apagar o ogo e leBar-nos

consigo& recordo-me de imaginar

- *e apagarem o ogo a casa morre-lhe.

como lhe sucede morrer se os relógios se calam Bisto ue no

caso de alguKm impedir os moBimentos do pVndulo nenhum de nós

respira& os insectos aumentam na parede atK no se Ber seno cali@ae ormigas& as costelas bem tentam continuar a eCistir e o ar a ugir-

nos& os sapatos& ue ulgBamos nossos& deiCam de nos pertencer&

subitamente dignos& unidos& bicudos na eCtremidade da colcha em

ue nos deitam& se derem corda aos ponteiros sentamo-nos na cama

admirados da roupa noBa e do len@o no ueiCo& sabRamos ue

chegaBa aneiro no pela pressa das nuBens sem atenderem aos

choupos mas pela inuieta@o dos caBalos ue o rio amedrontaBa e

os candeeiros da cidade apagados ao longe& sabRamos ue chegaBa

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 aneiro porue as oliBeiras& despidas de raRes& partiam uma a uma

de mistura com esueletos de oBelha na direc@o de Lisboa& passos

correndo aos gritos nos uartos a trancarem cadeados enuanto as

 Binhas recuaBam mugindo para o interior da sala e rangos sem

pesco@o& ue nenhuma aca degolara& bicaBam os caiCilhos

procurando entrar

Qnunca supus ue em cada um deles tantas asasS U medida ue

os toiros craBados na terra nos seguiam imóBeis& ensurdecidos pelo

nerBosismo dos grilos& o mais antigo ue lembro K um gato numa

chaminK ue o lodo derrubaBa& um dos relógios a recordar-se de uma

hora ualuer de um dia muito Belho& a compreender

- Enganei-me perdoem

e a emudecer de noBo& nunca entendi por ue motiBo os dias de

antes de eu nascer Bolta e meia regressam& ainda ontem& por

eCemplo& eram as cinco e doe da Kpoca dos meus aBós no reeitório

de modo ue senhoras de touca e um caBalheiro com um anel de

sinete em cada gesto educado& mos ue Toriam em dedos

- >oa tarde mademoiselles

a empregada acotoBelando-o sem dar por ele ao entregar-me asopa

- +ome

e o caBalheiro& ue remKdio coitado& procurando o len@o numa

tosseita oendida& a sumir-se por Nm na direc@o da copa desiludido

com a gente& todo delicadeas& espantos& metade do len@o

Qpercebia-se se o monogramaS

pendurado da algibeira sem me dar ocasio de perguntar-lhe

uem era- Pertence U minha amRlia BocV=

ou sea aueles ue o %eo ao subir transormou em caBalos& de

tal modo ue mesmo hoe lhes sinto o cheiro das crinas ao acordar

de manh mais os dentes enormes e as narinas redondas& eu

- Pertencem U minha amRlia BocVs=

porue a minha amRlia& reTectida no po@o igual Us nespereiras

entre o ptio e o celeiro& se deiCasse cair uma pedra as caras deles

estilha@aBam-se de orma ue puCando o balde nem um nome me

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 Binha& apenas campos em ue o rio imprimia caligraNas de lama& as

 Bacas lentas da tarde e rolinhas de algero& o mais antigo ue lembro

so os sapos durante a lua noBa amea@ando a gente e a minha me

- #echa a porta depressa

ainda no sombras nem um piano de casti@ais no segundo andar

do ardim +onstantino& eu no cubRculo do undo sem recordar os

sapos nem o ouriBes a comer pVssegos U entrada da loa& o tubo ue

engastaBa na órbita para eCaminar Nligranas subido contra a testa&

os óculos dele

- Xs serBida=

e a minha me a puCar-me o bra@o arredando-me do pVssego&

em certas tardes de agosto mandaBa-me sentar numa pedra depois

das aponeiras

- $o saias daR

e no era a minha me nem o ouriBes ue eu escutaBa alKm de

um pedacinho de muralha& eram as Bespas num charco uriosas

comigo& o ouriBes surgia das aponeiras a esregar pVssegos na

manga

- Xs serBida=ualuer coisa nos óculos ue se descuidaBa& parecia comoBer-

se e endurecia logo& arrependida& o Nlho do ouriBes lan@aBa-nos

pedras

- <o-se embora malBadas

uma das pedras aleiou a minha me no tornoelo& a sandlia

esuerda mais lenta ue a direita

- $o oi nada

por um instante deu-me ideia ue os salgueiros coCeaBamconnosco e enganei-me& era o modo como o sol atraBessaBa as olhas

entretidas a ogar Cadre com o Bento& o rio tranuilo& peueno& um

caBalo contra os uncos sacudindo melenas& o meu tio acompanhou-

nos U esta@o

- $o te ueremos aui

e os parentes leBantaram as cabe@as U uma& desgostosos&

homens ue regressaBam para antar traendo a lua as costas

embrulhada em Ngueiras antes de a prenderem num arame a

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eneitar a latada& lembro-me na esta@o das carruagens de gado

numa linha entre as erBas ao longo da ual os abetos iam untando os

ungos de silVncio necessrios U noite& se nesst momento me

interrogassem

- O ue se passa contigo=

eu nada& conorme eu nada uando a minha me e eu no banco

do apeadeiro separadas pela mala& ia urar ue o ouriBes a espreitar-

nos do balco onde se compraBam bilhetes& os óculos no na minha

me& em mim& tremendo mais ue os pingos das telhas& de tubo de

comproBar Nligranas atarraCado U testa& se a minha me permitisse

no me ralaBa de lhe estender a mo Bisto ue a dele macia ao

enCotar as Bespas e eu a recordar-lhe a palma no comboio de Lisboa&

com a mala sempre a separar-me da minha me embora na anela&

durante os tJneis& o meu perNl nascesse do seu perNl e nos bastasse

um olho para espreitar o caminho& no bois& no toiros& no gua&

aldeias& carro@as& igreas ue as pedras do Nlho do ouriBes no

alcan@ariam nunca& o mais antigo ue lembro so as mos do ouriBes

 Bacilando nos óculos ao endireitar a arma@o

- +omo se chamaBa o ouriBes senhora=e as mos da minha me Bacilando igualmente sem acharem a

saia& apesar de no eCistir nenhum pVndulo uieto ela incapa de

respirar& no sei o uV no nari

Qse eu osse tonta ulgaria ue do tamanho de lgrimas e no

 ulgoS

ue nenhuma manga aliBiaBa& o ouriBes ue nunca oi

importante para mim

Qporue haBeria de ser diga-me c=SeBaporou-se-me da memória atK hoe

- Xs serBida=

conorme se eBaporaram as cabe@as dos parentes leBantadas U

uma& desgostosas& uase do tamanho das cabe@as dos bois ue o

sogro do meu primo empalhaBa no escritório e nisto nem aldeias nem

carro@as nem igreas& bricas& casas de costas para a gente& eu ulgo

ue adormecida a assistir as cegonhas no chalK de *antarKm onde o

proBedor moraBa& a minha me

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- Lisboa

comigo a tentar imaginar o ue buscam as galinhas uando

caBam na capoeira com as patas& pela primeira Be o ardim

+onstantino& arBoreinhas& arbustos& no ibateo a Kgua do laBrador

a escapar-se ao almocreBe pisando os morangueiros& se a minha me

me segurasse assim deiCaBa de saltar& acalmaBa os desesperos e

 untaBa-me a ela enuanto no ardim +onstantino um inBlido de

muleta a conBocar os pombos com um cartuchinho de gros

Qmilho acho euS

mormos ali muitos anos as duas& eu diante da muina de

costura no cubRculo do undo e a minha me na saleta U medida ue

os retratos de no sei uem aumentaBam na camilha

*empre 9ueridos

isto K os parentes ue leBantaBam as cabe@as desgostosos de

nós& Us Bees a lama deiCaBa-nos um ou outro uando depois do

rodopio dos Bimieiros o %eo ia embora e as copas despontaBam na

gua& eram os ces ue nos aBisaBam sem se atreBer a mordV-los& de

ocinho estendido

- Olha acol um nuragoeCperimentaBam com uma pata prudente& desistiam&

espirraBam& daBam a sensa@o de recuar e contudo mais próCimos&

no escuro mesmo inBisRBeis em uintas distantes uase uraBa ue

me ro@aBam a cama& isto antes do ardim +onstantino K eBidente& no

 ardim +onstantino nenhum Bimieiro& nenhum toiro& o mar ou o ue

lhe a as Bees a uarteirFes daui& nem seuer uma nesga entre

dois prKdios& esses interBalos das esuinas em ue as tipuanas se

arredondam na iluso de crescerem com a mudan@a da lu& aNgura-se-nos ue uma espKcie de aBenida& Bai-se a Ber e pombos& loas&

nunca achei o ouriBes na camilha& se me interessasse por ele a minha

me

- +ala-te

apagando as aponeiras com o bra@o conorme eu apagaBa

Qapago aindaS

um nome de homem ue escreBia nos Bidros& o pimpolho ue

 BocV di ser seu pai BisitaBa-nos na Pscoa& escutBamos a me dele

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no patamar

- <V l como te portas

no& antes do patamar porue o Jltimo degrau depois& auele da

tbua descolada ue ninguKm conserta& a gente surpreendidas dado

ue o degrau um protesto de pessoa BiBa ue se eCalta& lamenta& o

pimpolho contemplando as próprias solas a tentar entender uem se

eCaltaBa& lamentaBa& o pimpolho

- Os meus pKs

a me do pimpolho a recordar-lhe com as sobrancelhas

- <V l como te portas

cumprimentando a minha me ue enBelheceu e perdera o

ouriBes embora ninguKm me diga ue no permanecia nela

- Xs serBida=

tal como o homem de ue escreBo o nome nos Bidros permanece

em mim& desenho as letras com o dedo e ele BiBo nas letras no

adiBinhando seuer ue lhe conhecia o nome& se necessitaBa de

linhas de costura procuraBa entre as caiCas da prateleira& entornaBa-

as num cartuchinho e Bendia-mas sem dar por mim& esuecia-me de

propósito do troco para ue ele- O seu troco

e eu eli ue ele

- O seu troco

a recolher as moedas enuanto o homem a atender outro cliente

ou a obserBar o ardim +onstantino da montra& uer dier no

obserBaBa o ardim +onstantino& obserBaBa osse o ue osse dentro

dele

Qacho ue dentro dele no sei& coisas remotas& um ptio desardinheiras& um irmo com sarampoS

no atendendo aos arbustos nem Us rBores& o pimpolho no nos

obserBaBa tambKm& limitaBa-se a esperar encostado a uma cadeira

ue lhe pusessem o bonK

- X tardRssimo

como se a culpa de as horas passarem osse sua& no caso de lhe

entregarmos um lbum no mudaBa a pgina& olhando

Qtraineiras& o pimpolho traineirasS

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o ue no eCistia para a gente e ento Beio-me U cabe@a o rio a

ultrapassar os campos numa pernada rpida e a chegar ao uintal&

só dei K ue diia

- *e apagarem o ogo a casa morre

ao sentir medo ue a lama aogasse os móBeis e nos leBasse

consigo& a me do pimpolho espreitando uma escada ue ignoro onde

Nca

Qas escadas ocultas das pessoasS

na esperan@a de alguKm ao seu encontro ue no ia Boltar& a

me do pimpolho

- PoruV=

e durante um momento o ouriBes a eCibir o pVssego

- *o serBidas=

sem ue elimente o notassem conorme no notaram as

 aponeiras& as Bespas& um restinho de muralha deriBado Us sombras e

ao Wngulo do piano& o barco dos bombeiros com o meu tio entre eles

a descer a rua de lanternas acesas& a minha me receosa ue eu me

aproCimasse do ouriBes a procurar-me o bra@o& obrigando-me a

correr ao seu lado na banda dos choupos ela ue na Kpoca dopimpolho deiCara de se moBer da poltrona salBo U noite uando a

audaBa a deitar-se

Q- Auda-me a deitar-meS

no sóto as rolas& no os grilos de *antarKm& a proibirem o sono

medida ue para l das portas ue no me atreBia a abrir no sei o

ue me esperaBa& caBalos aogados penso eu& guios de oBelhas&

besouros inuieta@Fes minJsculas ue coalham o silVncio& a minha

me da cama- AtK amanh

porue continuaBa a acreditar nos amanhs& a pobre

Qh uem acredite nos amanhs e inBeo-lhes a KS

nos Bimieiros primeiro oscos e depois nRtidos unto U margem

do rio& nas galinhas enerBadas com o mundo a trabalhar em

solaBancos de muina durante muito tempo parada& tudo Bagaroso

de inRcio& os minutos& as recorda@Fes& as pessoas& os borregos l se

decidem a trotar no uintal onde uma olhinha de cenoura se desa

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em tremuras& a minha prima abre a anela inaugurando os campos&

um dos relógios

Qpor sinal o da cómodaS

aborrecido com a lentido do tempo& adianta-se aos restantes

ampliando o dia& no estabelecimento do ouriBes

QBamos suporS

sete e de e os colegas de imediato sete e de tambKm no

instinto dos rebanhos seguindo o primeiro bicho ue decide deslocar-

se deste talude para auele& a mesma coisa com as perdies de

ainheira em ainheira ou os gansos do merceeiro ue no se

libertam do bando& l Bo eles de pesco@o ao alto a buinar& no

 ardim +onstantino& antes de o pimpolho me mandar embora& eram

as tipuanas a inclinarem-se U uma apesar de nem chuBa nem Bento& a

minha me a chamar-me& eu conBencida ue ela noBa& com as botas e

o aBental de trabalhar na terra e ao erguer o estore& em Lisboa& uma

senhora de idade cuidando ue aponeiras e uma manta entre os

troncos porue Bi o meu tio entrar na coinha a mostrar-lha no

numa Jria& em Bo baiCa

Qe portanto numa Jria compreendo-o agoraS- O ue K isto=

cortando a manta com a aca e tombando numa cadeira a seguir&

a manta

Qo ue sobraBa da mantaS

ue a minha me trouCe consigo para o ardim +onstantino e

depois da sua morte encontrei numa arca mais um anel ue nunca

lhe Bi no dedo

QtiBe pena de no serBir no meu& as articula@Fes dela mais NnasSe um peda@o de brinco embrulhados num ornal em ue tambKm

um boto de colete e um rasuito Baio& sem ualuer cheiro dentro

tirando o lcool da essVncia mas enrauecido& tKnue& como

*antarKm enrauecida& tKnue& uma iluso de castelo& a esposa do

meu tio debru@ada para o tanue& um derradeiro caBalo a Ntar-me e

a partir daR Lisboa& o pimpolho de inRcio acompanhando a me e nas

Jltimas Bisitas soinho& crescido& impaciente& a muina de costura a

ensurdecer o andar com a agulha

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Qtic& tic& ticS

imitando os relógios& o pimpolho U entrada do cubRculo& nos

interBalos da agulha

- %em atK ao Nm do mVs para sair de c

o ue no me preocupou dado ue o homem de ue escreBia o

nome sempre ausente da loa& a senhora dele& to solitria uanto eu&

a suspirar ao balco pedindo desculpa de se enganar nas linhas& a

procurar nas algibeiras o len@o ue traia nos dedos& a sorrir-me ao

descobrir o len@o numa alegria desditosa& eCactamente o sorriso

Qpresumo euS

ue acharia na minha me se lhe eCibisse a manta& o ue ser

eito dos choupos& dos grilos& do cemitKrio antigo cercado de

mimosas& aui onde habito d-me impresso ue o mar& ondas ue

no consigo Ber mas cuo som adiBinho& esteBas rasteiras& chorFes& o

ue talBe seam penedos a seguir a um muro& a me do pimpolho

entraBa na saleta e os retratos da camilha

- Esta uem K=

uma descendente& uma Biinha& a neta de um empregado nosso&

o arrieiro& o cortador& o ue se ocupaBa dos porcos ou ento uma órdo pensionato das reiras& uma antiga aluna da cateuese na igrea&

umamulher sem marido porue no usa alian@a& percebia-se ue se

penteaBa e mudaBa a roupa na iluso de agradar-nos& ue penteaBa e

mudaBa a roupa ao pimpolho& a minha me

- ,m biscoito=

a ordenar-me

- +hega aR a lata

e o pimpolho& proibido pela me de aceitar& diBidido entre a gulae o receio& a me do pimpolho antes ue a gula Bencesse

- Ele no tem ome madrinha

e a lata echada a regressar ao armrio com o pimpolho& ainda

ue parado& saindo de si mesmo a acompanhar-lhe o traecto&

lembro-me dele uando o meu corpo acompanha as marKs para alKm

das esteBas& dos chorFes& dos penedos& lembro-me da insónia dos

caBalos toda a noite a Ntar-me e no me lembro h uanto tempo o

pimpolho me mandou embora do ardim +onstantino& Binte& Binte e

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cinco anos& trinta nem o ue uerem dier Binte& Binte e cinco anos

ou trinta para mim ue desconhe@o os ue tenho se pensar na minha

idade& suponho ue setenta ou oitenta na tarde em ue o pimpolho

Qporue era tarde& era Bero& recordo-me das nuBens& no

muitas& duas ou trVs de leste para oeste no sentido da gua& o

pimpolho desinteressado das nuBens e eu uase sem escut-lo

deriBado a ue uma delas de bordos rosados& no a Bia desde

*antarKm& no ano em ue o solicitador aleceuS

- %em atK ao Nm do mVs para sair de c

enuanto continuaBa& como desde crian@a& a eCaminar o armrio

onde echBamos os biscoitos sem coragem de proB-los& ele a alar

comigo e eu a pensar ue deBia pegar-lhe ao colo& brincar com ele&

distraR-lo& perguntar-lheApetece-te os biscoitos=

no& perguntar-lhe

- +ontinua a apetecer-te=

#aV-lo sentir-se menos U beira de morrer como uando

regressaBa com a me ao sRtio onde moraBam e o pimpolho diante de

um rolo de cordas num ponto sob as gaiBotas na mira ue o pai um

dia destes ali& aNan@ar-lhe- O teu Belho Bai chegar

sem me ralar ue ele

- %em atK ao Nm do mVs para sair de c

porue no era este segundo andar do ardim +onstantino ue

ele ueria& era um comboio Boltando de #ran@a& um gesto nem ue

osse a enCot-lo

- %rambolho

e o pimpolho ue BocV di ser seu pai contente& sossegado& atrotar na direc@o do capacho uando alguKm se aproCima& toma um

biscoito da lata& aproBeita& mastiga& a me dele no

- <V l como te portas

 Bisto ue ele adulto& sem me& barcos ue no me incomodaBam

h sKculos principiaram a descer a rua de lanternas acesas& a minha

dJBida sobre se eram os ces ou as mulheres ue choraBam&

reTectindo melhor nem ces nem mulheres& os arbustos do ardim

+onstantino na chuBinha de outubro& um Bendedor de hortali@a&

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apeteceu-me escreBer o nome do homem nos Bidros ou erguer a

tampa do piano e eCperimentar uma nota

Qaguda& graBe& ue me ralaBa a mimS

para ue ualuer coisa connosco& uma nota ecoando muito

tempo atK se aparentar Us ondas ue suspeito eCistirem para alKm

das esteBas& hoe por eCemplo antes de BocV chegar uma arBKloa& ue

K sinal de gua& empoleirada nauele cacto

Qo Jnico ue eCisteS

com a Torinha aul& neBoeiros& baRas e tudo isto& se assim me

posso eCprimir& na arBKloa poisada no cacto com uma Tor aul& h

alturas em ue espero a semana inteira por ela& chego a ueiCar-me

U minha colega de uarto& apontando-lhe a Tor deste lado do muro

Qh outras por aRS

- Passa-se sKculos e a arBKola nada

embora me pare@a

Qno me atreBo a ur-loS

ue mais arBKloas a seguir ao rebordo de pedra& a minha colega

trocou os óculos de perto pelos óculos de longe

Qe por um instante os óculos do ouriBes a comer o pVssego& uminstante mais uga ue em geral os instantes leBando-me a admitir

ue inclusiBe as recorda@Fes nos Bo abandonando uma a uma&

pergunto-me o ue Ncar uando todas se tiBerem idoS

a minha colega com os óculos de longe e serBindo-se dos óculos

de perto a Nm de designar o cacto

- ArBKloa=

no acreditando ue alguma Be as ondas a uatrocentos ou

uinhentos metros de nós& amarelas& brancas& Bermelhas& cor delama uando aogaBam caBalos& giraBam& Bimieiros e um boi

abra@ado a um tronco ue protestaBa no Bento& a minha colega ue

no sabe nada de barcos

Qo ue Ncar uando todas as recorda@Fes se orem& atK o nome

do homem ue Bou escreBendo com o dedo& em momentos de

desWnimo penso ue o nome errado& comparo o nome escrito com o

nome ue lembro e decido aperei@oar uma Bogal como se

aperei@oando uma Bogal auele nome de actoS

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a minha colega ue no sabe nada de barcos& ignora os sapos& as

cheias& os rangos ue bicaBam os caiCilhos procurando entrar& a

substituir os óculos de longe pelos óculos de perto e com os óculos

de perto

Ql est o ouriBes de noBo& no tenho culpa& K assimS

os olhos dela enormes& Beiainhas& saliVncias mas nenhuma

lanterna ue descesse a rua& um uarteiro ualuer de Lisboa

Qno o ardim +onstantino& esse conhe@o-o bemS

onde prKdios de auleo& Barandas antigas

Quase *antarKm palaBra& onde uer ue BiBamos pouco muda

no K=S

um tapume a esconder os restos do ue antigamente uma casa e

hoe calhaus& barrotes& a chaminK ue teimaBa& a minha colega ue

se me meteu na ideia ter morado ali antes da cama mesmo ao lado

da minha& aos domingos passeios com a amRlia na praia

Qporue h-de haBer uma praia& areia& desperdRcios& um sRtio

onde as arBKloas ninhosS

aposto ue um almo@o na esplanada

Qo ue eu no daBa por um almo@o na esplanadaSe ela eli com os reTeCos& as cores& essas coisas no gKnero

Qpauetes por eCemploS

ue no consigo Ber reduida a um cacto com uma Torinha aul

e U arBKloa ue ultimamente tem andado arredada& em certas

alturas& de manh sobretudo& uando a coluna me incomoda menos&

se calha demorar-me U anela inormo a minha colega

- <oltou

reerindo-me ao pssaro& atendendo Us circunstWncias a uepoderia reerir-me& eu segura ue a arBKloa

- <oltou

nós duas como namoradas de cabecinhas unidas e Bai na Bolta

um galho de aBelaneira ue nunca Bi com aBels& promessas de

botFes ue desistem& se esarelam e pronto& um papelito ou uma

olha a dan@aricar sem descanso entre a anela e o cacto& pe@o

desculpa U minha colega

- Enganei-me dona Oelinha toda a gente se engana

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a minha colega desiludida porue um pssaro& sea ual or& K

uma noBidade na monotonia em ue estamos& peueno almo@o&

uarto& almo@o& uarto& missa& uarto& antar& uarto& conNsso U

seCta-eira e arro-doce ao domingo& a minha colega Bolta a

substituir os óculos de longe pelos óculos de perto e eis os olhos

enormes& o tapume escondendo os restos do ue antigamente uma

casa& as tais pedras& os tais barrotes& a tal chaminK ue teimaBa

- Habitou aR dona Oelinha=

canos ao lKu& erBas ruins& um alguidar ao contrrio& uem me

garante ue o ardim +onstantino no uma misKria tambKm oculta

pela piedade das rBores& gra@as a "eus tenho o cacto para consolar-

me& ideia da arBKola

 Qmesmo ue no arBKloa& um papelito& uma olhaS

ue tra consigo a ideia do mar& barcos com lanternas rua

abaiCo& uma mulher abra@ada aos Bimieiros num grito parado& h

ocasiFes em ue acordo de noite& dou conta do silVncio U minha roda&

do meu tio

- +ala-te

e imagino ue esse grito o meu grito& o meu tio- +ala-te

enuanto no sei o uV acontece e logo a empregada

- 9ueres assustar as outras Belhas tu=

empurrando-me contra o colcho como o meu tio me empurraBa&

o mesmo aBiso na minha orelha

- +ala-te

o mesmo ueiCo no meu pesco@o

- +ala-teo mesmo corpo no meu ue doRa& ulgaBa ue ia chorar e no

lgrimas& um co a morder-me a barriga& deiCaBa de doer e aNnal eu

inteira& doRa de noBo porue o co& porue dedos& no mandRbulas&

dedos

- +ala-te

Qdurante o dia nenhum co& o meu tio

- *ai daR

e no

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- *ai daR

uma pressa idVntica ao

- +ala-te

eu sem entender

- <ocV K um cachorro ou uma pessoa senhor=

comia como eu& alaBa& ao piorar do sangue a eCpresso dele to

ansiosa

- $o Bou morrer Mariana=

e portanto BocV uma pessoa senhorS

o grito desBanecia-se em mim& nenhuma mulher abra@ada aos

 Bimieiros& a minha me sem coragem de ralhar com o co& medrosa

dele

- O teu tio

o ouriBes um anel ou o peda@o de um brinco& o meu tio

- *ai daR

a empregada a soltar-me

- Estou arta de Bos aturar carca@as

doe ou uine carca@as de caBalos aogadas na sala de estar&

demasiadas bochechas& demasiadas orelhas de sJbito alertaescutando o ue no h& mandRbulas ue no cessam de insistir em

perguntas sem Bo& uma delas amarrada U cadeira por tiras de len@ol

e a empregada

- A proessora de rancVs

ue de uando em uando anuncia por uma rac@o da boca

Qdo ue ter sido a bocaS

- e crois en "ieu

alguns ueiCais& a lRnguaQno bem a lRngua mas uma lRnguaS

e se aunda de noBo& a proessora de rancVs moendo Berbos&

pronomes atK ue um mJsculo ou um tendo no pesco@o se cansaBa

e calaBa-se& no amRlia como a minha colega& uma irm ue se

plantaBa U sua rente arrastando um tripK

- $o me conheces AdKlia=

numa decep@o angada& eCibia-lhe um retrato Qparentes ue

leBantaBam as cabe@as desgostososS

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- "i-me uem K este AdKlia=

o nari da proessora de rancVs desBiaBa-se para longe&

aborrecido& uma melena decidia eCistir de repente na testa morta e

escapaBa-se do gancho& a melena enKrgica e a proessora de rancVs&

com os seus Berbos e os seus pronomes& insigniNcante ao lado& a

irm tomando-nos por testemunhas

- $em o paiinho lhe importa

num ressentimento sem Nm& se me mostrassem o retrato do

ouriBes.

Q- Xs serBida=S

o ue respondia& pouco depois de morarmos no ardim

+onstantino uma carta dele para mim ue a minha me rasgou&

tentei unir os peda@os e em lugar de palaBras dinheiro& duas notas

numa pgina em branco& ulgo ue no Bou esuecer a minha me a

Ntar-me& a insónia dos caBalos deuntos ue me olhaBam& olhaBam

Quase lhes escutaBa o galopeS

os caBalos to gordos girando

- Me

uis agarr-la- Me

e ela a urtar-se

- Larga-me

dando ideia ue o ouriBes em mim& eu ue no tinha um

pVssego& no lho estendi

- X serBida=

eu catore anos se tanto& nunca passeei nas aponeiras consigo

senhora& nunca estendi uma manta no cho& lhe ordenei- +ala-te

conorme suponho ue os homens& corpos to pesados ue

susto& ces ue mordiam& mordiam& arrancaBam peda@os e dor&

depois no dor& depois dor& no mandRbulas& dedos separando&

rasgando& o aBiso na orelha

- +ala-te

repare ue no K o ouriBes me& K a sua Nlha& sou eu& o pimpolho

a trotar para um rolo de cordas no ponto na esperan@a ue um

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sueito de chapKu a umar enuanto eu ue no espero nada a no

ser o mar numa arBKloa aui& no com auele cuo nome escreBo nos

caiCilhos& aui& a ocupar-me de BocV& a aer-lhe o comer& a limpar-

lhe o andar& a aud-la senhora& um dia destes Biaamos a *antarKm

prometo e espreitamos a casa& as oliBeiras partindo uma a uma& de

mistura com as ondas& na direc@o de Lisboa& os toiros ue nos

seguiam imóBeis& deitados na erBa& com auela cara deles ue

conBersa connosco sem aedumes& sem ódio& sem sangue por

enuanto nem bandarilhas nem mJsica

- <o matar-nos no K=

 Bo matar-Bos depois da corrida nas palhas urinadas dos

chiueiros& onde BocVs os no BVem& com um martelo e um espigo

na nuca consoante o pimpolho me matou& o piano acho ue com pena

de mim

Quem Bai matar o piano=S

- +uidado

logo ue a echadura ac ac& a porta a abrir-se soinha& a

muina de costura suspensa

Qulgo ue menos preocupada ue o pianoSo brilho da terrina ora no so ora na cómoda ora na camilha dos

Nnados& eu

Que idiotaS

deBia ter percebido& adiBinhado& opor-me a ue entrasse&

chamado em meu socorro os parentes das molduras

*empre 9ueridos

a Nm de ue eCpulsassem o pimpolho na direc@o do capacho

mas no por tu& por Bossa eCcelVncia& na Kpoca deles respeitos&educa@Fes& cerimónias

- *e nos permite a opinio no deseamos a presen@a de Bossa

eCcelVncia a importunar-nos por c

e o pimpolho& ue remKdio& a obedecer a@udado por bigodes&

bengalas& sobrecasacas solenes mas inelimente para mim os

parentes calados& a porta abrindo-se soinha e os colarinhos com

goma indierentes& a nota do piano& intimidada por eles& a calar-se

- $o era nada enganei-me

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a terrina em sossego aendo ue no Bia& a serenar-me& a

mentir

- $o K nada descansa

e o pimpolho unto U poltrona como se a me a acompanh-lo e

ele dois ou trVs anos diante do telo ue representaBa a princesa do

la@arote no cabelo a remar num baruinho& a me do pimpolho

- Ele no tem ome madrinha

a lata de biscoitos ue o proibiam de comer echada noa rmrio&

os retratos da camilha com o ranir do nari

- Este uem K=

um descendente& um Biinho& o Nlho de um empregado nosso e

ue empregados senhores& o arrieiro& o cortador& o ue se ocupaBa

dos porcos

Quma aca no pesco@o e eles suspensos no alguidar a sangrarem

gemidosS

um óro do pensionato& um antigo aluno da cateuese na igrea

Q*o Mateus& *o Marcos& *o Lucas& *o ooS

em todo o caso Nlho de uma mulher sem marido porue no tra

alian@a& percebia-se ue se penteaBa e mudaBa de roupa na ideia deagradar-nos e no nos agradaBa& uma pobre

- $o nos agradas Ks pobre

nós terra& gado& cria@o& nós caBalos ainda ue inchados de gua

e com os artelhos no ar& a insónia deles toda a noite a espiar-nos

QouBia-se-lhes o galope na lama dos campos& isso ue escutas

no so Bimieiros& no entendes nada de bichos& so os caBalos ue

 BoltamS

podia pegar no pimpolho ao colo& brincar com ele& distraR-lo&perguntar-lhe mostrando os biscoitos

- Apetece-te=

mesmo agora ue ele o dono do segundo andar no ardim

+onstantino e eu a inuilina& a hóspede

- +ontinua a apetecer-te rapa=

aud-lo a no se aTigir com um rolo de cordas no ponto sob as

gaiBotas na esperan@a ue o pai um dia destes no >eato

- O teu Belho Bai chegar

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no me aborrecendo ue ele

- %em atK ao Nm do mVs para sair de c

porue no era este apartamento ue ele ueria& a noite desde

as trVs horas no inBerno& este bairro& estes trastes

Quem pode uerer estes trastes=S

era um comboio Boltando de #ran@a e um cotoBelo a enCot-lo

- %rambolho

porue K o comboio ue te apetece no K& so as canas de pesca&

o ponto& no a minha mala na escada& os teus dedos no meu bra@o&

o cego do primeiro andar calculando o capacho

- >oa tarde

os passos do pimpolho& os meus passos& eu

- ,m biscoitinho& menino=

de orma ue no tenhas pressa& aproBeita& mastiga& a tua me

  no

- <V l como te portas

uma Be ue a partir de certa altura as mes desistem ou

perdem-se algures& tanto a& e continuamos soinhos& na loa do

homem de ue escreBia o nomeQse calhar no o nome dele& o nome do ouriBes& desculpe

senhora& no N por mal& oi sem uerer& saiu-me o nome do ouriBesS

na loa do homem de ue escreBia o nome o homem a olhar-me

Qnunca me olhara antesS

eu a entrar para a ambulWncia

- +omo te chamas tu=

eu

- "i-me o teu nome depressa ue esueci como te chamaseu

- 9uero escreBV-lo como deBe ser como te chamas depressa

o homem continuou a olhar-me ao echarem a ambulWncia& o

pimpolho ao lado do choer& um sueito de bata branca comigo e isto

h Binte& Binte e cinco anos& trinta& contem-me o ue signiNcam Binte&

 Binte e cinco anos& trinta eu ue ignoro os ue tenho& o mais antigo

ue lembro so Bimieiros a rodopiarem na gua& um boi uebrando

as patas num tronco& olhas na boca& cani@os

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Q- +omo te chamas tu=S

o rio ue ultrapassaBa a Binha numa pernada e alcan@aBa o

uintal& no sei se eram os ces ou as mulheres ou eu uem choraBa

no corredor

Qeu no& nunca choroS

a certea ue a gua ia cobrir os móBeis da coinha& apagar o

ogo e leBar-me consigo& se apagarem o ogo a casa morre

conorme na ambulWncia o segundo andar do ardim +onstantino

morreu e conorme nos sucede morrer se os relógios se calam Bisto

ue se alguKm impedir o moBimento de um pVndulo nenhum de nós

respira& as costelas bem tentam e o ar a ugir-nos& o sueito de bata

branca

- X para seu bem madame

no

- +ala-te

no um aBiso na minha orelha& um gestoito ma@ado

- X para seu bem madame

e um porto& uma rampa& narcisos& o pimpolho para a

empregada- Aui est a sua prenda

no aponeiras& no Bespas& no metade de um pVssego

- Xs serBida=

aui est a sua prenda apenas e a empregada a receber-me a

bagagem

Qpode chamar-se bagagem=S

a certea ue o mar pelo cheiro do Bento& eu para o pimpolho&

eu com esperan@a- X o mar=

dado ue só podia ser o mar& as ondas acol depois do cacto no

muro& os gansos do merceeiro de pesco@o buinando& a proessora de

rancVs

- e crois en "ieu

e a desaparecer em si mesma& no me incomodaBa a proessora&

no me incomodaBam as colegas& no me incomodaBa a empregada&

o uarto& as duas camas& o sueito de bata branca

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- X para seu bem madame

no me incomodaBa o arro-doce dos domingos com as iniciais

em canela& as ue escreBo no Bidro e so o nome do homem da loa

ue no me doeu nunca& no reparaBa em mim e no entanto eu para

o pimpolho& eu com esperan@a

- X o mar=

e de certea o mar deriBado a ue unto ao mar as arBKloas&

aem ninho nos penedos& chocam os oBos numa coBa& no cantam&

h Binte& Binte e cinco anos& trinta

Qno interessaS

ue a arBKloa ali& eu ali& o pimpolho a conBersar com a

empregada& a empregada impaciente comigo

- $o morres=

e no morremos nunca nós ue o %eo ao subir no transormou

em caBalos& aui est o cheiro das minhas crinas ao acordar de

manh& os meus dentes compridos& as minhas narinas redondas& hei-

de reconhecer os aneiros

QdJias de aneiros prometoS

pela pressa das nuBens& chegue comigo U anela& dV-se conta&perceba& se tiBesse uma lata de biscoitos estendia-lha

- X serBida=

o seu pai haBia de gostar ue eu para si

- X serBida=

embora nunca me ale das Nlhas& ala-me de *intra& de %aBira& de

uma hospedaria na ;ra@a& por Bees a cara dele mudada

- $o a pus aui por mal acredite

e um embara@o& um aceno ao acaso- $o a pus aui por mal teBe de ser compreende=

o pimpolho coitado no ardim +onstantino mais a esposa e a sua

irm e BocV& ultimamente no sei onde pra& no me Bisita& esueceu-

se& no aleceu& era o ue altaBa& deBe estar no ponto em ue um

petroleiro persa& albatroes& inelimente para ele no o mar dado

ue o mar um cacto com uma Tor aulinha& uma arBKloa& o mar no

mais ue um cacto& uma Tor aulinha e uma Jnica arBKloa

Quma arBKloa bastaS

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o mar a seguir ao muro e um dia destes o pimpolho e eu

sentados na praia sem necessitar de conNdVncias& conBersas& sem

necessitar de mais nada seno permanecermos os dois& se Yssemos

mais noBos eu da areia a cham-lo e ele& como na Kpoca da minha

me& unto ao piano

Qunto a uma rocha a Ber-me

- +umprimenta esta senhora rapaS

tentando um sorriso& conseguindo um sorriso e escondendo-o&

de imediato& na timide da manga.

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SEGUNDA VISITA 

  agora& e se K mesmo seu pai& por ue motiBo o pimpolho

deiCou de repente de me Bisitar diga l= $em uma carta& uma

eCplica@o& uma palaBra& o banco ue traia do corredor para

conBersar comigo& esse onde BocV se senta& Baio& por mais ue o

olhe Baio& decido Nngir ue me distraio& obserBo o cacto& oi@o o mar&

no dou pelo pimpolho ue entretanto abriu a porta& aBan@a em bicos

de pKs como se eu a dormir

Qpara me aer uma surpresa coitadoS

espera em silVncio& uietinho

Qporue ele uma crian@a& to tRmidoS

ue eu repare na sua chegada

Qnós ao mesmo tempo aui e no ardim +onstantinoSreparo

Qcom pena de no haBer uma lata de biscoitos& tomaS

para lhe aer a Bontade

Q- <ieste h muito tempo pimpolho=S

e ninguKm& a porta echada& eu soinha& as ondas se calhar

ondas nenhumas& só o Bento numa copa& nada& os retratos da camilha

- O amr no eCiste

dado ue me detestam conorme detestaram a minha me- $as aponeiras com o ouriBes ue horror

no me uerem eli

"eiCaste-nos Ncar mal desiludiste-nos

Qno ardim +onstantino o ruRdo da muina de costura uase

imitaBa a gua a retirar-se e a crescer& o assobio dos penedosS

Us Bees ao entrar no uarto penso em ocupar o lugar do

pimpolho& dier-me

- >oa tarde

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para sentir ue nós dois untos na sala& a me dele e a minha

Q*empre 9ueridasS

alando no sei de uV sem atentarem na gente& o pimpolho um

catraio

Q- <V l como te portasS

e eu ue a minha me preeria esuecer desculpando-se aos

parentes

- Minha Nlha essa=

na ideia de conBencV-los

- ,ma hóspede

os deuntos a leBantarem em silVncio as cabe@as desgostosas& a

minha me

- PrecisaBa de uma empregada ue me audasse na casa

e as cabe@as censurando-a& a otograNa de um senhor de

panam enriuecido no >rasil& procissFes de ue se percebiam

aninhos& andores e o resto uma mancha cinenta& o pimpolho e eu

neste uarto aguardando ue a arBKloa& anunciaBa-lhe

- "aui a pouco uma arBKloa

e BocV ue no se preocupa com pssaros a uem eu igualmente- "aui a pouco uma arBKloa

a recusar a arBKloa com o enado dos ombros& BocV no parecida

com ele& no preocupada connosco

- +onte-me do meu pai

preocupada comigo

- +onte-me de uma crian@a

a trotar sem destino sob a pressa das gaiBotas num bairro de

hortainhas& traineiras& eu com Bontade de perguntar-lhe& de costaspara a anela& uase de costas para si

- $unca lhe alou de nós o pimpolho=

e calada& no na mira de uma arBKloa e ondas& sem esperar sea

o ue or e aendo de conta& atK para mim mesma& ue espero&

sabendo ue um dia destes eu uma moldura na camilha& peuena&

atrs das outras& a Jnica sem nenhum

*empre 9uerido

por baiCo& em rela@o U ual ninguKm

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- E essa aR uem era=

e portanto o segundo andar do ardim +onstantino deiCando de

eCistir ainda ue habitem nele

Qhabitaro nele=S

os móBeis outros móBeis& os auleos da coinha mudados& as

cortinas dierentes e no o segundo andar do ardim +onstantino&

uma casa ue no conhe@o e me no conhece& outros arbustos&

outras rBores& nenhum caBalo morto a Ntar-nos& nenhuns telhados

submersos& BocV

- +onte-me do meu pai

para ue lhe ale de si& BocV como se no soubesse

- +onte-me da mulher com uem o meu pai se encontraBa

para conseguir entender uem so os homens ue encontra& ou

sea o marido da sua irm

- +unhadinha

sea o economista do emprego a uem BocV

- $o me leBas ao circo a assistir aos palha@os=

e o economista deiCando de Bestir-se& surpreendido

- Ao circo=por no poder dar conta ue o pimpolho de nari escarlate e

cabeleira ruiBa entre eles& sempre o Jltimo da Nla& o mais apagado& o

mais tRmido& BocV indignada com a timide

- Pai

ue talBe só eu e a mulher com uem se encontraBa

aceitssemos conorme aceitBamos o comboio de #ran@a e o

pimpolho na esta@o continuando connosco& aceitBamos ue

espiolhasse as carruagens& sem tempo para nós& mesmo nahospedaria da ;ra@a ou em %aBira ou em *intra& receando ue o pai

dele

- %rambolho

conorme BocV sem palaBras nos almo@os de domingo

- %rambolho

e o seu pai a escut-la dado ue apesar de no escutar a sua

irm a escutaBa a BocV& o pimpolho de caneta no ornal

Qas brancas ogam e ganhamS

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lembrando-se& ao ritmo de uma muina de costura ue no

trabalhaBa & de uma lata de biscoitos& lembrando-se de mim a uem

a empregada auda U tarde a instalar-se na cadeira

- Agora Ncas aR

e o cacto e o muro e o homem de ue escreBia o nome

Qainda ue tiBesse esuecido de como se chamaBa& ainda ue

com letras erradas era o nome certo ue eu escreBiaS

pela primeira Be& agora ue estaBa morto& a acenar-me da loa&

uma tarde em ue nenhum cliente ele

- Espere

Qou eu

- Espere=S

uma tarde em ue nenhum cliente no estou certa se o homem

se eu& acho ue eu

- Espere

uando se aastou do balco eu Qestou certa ue euS

- Espere

e o homem

- Perdo=um inBerno uase sem chuBa de orma ue em *antarKm

QsuponhoS

o %eo l em baiCo& guios de oBelhas U saRda da Bila& cheiros ue

se demoraBam nas coisas ao demorarem-se em mim& o armaKm da

loa no a seguir ao balco& ao lado do ue deBeria ser a casa onde

 Bapores de ritos e a esposa dele& eu ue nunca tiBe or@as para

mandar osse em uem osse& continuo a obedecer U empregada& Us

empregadas- LeBanta-te

- *enta-te

- +ome

e leBanto-me& sento-me& como& eu a apontar-lhe o armaKm isto K

uma espKcie de arrecada@o na ual Bolumes& acturas& eu para o

homem

- Acol

Qesse pssaro no muro no uma arBKloa& um estorninho& a

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arBKloa mais tarde& antes da noite& uando as sombras da parede

aumentarem deste lado com a sombra de um abeto a oscilar em

cimaS

o homem sem moBer-se& cansado

- Esueceu uma moeda do troco senhora

QdJias de estorninhos e no distingo a rBore em ue moram&

um carBalho& uma olaia& diem-me ue uma dJia de olaias ue so

sinal de marS

a moeda do troco no balco e eu a desprear a moeda& a

ordenar-lhe

- Acol

consoante o seu pai

consoante o pimpolho para a mulher na hospedaria da ;ra@a

Qno K isto ue lhe interessa& saber ue o seu pai a preeria=S

- Acol

no seu caso nunca

- Acol

a mo ue no se atreBia a pegar-lhe a come@ar o moBimento& a

desistir e ele a impedir-se ue um sorriso& um conBite& a impedir-se oseu nome

- auel

era isto conesse& o pimpolho para a mulher

- Acol

e acol uma colcha torta& a trepadeira nos caiCilhos a aumentar

com o Bento& no um hotel& no uma penso& uma hospedaria barata

no alto da cidade e no se Bia o castelo nem o rio& Biam-se

larguinhos& escadas& o seu pai Us uartas-eiras a hesitar& a esconder-se

Qdurante cinuenta e dois anos a hesitar& a esconder-seS

e mal BocV distraRda a entrar& a mulher ue ele conheceu antes

de conhecer a sua me& ulgou ter morrido no sanatório em +oimbra

Qo pimpolho ora do gradeamento

- X auiS

onde o no deiCaBam entrar& uma reira no topo dos degraus

- <-se embora

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chamando um maueiro e o maueiro

- 9uer adoecer amigo=

a reira ou o antasma de uma reira

Qo ter@o U cintura& o cruciNCoS

uma campainha algures a conBocar os mortos

*empre 9ueridos

obrigando-os a sair de uma dJia de camilhas e a caminhar

corredor ora erguendo as cabe@as desgostosas& todos eles com os

meus olhos& o meu tio& o ouriBes& crian@as de Bestido antigo com

sorrisos uase intactos de Belhos

Quando aleciam em *antarKm a idade delas mudaBa traendo a

lama das cheias no pesco@o& na bocaS

de tempos a tempos um cordeiro U deriBa& uma oliBeira sem

raRes na direc@o de Lisboa& senhoras de gola de renda

surpreendidas com o pimpolho

- *abes o nome deste +lotilde=

a pressa mole das Bacas& guas de sombra percorridas por

barcos de lanternas acesas enCotando o seu pai.

- 9uer adoecer comigo=para a esta@o de +oimbra

- <-se embora depressa

eu na cadeira perto da anela e ele nesse banco onde BocV se

senta Bendo-os passar um a um& o ue nos pareceu a mulher da

hospedaria da ;ra@a com eles

Qainda no da hospedaria da ;ra@a nem de %aBira nem das

accias de *intra& uma rapariga ou nem uma rapariga& uma menina

de Bestido de comunho solene encostada U mesa de pK-de-galo emue uma bailarina de corda giraBaS

e o pimpolho neste mesmo uarto

- Ela no

o pimpolho

Qno uma ordem& o seu pai a pedir-lheS

- $o te separes de mim

e por conseuVncia a mulher com pena dele

Qo seu pai achaBa ue com pena deleS

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todos os agostos dois toldos a seguir ao Bosso em %aBira

conorme duas ou trVs mesas

Qou uatro& ou cincoS

a seguir U Bossa na esplanada U tarde& as ondas do AlgarBe

menos speras& mais claras& no as minhas ondas em ue BocV no

acredita dado ue este bairro

Qna sua opinioS

demasiado longe do mar& o mar no outro eCtremo da cidade e

no bem o mar& o rio& ou sea o conBKs de um petroleiro a Bibrar ecos

e ecos& bebKs abrindo as goelas de ome

QdVem-lhes peiCe cru e assimS

as pedras e a terra

Qno areia& terraS

protegendo os esgotos& o mar eBidentemente ue no um cacto

nem uma Torinha aul com uma arBKloa em cima& o mar untas de

bois na praia& marinheiros parecidos com a dama de espadas alando

um latim de lpides de igrea a ue altaBam letras e o rei U espera

deles num palanue& o mar o primo +asimiro a limpar a chBa da cara

arrastando a mala no cais - Ests a rir-te de uV=

uando ninguKm se ria de nada

- Ests a rir-te de uV=

e a secar-se na manga& a chuBa apenas na cara dele& no em nós&

o barco aastaBa-se a tossir e o primo +asimiro l em cima entre

dJias de primos +asimiros secando-se na manga

- Ests a rir-te de uV=

uando eram eles ue se riam& no com a boca& a boca sKria- <ais Ncar a pensar nele a Bida inteira peuena=

os dentes rindo soinhos& dentes de caBalo de uando o %eo

subia& o meu tio

- +ala-te

e dor& depois no dor& depois dor& esse cheiro de abrirem a goela

do porco eito de berros& tigelas de sangue& peda@os ue tombaBam

na selha& eu Bestida desse cheiro& eu esse cheiro e como eu esse

cheiro eu para o homem de ue escreBia o nome nos caiCilhos

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desculpaBa-se para mim aastando o ar com a moinha

- 9ue tolice perdoe

aturaBa-lhe as antasias& interessaBa-se por ela e a internada

- Pimpolho

como se ele um parente& um aNlhado& um sobrinho e se calhar

um aNlhado ou um sobrinho dado ue a internada lhe conhecera a

me& lhe estaBa a par da inWncia& se preocupaBa

- $o Boltaste ao >eato=

mencionando otograNas de noiBas numa loeca ualuer& noiBas

ou gaiBotas ue surgiam da montra& num bando de grinaldas& aos

cRrculos no tal >eato& remeCendo na margem a enodoar os Bestidos& o

sueito paciente como se concordasse com ela

Qembora atento Us carruagens

9ue tolice perdoeS

- X Berdade

aceitando ue desde crian@a num segundo andar do ardim

+onstantino onde a internada moraBa

Qmoraria=S

e l Binham um piano& terrinas& a me dela numa poltrona entreCailes abismada com o sueito

- +resceu tanto este ano

l Binha o ibateo

Qela ue eu apostaBa ter nascido em LisboaS

sob a orma de uma aldeia perto de *antarKm onde os sinos a

preBenirem das cheias atK a gua os calar& Bimieiros em ue se

empoleiraBam cabrinhas& soalhos baloi@ando& o tio dela

Qoutra inBen@o& tudo inBentado garanto-lheS- +ala-te

a empurr-la contra o traBesseiro conorme BocV deBeria aer

Qconorme eu a@oS

espa@ando-lhe no ouBido

Qto surda com a idadeS

- +ala-te

U medida ue a arBKloa em ue nunca acreditei no Nm de contas

ali& na Tor aul do cacto& proBaBelmente coincidVncia

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QcoincidVncia de certeaS

mas a arBKloa ali& no me encare dessa maneira dando a

entender ue no nota olhe ue a arBKloa ali& no me diga ue um

papel ou uma olha dado ue nem papel nem olha& a arBKloa ali& o

resto mentira mas o idiota do pssaro a sKrio& cinento ou castanho

repare& com uma caudainha espetada

Qa arBKloa aliS

tudo o resto imaginado K eBidente porKm a arBKloa ali& imaginou

a Bida dela e a Bida do sueito& a esposa& as duas Nlhas& o ardim

+onstantino& o homem ue escreBia o nome nos Bidros

Qela ue escreBe um nome ue no se entende& eito de letras ao

acaso& com a teimosia do dedoS

inBentou a mulher com uem o sueito Us uartas-eiras numa

hospedaria da gra@a igualmente inBentada& untou-lhe sabe-se l

poruV

Qa cabe@a to estranhaS

accias numa ainhaga de *intra e um toldo em %aBira& o sueito

sem a contrariar& por educa@o ou por dó

- X Berdadeeu para ue me deiCe em pa ue tenho a proessora de rancVs

U espera e "eus do lado dela& desconNado de mim

- X Berdade

a ouBi-la& ao aastar-me& continuando a sua história para a

colega do uarto

Qa arBKloa mudou-se para o muro numa espKcie de pulinho&

ainda ue no haa o mar a arBKloa autVnticaS

de orma ue no acredite& no lhe dV aten@o& a@a o seutrabalho de assistente social& B-se embora antes ue as guas

principiem a subir& lhe alcancem os oelhos& a cintura& os ombros&

 BocV a mudar de uarto e as guas perseguindo-a& a esconder-se na

coinha e na coinha um ouriBes com um pVssego na mo

- Xs serBida=

Qno bancadas& no loi@as& aponeirasS

 BocV cuo pai aleceu h dois ou trVs meses

Qo marido da sua irm ao teleone no

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- +unhadinha

no

- Esta tarde passo por aR cunhadinha

no uase a tro@-la& solene e BocV

- O ue se passar contigo=

o marido da sua irm

- O teu paiS

 BocV no gostaBa dele& suportaBa-o porue a gente no K&

porue a Bida no K& porue em certas alturas

Qdetestamos coness-loS

suportamos ualuer coisa tanto a& BocV demorando a

perceber

- +omo=

E ao perceber recusando perceber

- $o BocV

- Est a Bingar-se de mim K mentira

da sua indieren@a& da sua irrita@o& do modo como se despedia

de cara na parede

- *ome-teenoada do marido da sua irm e de si& enoada de si& do mKdico

a insistir em radiograNas& eCames& acompanhando-a U porta

- $o Bale a pena assustarmo-nos antes dos resultados tudo o

ue lhe posso dar so hipóteses

e a cólica de tempos a tempos& nem seuer uma cólica& mais

impresso ue cólica& BocV a dormir e a impresso

- Ol

pensaBa- ,ma cólica

acordaBa e cólica alguma& BocV desperta no escuro procurando

com a palma

- A minha cólica=

e moita& mais um mal estar ue uma nusea& um sabor aedo&

um langor& BocV para o marido da sua irm

- *ome-te

Q- Antes dos resultadosS

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e as pernas sem lhe pertencerem& uma incomodidade na espinha

e logo a seguir incomodidade alguma& para uV as amea@as do

mKdico& uma biópsia insiste ele& se estou bem& somente as digestFes

um bocadinho

Qdisse um bocadinhoS

mais lentas& desde ue me conhe@o os intestinos de uando em

uando ou a BesRcula ou o Rgado& onas nossas ue protestam sem

motiBo

QcaprichosS

se arrependeu& Boltam a trabalhar obedientes& nada ue me

perturbe portanto& Ncar um minuto a aBaliar-me e esou bem& o meu

pai o cora@o& os diabetes& ignoro o uV nas artKrias& eu bem e no

interior do sono uma inuieta@o& uma agonia& sentar-me na sala Us

escuras& Bigiando-me

- Estou bem

os ruRdos da rua ue me do medo& passos

Q- ,m gatuno=S

onde no passos ue alRBio& no me Bo roubar& eu de oelhos na

boca moBendo os dedos dos pKs& eu de dedos ue aem o ue ueromesmo o peueno ue a calista trataBa& colocou-lhe um adesiBo

porue uma eridinha& arranco o adesiBo e a eridinha sarou& o mal

estar desBaneceu-se& o mKdico desBaneceu-se& au reBoir mKdico no

necessito ue me trates& estou bem& digo ao marido da minha irm

ue sim dado ue em determinadas alturas& no sempre& em

determinadas alturas

Qodeio coness-loS

sea o ue or a agarrar-me o pesco@o& a suspender-me no arconsoante a coinheira suspendia um pato ou um rango& a abanar-

me o corpo morto& a largar o trapo em ue me tornei no so e

tirando essas alturas eu trapo algum& eu bem& o baton disar@a& a

mauilhagem disar@a& a blusa noBa disar@a& ao mudar de roupa o

corpo muda igualmente& altar U consulta& para uV a consulta se eu

bem& traer um copo de gua& aproBeitar& distrair-me& pegar numa

reBista& numa segunda reBista& aborrecer-me das reBistas& ligar a

mJsica e a mJsica entristece& Nco ba@a& turBa& houBe uma Kpoca em

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ue me alegraBa e agora entristece-me& mais ba@a& mais turBa& o ue

eCistir na mJsica ue me entristece& memórias ue destingem para

dentro& a preto e branco& me custam& desligar a mJsica& eu bem& sei

l por ue carga de gua a mJsica a traer a Bo do cretino do

marido da minha irm& no diBertido& solene

- O teu pai

eu a chegar do trabalho e uma espessura na Bo dele& um

eCagero de teatro& uma indulgVncia comigo

- O teu pai

conorme o mKdico daui a uns tempos uma espessura& um

eCagero de teatro& uma indulgVncia comigo& a alian@a no meu bra@o

- ,m problemainho desagradBel parece-me

e caBalos aogados e oBelhas e bois& dJias de ces a ladrarem l

ora atK me dar conta ue so os meus nerBos ue ladram

- <o-se embora cachorros

e os olhos dos ces comoBidos comigo

- A ineli da auel

no& os olhos deles preocupados comigo& tentando decirar as

indulgVncias do mKdico- O ue tens tu auel=

esses olhos compreensiBos& com pena

- A ineli da auel

o marido da minha irm para a minha irm num eCagero de

teatro

- A auel

$o

- O teu paiue o meu pai acabou-se& o meu pai torrFes& liCo& dado ue o

cora@o& os diabetes& uma Beia do cKrebro& o marido da minha irm

- A auel

e no pelo teleone ue no teleonaBa para casa Qos lbios dele

no meu ombro& o peito nos meus rins& o cigarro a alhar o cineiro& o

marido da minha irm

- $unca teleono para casa cunhadinha no habituo mal a tua

manaS

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durante as notRcias da teleBiso a minha irm inuieta

- Aconteceu-te alguma coisa=

e o marido da minha irm a soltar os talheres& a procurar o

guardanapo& a preparar-se porue o apartamento um palco e por

conseguinte cuidado com a entoa@o& o ritmo& o marido da minha

irm

- A auel

Q- A ineli da auelS

eu distraindo-me deles a pensar numa arBKloa e pensando numa

arBKloa logicamente o mar& o meu pai a esuecer o problema das

damas ele ue no esuecia o problema das damas

Qas brancas ogam e ganhamS

o meu pai BiBo e a proBa ue BiBo consiste em ue o meu pai

- auelinha

o meu pai ue amais

- auelinha

desta eita

- auelinha

comigo no circo& os caBalos de penacho na cabe@a a galoparemna pista& no os caBalos de *antarKm a girarem no lodo& com olhas e

raminhos e terra nas crinas mas caBalos amestrados ue estacaBam&

mudaBam de direc@o& galopaBam de noBo& aude com os seus dedos

pai& aperte one Bees os meus& se apertar one Bees os meus o

mKdico

- $enhum problemainho desagradBel parabKns tire umas

Krias descanse

de maneira ue dispenso a arBKloa- Podem Ncar com a arBKloa

cesso de ouBir a internada a alar do pimpolho na hospedaria da

;ra@a& nas accias de *intra& em %aBira embora a sua Bida me

intrigue senhor& poruV uma mulher e ual mulher e onde& o marido

da minha irm a Bingar-se de mim porue lhe urtei o oelho e lhe

disse ue no apesar da gente por Bees& o marido da minha irm

dias depois do uneral& numa espKcie de desdKm

Qa gua de colónia dele meu "eus& o suor dele meu "eus& o

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pWnico ue eu grBida dado ue me atrasei dois dias& uma Bertigem

ao leBantar-me& a cintura a incharS

- O teu pai no morreu no escritório nem num almo@o de amigos

procurando a camisa& a graBata e a minha garganta logo

- Espera

um

- Espera

mais rpido ue eu& eu ainda a pensar e a garganta

- Espera

atK ue o resto do corpo alcan@asse a garganta e ao alcan@ar a

garganta eu a prender-lhe o pulso& eu mais baiCo

- O meu pai morreu como=

demasiado baiCo ou to baiCo ue o marido da minha irm uase

arrependido

- H=

os lbios no meu ombro outra Be& o peito nos meus rins& o

marido da minha irm a molhar o indicador na lRngua para retirar a

cina do len@ol e os eleBadores do prKdio estalando Us guinadas& a

cortina da Baranda a engordar com o Bento& o pó na mesa decabeceira ue a empregada no BV& no candeeiro& no abaur& pó em

mim

Q- Espanee-me HelenaS

um pó to suo em mim& no apenas da rua& outro pó muito

antigo

Q- %em de laBar-me Helena de maneira ue saiaS

os lbios do marido da minha irm a teimarem-me no ombro e

nisto as pernas para cima e para baiCo& ualuer coisa num dos pKsue arranhaBa& insistia& aasto-o com o calcanhar& no o aasto com o

calcanhar& no o aasto com o calcanhar porue eu to esuisita de

sJbito& preciso ue me digas

- Era mentira no ligues

o marido da minha irm num Noinho

- Era mentira no ligues

e o pó a crescer em mim& o pó to suo em mim& pó de h

imensos anos& desde peuena no ardim +onstantino a pensar em

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ugir& a no responder aos meus pais& a esconder-me na copa& a porta

deles echada& a minha me a sorer ue eu bem a entendia pelas

lamenta@Fes do espaldar numa cadVncia de relógio em ue o pVndulo

tac tac na inten@o de enurecer-me& o pVndulo tac tac de propósito

atK ue a minha me

- E se as miJdas percebem=

e mal a minha me

- E se as miJdas percebem=

um atrito de roupa& a minha me

- Aten@o

e os passos do meu pai deBagarinho no soalho

Qpensando melhor no me importo ue o marido da minha irm

- O teu paiS

a minha me escandaliada

- $o Bestes o piama ao menos=

passando hesitante& a medir-me& com uma toalha na mo& de

cabelo molhado nas orelhas& na testa& um BestRgio de incisiBos no

pesco@o

- +onseguiu morder-se a si mesma no pesco@o me=e a eCpresso dela ora da cara& em mim& desconNada ou

medrosa Qno seiS

a eCpresso em mim& se me deiCassem leBantaBa a tampa do

piano e uma nota& outra nota& cada nota

- PoruV=

o piano a deender-me e mal se aperceberam ue o piano a

deender-me trVs homens agarraram nele e leBaram-no& o piano

indignado- $o uero

ao baterem-lhe a tampa numa esuina& deBem tV-lo morto com

uma aca& um garrote& uma seringa& o Beterinrio mataBa os gatos

doentes com uma inec@o na barriga de orma ue o piano& atado a

uma mesa& estremeceu e pronto& o audante do Beterinrio pegou-lhe

por um dos casti@ais& V-lo oscilar um momento e entornou-o no balde

- %inham mesmo ue entregar o piano ao Beterinrio me=

o piano com um banuinho

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Qo Nlho deleS

cuo assento rodaBa& empoleiraBa-me no banuinho& daBa

impulso com o bico dos sapatos e andaBa U Bolta& U Bolta& eu um

caBalo de circo a correr na pista com a minha tran@a a serBir de

penacho& aposto ue o Beterinrio uma inec@o no banuinho

tambKm e se carregasse em ualuer tecla K eBidente ue nada&

haBia uns rapaes no ardim +onstantino ue atormentaBam os

bichos e os nossos móBeis coitados& cheios de roupa e de loi@a

embrulhada em ornais mal podiam correr& se eu para as otograNas

da camilha

- "e uem herdmos BocVs=

os parentes embara@ados& mesmo os militares ue se habituam

ao eCagero dos tiros eBitando responder& NtaBam-se de moldura em

moldura

Q*empre 9ueridosS

lembro-me de uma menina da minha idade& muito sKria com um

arco

QpodRamos ter sido amigas& untarmo-nos contra os meus paisS

- "iemos-lhe=uma Belhota de aBental e saias compridas decidia ue no dado

ue o ueiCo dela a moBer-se e os militares a contragosto& porue

deseaBam audar-me

- "esaortunadamente so ordens

a menina tentou eCplicar-me pelo cantinho da boca sem ue os

outros percebessem mas nos lbios dela& apagados& iam altando

palaBras& uer dier umas rases sim outras no e as rases sim

conusas& o nome na margem da pelRcula Adelaide

ou sea para a minha uerida

Qe um espa@oS

com um beiinho grato da Adelaide& os algarismos da data

impossRBeis de reconstruir& apeteceu-me ue

para a minha uerida auel com um beiinho grato da Adelaide

muitos la@os& muitos olhos& um penteado em canudos& uma

pulseira ue se me aNgurou a ue a minha me usaBa e eu a inBear

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a minha me

"s-me a pulseira Adelaide=

 A minha me ue se calhar a conehceu idosa& sem canudos&

demorando sKculos a ir daui para ali& a minha me sem atentar nas

rendas& nos la@os& sobretudo sem atentar no arco e tudo estaBa no

arco& bastaBa dar com o arco e entendia-se& a minha me a uem

essas coisas escapam& por eCemplo nunca compreendeu ue com

sete anos eu grande

- "eiCe-me aud-la dona Adelaide espere um bocadinho cuidado

e a Adelaide

Qno dona AdelaideS

a recus-la& a Adelaide para mim

- A tua me no muda

e K Berdade& no muda& por mais ue me esorce no muda& aR

est a porta dos meus pais echada de noBo& ela esuecida ue tinha

sorido a sorer outra Be

Qh pessoas ue no aprendem e prontoS

as lamenta@Fes do espaldar numa cadVncia de relógio

Qtac tac& tac tacSno intuito de me aer perder a paciVncia e indignar-me com ela&

o

tac tac

de propósito& o meu pai a tossir& a minha me desiludida

- Acabaste=

e o

tac tac

outra Be& com menos Rmpeto& a perder-se& a minha me a acus-lo

- Acabaste

o atrito do piama& os passos do meu pai numa lentido de

derrota& uma desculpa humilde

- $o me sinto bem hoe

cabides no armrio& mais passos& o alRBio do colcho de uando a

minha me se erguia& o primeiro chinelo& o segundo chinelo ue

demoraBa a descobrir

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- Est para nascer o dia em ue te sintas bem tu

se ao menos se sentisse bem Us uartas-eiras pai na hospedaria

da ;ra@a& se ao menos a mulher

- $o se enerBe eu audo

um galho de trepadeira inormou-me a internada& rapaes de

cabeleira posti@a& a dona da hospedaria a comunicar por um tubinho

hlitos diRceis em ue boiaBam ordens& a mulher para o meu pai&

nunca por tu& por senhor& num cochicho compassiBo

Qlembro-me dela em %aBiraS

- Aguentamos uns minutos e Bai ser capa acredite

Qas brancas ogam e ganhamS

o meu pai a assoar-se e no momento de assoar-se se tiBesse uma

arBKloa daBa-lha& lembro-me da mulher em %aBira numa cadeira de

lona dois toldos a seguir ao nosso& ao Nm de alguns anos

cumprimentaBa a minha me num acenoinho modesto e esuecia-se

de nós

Q- Aguentamos uns minutos e Bai ser capa acrediteS

desembrulhando o crochet& um naperon acho ue Berde& no me

recordo bem& ue no acabaBa nunca& perguntar U internada- +onhece-a=

e a internada a escreBer um nome na anela impossRBel de ler

- Por ue motiBo o pimpolho deiCou de me Bisitar diga l=

a enermeira endireitando-a a arredar-lhe o cabelo da testa

- A partir de certa idade inBentam tudo no ligue

consoante eu inBento esta cólica nem seuer uma cólica& mais

impresso ue cólica& eu a dormir e ela no interior do meu sono&

decidia- <ou acordar

moBia os bra@os para cima onde eCistia o escuro& a lWmpada

acesa a transormar a minha aTi@o em uarto& nenhuma cólica

aNnal& procuraBa com a palma

- A minha cólica=

e a cólica perdida num ponto ualuer onde a minha me& noBa&

e a minha irm& peuena& continuam a BiBer num tempo ue oi e

no ual BiBo com elas& um segundo andar no ardim +onstantino ue

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e esperar em silVncio

Qele uma crian@a& to tRmidoS

ue a internada repare& o chame& lhe estenda um biscoito

porue h-de haBer biscoitos por aR& sempre tiBemos biscoitos& o ue

no alta nesta casa gra@as a "eus so biscoitos e apesar da me

dele

- <V l como te portas

a internada e o meu pai na esperan@a ue a arBKloa

Qa internada

- "aui a pouco uma arBKloaS

e com a arBKloa o mar ou sea no bem ondas& no bem penedos&

no bem pauetes& uma mudan@a de Bento ou nem Bento& ual Bento&

uma altera@o da lu& uma agita@o distante& a internada para mim

- O mar

e deBia ser o mar& era or@osamente o mar Bisto ue uma mulher

Q- +omo se chama a mulher diga-me o nome dela Bim aui para

ue me dissesse o seu nomeS

uma mulher de ue me no di o nome dois toldos a seguir ao

nosso numa cadeira de lonaQuma cadeira barata& no tem Bergonha ue a sua amante numa

cadeira barata pai=S

a retirar o crochet de um sauinho

Qa agulha& o naperon& o noBeloS

sem olhar para nós& entretida no com as gaiBotas& as ondas& o

 Bendedor de bolos

Qsenhor uV=S

entretidaQno estou a mentir& K assimS

com uma Torinha aul& uma insigniNcWncia& uma pKtala uase

inBisRBel ue

QB-se l adiBinhar poruVS

estremecia num muro.

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TERCEIRA VISITA 

Por culpa da empregada e das histórias ue lhe deBe ter

impingido a meu respeito atK a ue se diia Nlha do pimpolho deiCou

de Bisitar--me de modo ue uase nada sobea nesta casa para alKm

do uarto& das duas camas& da minha colega ue desistiu de

responder-me uando a chamo a preteCto de ualuer coisa aR ora

Q me esueci do marS

e ela Nnge ue no me escuta& no Bem& por Bees ala soinha

numa Bo de mimo& com o gato ue a proibiram de traer para c e

no entanto se lhe dobra nas pernas& um lombo ue a minha colega

 ulga acariciar a contrapelo ao acariciar o nada& K a sua mo ue

modela o bicho e ao model-lo sinto ue o animal me espreita&

desconNado& hostil& conorme o meu tio ao aastar-se de mim depoisdo

- +ala-te

e da mo na minha boca

- *e contares a alguKm arrependes-te

cada gesto seu& a maneira de comer por eCemplo& insistindo

- Arrependes-te

o meu tio mesmo hoe& de tempos a tempos& U noite& dado ue o

cheiro dele nos len@óis de mistura com cheiros mais recentes& o damudan@a das esta@Fes& o da Nlha do pimpolho ue apesar da anela

aberta continua no ar agarrando-se Us coisas& o da urina do gato a

uem a minha colega chamaBa a companhia de uma Bida o ue se me

aNgura um eCagero porue os gatos duram menos tempo ue

ualuer pessoa& de& doe anos

QB lS

e aR esto os achaues& a companhia de uma Bida uase sem

ossos& o caiCote da serradura seco& a tigela da comida inteira&

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sepultam-nos no esclarecendo bem se deuntos se BiBos& uma coBa

Qmais buraco do ue coBa& dois ou trVs golpes de enCadaS

e adeus gato sem ossos& na minha amRlia os buracos em torno

da nespereira ue se alisaBam com os pKs e uma por@o de gatos no

undo& em abril o restolho no tom ue era o deles U Kpoca em ue as

companhias de uma Bida cirandaBam por c& a suspeita de garras

aproCimando-se da superRcie a eCperimentarem o mundo com

prudVncia& cada pata um dedito ue BeriNca a temperatura do banho&

se caRsse na asneira de alertar a minha me designando-lhe o cho

- Olhe os gatos mam

mostraBa logo as olhas da nespereira e respondia

Quanto Bale a aposta=S

ue gato nenhum& o Bento ue eu associaBa Us aponeiras nas

alturas em ue a minha me se escapaBa comigo pela cancela

mentindo-me

- <amos ao baldio Us oBelhas

e em lugar de baldio um ragmento de muralha& uns troncos& o

ouriBes oendido& de nari no relógio

- no temos tempo atrasaste-tedando conta de mim e a Ntar-me como o meu tio me NtaBa antes

do

- +ala-te

uer dier o bei@o a Bibrar

- <em c

o ouriBes mais idoso ue eu ulgaBa& percebia-se ue imensos

anos

QduentosSpelos tendFes das mos& o modo como o relógio alhaBa a

algibeira antes de engordar nela& auilo ue a minha me

denominaBa Bento

Qpois sim& BentoS

traia-me motores de camioneta na estrada& o malho de um

 Biinho a corrigir a cerca& presen@as insigniNcantes

Qde insectos=S

as presen@as insigniNcantes dos gatos nas suas coBas

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Q- Olhe os gatos mamS

solas deslocando-se pela casa& gente& ao passo ue neste uarto

nem o som do mar hoe em dia

Qter acabado& o mar=S

substituRram o cacto por plantas de ue desconhe@o o nome e

desistiram depressa enredando-se no muro& aendo parte dele de tal

orma ue nem sombra possuem ou no caso de a manterem

inclinando para a terra os cauleitos plidos& em momentos de

desWnimo

Qter acabado& o mar=S

interrogo-me se o mar ter acabado e se tiBer acabado acaba

toda a esperan@a ue pus nele outrora& ue continuaria a pYr& ainda

ue insensata& se o soubesse comigo& eu de inRcio surpreendida por

tanta liberdade& tanto sol e depois a correr na areia& de chapKu de

palha com cereas de eltro& estacando para eCaminar um

desperdRcio& um seiCo& ondas só minhas& a espuma ue crepita e se

eBapora& o tesouro de um peda@o de corda e uma caiCinha Baia&

guardar a caiCa e a corda num rochedo e esuecer-me delas

distraRda pela Baidade do chapKu de palha ou a preocupa@o uealguma cerea se desprenda& lembrar-me da caiCa e do peda@o de

corda amanh& ao acordar numa conBic@o de alta sem perceber o

ue alta& remeCer episódios em Bo& caBalos aogados& Bimieiros e

nisto o milagre de um postigo a abrir-se na memória

- A minha corda e a minha caiCa senhores=

consoante me acontece

- O pimpolhoe amulher das uartas-eiras senhores=

 Acabados igualmente tal como o mar acabou& ondeQisto K a ue parte minhaS

terei ido busc-los para me sentir menos só& a minha me e o

segundo andar do ardim +onstantino esses eCistiram& no precisei

de cri-los& o piano& a terrina& etc& tudo Berdadeiro& limitei-me a

acrescentar umas sombras e a lata de biscoitos dado ue U minha

me lhe proibiram os doces& transormei o alaiate em ouriBes

Qo alaiate oendido& de nari no relógio

- no temos tempo atrasaste-teS

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nem seuer casado& BiJBo& com esse cheiro dos BiJBos eito de

muitos cheiros melancólicos acumulados numa inNnidade de serFes&

a mesma camisa Brios dias& o desleiCo da barba& nenhum Nlho ue

nos ogasse pedras& uma Nlha penso eu& de ue no tenho ideia mas a

minha me recordaBa

- Era gorda

e ao eCplicar

- Era gorda

as bochechas redondas& os bra@os aastados& uma Nlha emigrada

na >Klgica

Qporue no a >Klgica se me agrada o nome=S

portanto emigrada na >Klgica

QAlemanha=S

emigrada na >Klgica e pouco reconhecida ao pai Bisto ue o

alaiate para nós

- $em me manda um postal dona AdKlia

Qpara nós K como uem di& para a minha me& eu de oraS

numa tarde em ue nos crumos unto Us aponeiras& a minha

me e eu de regresso do baldio das oBelhas& ele com uma almoadade alNnetes e agulhas na lapela

QaNrmei ue na >Klgica& parem de insistir com a Alemanha no

me conundam maisS

a eCibir-nos um embrulho de ornal

- O ato do senhor tenente dona AdKlia

enBergonahdo por o surpreendermos

Qacharmos parece melhorS

o acharmos ora do seu cubRculo de alinhaBos e entretelas ondetantas Bees o alaiate no a trabalhar& num tamborete ou isso&

acrescentando o cheiro de mais um sero melancólico ao seu

conunto de cheiros e a ueiCar-se em silVncio

Qpor no haBer uma companhia a uem pudesse ueiCar-se em

 Bo altaS

ia dier ue abanando a cabe@a mas no caio num lugar-comum

to grosseiro& a ueiCar-se em silVncio& de cabe@a bem Nrme& da

ingratido da Nlha& no na Alemanha

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Que teimosiaS

ue desgaste para mim obrigarem-me a repetir ue na >Klgica&

ue esor@o idiota& e no em >ruCelas nem em >ruges

Qto pouco caio nessaS

em ;and& ue isso contaram ao alaiate

Qcom a história de lhe terem contado resolBo a uestoS

ele no seu tamborete de sero melancólico

- ;and=

agora sim a abanar a cabe@a por lhe sugerir mais um estampido

ue um nome

Qter de acto acabado o mar& conesso ue Bolta e meia& por

motiBos ue me impe@o de adiantar& desconNo ue noS

transormei o alaiate em ouriBes e acrescento ue o Berdadeiro

ouriBes doente desde h anos

Qesse casado& com um Nlho engenheiro ue moraBa em Lisboa

no& uma BiBenda em AlbarraueS

e o estabelecimento echado& no Bero& a conselho do doutor& a

esposa traia-o para a anela a Nm de aproBeitar os milagres de

agosto e l estaBa ele& só olhos seBeros& Baios& tanto uanto KpossRBel a olhos Baios tornarem-se seBeros ou ento seBeros porue

 Baios

Qpara mim d igualS

sea como or enormes

Qasseguro ue no ponta de eCagero nistoS

e mal as copas do largo principiaBam a tornar-se mais densas a

esposa remoBia o ouriBes para os undos da casa onde continuaBa

uase seguramente a oscilar nas treBas garantindo da suaseBeridade& do seu Baio

- +ompletei setenta e cinco em noBembro

transormei o alaiate em ouriBes& N-lo encontrar-se com a minha

me nas aponeiras& de nari no relógio& aborrecido com os atrasos e

a oerecer-me pVssegos& ele ue nunca me oereceu osse o ue osse

- Xs serBida=

Qtinha posto

nunca me oereceu osse o ue osse na Bida mas tirei o na Bida

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para impedir as rimas& nunca me oereceu osse o ue osse na

 Bida Ks serBida& como K diRcil contarS

incluR o meu tio e o

- +ala-te

por dois motiBos& primeiro por eCistir nesse episódio

Qmais ue um episódio& BriosS

uma rac@o de probabilidade e segundo por a BiolVncia e o

pecado constituRrem

Qapesar das aparVnciasS

o essencial da minha naturea& ho-de comproB-lo no ue alta

do liBro uando a estima ue entre nós Bai crescendo

Qcrescendo ou aumentando: nenhuma das ormas me satisa&

talBe sura uma terceira a salBar-me& acreditemos em milagresS

uando a estima ue entre nós Bai me permitir

Qe h-de permitirS

reBelar

Qno me agrada tambKmS

o carcter perBerso com ue me rechearam debaiCo desta pele&

uanto U rac@o de probabilidade do episódio com o meu tioQuatro ou cinco episódiosS

consistia em beios porBentura demasiado insistentes e

acompanhados de carRcias porBentura demasiado demoradas

incluindo ocasionalmente um dedinho

Qa propósito de dedos nunca Bi os dedos do ouriBes& só os olhosS

- !sto o ue K minha Nlha=

cua resposta eu no sabia mas me leBaBa a sorrir com agrado

por uma espKcie de praer conuso ue o tempo e outros dedos QnoeCcluindo os meusS

oram aperei@oando& atK o praer se eCtinguir nesta misKria em

ue ualuer arBKloa

Qpor alar em arBKloas nem uma para amostraS me contenta e

alegra de uma eCpectatiBa nunca realiada Qpargrao aceitBel&

haBer uem pense o contrrio& continuaS de ondas& a lembran@a do

meu tio aplicado& sKrio& a inBestigar-me

- !sto o ue K minha Nlha=

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e eu apertada nos oelhos dele& ao pensar na inWncia o meu tio&

o gosto de alisar pratas de chocolate e o chapKu de palha com

cereas de eltro

Qse descontarmos o medo de o perder e o elstico ue me

beliscaBa o ueiCoS

so os actores ue me encoraam a suportar a doen@a

Qestarei num uarto de hospital& num asilo& numa clRnica e

agora por ue motiBo a empregada ue se ocupa de mim usa touca=S

entendendo por doen@a esta diNculdade nos membros& o

problema dos rins& o ue ui e me escapa& o ue sou e duBido& a

minha me na BKspera de morrer

- O ue se passa comigo=

encucada com as horas

- 9ue horas so menina=

arregalando-se para o mostrador

- +inco e de dies tu=

poisaBa a cabe@a de ei@Fes descansadas ao comprido da cara

Qem ue sRtio andar o meu chapKu de palha=S

agitaBa-se de noBo- 9uantos minutos passaram=

Qno segundo andar do ardim +onstantino& no bengaleiro do

dentista& nos esgotos do %eo como tudo o ue enBelheceS

eu respondia

- +inco

ou

- %rVs

ou- ,m

na mira de a tranuiliar& dentro em breBe serei eu para a

empregada sem ue ela me dV a mo como N com a minha me U

ual os

- +inco

ou

- %rVs

ou

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uma cidade estrangeira& traBessas incompreensRBeis num noBelo

de esuinas& umarada de passarinhos ritos& uma lu de corBos&

branca e preta& U tardeS

trouCe o >eato para aui& presenteei-o com um ponto

Qno o presenteei& tinha ideia de um ponto naueles ladosS

e um petroleiro persa ue me custou a imaginar& comecei com

um naBio grego& mudei-o para a %uruia& para o

Qa Nlha do alaiate na >Klgica& Alemanha nem sonhem& apetece-

me conceber reTeCos a tremerem na chuBa& cores lRuidas ue se

sobrepFem& se derramam& se aastamS

para o Panam atK ue a PKrsia me diBertiu

Qpode chamar-se diBertimento a isto=S

gosto da palaBra& desaNei-me a mim mesma

- Porue no persa=

e meti-o no ponto com as suas cordas enroladas e o seu

homeinho a umar& oi a partir do homeninho das canas de pesca

Qpersonagem ue no me entusiasmou desenBolBer nem me

interessou por aR alKmS

ue o pimpolho surgiuQno o contrrioS

mais as noiBas da montra& o primo +asimiro& a me dele& tudo

isso ue aperei@oei sempre a Boltar ao inRcio

Q;andS

os telFes por eCemplo& a cena de ca@a& a bicicleta Bermelha& o

senhor 9uerubim e o seu saco de polBos& recordo-me de Bacilar

- O senhor 9uerubim solteiro=

de resolBer ue o senhor 9uerubim no era mais ue eu comuem ninguKm casou& apareceram um ou dois pretendentes ugaes&

 Bagas propostas& beios numa escada

Qnem lhes chamaria beios de to nerBosos& to rpidosS

meia dJia de cartas& uma delas em Berso& escrita a tinta sobre

linhas a lpis ue uma rKgua escorou e com pKtalas dentro& o

interesse

Qpareceu-meS

de um Biinho do ardim +onstantino ue me cumprimentaBa a

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medo

Qse me encontrasse nas escadas beios nerBosos& rpidos=S

 Bia-o auecer o leite ao antar& sem tirar o casaco& no ogo da

maruise atK ue uma noite& meses depois& um pote de acintos na

mesa& cortininhas de Cadre& uma senhora a auecer o leite por ele& o

 Biinho em mangas de camisa U espera& os cumprimentos cessaram e

oi ento ue lhe dei um nome ualuer

Qa ele& no ao dono da loaS

e principiei a desenh-lo no Bidro unindo letras ao acaso&

apagaBa--as com o cotoBelo& eCperimentaBa outras letras

Qbeios nerBosos& rpidos na escada: nem isso seuerS

tal como a partir do homeninho ue umaBa ui compondo o

pimpolho& entreguei-lhe uma esposa& duas Nlhas& o ornal ue o

 Biinho lia ao auecer o leite para o problema das damas

Qas brancas ogam e ganhamS

em ue o meu tio se ocupaBa inNnidades a torcer o lbio com o

indicador e o polegar& espreitando a solu@o Bencido& na pgina dos

anJncios a cuidar ue eu no notaBa& uer dier torcia-se U socapa

porue a solu@o ao contrrio e ele a Nngir ue se co@aBa oumassaaBa o pesco@o& emergia do problema anunciando

- est

numa Bo ue supunha Bitoriosa uando na realidade a

indeciso

- *erei estJpido=

tentando o

Qas brancas do mate em cinco lancesS

de Cadre para enchuma@ar o amor-próprio mas como na pginados anJncios a solu@o do Cadre da BKspera e a promessa

solu@o do problema de hoe no próCimo nJmero

Qsaberiam dos truues do meu tio=S

a eBidVncia ue era estJpido amarrotaBa-lhe a alma por mais

ue a minha tia

- $o te atormentes no Ks

nesse tom de piedade alsa

QachaBa eleS

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com ue se consolam moribundos

Qa Nlha do alaiate em >ruCelas& perdo& em ;and& detesto ter de

 Boltar ao assuntoS

e com ue a empregada me consola a mim traendo almoadas

para a coluna

Q- #icamos melhor no Ncamos=S

e aumentando o mal estar& para alKm de impedir o trabalho dos

glóbulos ue bem os sinto parados& nenhuma Bibra@o& nenhum

atrito& o mecanismo dos órgos NKis ue no me abandonaram

QdeBerei sentir-me grata=S

e uncionam aos trope@os ainda& peueno nJmero de soldados

ue Bo desertando um a um& presumo ue me resta uma parte do

cKrebro

Qcalculo euS

o cora@o

Quma aurRcula& duas aurRculas=S

alguns mJsculos

Qsatisaia-me com um BentrRculoS

subsidirios e lentos prosseguindo por hbito& entreguei aopimpolho uma esposa& duas Nlhas

Qa sua irm e BocVS

o segundo andar do ardim +onstantino onde moro ou antes

onde morei com a minha me e a seguir sem a minha me antes de

me traerem para aui& unto ao mar ue teima em esconder-se mas

continua próCimo como próCima a rapariga de chapKu de palha com

cereas de eltro segurando a copa com a luBa

Quma luBaScomo próCimos os meus tesouros

Qo peda@o de corda e a caiCinhaS

encoraando-me no seu rochedo& hei-de ter ocasio de chamar a

minha colega de uarto

- O mar Boltou

e nós a escutarmos as ondas& mesmo ue a empregada

- E uma camioneta senhoras

a escutarmos as ondas& um som parecido com o dos pinheiros

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uando no eCistem brisas& delicado& tranuilo& com um pouco de

sorte escamainhas ue surgem e desaparecem no tecto& o sio de

um penedo& arBKloas

Qdisse arBKloas no disse uma arBKloa& BriasS

entreguei ao pimpolho o meu segundo andar no ardim

+onstantino onde cada gaBeta um gemido dierente

Qno mencionando as echaduras dos armrios e os trincos das

 BarandasS

ao ponto de as reconhecer pelo som& se alguKm abrisse uma

delas adiBinhaBa de olhos echados

- #oi a de cima da cómoda

ou

- #oi a dos talheres no aparador

  Querida casa perdoa se em algum destes anos ui inusta

contigoS

e o pimpolho desobedecendo-me com ingratido a enBelhecer

em silVncio& a calBRcie& os diabetes& a enganar-se nas datas

Qno tanto como eu por enuanto mas l ir& l irS

deseando ue o paiQa asneira de permitir por ingenuidade ue o homeninho das

canas de pesca seu paiS

se apeasse de um comboio de #ran@a

Qno da >Klgica nem da Alemanha& da #ran@aS

em ue no tinha pensado

Qpara uV um comboio=S

e recusando-o de noBo consoante o recusaBa em crian@a

- %rambolhoo ue me aia sorer dado ue com o tempo me acostumei a ele

e mantinha

Qcontinuo a manter& o ue me Nca se o perco=S

uma amigBel cumplicidade

QNca-me o corpo destro@ado ue medem& retalham& maltratam&

um corpo ue tenho de aceitar como meu e detestoS

mantinha uma amigBel cumplicidade& uma ponta de ternura& o

desBelo natural para com auilo ue construR no intuito de me audar

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nos interBalos da ebre e ele atento aos comboios& empurrado nas

plataormas

Qual a rao de serem sempre cinentas& as gares=S

por Biaantes& bagagens& uncionrios de uniorme

- "esande

e todaBia teimando com o ponto na ideia

- O meu pai

Querida casa ue me receberia como uma intrusa hoe em dia&

uerido soalho ue esueceu os meus passos& deeitos da parede ue

sabia de cor e aos uais a amRlia do pimpolho oi acrescentando

outros& & uerido auleo uebrado da coinha& uerida gota espa@ada

no laBatório a cantar para mim& ueridos cheiros& meus Rntimos& o

ue direi de Bós& o da minha me suspenso& os das minhas diBersas

idades ue reconhe@o e me saJdam mostrando a uantidade de

pessoas ue ui sendo no percurso da Bida& as simpticas& as de ue

mal me lembro& as ue preeria no recordar nunca& tirando o

mKdico e o cobrador do gs nenhum homem na casa a no ser um

primo idoso com um pacotinho de broas ue me aia cócegas

- Ests a rir-te de uV=eu ue ui eita para o casamento& a dedica@o& a alegria todos

os dias renoBada de uma tosse conugal no capacho& entregar a outro

os melhores bocados de rosbie& contentar-me

generosa e satiseita da minha generosidade& pensando

- $o K isto o amor=

com a parte pior assada& a mais dura& uerida casa perdida

abandonada ao pó& aos gatunos& aos insectos ue prolieram no baNo

dos espa@os cerrados& na suidade e no recato& poders perdoar-me=So pimpolho& desobedecendo-me& em busca do pai ue ele tinha

receio ue no Biria nunca e no entanto detendo-se& mesmo longe de

Lisboa& se uma suspeita de carruagens ou uma locomotiBa a chamar&

gritos de Bapor ao crepJsculo ue nos do saudades

Qdessas U beira das lgrimasS

ignoramos de uV& carris inBadidos pelo capim desde o tempo da

inWncia& apeadeiros secundrios ue deiCaram de serBir& a iminVncia

de partida comum ao cais e Us malas gastas& sim& regoiar-me-ia

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com a parte pior assada da carne se um marido& um amigo& alguKm

ue por dó calasse os gritos de Bapor ao crepJsculo& os meus gritos

ue nem eu mesma oi@o e todaBia presentes& os da alma ue

protesta& aterrada& pede socorro& se cala& recome@a a pedir& se

conorma& sem or@as& com a iluso do mar

Q>Klgica& em especial ;and& perto ou longe do mar=S

apertando os próprios dedos& comprimindo as gengiBas& lutando

por um sorriso

Qto pobres os sorrisosS

sentindo-o surgir& hesitar& apagar-se& uando era noBa sorri com

a boca inteira algumas Bees& acreditei

Que inantilS

ou N men@o de acreditar& ulgo ue acreditei porue apesar de

tudo o tempo cheio de amanhs nessa Kpoca& tinha planos& diia

- $o ano ue Bem

diia

- Em chegando a primaBera

diia

- $o próCimo $atale tudo isso ao meu alcance sem esta diNculdade nos membros&

estas nódoas na pele& nenhuma guinada salBo um dente manso l

atrs e as glWndulas a uncionarem& percebo isso hoe ue a comida

custa& mudo-a de bochecha para bochecha sem coragem de engolir

Qia urar& e no sou pessoa de uras& ue o comboio de Paris na

esta@o& Biaantes& abra@osS

enuanto o pimpolho no meu segundo andar retirando a caneta

do bolso& a desenroscar-lhe a tampa para o problema das damas ueobserBaBa desde h minutos sem tocar na caneta pelo ue o acto de

desenroscar a tampa leBou a esposa e as Nlhas

Qduas no so e a terceira de pK arrumando CRcaras no louceiroS

a imaginarem ue descobrira a solu@o& uma das Nlhas casada& a

outra solteira ue nem sempre BisitaBa o ardim +onstantino aos

domingos

Qapesar de preerida pelo pimpolho eBitaBa Bisitar o ardim

+onstantino aos domingos& arredia& bruscaS

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e preocupaBa a me& uanto a preocupar o pai só podemos intuir

dado ue o pimpolho no comunicaBa& preeria recordar-se de ir com

a Nlha ao circo& dos caBalos com um penacho branco& dos palha@os

ue a assustaBam mais os naries redondos& as bocas pintadas sobre

as bocas autVnticas& plidas& os sapatos sem Nm

Querida casa abandonada ao pó& aos gatunos e aos insectos ue

prolieram na suidade e no silVncio poders realmente& no mais

secreto de ti& perdoar-me=S

o pimpolho preeria recordar-me ue ao saRrem do circo era

noite e choBia& as ruas sem lanteoulas nem ocos aNguraBam-se

turBas ou sea um cenrio deserto depois de uma representa@o sem

sucesso& ediRcios de cartolina& arBoreinhas de tbuas& olhas de

papel de seda a desprenderem-se murchas& a suspeita do pimpolho

ue a Bida dele assim& a suspeita do pimpolho& com a Nlha pela mo&

ue a Bida ue o esperaBa dentro da Bida dele assim& os sapatos de

ambos sapatos de palha@os pelo eco ue produiam no tal cenrio

deserto& algumas montras acesas onde os maneuins os seguiam na

atitude da $ossa *enhora da mesa de cabeceira do lado da esposa&

osorescente nalgumas pregas do manto e compelindo-o a apagar ocandeeiro para um abra@o rpido sob as chispas auladas da <irgem

Qser coincidVncia ue a Tor do cacto aul=S abra@o cuos

estremecimentos sem ruRdo diminuRam de reuVncia com os anos&

um calor plido& um saco de traBagem& uma espKcie de desgosto&

ligaBa o candeeiro incomodado pelas chispas auladas ue me

traiam U memória os gatos unto U nespereira transormando-se em

restolho& o montinho da esposa U sua esuerda apenas com uma das

mos e o cabelo de ora& apressaBa-se a apagar o candeeiro ue oimeu& de abaur cor-de-rosa

Qdeu-me mais problemas do ue ulgaBa escolher o tecidoS

amedrontado pela magrea da mo e embora no a Bisse

QBia as chispas auladas e uma manchinha de gua Bertical&

sempre mudando de lugar& ue concluiu ser o espelhoS

o medo ue a mo a aproCimar-se dele& a Nlar-lhe o cacha@o& a

condui-lo para a gruta ue os len@óis disar@aBam e U ual a esposa

pertencia & actiBa mas deunta& arrastando-o com ela& o seu rosto

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oriRcios na mancha de gua do espelho a suplicarem

- *alBa-nos

U medida ue os caBalos de penacho na cabe@a

Qos castanhos& os brancos& um deles preto& maiorS

giraBam no circo e pergunto-me se alo dele ou de mim& a

arBKloa ue

Qdeseo-o sinceramenteS

h-de Bir despedir-se antes de eu echar a anela& uma apari@o

de segundos& um cRrculo sobre o muro bastam-me& no tenho

coragem de lhe pedir ue poise& no me atreBo a tanto e depois echo

a anela e deito-me alheada do mar

Querida casa& uerido marS

ue me audou mais do ue ele sonha estes meses& digo U

empregada

- 9uero o meu chapKu de palha com cereas

e acho ue se depreende de eltro& poruV especiNcar& no de

plstico ue no haBia plstico uando era noBa& de eltro& em todo o

caso a Nm de ue me no apresente o chapKu errado acrescento

- O das cereas uma delas meio solta da abacoloco-o na cabe@a& seguro a copa com a palma e se os meus

pulmFes corresponderem

Qno lhes pe@o mais esor@os& prometoS

após inspirar uns segundos& a tomar balan@o& desato

imediatamente a correr& as articula@Fes obedientes tanto uanto a

minha idade permite& os artelhos soltando-se sem diNculdade da

areia eBitando essas pranchas uase submersas em ue pregos

cruKis& no pranchas de naBio& domKsticas& de cadeiras& de telhados&sulcadas de irregularidades& endas

QoCal no me canse nos primeiros metros& no me deseuilibre&

no tombe& "eus $osso *enhor auCilia-meS

correr no por mim& ue me interessa correr& pelo pimpolho

coitado a uem imaginei agradar entregando-lhe a mulher& uma

mulher dedicada& sub

Qia dier submissa mas no submissa& seria um erro& no

submissa como eu a uem o sueito da bata ao ual a empregada

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obedece

- <ire-se para a esuerda

e eu Biro-me para a esuerda

- "e costas para lhe palpar o apVndice

e entrego-lhe o apVndice embora os dedos ue me pesuisam a

barriga me arripiem& ou ento

hipótese ue no encaro

o apVndice congestionado& sensRBelS

uma mulher dedicada& uase uma menina& Bestida de comunho

solene& apoiando-se numa mesa de pK-de-galo em ue uma bailarina

de corda desistiu de dan@ar& esteBe doente num sanatório em

+oimbra

Qespero ue sanatórios em +oimbra

no ;and& ;and em >ruCelas& capital >Klgica& ue parBoRce&

;and na >Klgica& capital >ruCelas& deiCem-me em pa um momentoS

esteBe doente num sanatório em +oimbra& cidade ue me

inormaram considerBel e portanto& como em ualuer sanatório

Qoi para isso ue os NeramS

conheceu de perto& na própria carne e na alheiaQengra@ada eCpressoS

a Bia sacra do sorimento& da dissolu@o& da morte& torturaram-

na com agulhas& pneumotóraCes& drenos& rasgaram-lhe duas

cicatries do lado onde oi a chaga de esus e assim a deBolBeram ao

mundo& uma mulher dedicada pimpolho& prometo ue te h-de

acompanhar Us uartas-eiras numa hospedaria da ;ra@a

Qualuer outra pessoa diria oi o ue se pYde arranar&

decididamente esta lRngua diBerte-meSue os clientes

Qsenhoras e caBalheiros& no eCcluindo rapaes acompanhados

por caBalheiros tambKm& alguns Bestidos de rapaes mas uma

percentagem raoBel

ou no negligenciBel

de cabeleira posti@a& mauilhados& com saiaS

ue pessoas to dignas como tu

QBou ter mo nisso descansaS

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reuentaBam U hora& isto K uma cama& um cabide& duas pagelas&

um galho de trepadeira nos caiCilhos para te distrair& embalar& se eu

tiBesse um galho de trepadeira em Be do muro e narcisos

Qcreio haBer mencionado ue no o cacto& narcisosS

os momentos de ebre mais suportBeis acho eu

Qual acho& aNrmoS

os momentos de ebre mais suportBeis& mais ceis& tu

Qrepara na dieren@aS

um galho de trepadeira& eu um muro a esarelar-se na

eCtremidade de um ptio ou sea o mesmo ue nada& recapitulando

ue estas coisas uerem-se por ordem e sempre ui amiga da

arruma@o& atK as otograNas dos ue aleceram antes do meu

nascimento e aos uais pouco deBo dispostas na camilha segundo os

respectiBos tamanhos& sem olhar a protestos& o sargento l atrs& o

bebK no seu caiCo por muito ue me impressione adiante&

recapitulando toma a hospedaria da ;ra@a& toma um toldo em %aBira&

toma as accias de *intra na primaBera aos domingos& toma uma

espKcie de amor no gKnero dauele ue senti aos trinta ou uarenta

anosQno me d Bontade de mentir& aos uarenta e seis anosS

pelo Biinho do leite e ue mesmo depois de acompanhado& e atK

aui onde estou& continuei a oerecer-lhe& inuebrantBel& a pensar

nele& a desenhar-lhe o nome ue no sabia no Bidro e era o seu& era o

seu& a minha colega de uarto ue para me contrariar conBersaBa

comigo

- +omo K ue aNrma ue K dele=

e todaBia aNrmo e continuarei a aNrmar ue embora apague edesenhe um nome dierente K sem dJBida o seu& o Biinho h-de

enBiuBar& separar-se& retirar as cortinas& o pote& auecer soinho o

seu leite& e mesmo ue cada ual no seu andar

Qcada ual no seu andar& K a BidaS

nenhum obstculo entre nós& beios nerBosos& rpidos& na minha

escada um dia e eu apoiada no corrimo segurando os beios com a

palma& eu um cheiro a untar-se aos demais na minha panóplia de

cheiros& no de perume nem de lo@o para a barba& o ue nasce no

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interior de mim& alastra& me agrada

Qa perspectiBa de um Nlho no me contrariaS

uma coisa minha ue cresce e me auda a correr

Q- O meu chapKu de palha depressaS

na direc@o do peda@o de corda e da caiCinha Baia ue

permanecem no rochedo intocadas& minhas e abra@arei contra mim

embalando-as de leBe& tratando-as por diminutiBos carinhosos&

traendo-as para aui e deiCando de sentir& como atK agora& a

ausVncia das ondas& da arBKloa& dessas lanternas ora descendo ora

subindo consoante as marKs& no sei se me percebe BocV& a Nlha do

pimpolho& uase a esmagar-me o cotoBelo

+onte-me do meu pai

como se o seu pai lhe Balesse& no Bale& tire daR o sentido& no

 Bale& tem de atraBessar por si& sem ninguKm ue a ampare& de mos

estendidas e pernas cautelosas& o ue lhe alta andar& se eu possuRsse

um segundo chapKu& e no possuo& emprestaBa-lho para as suas

noites na sala& de oelhos na boca& na eCpectatiBa ue a manh a

deenda uando as manhs tVm mais ue aer

Qe muito Neram elasSue deender a gente& protegemo-nos nós se ormos capaes&

aguardamos ue alguKm na escada connosco& isto K no bem na

escada connosco& alguKm oculto num dos patamares ue nos beia e

nos oge e K isto a eCistVncia compreende& alguKm ue U primeira

 Bista no reconhecemos

Qou no reconhecemos nuncaS

ue nos beia e nos oge deiCando-nos na treBa atK subirmos os

degraus a custo& Bacilando& pensando& regressarmos a casa e a chaBeue no entra na echadura porue nos enganmos& usmos a da

porta de entrada& no a da porta de cima& a outra ue no entra

tambKm& a do correio& U terceira chaBe o BestRbulo e nós sem energia&

de ndega contra um móBel& a coinha demasiado longe& o marido da

sua irm a alegrar-se no so

- +unhadinha

e no era ele pois no& para uV ele& to imbecil& era o pimpolho

Qno imagina a trabalheira ue o seu pai me deu& a trabalheira

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ue BocV me deuS

ue BocV ueria e ainda me alta a mulher& a história da mulher

ue adiBinho comprida e eu cansada palaBra& destranue um

bocadinho a anela no pelo mar ue desisti do mar& acabaram-se os

sonhos& acabou-se& pela tarde somente

Qcontento-me com a tardeS

U tarde& neste mVs& um Bentinho uase agradBel antes da

chegada da noite& uma Jltima nuBem aproCimadamente Bermelha& a

sombra da rBore ue nunca Beo a dobrar-se no muro antes da ebre

aumentar& uma harmonia& um socego

Qa minha me& "eus a tenha& escreBeria socegoS

e K assim

socego

no sossego

ue eu digo& digo ue U tarde& antes da ebre aumentar& uma

harmonia& um socego

Qreparou no socego& entendeu=S

e a mulher da hospedaria da ;ra@a dentro de mim& uase

inteira& no lhe conto do seu pai e do pimpolho atraBKs delaQBai desculpar-me K assimS

e no entanto uma história alegre tranuilie-se& um romance de

amor& gostaria de prometer-lhe ue um Nnal eli e garanto-lhe

esor@ar-me para ue um Nnal eli no apenas por si& por mim& no

calcula como preciso

Qto cansadaS

de um Nnal eli U medida ue a claridade declina sem peso no

muro acol& a copa da rBore aumenta& auilo ue resistia no meucorpo

Quma por@o de cKrebro& uma aurRcula& alguns mJsculosS

amolece& desiste

Qno supunha ue desistisse to cedo e todaBia desisteS

e to diRceis as palaBras& to lentas& gostaria de prometer-lhe

um Nnal eli& garanto-lhe esor@ar-me para ue um Nnal eli& heide

conseguir& embora a Bontade me escape& um Nnal eli enuanto a

copa da rBore

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Qa minha me socego& ue ueridaS

no cessa de aumentar e com ela a harmonia& o socego

Qno acha uerido& BocV=S

 unte-me este pulso ao outro desculpe& se o colarinho estiBer

desabotoado abotoe& se me der um eito no cabelo agrade@o& gostaria

QescreBer socego K bonitoS

ue retiBesse de mim a imagem de uma senhora composta antes

ue a copa da rBore suba o ptio& a anela& se dilate no soalho a

desliar para a cama anulando no seu traecto a botia de oCigKnio

Qa botia de oCigKnio ou um arro de Macau=S

os remKdios nesse tampo

Qno remKdios& as otograNas da camilhaS

anulando a camilha

Qseamos precisosS

o piano& a terrina& a poltrona& os armrios& o meu segundo andar

no ardim +onstantino a ue Nnalmente Boltei

Q- #a@a o aBor de entrarS

antes ue a copa da rBore ue no sei como se chama

Qno sei como se chama o Biinho& no sei como se chama arBoreS

antes ue a copa da rBore ue no sei como se chama

Qbeios nerBosos& rpidosS

inBada a coberta& me engula e na maruise em rente

Qno bem em rente& uaseS

a caneca de leite a auecer no ogo& no o Biinho& no a

senhora ue o acompanha& no BocV

Qsobretudo no BocVSna maruise em rente no mais ue a caneca de leite ue

ignoro uem colocou& no me interessa uem colocou& ninguKm

colocou& a auecer no ogo e na minha ebre ue aumenta uma

harmonia& um sossego

corrio: e na minha ebre ue aumenta uma harmonia& um

sossego

Qui capa& aplauda-meS

uma

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QeCprimo-me correctamente=S

serenidade& a caneca de leite ue h-de embaciar os caiCilhos

nos uais um dedo sem pessoa

Qo seu dedo espero eu& prometa-me ue o seu dedoS

alinhar o meu nome.

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9uatro As $arratiBas

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PRIMEIRA NARRATIVA 

+om o tempo a gente ue trabalhamos aui acaba por se

conhecer mais ou menos todos uns aos outros& uer tenhamos um

uarto alugado ao mVs uer Nuemos com os clientes nos cubRculos

de baiCo destinados aos assuntos mais rpidos& Us Bees a aguardar

de pK no corredor& calados

Qo ue K ue haBRamos de dier=S

ue alguKm chegado antes acabe o serBi@o& a gente a ouBi-los e

a calcular o tempo uase encostados Us portas

Qbem podiam dar umas cadeiras ou uns assentos ao menosS

a colega l dentro respondendo com a sua tosse a eCplicar os

minutos ue altaBam enuanto ia apressando o contrato com uns

elogios& uns carinhos& nada de agita@Fes nem gritos porue conormedi a patroa isto no K o dentista& após os carinhos uma pausa para o

cliente esBaiar a alma& percebe-se a colega a retocar o baton no

espelhinho da mala porue as palaBras dela sem lbios& os elKctricos

da ;ra@a& as rolas& uns tacFes rpidos

Qangados=S

ue se nos craBam um a um na barriga& percebe-se o espelhinho

a echar-se num estalido de lata depois de os lbios see

eCperimentarem mutuamente aNlando-se e engrossando& ummindinho ou um canto de len@ol a remoBer uma pinta do incisiBo&

uma conBersa arrulhada acerca de goretas& a mo da colega a

impacientar-se na ma@aneta da porta

- Pensas ue o mundo acaba hoe tu=

o condutor do elKctrico traBando na descida& o cliente da colega

de cabe@a baiCa& com um dos sapatos desla@ado

Q- Pensas ue o mundo acaba hoe tu=S

a eBitar-nos& a colega ue Nnge no dar por nós a compor as

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roscas dos brincos& cheia de dedos& o irmo da patroa& de casaco

sobre o casaco do piama& Boltando com um gargalo da despensa&

desde ue deiCou a pesca do bacalhau passa os dias alinhando

garraas no balco da entrada& a partir do segundo ou terceiro litro a

hospedaria torna-se um conBKs diRcil e l Bai ele ao comprido do

naBio trope@ando nos clientes& trope@ando na gente& encauando-se

no uintal onde a tangerineira o aguarda a baloi@ar constela@Fes de

rutinhos minJsculos& arruma o caiCote contra o tronco e adormece

de barriga ao lKu cercado de ormigas e moscas& como com o tempo

a gente acaba por se conhecer mais ou menos todos uns aos outros&

tirando os rapaes sempre a mudarem de roupa e cabeleira& Bia-se o

irmo da patroa a coer no uintal

QUs Bees daBa ideia ue mortoS

e passaBa-se U rente& sucedeu-me uma ou duas ocasiFes U noite&

ao leBantar-me a meio do oRcio para echar a anela& dar primeiro

com o brilho das dlias& o brilho das garraas e a seguir com ele& uns

metros adiante& a estremecer a rBore no escuro& se o cliente&

receoso da polRcia& estendia o bra@o aTito na direc@o da carteira

- O ue oi=elucidaBa-o

- X o Jltimo elKctrico

uando o Jltimo elKctrico h sKculos& a minha Nlha soinha e eu

para ela& de to longe

- $o acendas o gs

tranuilia-o

- *o os galhos da trepadeira descansa

aBolumaBa o cabelo& compunha-me na cama- <amos l

a roupa do cliente no cabide

Qporue dobram a roupaS

a dar-me por momentos uma iluso de matrimónio& de lar& um

homem de manh ao meu lado& no me ralaBa a identidade do

homem desde ue um ualuer de manh ao meu lado& passos

dierentes dos meus& uma respira@o dierente& gestos para alKm dos

ue a@o& a mobRlia& ue o pai da minha Nlha leBou& de regresso& a

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otograNa da gente no rasgada e no cho& na cabeceira de noBo& ao

 untar-lhe os peda@os& e apesar da otograNa inteira& a cara dele

altaBa de modo ue eu de Bestido branco e bra@o dado com

ninguKm& a camioneta da +Wmara ue recolhia contentores rente U

hospedaria da ;ra@a transportou-o consigo& os ocos do teadilho

iluminaBam a roupa no cabide ao iluminarem o uarto& a roupa no

cabide a do meu marido

Qno a do clienteS

as ei@Fes dele ue no Beo h tantos anos intactas acol&

abracei o cliente e o cliente ue no tiraBa as meias a escorregar no

colcho

- acabei boneca

uma Bo ue no sei a uem pertence& a Biinhan@a de um

estranho& a minha Nlha connosco a subir para a coberta

- 9uem K este=

uando a minha Nlha soinha& a meia hora de tCi QBinte e cinco&

 Binte e oito minutosS

distraRda com o gs& eu a abrir a torneira sem lhe chegar

nenhum ósoro e uma molea& um cansa@o& o cliente a abotoar-se- Adormeceste boneca=

eu a echar a torneira sem ue ele desse por isso palpando o ar

Us ungadelas

- AtK parece ue um ogo aui

U medida ue a trepadeira a uerer contar-lhe e eu

- +ala-te

no o meu marido& um ulano com uma alian@a ue no era

nossa e no entanto eu& ue nunca os beiaBa& a aceitar um beio&dedos no meu pesco@o& patetices assim& um chupa-chupa para a

minha Nlha

- Pegue-lhe ao colo amigo

pegue em nós ao colo um bocadinho ue sea& um chupa-chupa

de morango

Qdos peuenos& no K preciso ser caroS

ue tire este gosto suo da boca& nasci em XBora& depois da

minha me alecer trouCeram-me para a +oBa da Piedade e a minha

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tia criou--me& aos deassete anos casei& uando o meu pai adoeceu

mudaram--lhe a cama para a sala& perguntaram-lhe se ueria ue eu

o Bisitasse e ele de barriga dilatada& aproCimando o nari da parede

- $o Bale a pena

o cliente Bestido

Qo cabide desertoS

em busca do meu pai no uarto sem o achar& a intrigar-se

- Perdo=

hesitando em acrescentar uma goreta& aBaliando-me sentada na

cama as Boltas com o soutien de ue um dos colchetes rasgado& no

acrescentando a goreta

Qestarei Belha=S

nem um chupa-chupa de morango& nem dedos no meu pesco@o&

somente

Qtal como o meu maridoS

a pressa de ir-se embora e eu a puCar o echo Kclair da saia

atras dele enuanto a trepadeira& embora sem Bento& mais alto ue o

meu pai

- $o Bale a penae os ocos da camioneta da +Wmara& ue giraBam no largo&

transormando os prKdios num rodopio de esuinas& percebia-se uma

cJpula de igrea ue bailaBa tambKm& o miradoiro& rBores ue as

lues dispersaBam ogando-as para *apadores& alcan@ar o bar onde

trabalho antes ue ua igualmente

Qpedir-lhe

- Espera por mimS

e no ual o caBalheiro rico- $etinha

impedia-me de me despir& no se deitaBa comigo& ralhaBa-me ao

ouBido

- Menina m menina m

uando o meu aBY Binha de XBora ao mKdico por causa do

aparelho no cora@o NcaBa connosco na +oBa da Piedade e Bia-o& da

 anela& no banco da pra@a com o guarda-chuBa aberto& antaBa sem

conBersar com ninguKm& a minha tia

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- O ue disse o doutor pai=

ele calado de bonK na cabe@a& o marido da minha tia

- A sua Nlha est a alar consigo senhor #eBrónio

e os olhos do meu aBY no marido da minha tia atK o marido da

minha tia desistir& lembro-me dos unuilhos da entrada e de ter

 Bergonha de morar ali& em noBo o meu aBY oi soldado de caBalaria

em +haBes& mal as consultas terminaBam o autocarro para XBora&

demoraBa-se no primeiro degrau a ganhar Ylego impedindo os

passageiros de entrarem& aastaBa-nos com o guarda-chuBa se

tentBamos aud-lo a subir& a minha tia a abrir os bra@os para as

pessoas ue esperaBam

- Ele K assim desculpem

o meu aBY U anela nem um adeus& indierente& ao Boltarmos a

casa o cartuchinho dos doces ue a minha tia gostaBa em cima da

mesa com uma Nta aul& o marido da minha tia a apontar os doces

- O teu pai

a cara da minha tia igual U cara do meu aBY& se tiBesse um

guarda--chuBa picaBa-nos com a ponteira

- $o lhes touemechaBa-se& mais o cartucho& no uarto

Q $o uero aui ninguKmS

e percebia-se ue corria as cortinas& remeCia gaBetas& ao mudar-

lhe os len@Fis descobri o retrato peuenino de um soldado de

caBalaria e escrito na margem

O meu pai

meia dJia de cartuchos ue nunca encetou ocultos sob a roupa&

se dissesse U minha tia os olhos dela em mim atK eu desistir& ocaBalheiro a ralhar-me ao ouBido

- $etinha

de maneira ue empreste-me o guarda-chuBa do aBY tia para

enCotar este Belho ue mancha tudo com palaBras& estraga tudo

 Biu& a minha Nlha no necessitaBa de alar comigo& bastaBa estar ali&

enten-dRamo-nos& o marido da minha tia a regar os unuilhos

Ntando-nos de banda como se a gente marcianos

- <ocVs

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se um pssaro ue no pesa nada na nogueira o ramo a oscilar&

abandonaBa-o e o ramo para baiCo e para cima ue tempos& a minha

tia um prato a mais ao almo@o& notaBa o engano& tiraBa logo o prato&

se eu a aud-la angaBa-se comigo a enNar o prato no armrio

- $o me posso distrair=

so coisas assim ue a camioneta da +Wmara& ao Bir U noite& me

rouba& Nca o galho da nogueira a baloi@ar sem ninguKm& untem-lhe

as tran@as ue me cortaram ao chegar do Alenteo& o cabeleireiro

embalou num pano e me pareciam BiBas& eu para o cabeleireiro&

desconNada

- $o deitam sangue=

 untem Us minhas tran@as BiBas

Qnodoainhas Bermelhas no panoS

a +oBa da Piedade em aneiro com as grinaldas do $atal

apagadas& uns Nos& umas ampolas& uns ornatos torcidos

Qhomens no topo de escadotes& com uma alaBanca& a

uebrarem--nosS

tudo to perto do rio e nem um sinalinho de gua& se a minha

Nlha eCistisse nessa Kpoca e abrisse o gs eu deiCaBa& conormeagora& no caso do irmo da patroa me oerecer da garraa

- ,m golinho boneca=

aceitaBa& bebia& no me importa ue

- Menina m menina m

bebia& o meu marido uma tarde no bar com uma colega minha&

só dei por ele ao oerecer-me espumante

- ,ma ta@a para auela

ao erguer o copo no o meu marido ue alRBio& este uma graBataue no lhe comprei& o nari maior& altaBa um dente de lado e o

dente ue no haBia odiando-me

- ? tua saJde sua puta

e talBe abrisse eu mesma& sem auda& a torneira do gs& talBe

 Bedasse as rinchas com toalhas& ornais& a minha tia a desculpar-me

enuanto as grinaldas do $atal iam tombando no cho& amontoaBam

as lWmpadas numa caiCa& enrolaBam os Nos

- Empregou-se num restaurante no a maces

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a minha tia a meditar

Qum soldado de caBalaria em +haBes com capacete de gala ou

antes nenhum capacete& uma espKcie de gorro ulgo eu& o meu aBY

com deanoBe anos distante& mudoS

- X Berdade=

a minha colega para o meu marido

- "eiCa-a

o No ao pesco@o com a cruinha do aBesso& o lbio encolhido

sobre o lugar do dente

Q- O ue sucedeu ao teu dente=S

continuando a encolher e gengiBas& molares& como se descreBe a

cartilagem da garganta a correr sob a pele& minto& dando ideia de se

atormentar sob a pele& como se descreBe& auCiliem-me& a tremura de

um ueiCo& a lRngua engolida e entre os lbios de noBo

Qo marido da minha tia cortando os unuilhos um a um& a minha

tia a meditar

- E Berdade=

as grinaldas do $atal ue esueceram no choS

- "a próCima Be K a ti ue pago descansacomo se descreBe eu Us cinco da manh espreitando a minha

Nlha a dormir

Qse lhe colocasse um dedo na palma a mo dela apertaBa-meS

no abrir a torneira& no matar-me& no uero& chegar um ósoro

ao gs e auecer a sopa& tenho Binte e sete anos& Binte e oito em

abril&

ordenaBam ao meu pai

- Pinte-me essa parede a imitar madeirae ele aia& ou

- Pinte-me essa parede a imitar mrmore

e ele aia& só eCperimentando com a unha se entendia ue no

madeira& no mrmore& pinte-me tran@as pai& pinte-me a gente

noBos& no pinte a me a tossir& no pinte a minha tia

- $um restaurante a sKrio=

nem pinte o marido da minha tia a retirar o ue de mim num

armrio& uma gabardina& umas saias& a encaNiar nelas o macauito

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de loi@a ue lhes oereci pela Pscoa

- $o ueremos nada teu

nem lbios encolhidos sobre o lugar de um dente nem tremuras

de ueiCo nem cartilagens a correrem na pele& se me emprestassem

o guarda-chuBa do meu aBY abria-o dentro de casa& mesmo ue desse

m sorte& apesar das Baretas soltas a urarem o pano& o macauito de

loi@a Us cinco da manh nesta cómoda e a minha Nlha a dormir

Qpinte a minha Nlha a dormirS

enuanto apanho a roupa da corda& me demoro na coinha a

comer e nenhum cheiro a gs& nenhuma Bertigem& estou BiBa& o ue

recordo da minha me& ora a magrea e a tosse& K um len@o na boca&

mandaBam-me Ncar unto U porta

Qsentia a presen@a das rBores sem lhes escutar as olhas&

loureiros ulgo eu& um pltano& um salgueiroS

designaBam-me U minha me& uma espKcie de bra@o nascia da

almoada e o len@o

- #ilha

pessoas debru@adas para ela& uma mulher com um termómetro&

mais tosse& ela uma rBora uase& galhos nus a abamarem& h mesesperguntei a um cliente

Qno ueria perguntar& saiu-meS

- +heiro a rBore no cheiro=

o cliente a meio da camisa

- +omo=

 Bestindo-se de noBo a estranhar-me a mim ou U minha me ue

parou de tossir com as minhas tran@as

Qo ue podia ser mais=Sa sangrarem no len@o& a mulher do termómetro agitou a mo

- <ai-te embora

e eu no ptio com as rBores& os loureiros& o pltano& o

salgueiro& creio ue um arbusto de incenso em ualuer ponto

próCimo porue recordo o perume

Qna +oBa da Piedade um arbusto de incenso& depois de o

cortarem o perume permaneceu ue tempos no bairro& ainda hoe se

l osse daBa por ele na ruaS

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conorme me lembro

QestacaBa de repente numa traBessainha& eu com de& one

anos& no Binte e sete& no Binte e oito

- O incensoS

conorme me lembro da minha me com um corpete da minha

tia& um penteado ue no era o seu e um dos olhos aberto& a minha

Nlha a dormir assim e antes ue tosse e len@os e um bra@o acabar a

sopa Us cinco da manh detestando ue a minha me de Bolta e eu de

branco entre gente de luto& no triste& aborrecida& eu com ome& eu a

auecer mais sopa& eu os primeiros carros na aBenida& eu a tocar as

plpebras da minha Nlha& a sacudir-lhe o ombro& a agarr-la

Qno sacudi a minha me& no a agarrei dado ue no a minha

me& uma estranhaS

eu para a minha Nlha

Qpergunto-me se a minha Nlha no uma estranha& eu para a

minha Nlha

- 9uem Ks tu=S

eu para a minha Nlha ue principiaBa a chorar& eu

Qe o perume do incenso de BoltaS eu- Acorda

tal como h duas ou trVs semanas

Qa uarta-eira ue Bem trVs semanasS

eu para o senhor na hospedaria da ;ra@a

- Acorde

no um cliente com uma colega minha& no o irmo da patroa&

um senhor com a mesma senhora h mais de cinuenta anos todas as

semanas aui& a porta echaBa-se e nem um estalo de tbuas& umruRdo de conBersa& a trepadeira contra a anela& silVncio& Us Bees a

ideia ue gaiBotas num ponto sei l onde ou um comboio a chegar

do estrangeiro

Qa locomotiBa& os traBFes das carruagensS

e engano meu claro& os comboios demasiado distantes e nem

com a chuBa as gaiBotas por c& uando muito rolas& os pardais ue

atK na +oBa da Piedade sobraBam& uma cegonha entre duas nuBens

em maio& na ;ra@a nada de arbustos de incenso& Bendedores de

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bugigangas& ma-cauitos de loi@a iguais ao nosso

Q- $o ueremos nada teuS

ciganos& o caBalheiro

- Menina m menina m

e eu

- +ale-se

atenta ao uarto Biinho como outrora atenta aos meus tios e no

entanto somente os desconortos da casa& essa orma de eCistir dos

obectos ue alam de nós& oocam& para alKm da casa as outras

casas

- %emos pena de ti rapariga

a +oBa da Piedade aumentando no escuro& uma rac@o do

uintal iluminada logo ue o marido da minha tia acendia o

interruptor da coinha e o bairro aNnal de contas peueno& o lustre

de lato& o roupeiro& o interruptor da coinha apagaBa-se& o bairro

enorme outra Be e de sJbito

Qo ue nunca tinha acontecido& no Boltaria a acontecerS

uase unto a mim& trKmulo& agudo& de Almada& de +acilhas& de

um lugar do %eo e no entanto perto& dando-me a certea ue podiaalcan@-lo

Qe no estaBa adormecida& e alcancei-oS

o apelo de um barco& o marido da minha tia de piama

- +om licen@a

no corredor onde uma colega e um cliente U espera& o arbusto

de incenso Bisitou-me um instante

Qesarelando-se as sementes o perume aumentaBaS

e dissolBeu-se no uartoQno o meu uarto& uma cama& um cabide& duas estampainhas

em ue nunca repareiS

eu preocupada com a senhora do sauito de crochet& com o

senhor ue demoraBa a subir as escadas& Bia-o num arco a eCaminar

o largo& o olho aberto da minha me a seguir-me& ainda ue lhe

 Boltasse as costas o olho

- Estou a Ber-te

Q- Largue-me da mo senhoraS

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mesmo atrs de uma cortina o olho daBa comigo

- #ilha

cadeiras no em torno da mesa& ao longo das paredes& a minha

tia& engrossada pelas lgrimas& com uma bandea de clices& a

trope@ar no caBalheiro

- Acabou-se-te a ternura netinha=

Qas minhas tran@as sangraBam& uma rana castanha& no loira

como agoraS

um rapa arredondando no patamar a cabeleira posti@a

- #icou bem=

no loira nem castanha& ruiBa& a patroa de tubo na garganta um

gargareo de brinuedo& uma declara@o conusa

- !sto K uma penso decente

sem ue os lbios se moBessem a minha me

- Estou a Ber-te

o olho no angado& a perseguir-me apenas& nunca se irritou

comigo& entornaBa-se num banco a tossir& mais noBa do ue sou

agora

- $o te chegues a mimo senhor a ganhar coragem nos degraus& os olhos dele e o olho

da minha me só ue no perseguindo-me& U espreita& no uarto dos

meus tios um relento de ls antigas e alaema seca& em noBembro

com o come@o do rio a minha tia ulgaBa sempre ue a cadela ora&

imaginaBa um raspar de unhas a insistir no capacho& enerBaBa-se

- "eiCem entrar o animal santo "eus

e ninguKm salBo a chuBa no alpendre& os unuilhos dobrados&

olhas Bindas da igrea a escurecerem o ptio& o senhor tentaBa umdegrau na hospedaria da ;ra@a& outro degrau& um dos rapaes de

cabeleira posti@a para o cliente& a endireitar-lhe a graBata

- Maroto

a minha tia leBantando-se na esperan@a ue a cadela no

alpendre& em XBora ladraBam por baiCo da anela em ue estBamos&

adiBinhaBam& pressentiam& depois da Kpoca da ca@a matilhas a

trotarem de ome nos becos ataanando carri@as& o ue recordo de

XBora no K a minha me nem o meu pai& so latidos no inBerno& o

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sacristo de opa Bermelha a desaerrolhar a capela& as espanholas da

traBessa& oruRdeas& o senhor Nnalmente no uarto e nem um estalo

de tbuas nem um ruRdo de conBersa& a trepadeira contra a anela&

silVncio e no entanto gaiBotas num ponto sei l onde

Qapetecia-me correr na praia de chapKu de palha com cereas de

eltroS

um comboio a chegar do estrangeiro e os traBFes das

carruagens& uando or Belha eu com as espanholas na traBessa

depenando rangos

Qacho ue roubadosS

mais elas& um sauito de crochet& eu soinha ou com os outros

cachorros em XBora desinteressada das carri@as& apenas trotando de

ome nos becos de ocinho a pingar o caBalheiro

- $etinha

no& o caBalheiro

- Mais uanto dies tu=

no& o caBalheiro

- +asar-mo-nos=

ou sea alguKm ue abrisse a porta se eu raspar as unhas nocapacho

- "eiCa entrar o animal santo "eus

Qcorrer na praia de chapKu de palha com cereas de eltro na

direc@o de um rochedo onde um peda@o de corda& uma caiCinha

 BaiaS

ou ento& antes de come@ar o rio& deitem uma posta de carne

para o uintal e enBenenem-me

Qno imagino de onde Bem esta ideia de um peda@o de corda euma caiCinha Baia& a patetice de correr na praia de chapKu de palha

com cereas de eltro& talBe a minha tia& no meio dos seus trapos&

guarde um chapKu de palha na arcaS

no meCa na alian@a& no me ale da sua esposa& no repita

- +asarmo-nos=

incomodado com renesins diusos ue se transormam em

gaiBotas ao poisarem num ponto ganhando bicos& garras& uma

maldade enKrgica& ou com os traBFes das carruagens no uarto

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 Biinho

Qapenas comboio ao parar acocorado em si mesmo& declarando

- *ou um comboioS

ou ento com a trepadeira ue imitaBa gaiBotas e comboios a

 untar um galho a outro galho ao subir para o telhado onde eu

supunha ue Tores dado ue por Bees um cacho a baloi@ar pedindo-

me ue o Bisse

- Eis-me

ao passo ue os unuilhos da +oBa da Piedade nunca

- Eis-me

acanhados de alarem& portanto as trepadeiras nos caiCilhos& os

rapaes de cabeleira posti@a& os clientes e ainda no as cinco da

manh& a Nlha a dormir& a torneira do gs& uma uarta-eira U tarde

como todas as uartas-eiras em ue o caBalheiro U minha espera na

entrada

- Menina m menina m

um sabonete& uma gua de colónia ue me echaBa na mo

- $o me agrade@as netinha

mais idoso ue a senhora e o senhor& mais bem Bestido& maisrico& podia ter impedido ue me cortassem as tran@as& ue a minha

me morresse& me deiCassem crescer& ele no sentado l ora de

guarda--chuBa aberto& a inuietar-se por mim

- Ests mais gorda ests mais magra

a preocupar-se comigo

- $o adoeceste netinha=

a prometer

- ,m dia passa-me uma coisa pela cabe@a e arranco-te dauiesuecido do

- +asarmo-nos=

sincero& uase comoBido& orgulhoso da minha pessoa

 Arranco-te daui

a arrepender-se& a emendar

- *e pudesse arrancar-te daui

com pena de mim no capacho ou rondando as anelas a ladrar

sob a chuBa

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- "eiCem entrar o animal santo "eus

e o arbusto de incenso a embalsamar-nos de perumes Qdepois

de o cortarem as raRes come@aram a cheirar sob a terraS nenhum

olho aberto a seguir-me& uando oi do desmancho alarmou-se&

esperneou mangas

- Menina m menina m

 Qe eu a dar-me conta ue to inJtil& to gasto& se chamar l de

ora abro-lhe a porta sossegue& no o deiCo em XBora de ocinho a

pingar& ossos pontudos sob a pele aguardando ue o corpo alecesse

tambKm& NcaBa a Bo a balir

- Menina m menina m

entre os papelinhos dos lbiosS

acompanhou-me U parteira ue nem o Bia seuer ou o eCplusou

para a rua

Q- $o lhe a@a mal no o eCpulse para a rua senhoraS

- H um caK l em baiCo

e o caBalheiro num pulinho de garupa

Qdaui a uns anos eu assim& Binte e oito em abril& mal chegue a

casa palaBra abro a torneira do gsSa recuar& a escapar-se em aNrma@Fes Bagas

- ,ma sobrinha minha

Qacabou-se a neta& uma sobrinha minhaS

obediente& apagado& uma das patas mais raca e ele a disar@ar a

pata obrigando-a a segurar o corpo& a continuar

- *into-me bem estou óptimo

no interior do

- *into-me bem estou óptimoo caBalheiro anunciando

- Prometo ser um co como deBe ser no te aborre@as comigo

e l estaBa ele no caK a apanhar com o cuspo do dedo as

migalhas da mesa

Qas espanholas de XBora depenaBam rangos na traBessa& nus& só

cabe@a e crista e as cabe@as uriosas& alerta& enuanto elas brandiam

um idioma de arrapos coloridos ue se meneaBa& BibraBaS

o caBalheiro um incha@o na coluna& uma das orelhas pulguenta&

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a mudar de perNl

- #ala-me deste lado netinha

Qacabou-se a sobrinha& sua neta de noBoS

a dobrar-me notas na carteira sem acertar com o echo&

adeando U minha roda sobrancelhas incertas

- $o te Neram mal pois no=

no me Neram mal nenhum& no me doeu descanse& uma

gaiBota do >eato& no a parteira& a parteira

- Est uase

encontrou um desperdRcio para mim e Beio bic-lo aos puCFes&

as restantes gaiBotas a gritarem com ela& deu pelas ondas senhor& Biu

como os albatroes do teo a espiarem-me& o marido da minha tia a

retirar o ue continuaBa de mim no armrio& uma gabardina& umas

saias& entregando-me o macauito de loi@a ue lhes oereci pela

Pscoa

- $o ueremos nada teu

e a gaiBota engoliu& no um Nlho entre algodFes num balde&

eBidentemente ue no um Nlho& uma coisa ue no terei de acordar&

de Bestir& de ma@ar-me com ela& sea um co como deBe ser senhorcale-se& no me pe@a ue lhe ale deste lado& no me toue na

carteira& no me entregue dinheiro& tantas ruas para arear por aR

reparou& tantos postes de ilumina@o& tantos troncos& tantos colegas

seus a desBentrarem pombos& deiCe-me em pa comigo a medir o ue

me alta

Qme tiraramS

me alta& o ue recordo de XBora no K a minha me atrs de um

len@o com as minhas tran@as l dentro& K ter ome percebe e o uerecordo da parteira no so as ondas ogando-me contra a muralha&

so as gaiBotas uma após outra a engolirem-me as tran@as& a

abandonarem--me na Baante dado ue eu oca& entende& e a

esuecerem-se de mim& eu um peda@o de corda& uma caiCinha Baia&

por muito ue me aNancem do contrrio ninguKm corre na areia de

chapKu de palha com cereas de eltro

QsalBo uma Belhota a obserBar um cacto num muro

- A trabalheira ue me deste peuena

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eu ue no a conhe@o

- 9uem K BocV senhora=S

correr de chapKu de palha& na areia& por um peda@o de corda e

uma caiCinha Baia& a parteira a esconder o balde Qo meu desperdRcio

num baldeS

- LeBanta-te

uma crian@a descal@a

Qparente dela=S

a seguir-me com um coelho de brinuedo

Qou um rango nuS

nas mos& um dos membros a oscilar tambKm& eCperimentar

deBagarinho um passo& outro passo eBitando os algodFes

 Qdado ue penas& algodFes& mais nadaS

no balde& o caBalheiro& desolado

- ? direita no oi@o netinha

e em XBora tudo branco mesmo no outono& as casas& os

canteiros& o cKu aul branco& os campos brancos& as magnólias

branuRssimas& o meu pai branco na cama

QaproCimaBam-no da porta para se distrair com a alamedaSum dos irmos dele trabalhaBa de porteiro num cinema em

Lisboa& conBersaBa com o Nscal e o irmo do meu pai um sinalinho

disar@ado

- Podes entrar rapariga

eu de pK& unto U cortina& uma lanterna subia entre Nlas de

cadeiras& achaBa-me no escuro& demoraBa-se a cegar-me& a lanterna

uma gaiBota ue me bicaBa aos repelFes& no as minhas coCas& a

minha cara& a minha blusa- $o tens bilhete tu=

U medida ue a parteira se esuecia de mim embora o coelho me

estudasse a baloi@ar& o caBalheiro eli de eu estar BiBa

Qmais tardes descanse atK abrir o gs& dJias de tardes aindaS

dedos Bindos do nada ue demoraBam a austar-se-me ao ombro

Q- *e ao menos eu pudesse arrancar-te dauiS

se embara@aBam ue os Bissem& desapareciam no bolso polidos

pelo uso& Nninhos

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- Menina m menina m

dJias de tardes ainda no cubRculo a seguir aos senhores ou sea

nenhuma trepadeira& metade de uma anela de rKs-do-cho entaipada

Qumas ripas de caiCote& uns pregosS

na outra metade um ptio em ue desperdRcios& uma muina de

costura ue a noite parecia entregar-me tornando-a Rntima& minha&

de orma ue no deitada na cama consoante o caBalheiro ulgaBa& eu

a passaar na muina sem dar por ele& eu Bestida& ele de oelhos no

soalho ao meu lado a bicar-me aos puCFes como a gaiBota da

parteira& as unhas dela ue me arrancaBam de mim& o caBalheiro a

insistir

- Por aBor di-me ue ests a gostar netinha

e eu com diNculdade em responder deriBado U minha aten@o na

agulha ue por Bees no obedecia ao pedal& U roda ue tinha de

audar com a mo& a um gato ue pulou na direc@o de um buCo

Qno de incenso& um arbusto sem nome& uns espinhosS

- $o posso entortar a bainha desculpe

ou a correr na areia para longe dele

Qa Bo de no sei uem a ordenar-me- +onta ue de chapKu de palha com cereas de eltroS

eu a correr na areia de chapKu de palha com cereas de eltro&

nunca tiBe um chapKu de palha com cereas de eltro na Bida mas a

obedecer ue remKdio& isto pouco antes da Nlha do caBalheiro eCigir

U patroa no balco da entrada onde se penduraBam as chaBes com

uma rBore aponesa num Baso

- O meu pai

na primaBera& uando deBia haBer rolas& escutaBam-se rolas etodaBia nenhum pssaro ali& um ou dois corBos se tanto& lembro-me

de uma colega minha

- Os corBos

e eles trVs prKdios adiante& de peito dilatado& a mangarem

connosco& as penas negras& o bico negro& o papo negro& Bestiram-me

dessa orma uando o meu aBY aleceu& a minha tia a procurar lutos

no armrio

- O teu aBY aleceu

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e o guarda-chuBa echado& sem maestade alguma& no bengaleiro

da entrada onde os dois bonKs do marido da minha tia& o cinento e o

castanho& na sala da parteira uma rapariga de uine ou deasseis

anos numa cadeira de Bime ue aNrmaBa

- %rrrrr trrrr

lembro-me do cabelo molhado de medo na testa& do nari a

estremecer& a estremecer& das oBelhas dessa maneira no Alenteo se

por acaso cuidaBam

- <o matar-nos

e sem escaparem da gente& resignando-se& apenas o nari a

estremecer& a estremecer& martelBamos um prego entre as BKrtebras

logo abaiCo do crWnio& uando a rapariga deu por mim leBantou-se da

cadeira de Bime e a cadeira

- %rrrrr trrrr

no para ugir& para se chegar ao prego& a rapariga uma oBelha

com um estooito de sara& de mandRbula no a mastigar& para a

direita e para a esuerda aplainando palaBras

- %rrrrr trrrr

e a uem a parteira- ,m momento

enuanto o ocinho do coelho se despedia de mim& isto no na

;ra@a nem no Po@o dos $egros nem em +ampolide nem nos OliBais&

num bairro a seguir Us Olaias

Qno& na +al@ada da Picheleira antes das Olaias para uem

 Biesse de baiCoS

prKdios de dois andares& alguns com andaimes e pedreiros

pretosQuma cidade de pretos a nossaS

num interBalo de paredes& sem ue se esperasse& o %eo& o ue

parecia uma ilha

Quma ilha=S

e era uma mancha de algas ou uma sombra de nuBens

Quma sombra de nuBensS

a proBa ue o mundo to grande apesar de um carrinho de

hortali@a no passeio

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Qum triciclo a motorS

a estreit-lo& ciganos

Quma cidade de ciganos a nossaS

com roupa sobre peda@os de lona estreitando-o mais ainda& um

cego a calcular obstculos com a pressa da Barinha

Quma cidade de cegos a nossaS

antes da gaiBota a bicar no sei uem. A aleiar no sei uem& a

 Barinha alheada de mim porue no era a minah pessoa ue ali

estaBa de modo ue eu alheada tambKm& eu a correr na praia de

chapKu de palha com cereas de eltro sem entender a rao do

chapKu de palha com cereas de eltro e como no era eu ue ali

estaBa

Qeu a dar de comer U minha NlhaS

no me diia respeito a parteira l em cima

Qou a gaiBotaS

a dier no sei a uem

- Este no uer sair o parBo

e uma inec@o no em mim Bisto ue eu unto a um rochedo

encontrando um peda@o de corda e uma caiCinha Baia& no balco dahospedaria da ;ra@a uma rBore aponesa num Baso& igual Us rBores

grandes& a Nlha do caBalheiro sem atender a um rapa de cabeleira

posti@a nem ao tubinho da patroa nunca Nemos mal ao senhor

proessor minha senhora& nunca lhe altmos ao respeito& nunca lhe

roubmos nada& a Nlha do caBalheiro ue no me podia enCergar

Qo chapKu de palha escondia-meS

- $o tem uRo pai=

dedos polidos pelo uso& Nninhos& sumindo-se no bolso&regressando do bolso& a apanharem com uma gotita de cuspo gros

de pó no balco& as sobrancelhas ue procuraBam entender

Qnada mais nele entendiaS

a lRngua ue Binha e ia nos papelinhos dos lbios& se eu osse U

Nlha deiCaBa-o Ncar comigo

Q- "i-me ue ests a gostar netinhaS

em Be de um cobertor nos oelhos& o solinho na Baranda

- AproBeite ue K de borla

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amarrar-lhe a cintura a Nm de no andar pela casa a meCericar

nas gaBetas& insistente& tontinho& a procurar o porta-moedas sem

achar o porta-moedas& notas estrangeiras

Qde onde=S

documentos ora do prao& o retrato da esposa ue de Be em

uando conundia comigo

- "i-me uem est a gostar ;eninha

o caBalheiro um cachorro no uintal U chuBa ladrando-nos de

todas as anelas com esse instinto dos bichos& a inteligVncia ue eles

tVm e no lhes serBe de nada porue a gente no ouBe& pressentem

os terramotos& as doen@as& a morte& enNam-se sob os móBeis

recusando a comida& chamamos e no BVm& se lhes encurtamos a

coleira procuram logo morder& o caBalheiro um cachorro no uintal U

chuBa& de noite& raspando o capacho com as unhas

- $o h ninguKm nesta casa ue abra a porta ao animal por

amor de "eus=

ue o deiCe& sem se encostar Us pessoas nem nos lamber as

mos& apeuenar-se no tapete a Ntar a gente& ressentido& dando K de

um barulho na coinha& urinando de pWnico& se osse Nlha deleentregaBa-lhe as chaBes

- <ea l como se porta eu conNei em si

audaBa-o a Bestir-se& a cortar o empado& a tomar cuidado com

as nódoas& metia-lhe na algibeira um carto com a morada& para o

caso de no se lembrar senhor BocV Bai& mostra o carto

Qo ue est do outro lado no interessa& o canaliador& o

dentista& letras impressas& no ligue pus-lhe uma cru em cima& o

ue interessa K o ue escreBi U mo& espere aR ue eu sublinho& setiBer dJBidas com a morada tire-o da algibeira

esta algibeira& NCou esta algibeira=

pergunte sea a uem or ue o ensinamS

e Nm dos problemas& pronto& de modo ue o caBalheiro na

hospedaria da ;ra@a comigo& unhas ue me tentaBam encontrar&

perdiam& a cara dele no contente& nerBosRssima

- Por aBor di-me ue gostas netinha

Us Bees na cabe@a o seu passado todo& a Bida inteira to clara&

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*etJbal& o Berni das sempre-noiBas ue regaBam de resco& no sei

uV na terra ue o alegraBa& uase o aia cantar

Q- $o sou um co nunca serei um coS

a esttua do ardim a ue altaBa um bra@o& o outro bra@o

erguendo um bJio de acintos& a irm a alisar a saia no meio dsos

pneus Baios da garagem e o namorado a alisar o cabelo

- Posso contar com a sua discri@o ao menos=

a amiga da aBó

Q- 9uero dier-te um segredo edelhoS

ue o encontraBa nos cal@Fes& o perdia

- Por aBor di-me ue gostas de mim netinho

isto numa BiBenda uase na estrada de Palmeia com um *o

oue no alpendre& colchas de cetim sobre os móBeis& a empregada a

rir--se& a Bida inteira to clara

- "i-me ue gostas netinho

de modo ue no preciso do carto& a BiBenda uase na estrada

de Palmeia& simplicRssimo& o marido da amiga da aBó agrimensor na

Rndia& cartas ue demoraBam a chegar e ela deciraBa em Bo alta& de

pin-ce-ne ampliando-lhe a ala& a enganar-se nas linhas& a abandonaro pince-ne e a carta

- %anto a

para o perder e achar

- Menino mau menino mau

enuanto o caBalheiro obserBaBa uma gota nas endas do tecto a

aumentar sem cair& pensaBa

- <ai cair

e a gota diminuindo no interior do estuue para aumentar denoBo

Qa Bida inteira to clara& o emprego em Mo@ambiue& o sócio

inglVs ue se enorcou no hotel enuanto as ps do Bentilador

giraBam e o charuto aceso ia ueimando o tapete& as ps do

 Bentilador

disso lembraBa-se

aiam rodar as solas dos sapatos noBos

disso lembraBa-se tambKm

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e nisto as recorda@Fes a misturarem-se& onde Nca Palmeia& o ue

K *etJbal digam-meS

ele na hospedaria da ;ra@a a caminhar para mim

- $etinha

na tarde em ue as gaiBotas num ponto ou um comboio a

chegar& eu atenta ao uarto Biinho como dantes atenta ao uarto

dos meus tios e nem um estalo de tbuas& um ruRdo de conBersa& a

trepadeira na anela& silVncio& daBa-me ideia ue um comboio a

chegar do estrangeiro

Qa locomotiBa& os traBFes das carruagensS

e engano meu& os comboios demasiado aastados e nem com a

chuBa as gaiBotas por c& uando muito rolas& os pardais ue atK na

+oBa da Piedade apesar de pobre haBia& uma cegonha entre duas

nuBens em maio& eu para o caBalheiro

- +ale-se

Qentreguem-me depressa o meu chapKu de palha com cereas de

eltro& no me impe@am de correr agoraS um homeninho a umar no

ponto

- %rambolhoou as pessoas ue aguardaBam o comboio ao mesmo tempo ue

o senhor caRa& eu para o caBalheiro

- +ale-se

dado ue o senhor caRa& a senhora ue alaBa com ele

Qou eram as minhas colegas U espera=S

repetindo o seu nome acho eu

Qou a Bo sobre as nossas cabe@as ue anunciaBa as partidas da

esta@o=Se os gritos dos pssaros ue um sueito com uma muina

otogrNca numa caBe do >eato

- Pimpolho

me impedia de entender

Qisto Us seis e Binte& seis e Binte e um da tardeS

a porta do uarto Biinho aberta& a minha tia

- AlguKm por amor de "eus abra a porta ue coisa e deiCe entrar

esse co

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a porta do uarto Biinho aberta e ao princRpio no Bi o senhor&

 Bi a senhora a olhar-me& as espanholas em XBora a depenarem

rangos& o meu pai

- $o Bale a pena

porue o senhor de costas no cho e para alKm das gaiBotas

albatroes& rapaes de cabeleira posti@a& andorinhas do mar& dJias

de comboios ao mesmo tempo& umo& bagagem& tanta gente a

empurrar-me& a acotoBelar-me& a aastar-me da senhora

- Aguenta l ora tu

Qa minha me a tossir& um sinal acho euS

cinuenta e dois anos Us uartas-eiras na hospedaria da ;ra@a

onde com o tempo a gente ue trabalhamos aui acaba por se

conhecer uns aos outros& o sauito do crochet na cama& o naperon

uase completo& o noBelo no Nm& o genro do senhor

- +unhadinha

no& o genro do senhor ue Nngia no dar pela senhora

- ,m momento

o genro do senhor a dar por mim

- ,m momentoe talBe& se ele der por mim& no necessite da torneira do gs&

eu no em XBora com os restantes cachorros& trotando de ome nos

becos& desaparecendo& Boltando& eu ue nunca os beiaBa pronta a

aceitar um beio& dedos no meu pesco@o& patetices assim& um chupa-

chupa para a minha Nlha

- Pegue-lhe ao colo amigo

pegue em nós duas ao colo um bocadinho ue sea& um chupa--

chupa de morango ou limo ou laranaQno K preciso ser caroS

ue me tire o gosto do len@o da minha me na boca& se no lhe

escutasse a tosse& se tiBesse tido seis

Qsete anosS

no hospital de XBora

Qnem sete nem seis& trVs anos& a minha tia criou-meS

percebia& com seis ou sete anos limpaBa a casa& aia os recados&

laBaBa a roupa no tanue& comia no com eles& na coinha& no

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regaBa os unuilhos porue o marido da minha tia

- %u no sabes

uma ocasio Bedei os espa@os com trapos& toalhas& ornais& abri a

torneira do gs mas senti o arbusto de incenso

Qno sei poruV o arbusto de incensoS

e tiBe medo& echei-a& a minha tia ao dar com os trapos& as

toalhas& os ornais

- O ue K isto=

de ou one anos ulgo eu uando ela

- O ue K isto=

uns sueitos num carro leBaram o senhor pelas traseiras da

hospedaria da ;ra@a& o genro do senhor a dar por mim outra Be

- <ocVs nunca o Biram est bem=

a umar na eCtremidade do ponto das gaiBotas onde as minhas

colegas bicaBam nos cani@os& nos barcos& eu Bestida de noiBa na

montra do otógrao& o genro do senhor para os meus tios

- Esto a rir-se de uV=

e os meus tios respeitosos

- *enhor engenheirode modo ue hei-de dar-lhes um retrato em ue o genro do

senhor e eu diante do telo ue representa o palcio da >ela

 Adormecida com a princesa de la@arote no cabelo a remar no lago&

uma muina de laBar em condi@Fes& um rigorRNco grande& leB-los

um dia destes atK unto das ondas para me Berem correr na areia de

chapKu de palha com cereas de eltro ou debru@arem-se comigo de

uma anela para um muro onde daui a nada

QK uma uesto de minutosS Bai poisar uma arBKloa ue K a maneira ue elas tVm

QespertRssimasS

de anunciar o mar.

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brutos a maltrat-las sem rao& pistolas& algemas& amea@as

- PapKis papers uietinhos

aproBeitando-se da minha diNculdade em protegV-las deriBado

ao tubo na garganta& tento alar e por mais ue me esorce onde se

esperam palaBras

Qonde ulgo ue palaBrasS

umas bolhas& uns silBos& o doutor ue me operou

- +arregue o sobrolho deiCe l ue uem se lhe puser U rente

compreende

e pela primeira Be dei-me conta do ue sore a trepadeira l

ora tentando conBersar connosco e em lugar dos problemas dela o

ue escutamos so olhas& ramos ue procuram libertar-se dos

apoios de arame& um galho pensando ue o nosso nome e aNnal

- "ddd

contra os Bidros& a trepadeira sem acreditar

- $o pode ser

e

- "ddd

de noBo& mesmo com a auda do Bento- "ddd

umas gaBinhas& umas lagartas& uns cachos& um moscardo por ela

- $o me ouBem=

e ouBimos coisas sem neCo& BRrgulas& parVntesis& acentos& rase

alguma& Bontade de aud-la pegando numa machadinha e cortando-a

- $o te preocupes mais

h alturas em ue penso ue o doutor deBia ter pegado numa

machadinha comigo em lugar de tratamentos e cortado ao acaso&para uV insistir& d-se K uando muito de um chocalhar de

cartilagens& no de um argumento& h alturas em ue se o doutor

erguesse a lWmina

- $o te preocupes mais

agradecia& chocalhaBa reconhecida uma cartilagem ualuer

- Obrigada

e bastaBa-me esperar ue amanh ou depois os Biinhos

 Barressem tudo& ue mais no osse pela poeira e o liCo& eu desde o

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hospital to atenta U Bo das plantas& das coisas& uma consola estala

e compreendo& perco tempo com ela

- O ue se passa agora=

Nco-me a decirar o silVncio& numa linguagem de esttua& da

rBore aponesa no balco& aueles bra@os em igueague& auelas

pregas da casca& no consinto ue a reguem& sou eu ue trago a

gua num copo

- *e te apetece desabaa comigo

mais trVs doentes no meu uarto em silVncio tambKm& as caras

só narinas apontadas ao tecto U medida ue iam perdendo orelhas&

dedos& cinco de inRcio& depois dois& depois um enrugando o len@ol&

depois o len@ol Baio& depois nada& ao retirarem o biombo em torno

do colcho logo outra doente ainda com dedos& acreditando ainda&

mentindo-se ainda na manh seguinte

- Acho ue me recompus

embora os pKs se aNlassem& no bem pKs& só unhas& as narinas

c em cima& as unhas em baiCo e no interBalo um Baio pardo a

crescer& os dentes engolidos um a um sem dar conta& a gente a

mastigar-se& a comer-se& a comer o cancro& a comer as dores& acomer as Bisitas& cada parente ue se aproCimaBa de mim deBoraBa-

o& comi o meu passado inteiro& o ue uis ser& o ue ui& comi

Qsem gengiBas nem lRngua nem dentes& sem um Jnico dedo no

len@ol salBo o polegarS

as enermeiras& o doutor& o hospital& sobra-me esta casa decente

para pessoas decentes& no como a tangerineira por respeito U minha

me

Qtrinta e um anos aui& ela gostaBa de dier- ,ma Bida

e NcaBa a olhar-nos angada atK concordarmos com ela& alis

sempre ue acabaBa uma rase NcaBa a olhar-nos angada atK

concordarmos com elaS

com o tubo na garganta e a uesto das dores oi-se-me a

serenidade& no K bem ue me doesse& no me doRa porue engoli o

cansa@o& o desconorto& a dor& de resto nem conheci a dor Bisto ue

deBorei logo a primeira moinha conorme deBorei a ueda do cabelo&

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a magrea e o medo& as horas ue me separaBam dos remKdios& o

uturo& os amanhs& os ontens& se por acaso me lembraBa

QK um eCemploS

de um passeio a Estremo engolia Estremo e pronto& ual

passeio& a minha ome limpou tudo& o autocarro& o almo@o& os gansos

da barragem soprando BRrgulas& no acentos& no parVntesis& por

tubos iguais ao meu na garganta& uando o doutor para mim

- <ou dar-lhe alta senhora

deiCei as trVs mulheres no meu uarto a comerem-se& a

comerem--no& l estaBa a hospedaria da ;ra@a onde os elKctricos

curBam& a otograNa da minha me na entrada urando

- ,ma Bida

a olhar angada atK concordarmos com ela

- ,ma Bida mam

a minha me ue continuaBa a mandar na penso a partir do

retrato

- 9uero assim uero assado

e as rugas NCas U espera& eu ue durmo na cama dela sinto ue

K ao seu corpo ue as tbuas respondem& no ao peso do meu& deito-me na sua coBa& no numa coBa minha& o guarda-ato resiste ao lutar

com o manRpulo

- Perten@o U rua me no a ti

a minha roupa a enBelhecer para se tornar a dela& Bestidos de

 BiJBa mais descuidados& mais largos& a no cheirarem a mim nos

cabides& as gaBetas trancando-se uando me aproCimo& tenho de

amea@ar

- Eu como-aspara ue os echos rodem& U noite as tangerinas estremecem o

soalho ao tombarem sem ue eu distinga os rutos dos sapatos dos

clientes ou da cali@a do tecto& uando oi do senhor do '7 no prestei

aten@o& ulguei ue um ruto tambKm& eu na entrada a receber e a

distribuir as chaBes pensando h uanto tempo ninguKm se descal@a

ao meu lado& na enermaria lues distantes demais para ue eu

pudesse comV-las& eleBadores ue no paraBam de subir

ultrapassando o ediRcio ou ento hospitais por cima deste em ue

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outra gente engolia& com dentadas Us cegas& os intestinos& a próstata&

h uanto tempo ninguKm a chegar-se para mim

- Ora BiBa

deBe ter eCistido antigamente um homem& uma ida ao cinema&

um passeio a 9uelu& as Bisitas

- Ests melhor=

e eu deunta& por ue rao no me comem& por ue rao eu

intacta

- Engulam-me

tenho ideia de um sorriso& de cartas& mas se calhar deBorei a

memória ao deBorar-me a mim mesma ou deBorei o homem na

enermaria untamente com as palmadinhas de consolo& as Tores e o

dó& deBorei o dó num instante sem o sentir no estYmago

- <ai-te embora

e uando se oi embora custou-me a mastigar-me ou nem seuer

me mastiguei& pedi

- Engulam-me

apenas& pedi

- Engulam-me depressamas no me compreenderam porue BRrgulas& acentos&

parVntesis& escreBi num papel

- Engulam-me

entreguei-o a uma das raparigas da penso& a rapariga a

demorar-se no papel& a mir-lo& a mirar-me& a deBolBer-mo

embara@ada

- $o percebo

eu para a rapariga& dobrando o papel- Em adoecendo percebes

mesmo ue te mintas percebes& hs-de deBorar-te um dia& papar

o ue puderes atK no restar nem uma gotinha de ti& comer os

doutores& as enermeiras& o padre ue h-de chegar por Nm& engole o

padre& deBora-o& deBe ter eCistido um homem outrora& desses do bar

l em baiCo a acompanharem as mulheres ou os rapaes de cabeleira

posti@a& as mulheres U rente e eles calados atrs com a mo no bolso

do dinheiro& indecisos

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Qporue no os engulo depois de me pagarem=S

assustando-se com as tangerinas no cho ou uns passos na

escada por mais ue lhes aNrme ue isto K uma casa decente para

pessoas decentes& ue durante meia hora no os chamo da porta

uando nos uartos nada& uase nunca nada nos uartos

- O seu tempo acabou

conorme nada no meu uarto no momento em ue o doutor

para mim

- <amos oper-la amanh

aborrecido de eu estar BiBa e eu

- <ou comV-lo doutor no se deu conta ue o seu tempo acabou=

no era o estar soinha& no me ralaBa estar soinha& era a

tangerineira a oscilar& a Bibrar& por@Fes minhas ue cessaBam& esta

perna& este órgo& criaturas diminuindo deBagar e no sei uem so&

sei& torno a no saber& pensando melhor nunca as Bi

Qter haBido um homem=S

- <amos oper-la amanh

uma doente& no eu& tranuili-la& prometer-lhe

- $o te engulo descansanunca aui estiBe& no me di respeito& no conhe@o esta gente&

eu na hospedaria da ;ra@a ue herdei da minha me& uma casa

decente para pessoas decentes onde se eCige educa@o e respeito&

cada uarto meia hora no mCimo eCcepto a senhora e o senhor das

uartas-eiras ue desde eu crian@a toda a tarde no '7& o senhor ue

parecia traer consigo as gaiBotas

Qcinco ou seis no largoS

ue no se atreBem neste bairro ue no simpatia com o %eoQse tenho Bagar aos domingos& des@o ao miradoiro a espreit-lasS

a senhora com o sauito do crochet& proBaBelmente sempre o

mesmo& ue chegaBa antes dele

Qnunca depois& antesS

se interessaBa por mim& me entendia os parVntesis& os acentos&

as BRrgulas sem notar as mulheres e os rapaes de cabeleira posti@a

ou se os notaBa interessando-se igualmente embora estiBesse capa

de urar ue os no Bia& ambos& isto K a senhora e o senhor

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Qcalculo euS

sentados lado a lado na cama de rente para a trepadeira no

inBerno sem olhas& só arames& descobrindo os estragos da pintura&

os tiolos& as pedras& a trepadeira cuo nome ignoro e no sei uem

Qo primeiro dono=S

plantou& a senhora e o senhor de rente para o outono da anela

deserta& o senhor

Qter haBido um homem para mim e no caso de ter haBido

mastiguei-o& comi-o=S

com o seu ornalinho na mo& dobrado na pgina do problema

das damas

Qas brancas ogam e ganhamS

moraBa com a esposa e as Nlhas no ardim +onstantino

Qlugar bonito& distintoS

e a senhora ue moraBa soinha ou com parentes mais idosos

ue ela

Qum pai& uma tia=S

durante anos com parentes mais idosos ue ela e agora soinha

no entre memórias& ausVncias& da mesma orma ue no entre BiBos& entre poeira de mortos& num desses ediRcios de 0abregas onde

os hbitos dos alecidos permanecem

Quma cadeira articulada& um bule de ch& uma mesa de pK-de-

galo com uma bailarina de cordaS

eCigindo ue lhes obedecesse& cuidasse deles& os escutasse&

continuaBa a ustiNcar-se Us uartas-eiras para as paredes Baias

supondo ue nas paredes desconNan@as& uma censura talBe

- Pediram-me ue audasse numa limpea papou

- ,ma compra na >aiCa pap

ou

- O ue me esueceu no mercado pap

pensando no no senhor mas nela& de boca no traBesseiro na

uinta dos pais U medida ue o sacho do empregado& abrindo a terra&

a abria& ela e eu a darmos pelo sacho na hospedaria da ;ra@a e as

 Bees pergunto-me se o senhor o escutaBa& se era por causa do sacho

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ue o problema das damas

Qas brancas ogam e ganhamS

ela diRcil de ouBir deriBado ao traBesseiro

- #ico consigo descanse

a senhora com pena do senhor& uase a sorrir& a tocar-lhe e sem

lhe sorrir nem tocar& tocaBa a trepadeira& os pinheiros de um

sanatório em +oimbra& prometia

- #ico consigo descanse

e ele como se acreditasse nela& grato& Nngindo ue grato Qas

brancas ogam e ganhamS

parado nos degraus da hospedaria dado ue o cora@o& os

diabetes& eu com Bontade de perguntar-lhe

- 9uer ue o engula BocV=

e o senhor a olhar-me das escadas enuanto um casal subia ou

descia e outros casais no corredor U espera& no gosto deste trabalho

por causa das ma@adas com a polRcia& discussFes& balbJrdias& Bolta

no Bolta um mal entendido nos pre@os e um cliente eCaltado& os

amigos das mulheres a or@arem portas e amea@as& gritos& Bolta no

 Bolta uma aca& um sueito a cobrir a mancha da camisa com a palmaatK a palma desistir e a mancha maior& a garganta um tubo em ue

 BRrgulas& parVntesis& os rapaes de cabeleira posti@a a Ntarem-no& se

no osse o reconhecimento ue deBo U memória da minha me ue

me criou a pulso& sem audas& no Arco do +ego onde os regueses

dela a apontarem-me no colcho

- E a crian@a=

recordo-me de conBersas a acertar posi@Fes e dinheiro Qa minha

me- !sso K poucoS

da lu de repente acesa& no a da mesinha de cabeceira& a do

tecto ue anulaBa as copas na rua& as rBores inBisRBeis continuando

os seus discursos e a certea de compreender porue nessa Kpoca

compreendia as coisas

Qno as compreendo hoe em diaS

as arras& as garraas& as tbuas& os cabelos na escoBa e a minha

me a eCamin-los

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- O ue se passa comigo=

recordo-me de ordenar

- #echa os olhos depressa

e ao ech-los as rBores de regresso& a Biinha a perseguir os

perus com a naBalha& a agarrar-lhes o pesco@o e asas& um salto& o

pesco@o a escapar-se& a mo ue prendia uma pata& o peru tombado

de banda e a Biinha de oelhos sobre ele& a minha me para o

reguVs

- $o tens pressa=

e eu distraRda dela a dialogar com as rBores& se me dirio U

trepadeira a trepadeira muda de anela& no me responde& eBita-me&

a Biinha acertaBa com a naBalha na barriga do peru& no peito& o

bicho trotaBa no uintal& escondia-se no laBadoiro& reaparecia nos

pimentos& um cheiro ue no era o nosso a aumentar no len@ol& o

peru de sJbito imóBel& Bencido& moBimentos na cama ue no me

pertenciam& a Biinha de pK& o reguVs de pK e o cheiro& deitado

comigo& a crescer& pedir ao cheiro

- Largue-me

as Boes dos homens ue laBaBam a rua no me laBaBam a mim&apagaBam a achada do cinema e mais rBores& uma das moedas do

reguVs rolou no sobrado e a minha me& transormada em tornoelo&

debaiCo do colcho a apanh-la

Qporue me obrigam a contar isto& uem me obriga a contar isto

senhores& ue chapKu de palha com cereas de eltro& ue arBKloa=S

uando eu tinha doe anos mediu-me os ombros& as ancas

- <ais come@ar a audar-me

eu- O ue K ue BocV disse senhora=

e a minha me a demorar-se-me nas ndegas

- ,ma surpresa

isto de dia numa altura em ue as rBores no eCistiam por

enuanto& come@aBam a eCistir ao crepJsculo e antes disso& em lugar

de rBores& alguKm a bater tapetes& o papel de luto no Bidro da

capelista e o estabelecimento de repente importante& seBero& no

papel de luto o dono a Ber para alKm da gente& igual aos almirantes

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nos bustos& eu com doe anos& uns tempos antes da ;ra@a

- O ue K ue BocV disse senhora=

a minha me a estudar-me melhor& a comparar tamanhos

- %u sabes

de orma ue nessa noite ou na noite seguinte Qulgo ue na

noite seguinte ou na noite depois da seguinteS a lu de repente

acesa& no a da mesinha de cabeceira& a do tecto ue tornaBa as

sombras Berticais& to peuenas no cho& uerRamos uma sombra e

no tRnhamos& Ber a nossa cabe@a& o nosso corpo e no BRamos&

apenas as ei@Fes mais caBadas& os ossos mais estreitos& os

candeeiros l ora sim& as rBores sim

- Ol rBores

cada ramo& cada galho& cada nó de sementes& ao echar os olhos

o reguVs no surpreendido& no

- E a crian@a=

do mesmo modo ue a minha me no

- #echa os olhos

a agarrar-me o pesco@o e asas& um salto& o pesco@o a escapar-se&

a mo ue me prendia uma perna& eu tombada de banda e a minhame de oelhos sobre mim& recordo-me no dos ciscos& da poeira& da

terra& mas de pratos e talheres e rigideiras no cho

- 9ueres ue a gente morra de ome=

trotei um momento no sobrado& escondi-me no laBadoiro ou no

 Bo da anela onde a insRgnia do cinema& a capelista echada& eu de

sJbito imóBel& Bencida e& consoante a Biinha aia& depois tiram-se

as penas& depois despeam-se as BRsceras& depois separam-se os

membros& depois com a naBalha Bo-se limpando as cartilagens& osossos& a Biinha enternecida comigo

- Ests a Ber=

agradada ue eu audasse

- Ests a Ber=

a ensinar-me a desarticular omoplatas& costelas

- Ests a Ber=

o peru despido& branco& to magro aNnal& mais magro do ue eu

pensaBa no espelho

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Qo doutor

- <amos oper-la amanhS

e no me doRa dado ue engoli a dor tal como engoli os dentes

um a um& a minha me de pK& o reguVs de pK a untar notas& moedas&

um cheiro ue no era o nosso cheiro no no len@ol& em mim& pedir

ao cheiro

- $o me maces

e apesar do cheiro nunca houBe nenhum homem& nunca

ninguKm comigo& a Biinha a trancar o orno

- Aprendeste=

O riso dela

- Aprendeste=

a minha me em busca da moeda debaiCo do colcho

- Aprendeste=

nenhum homem nessa Kpoca e nenhum homem atK hoe& eu

soinha& eu de chapKu de palha com cereas de eltro

no& eu chapKu algum& com um tabuleiro de toalhas e ronhas

pouco depois de mudarmos para a hospedaria da ;ra@a& ainda no

dois andares& um apenasQparte de um andar apenasS

ou sea uatro ou cinco uartos de uma casa decente para

pessoas decentes& um homem ue nunca encontrara& um cliente

achei eu& a conBersar ao balco com a minha me

Qao perguntar U minha aBó pelo meu pai a minha aBó

de repente Beio-me U ideia a sombrinha da minha aBó& uma

sombrinha de Cadre& e emocionei-me

ao perguntar U minha aBó pelo meu pai K a sombrinha uecontinuo a BerS

um homem ue nunca encontrara& um cliente achei eu& a

conBersar ao balco com a minha me

Qno tRnhamos a rBore aponesa no Baso conorme no este

balco& outro mais barato antes desteS

um cliente achei eu& dali a pouco a minha me agarraBa-me o

pesco@o e o pesco@o a escapar-se& asas& um salto& a mo ue me

prendia uma perna& a naBalha na barriga& no peito& o cliente a

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aguardar na cama

Qauelas caras delesS

e em lugar da naBalha a minha me

- O teu pai

a sombrinha da minha aBó to modesta& se continua a eCistir

deBe apodrecer na arrecada@o no K& um dia destes talBe a

encontre na sombrinha aBó& sentada na salita a mostrar o reumtico

dos dedos

- $o te a impresso=

 A minha me

- O teu pai

mas aposto ue se enganou dado ue eu imensos pais me& este

um cliente sem me chamar& sem me pegar no bra@o& nem deu por

mim& oi-se embora& a minha me

- O teu pai

e ele uma espKcie de contrariedade

Qno bem contrariedadeS

um aceno

Qo ue poderia ter sido um aceno e no era um acenoSportanto no o meu pai& um cliente consoante o meu pai um

aceno& no um homem& a lWmpada do tecto de sJbito acesa& as

rBores do Arco do +ego ue no Boltei a enCergar& o ue aconteceu

ao cinema& se penso na minha aBó

Qe praticamente no penso na minha aBóS

a sombrinha& eCplicar-lhe ue no gosto deste trabalho na

hospedaria senhora& ao perguntar-lhe pelo meu pai mostrou-me o

reumtico dos dedos- $o te a impresso=

Qo pai da minha me uem oi=S

se pudesse escolher preeria uma loa& um uiosue& o senhor

ue herdei da minha me a olhar-me sem or@a nas escadas onde um

rapa de cabeleira posti@a desenredaBa colares& perguntar ao senhor

- 9ual o motiBo de todas as uartas-eiras aui=

perguntar-lhe

- Porue no uma das raparigas do bar=

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com ganas de propor agarre-me o pesco@o& uma perna& no me

deiCe ugir& porue no eu no '7 enuanto BocV com o ornal

Qas brancas ogam e ganhamS

no alo& no aborre@o& no incomodo& animo-o

- $otou auela gaiBota senhor=

uando nenhuma gaiBota& no h gaiBotas aui& uns tordos&

rolas& de tempos a tempos um corBo do castelo& no topei com a

sombrinha na arrecada@o medindo o reumico dos dedos

- $o te a impresso=

topei com uma gata ue se desBiou de mim a buar& no a topei a

si

- Onde K ue oi senhora=

os deuntos no gente& gaiolas& chapKus& Tores& latas de

pastilhas para a tosse ue a errugem impedia de abrir& chocalhaBa-

as contra o ouBido e um eco de pedrinhas

Qos deuntos pedrinhasS

as latas no tinham peso& tinham um eucalipto com uma

cercadura doirada e as pedrinhas aNrmando o uV& pedindo o uV&

parecia-me- *olta-nos

parecia-me

- $o reparas=

ou outra rase ue no interpreto bem& sentimentos ue

desaparecem ao eCprimi-los& poisamos as pedrinhas e no eCistem&

calam-se& ao calarem-se nunca aNrmaram nada& nunca pediram nada&

eu ualuer dia como elas sob um eucalipto tambKm& ol Tores&

gaiolas& chapKusQcumprimentem-me porue acabei de chegarS

portanto o senhor a olhar-me nas escadas U medida ue um

casal subia ou descia e mais casais no corredor U espera& mais ruRdo

ue num prKdio noBo deriBado aos prKdios Belhos capaes de

traduirem o ue tentamos calar& por eCemplo a minha me

- O teu pai

e o cliente

Qsou da opinio ue um clienteS

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a ir-se embora sem reparar em mim& no me lembro das ei@Fes

dele& lembro-me de dar ideia ue ugia de nós e eu com o tabuleiro

das toalhas e das ronhas sem ue me agarrassem o pesco@o& uma

perna& sem ue um peru tombado de banda e a minha me de oelhos

sobre ele

- <ais come@ar a audar-me

o ueiCo da minha me a engolir-se a si mesmo

Q- +oma-se a meS

uase um passo na direc@o do cliente

Qbem o sentia na orma como inclinaBa o corpoS

e a arrepender-se do passo& a cara dela U beira dos mil

bocadinhos a ue chamaria lgrimas se acreditasse em lgrimas

Qno acredito em lgrimasS

isto K as ei@Fes a recomporem-se de um modo dierente ue no

era ela& tornaBam a mudar de lugar e pelo menos uma parte da

minha me ali embora distorcida sob uma agita@o de gua& uer

dier uma por@o conorme a conhe@o e a por@o restante o ue a

minha me oi um dia& suponho ue h imensos anos& numa Kpoca

em ue haBia espa@o em si para algumas nuBens& algum Bentinho nosarbustos& uma atitude

Qse me K permitido o eCagero e mesmo ue no sea permitido

permito-meS

de esperan@a& um triciclo ue a podia conduir a um lugar mais

eli& uando a memória do cliente se desBaneceu a cara da minha

me

Qcom ue BiBi desde ue sou eu e a ue me habitueiS

sem lgrimas& inteira& angando-se comigo- $o se trabalha=

Qo chocalhar das pastilhas apareceu e sumiu-se

- AtK ualuer dia aBóS

eu com o tabuleiro a caminho do andar de cima esuecida do

cliente a ue chamaram meu pai e ue no hospital& sem ue eu

proectasse osse o ue osse& nem deseasse osse o ue osse a no

ser deBorar-me desde ue a doen@a e as pessoas U minha roda

engolidas& aparecia de Bisita unto a mim& no se debru@aBa& no

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sorria de pena& ia conBersando com uma criatura cuos tra@os

Qno lgrimas ue no acredito em lgrimasS

se dispersaBam em mil bocadinhos untando-se um segundo para

se dispersarem de noBo& uma tarde antes ue a dor se aproCimasse

Ql estaBa ela U distWncia& ui aprendendo com o tempo a

adiBinhar-lhe os sinaisS

engoli-os a amabos& portanto& diia eu& o senhor a olhar-me na

escada enuanto um casal sabia ou descia e mais casais no corredor

U espera& um desacordo no patamar acerca de posi@Fes e pre@os& os

clientes dos rapaes mais tRmidos ue os outros& mais receosos da

polRcia& de mo espalmada no peito

- ,m engano um engano

 Bi um ou dois suplicando e apesar de no acreditar em lgrimas

os olhos deles a tremerem& no os mil bocadinhos da cara& a cara

intacta& eram os olhos ue mudaBam de orma& uadrados&

triangulares& em losango& procuraBam o len@o& uase o rasgaBam nas

mos

Quase o rasgaBam K eCagero& iam-no torcendo nas mos& somos

poucos aueles ue no se deiCam inTuenciar por um len@oSoereciam dinheiro& pediam& menos raramente do ue se pode

imaginar um dos polRcias com um rapa de cabeleira posti@a&

agarrando-lhe o pesco@o com a mo da Biinha& o peru a escapar-se e

as asas& o salto& isto num uintal peueno mesmo para um uintal de

proBRncia onde todos os BerFes se reaia o muro deriBado U lama

ue descia o aterro ou a um reiCo uebrado& o rapa de cabeleira

posti@a acabaBa por auietar-se Bencido& retiraBam-se-lhe as penas e

a nude& a magrea& portantoQBoltando onde estBamosS

o senhor ue herdei da minha me nas escadas& a senhora U

espera no '7

Qprimeiro andar& seCta portaS

o senhor ue em tantas uartas-eiras e no caso de no haBer

mentido

Qhipótese ue no deiCo de aceitar& BiBe-se na alsidade e no

ludRbrio& no Bale a pena discutir& eu pelo menos no discuto& K

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assimS

ui conhecendo aos poucos& moraBa no ardim +onstantino

Qum gKnero de praceta unto U Almirante eis o ue uer dier o

>airro das +olónias próCimo& onde um Belhote amigo da minha me&

um capito todo cumprimentos& mesurasS

a esposa& duas Nlhas& o genro& a Nlha sem genro& em crian@a& no

circo com ele porue U Nlha agradaBam os caBalos ue o aborreciam

e ao senhor os palha@os ue assustaBam a Nlha& o mVs de agosto em

#aro ou Portimo ou %aBira

QPortimo=S

%aBira

Qa suspeita ue alguKm eCplicou isto por mim e conseuente-

mente abreBioS

a senhora ue encontrara antes da esposa

Q eCplicaram isto tambKm& no Bamos repetir pormenores&

adianteS

e com uem cinuenta e tal anos& mais do ue a minha me

chamaBa uma Bida& na hospedaria da ;ra@a& arrisco ue por hbito

por acreditar tanto no amor como acredito nas lgrimas& se umulano para mim

- Amo-te

Qelimente no eCiste grande perigo ue um ulano para mim

- Amo-teS

essa espKcie de eCcrescVncia& de aleio& de cancro& nem

hesitaBa& comia-o& pode ser

QconcedoS

ue haa momentos de rauea uando ualuer coisa sedemora em nós num desses compartimentos ue no me atreBo a

espreitar com receio de pedrRnhas numa lata ou uma gaiola onde

uma pluma Tutua sem destino& pode ser ue haa momentos de

rauea uando ualuer coisa desce

Qno uma pluma& dJias de plumasS

numa chuBinha mansa e a gente com uma espKcie de diNculdade

em

Qno acredito em lgrimasS

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uma espKcie de diNculdade em continuar apesar das pessoas

atrs de nós a empurrarem-nos para chegarem c cima& pode ser ue

em momentos desses& gra@as a "eus menos reuentes agora& me

no desagradasse ue

- Amo-te

a Nm de ue o

- Amo-te

apagasse as pedrinhas na lata e outras sensa@Fes

Qchamemos-lhes sensa@Fes& K mais rpido e entende-seS

ue

Qdetesto coness-loS

me custam conorme me custam certas manhs& certos meios-

dias ue se encraBam num ponto meu do ual os restantes pontos ou

eu toda

Qpara ser mais especRNcaS

dependemos& uma lu acesa de repente e no adianta Nngir ue

dormimos& ue a minha me

- Ela est a dormir no a mal

 Bisto ue eu suspensa de mim& apetecendo-me cair e sem mepermitirem cair& eu ora maior ora menor mas presente& se um sueito

- Amo-te

Qessa eCcrescVncia& esse aleio& esse cancroS

pode ser ue as rodas dentadas

Qh horas elies& temos ue concordar ue h horas elies& o

ue seria de nós& respondam-me& sem uma certa uantidade&

insigniNcante ue sea& de horas elies& no uero estagnar ainda&

murchar& consintam-me uns passos mesmo ue em cRrculo& Bos& unspassinhos minJsculos

eis o ue pe@o

atK ue a minha me apague a lu bastam-me& no necessito

mais do ue a lu apagada& nós soinhas& eu bemS

pode ser ue as rodas dentadas a uncionarem de noBo& os

crepJsculos& as auroras& essas designa@Fes pomposas

Qeu ue nunca dei por um crepJsculo& uma aurora& dou por o dia

acabar ou come@ar& ocorrVncias simples& K tudoS

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o ue tem um nome e se agita mas eu consigo engolir& mastigar&

deBorar& untamente com

Qno acreditoS

lgrimas

Qno acredito em lgrimasS

no lgrimas& pedrinhas numa lata com um eucalipto na tampa

Qalis amolgada& riscada e com a etiueta do pre@oS

numa cercadura doirada& o ue tem um nome como o senhor nos

degraus a tomar Ylego para o Jltimo lance

Qa graBatinha& o casauinho& ele peuenoS

a senhora ue nunca o tratou por tu com o seu crochet no

uarto ou sea uma história de amor& uma eCcrescVncia como a

costureira ue me inBentou uer a Nm de entreter-se na cadeira U

 anela& uma história de amor& decidiu& ponho-os a alar um a um&

agora este& agora auele& da minha história de amor& se calhar na

esperan@a ue a gente a Bisite cada um de nós com a tal

eCcrescVncia

- AR tem

- #iue com ela- %ome

e a criatura eli porue uma companhia com uem possa diBidir

a minha Bida e dar-me Wnimo& patetices do gKnero& o ue as pessoas

concebem senhores& abanam a cabe@a na mira de um chocalhar de

pedrinhas& nunca dei com uma lata com um eucalipto na tampa&

inBentou-a olhou para o seu cacto e a sua arBKloa e como nem cacto

nem arBKloa

Qpergunto-me se tero eCistidoSdecidiu ocupar-se& no h melhor ue uma história de amor

pensou ela& elimente ue em conseuVncia da ebre os episódios

lhe escapam& resta-me alguma liberdade& apesar de tudo& uando a

medica@o

Qou o ue ela ulga ser medica@oS

lhe conunde a cabe@a& as ideias diBagam e principia com a sua

cisma do mar& ondas& areia& rochedos& uma praia em resumo& o ue

no alta nesta terra so praias para dar e Bender e enuanto Bai

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cismando com as praias

- Est a Ber o mar dona AdKlia=

no orgulho de uem eCibe uma propriedade sua

- Est a Ber o mar dona AdKlia=

!sso no meio da ebre e portanto no se lembrando de mim

Qnunca eCistiu um homem& alguKm ue me permita detest-lo

poupando-me o aborrecimento de me detestar& o doutor

- +uidado com as emo@Fes

e detestar uma pessoa ue no seamos nós apesar de tudo

consolaS

retomando a conBersa a criatura no se lembrando de mim nem

dos aborrecimentos ue a morte do senhor trouCe a uma casa

decente& logo para come@ar o acto de um cadBer no cho e a

senhora nem uma lgrima

Qo ue lhe agrade@oS

indierente ou alheada no sei& a rapariga do caBalheiro ue a

trataBa por netinha Beio chamar-me isto K no me chamou& um sinal

da outra ponta do balco no Nto de no alarmar os clientes& no caso

dois clientes a diBidirem uma mulher deriBado U promo@o noemprego

- #omos promoBidos no emprego

e

- ,m descontoinho madame

isto pelas seis da tarde uando echam os escritórios e a roda

 BiBa come@a& l achei o senhor com uma das mangas no colcho e o

resto no soalho& dir-se-ia alis ue no deunto& a eCaminar-nos

comedido& sKrio& educado como sempre o achei& de roupa alinhadao ue poupa trabalho& eu

- E agora=

o caBalheiro ue trataBa a rapariga por netinha e cua Nlha

- O meu pai

enerBada& eCigente& o caBalheiro repetindo

- Menina m menina m

numa Bo ue esmorecia ao principiar a entender& a trepadeira

para um lado e para o outro sem se incomodar connosco& por ue

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rao Qaudem-me nesta dJBidaS

os minerais& os Begetais& os elementos atK& distraRdos uando

nesse andar. uma palaBrinha& ue sea por eCemplo

- A gente Nca aui

e no pedia mais& chegaBa-me& precisamente o ue a senhora

Qora aR estS garantia ao senhor

- #ico aui

sem ligar ao sauito do crochet no peitoril

- #ico aui

se tiBesse haBido um homem pergunto-me se eu

- #ico aui

ou a esconder-me na caBe onde a lata de pastilhas& os chapKus& a

gaiola& a chuBa de plumas brancas por toda a parte& esses pontinhos

de lu nas Barandas uase echadas ue tanto me intrigaBam em

miJda e ulgaBa serem "eus& substanciainhas sem matKria a

bailarem& a minha me

- %ens de audar-me agora

e no posso senhora& desculpe& corro o dedo no eucalipto da

tampa& agito as pedrinhas& sinto a errugem do esmalte& no possoporue cheguei onde no se recome@a senhora& onde uma arBKloa

num muro me tra sinais do mar& a ue me inBentou tinha rao& do

mar& Bai emprestar-me o chapKu de palha& as cereas de eltro& o

peda@o de corda& to peueno& de um Jltimo naurgio& uma Bontade

pesada de agradecer& aoelhar& daui a pouco eu audo-a me& pe@o

perdo& Bou& os senhores do '7 compreendem& aceitam& ao olh-los

palaBra de honra ue me senti em ace dos meus Jltimos mortos e ao

mesmo tempo a certea de receber a Bida atraBKs delesQo tuberculoso ue nos pedia esmola roRa oBos coidos encostado

a uma palmeiraS

a senhora ue conhecia a amRlia do senhor de %aBira

Qou Portimo ou #aro ou *ilBes& no insisto& uma cidade do

 Algar-<e cuo nome no NCei mas disseram com certea antes de me

passarem a palaBra

- $estas pginas tu

para eu alar conBosco

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teleonou ao genro do senhor

Qo tuberculoso no caiCo sobre uma mesa escura& a tigela dos

oBos coidos na prateleira& lembro-me de uma embalagem de

conserBas meio aberta a ensinar-me ue o uniBerso maior do ue eu

 ulgaBa& muito grande& l estaBam Biinhos nossos a Baguearem na

+hina

por eCemplo

em busca do caminho do regresso& no interior da embalagem de

conserBas um baNoito de aeite e os Biinhos& entre conJcios& atK

hoe por lS

o genro do senhor obrigou-o a sair pelas traseiras amparado por

uncionrios seus& a cabe@a bamba no peito& arrastando os sapatos&

cal@as a sobrarem da cintura e meias ue pingaBam tornoelos ora&

um bra@o no ombro do primeiro& um bra@o no segundo& perdeu um

dos sapatos no tapete& a rapariga do caBalheiro

- O sapato

e o genro do senhor& de sapato na mo& a dar por ela& pareceu-

me ue

- +unhadinhae enganei-me& em lugar de

- +unhadinha

a preBenir

- Eu Benho

a senhora oi-se embora depois com o sauito do crochet sem

ninguKm a aud-la e o '7 tranuilo salBo as duas estampas e a

colcha ora do lugar& ao BeriNcar a colcha uma tristea incómoda no

por ele& por mim de orma ue engolir-me antes ue os milbocadinhos da cara& atrai@oando-me

Qno acredito em lgrimasS

mudassem de lugar e no mudaram& o genro do senhor ao

balco

Qo cotoBelo no balcoS

o sorriso e o cotoBelo no balco

- 9uero a ue estaBa aui

Qa ter haBido um homem porue no auele=S

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e ao eCigir

- 9uero a ue estaBa aui

rac@Fes minhas ue oscilaBam& BibraBam& engole-as depressa

anda& sossega-as com a promessa do mar& o tuberculoso h-de roer

oBos coidos encostado U palmeira& os Biinhos perdidos na +hina

chegaro a casa& nenhuma lu do tecto se acender a acordar-te&

Ncas& diante da rBore no Baso& hoe& amanh& depois de amanh&

para a semana& escuta o elKctrico a atrapalhar-se na curBa& a

conseguir& a ganhar Belocidade a caminho do centro ao ual nunca

 Bais& tens alguns corBos& algumas rolas e chega-te& uma casa decente

para pessoas decentes ue a tua me deiCou& o teu pai

Qnunca se sabe& no K=S

a ir-se embora ou pelo menos um dos teus pais& o ue mais se

alarmaBa

- A garota=

e ue tu& de olhos echados& nunca chegaste a Ber& tens os casais

no corredor indignando-se com as horas& tabuleiros de roupa

engomada para dobrar no armrio& os domingos U tarde em ue se

limpa tudo& a senhora despediu-se de tiQcontinuas a sentir-lhe a mo na tua moS

se te aproCimaBas o tuberculoso escondia os oBos apertando-os

na camisa& um deles escorregaBa para o cho e ele a apanh-lo com o

cabelo da nuca

Qa nuca dois tendFesS

a escurecer a gola& em acabando a limpea Nca-te

Qalguma coisa te Nca minha NlhaS

a companhia da tangerineira ue o teu irmo trocou por umagarraa& os rutos ue nunca chegam a crescer& desprendem-se

Qbagaitas BerdesS

sempre antes& no procures a gaiola e a lata de pastilhas&

permanece aR& no meio das erBas ue no necessitam da tua auda

para eCistirem no ue sobea dos cani@os dos craBos& um uintal

rodeado de paredes de casas e no centro desse po@o tu& a tepadeira

- %rrr trrr

contra o Bidro o ue signiNca na linguagem dela e embora no te

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 Bs

- Adeus

cachos altRssimos a aguardarem setembro& as rBores do Arco do

+ego dantes inBisRBeis e ue hoe destrin@as& as letras do cinema

apagadas& tu de rente para a tangerineira sem escutares o ue a tua

me te disse& se por acaso

- O ue K ue BocV disse senhora=

a tua me

- $o me lembro

e K natural ue

- $o me lembro

 Bisto ue um cheiro& dierente do Bosso cheiro& contigo&

passando o uartel& no miradoiro& Lisboa& as nuBens de maio do

castelo ao rio& se calhar barcos e no te interessam nuBens nem

barcos& dobras-te para os pimentFes ue no eCistem

Qno sRtio deles as erBasS

para essa espKcie de penumbra ue te cerca anulando a palide

das one na ual uma peuenina noite surge e se esuma& a senhora

na esuina com o seu passinho manso sem se Boltar para trs& semolhar-te& a descer para o uarteiro onde mora& a chegar a casa& a

despensa U direita& a sala U esuerda& a coinha em rente& a senhora

a deliberar& a escolher a coinha& a senhora na coinha

Qum cestito de Tores de pano sobre o rigorRNcoS

sem se engolir& sem se comer& a pegar num arro& numa caneca&

num copo& no echo da maruise ue costuma resistir

Qe resisteS

ue costuma aceder em girarQe giraS

a senhora ue trocou o Bestido por uma espKcie de bata e

prendeu o cabelo numa espKcie de elstico eCaminando o outro lada

da rua a estender a mo como se a tangerineira acol& a dar-se ue a

tangerineira contigo& a procurar uma cadeira de lona no armrio& a

sentar-se dois toldos adiante do toldo em ue uma mulher& um

homem e as Nlhas& a retirar o crochet do sauito& a desembara@ar a

agulha do noBelo e no sei se a continuar o trabalho porue as

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plumas brancas nasciam do tecto

QdJias de plumas brancasS

e pode ser

Qd-me ideia& creio& presumoS

ue uma lata de pastilhas para a tosse a tilintar pedrinhas e nós

duas a admir-la

Qo ue haBer dentro=S

encantadas com o som.

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TERCEIRA NARRATIVA 

%inha de ser assim no era pai& de aer os possRBeis por me

enBergonhar atK ao Jltimo dia& humilhar-me& desear no haBer

nascido& no ser sua Nlha& tinha logo de morrer de propósito numa

dessas espeluncas baratas ue deBiam proibir de alugar uartos U

hora acompanhado pela Biinha de toldo ue a gente no olhaBa

seuer& no cumprimentaBa& no percebRamos onde arranaBa o

dinheiro para estar connosco e inelimente

Qtinha de ser assim no era pai=S

percebemos agora& uma mulher ue no sabia Bestir-se& no

sabia comportar-se& comia ualuer coisa embrulhada num ornal& o

 Bendedor de bolos ue conhece os seus iguais e os desprea

Qsenhor 9uV=Suase a pis-la de propósito Nngindo ue lhe deiCaBa cair o

cesto em cima a piscar-nos o olho& a Biinha assustada

Quma camponesa& uma sopeiraS

protegendo-se com o bra@o

Qto cómicaS

e eu a rir-me dela

Qse calhar tirei-lhe o retracto sem uerer& se calhar a Biinha no

lbumSpor ue motiBo me uis sempre magoar pai& ligaBa mais U minha

irm ue a mim& no me respondia& no me daBa aten@o& por ue

motiBo

Qdiga-meS

nos mentia& a desculpa ue Us uartas-eiras U tarde os colegas

do emprego e em Be dos colegas uma hospedaria na ;ra@a& o

ediRcio ou prKdio ou o ue osse a cair de podre

Qbem se notaBa na inclina@o das paredes& nos degraus ue

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altaBamS

e ue uma trepadeira& serBindo-lhe de andaime& ia mantendo de

pK& o meu marido de uem BocV nunca gostou ue se lhe

compreendia no silVncio

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

e uma espKcie de alegria na seriedade dele& de Bingan@a& a mo

ue nunca me procuraBa a poisar sobre a minha& os moBimentos do

polegar no meu pulso numa espKcie de dó

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

o meu Nlho ue chego a perguntar-me

- *er normal=

enrolado a um canto distraRdo de nós com o seu ogo de armar&

chamaBa-o e no respondia ou respondia

- $o uero

QeCistem momentos& "eus me perdoe& em ue a pachorra me

alta& soinha podia ir-me embora& morar onde no me conhecessem&

esuecer a minha me& a minha irm& o ardim +onstantino&

encontrar uma pessoa ualuer& tanto a& abra@ar-me a ela a dormirS

mas tinha de ser assim no era paiQabra@ar-me a alguKm a dormirS

como BocV ueria ue osse& como& sem o dier

Qatendendo a ue no alaBa& lia o ornal& animaBa-se no caso de

uma gaiBota& aborrecia-se da gaiBota& lia o ornal de noBoS

eCigia ue osse& o meu marido& Bitorioso

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

a mostrar-me a hospedaria num largo onde um bar de

desgra@adasQa minha irm entre elasS

desencaiCaBa os taipais e miJdos de cabeleira posti@a

pregui@aBam entre as rBores enuanto a mo ia insistindo na minha

sem se Boltar para mim

- X melhor ue compreendas ue Beas

o polegar para diante e para trs arrepiando-me o pulso ou no

apenas o pulso& o corpo inteiro& arrepiando-me o corpo inteiro e eu

surpreendida comigo

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- "eiCaste de interessar-me

nunca me tinha acontecido uma certea to orte

- "eiCaste de interessar-me

no somente o meu marido& o meu pai

Qum dos rapaes de cabeleira posti@a tirou comprimidos do

bolso& se ao menos conhecesse o nome das rBores do largo& podiam

pregar umas placas com o nome nos troncosS

- "eiCaram de interessar-me os dois

tudo como BocV deseaBa pai& como BocV planeou& sempre

obedeci ao meu marido& aceitei o ue ele ueria

Qnomes em portuguVs& no em latim& ou ento em latim

parece ser costume

mas traduidos por baiCo& carBalho& abeto& cedro& eCplicar ao

meu Nlho& daui a pouco na idade atro das perguntas

ser normal& o meu Nlho=

- O ue K auilo=

eu a largar-lhe o bra@o e a aproCimar-me da placa

- ,m carBalho

alKm do carBalho em geral um tanue com os patos peuenosem Nla atrs do pato grande& inelies em bancos& as sombras ue a

tarde apanha e Bai untando sem pressaS

sempre obedeci ao meu marido e BocV a roubar-mo& apresentou-

se com um ramo de Tores para a minha me

Qseriam antJrios& o ue so antJrios meu "eus=S

no primeiro antar l em casa

Qmudei terrinas de lugar& escondi bibelots na gaBeta& a minha

me oendida- 9ue K isso=

batendo-se para ue a moldura do templo romano se mantiBesse

no gancho e o gorila de elpa na estante boceando a anunciar

- *ou eRssimo

eu achando o nosso segundo andar indigno dele& as cortinas e o

tapete mais gastos& a marca de uma sola ue no tiBe tempo de

esregar& o piano a ue altaBa Berni com um casti@al apenas& no

sRtio do outro casti@al sinais de parausos& os retratos na camilha

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diante dos uais& se ulgaBa ue no dBamos K& o meu pai se

plantaBa& num deles um sueito ue parecia perguntar

- Ests a rir-te de uV=

e depois enNaBa a cabe@a num buraco de telo e ca@aBa leFes

mal desenhados& torcidos& num segundo um sócio num ponto com

duas canas de pesca próCimo do ue se assemelhaBa a um naBio

grande& um pauete& um petroleiro talBeS

a minha me em busca da arra para as Tores numa BiBacidade

inesperada& no agora conorme depois dos cinuenta anos& de

gestos ceis& magra& uase

Qpor assim dierS

bonita& abrindo a torneira da coinha& deitando gua na arra& eu

sem acreditar

- $o pode ser

a minha me por momentos nascida a seguir a mim ue

engra@ado& mais elegante ue eu& de cabelo mais claro& o meu

marido& sem reparar nela& espreitando a minha irm ue no

espreitaBa ninguKm& trancaBa-se no uarto& se eu rodasse a

ma@aneta- $o entres

se teimasse Bia-a de palmas no ueiCo U anela

Quantas tardes U anela=S

o meu marido a espreit-la e a minha irm a acabar de pYr a

mesa sem ligar a nenhum de nós& a sentar-se& ela e o meu pai

Qtinha de ser assim no era& de aer os possRBeis desde o inRcio

por me enBergonhar& humilhar-meS

calados& uase de indicadores nas orelhas porue as Tores da arra gritaBam de tal orma ue no se compreendia a minha me e o

meu marido& uer dier as bocas respondiam& conBersaBam e no

decirBamos os sons U medida ue a minha me se tornaBa mais

lenta& engordaBa& aduiria amarguras e rugas& no somente a marca

de uma sola no tapete& Brias& uma nódoa unto U rana

Qgordura& cina=S

o piano por elicidade mudo& ele a uem de tempos a tempos

 Binham recorda@Fes misteriosas iguais aos sonhos dos bichos& coisas

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l dele& manias& de modo ue se concentraBa& estremecia em bicos de

pKs e um soninho comprido ue alarmaBa os retratos& no o sueito

do te-lo de ca@a& no o das canas de pesca& gente mais plida& mais

antiga& uma senhora de bengala& uma rapariga a apertar os lbios

para no chorar

Qeu=S

uma rapariga de tran@as

Qno usei tran@as& no euS

a apertar os lbios para no chorar& ao reparar nela daBa por

mim a apertar os lbios tambKm

Qcoisas minhas& maniasS

a certa altura pareceu-me ue o piano se concentraBa&

estremecia em bicos de pKs& untaBa as mos mas por sorte consegui

distraR-lo com a minha tosse& assim ue me olhou eu

- Por aBor

e o piano aastou as mos& desistiu& mesmo depois do meu

marido se ir embora as Tores continuaram a gritar impedindo-me de

dormir& ao atraBessar a sala& descal@a& para traer um copo de leite o

meu pai resolBia o problema das damas no ornal& a canetasuspendeu-se a meio de um lance& U socapa& Birei-me de repente e a

caneta de imediato a riscar o papel

- $o dei por ti garanto-te

Q- O ue sente por mim pai=

e a caneta em silVncioS

a gente as duas& a caneta e eu& sem ninguKm a incomodar-nos no

 ardim +onstantino

Qas marcas do tapete no se notaBam agora& o gorila de elpadissolBido na estanteS

porue no& assim a meio da noite& com a minha me e a minha

irm deitadas& conBidar-me a sentar no so& ocupar-se comigo& a

impresso ue uma muina de costura a trabalhar ao undo&

inclinei-me para o pic pic pic

Qmais BBBBB ue pie pie pieS

e no era& suponho ue um besouro em redor de uma lWmpada&

os arbustos em baiCo& a impresso ue um dedo a emergir da

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poltrona

- +resceu tanto o pimpolho

e apenas uma altera@o de sombras& o meu pai a Ntar-me& cego&

mastigando raciocRnios a medir uma ogada& cessando de mastigar

porue descobriu a ogada e os olhos& capaes de Berem& submersos

no ornal& nem

- $o posso

nem

- Espera um bocadinho

submersos no ornal& restaBa metade do meu pai no candeeiro& o

ue sobraBa ignoro onde& se calhar no buraco do telo de ca@a ue o

sueito deiCara liBre ou acompanhando o das canas de pesca& se

calhar muito uietinho& unto U rapariga das tran@as& a apertar os

lbios para no chorar igualmente& apesar de me eBitar BocV com o

meu marido pai

Qtinha de ser assim no era& de aer os possRBeis por humilhar-

me atK ao Jltimo diaS

na misKria da hospedaria da ;ra@a.

Qse cortasse a trepadeira a hospedaria tombaBaSdado ue oi a ele ue chamaram

Q- AdiBinha o ue aconteceu ao teu paiS

no a mim& a Biinha de toldo ue ao comprido dos anos nos

decorou o nome a resistir& a no uerer ue soubKssemos& a decidir-

se& a teleonar

- O seu sogro

o seu sogro ue aleceu com os colegas do emprego senhor

doutor& no comigo& leBando-o daui no aleceu comigo e o meu paide cabe@a bamba a arrastar os sapatos entre dois uncionrios

enuanto uma mulherita de tubo na garganta sopraBa Bogais para

os clientes

Que enCoBalho paiS

- *entiu-se mal do Binho

realmente ue enCoBalho pai& BocV ue nunca bebeu sentir-se

mal do Binho& limitaBa-se a pasmar diante dos retratos ue no o

salBariam de si da mesma orma ue a sua lembran@a c em casa no

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me salBa de mim& nenhum arrasto& nenhum comboio& nada ue me

auCilie a partir tirando o piano em bicos de pKs num soninho

comprido& as mos dele untas a ampliarem a desaNna@o da Bo& a

minha me intrigada

- O ue uer o piano=

no ueria morrer& era isso coitado& mirando-nos do seu canto

sem ue o animssemos& bastaBa eCaminar o Jnico casti@al para se

entender logo

- $o me deiCem por c

pergunto-me se as rBores se apercebiam& tinham pena ou na

alta das rBores o aparador& as cadeiras& o piano ue a minha me

 Bendeu

- ,m trambolho

e mal ela

- ,m trambolho

o meu pai a agitar-se& albatroes& gaiBotas& a proessora de

geograNa ue tanto deseei

- K tarde menina

e eu uase a desalecer de medo dos pecados& do inerno& com olen@ol por cima da cabe@a& ineCistente pra mim mesma para ue

alRBio& a sala imensa desde a partida do piano& a descoberta de uma

parede no igual Us outras& mais plida& mais poeira na alcatia& uma

abotoadura antiga& misteriosa& e uma bouilha ue regressaBam U

tona dispostas a contarem-me as suas histórias ue no aia ideia

uais ossem

Qa Belha da bengala remeCia-se na molduraS

eu com elas na palma- <ocVs pertenceram a uem=

e como alaBam ao mesmo tempo no cheguei a saber& guardei

durante anos a abotoadura e a bouilha num enBelope com uma

margarida seca recebida no me recordo de ue pessoa

Qrecordo-me sim senhor& recebi-a de mim& comprei-aS

e ue representaBa a proessora de geograNa a proessora de

geograNa a proessora de geograNa atK ue o meu marido a eCibir-

mas

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- $o se pode ler a reBista=

no me lembro do meu Nlho nascer& lembro-me da minha me

para o ber@o num arrulho ue no lhe conhecia& a separar as

palaBras

- *ou a aBó sou a aBó

ue o meu pai no me Bisitou na clRnica& ao entrar no ardim

+onstantino com a alcoa

- epare na crian@a pai

os olhos cegos no problema das damas& a boca mastigando

 ogadas& a minha me a arregalar-se para ele& a agitar-se em sinais& a

caneta a dar K dos sinais

- Muito bem

 Boltando de imediato ao ornal& o meu marido a sentar-se na

cama BeriNcando o relógio e assobiando angas logo ue o meu Nlho

com ome

- Este concerto Bai durar uantos meses=

no me lembro do meu Nlho nascer& talBe da enermeira

- A cabe@a est uase

eu perpleCa U medida ue os ossos se desaustaBam& no sei ouV ia escorregando em mim

- A cabe@a de uem=

Lembro-me do tecto e de uma mosca no tecto a esergar as

patas da rente& as patas de trs& a esregar a cabe@a ue a

enermeira anunciaBa estar uase

- #a@a or@a e acabou-se

as patas da mosca peludas& suas& Nos escuros na nuca

- %ens os cabelinhos castanhosuma mosca gelatinosa& com crostas de gordura e de sangue a

remeCer-se balindo& no a mosca do tecto ue me interessaBa mais&

uma outra ue no esregaBa nada& e portanto no era assunto meu&

embrulhada num pano& apetecia-me gritar porue o tecto Baio& pode

ser ue numa espKcie de mesa com instrumentos cromados& debaiCo

da cama& numa toalha com nódoas& inclinei-me para debaiCo da cama

e a enermeira de luBas

Qno luBas como a gente usa& de borracha& rosadasS

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- $o Bai meCer-se agora

elimente Boltei a achar a mosca no rasco de soro& umas Bees

no rasco& outras Bees na cWnula e desta eita no esregaBa as

patas& limitaBa-se a umas Boltas monótonas mudando de lugar&

perguntei U enermeira

- A minha mosca onde pra=

Quantas moscas haBer neste mundo=S

eu segura

Qainda hoe seguraS

ue a proessora de geograNa me respondia logo& a enermeira

calada& a prega na testa

- Perdo=

um comprimido num copinho

- Engula

e depois de engolir o comprimido chuBa nos caiCilhos& o Bento&

eu com cinco ou seis anos receosa dos ladrFes& agarraBam em mim

sem os meus pais darem conta

- Anda connosco menina.

MoraBam no cemitKrio onde uma tarde desenterraramesueletos entre duas lpides& o meu pai& sem ornal& sentou-se a

minha irm na cómoda para a audar a cal@ar-se e nem seuer lhe

ralhou por baloi@ar os sapatos

Qainda hoe& nas poucas Bees ue almo@a no ardim

+onstantino& continua a sentar-se na cómoda e a baloi@ar os sapatosS

o comprimido& Berde com uma ranhura ao centro& demorou-se-

me na garganta e principiei a tossir& o meu marido a apontar-me a

hospedaria da ;ra@a& anelas ue no NCaBam os estores& um rapade cabeleira posti@a ue se chegaBa a nós

- 9ue tal=

mJsica no bar onde o porteiro U entrada& por enuanto sem

uniorme& ia alinhando cartaes& tiBe medo ue o porteiro e o rapa

de cabeleira posti@a agarrassem em mim sem o meu marido dar

conta

- Ande connosco senhora

moraBam no uarto onde o meu pai aleceu e a Biinha de toldo&

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ue a gente no olhaBa seuer& a leBantar-se da cama em ue

deitaram o meu pai& comendo ualuer coisa embrulhada num ornal

- 9ueria eCplicar-lhe espere

durante anos seguidos o mesmo Bestido em %aBira& o Bendedor

de bolos ue conhecia os seus iguais e os despreaBa

Qsenhor 9uV=

deBo estar a enBelhecer porue os nomes me escapamS

uase a pis-la de propósito Nngindo ue lhe deiCaBa cair o

cesto em cima a piscar-nos o olho& a Biinha assustada

Qto cómicaS

- 9ueria contar U senhora

contar U senhora para ue no pense mal de mim& nunca pedi

nada ao seu pai& nunca aceitei um tosto& pagaBa o meu bilhete de

comboio& aos domingos& a *intra& tirando uma enCada a caBar-me& h

muito tempo& to longe& no conheci outro homem& a enCada ue

serBia igualmente para enterrar machos Belhos cuos ossos no

inBerno se conundiam com as pedras e por ossos entendo BKrtebras&

costelas& algumas tRbias dispersas

Qa mina mosca nas tRbiasSuando lhes batRamos arueaBam a coluna& encolhiam-se&

colocBamo-los a laBrar e eles eCperimentaBam um trote ue no

 Binha e desistiam coitados& o seu pai um macho Belho senhora& uieto

nas escadas& os dedos ossos ue eu conundia com pedras& uma das

tRbias dispersas a pedir-me a ca@adeira ou a machadinha no pesco@o&

um espigo no ouBido

- $o sou capa

Qtinha de ser assim no era pai=Se ele na terra por laBrar suspenso das correias& um bra@o na

colcha& o corpo no soalho e a mo do bra@o na colcha a abrir-se

uase alange a alange& no direi ue num adeus porue os deuntos

no se despedem& Ncam numa renJncia sem pressa enuanto a

minha irm empoleirada na cómoda

Qela ue uase no nos BisitaBa aos domingosS

ia baloi@ando os sapatos& a Biinha parecida com a proessora de

geograNa

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a Biinha& sem ualuer tra@o em comum com a proessora de

geograNa& num prKdio da parte baiCa de Lisboa no distante dos

comboios

Qeu ue tanto gostaria de partirS

- Entre entre

uma bailarina de corda& um relógio barato& com óCido no

mostrador& uieto nas sete menos Binte e cinco Us trVs horas da

tarde& pronto a discutir comigo& a teimar

- *o sete menos Binte e cinco cala-te

e a manter dias seguidos esta certea ero& a Biinha ue me

daBa ideia de concordar com o relógio

- Entre entre

no de igual para igual& numa humildade de criada& a limpar-me

um banco com um paninho& a escolher um licor

- Entre entre

um clice de rebordo doirado& limpo tambKm no paninho

QdeiCe-lhe cair o cesto em cima senhor 9uV& aleie-a& o senhor

9uV ao Nm da tarde& sem o negócio dos bolos& a pedir esmola na

esplanada- X a Bida

se soubesse o ue sei hoe abria a carteira e entregaBa-lhe uma

nota

- Aleie-aS

a Biinha ue BocV preeria a mim para me enBergonhar&

humilhar-me& um balde ue no teBe tempo de arrumar na coinha

censurando-a a cada passo

- $o me arrumaste tuo cesto do gato ue no eCistia h sKculos a imitar uma casa

com telhado Bermelho& chaminK e tudo& ninharias de ue se

orgulhaBa

Qprendas suas& pai=S

uma miniatura de aBio com a asa colada& um galhoito de

accia e a propósito de asa a mosca da maternidade& sem esregar

pata alguma& a ataanar-me o pesco@o& tentei distinguir o meu pai no

corredor

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Quma espKcie de corredor para uma banheira& um uarto& um

biomboito ranido em cuo BKrtice um chapKu de palha com cereas

de eltro

no& em cuo BKrtice um casauito de malhaS

e logo ue a criatura

- Ele nunca Binha aui

o meu pai a sair pela porta de trs

- A minha Nlha mais Belha no deu por mim pois no=

eu a dar pelo encaiCe da lingueta pai& botas prudentes numa

escada inBisRBel& BocV BiBo& e se BocV BiBo por ue rao o meu

marido

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

aNnal no e os possRBeis para me humilhar& enganei-me&

perdoe& toda a gente se engana& acontece& tome as suas gaiBotas& os

seus pontFes& o petroleiro de ue alaBa Us Bees

- +ostumaBa passear no conBKs

distraia-se& leia o ornal em sossego& hei-de ach-lo domingo&

ue alRBio& no ardim +onstantino onde rBores& ue no eram as

nossas& lembraBam as de *intra enuanto a minha me a dissertarsobre as suas artKrias& os diabetes

- $unca toma os remKdios

de longe em longe uma alegria sem motiBo& a minha me a

indignar-se

- Ests a rir-te de uV=

e o meu pai atento U escada& uase a cantar& eli

- L Bem ele

nenhuma tbua a dar sinal& nenhum Biinho a subir e no entantoo meu pai como para um beco ou assim

- L Bem ele

por um instante um albatro sobre as copas& naBios& solas ue se

aproCimaBam no conBKs do petroleiro uase alcan@ando o BestRbulo

- L Bem ele

para diminuRrem logo distanciando-se de nós& a cara do meu pai

a apeuenar-se& tudo a engelhar dentro dele& a Biinha de toldo

empurrou o balde com o calcanhar na mira ue desaparecesse e o

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balde entre nós duas com uma escoBa no undo

- %inha esperan@a ue lhe chamassem trambolho imagine

o meu pai olhando para trs no momento em ue a marK

desistia& a Biinha alterou a posi@o do aeroplano em miniatura ou do

galhoito de accia

- Pode no acreditar mas haBia ocasiFes em ue uase lhe

pegaBa ao colo

uase lhe pegaBa ao colo& o abra@aBa& instalaBa-se na cama ao

seu lado Bigiando a trepadeira mais rpida com o Bento& garantia-lhe

- #ico consigo descanse

e um homeninho& distante embora& de chapKu na cabe@a

Qno um chapKu de palha com cereas de eltroS

um homeninho de chapKu na cabe@a a umar no ponto& de

manh as ondas transparentes na muralha& limpas& os desperdRcios

 Binham com a enchente encalhar nos cani@os& lembro-me de um pato

numa ilhota de lodo& com uma das ancas uebrada& a grasnar& no dia

seguinte& com o Nm da ilhota& o pato deBe ter-se aundado ou ento

os Ncram numa cru& de pauinhos& mal dela

- #ico consigo descanseo grasnar diminuiu& acabaram-se os solu@os da garganta ue se

abre e se echa& a Biinha de toldo

- $o bebe o seu licor senhora=

o clice numa bandea com um guardanapo bordado& demasiado

a@Jcar& um sabor de canela& o retrato do meu pai& desses de

photoma-ton em ue a pessoa engorda nuns sRtios e emagrece

noutros& sobre o aparelho de rdio U esuerda de um Baso de esmalte

com um crisWntemo ou isso e eu a dar-me conta ue BocV morto denoBo& a enBergonhar-me de propósito& a humilhar-me apesar de ser

preciso encostar o nari para o reconhecer& notaBa-se ue o meu pai

pela curBaita do ueiCo& a Biinha numa satisa@o melancólica

- Est mesmo ele no est=

e no estaBa mesmo ele K óbBio& estaBa o estranho ue o meu

marido encontrou num cubRculo da hospedaria da ;ra@a

Qaposto ue nem seuer um uarto& uma toca de bicho& um

buraco de ratos& as urnas dos pedintes em ue trapos& gargalosS

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e no sei por ue bulas decidiu ue o meu pai& pegou no ineli

- AdiBinha o ue lhe aconteceu

e trouCe-o a arrastar as pernas pelo corredor da penso& o

mesmo ineli ue aos domingos

Qa Biinha de toldo

- Aos domingos Ramos a *intra senhoraS

o mesmo ineli ue aos domingos em *intra mais a Biinha de

toldo& pasmando com as accias

Qa miniatura de aBio& o galhoito de accia& as ninharias de ue

se orgulhaBa& a patetaS

os dois totós auecendo-se ao sol num banco de esta@o ou

obserBando ramos nos muros

Qcinuenta e dois anos a obserBarem ramos nos murosS

a Biinha a mostrar-me postaiitos de capelista tirados um a um

da gaBeta da coinha& o Palcio da <ila& o castelo dos mouros& ontes&

penhascos& chaleinhos perdidos

- amos a *intra senhora

 BocV ue na nossa companhia um passeio ao >eato e est&

recordo guas paradas& uma montra de otógrao com bebKs enoiBas& o meu pai para a minha irm a designar-lhe passarocos

- Olha as noiBas a seguirem as traineiras auel

e Bai na Bolta

Qtinha de ser assim no era pai=S

ele todo galante em *intra com a Biinha de toldo& este K o

castelo dos mouros& este o palcio da Bila enuanto para a amRlia

hortainhas& um come@o de proBRncia entre becos de pobres

- Morei auio dono dos bebKs e das noiBas

- Pimpolho

um telo com uma bicicleta de rodas desiguais

Q- EnNa o pesco@o no buraco pimpolhoS

ue ninguKm pedalaBa& a minha me a esmiu@ar negatiBos onde

antasmas& no pessoas& com o branco e o preto ao contrrio& ei@Fes

pretas& roupas de apari@o ue TutuaBam

- $o acredito nisto

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se o dono das noiBas me tirasse o retrato eu um espectro como o

meu pai agora& o ato branco& as mos pretas& ossos pretos tambKm

ue regressaBam U tona como os ossos dos machos& umas costelas&

umas BKrtebras& seiCos de tRbias& BocV& incapa de um passo&

suspenso dos Barais a tremer& pedir U rapariga das tran@as ue me

ensine a apertar os lbios para no chorar

- Ensine-me a apertar os lbios depressa

de maneira ue ugi dos telFes uando o dono dos bebKs -Anda

c

a apontar-me uma muina& as noiBas& casadas nas otograNas e

 BiJBas nos negatiBos& amea@ando-me com os bicos

- %oma cuidado com a gente

as restantes a gritarem l ora sempre ue uma traineira ou um

homem& alguma Be o atacaram pai& o morderam& depois da igrea

com a minha me ela e-lhe mal diga-me& a minha me a agitar as

asas do BKu

- %oma cuidado comigo

depois da igrea com o meu marido eu aTita

- E agora=isto num hotelinho do norte& granitos& pinheiros& era o granito

ue ciciaBa& os pinheiros calados& toda a noite o granito

ue eu bem o entendia aBisando& preBenindo& com brilhoitos de

mica aui e acol conorme as lues na serra

Qaldeias talBeS

o meu marido echou a anela e o granito em silVncio& Tores

enormes& amarelas& numa pintura do uarto& estranhaBa os tons& a

mobRlia& a disposi@o dos obectos& o segundo andar do ardim+onstantino remoto com os seus mistKrios amBeis& ruRdos sem

maldade& sombras minhas Rntimas ue conhecia de cor& a minha

sombra& obediente& um co com ue eu brincaBa& Bai-te embora& Bem

c& enrola-te nos meus tornoelos& passa para a rente de mim e no

a achaBa no hotel& se assobiasse

- Onde ests=

no a sombra a lamber-me os tornoelos& tranuiliadora& amiga&

se ao menos a minha me a discutir com a minha irm no corredor

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- %o tarde

a urgoneta do ue trabalhaBa no mercado Us duas da manh a

caminho da lota& a buina para a esposa desdobrada em beiinhos c

em uma& o ue me pertencia e a ue me habituara& o ue me audaBa

a BiBer e em lugar disso granitos& pinheiros& o tanueito de

tartarugas na entrada a Nngirem-se coisas& se o meu marido

- Ento=

sou uma tartaruga& no oi@o& uma caiCa com patas para ali a

dormir

- $o me acordes agora

um ocinho no buraco de telo da casca& uma barbatana a

achatar-se no musgo

- Estou a dormir no BVs=

e aNnal to simples palaBra& o granito enganou-se& um assalto

rpido& um estreme@o e pronto& no Bale a pena apertar os lbios&

estou bem& as Tores enormes& amarelas& habituadas ao mundo&

diBertidas comigo

- +ustou=

se tiBesse alado com a minha irmQnunca alaBa com a minha irmS

talBe ela consentisse em dier no caso de pedir-lhe

- Por aBor di-me

no& tenho a certea ue a minha irm

- $o tenho tempo agora

mais noBa ue eu& mais airosa& argolas nas orelhas ue no me

atreBia a usar& os gestos dela a dan@arem& se a minha me

- Porue K ue te pintas assim=o nari no tecto

- $o me aborre@a deiCe-me

pintaBa-se& acho eu& para esconder os lbios apertados como os

da rapariga da otograNa& os meus apertados Us Bees se tinha medo

e tal& os dela apertados sempre

- %ens medo de chorar no K=

e a minha irm

- EstJpida

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colocar os meus lbios no baton

Q- Porue te pintas assim=S

para ue a minha boca Bermelha tambKm

Q- 9ueres ue as pessoas calculem ue no te educmos K isso=S

e no se notasse ue eu a apertaBa e apertaBa como a rapariga

das tran@as& pegar na caneca da minha irm& recuar dos caiCilhos

onde a minha bochecha um oBalinho mais claro

Quem se Bai interessar por um oBalinho mais claro& o meu pai

no& a minha me no& ninguKm& nenhum dos meus ossos surge U

tona da terra& BKrtebras& costelas& caulhauitos de tRbias& no se

percebia se a minha boca BermelhaS

pegar na caneca da minha irm e deiC-la cair

Qno bem deiC-la cair& og-la no choS

pegar na caneca da minha irm e og-la no cho& pisar os sinais

do baton& no cessar de pis-los& a cama do lado da minha me

Qno do meu pai ue no se interessa por mimS

uma guinada& um suspiro& a minha me no limiar da coinha& to

parecida comigo

Q- Hei-de apresentar-lhe a proessora de geograNa maeinhaescreBa os rios de Portugal de norte a sul por ordem com as cidades

onde desaguam e os lugares onde nascemS

na lentido& na gordura& a minha me a traer a Bassoura& os

peda@os de baton cintilaBam no escuro misturando-se com as olhas

do ardim +onstantino ue obedeciam ao Bento e aos ossos da lua

ue Bolta no Bolta regressaBam U tona& no BKrtebras& no costelas&

uma caBeira antiga& a minha um dia& a do meu pai ue dentro em

pouco& num interBalo de lpides& h-de principiar a surgir& no Bou aocemitKrio para no dar consigo na curBa de uma lea pesuisando

em torno& U procura

- <iste o problema das damas=

como se a caneta no bolso e os óculos no estoo& trouCe-os

comigo depois do uneral& mostrei o estoo U minha irm e ela

- O ue Bais aer com essa tralha=

recusou a caneta& o relógio& o No de oiro& a minha me toda

desgostos e len@os

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Q- A sKrio ue teBe pena ue o pai morresse me=S

- $o aceitas uma lembran@a do teu pai menina=

Q- Alguma Be ouBiu alar na hospedaria da ;ra@a na Biinha de

toldo nos rapaes de cabeleira posti@a=S

a minha me recolhendo os pedacinhos de baton na p&

perturbou-me a eCpresso dela

- +ala-te

no a ordenar& a suplicar

- +ala-te

Qaperte os lbios senhora como a rapariga das tran@asS

a al@a da camisa a descer-lhe do ombro

Q- Esconda o peito tenha modos mas no se encoste U porta no

tremaS

o ombro a tremer& o nari a tremer& num telhado das redondeas

um pssaro da noite ue chamaBa ou ento era a minha me a

tremer

Qera a minha me a tremerS

e eu durante anos to inusta consigo& no esconda a cara&

mostre-ma& uando era peuena e a achaBa a dormir sacudia-a&obrigaBa-a a olhar-me

- Me

com medo ue só o corpo ali& BocV no& dedos uietos& pKs sem

 Bida& eu receosa de meCer-lhe dado ue se calhar outra pessoa& uem

me garante ue no outra pessoa no seu lugar& BocV no esses dedos&

esses pKs& outra pessoa e a outra pessoa

- 9ueres apanhar menina=

portanto tenha paciVncia& dV um eitinho& olhe para mim me&torne-se BocV de noBo& pergunte-me as horas& inuiete-se a mudar de

posi@o& a regressar sei l de onde

- %o tarde

de um sRtio escuro porue as pupilas demoraBam a descobrir-

me& o bra@o no acertaBa no despertador da cabeceira

Q- $o aR me mais acimaS

o despertador ue audo a segurar

- Espere antes ue escorregue eu entrego-lhe

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a minha me aBan@ando e recuando o mostrador atK enCergar os

ponteiros& ao enCergar os ponteiros a enCergar-me a minha& U casa& U

minha irm na sala& cheiro de cigarro& mJsica& a mJsica e o cheiro do

cigarro ue só agora a alcan@aBam& a minha me sentando-se na

cama a endireitar a al@a e eu para comigo

- Ainda bem ue teBe termos B l

reconhecendo o uarto a surpreender-me com a otograNa da

cómoda onde ela e o meu pai& a minha me grBida de mim& de

chapKu de palha com cereas de eltro

a minha me grBida de mim sem chapKu nenhum& o meu pai a

sorrir

QdeBe ser a Jnica otograNa onde o meu pai a sorrir e nem lhe

NcaBa mal& mais noBo& mais bonitoS

a minha me para a otograNa ou para o despertador ou para

mim

- %o tarde

ou sea a roupa por passar& as plantas ue no BVem gua h

uantos dias di-me& mais isto& mais auilo& o mKdico do teu pai& a

minha consulta do reumtico& nem tenho reparado nos acintoscalcula& eu rego-lhe os acintos me& aspiro-lhe a sala& no me d

trabalho algum& ue história K essa de trabalho& Nue aR uietinha a

descansar os ossos para ue no Boltem to depressa da terra& B-se

distraindo com a otograNa da cómoda em ue o seu marido sorri&

um marido pinoca senhora& uase um garoto& um pimpolho& olha ue

sorte& parabKns& onde arranou esse papo-seco& se eu Nsgasse um

igual punha-o U rKdea curta& no saRa soinho a no ser Us uartas-

eiras a seguir ao almo@o com os colegas do empregoQsempre K um entretKm desde ue se reormaram coitados&

 Belhotes& com achaues& K a gaiteirice l delesS

num caeito da >aiCa& num restaurante em Almada& numa

esplanada em >elKm onde se BV o rio consoante ele gostaBa&

baruinhos& gaiBotas& um petroleiro talBe& o sueito no ponto de

chapKu de palha com cereas de eltro

o sueito de chapKu na cabe@a

- %rambolho

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encarrapitado num rolo de cordas& o meu pai e os colegas do

emprego com as suas histórias da tropa& o dominó& as cartas&

diBertimentos do gKnero e ue outros podiam ter na sua idade& o

cora@o& os diabetes& as artKrias& o cKrebro ue conunde as pessoas&

se esuece& se apercebe de nós de repente

- Perdo=

a reconhecer-nos

Qainda nos reconhece& K uma sorteS

pedindo desculpa de no haBer entendido& a descobrir

- Esta K a minha esposa esta a minha Nlha mais Belha

a reconhecer-nos Us duas sem reconhecer a minha irm&

ranindo-se para ela

- Lembra-me alguKm pode ser no estou certo

de maneira ue se o meu marido

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai & trata-se

Qacredite-meS

de uma piada& ual a sKrio senhora& ele no haBia nunca de nos

enBergonhar& humilhar-nos& deiCe-se Ncar deitada& tem tempo& nem

calcula o tempo ue temosQ- Onde oi buscar a ideia ue era tarde ue teima=S

todo o tempo para lacrimear com a otograNa da cómoda& BocV

grBida de mim& ele a sorrir& mais noBo& mais pinoca& uase um

garoto& um pimpolho& se por acaso mencionei uma hospedaria da

;ra@a& rapaes de cabeleira posti@a& a Biinha de toldo& reeria-me a

uma pessoa dierente& um amigo& um primo do meu marido ou ento

enganei-me& u tem& enganei-me& deiCe-se Ncar deitada sem se

incomodar com o re-ogio& no aperte os lbios senhora como arapariga das tran@as ue um tempo antes de o pai em casa& no

calcula o tempo ue temos& as toras ue lhe apete@a atK ue a chaBe

na porta e uando a chaBe na orta a sala aspirada& a roupa ue

passei& os acintos regados& uando o teu pai chegar

Qe Bai chegar& digo-lhe ue Bai chegar& o meu marido mentiuS

tudo em ordem& a mesa posta para a gente os trVs ue ele no

reconhece a minha irm nem precisamos dela& nenhum cheiro de

cigarro nenhuma mJsica a tocar& a gente os trVs satiseitos& U mesa&

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 BocV a a terrina& a serBir-nos

Qsempre gostou de serBir-nosS

a tirar as batatas& a carne& a perguntar

- Mais molho=

a despir o aBental porue um Bestido noBo

Qpraticamente noBo& com um ano ou doisS

o anel da sua aBó ue eu eCperimentei em garota e me dan@aBa

no dedo& o cabelo apanhado com um elstico& um gancho

Qo gancho de marNm

ou de osso subindo U tona da terra

ue deBia usar mais Bees porue lhe alegra as ei@FesS

a gente os trVs U mesa me& l ora os arbustos do ardim

+onstantino e no ligue ao despertador Bisto ue os ponteiros

mudam e diante de nós

Quro pelo meu NlhoS

todo o tempo do mundo.

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QUARTA NARRATIVA 

O meu marido aleceu h dois meses unto aos colegas do

emprego numa dessas uartas-eiras em ue saRa contra minha

 Bontade e a Bontade do doutor para um caK nunca soube bem onde a

reunir-se com os outros& +ampo de Ouriue& >aiCa& ABenidas $oBas&

tenho ideia ue uma ocasio me alou na ;ra@a a propósito da

doen@a de um deles& um problema na anca obrigando-o a Ncar perto

de casa Bisto ue meia dJia de passos e a perna prendia-se& ainda

argumentmos& o doutor e eu& ue um problema na anca no era

nada comparado com o cora@o em papas e o a@Jcar do sangue& o

doutor gra@as a "eus competente preBeniu logo

- LaBo daR as minhas mos no me responsabilio

a minha Nlha mais Belha a cham-lo U raoO doutor laBa daR as mos no se responsabilia ouBiu pai=

e elimente ue a minha Nlha mais Belha se preocupa dado ue

a irm com o eitio ue tem no nos liga nenhuma& semanas e

semanas sem aparecer nem teleonar nem se ralar connosco isto

morando todos em Lisboa e como eu costumo aNrmar o ue seria se

 BiBVssemos em cidades dierentes& espero por ela aos domingos&

ponho-lhe os talheres na mVs& a@o o coido ue gosta e nenhum

toue de campainha& nenhuns passos na sala& o coido a arreecer naterrina& o meu marido embora no dissesse nada sempre U espera da

Nlha& a chegar-se U Baranda Nngindo ue no se chegaBa U Baranda&

ia BeriNcar o tempo& buscar ualuer coisa uando no haBia nada a

buscar& endireitar a cortina ele ue nunca se preocupou com

cortinas& tudo isto calcule-se& na mira de a Ber no ardim

+onstantino& eCplicaBa-lhe ue uma inusti@a em rela@o U irm&

mostraBa-lhe ue a mais noBa& desde peuena& uma pessoa sem alma

e o meu marido ausente& perguntaBa-lhe

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- "e onde te Bem essa paiCo conta l=

e ele a poisar o guardanapo na toalha em silVncio& a leBantar-se&

a passar por nós e eu um obecto& um móBel

- $o eCisto pois no=

o meu marido a olhar para mim sem olhar para mim& a olhar

acho eu para um sRtio do passado onde um homem a umar sorria ao

seu encontro e ele a sorrir tambKm& mal o sorriso do homem

desaparecia o meu marido de regresso ao ornal& a minha Nlha mais

 Belha a aconselhar-me por gestos

- $o o eCalte senhora o cora@o os diabetes

e uem se inuieta com o meu cora@o& os meus diabetes eu ue

desde o primeiro dia detestei esta casa& demasiadas sombras&

demasiados retratos& a muina de costura ue em determinados

momentos& sem ue perceba como& Bai picando o silVncio& aproCimo-

me e uieta& aasto-me e nas minhas costas o poc poc de noBo&

assusto-me

- $o do pela muina=

a minha Nlha mais Belha a auscultar o corredor primeiro e a

censurar-me depois- 9ue muina de costura me=

cochichando ao doutor enuanto o doutor guardaBa o aparelho

de medir a tenso

Qlembro-me do sol na Nta de mercJrio& em nenhuma parte do arr

dar salBo na Nta de mercJrioS

o doutor uma caneta para ela

Q- Acalma-te meninaS

e uma ordem para mim- $o leBe os dias echada distraia-se madame

e realmente deBia distrair-me porue desde o primeiro dia

detestei esta casa& a conBic@o ue pessoas ue no conhe@o

instaladas no so reproBando-me& por muito ue argumentem ue a

saleta Baia uma Belhota embrulhada em Cailes e mantas a admirar-

se para uma rapariga de pK

- +resceu tanto este ano o pimpolho

um sueito ue erguia um catraio no ar& lhe aia cócegas& o

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largaBa no soalho a indignar-se com as mos na cintura

- Ests a rir-te de uV=

uma mulher de chapKu de palha com cereas de eltro

protestando comigo

- "este-me tanto trabalho

eu a dirigir-me U Belhota& ao sueito& U mulher& baiCinho para ue

o meu marido e a minha Nlha mais Belha no dessem por mim

- "eiCem-me em pa BocVs

ou sea o meu marido no ue no lhe a dieren@a& no se

preocupa

Qalguma Be se ter preocupado=S

no se alarma comigo& circula entre antasmas habituado a eles&

daui a pouco segundo o doutor ue paninhos uentes no usa e K

po po ueio ueio& um antasma igualmente

- A lei da Bida madame

esperando a Nlha

Qsem conessar ue esperaBa a NlhaS

na poltrona acol& a dos Cailes e das mantas& a Nlha ue desde a

sua toorte& sabendo-me soinha no meio dos reposteiros& das arcas&das cachas ue me no pertencem e bem tentam eCpulsar-me nem

uma palaBra& um recado& uma Bisitinha de cinco minutos

Qno pe@o muito ulgo euS

- +omo tem andado senhora=

uantas discussFes com o meu marido& era ela peuena&

tentando para seu bem ue abrisse os olhos& compreendesse

- %ens de ter mo na catraia

e em lugar de ter mo na catraia daBa-lhe dinheiro Usescondidas& conBidaBa-a para o circo& passeaBa-a& no lhe ralhaBa se

chegaBa tarde& sentia-o aTito na cama embora nem um som de

molas& apenas dedos ue torturaBam o len@ol e a boca redonda de

paBor

- A minha Nlha=

sentia-o sem palaBras

- A minha Nlha=

a BeriNcar o relógio no acendendo a lWmpada& girando-o na

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direc@o dos estores na esperan@a dessa palide ue a noite tra

consigo permitindo-nos entender os obectos numa claridade Bioleta&

eu a pensar obserBando-lhe as manobras

- 9uem sou eu para ti no me mintas uem sou eu para ti=

 BiBo contigo h tantos anos sem saber uem sou eu para ti ou

melhor sabendo ue no sou ninguKm para ti& para ti as tardes de

uarta--eira com os colegas& o >eato& as gaiBotas& recorda@Fes de

ue no alas& nunca

- A minha me isto

ou

- O meu pai isto

se me dirigia a ti o guardanapo na toalha& uma espKcie de

irrita@o ue no chegaBa a irrita@o

Qno te irritaBas com ninguKm& no te irritaBas comigoS

as pginas do ornal Boltadas deBagar atK ao problema das

damas

Qas brancas ogam e ganhamS

ue NtaBas sem o resolBer de caneta suspensa

QaNnal irritaBas-te porue a caneta suspensaSUs trVs ou uatro ou cinco da manh um barulhinho na porta& a

tua Nlha

Qno minha Nlha& a tua Nlha& uma Nlha só tuaS

a descal@ar-se no patamar tomando cuidado com as tbuas& se

eu pulo a Ngura desbotada& uma gargalhadita de desaNo& ela na

escola ainda& h to pouco tempo mulher& dormia de lu aberta com

medo dos gatunos e no entanto a aer-se de orte

Qeu aTita a aer-me de orte& K Berdade ue tinha medo dosgatunos& K Berdade ue na escola ainda& deiCaBa ue me agarrassem

ordenaBa-lhes ue me agarrassem& eu com dois ou trVs rapaes

ordenando-lhes ue me agarrassem e no sentia nada a no ser

desdKm& agarraBam-me e echaBa os olhos a pensar ue um homem

no o meu pai& um homem& o meu pai apertaBa-me os dedos no

circo& aia o ue lhe mandaBa e pronto& a pensar ue um homem& o

dos caBalos com plumas na cabe@a U roda na pista e ele a corrigi-los

com uma Bara& eu a pensar ue um homem a sKrio me agarraBaS

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a minha Nlha com medo dos gatunos& dos palha@os& do silVncio e

no entanto a desaNar-me& a aer-se de orte

- >om dia

cruando-se comigo uase a empurrar-me para beber gua do

 arro diBertindo-se ue eu

- $o se bebe gua do arro

eu

- H copos no armrio menina

a gua

Qtremia tanto& elaS

a descer-lhe do ueiCo& a derramar-se no cho& se uisesse

bater-lhe prendia-me o pulso

- <ai arrepender-se me

mais alta ue eu& mais orte& a cara insistindo

- <ai arrepender-se me

uma crian@a uase& no uase& uma crian@a& h pouco tempo

para um canto

- Olhe isto

desde o primeiro dia detestei o ardim +onstantino& pessoas ueconhe@o reproBando-me por muito ue me demonstrem ue a saleta

 Baia& demasiadas sombras& demasiados retratos& a muina de

costura& sem ue eu perceba como& ia picando a gente& aproCimaBa-

me e uieta& aastaBa-me e nas minhas costas o poc poc a tro@ar-me&

talBe ue noutra casa a minha Nlha obediente& no a puCar-me para

um canto

- O ue K isto=

resolBendo a Bida soinha& no me lembro do ue se passoucomigo

Qa irm mais Belha resolBeu a Bida soinhaS

uando ao olhar-me

- O ue K isto=

no sonhaBa o ue era isto& o meu corpo no mudara&

comparaBa-me no espelho e no mudara& talBe uns centRmetros& sem

ue me desse conta& nas ancas& no peito e contudo eCaminando

melhor nem seuer nas ancas& no peito& enganei-me& eCagerei& o meu

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corpo no mudara e se o meu corpo no mudou poruV isto& eu

echando-me com o meu segredo& to assustada& to tensa& sem

coragem de pedir

- Audem-me a entender o ue K isto

dobrando-me sobre mim mesma a medir uma gotinha de sangue&

no mais ue uma gotinha insigniNcante de sangue& se por acaso ao

cair uma erida na canela sangue tambKm mas dierente& outra cor&

outro cheiro e nenhuma erida na canela& no sei o uV em mim& ser

ue os animais tambKm& as oBelhas& as beerras& a gata ue tiBemos

um pinguito de meses a meses e ela agitada& impaciente& a ro@ar-se

nas cadeiras& a minha Nlha agitada& impaciente& eu sem uerer

- $o te roces nas cadeiras

no te agites& no te impacientes& no te ogues contra a porta

para sair de casa& uma Wnsia& uma ebre& uma surpresa ue te

aumentaBa os olhos e me alarmaBa a mim

- O ue K isto=

e a partir desse dia a descal@ares-te no patamar& a tomares

cuidado com as tbuas& se por acaso eu diante de ti com um chinelo

apenas desprendendo-me do teu pai a sacudir-lhe o bra@o- $o me impe@as de educar a minha Nlha no te ponhas nunca

entre nós

um desaNo uase em lgrimas& uma coragem ue se dissolBia

- <ai arrepender-se me

ou sea mais um instante& uma uesto de segundos e a minha

menina de noBo& a ue tiBe& a de uem gostei& nas primeiras semanas

o cabelo loiro& aos cinco meses um dente& eu eli

- ,m dentea passar-lhe o indicador na gengiBa e ela a chupar a unha& a

reconhecer-me ue eu bem daBa conta ue me reconhecia

- O meu bebK reconhece-me

a minha crian@a& a minha Nlha

- Pegue-me ao colo me

ou sea repare no meu cabelo loiro& conBoue as Biinhas

- O cabelo dela loiro notaram=

 BocV orgulhosa senhora& contente

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- O cabelo dela loiro

nas pessoas ricas o cabelo loiro& nas pessoas pobres escuro& liso&

sem caracol algum& os olhos no castanhos& Berdes& no castanhos

- $o eram Berdes me

no teime ue so Berdes& no acredite ue so Berdes& so

castanhos

- Pode ser ue castanhos com uma pintinha de Berde

e nem uma pintinha de Berde& pintas castanhas& no olhos de

pessoa rica me& desculpe& mas a@a-me U mesma um caracol com o

pente& passe-me o indicador na gengiBa

- ,m dentito

no se aaste de mim e embora a minha Nlha pedisse

- Pegue-me ao colo me

embora

- $o o colo do pai me o seu colo

a beber gua do arro& artei-me de lhe ensinar ue h copos no

armrio& abres o armrio& tiras um copo& Bertes o arro no copo e

ento sim bebes& artei-me de lhe ensinar maneiras& bem tentei

educ-la sem gritar e em lugar do copo de gua a descer-lhe noueiCo& a derramar-se no cho& a blusa torta& a pintura desbotada&

uma gargalhadita a emergir do embara@o& ela na escola ainda&

dormia de lu aberta com medo dos gatunos& dos palha@os& do

silVncio e contudo

- $o me aborre@a me

atK hoe

- $o me aborre@a me

e suponho ue o mesmo medo dos gatunos& dos palha@os& dosilVncio& toda a noite os candeeiros acesos porue toda a noite um

palha@o ue or@aBa a porta& entraBa

Qo meu genro

no Bou alar nisso

ue or@aBa a porta& entraBaS

um palha@o de perna cruada na sala& satiseito de si mesmo

- +unhadinha

cada Be ue o palha@o a alargar-se no so

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- +unhadinha

o meu marido mais undo no ornal

Qas brancas ogam e ganhamS

a cobrir os ouBidos com o problema das damas

- $o dei por nada

e o segundo andar do ardim +onstantino sereno outra Be& a

pa dos arbustos ue em certas alturas& no outono& me consolaBa de

tanta desiluso& tantos anos perdidos& me audaBa a acreditar um

bocadinho ue eu& ue o meu marido e eu& ue a minha Nlha mais

noBa

Qa mais Belha elimente nunca me deu problemas& o meu genro

sim& sem respeito por nós& sempre pronto a tro@ar& a amesuinhar-

nos& no percebo o ue a minha Nlha mais Belha Biu nele& uando a

aBisei eCplicou-me

- H- de mudar me

e no mudou K lógico& instalaBa-se no so

- +unhadinhaS

a pa dos arbustos em certas alturas& no outono& sugerindo ue

a minha Nlha mais noBa& o meu amrido e eu podRamos conseguir umaQcomo dier=S

uma espKcie de harmo

Qharmonia no& outra coisaS

uma espKcie de eli

Qno elicidade to poucoS

podRamos conseguir ue os anos ue nos alta BiBer no

doessem& gostaBa de passear& distrair-me& irmos a Espanha por

eCemplo& a Paris comproBar o ue encontro na teleBiso& nasreBistas& o meu marido e eu de autocarro em Paris& um lugar sem

gaiBotas a bicarem a gente& daui a pouco nem os meus tendFes

sobeam Bisto ue a carne oi& uma simples cartilagem ue me

console

- *ou tu

gostaBa de alegrar-me com os netos& ue a minha Nlha mais

noBa casasse& "eus no me pode acusar de ser eCigente pois no& de

pedir muito pois no& apenas um lugar

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Qno tem de ser ParisS

onde as gaiBotas& distraRdas de mim& me deiCassem BiBer& depois

de arrumar o arro e limpar a gua do cho percebi ue a minha Nlha

mais noBa no uarto& aposto ue no deitada& a eCaminar ao espelho

a blusa torta& a mauilhagem deseita

- O ue K isto=

o meu marido na coinha comigo pareceu-me ue prestes a

alar& prestes

Qno estou segura Bisto ue com a lu apagada somente os

globos do ardim +onstantino ue no chegaBam auiS

a abra@ar-me& descobria-se o halo ue antecede a manh nas

chamimKs em rente& a nitide sem releBo dos obectos& um

automóBel na esuina& o tempo ue recome@aBa a trabalhar& o tempo

ue no recome@ou a trabalhar desde ue o meu marido aleceu h

dois meses e o genro ao teleone numa graBidade esuisita

- $o saia de casa antes de eu chegar.

como se eu saRsse de casa depois de eitas as compras& eu de

compartimento em compartimento com um espanador& um liBro de

receitas& um monte de roupa& enganando-me a mim mesma a Nngirue me ocupo& o meu genro ue atK ento daBa ideia de tro@ar-me

Qpiscar de olhos& risinhosS

pausado& solene& to próCimo do teleone ue aia parte de

mim& a Bo dele no no aparelho& na minha cabe@a

- Antes de eu chegar aR

isto Us cinco da tarde

QUs seis da tardeS

isto Us cinco ou Us seis da tarde porue nenhum relógio uncionacomo deBe ser& mentem-me& preNro guiar-me pelo comprimento das

sombras ou o sol nas copas ue me mentem tambKm& isto Us seis e

one da tarde

- $o saia de casa

como se uma senhora decente saRsse de casa Us seis e one da

tarde num andar em ue os retratos me Bigiam

- 9uem K ue pensas ue Ks=

eu no banuito da maruise& onde as criaturas da camilha no

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podiam espiar-me& com um alguidar de aBas& o teleone Boltou a

chamar& um hiato do outro lado& uma pausa

Qa minha Nlha mais noBa=S

e adeus

Qia apostar& no me perguntem o motiBo& ue a minha Nlha mais

noBaS

eu de aparelho ao alto U espera enuanto o punho do ardim

+onstantino se apertaBa sobre mim& me prendia& tenho sessenta e

seis anos e de sJbito os sessenta e seis anos em cada uma das

minhas BRsceras& cada um dos meus gestos& o passado uma entidade

conusa& a Bista a enganar-se nas coisas& reBi a minha madrinha

incapa de alar& Ntando-me da cadeira no seu desinteresse Baio& o

teleone mudo& a campainha da porta muda& a muina de costura

Qe eu sem dar por ela h mesesS

no compartimento do undo& se osse espreitar aposto ue uma

criatura de chapKu de palha co cereas de eltro ue no sei como

entrou a ralhar

- A trabalheira ue me deste meu "eus

e atrs dela& a seguir a um cacto& o mar& ondas amarelas&brancas& Bermelhas& no auis& no Berdes& amarelas& brancas&

 Bermelhas& uma enermeira para a criatura

- O ue estamos a inBentar agora ue no damos descanso Us

pessoas=

roubando-lhe o chapKu e desaendo-lhe as ondas com um gesto&

o meu genro de graBata preta na sala

Qno amarela& no branca& no Bermelha& no ondaS

nem um sorriso nem um cumprimento& por uma Be na BidaQe no era sem tempoS

alterando uma caiCinha de cobre na mesa Quma caiCinha e um

peda@o de corda num rochedoS e os bJios ue a minha Nlha mais

 Belha coleccionaBa em %aBira& o meu genro tomando os bJios&

moBendo a boca& deiCando-os& recome@ando a torn-los& o meu genro

- +unhadinha

Qondas amarelas& brancas& Bermelhas& no auis& no Berdes& a

enermeira para a criatura

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- +ontinuamos a inBentar K isso=S

o meu genro

- +unhadinha

a enerBar-se& a corar

- Enganei-me

a procurar um discurso remeCendo os bJios& a caiCita de cobre

ue um amigo do meu pai me oereceu

- ,ma recorda@o

em papel doirado com uma Nta cor-de-rosa& uma libra num

enBelope l dentro

Qo som da libraS

e o meu nome no enBelope& ao bei-lo a agradecer um canto da

sua boca na minha e eu horroriada porue um Belho com um deeito

na rótula

 Qmais noBo ue eu agoraS

a poisar o canto da boca na minha& desde ue a irm morreu um

gato apenas& no amarelo& no branco& no Bermelho& cinento&

passando num desliar de tecido a correr-nos nos dedos& impossRBel

estancar auela gua parda ue se reunia& eri@ando-se& sob umamesa& uma cómoda& a Bigiar-nos numa lentido em ue cresciam

unhas

Qpupilas ue nos rasgaBam mais ue as unhasS

e desde ento nunca me entendi com gatos& aueles olhos

egRpcios ue do ideia de me ir reBelar a mim mesma e se calam&

caudas ue se as acariciamos prolongam o corpo ao inNnito& o bra@o

ao aag-los continua atK deiCarmos de o Ber e ento os olhos

echados guardando-nos nas plpebras& no estamos aui& eCistimosdentro do gato& aemos parte dele& no somos& mostrem-me um gato

e eu aerrolho-me na copa& apaBorada& tenho medo& no uero& se o

amigo do meu pai antaBa connosco leBaBa um cartucho de restos&

espinhas& gordura

- OCal o gato no me alte

o gato a esposa dele

Qa me=S

nunca percebi se um gato se uma gata

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Qser ue as gatas como nós

- O ue K isto=

a mesma surpresa& o mesmo terrorS

o interesse do amigo do meu pai em mim& bochechas baloi@ando

no ueiCo costuradas de rugas& dedos ue tremelicaBam nos talheres

antes de se engancharem neles

Qe mesmo enganchando-se neles continuaBam a tremerS

o guardanapo a proteger a camisa

Qno o guardanapo& um len@o enorme ue retiraBa do bolso& no

supunha ue um len@o to grande lhe coubesse no atoS

o estore sem elstico de uma das plpebras mais tombada ue a

outra uase ocultando a pupila

Qocultando a pupilaS

a murmurar elogios ue me intrigaBam& uma tarde escreBeu-me

e no abri a carta& rasguei-a& o meu pai

- Ests a rasgar o uV=

e eu

- <ai arrepender-se me

Qa enermeira a sacudir a criatura& nenhuma onda a aBan@ar- %enho de me enurecer contigo=S

no& eu rasgando o ue haBia rasgado

- ,mas acturas uaisuer

Qa enermeira

- +ompreendes as complica@Fes ue arranas idiota=S

eu continuando a rasgar

- ABisos de pagamento recibos ninharias

e por mais ue rasgasse um pedacinhono tenho o direito de

e no tinha& um Belho de cinuenta e oito anos com um deeito

na rótula

Qsei ue no tenho o direito de am-laS

ao entregar-lhe os restos de comida

Qsobeos de borrego& batatas

 Bitelo

sobeos de Bitelo& a enermeira para a criatura

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- $o tens emenda tuS

ao entregar-lhe os restos de comida a plpebra tombada a

 Bibrar& um cochichoito

- "esculpe

e tanta solido& tanta tristea pareceu-me& o embrulho de

comida do gato entre nós

Qauele enoo de toucinho era da comida ou seu=S

passado uns tempos uma complica@o na BesRcula& a seguir ao

uneral Bisitmos-lhe a casa para alimentar o gato diluRdo nos

garraFes da despensa

Qchammo-lo e no BeioS

e topmos com dJias de cartas ue me no mandou& o papel

idVntico& a caligraNa a mesma

no tenho o direito de

o meu pai a estudar-me& a estudar as cartas& a estudar-me

melhor& a echar a secretria

se osse mais noBo e pudesse aceitar-me

eu por gratido& por no sei uV& porue tambKm eu& prestes a

responder- Aceito

o ocinho do gato surgiu da despensa no irado& BiJBo& um

cucoito de madeira piou BKnias de horas& cada hora um solu@o& deBe

ter sido o Jnico ragmento do mundo ue chorou por ele

- O desgosto do cuco a leBantar a asa num adeuinho l seu no

o anima senhor=

pratos com igreas pintadas& uma caiCa de ósoros

Qno de cobreSbilhetes de elKctrico& chaBes& o meu pai a alongar-se para as

chaBes& a aperceber-se de mim

- EstaBa a brincar

e a desistir das chaBes

 Qno estaBa a brincar pai& era a sKrio& onde Ncaria o core=S

U cabeceira da cama a moldura da irm de plpebra tombada

igualmente a indignar-se

- 9ueriam o dinheiro do core BocVs=

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o colarito dela

Qdemasiado ba@o para Baler alguma coisaS

numa ta@a de Bidro& a minha madrasta a eCperimentar o colar

 BeriNcando-o no espelho

- 9ue tal=

apertando o echo na nuca e o echo a soltar-se& o gato pulou

paraaa cama e o colar no cho& a minha madrasta

- Assustei-me

deiCmos a anela aberta e talBe alguKm na rua& esta semana& a

próCima& se compade@a com o bicho ou pode ser ue Basculhe com

os crames os contentores da manh& atirem-lhe uma pedra& a@am

ugir aules olhos& as cartas continuaBam na secretria

no ouso entretecer a esperan@a

a menos ue algum parente depois de reunir os trastes haa

 Bendido esse liCo& se por acaso eu

- Aceito

o colar perten@a minha hoe em dia& eu U espera do meu genro

com brilhos no pesco@o& no no ardim +onstantino& num uarteiro

melhorQondas amarelas& brancas& Bermelhas& no auis& no BerdesS

ediRcios altos& modernos& no comKrcios de ue ninguKm se

serBia& mulheres patrulhando sombras e a minha Nlha mais noBa

entre elas& o meu genro

- +unhadinha

no& o meu genro a abandonar os bJios& a eCibir a graBata

- deBe ter entendido

se pudesse recuperar as palaBras ocultaBa-as de mim& eu uepodia ter sido uma senhora

Qno tenho o direito de am-laS

e óias& cuidados& aten@Fes& de aBental no banco euilibrando o

alguidar& o meu genro& sem se alargar no so& a eCaminar o

rigorRNco& o ogo

Qno a eCaminar& pedindo auCRlioS

as rBores

Qocupadas com outro assuntoS

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nas uais nem uma olha o encoraaBa& o meu genro com pena

de num& do meu chapKu de palha com cereas de eltro de correr na

praia

Qa palma da enermeira na boca da criatura

- Acabou-seS

o meu genro a abotoar o casaco sobre a graBata preta e a seguir

a aboto-lo uma espKcie de beio ue no senti na bochecha& senti

ue a minha Nlha mais noBa

- Para uV tanto cheiro=

o meu genro

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

 Qondas ama & branc & elhasS

o meu genro

- O seu marido

no para mim& a rase no alguidar

- %ome

no meio das aBas

- %ome

ou antes- *e lhe apetecer tome

ou antes

- %enha paciVncia tome

o meu genro

- O seu marido

regressando ao rigorRNco e ao ogo ue lhe no serBiam de

nada& U indieren@a das rBores

Qas olhas uietinhas& no& uma delas na terceira copa a soltar-se& a permanecer indecisa& a baiCar NnalmenteS

o meu genro despeitado com a m Bontade das rBores

- O cora@o do seu marido

nunca calculei ue algum alguidar pudesse ser to leBe mesmo

com

- O cora@o do seu marido

no boo e as artKrias do cKrebro& as Beias& os diabetes& o doutor

ue enrolaBa o aparelho da tenso

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- LaBo daR as mos no me responsabilio

o alguidar to leBe& deiC-lo no banco& desla@ar o aBental

Qo nó do aBental pesado& alguKm entende esta ironia=S

pendur-lo no gancho

Qse entenderem aprecio ue digamS

pedir

- ,m segundo

para mudar de sapatos& de roupa& o armrio ue se empenaBa

sempre acRlimo de usar& encontrei logo o Bestido sem escolher nos

cabides porue o Bestido a adiantar-se

- *ou eu

as meias em cima& no por baiCo das outras& o cabelo ue

obedecia U escoBa& nem uma troca num gancho& as minhas mos

 Biam melhor ue os meus olhos& mais habituadas U casa& mais

rpidas& os olhos atrs delas deseando aprender ou nem seuer

aprender& aprender o uV& para uV& o ue haBia a aprender& os meus

olhos aceitando& a minha cabe@a aceitando

- Mudar de roupa

to simples& mudar de roupa somente& as mos decidiram- <ais mudar de roupa

e eu calada

- Mudas de roupa para sair

e mudo de roupa para sair& obede@o& as mos a aBaliarem

- >rincos no brincos=

a decidirem

- >rincos

e os olhos aceitam& brincos& no os do casamento& de coral& osgrandes& eu& ue gostaBa de me ter casado no padre& a segurar as

lgrimas na +onserBatória sem altar nem mJsica& um senhor de

 aueto com pressa porue mais clientes U espera a mandar-nos

assinar o nome num liBro

- Ora aui est parabKns

a cumprimentar-nos e andor& móBeis desconuntados& a

bandeira& um escriBo a ler o meu nome to rpido ue deiCou de ser

o meu nome& eu

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- "e uem K esse nome=

o meu marido ue no encontraBa as alian@as nas cal@as&

apalpou algibeira& apalpou no colete

Q- Onde pus esta gaita=S

l descobriu o estoo elimente& ue drama& o conserBador

- *erBe-lhe de eCemplo para a próCima amigo

deu-me uma alian@a para lhe enNar no dedo& empurrei e moita& o

conserBador em erBuras

- <amos Ncar empanados=

a dor inteira do mundo no teria chegado para eCplicar o ue

sinto& nunca pensei ue o casamento osse uma coisa amarga& no

corredor editais& decretos& regueses ue carimbaBam testamentos&

um pedreiro entre dois andares esburacando tiolos a designar um

balde

- A cali@a cuidado

a mJsica do órgo ue eu sonhaBa um martelo a bater& a asma

da minha madrinha borbulhando o tempo todo& no meio das

borbulhas& a custo

- #elicidades Nlhae portanto no os brincos de coral& os grandes ue o

conserBador

- %anto luCo para uV=

da mesma orma ue o penteado para uV& a minha madrinha a

 Basculhar o porta-moedas

- Acho ue para o cabeleireiro chega

espreitei o porta-moedas e no sobrou um tosto

Qpraticamente no sobrou um tostoSas borbulhas da asma

- #ica-se a deBer deiCa l

QtiBe sorte em BiBer consigo& senhoraS

por conseguinte no os brincos de coral Bisto ue sempre& ao

dar por eles

- A cali@a cuidado

o martelo a sublinhar-me os passos a caminho da rua& escadas

 Belhas& escuras& uma cigana num degrau a estender um tachinho

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- ,ma esmola senhora

sem ue lhe tiBesse reparado no co em cuo pesco@o em Be de

trela um peda@o de corda

Qno rochedo um peda@o de corda& uma caiCinha Baia& a

enermeira

- Xs de or@a palaBraS

no os brinco de coral do casamento madrinha se K ue oi

casamento

Qondas amarelas& brancas& BermelhasS

- A cali@a cuidado

as pKrolas peueninas ue me oereceu uando N Binte anos e

traiam por engano a etiueta do pre@o& eCibi-lhe a etiueta

- %o caro=

a minha madrinha num assobio dos pulmFes

- #ica-se a deBer deiCa l

eu a conecturar como conBenceu o ouriBes senhora e enuanto

pensaBa

- +omo conBenceu o ouriBes=

a apertar a rosca no espigo uatro& cinco& seis Boltas enuantoo meu genro ao teleone na sala

- $o calculaBa ue a Belhota reagisse to bem

e pelo tom de Bo compreendi ue no para a minha Nlha mais

 Belha& para a minha Nlha mais Belha a despachar& para a ue no

gosta de mim& a ue no se rala connosco

- $o calculaBa ue a Belhota

o ardim +onstantino tranuilo

Qnenhum pardal& nenhuma ebre nos canteirosSa Belhota no& eu no uma pessoa& um corpo ue uncionaBa sem

mim& se eCprimia sem mim

- <amos l

as otograNas da camilha& a rapariga das tran@as& o militar& os

outros& no hostis& amBeis

- $ecessita de auCRlio madame=

os reposteiros& os bibelots& a mobRlia amBeis tambKm& a casa ao

Nm de tantos anos de me magoar

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- <ocV K uma estranha

me tratar mal

- +ale-se

amea@ar-me com correntes de ar& ralos ue entupiam de

propósito& isueiro do esuentador

- $o trabalho

a procurar agradar-me alargando a passagem& nenhum prego

 BingatiBo& nenhuma alha no mogno

- O ue lhe or Jtil madame

a casa a conessar-se minha agora ue no precisaBa dela& ue

me importaBa a casa

- $o preciso de ti

o segundo andar do ardim +onstantino no calculaBa ue a

 Belhota reagisse to bem& o meu corpo a caminho do BestRbulo onde o

bengaleiro com o sobretudo do meu marido em ue um dos botFes ia

pendendo do No& ao cruar o sobretudo

Qpara alKm do boto ue pendia uma crosta no ombroS

o corpo a despedir-se

- Adeusno patamar& no capacho& nos degraus mais gastos no meio

Qna +onserBatória os degraus mais gastos no meioS

e o ue me Binha U cabe@a eram decretos& portarias&

testamentos& no preocupa@Fes nem ma@adas

- <amos escolher ue igrea para o Belório=

nem cemitKrio nem urnas& o pedreiro

Que no usaBa alian@aS

esburacando tiolos entre dois andares a anunciar- A cali@a cuidado

aastando a gente de um balde& um martelo& ue no echaBa um

esuie& empurrando uma espKcie de alaBanca ou de prego& o ue me

 Binha U cabe@a era o meu marido a enganar-se na alian@a& o

conserBador unto U bandeira e ao escriBo

- <amos Ncar empanados=

a minha madrinha ue aleceu sem se dar conta& respiraBa na

cadeira e embora nem ela nem eu nos apercebVssemos deiCou de

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respirar& continuou a BiBer um bocadinho e apesar de continuar a

 BiBer entendi ue me comunicaBa

- Morri

eCactamente assim& no eCagero nem isto

- $o h aar Nlha morri Ramos a alar de uV=

as pupilas demoraram a apagar-se& tiBe de lhe carregar nas

plpebras& aud-la a ir desistindo e pronto& o meu genro

- *ente-se bem senhora=

como se

- *ente-se bem senhora=

signiNcasse

- *ente-se bem senhora=

uando na realidade signiNcaBa ue ele

- %enho medo

no haBia compreendido e era isso coitado& como podia no

compreender <irgem *anta& o meu genro atrs de mim

Qo martelo a esburacar a paredeS

no temor de alecer igualmente& escadas Belhas& escuras& a

cigana Qo meu genro estendendo-me o tachinho- ,ma esmola senhoraS

sem ue eu tiBesse reparado no co em cuo pesco@o& em Be de

trela& um peda@o de corda

Qum peda@o de corda& uma caiCinha Baia& acho ue um cacto

num muro& uma arBKloa& ondas amarelas& brancas& Bermelhas& a

enermeira a sacudir no sei uem

sei uem& a criatura de chapKu de palha com cereas de eltro

- Xs de or@a carambaSo meu genro no temor de alecer igualmente& era isso

pobreinho

- $o calculaBa ue a Belhota

no a Belhota& ele& a Belhota reage descansa consoante a minha

madrinha reagiu& ualuer coisa ue se aparentaBa a uma despedida&

um sorriso

- A gente encontra-se por aR no te rales

e claro ue nos encontramos por aR& temo-nos encontrado por aR

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no temos& sempre ue topo com os brincos de coral BossemecV

- Ora BiBa

sem se importar com o pre@o

- #ica-se a deBer deiCa l

e como eCplicar isto tudo ao meu genro& como seren-lo o ineli

Qele para a minha Nlha mais noBa& no diBertido& incapa de

- +unhadinha

ou de se alargar no so

- $o se d uma beioca ao rapa cunhadinha=

ele em Wnsias

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

os lbios mudos repetindo& insistindo

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu paiS

como eCplicar ao meu genro ue no K diRcil& no custa& pode

mentir-me& no tem importWncia

- O doutor acha ue talBe

as ondas amarelas& brancas& Bermelhas& uma após outra& to

rpidas& e o ato dele preto& a graBata dele preta& a minha Nlha mais

noBa em casa soinhaQ- O teu paiS

escutando os caBalos do circo ue galopaBam U roda& durante

horas a No galopariam U roda& no palha@os& caBalos ue estacaBam&

mudaBam de sentido& prosseguiam de penacho na cabe@a o seu

galope U roda& a minha Nlha mais noBa a apertar sete& one& cinco

 Bees os dedos no apoio da cadeira sem ue o apoio da cadeira lhos

apertasse de Bolta& todas as lues apagadas

Qela com tanto receio dos palha@os& do silVncioSa minha Nlha mais noBa de oelhos na boca

Qno minha Nlha& tua Nlha& uma Nlha só tuaS

sem preciso de descal@ar-se no patamar& tomar cuidado com as

tbuas& se de repente eu diante dela só com um dos chinelos&

desprendendo-me do meu marido a sacudir-lhe o bra@o& a blusa da

minha Nlha torta& a pintura desbotada& uma gargalhadita de desaNo a

emergir da Bergonha& ela na escola ainda& h to pouco tempo

mulher& a aer-se de orte

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- >om dia

no& ela U minha espera no porto do hospital unto aos

canteiros de Tores& nessa do@ura de proBRncia ue os hospitais tVm

sempre

no& ela U minha espera U entrada da morgue sem do@ura de

proBRncia nos canteiros de Tores& um ediRcio com um arco U entrada&

uma das anelas abertas e na anela ninguKm& o algero descolado

Qo ue me lembra K o algero descolado& se me ordenassem

escolhe uma coisa apenas escolhia o algero descolado& o

conserBador de uando me casei

- <amos Ncar empanados=

e o algero descoladoS

um ediRcio numa espKcie de traBessa com hera sobre um

gradea-mento

Qno acciasS

onde no poisaBam os pombos& a minha Nlha mais Belha a

dirigir-se a mim

Q- $o calculaBa ue a Belhota reagisse to bemS

com o meu neto ao colo& nenhum pedreiro a esburacar tiolos- A cali@a cuidado

nenhum balde& nenhuma cigana& nenhum martelo a bater& uma

mulher mais idosa ue eu& mais curBada

Qeu no curBadaS

a subir a traBessa enuanto eu pensaBa ue deBia ter arranado

o cabelo

Q- %enho dinheiro para pagar no se inuiete madrinhaS

posto os brincos de coral& os grandes& uns sapatos alegres& umaroupa bonita para ue as minhas Nlhas contentes& orgulhosas de mim

Qum dia a minha Nlha mais noBa& mesmo ue o no conesse&

orgulhosa de mimS

sete da noite na achada da morgue ou sea um losango de

sombra na parede lateral logo abaiCo do telhado engolindo uma

 Baranda& duas& ,ma terceira Baranda

Qa Jnica com persianaS

onde um tudo de TJor& incapa de acalmar-se

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Qum tubo de TJor=S

pestaneaBa no tecto& o arco da entrada aproundaBa-se e para

alKm do arco& ainda ao sol& uma cabine de Bidro em ue dois

empregados& um dentro e outro ora& se riam& uma urgoneta

 Bermelha

Qondas amarelas& brancas& BermelhasS

caBalgando o passeio& a minha Nlha mais Belha prestes a

abra@ar-me e desistindo de abra@ar-me& as mos aproCimaram-se de

mim& aumentaram

Ql estaBa a cicatri de uando se cortou em %aBira& um gargalo

acho euS

suspenderam-se um instante e ao irem-se embora eu a dier-lhe

no utiliando palaBras

QBoes ue principiam antes ue a boca se moBaS

- $o chores

Qse eCtinguem apesar dos lbios aindaS

a noite da achada da morgue na minha Nlha mais Belha

tambKm& o tubo de TJor& inteiro& iluminando em redor TorFes de

estuue& a@aates& a minha Nlha mais noBa nem um cumprimento& um- *enhora

arredada da gente& aposto ue apertando os dedos sete& one&

cinco Bees a inormar para dentro

Qe eu a dar por elaS

- Apertei sete one cinco Bees no Biu=

amuada por os dedos se deslocarem em Bo& o meu genro a

conBersar com os empregados da cabine de Bidro ue lhe

respondiam osse o ue osseQo do interior da cabine a segurar-lhe o cotoBeloS

apontando um carta& prolongado por uma seta& a ue altaBam

letras& um terceiro empregado com um carrinho de limpea& mais

peueno ue os colegas& daBa ideia de emend-los sugerindo o

sentido oposto com uma espKcie de ancinho& o meu genro designou-

nos de longe

Q- $o calculaBa ue a Belhota reagisse to bemS

e os empregados Boltaram-se sem curiosidade para nós& o mais

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peueno largou o ancinho e desta eita a Bo do meu genro no

precedia os lbios& nenhum som seuer& apenas a graBata preta

- +unhadinha

os candeeiros da traBessa acendendo-se um a um de inRcio&

todos untos depois e dei-me conta ue a noite da morgue me

dissolBia a mim& sobraBa a minha Nlha mais noBa encostada a um

tronco ou a beber gua do arro

Q- H copos no armrio meninaS

gua no ueiCo& no cho& se eu um gesto

- $o me aborre@a me

no& a minha Nlha mais noBa encostando-se a um tronco

arredada de nós a encolher os dedos sete& one& cinco Bees contra a

casca da rBore& deu-me ideia ue

- Pegue-me ao colo me

e no

- Pegue-me ao colo me

caBalos ue giraBam na pista& estacaBam de sJbito& giraBam de

noBo& haBeriam

Qpresumo euSde girar muito tempo com um penacho ou assim e o despeito da

minha Nlha mais noBa& de oelhos na boca

- Porue K ue oi o meu pai em lugar de BocV no se atreBa a

tocar-me

no& a minha Nlha mais noBa no se incomodando connosco&

incomodaBa-se consigo mesma& to egoRsta& to pouco amiga da

gente& o meu genro Bindo do arco& completamente inBisRBel com o

aBan@o da itiueta& onde os TorFes do estuue teimaBam l em cima&cor de gesso

Qno cor de gesso& pardosS

a@aates& releBos& cornucópias de rutos& o meu genro com uma

senhora de bata& de sorriso debru@ado

Qmesmo de graBata preta& carambaS

para a senhora de bata

- +unhadinha

no& o meu genro para mim

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- "aui a meia hora entregam-nos o seu marido

ue aleceu h dois meses& unto aos colegas do emprego& numa

dessas uartas-eiras em ue saRa contra a minha Bontade e a

 Bontade do doutor a reunir-se com os outros num caK ualuer

nunca soube bem onde& +ampo de Ouriue& ABenidas $oBas& um

bairro desse gKnero com prKdios em ue gostaria de morar em Be

do ardim +onstantino to desmantelado& to eio& tenho ideia ue

uma ocasio me alou na ;ra@a a propósito da doen@a de um deles&

um problema na anca obrigando-o a Ncar perto de casa Bisto ue

meia dJia de passos e a perna prendia-se& ainda argumentmos& o

doutor e eu& ue um problema na anca no era nada comparado com

o cora@o em papas e o a@Jcar do sangue& o doutor gra@as a "eus

competente preBeniu logo

- LaBo daR as minhas mos no me responsabilio

a minha Nlha mais Belha a chamar o meu marido U rao

- O doutor no se responsabilia ouBiu pai=

ele no problema das damas do ornal

Qas brancas ogam e ganhamS

sem atender U gente& uando as brancas ganhaBam guardaBa acaneta no casaco& permanecia a Ntar a pgina sem a ler e ulgo ue

continuaBa a Nt-la sob o tecto de estuue& os TorFes& os releBos& um

pombo tresnoitado cruou o arco a chorar& no imaginaBa ue os

pombos solu@os e no entanto K Berdade& cruou o arco a chorar& a Bo

do meu genro antes dos lbios

- +unhadinha

no& a Bo do meu genro a incomodar-se comigo

- Em Be de Ncar aui no lhe apetece descansar ou esperar porele na igrea=

esperar por uem na igrea senhor& ue história K essa de igrea&

o meu marido com os colegas do emprego em +ampo de Ouriue&

nas ABenidas $oBas& pode ser na ;ra@a

Qondas amarelas& brancas& BermelhasS

pode muito bem ser ue na ;ra@a deriBado

Qcereas de eltro& ue K das cereas de eltro& proRbo a

enermeira de me interromper agoraS

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deriBado ao colega doente& ao problema na anca

Qulgo ue ui clara& proRbo ue me interrompam agoraS

U diNculdade em andar& pode muito bem ser ue num caeito da

;ra@a

Qh-de haBer caKs na ;ra@a penso eu& o ue no alta nesta

terra K misKria e caKs

caKs& no bares& no hospedarias& caKs& ue bares ue

hospedarias& ue Biinhas de toldo& o ue no alta nesta terra K

misKria e caKsS

o meu marido com os colegas do emprego no caeito da ;ra@a

isto K um largoinho a seguir ao miradoiro& aos bombeiros& no sRtio

em ue os elKctricos uma curBa a gemerem& a trepadeira

Qno solu@os de pombos& no a minha Nlha mais Belha& a minha

Nlha mais Belha

- Me

no sRtio em ue os elKctricos uma curBa a gemeremS

no sRtio em ue os elKctricos uma curBa a gemerem a trepadeira&

o caK

Qa hospedariaSo caK digo eu com os colegas do emprego em ue o meu marido

aleceu h dois meses& conBersaBa com os compinchas

conBersaBa com os compinchas& no me interrompam& proRbo-

 Bos& uando uma dorita

Qo doutor

- LaBo daR as minhas mos se uma doritaS

a minha madrasta por eCemplo um encolher de ombros se tanto&

uma pausa& eu a perguntar com a testa mal a pausa acabou- $ada de especial morri estBamos a alar de uV=

e no alta contar muito& escusam de me aer sinais& colocar a

horiontal sobre a mo Bertical& bater o polegar no relógio de pulso

um minuto se tanto& estou no Nm& no demoro& contar somente ue o

meu genro

- *ente-se bem senhora=

como se precisasse da compaiCo dele& no preciso& a minha

Nlha mais Belha

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- Me

como se precisasse do interesse dela e no preciso igualmente

dado ue o amigo do meu pai& um Belho de cinuenta e oito anos com

um deeito na rótula& to dedicado& to atento

sei ue no tenho o direito de am-la

o amigo do meu pai num cochicho

- "esculpe

para ue o meu pai e a minha madrasta no atentassem nele& o

amigo do meu pai

- *e osse mais noBo e pudesse aceitar-me

e eu por gratido prestes a responder

- Aceito

eu agora ue sou BiJBa& estou soinha

- Aceito

eu no segundo andar do ardim +onstantino& sem ligar ao militar

da camilha e U rapariga das tran@as

- Aceito

enuanto a minha Nlha mais noBa leBa os oelhos U boca no&

enuanto a minha Nlha mais noBa me aperta os dedos sete& one&cinco Bees com or@a& o cabelo dela a ro@ar-me no peito

Quase loiro em peuenaS

e lhe garanto

- $o h aar

sentando-a melhor no meu colo para ue possa dormir.

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QUINTA NARRATIVA 

*obretudo no podes cair na asneira de te enerBar& perder a

cabe@a& hesitar& comoBer-te& sentir dó de ti mesma& tens de estar

Qde Ncar& de tornar-te=S

spera& indierente& tranuila& consolar-te pensando ue K uma

uesto de minutos& no muitos& trVs ou uatro se tanto& um

bocadinho apenas& um Jltimo esor@o e acabou-se& nem a anela se

distingue depois& a sala um reTeCo de coisas mortas& obectos

mortos& de imediato essa claridade Binda no se sabe de onde& da rua

talBe& de uma Baranda ue se no percebe e contudo eCiste

escondida& disar@ada de parede com os seus uadros e os seus

móBeis numa das paredes ue te cercam e no entanto& apesar dos

uadros e dos móBeis& uma rBoreQuma Jnica rBore& sem nome& um ou dois telhados embora no

Os daui& os de outrora ue ulgBamos perdidos e aNnal regressamS

de imediato& após o Jltimo esor@o& a claridade ba@a de poeira

dos compartimentos ue ninguKm habita e onde um Biinho& a

polRcia& os bombeiros caminharo a medo& se calhar com uma

lanterna& procurando-te& uer dier tu no Bers

Qainda ue sentada no so no BersS

mas a lanterna U rente& a luita da lanterna antes da lanterna&um cRrculo claro& mais oBal ue cRrculo& aBan@ando para a direita e

para a esuerda& cauteloso& no cho& eCplorando os tapetes& as

cadeiras& a escriBaninha de antiurio& cheia de gaBetas e mistKrios&

ue desde h meses decidiste trocar por uma Toreira e no trocaste

nunca& a escriBaninha a ueiCar-se

- Eu destoo

portanto amanh ou uinta-eira& seCta-eira no mCimo& sem

ue te diga respeito porue com o Jltimo esor@o& consoante prometi&

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acabou-se& gente no patamar& conBersas& reconhecerias somente os

passos e a Bo da porteira pela primeira Be sem ralhar com o Nlho a

propósito de lama nos sapatos ou de plantas arrancadas do trio& a

porteira& de ue te habituaras aos gritos& numa espKcie de cochicho

alarmado e as restantes Boes& os restantes passos& de estranhos&

uma conerVncia& uase em segredo tambKm& de criaturas diBersas&

terminada a conerVncia uma delas& ue discordaBa ou concordaBa& a

calar-se& silVncio

Qa sala um reTeCo de coisas mortas& obectos mortos& peuenos

charcos de lRuenes& a anela sumida

haBer uma anela& ter haBido uma anela=S

no silVncio em ue respira@Fes

Qno a tuaS

as patas do coito trVs andares acima& rumor de nuBens l ora&

isto K& como sempre com as nuBens& um atrito de cordas e lonas

atraBessando em diagonal o Bento& um arame

Qou sea o ue or no gKnero de um arameS

a insistir na echadura rompendo-a& lacerando-a& buscando

Qencontrou-a e perdeu-aSa linguetaita do trinco& numa das nuBens& uase unto ao

prKdio& as tbuas mal austadas do conBKs ue os tripulantes

compensaBam ogando baldes de ar da amurada& alguKm no patamar

- $o sentem este cheiro=

e adiBinhaBam-se& para alKm do cansa@o da nuBem a tentar

escapar-se das chaminKs do bairro& deenas de naries

- +haieros=

bisbilhotando sombras& o arame enganchou na linguetaita&percebeu-se uma bola nos degraus tocando-os um a um num Ciloone

de saltinhos& o som de uma Bassoura num corpo U medida ue a bola

diminuRa e o Nlho da porteira

Q- $o tiBe culpaS

a chorar& a lingueta terminou por desistir num estalido de galho

Qlembras-te de os pisares U ida para a escola nas manhs em ue

choBeu no ardim +onstantino& da madeira molhada ue demoraBa a

uebrar-se=S

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a bola algures no trio e como tu em pa& a porteira aBan@ando

para o interior da casa& mais passos& mais conBersas& proBaBelmente

os bombeiros& a polRcia& o Biinho adBogado a deliberarem indecisos

na esperan@a ue o teu apartamento agora aberto

Qum Wngulo de mesa& uma arra e todaBia o uV e em ue sRtio

no contando com a mesa e a arra=S

lhes respondesse por ti deriBado ao acto de nenhuma resposta

salBo uma suspeita de coisas mortas& obectos mortos& essa claridade

 Binda no se sabe de onde

Qa rua& uma Baranda escondida=S

em compartimentos ue ninguKm habita& o cRrculo da lanterna&

mais oBal ue cRrculo& para a direita e para a esuerda& cauteloso& no

cho& eCplorando tapetes& cadeiras& a escriBaninha de antiurio

echada e no interior da escriBaninha um parauso enigmtico&

encontrado no soalho& ue nunca entendeste a ue gono ou

aparelho elKctrico pertencia& de tempos a tempos eCaminaBas o

parauso& grande& sem errugem& com o seu aspecto Jtil& procuraBas

um lugar ue se austasse e os gonos e os aparelhos elKctricos

completos& tornaBas a guard-lo intrigada& um obecto morto a untar-se Us dJias de obectos mortos ue te cercam& o cheiro

Q- $o sentem este cheiro=S

no teu& do canteiro do prKdio& por eCemplo& ue regado

aumenta e nenhum cheiro agora& na sala de repente acesa homens

Qtirando o adBogado do seCoS

ue nunca terias Bisto se os Bisses& a porteira a no

compreender& a enCotar o Nlho ue parecia estender-te a bola

oerecendo-a& o teu pesco@o numa posi@o esuisita& o Nlho daporteira& apesar da me& uase a poisar-te a bola nos oelhos

- %ome

ao chegares do emprego ele minJsculo& descal@o& respirando o

teu perume unto aos eleBadores a olhar-te& no te respondia se

alaBas com ele& ocultaBa-se na bola

Quma bola de crian@a a ue altaBa o BerniS

continuaBa a olhar-te conorme olhaBas ao lado do teu pai os

caBalos U roda galopando assustados& de boca pendente& e ue te no

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distingue depois& a polRcia& os bombeiros& pode ser ue dVs conta dos

caBalos U roda& galopes com eles& mudes de sentido com eles& te

sumas com eles& terminado o espectculo& ao ritmo da mJsica

Qo teu nJmero acabouS

na cortina do undo ue o cRrculo da lanterna

Qmais oBal ue cRrculoS

ilumina um momento antes de se eCtinguir por seu turno& a

porteira na tua sala sem acreditar

- +aBalos=

dado ue as erraduras ainda ou ento uma nuBem ue os

grumetes no conseguem leBantar ro@ando nas palmeiras& oscilando&

detendo-se& despenhando-se U medida ue se dissolBe numa

espumainha& num sopro& no parue de estacionamento da praia& os

caBalos ue o teu pai te leBou a Bisitar nas traseiras do circo onde as

rulotes e a aula dos tigres enrolados a um canto de tal modo ue a

 aula& com os restos de um rango& se te aNguraBa Baia& a senhora

ue apresentou o espetclo& acocorada num tiolo com uma camisola

de homem sobre o Bestido prateado& retiraBa as unhas posti@as& a

 Belha da bilheteira& ranindo metade da cara eriBado ao umo docigarro& coia erBas num tacho& os caBalos apertados numa cerca

seguiam-te com as orelhas conorme mesmo hoe tinhas a impresso

ue no ardim +onstantino a tua me& apesar de inclinada para a

tbua de passar a erro ou entretida com as plantas da maruise&

continuaBa a seguir-te ao passo ue os caBalos& decorrido um

instante& se distraRam do teu pai e de ti chamados por outros gestos&

outras cores& outras presen@as& uiseste apertar os dedos do teu pai

- Estou auie no lhe achaste a mo& o sueito ue mandaBa nos caBalos

espreitaBa-te de uma das rulotes desabotoando alamares

- +unhadinha

isto K o sueito ue mandaBa nos caBalos& acompanhado da

esposa

Qno da tua irmS

espreitaBa-te de uma das rulotes no modo como os homens te

obserBam no trabalho& no restaurante& no cinema& cotoBeladas&

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risinhos& o Jnico ue no te obserBou oi auele senhor no metro& de

manh& no inBerno& uando a cidade

Qas casas& por eCemploS

K mais clara ue o cKu

Qo cKu ainda escuro e a cidade a empalidecer por sua contaS

escutaBa-se o comboio numa curBa do tJnel a alcan@ar a

esta@o& o senhor ao teu lado na plataorma

Qimensa gente ao teu lado na plataormaS

perguntou-te as horas ainda ue um relógio no tecto& apontaste

o relógio& disseste noBe menos Binte e as orelhas da tua me& no

 ardim +onstantino& atentas& uma criatura colocando um chapKu de

palha na cabe@a

Qcom cereas de eltro=S

 unto ao ue consideraBa o mar e mar nenhum& uns baldios&

pssaros a ue chamam arBKloas e na realidade pardais

QBiste bandos de corBos no Alenteo lembras-te& uase do

tamanho de perdies mas magros& eroes& de luto& erguendo-se do

enoS

bom& o senhor bem Bestido& educado& simptico& perguntou-teas horas ainda ue um relógio no tecto& apontaste o relógio& insististe

noBe menos Binte com receio ue no te houBesse entendido por

causa do som das carruagens e das asas dos corBos desordenando o

eno& esarrapadas& soltas& os bicos negros igualmente

Qno esuecer os caBalos& colouem-lhes um penacho& enCotem-

nos desta cerca de tbuas para a cortina da pista& prometam-lhes os

uadrados de a@Jcar ue o sueito de alamares retiraBa do bolso e

obriguem-nos& com a mJsica& a galopar U rodaSdisseste noBe menos Binte no instante em ue o impulso do

ponteiro noBe menos deanoBe& no o tra@o grosso& um tra@o Nninho&

o relógio sem nJmeros& uatro tra@os Nninhos entre dois tra@os

grossos ou sea uarenta e oito tra@os Nninhos e apenas doe

grossos& no se escutaBam os corBos& escutaBa-se o eno& o unido da

terra girando no seu eiCo com todas as crinas soltas a imitar caBalos&

a criatura do chapKu de palha& aborrecida contigo

- $o percas tempo despacha-te

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antes ue a enermeira a ralhar-lhe& as semanas ue no deBe

ter perdido& roubando-as U sua praia& a imaginar tudo isto& a

otograNa dela na camilha do ardim +onstantino mas ual& a Belhota

de bengala& a rapariga das tran@as& uma prima secundria em ue

ninguKm reparaBa& disseste noBe menos Binte& uiseste emendar

para noBe menos deanoBe& a tua irm com a alcoa do Nlho& o

marido da tua irm a eCplicar& de polegar e mindinho estendidos e os

restantes dobrados& o polegar perto da orelha e o mindinho na boca

- Eu teleono-te

a criatura com um olho nas ondas e o outro em BocVs aborrecida

com ambos

- <amos l

acabem com as sinaleas meu "eus& esue@am-se dos corBos&

aBiem-se& no me interessam os corBos& K o senhor do metropolitano

se tiBermos oportunidade talBe os corBos depois& as pessoas na

esta@o no mencionando a tua irm com a alcoa& o marido da tua

irm

- Eu teleono-te

a porteira a pasmar para o Biinho adBogado- Morreu=

a lanterna ue permanecia acesa apesar dos abaures e do oco

no tecto& uiseste tocar no bra@o do senhor ue te sorria

- Obrigado

emendar para noBe menos deanoBe& uarenta e oito tra@os

Nninhos& doe tra@os grossos& o eno do Alenteo& sobreiros

Qno podes enerBar-te& perder a cabe@a& hesitar& comoBer-teS

parte do telhado de uma ruRna onde cobras& toupeiras ouanimais desBalidos incapaes de sobreBiBerem por si mesmos

Qno te comoBas& no sintas dó de tiS

o Nlho da porteira a oerecer-te a bola

Qdisse: no sintas dó de tiS

o Biinho adBogado uns serFes uando a esposa no estrangeiro&

tu

- ,m momento

antes de lhe abrires a porta e o perume das rosas entre tu e ele&

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um sibilo ue te enerBaBa

- +ucu

Qenuanto pensaBas

- Porue no se calam BocVs=S

porue teimam em atormentar-me com os seus segredos

ridRculos& as suas mos nunca delicadas& as suas caretas idiotas&

porue no uma proessora de geograNa como a minha irm e no

apenas rosas& Berduras& uma Nta Bermelha& as rosas U alta de lugar

Q- "espachem-seS

no laBa-loi@as primeiro e no caiCote depois

Qa tua proessora de geograNa& por eCemplo& no te recordas

dela& sempre preeriste os corBos& o Bento& a agita@o do eno& um

horionte de ainheiras e muralhas antigasS

o teu pai incapa de resolBer o problema das damas na

seuVncia dos diabetes& das artKrias& do cKrebro& a caneta parada no

 ornal ou antes no parada& a desiludir-me

- no sei

conorme no sabia o caminho para a hospedaria da ;ra@a&

audaBa-lo tu& o senhor do metropolitanoQdoe tra@os grossos e a cidade& as casas por eCemplo& mais

claras ue o cKuS

- Obrigado

 Bestias-lhe o sobretudo& escolhias-lhe a graBata a enganares-te

no nó

Q- Estea uieto senhorS

endireitaBas-lhe o cabelo

- 9uer ir ao circo pai=e ele a Ntar-te oco& no

- Obrigado

como o senhor do metropolitano& um abandono sonWmbulo

eCcepto se por acaso a ideia de alguKm a umar num ponto& e se a

ideia de alguKm a umar num ponto um troteinho contente& sem

or@a para apertar dedos ou sacudir as gaiBotas ue abandonaBam as

molduras do otógrao para bicarem manchas de óleo com os seus

 BKus brancos& os cetins& as Tores& o teu pai no largoinho da ;ra@a

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onde os elKctricos curBam cuidando-se no >eato

- Morei ali

morei no topo de umas escadas de cimento entre dois becos

conduindo a hortaitas de proBRncia ue os umos da Baante

impediam de crescer e o teu pai satiseito& aBan@ando na direc@o da

hospedaria da ;ra@a para alRBio da criatura de chapKu de palha

Qsim& BeriNcando melhor com cereas de eltroS

- no era sem tempo

U medida ue os corBos

Qlembras-te=S

uase do tamanho de perdies mas magros& eroes& de luto& se

iam erguendo do eno e o relógio do metropolitano prestes Us noBe

menos deoito ue se percebia no ponteiro a Bibrar para o salto& no

mudaBa para o tra@o seguinte

Qtra@o Nno neste casoS

cobria-o por completo& apoderaBa-se dele& anulaBa-o

Qpertencer-lhe-ia o parauso da escriBaninha=

no creioS

de modo ue deiCaBas o teu pai U entrada da hospedaria damesma orma ue o conduias& aos domingos& ao apeadeiro de

*intra& o senhor do metropolitano agradeceu-te

- Obrigado

no instante em ue as carruagens principiaBam a traBar& o

senhor olhou para ti& para o relógio& tornou a olhar para ti e atirou-se

U linha& a locomotiBa empurrou-o& colheu-o mais adiante& empurrou

parte dele& colheu-a mais adiante

QnoBe menos deoitoSesmagou-a tambKm e demoraste a compreender ue gritaBas& a

tua boca aberta e gritos Bómitos gritos& demoraste a compreender

ue U tua direita& U tua esuerda& alKm de ti gritaBam igualmente

sem ue soubesses destrin@ar uais os teus gritos e uais os gritos

dos outros& eu ue tanto recomendei no poderes cair na asneira de

te enerBar& perder a cabe@a& hesitar& comoBer-te& sentir dó de ti

mesma& tens de estar

Qde Ncar& de tornar-te=S

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spera& indierente& tranuila& consolar-te pensando ue K uma

uesto de minutos& trVs ou uatro se tanto

QprometoS

alguns tra@os Nnos& um só tra@o grosso& um Jltimo esor@o

QB lS

e acabou-se& nem a anela se distingue depois& reTeCos de coisas

mortas& obectos mortos& um sapato castanho do senhor na

plataorma U tua rente ue os corBos do Alenteo disputaro Us

gaiBotas& ue os bebKs da montra ho-de pedir aos solu@os& se eu te

colocar um penacho na cabe@a& em Be de um chapKu de palha com

cereas de eltro& galopas no U roda& na direc@o da saRda& noBe

menos de ou noBe menos cinco

Qlamento mas dado ue o mostrador l em baiCo no consigo

audar-teS

e ue dieren@a a agora& essa claridade Binda no se sabe de

onde& da rua talBe& de uma Baranda ue no se percebe e contudo

eCiste& escondida com os seus uadros e os seus móBeis numa das

paredes ue te cercam& o Biinho adBogado deiCaBa-te um carto na

caiCa do correio& em maiJsculas sem assinatura a Nm de ue no ousasses contra ele depois

Para A *emana A Minha Esposa Em Londres

tu repetindo sem entusiasmo a minha esposa em Londres& a

minha esposa em Londres& essas rases ue por Bees se te

agarraBam U alma& sacudias e permaneciam ali& inamoBRBeis& tenaes&

o ue signiNca a minha esposa em Londres& o ue uerem dier os

corBos no eno& uma ou duas dJias de corBos uase do tamanho de

perdiesQseriam perdies=S

uando o automóBel passou& o Biinho adBogado no tocaBa a

campainha& usaBa os dedos

Qsentias-lhe a respira@o no capacho mais orte ue os dedosS

antes dos dedos o perume das rosas

- +ucu

enuanto tu corrias& de penacho na cabe@a& atK ao ardim

+onstantino& te echaBas no uarto de oelhos na boca para calar os

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gritos

Qas otograNas da camilha a gritarem tambKm=S

sobretudo no podes cair na asneira de te enerBar& o senhor a

perguntar as horas

- %em horas menina=

como se horas ossem coisa tua& as pudesses dar

- Pegue

Nue com as minhas horas ue no preciso delas& guarde-as& o

teu Pai na hospedaria da ;ra@a estranhando um tapume sobre o ual

uma ernpena& um loureiro

- no sei

uns repentes de lucide no seu espanto& o olhinho capa de

interessar-se pelo problema das damas& inBentar solu@Fes& ganhar&

uma nuBem tripulada como deBe ser eBitou o castelo

Qpercebiam-se os maruos nos mastros& um ulano gordo& de

camisola Us riscas& a esregar o conBKsS

e o teu pai

- O ue aes aui=

o ue aes aui realmente& de lu apagada na sala& cercada dereTeCos de coisas mortas& obectos mortos& reposteiros& almoadas& o

 Biinho adBogado a pendurar o casaco nas costas de uma cadeira

austrRaca

- Ora bem

ocupando o mesmo lugar no so ue o marido da tua irm&

poisando-te a mo no mesmo oelho& Ntando-te com o mesmo Bagar&

conBersando consigo próprio& no contigo

- +unhadinhanas caras deles& assim próCimas& imperei@Fes e sinais ue no

lhes pertenciam& oi a criatura de chapKu de palha ue entregou os

seus& a mo dela no teu oelho& a Bo a engrossar

- Ora bem

a sua Bo

- +unhadinha

o seu ardim +onstantino dierente do teu& outros arbustos&

outros bancos& dois casti@ais no piano& no um& uma proundidade de

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sombras ue se perdeu com os anos& chBenas ento completas ue

conheceste sem asa& a terrina no aparador& no na cómoda& o teu pai

a caminho da hospedaria e tu sem dares por isso

- Pai

deseando ue ele no ouBisse& to Bagaroso& to rgil&

certiNcando-se ue o len@o no bolso

Qno podes hesitar& comoBer-teS

e ao deposit-lo no bolso uma ponta de ora& o casaco gasto

sobrando nas caBas& a tua me para a tua irm mais Belha

- $o parece um espantalho=

e a tua irm mais Belha

- "eiCe-o

sem se atreBer a odi-lo& antes U espera ue um dia destes

Qrosas no laBa-loi@as& nunca gostaste de rosasS

a descobrisse na sala& inJtil entre trastes inJteis numa pontinha

de assento& com o Nlho ue poderia ter sido teu se uisesses na

alcoa& a descobrisse de olhos caRdos& desaeitada& gorda& ou ento o

teu pai a entrar na coinha ele ue no entraBa na coinha sobretudo

desde ue a gaiola da arBKloasobretudo desde ue a gaiola do estorninho deserta& uando o

pssaro morreu Ncou de bicho na palma ue sKculos& no

eCactamente um bicho& penas sem matKria& uma garraita de arame&

a ausVncia da segunda garra& da cabe@a& do bico& o ue deBia ser

uma asa ue o teu pai desdobrou& pareceu beiar& deu por ti e adeus

beio& ele direito& Berteu o estorninho no liCo& desapareceu na

maruise de nari para as rBores& atK hoe as sementes no

comedouro& no amarelas& negras& a gua a enegrecer num pratitode esmalte& o teu pai a entrar na coinha onde a tua irm audaBa a

tua me& a tua irm deseando ue ele

- #ilha

segurando-a na palma no ue sKculos& no eCigia sKculos& um

bocadinho somente& lhe estudasse as penas& desdobrasse uma asa& o

cartucho ue anuncia alimenta@o Bitaminada prossegue na

despensa& cada Be mais ao undo na prateleira U medida ue noBos

boiFes& noBas conserBas& noBos rascos de doce& da mesma orma ue

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a gaiola no no prego& sob o cesto da roupa& nem prego alis& o

oriRcio do prego de onde assomam ormigas entre dois auleos& se o

teu pai na coinha a tua me para a tua irm& a mostrar-lhe o casaco

- $o parece um espantalho=

um espantalho ue ulgaBa caminhar nos petroleiros do %eo&

 ulgaBa pedalar& coroado de noiBas& no sentido de Paris& o teu pai no

na coinha& na hospedaria da ;ra@a

Qum espantalho de actoS

em ue talBe o marido da tua irm& o Biinho adBogado& o Nlho

da porteira sem conseguir crescer& uma nuBem sem tripulantes

Quma doen@a contagiosa& um motim=S

TutuaBa para aui e para ali

Qo cadBer do comandante na proaS

atK se enredar numa cJpula& o ue sobraBa do leme uase solto

da uilha& a gaiola do estorninho com um dos poleiros no cho

Qno bem cho& uma gaBeta ue a tua me puCaBa para limpar

com a aca porue crostas agarrando-se ao metal& a tua me& de

pernas aastadas& ganhaBa duplos ueiCos

- X preciso comer um bie para istoao procurar dissolBV-las& NcaBa um BestRgio ue ela

- ,ma nódoa de errugem

se a tua irm ou tu lha mostrassem com o dedo a tua me ue ia

perdendo os duplos ueiCos ao acertar a gaBeta na calha

- ,ma nódoa de errugem

eCigindo

no eCigindo& implorando-Bos ue aceitassem a nódoa de

errugem ela ue no acreditaBa na nódoa& a cara- $o acredito na nódoa acreditem por mim

U beirinha das lgrimas& tu surpreendida com a acilidade

Qsobretudo no podes cair na asneira de te enerBar& perder a

cabe@a& hesitar& comoBer-teS

com ue as pessoas choram& se no tiBesses de estar

Qde Ncar& de tornar-teS

spera& indierente& tranuila& tu

- Me

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o teu pai l se decidia a entrar na hospedaria da ;ra@a&

apertaBas-lhe os dedos sete& one& cinco Bees para lhe dar coragem&

inorm-lo

- Espero aui

garantir ue o apoiaBas& se lhe alasses em %aBira uma purea

de espanto

- O uV=

o teu pai um desses ces sem or@a para obedecerem ao dono&

de ocinho a amolecer nos ladrilhos& um arrepio da cauda& a

rouCido de um latido

- %aBira

uns tantos tra@os Nnos& dois tra@os grossos no mCimo e o

metropolitano a empurr-lo& a colhV-lo& a empurr-lo de noBo& um

sapato castanho na plataorma unto a ti& o Beterinrio arrecadando a

seringa

- Pelo menos poupa-se na inec@o

e o teu pai nos ladrilhos& a cauda& o ocinho& o cora@o& a

recordar a ponte de %aBira e no instante em ue a recordaBa a

imobiliar-se e a perdV-la& o Bendedor de bolos parado enuantoaBan@aBa& a tua me a meio da inten@o de chamar-te& %aBira no

uma lembran@a& uma pagela& l esto as cinco Nlas de toldos& a ilha&

 BocVs na esplanada a seguir ao antar& a tua irm deseando ue ele

- #ilha

e o teu pai nunca

- #ilha

calado& no no AlgarBe& no >eato& um indiBRduo de mos roRdas

pelos cidos- Pimpolho

outro a larg-lo no sobrado

- Ests a rir-te de uV=

um naBio

Qou uma nuBemS

a aastar-se deBagar para a AmKrica e o teu pai na antasia ue

daui a instantes duas canas de pesca no ponto a ue altaBa o

cimento& com os erros U Bista& perto de um rolo de cordas& o

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indiBRduo ue o largou no sobrado a acenar do naBio

Qda nuBem=S

a acenar U sua me do naBio

- ,m dia Bolto pimpolho

chuBa no cais e o indiBRduo

Que coisaS

a secar a chuBa dos olhos& depois do teu pai na hospedaria

permanecer com ele na palma ue sKculos& o teu pai umas penas&

umas roupas sem peso& TorFes de esuue na morgue& cornucópias&

a@aates& releBos& as canas de pesca ue o enCotaBam

- %rambolho

Qno podes cair na asneira de te enerBarS o Beterinrio

- Pelo menos poupa-se na inec@o

o Beterinrio ou o doutor a mencionar os diabetes& as artKrias& o

cKrebro& a eCplicar U tua me

- As pessoas enBelhecem madame

se ao menos os corBos do eno as comessem por piedade& o teu

pai

Qno te comoBas& no sintas dó de ti mesmaSue desde ue saRste do ardim +onstantino

Qdo piano& das terrinas& da muina de costuraS

continuaBa a esperar-te sem um protesto& um lamento& haBia

ocasiFes em ue a tua campainha chamaBa& ninguKm e ias urar ue

era ele& arrependia-se& ugia& se chegasses U Baranda enCergaBa-lo a

trotar no Estoril& no te tocaBa nunca

Q- $o me tocaBa poruV=S

no aia perguntas& no te olhaBa seuer& no- #ilha

elimente ue no

- #ilha

silVncio& tu spera& indierente& tranuila& entre reTeCos de

coisas mortas& obectos mortos& essa claridade Binda no se sabe de

onde& da rua talBe& de uma anela ue se no distingue e contudo

eCiste escondida& disar@ada de parede& com os seus uadros e os

seus móBeis& numa das paredes ue te cercam& o teu pai ue

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cuidaBas perdido e aNnal regressa& trouCeram-te ao colo

Qa tua me trouCe-te ao colo

- $o me aborre@a senhoraS

embrulhada num cobertor& da opera@o as anginas& o teu pai a

segurar-te o calcanhar& so noBe menos deanoBe& K uma uesto de

minutos& no muitos& trVs ou uatro se tanto& um bocadinho apenas.

o cacto& a proCimidade do mar dado ue alguKm U tua porta

- $o sentem este cheiro=

e antenas de naries aBaliando& palpando& tapetes& cadeiras& a

escriBaninha de antiurio ue no chegaste a Bender& a criatura de

chapKu de palha satiseita

- E assim

as cereas de eltro despegando-se da copa& a enermeira a

procurar tirar-lho

- <ou deitar ora esta bodega

enuanto as ondas mais próCimas& amarelas& brancas&

 Bermelhas& no em %aBira K eBidente& no a ilha& no a ponte& uns

limos& uns rochedos& num dos rochedos um peda@o de corda e uma

caiCinha Baia& tesouros ue no Baliam um tosto urado e asgaiBotas

Qpreocupadas com o peiCe e as sobras das traineirasS

despream& a tua irm em %aBira& U noite

- $o ouBes=

reerindo-se no a um comboio ou a pessoas na rua& ao seu

corpo

- $o ouBes=

a carne a transormar-se& a crescer& o peito no liso como o teu&ancas no estreitas como as tuas& pedacinhos de lama ue erBiam

nela& eCibiu-te o len@o

- Olha

e ento sim& pessoas na rua& um comboio& oi a Jnica altura em

ue te interessaste pela tua irm& lhe Neste perguntas& no inuieta

com o ue lhe acontecia& inuieta contigo& a percorreres-te com as

mos& a espiares-te

- O ue Bai ser de mim=

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uma tarde Biste a tua me nua a mudar de roupa& um corpo

esuisitRssimo to dierente do teu& trancaste-te no chuBeiro& no

acreditaste

- X outra

a cara de sempre num corpo ue no lhe pertencia

- X outra

ou pertencia uando a tua me soinha a transormar-se num

monstro& se nesse instante o teu pai te apertasse sete& one& cinco

 Bees os dedos morrias& aastaBas-te dos teus pais eBitando-os&

desconNaBas das suas eCpressFes& dos seus modos

- <ocVs uem so=

alcan@aBam as prateleiras mais altas sem necessitarem de

bancos& a Biinha de toldo

Qoutro monstroS

no seu crochet o dia inteiro& alheada de BocVs& ano após ano a

mesma cadeirita de lona& o mesmo Bestido& um cumprimento de

cabe@a ue mal se notaBa& cerimonioso& a custo

Qo marido da tua irm

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai cunhadinha=a tua me saberia& a tua irm saberia& uem para alKm de ti e

no contando as cereas de eltro estaBa ao corrente da hospedaria

da ;ra@a& de *intra=S

rodeaBas a hospedaria na direc@o das traseiras em ue prKdios

ao abandono& canos ao lKu& desperdRcios& um Belhote a endireitar

uma colmeia com as abelhas a enurecerem-se em torno e numa

 anela do terceiro andar& ue um ramo de trepadeira atraBessaBa& o

teu pai a Ntar-te& a eCpresso dele- %u compreendes

no

- %u compreendes Nlha

somente

- %u compreendes

e no

- %u compreendes

escondido no

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- %u compreendes

oculto no undo& só um cantinho U Bista

- %u compreendes Nlha

o Belhote a perder o euilRbrio deendendo-se dos angos com

as luBas& a Biinha de toldo a eCplicar ao teu

Q- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai=S

a eCplicar ao teu pai

- $o me Bou embora descanse

e o teu pai& no ralado com ela& a Ntar-te a ti& agradece U

criatura de chapKu de palha ue ele a Ntar-te a ti& pode ser ue te

tenhas enganado e o teu pai a Ntar um episódio remoto& um dedo

entre Cailes por eCemplo

- O pimpolho cresceu tanto este ano

ou o estorninho na palma& ao menos pelo estorninho interessaBa-

se& desdobraBa-lhe a asa e a asa inerte& deunta& um leueito de

penas& a tua me a oender-te

- Muito gostaBa ele do bicho

depois do teu pai se encostar U maruise a tua irm a aud-la

com o almo@o& de bochecha torcida

Qso precisas duas plpebras para uma lgrima BVs=S

a enternecer-se com o estorninho conorme a criatura do chapKu

de palha enternecida com a arBKloa& anunciaBa

- O mar

isto K decidiu ue o mar acol& logo a seguir ao muro& uando na

realidade mar nenhum& baldios& um tractor inBisRBel& se a tua irm no

 ardim +onstantino o teu pai a interrogar-se- +onhe@o-a=

a conBid-la para o circo no teu lugar dado ue tu ausente& de

 oelhos na boca& pensando ue uma uesto de minutos& no muitos&

trVs ou uatro se tanto& um bocadinho apenas& um Jltimo esor@o e

acabou-se& coisas mortas& obectos mortos& o marido da tua irm a

desdobrar-te a asa

- +unhadinha

e tu nessa claridade Binda no se sabe de onde& da rua talBe& de

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uma anela ue se no distingue e contudo eCiste& da nuBem ue os

grumetes conseguem leBantar acima das palmeiras conduindo-a

Qpercebia-se o mestre com um binóculo U popaS

U bolina na direc@o de Lisboa& tu ue nunca soubeste em ue

bairro a Biinha do toldo moraBa& Biste-a uma ou duas ocasiFes na

;ra@a& com o mesmo Bestido& sem reparar em nada

Qo Belhote continuaBa a endireitar a colmeia dado ue se

notaBam os sons consoante se notaBa um ma@arico numa oNcina

algures& o elKctrico desapareceu na primeira esuina com a Biinha

de toldo& os corBos deBiam permanecer no Alenteo erguendo-se do

eno& Berticais& eroes& de luto& desligaste o teleone antes de te

sentares no so& trouCeste o arro da gua

- <ou ter de repetir toda a Bida ue h copos no armrio

menina=S

tu a sorrires U lembran@a de ue h copos no armrio menina&

contaste os comprimidos do rasco& Binte e trVs& tornaste a

cont-los e Binte e uatro& contaste alinhando-os na mesinha e Binte

e uatro de acto& em ual deles te enganaste& Binte e uatro inteiros

e metade de um outro& como ualuer pessoa no teu lugar come@astepela metade ue se te prendeu na garganta& raspar com uma aca&

limpar Qos duplos ueiCos da tua me

- X preciso comer um bie para istoS

ao esregar a gaBeta da gaiola a tua me substituRa-lhe o undo

por uma pgina do ornal da BKspera com o problema das damas

resolBido na margem

Qriscos de caneta& nJmerosS

e o triuno das brancas& colocada a gaBeta na calha a tua irmrecolhia o ornal& chegaste a procur-los em *intra& ao teu pai e U

 Biinha de toldo& sem ue conseguisses ach-los& achaBas etos&

oruRdeas& chalKs onde os grumetes das nuBens habitaBam nos

interBalos das Biagens porue paBios de naBega@o Tutuando nos

uartos& a tua irm dobraBa Us escondidas o ornal na carteira& por

 Bees um dos grumetes costuraBa lonas num banco

Qum bocadinho apenas& um Jltimo esor@o& continua& dentro em

breBe o tal corredor& a tal luS

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e apesar das accias e das Tores nas accias o teu pai noutro

lado& porBentura no >eato& na esta@o dos comboios de #ran@a na

mira de um Biaante a aast-lo

- %rambolho

com a criatura de chapKu de palha com cereas de eltro

Qno somente etos& oruRdeas& mas tamargueiras& alenas& um

herbrio completo& dentro em breBe o tal corredor& a tal luS

conBersando com o teu pai no ardim +onstantino e ele

mostrando-lhe um retrato na camilha

- E BocV

no o da senhora da bengala nem o da rapariga de tran@as& mais

diuso& menos claro& uatro meninas de branco em torno de uma

onte ou um baloi@o ou um aBY bondoso tanto a

Qa pelRcula demasiado gasta impedia-te de perceber& uatro

meninas portanto& e nesse aspecto h acordo& em torno no importa

de uV escolhido pelo otógrao& o baloi@o no& a onte ou o aBY

bondoso ou um adere@o de estJdio& o mais proBBel K ue um

adere@o de estJdio& uma coluna por eCemplo com um Baso no topo&

digamos e siga a banda ue no h tempo a perder ue uma colunacom um Baso no topoS

no a senhora da bengala& no a rapariga de tran@as& uatro

meninas de branco com BestRgios das assinaturas delas

Qum rabisco& um tracinho& como tudo passa meu "eus& deiCamos

de eCistir to depressa& nomes ue no so e por no serem no

oram nuncaS

o teu pai a demorar-se na primeira

Qno& na terceira& a mais alta& a do aBental engomadoS- X BocV

QcontinuaS

- A do a al engomado

no adorme@as ainda& prometo-te ue alta pouco& o teu pai a

demorar-se na do aBental engomado

se o teu cunhado

prometi ue alta pouco e Bou cumprir& auda-me& se o marido da

tua irm tocar U porta no te distraias& no oi@as& um aBen al eng ma

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e o teu pai para mim

- X BocV

o teu pai aui comigo

Qno te preocupes com eleS

reparando na arBKloa sobre o cacto a dar-se conta do mar& no

te preocupes com ele ue trouCe uma lata de biscoitos& tenho eito

para crian@as& sempre soube entretV-lo& basta ue eu

- Pimpolho

para ue o teu pai eli& basta ue eu

- Empresto-te esta caiCinha este peda@o de corda

e ele sossegado

sossegado a brincar no momento em ue este uarto um reTeCo

de coisas mortas& de

enganei-me& no momento em ue nem a anela se distingue&

deiCei de distinguir a arBKloa& de distinguir o mar& distingo reTeCos

coragem& distingo reTeCos de coisas mortas

no ho-de impedir-me de chegar ao Nm& distingo

distingo reTeCos de coisas mortas

Qestou a conseguirSobectos mortos& um chapKu de palha com cereas de eltro& para

no ir mais longe distingo uma nuBem com os seus marinheiros a

aproBeitarem o Bento ue principia a erguer-se& o armacVutico

QarmacVutico=S

para mim

- Xs serBida=

e a minha me

- $o lhe alesno distingo o meu tio& no distingo a nossa casa& o homem da

muina de tripK no domingo de Pscoa& com um pano onde se

escondia

- Ponham-se as uatro ali

as minhas primas e eu& a #ilomena& a

como tudo passa meu "eus& depois digo& ponham-se as uatro

ali& BocVs duas deste lado& BocVs duas dauele& a #ilomena& a Alda& a

Lurdes. uma blusa de botFes de Bidro ue concentraBam as Belas

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as Belas

umas Tores

Qacho ue malmeueresS

na cabe@a eu

- Lucinda

disso estou certa& eu.

- Lucinda

 Bisto ue me roubou uma pluma de paBo encontrada na mata

de ue ainda hoe sinto a alta e NcaBa bem aui& nesta claridade

 Binda no sei de onde& da rua talBe& de uma anela ue se no

distingue e contudo eCiste& o otógrao

- Aten@o

o senhor do metropolitano& os corBos& tu a gritares uando a

locomotiBa o empurrou& o colheu& o tornou a empurrar& tu de oelhos

na plataorma embalando-te a ti mesma& pessoas U tua direita& U tua

esuerda& alKm de ti ue gritaBam igualmente& o relógio noBe menos

deassete& noBe menos deasseis& noBe menos uine e nas noBe

menos uine um tra@o grosso& tu a correres para a saRda& a

deiCares-me agora ue me aes alta para desamarrotares o len@ol&trocares a almoada& mudares a posi@o em ue estou& tu de oelhos

na boca numa casa ue inBentei& no te pertence& inBentei-a& K minha

e na ual o Biinho adBogado& a polRcia& os bombeiros caminharo a

medo& se calhar com uma lanterna& uma pilha Bulgar procurando-te&

uer dier a luita da lanterna

Qou da pilha BulgarS

um cRrculo mais oBal ue cRrculo para a direita e para a

esuerda&cauteloso no cho& eCplorando tapetes& a escriBaninha de

antiurio cheia de gaBetas e mistKrios ue desde h meses decidiste

decidi trocar

QBender=S

no trouei nunca

Qnenhuma escriBaninha de antiurio& a mesa do meu tio onde

ele aia as somas das colheitas& tanto disto& tanto dauilo& a proBa

dos noBe ao lado& o teu

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o meu tio a reunir os papKis

- 9ue ma@adaS

por conseuVncia esto aui todos connosco& as minhas primas&

o meu tio& o teu pai& tu& a Biinha de toldo de modo ue posso

garantir com orgulho U enermeira ue a minha amRlia comigo a

desamarrotar-me o len@ol& a mudar-me a almoada

no consigo meu "eus

moada& a mudar-me a almoada& a cuidar de mim& se eu disser

- A arBKloa

concordam

- A arBKloa

se eu disser

- O mar

aceitam

- O mar

reor@am inclusiBe

- +omo no dei pelo mar=

so meus amigos BocVs& acotoBelam-se& interrogam-se&

acotoBelam-se mais& compreendem& do-me rao- O mar eBidentemente como no dei pelo mar=

no um reTeCo de coisas mortas& obectos mortos& o mar& essa

claridade Binda no se sabe de onde o mar& esse cheiro ue BocVs

sentem

Q- $o sentem este cheiro=S

o mar disar@ado de parede& escondido& no adorme@as por

enuanto& pega-me na mo ue no tenho& no bra@o ue no tenho&

na perna ue principio a no ter& pega-me na pernapeguem-me na perna

auCilia-me isto K auCiliem-me com um chapKu de palha com

cereias de eltro& a tua me comigo& a tua me comigo& a tua irm

pe@o piedade& pe@o

o mar e por cima do mar esta nuBem ue os marinheiros

conduem na minha direc@o ue bem lhes noto os sinais e só espero

 ABe Maria ue estais nos cKus pe@o piedade& só espero

santiNcado sea o Bosso nome bendito o ruto do só espero ue o

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 Belho endireite a colmeia& pegue numa tbua e me eche l dentro

- #icas aR

só espero ue o Belho me permita ir embora com a nuBem& eu

em ci

ma& na amurada& santiNcado sea& bem haam& bem haam& eu em

cima& na amurada& a dier-Bos adeus.

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PENÚLTIMA NARRATIVA 

 As coisas no acabam uando a gente pensa ue ideia& supomos

ue terminaram e aR esto elas no interior de nós& a minha me por

eCemplo

Qno Bale a pena ir mais longeS

com uem nunca me dei& mesmo antes do alecimento do meu

pai no me entendia com ela& o meu irmo ue sempre deseou a

amRlia unida

Qessas manias da proBRnciaS

chamou-me da >eira Alta uando a senhora mais uma semana

ou duas de Bida e eu ao teleone

- $o

eu ao teleone- $em alar

e no entanto& sabe-se como K& ;ouBeia U minha rente na encosta

da serra e uma coisinha a moer-me eita de cheiros& inBernos&

angas& recorda@Fes& no saudades& uais saudades& no Bontade de

 Bisit-la& Para uV Bisit-la& eram mais as giestas& a casa& empregados

ue continuaBam BiBos& por eCemplo a +Wndida na coinha ue me

perdoaBa tudo e me deiCaBa umar& a +Wndida

- MeninoQestaria BiBa a +Wndida=S

a uerer beiar-me a mo& to contente

- Menino

se me aborreciam escondia-me no aBental dela para ue no se

apercebessem dos meus insultos& das lgrimas& era mais a sala aos

domingos& o sabor da gua na bilha com um prato& tambKm de barro&

ao contrrio por cima& as colchas penduradas da anela durante a

procisso& uma Bontade de morrer& uma Bontade de estar BiBo& o tio

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 Aruimedes ue o coronel matou com um sacho por causa da

sobrinha e& se alBamos nisso& ao dar com o coronel escarranchado

na mula& de colarinho preso num alNnete de prata& o meu pai

desBiaBa a conBersa& a inelicidade sem Nm da chuBa no inBerno&

comigo a sentir-me como o tuberculoso de <inho

- Ai este rio senhores

os pirilampos enredados na cortina& no sRtio do caminho antigo

uma estrada agora& a +Wndida deunta

Qprocurei o aBental dela na arca& ia urar ue com os meus

insultos e as minhas lgrimas aindaS

o coronel e a mula& ue cuidaBa parte um do outro& em buracos

separados na terra& a sobrinha hoe corcunda& de bengala& a entrar

na igrea& atraBessei-me U sua rente e os dentes escuros

Qno muitos& um de Be em uandoS

a meditarem

- O Aruimedes uem era=

a concluRrem& no haBendo encontrado

- Es parecido com ele

e no sou& o tio Aruimedes loiro& trgico& Bigiando a limpea dobraso na achada& maestoso de anKis& apenas olhas no lago em ue

dantes peiCes& um bairro igual aos de Lisboa& o +orreio& sem a dona

+ecRlia& transormado em caK

Qem ue lugar se compraro os selos=S

o meu irmo sem mulher& sem Nlhos& sem a chibatinha de se

irritar com os camponeses U minha espera nas escadas& imaginadas

por mim com mais degraus& mais largas& e aNnal estreitas& ceis de

galgar- A meinha l em cima

a meinha l em cima perto da anela onde o pessegueiro

continuaBa a Torir mas cansado& por hbito& o laBatório com o seu

balde& a saboneteira ue era uma concha de inco& a meinha de

manta atK ao pesco@o no so Bermelho em rente ao ual estauei

de sJbito& uma manh& ao dar com o meu pai e a aNlhada do padre de

ueiCo na direc@o do tecto& eu a persignar-me& assustado

- <ai cantar em latim

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instalaBa-se ao órgo mal come@aBa a missa& a Bo guiaBa as

 Boes das mulheres pelos caminhos terrRBeis& sempre U beira do

!nerno

Quma desobediVncia e prontoS

de "eus

Qo sacristo espaneaBa em agosto& de porta aberta& o sorimento

dos santos& a chaga de *o oue& *o *ebastio a menear-se& a

palma da meinha& ero& empurrando-me o ombro

- *acriNcaram-se por ti aoelhaS

por um instante o meu pai e a aNlhada do padre antes da minha

me outra Be& o meu irmo a inclinar-se para lhe gritar ao ouBido

- O seu Nlho

a manta ondulou uase nada& apetecia-me pedir

- $o deiCem secar o pessegueiro

o pessegueiro& os castanheiros& a capoeira ue aumentaram atK

ao armaKm das batatas& perus com um cordel na perna a

engordarem c ora& a manta imobiliou-se

Qteria ondulado a sKrio=S

a meinha no sei o uV da manta& o meu irmo inclinando-se-lhe na direc@o dos lbios

QaltaBa-lhe cabelo& perdera carne& energia& no era o meu

irmo& era um Belho& como K possRBel isto& no te conhe@o BelhoS

- epita

a meinha de perNm sem se interessar por mim& em

compensa@o um dos uadros representando uma senhora com ,m

sinal na sobrancelha a indignar-se

- +hegas aui e nem cumprimentas as pessoas=ao tentar responder-lhe Boltou-se na direc@o das aian@as na

 Bitrine& amuada& tinha-me esuecido de tanta coisa ue urara no

esuecer& a colec@o de solitrios com as tJlipas de brone& o pisa-

papKis com um lRrio& o Belório do tio Aruimedes na casa de antar e

crepes nos armrios& a +Wndida daBa-me o almo@o

- *ó mais duas

só mais duas durante uma inNnidade de colheres Qporue no

h-de continuar a eCistir um aBental ue me esconda=S

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os bois atrelados aos carros na Bindima& a meinha um

espasmo na manta& uma pausa& o meu irmo a argumentar

- <eio de Lisboa por si

amarrecando-se U escuta& de cabe@a uase pegada aos lbios

Qcontinuaria a dormir com a BiJBa do notrio mesmo enrugado&

 Belho=S

ao endireitar-se os ossos desencaiCaram-se& permaneceram a

Tutuar& uniram-se& o meu irmo no este& este um senhor descuidado

ue se barbeou mal& nenhum ma@o de cigarros roubado ao meu pai

na algibeira& o poinho

QcompraBa-se na drogariaS

ue se espalhaBa na sopa e eCcitaBa as mulheres& embora me

eCplicasse

- #a-se assim

nunca acreditei nele

Q- $o acredito K uma lKriaS

eCperimentei a medo na lRngua e um gosto de gi& o meu irmo

- $o sentes=

sentia as gengiBas brancas& a garganta entupida& soltei-oconorme melros se libertam dos abetos

- $o acredito em ti

e o meu irmo escondeu o pó na algibeira& cheio de oensas&

mais alto ue eu& mais orte& abria a porta do celeiro com um

empurro sem necessitar da chaBe& dJias de leues de morcegos

num renesim de Baretas& um dos anKis do tio Aruimedes no

indicador dele& o pessegueiro segredaBa uma aTi@o indistinta

- Por onde andaste rapa=eu a acompanhar o meu irmo todo sinaleas& mistKrios

- "epois conto serena

estes cheiros da serra& pinheiros sobretudo& raRes ue uma

troBoada ueimou

Qou o granio=S

despontando aui e acol sem encontrarem descanso&

gabardinas ue perderam o dono com uma penugem de bolor no

bengaleiro da entrada& nem um obecto ue me pertencesse no meu

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uarto& apenas a humidade& um peda@o de embrulho a Baguear no

cho e no peda@o de embrulho& de tbua em tbua& eu& a +Wndida

atrai@oou-me ao alecer& respiraBa nela carBo& massa tenra& ritos&

relentos ue continuam a misturar-se no meu sono e me do pa&

nunca pensei ue a lembran@a do reogado de cebola me audasse&

h-de haBer uma otograNa dela connosco& eu ao seu colo& o meu

irmo ao lado

QdetestaBa Bestir-se igual a mimS

e em ual gaBeta senhores& namorou o carteiro ue nos passaBa

bVbedo na rua e uma tarde Bomitou sangue& inormaram-nos ue

preto& do sangue ao rigorRNco no hospital de <iseu oi um mVs& os

ossos do meu irmo ao unirem-se

- A me no te uer c

a meinha no me uer c e no posso deiCar de cumpriment-

la& agradecido& pela sua constWncia no rancor& o pessegueiro calado&

uma parte de mim a murchar& uma parte do meu irmo a murchar

tambKm& a decidir-se

Qo olhar do meu pai na cara dele& a sua tendVncia para a

piedade& coitadoS- A me no d por isso se Ncares aui

e no entanto tenho a certea ue daBa& a manta a sacudir-se& a

orelha do meu irmo na direc@o dos lbios

- Ainda aR est o outro=

de modo ue o automóBel cada Be mais rpido& mudan@as de

 Belocidade despeitadas

Q+arregai do *al& +oimbraS

no regresso a Lisboa& as ei@Fes sem lu do meu irmoQ- Perdeste a lu h muito tempo mano=S

- A doen@a percebes=

a sua roupa de camponVs

Q- Xs teu rendeiro tu=S

o colete do aBesso& BestRgios de óleo do tractor na camisa& no

lhe apertei a mo& no o abracei& os pintarroCos no pomar os

mesmos& anda-se um mVs e geada& os pintarroCos mortos& no nos

daBam trabalho porue a gua os leBaBa para os regos e os insectos

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e as cobras comiam-nos& o olhar do meu pai na cara dele

acompanhou-me ao automóBel

Qa tal tendVncia para a piedade& coitadoS

o meu cotoBelo comprimido de repente e largado em seguida

dado ue emo@Fes& pudores& ue gaita sermos assim maninho

- $o te oendas com ela

no retroBisor o meu pai e o meu irmo uietos& isto K o meu pai

deunto h sKculos& o meu irmo uieto& a bater com a chibatinha na

anca& acabei por chamar pais

Qno minto& chamar paisS

aos meus tios em Lisboa& no tenho irmo algum& no te

conhe@o entendes& ulgo ue Ncou no porto a enBelhecer& a dobrar-

se& o meu pai sem tirar nem pYr uando saR de ;ouBeia& com a

bandeirita de um sorriso a abanar sem descanso& ainda ue me

escreBesse mudei de apartamento e perderam-me& elimente ue me

perderam& perdi ;ouBeia& o meu pai deunto no meu irmo& to

inuieto comigo& e digo elimente porue& por eCemplo& a +Wndida

aui

- Meninoe a tro@a das pessoas& o ridRculo

- X tua amiga esta saloia=

relentos de carBo& massa tenra& ritos& eu logo& K ue nem

gemias

- $o

- ;ouBeia& sei l onde K ;ouBeia& em %rs-os-Montes& no Minho

Qna >eira Alta noS

h uma otograNa nossa mas em ue gaBeta de ual armriobolas& a gente a supor ue as coisas terminam e aR esto elas BiBas&

os meus pais BiBos mesmo ue duas pedras com datas e letras

Qnunca estarei unto delasS

no cemitKrio da encosta& para l do cemitKrio as rBores de

 aneiro aumentando as crues e aproundando o Bento& pergunto-me

se o meu irmo com eles

Quma pedra mais peuena& menos letras& uma dieren@a menor

entre as datasS

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a desculp-los

- A doen@a percebes=

e uem hoe em dia nos compartimentos da casa& tinha medo do

chalK de um parente a curBar-se entre as erBas& mudaBa de passeio&

persignaBa-me& no sobraBam Bidros nos caiCilhos& cuidaBa ue as

almas do Purgatório no salo de baile a mendigarem auCRlio&

espreitei da Baranda e silVncio& cadeiras tombadas em silVncio& um

ber@o em silVncio& um gramoone em ue um disco giraBa em

silVncio& daBa ideia ue passos sem matKria soalho ora& brandos&

talBe uma crian@a ue para ali Ncou ao desertarem& escutmo-la

nessa noite no corredor da casa& o meu irmo e eu num só colcho a

rearmos& se alasse nisto a irm da minha mulher aria tro@a de mim

Qno aloS

eu no so da sua casa

- +unhadinha

Nngindo conBersar com ela uando conBersaBa com uma

rapariga de *eia& mascarada de pirata na ter@a-eira gorda com um

len@o na cabe@a e um papagaio de carto

 QdemoraBa-se a perceber ue o papagaio alsoSpor mal dos meus pecados no a tornei a Ber& morreu em meia

dJia de dias de uma inec@o nas meninges& pouco antes de me ir

embora de ;ouBeia escutei os responsos e desde ento arrepio-me só

de pensar em "eus& a irm da minha mulher

- Ests doente=

dado ue eu amparado U escriBaninha receoso de um desmaio&

apenas BKrtebras e unhas& deenas de unhas ue me rasgaBam&

doRam& a lembrar-meQa +Wndida saberiaS

da mscara de pirata no clube desportiBo enuanto eu bebia

cerBea do gargalo& inelicRssimo& acho ue oi nessa altura ue decidi

 Bingar-me da minha me& da +Wndida& das Nlhas do caseiro ue se

embasbacaBam com o meu irmo& no comigo& se eu

- >om dia

elas a correrem na direc@o do po@o onde urtigas& Bespas&

cachorros Badios ue me assustaBam al@ando a cauda& de maCilas

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enormes

- $o me a@am mal senhores ces

o trote parecido com o dos lobos& traBadinho& sem ossos& a partir

do crepJsculo uiBos na mata ecoando serra acima de penedo em

penedo& uase todas as semanas a rede da capoeira uebrada e uma

pedrVs& um coelho& deiCaBam-lhes a cabe@a no uintal& as tripas& o

meu pai para o eitor

- Estes ces

no dia seguinte& por trs da casa& tiros& um raeiro a ganir

arbustos ora& as cartilagens da perna esbranui@adas& em pingos&

 Binham curar as chagas no moinho de gua da horta& dBamos com

um cacho de animais a beberem& Vmeas grBidas& crias& untamente

com um guarda de rebanho nosso ue o meu pai mal o bicho lhe

rosnou deriBado U Bergasta

- Este K mau.

 Bisto ue os bons sorem submissos& o cKu dos ces recompensa-

os& o eitor cruciNcaBa um macho& por eCemplo& na eCtrema da

uinta& um craBo de erradura em cada pata& a garganta uebrada e

desapareciam oblRuos& murmurando Bingan@as& o meu irmobaiCinho Qo olhar do meu pai na sua tendVncia para a piedade&

coitadoS

- A me no te uer c

a irm da minha mulher& de oelhos na boca& to dierente da

+Wndida

- $o Ks capa some-te

se pudesse escolher mascaraBa-se de pirata igualmente sem se

ralar comigo& eras mais coraoso ue eu& mano& no consentias ueme acontecesse mal& protegias-me& ir a ;ouBeia porue tenho medo

ue adoe@as& morras& dar contigo no so Bermelho em ue a aNlhada

do padre

dJias de bra@os& de dedos& uma coCa to redonda ue nunca

mais a esueci& o meu pai de oelhos

- "-me

no& tu soinho com a manta a escorregar-te do peito&

magrRssimo& a procurares sorrir apontando-me a chibatinha ue no

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acertaBa comigo

- <ieste Ber-me miJdo=

o pai por uma pena& chapado

- <ieste Ber-me miJdo=

o inBerno aos solu@os na serra& no o pessegueiro& no eu& ainda

ters auele pó das mulheres ue se mistura na sopa& as batatas

enrugando-se no armaKm& a Bindima adiada& a minha orelha na

direc@o dos teus lbios e os lbios procurando-me cegos

- Ainda aR ests miJdo=

a casa igual ao chalK do parente ue se curBaBa entre as erBas&

no te preocupes& sossega& ainda aui estou em Lisboa& no merece a

pena perguntares por mim& enBiares-me um recado& a secretria do

emprego

- O seu irmo na linha dois atende=

e com a inWncia& ue me suocaBa de repente de pVssegos

 Berdes& largartiCas& assombros& Binha o colKgio de rades& aguardente

de ameiCa bebida Us escondidas& guardei-a na boca e

- Maricas

de modo ue mal engoli eu auir a tossir labaredasQ- Audem-meS

na primeira hora da manh& isto K noite ainda& as lWmpadas

acesas a aleiarem-me& precisaBa do aBental da +Wndida& dormi no

uarto dela uando a minha aBó aleceu e esueci o enterro e os

polegares entrela@ados no rosrio ue a minha me

- $o me apetece meinha

me obrigou a beiar& na primeira hora da manh& desesperado de

saudades de ;ouBeia& o meu corpo um montinho de cinas ue umdedo imenso remeCia& empurrando-o no sentido do Bómito

- Os reis da primeira dinastia depressa tu aR o pasmado

no esuecer as ora@Fes na capela& o director

- $o Bos oi@o

e eu a pensar no !nerno onde nenhum aBental me salBaBa&

recreios Jnebres a tiritar U chuBa& se me encostaBa a um pltano o

 Bigilante sacudia-me logo

- Onde K ue tens a moinha=

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comigo a mostrar-lhe a inocVncia das palmas& a irm da minha

mulher a tro@ar-me

- Pensas ue com a moinha consegues=

se o meu irmo

- <ieste Ber-me miJdo=

a encostar-me a chibatinha U barriga e a lograr um sorriso

Que patetice chamar Uuilo um sorriso& ue inustoS

ue para ser sincero no conseguia o pobre& pedia-lhe de

imediato

- $o desapare@as mano

a chibatinha descia deBagar& a minha orelha contra os lbios

abertos e no dos lbios& mais undo& U medida ue o pessegueiro

Qsempre simpatiei com eleS

restolhaBa o meu nome

- *e o patro desaparece o ue aemos nós pensou=

O meu irmo segurando a manta ue continuaBa a escorregar

- >em gostaBa de agradar-te no posso

no caso da secretria do emprego

- %em o seu irmo na linha dois atende=digo ue no uero o inBerno aos solu@os na serra nem o colKgio

dos rades& os reis da primeira dinastia um após o outro sob

lWmpadas rouCas ue aBolumaBam sombras& a minha me

desgostosa a mostrar-me U amRlia

- O ue Bai ser deste atrasado eCpliuem-me=

a irm da minha mulher aproCimou-se do pltano a eCaminar-me

melhor e l em baiCo& no em mim& no canteiro do Estoril& as

petJnias e as palmeiras do +asino concordando com ela& a minhame intrigada

- O ue se passa contigo=

passa-se ue um cachorro cruciNcado na eCtrema da uinta&

martela-me um craBo em cada pata& mata-me

- X eBidente ue no consegues desiste

pVssegos Berdes& lagartiCas& assombros& o meu pai sempre com o

mesmo liBro na sala& interrompia-se a olhar-me

- MiJdo

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aproBaria a minha me

- O ue Bai ser deste atrasado eCpliuem-me=

regressaBa ao liBro ou demoraBa-se a pensar

- $o sei

portanto se o meu irmo na linha dois digam-lhe ue me

transeri para a sucursal no estrangeiro& deiCei de trabalhar& no

estou& mudei de nome e no respondo a ninguKm eCcepto aos reis da

primeira dinastia& de sapatos bicudos nas criptas dos mosteiros& ".

 Aonso !!!& ". "inis& ". Pedro& e com muita ABe Maria e muito pelouro

nos omos a eles e em menos de um +redo os matmos a todos& a

irm da minha mulher a agarrar-me no pulso

- Ests a ser patKtico desiste

o Bigilante do colKgio a astar-se do pltano

- $o admitimos porcarias aui

as coisas no acabam uando a gente pensa& ue ideia& supomos

ue terminaram e aR esto elas dentro de nós a atormentar-nos& a

minha mulher receosa

- Andas angado connosco=

desaeitada& gorda& a diminuir no seu canto- $o te agrado pois no=

com o nosso Nlho aos domingos mais as suas pe@as de armar no

 ardim +onstantino& dei-lhe o nome do meu irmo na esperan@a de o

ouBir& apertando-me o ombro

- MiJdo

mas o meu Nlho de gatas no tapete distante de mim& se alguma

 Be me procurar na linha dois no me interessa& uando nauela

tarde o meu sogro na hospedaria estaBa ustamente a recordar a+Wndida e para alKm das galinhas U solta Bia brilhar os legumes

- "a parte do seu sogro na linha um diem ue K urgente

responde=

como diabo a Biinha de toldo& ue chegaBa com uma cadeirita

de lona desbotada dos anos e no parecia dar por nós& toda no

crochet a pateta& encontrou o meu nome& ondas amarelas& brancas&

 Bermelhas na praia em %aBira& a democracia d nisto& cada

analabeto um Boto e o poBo a permitir-se sem respeito incomodar as

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das paredes no outono& os charcos de uma chuBa distante em

ue a gente se interroga& esuecidos

- "e ual outono esta chuBa=

a irm da minha mulherAi sim=

comigo a meditar se lhe contaBa da Biinha de toldo& da

hospedaria da ;ra@a& curioso de saber se o

- Ai sim=

outra Be& Bingar-me do

- Ests a ser patKtico desiste

alargando-me no so com a mo no seu oelho& o ombro contra

o seu ombro& a minha perna na sua& eu neutro& casual

- AdiBinha o ue aconteceu ao teu pai

e sentir o corpo dela

Q- <ais pagar Bais pagarS

a endurecer U espera e ento toma l a Biinha de toldo& a

hospedaria da ;ra@a& nem seuer uma hospedaria

Qengole estaS

um barraco ao abandono com uma tangerineira no uintal& umas

estampas suas& a proprietria de tubo na garganta& to doenteuanto o barraco& a cuspir-me Bogais

- Por aui

rapaes de cabeleira posti@a& liCos ue se amontoaBam num

bolor de trapos& raparigas de sobrancelhas depiladas

Qas testas delas to nuasS

nos seus roupFeitos no No& clientes de suspensórios ue o meu

ato apaBoraBa

- X da polRcia amigo=eu ue deBia responder-lhes a aastar-me dos cubRculos como o

 Bigilante do pltano& de batina a arrastar nos calhaus

- $o admitimos porcarias aui

e na misKria da hospedaria metade do teu pai no colcho& a

outra metade no soalho& uma trepadeira na anela a respirar aos

impulsos& em ;ouBeia a casa cobria-se de hera no Bero ao passo ue

no inBerno arames ue a geada dissolBia& o meu pai mandou abater o

castanheiro da Kpoca do pai dele

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Qo ue a uma arBKloa aui=S

ue agoniaBa h anos& recusou-se a utiliar a madeira no ogo

- O castanheiro no merece

eCigiu ue o enterrassem a seguir U Binha

Q- +omo uma coisa BiBa pai=S

o meu pai um gesto ao olh-lo& deu-me ideia ue as plpebras

mais grossas& uma corda de baloi@o num ramo no de um irmo& no

nossa& mais recuada no tempo

Quma caiCinha Baia& um peda@o e cordaS

o padrasto do eitor& ue o acompanhaBa U ca@a& a reter-se de

alar com ele

- *epultar uma rBore acha normal patro=

pareceu-me ue comoBido igualmente ao tomar a enCada do

enteado& inBeei-o porue entre ele e o meu pai o ue nunca tiBe&

entendiam-se& o padrasto do eitor umas alturas

- Patro

outras alturas

- Menino

uma manh& era eu peueno& por tu& a apreciar-lhe o tamanho- #icaste homem num segundo cachopo

comiam untos na ca@a como se ossem amigos& concediam-se

opiniFes& pareceres

- #a@a isto a@a auilo

e detestei auele Belho& aogou-se no po@o

- no sirBo para nada

e o meu pai atrs da urna soinho& precedendo a amRlia&

trancou-se no uarto dele de solteiro& no desceu para antar& norespondeu a ninguKm& a minha me pela primeira Be a respeit-lo

- "eiCem-no

a recomendar ue nós calados& sem aer barulho na sala& nessa

noite escutmo-lo l ora a passear na horta& demorou-se no lugar do

castanheiro a rosnar& no dia seguinte meteu-se Us perdies com duas

ca@adeiras& a sua e a ue o eitor lhe emprestou embora nenhum

parceiro o acompanhasse& sem cessar de dormir dei pelo meu pai a

descer as escadas& metade do meu sogro no colcho& a outra metade

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no soalho& a Biinha de toldo sem plpebras mais grossas& sem

espingardas& sem um castanheiro de ue se lamentar& por um tri eu

no

- +Wndida

por um tri ue se achasse um aBental

- %ome

indignar-me com o Bendedor de bolos ue amea@aBa entornar-

lhe o cesto& pis-la& os clientes dos suspensórios abotoando-se U

pressa na direc@o da rua& as cabeleiras posti@as a adearem num

bater de mangas de susto& ganindo mato ora& coCeando

Qem ue moinho de gua curaro as chagas& tVm ome de uma

pedrVs& um coelho=S

a Biinha de toldo

Qa +Wndida senhoresS

a Biinha de toldo

- O doutor leBa-o daui e a esposa no Bai saber no K=

se tiBesse um uarto de solteira trancaBa-se soinha& no descia

para antar& no respondia a ninguKm& a irm da minha mulher de

 oelhos na boca- Ai sim=

o ueiCo dela a engelhar-se& repete ue no sou capa anda&

repete& desaNa-me& agarra-me no pulso& B

Q- Ests a ser patKtico desisteS

a pouco de mim

Q- +laro ue no conseguesS

e despreo& chacota& adianta ue no sou homem& tu sempre to

segura& to espertinha& o teu pai no no >eato nem no ardim+onstantino& a mirar o tecto na hospedaria da ;ra@a& as brancas no

ganharam desta Be ue ma@ada& o ornal intacto na cadeira& a minha

mulher

- $o pode ser

esmagando sem se dar conta as pe@as de armar do meu Nlho&

abrindo e echando ao acaso as gaBetas do ar e nas gaBetas %aBira&

ela a escapar-se do pai com a muina otogrNca

- X minha

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correndo atK U ponte& de chapKu de palha com cereas de eltro

ue patetice& correndo atK U ponte sem chapKu nenhum& a muina

caiu na gua& aBariou-se e a minha mulher incapa de chorar& isto K

deseaBa chorar& preparou as ei@Fes para chorar e incapa de chorar&

surpreendida por as lgrimas ni Birem

- O ue se apssa comigo ue no sou capa de chorar=

da mesma orma ue se me inormassem

Qno inormam& uem poderia inormar-me=S

- O teu irmo aleceu

no sou capa de chorar& Nco pairando sobre as lgrimas Bendo-

as acol no meu corpo& prontinhas a sair& transparentes& esKricas&

pedindo-me

-<em

e eu incapa de apanh-las& apanho plpebras secas& a

eCpresso ue no muda salBo os dentes ue se alargam e crescem&

me mastigam& me engolem

- ProRbo-os de engolirem as minhas lgrimas ouBem=

apanho os lbios na minha orelha

- <ieste Ber-me miJdo=o meu pai a sepultar o castanheiro numa pressa de Jria& uma

das gaBetas do ar tombou no cho e na gaBeta as minhas cartas de

namoro to estJpidas& promessas& pedidos& um retrato da tropa com

uma dedicatória

QimbecilS

ue me indigna lembrar-me& eCageros

Qsó eCagerosS

nunca gostei de ti& tinha medo& deseaBa ue a +Wndida- Menino

contigo no eCagerei +Wndida& por muito ue me esorce as

lgrimas ue te pertenciam no consigo apanh-las& longRssimas&

conorme as lgrimas da Biinha de toldo longRssimas dela& nem

seuer me solicitaBa& ordenaBa& uma camponesa& uma criada a

ordenar-me a mim

QBocV tinha rao me& educam-se a chicoteS

- O doutor leBa-o daui e a esposa no Bai saber conta-lhe ue

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desmaiou com os colegas o cora@o as artKrias

QeducaBam-se a chicote atK os tropas inBentarem um golpe de

Estado para estragar o paRs de orma ue em lugar de criaturas como

deBe ser& cruBadas

- " licen@a

gentinha mal educada& bruta& ue sorte o teu pai no assistir a

isto& a minha me a eneitar-lhe a campa com Basinhos& acintos

- #oi-se embora o egoRsta e eu ue os ature senhoresS

a esposa ue no soube& o hospital& a morgue& o mKdico a

aceitar& rubricando papKis

- $o se inuiete ue estoirou aui d-se um eito

no hospital uma crian@a num banco& essa sim com lgrimas

autVnticas& cuidaBa ue duas plpebras para uma Jnica lgrima e

estaBa errado& se lhas pudesse roubar daBa-as ao meu irmo de

presente

- Ora aR tens o meu desgosto maninho

na anela da morgue TorFes de estuue& a@aates& pombos

espreitando-nos do seu sono pelos reposteiros suos das penas& as

copas sem se destrin@arem dos prKdios de modo ue no se percebiaa uem pertenciam as olhas& em ;ouBeia& ao escut-las& a certea

ue o meu pai a chamar-nos& cada galho a sua Bo& os seus tiues

Qauele moBimento de ombros antes de alarS

uma espKcie de sorriso ue no chegaBa a sorriso e no entanto

ali

- A sKrio ue tens tido uRo miJdo=

tenho tido uRo pai& porto-me como deBe ser no se alarme& o

meu sogro numa mesa de pedra& a gente U espera U entradaconorme se esperaBam as rolas& desde as uatro da manh& nos

buCos& atK ue passada meia hora os nossos corpos buCos tambKm& a

incapacidade de deslocar um centRmetro as raRes dos pKs uando as

primeiras gargantas& os primeiros Boos& a minha mulher

- $o pode ser

a cara ue suplicaBa

- Mente-me

continua a suplicar

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- *empre me mentiste no oi continua a aldrabar-me K tudo o

ue te pe@o mente-me

imaginas ue te mentia e no mentia& para uV mentir& o teu pai

numa mesa de pedra K Berdade& no no ardim +onstantino& no com

os colegas do emprego& o teu pai

a chibatinha uase U altura do meu peito e a descer sem or@a& o

pessegueiro desproBido de rutos& o eitor

- $o uis tV-los

diem ue as rBores sentem como a gente& possuem uma

inteligVncia ualuer& adiBinham a morte delas& a nossa&

compreendem& a chibatinha a soltar-se da mo e ele sem dar K& to

cansado

- <ieste Ber-me miJdo=

nós nos penedos da serra& na Binha& no milho& uem se preocupa

com o pomar& coloca uma porta noBa na adega& a criada ue

mandaste entrar no meu uarto& de pK U minha rente& eu mais

nerBoso ue ela

Qela nerBosa=S

tree anos ulgo eu& catore& a criada Binte e seis& Binte e sete&no morena como as outras& ruiBa& magrinha

- #oi o seu irmo ue me disse menino

uma ligadura no polegar com uma mancha cor-de-rosa de

sangue

Quma tesoura ou issoS

lembro-me melhor da mancha e da ligadura ue das ei@Fes

desculpa& a minha me no rKs-do-cho& a carro@a a guinar unto U

coinhaQaltaBam eiCos nas rodasS

como K ue a@o com ela& conBerso& desabotoo-lhe a arda& no

caso de a abra@ar abra@o-a como& conBerso de uV& tenho medo& se a

desabotoar& ue se encabrite

- O ue K isso=

e se eCalte comigo& o meu irmo no estbulo em lugar de audar-

me& a irm da minha mulher

- %o palerma desiste

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no tinha nada para oerecer-lhe a no ser um selo da !nglaterra

ou um selo do +ongo& o das giraas e dos imbondeiros mais bonito

ue a rainha& tirei o selo do lbum

- $o gostas=

a criada de selo na palma sem se atreBer a recusar& eu na

esperan@a ue o meu irmo Biesse do estbulo salBar-nos& abra@ar&

desabotoar& no necessitas de conBersar ue tontice& conBersas K

com a spessoas da amRlia& sentados U mesa& de ue assuntos se

conBersa com uma parola ue serBe os pratos miJdo& molhas o

mindinho na lRngua& entregas-lhe o pó de eCcitar as mulheres

- ProBa este dedo parola

e no te incomodes a audar com a mo& o meu irmo agarrando-

me o bra@o com or@a a eCaminar o lbum onde altaBa a giraa

- Auele selo do +ongo=

o ue ele me tinha emprestado& no dado& o meu bra@o ue

estalaBa& eu a BeriNc-lo ao largar-me

- Auele selo do +ongo=

por ue motiBo no Ncaste doente nessa altura& a chibatinha a

soltar-se& o ue ulgaBas um sorriso e no mais ue uma careta- <ieste Ber-me miJdo=

dei por ele a discutir com a criada ruiBa& isto K a discutir

soinho& a criada ruiBa muda& a ligadura cor-de-rosa ue no hei-de

esuecer& a minha me

QmeinhaS

despediu-a

- oubaste o selo ao meu Nlho

assisti do porto a ela a subir para a camioneta com a mala& omotorista audou& os castanheiros ue o meu pai no sepultara

desagradados comigo& se a encontrasse agora oerecia-lhe& sei l&

uma tesoura ue no lhe Nesse mal

- "esculpa

no

- "esculpa

o

- "esculpa

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para as pessoas da amRlia& no se di

- "esculpa

a uma parola ue serBe os pratos U gente& entregaBa-lhe a

tesoura

- ;uarda isso

e ao contrrio do ue eu esperaBa os castanheiros mais

desagradados ainda& ralhar com os castanheiros

- O ue pretendem BocVs no me macem

Qde orma ue o meu pai ue sem rao alguma concordaBa com

eles a erguer a ca@adeira e a matar-meS

eu para a minha mulher imaginas ue te mentia e no mentia&

para uV mentir& o teu pai numa mesa de pedra& no no ardim

+onstantino& no com os colegas do emprego& o teu pai

Qo meu pai sempre do lado dos camponeses no se percebe

poruV& gentinha ue nunca Biu o mar& uase uns bichos& gosta mais

dos bichos ue de mim

- #altaste-lhe ao respeito miJdo obrigaste a tua me a eCpuls-la

uis traer a criada de Bolta e a minha me no deiCou& uma

 Bigarista& uma ladra& durante uma semana o Belho como se eu noeCistisse& da Jnica Be ue eCisti oi para me cuspir no corredor

- Xs um pulhaS

o teu pai com a amante na hospedaria da ;ra@a

Qtinha rao pai sou um pulhaS

no bem uma hospedaria& uma dessas coisas U hora& recordas-te

por acaso da Biinha de toldo

Qsou um pulhaS

a cadeirita de lona& o crochet& o Bendedor de bolos ue a tro@aBaNngindo pis-la ou derramar-lhe o cesto a piscar-nos o olho&

recordas-te da ineli na esplanada a seguir ao antar& o mesmo

 Bestido& a mesma timide& um reresco& uma gua& uma coisa barata&

um golinho ou a aer de conta ue um golinho para poupar na

bebida enuanto ondas amarelas& brancas& Bermelhas

enuanto ondas no amarelas nem brancas nem Bermelhas ue

ideia& isto U noite cara@as& as ondas cor de tinta na praia& uns

pontinhos de lu& ao aastar-me do teu corpo tu

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- $o te apete@o conessa

eu um mentiroso& um pulha

- $o K isso K um dente uma espKcie de pesol atrs

no acendas a lu para espreitares a boca ue no se nota& como

poderia notar-se& a lRngua& a gengiBa e alKm disso no Ks mKdico& no

sabes& garanto-te ue uma espKcie de peso l atrs& o teu pai com a

 Biinha de toldo Us uartas-eiras na tal hospedaria da ;ra@a& no um

hotelito& uma coisa a desaer-se& um barraco& no imaginaBas pois

no& no acreditaBas pois no& o teu pai

Qo meu pai a cuspir-me no corredor

- Xs um pulha

e os castanheiros de acordo com ele& o pessegueiro& ue eu

supunha do meu lado& tambKm& o meu irmo no estbulo e o meu pai

- "ois pulhas

a mat-lo igualmente& somos dois pulhas maninho

- <ocVs no Balem um chaBo

no Balemos um chaBo& a chibatinha ue se desprende da mo

um castigo de "eusS

o teu pai com a Biinha de toldo em *intra no Torir das accias&nem para ele prestas sabias& tu desaeitada& tu gorda& alguma Be ele

contigo no Torir das accias& se caRsses na asneira de

- $o se interessa por mim pai=

Qo pessegueiro ue eu supunha do meu lado desiludido comigoS

ele a aastar-se de ti na direc@o do problema das damas porue um

dente l atrs enuanto com a Biinha de toldo nenhum dente& o teu

pai so& as accias de *intra perto de *eteais em abril& a irm da

minha mulher& de oelhos na boca& indeesa no so& a mobRlia incapade consol-la& os reposteiros inJteis& mostrar-lhe ue as coisas no

acabam uando a gente pensa ue ideia& supomos ue terminaram e

aR esto elas BiBas& a irm da minha mulher

- $o consegues calar-te=

e dou rao ao meu pai& a sKrio ue lhe dou rao& no Balho um

chaBo& sou pulha

Q- A me no te uer cS

no consigo calar-me& ;ouBeia U minha rente& as casitas ue

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come@aBa a Ber ao longe na encosta da serra& a nKBoa da manh em

agosto e uma impressoinha& de uem nem me dei conta ao

princRpio& a moBer-se por dentro& alegre e triste acho eu& uma

eCalta@o& uma angJstia& alta de cheiros& inBernos& angas&

recorda@Fes& a +Wndida ue perdoaBa tudo e me deiCaBa umar& no

se ueiCaBa aos meus pais a cretina& a culpa de ser pulha K tua

+Wndida e a +Wndida uase a beiar-me a mo

- Menino

deBias golpear-me com um sacho como o coronel e ao tio

 Aruimedes porue no consigo calar-me& o caiCo na sala de antar&

o coronel compareceu no Belório& de colarinho preso com um alNnete

de prata& persignou-se unto das Tores& dobrou-se para a minha me&

as minhas tias

- A Bontade do AltRssimo sempre acima das nossas com o auCRlio

da #K entenderemos os *eus desRgnios um dia

o meu pai a chamar-nos

- +umprimentem o senhor coronel rapainhos

Qno pulhas& ue engra@adoS

o coronel dedos Bagarosos& breBes& as rKdeas da mula atadas nacancela& no consigo calar-me& a sobrinha hoe corcunda& de bengala&

a entrar na igrea& num internato em <iseu& um ueiCal escuro

meditando

- O Aruimedes uem era=

no sei uem era& um senhor loiro& maestoso& a Bigiar a limpea

do braso na achada& Bolta e meia um rebu@ado saRa-lhe do bolso

- AproBeitem

eis o ue lembro dele mais a Bo condescendente a pingar sobremim

- AproBeitem

o ruRdo das botas do coronel ao ir-se embora da sala& o meu pai

a acompanh-lo

- Por aui por aui

as pKtalas do pessegueiro ue o Bento dispersaBa& a ameiCoeira

mais tarde

Qou mais cedo=S

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o meu irmo a eCibir-me a oice

- ,m dia palaBra de honra uebro as patas U mula

pó e olhas no lago em ue antigamente peiCes& cada Be menos

dinheiro deriBado as partilhas e ao meu pai no +asino& eCplicaBa U

minha me& com o empregado a leBar-lhe a mala U esta@o& ue

negócios& terrenos

- %enho de conBencer o banco em Lisboa

Qem ue altura me segredaram ue o coronel ia comprando as

aendas& os prKdios& a hipoteca da casa

no consigo calar-me

em ue altura o coronel dono dele& nosso dono=S

regressaBa de Lisboa sem sobretudo& sem mala

- Perdi-os

QaNnal no apenas eu ue minto& ue aldrabo senhor&

proBaBelmente herdei de si& proBaBelmente o seu sangueS

pegaBa na ca@adeira& sumia-se na mata Us rolas ora da Kpoca

das rolas& os estampidos respondiam-se de pinhal em pinhal& ia urar

ue disparaBa contra ratos& ouri@os& contra a sua sombra no cho a

acus-lo- Xs um pulha

a decidir& resoluta& num desgosto dele

- $o mereces BiBer

Qem ue altura me inormaram ue no pertencRamos a nós&

pertencRamos a um alNnete de prata a echar um colarinho& oi por

esse motiBo no oi pai ue BocV

- +umprimentem o senhor coronel rapainhos

 BocV o camponVs& o criado& pode matar com o sacho a minhamulher& os meus Nlhos ue eu aceito& ue remKdio aceitar

as pKtalas da ameiCoeira mais tarde

era isto pai& conere

no consigo calar-meS

a sobrinha do coronel a beliscar-me a bochecha

- Pareces-te com o teu tio

e also& no pare@o. o +orreio& sem a dona +ecRlia& transormado

em caK&a s escadas imaginadas por mim com mais degraus& mais

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largas e aNnal estreitinhas& ceis de galgar& o meu irmo enrolado

em promissórias& dRBidas

Qas pKtalas

da ameiCoeira rebentaBam mais tardeS

a bater a chibatinha na anca

- A me deitada l em cima

a me& ue oi rica& l em cima& BocV deu cabo dela pai& no

lhe compreendi o aedume& acho ue a perdoo agora& BocV no

terra@o a beber& bebeu as aendas uma a uma& a colheita do ano ue

 Bem& o aeite& o meu irmo a mostrar-me as cartas dos credores

- Olha isto

os registos de propriedade em Mangualde& na ;uarda& a uinta

de Pinhel ue perdemos& o solar de +anas ue no nos pertencia&

nem uma carro@a& uma alaia& uma cómoda ue se mantiBessem

nossas& as óias da minha me eBaporadas no +asino& dispare contra

si mesmo& sea um homem senhor& desculpe ue lhe diga

Qe digo com respeitoS

mas BocV um pulha como nós pai& BocV um pulha paiinho& por

sua causa o meu irmo de Herodes para Pilatos a pedinchar& a urarQo ue lhe deBe ter custado& percebe=S

- Para o ano ue Bem no mCimo satisa@o essa dRBida

por sua causa o meu irmo incapa de segurar a chibatinha

Qas pKtalas da ameiCoeira cessaram de nascer& o sulato to

caroS

- <ieste Ber-me miJdo=

 BocV no bebeu apenas as aendas& as colheitas& o aeite& bebeu

a minha me e de caminho& sem mudar de copoQpara uV mudar de copo connosco=S

bebeu-nos igualmente& pensando melhor no era a mim ue a

minha me detestaBa& era a si atraBKs de mim& as sobrancelhas uma

sobrancelha apenas ue media& aBaliaBa& condenaBa

- %ens ualuer coisa do teu pai no sei o uV

mesmo depois do tiro de ca@adeira na ceBada& apesar de no

eCistirem rolas nem perdies

Qno consigo calar-meS

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a gente U sua espera para o almo@o e um tiro de ca@adeira na

ceBada& os melros esparBoados& o meu irmo a imobiliar-se no

escritório entre duas acturas& os olhos brancos& sem pupilas& e no a

 Bo& um som nele a aBisar

- Espera aR

o meu irmo sem olhos correndo uintal ora& a minha me a

impedir-me de o seguir atraBessando o cotoBelo na porta

- $o te meCas

bastaBa-me empurr-la e no empurrei& permaneci Ntando-a

apesar de BocV raca coitada& sem energia meinha& os passos do

meu irmo no uintal e eu parado com ualuer coisa do meu pai

nas ei@Fes& nos tiues& dado ue BocV conundindo-me com ele& a

sua desiluso& o seu ódio e talBe nem desiluso nem ódio&

serenidade& alRBio

- %inha de ser assim no era=

no leBe a mal dier isto mas se com apenas um tiro nos

matssemos a ambos& eu de bru@os na ceBada ao lado do meu pai ou

ento& de bru@os na ceBada& o meu pai mais um prolongamento dele&

eu senhora& tenho a sensa@o ue se alegraBa meinhaQno Alenteo os corBos

no conhe@o o Alenteo& sei ue calor& misKria& passei a minha

inWncia na serra& no me entendo com corBosS

sem o meu pai e eu BocV menos amarga& contente

Q- A me no te uer c miJdoS

 BocV e o meu irmo em pa em lugar da ansiedade das dRBidas& a

casa pertencia-lhe& a rac@o em Pinhel pertencia-lhe& Mangualde e a

;uarda pertenciam-lhe& o pai chegou de Mortgua para adesinuietar conesse& declarou ue o pai dele engenheiro e also&

proessor primrio acho eu& nem um retrato desse aBY eCistia& teBe-o

de uma modista& no da esposa& o meu pai atK U tropa num uartinho

com a me dele em Lamego& maneuins de pano& erros de engomar&

moldes& o meu oai mentiras& aldrabices tal como eu aldrabices&

mentiras& imaginas ue te mentia e no mentia

Qno consigo calar-meS

para uV mentir& o teu pai numa mesa de pedra K Berdade& o

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meu pai& sem metade da testa& unto U ca@adeira na ceBada& o meu

irmo de mos nos bolsos a pasmar para o sangue& no corBos& um

gaBio algures& uma aBe de rapina com um pinto nas unhas& o nari

do coronel igual ao bico delas

- $o me espantes a mula garoto

na tarde em ue o meu irmo o esperou com a oice& sob o bico

do gaBio as pestanas a baterem

- $o me espantes a mula

o alNnete de prata do colarinho com um pingo Bermelho& um

segundo pingo no peito& a mula de reio pendurado deu com o

traecto do regresso sem necessitar ue a leBassem& um terceiro

pingo na sela& a boca do coronel a eCplicar U ;uarda

- ,m cigano a caminho de Espanha desistam

e por conseguinte& na ideia de curar as minhas chagas& o teu pai

cunhadinha na hospedaria da ;ra@a com a Biinha de toldo& a

amante& no enNes os oelhos na boca& no te escapes de mim& no

- +ala-te

 Bisto ue no consigo calar-me& K a tua Be de chorar& a minha

mulher- $o pode ser

e o pai dela resolBendo o problema das damas numa gaBeta do

ar

Qas brancas ogam e ganhamS

eCperimentando solu@Fes aogado no ornal& recome@ando&

insistindo& o meu pai

Qno pretendas enganar-meS

no com a Biinha de toldo& com os colegas do emprego& todas asuartas-eiras com os colegas do emprego desde ue se reormaram&

um golpe de oice atK Us BKrtebras do pesco@o senhor coronel& aR

tem& a chibatinha& agora sim& a alcan@ar-me os ombros& a cara&

decidida& Nrme

- <ieste eBr-me miJdo=

o meu irmo no deitado no so Bermelho& no so a aNlhada do

padre a reunir a saia& a blusa& os sapatos

Qas coCas dela to redondasS

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murmurando osse o ue osse ue no logrei ouBir&

proBaBelmente

- $o se trata do ue tu pensas peueno

uma desculpa assim parBa& no gKnero de

- E um dente uma espKcie de peso l atrs escusas de espreitar

ue no se nota daR

proBaBelmente nem seuer ele& o pessegueiro

- Xs um pulha

por sorte minha demasiado distante para o entender em Lisboa

sobretudo porue um Bentinho no uarteiro da morgue a dispersar

as palaBras e K noite& uma Baranda com TorFes de estuue& a@aates&

releBos e sob os releBos eu numa mesa de pedra sem ue a +Wndida

me estendesse o aBental para me esconder nele& no permitindo ue

 BocVs se apercebessem das lgrimas.

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ÚLTIMA NARRATIVA 

*e calhar %aBira no eCiste. $em *intra. H uanto tempo isto

oi= %erei inBentado tudo= *onhado tudo= "emoro na resposta mas

penso ue no: completam-se trVs anos para o mVs ue Bem& no dia

one& ue ele morreu. $unca mais oi U ;ra@a: para uV= E no

entanto creio no ter inBentado porue me lembro da hospedaria& da

 anela diante da ual nos sentBamos& U espera. AchaBa eu ue U

espera embora me perguntasse de uem dado no recebermos

 Bisitas& nenhuma Bo no corredor

- " licen@a=

apenas passos& conBersas ue prescindiam da gente& nos

ignoraBam. OuBiram alar de nós= *aberiam uem Kramos= "uBido

mas pode ser ue os inormassem do casal de idade Us uartas-eirasno primeiro andar& educados& tranuilos& partindo antes da noite&

discretos&

se calhar um bocadinho ridRculos& pelo lado das rBores& primeiro

ele& depois ela& tomando aten@o aos degraus& de parede sempre ao

alcance dos dedos& imobiliando-se a descansar numa esuina

aendo de conta ue se interessaBam por uma montra& um gato& o

elKctrico iluminado& uase Baio& a descer para a >aiCa. AlguKm

ocupa o nosso uarto agora& nosso uarto K como uem di& o uartoue alugmos& obserBando por nós a trepadeira no caiCilho:

continuar ali& moBendo-se deBagarinho a assinalar o Bento= ulgo

ue sim: certas coisas& nunca as ue supomos mais interessantes&

nunca auelas ue nos comoBeram& permanecem intactas: a

bailarina a girar numa mesa de pK-de-galo por eCemplo& um

empregado de ue no recordo as ei@Fes a caBar na uinta& esueci

o nome dele e em contrapartida no me esueci da enCada nem do

rego onde semearam batatas& por Bia do rego chego a sentir uma

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crispa@oita na terra ue h em mim e alis aumenta& crispa@o K

eCagero& direi melhor um regoio brando& uma alegria plida& eu

uase só terra hoe em dia& umas erBas dispersas& umas pedras e no

entanto& para surpresa minha& meia dJia de mJsculos ue teimam& o

espasmo da pele a arrebitar-se ao sol& o olho esuerdo& praticamente

intacto& Bigiando& passeio de Be em uando no >eato presumo ue

nem seuer por saudade e acabou-se& a loa do otógrao acabou-se& o

ponto nem um rolo de cordas para amostra uanto mais um sueito

a umar& mantVm-se restos das hortas de proBRncia& uns pKs de

a@aro& uma oliBeira& uando eu doente em +oimbra daBa aten@o

aos pinheiros& no aos troncos em si& Us respira@Fes& aos apelos& ao

sorimento das cómodas uturas a protestar na madeira& passeio no

>eato sem lhe sentir a alta& no dei por gaiBotas em +oimbra e

uase no dou aui& em +oimbra pardais& tordos& aui no o cheiro

da gua mas dos cani@os& coisas insigniNcantes& palhinhas& uma bota

muito direita e uase noBa anteontem& liCos ue tocam na muralha&

recuam ou nem chegam a tocar& detVm-se eCactamente antes de

tocar& oscilam& Bo-se embora& encontro-os de metros abaiCo& na

direc@o da o& a oscilarem sempre& passou-me pela cabe@a pegarnuma Bara e arpoar a bota& coscuBilhei em torno em busca de um

anol& um pau& medi os riscos de uma ueda ou isso& apenas um casal

com uma crian@a ue nem dariam por mim& a crian@a num triciclo e o

casal atrs& proBaBelmente no os pais ou só o pai ou só a me Bisto

ue se beiaBam& pondo este trecho como deBe ser a crian@a antes&

saindo do triciclo para apanhar osse o ue osse e leB-lo U boca ou

suar-se num charco e a me ou o pai& distraRdos pela companhia e

por conseuVncia incapaes de me audarem& a seguir& no eCcluo apossibilidade de a crian@a me apontar com o dedo& se debru@ar

inclusiBe para assistir ao aogamento ue calculo no muito longo

deriBado Us minhas limita@Fes motoras& isto K um remeCer breBe&

uma palaBra conusa se tanto& no de pedido de auCRlio nem de medo&

uma palaBra somente& no concebo bem ual& a Jnica ue criei ou a

minha eCtin@o me oereceu

Q- AR tens uma palaBra só tua ue ninguKm escutarS

a hipótese para ue no me inclino& deBido U espessura do lodo&

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de uns cRrculos enNm& a crian@a logo distraRda por um noBo charco

ou uma noBa descoberta no cho& um caro@o& um prego& pareceu-me

entender ue a me

Qou o paiS

a ralharem com ela

- Larga isso

uma ordem ilustrada pela imagem da crian@a a torcer-se de

cólicas por Bia do prego unto ao triciclo tombado& eu daR a pouco de

metros abaiCo na direc@o da o chegando-me U muralha e recuando

a oscilar& a bota& aNnal minha& a dan@ar com as palhinhas& se calhar

%aBira nunca eCistiu nem a praia nem o Bendedor de bolos nem a

miJda de muina otogrNca a escapar-se de um homem ue me

olhou um instante e ao olhar-me um instante o tempo coagulou-se&

parou& a me

Qou o paiS

da crian@a a eCibirem-lhe o caro@o

Qou o pregoS

dotado de propriedades tremendas& diRceis de imaginar num

 Bolume to peueno- 9ueres morrer=

U medida ue eu pensaBa

- %aBira=

e os toldos se me desBaneciam da ideia& NcaBam as respira@Fes e

apelos dos pinheiros em +oimbra& o sorimento das cómodas uturas

a estalarem U noite& se %aBira osse Berdade seria Berdade um

pensoita longe das esplanadas e dos hotKis e da areia& no eCtremo

oposto ao mar em ue só a meio do sono uma Baga& acordaBasonhando ouBi-la& pedia

- epete

e Baga alguma& silVncio& eu desperta& soinha& resistindo a

adormecer interessada no mar& talBe o sinta& talBe Benha e em

lugar do mar percebia& desencantada& os pinheiros de +oimbra& os

abetos da inWncia& os legumes sempre deseosos de aten@o

- E nós=

se caRsse na asneira de lhes dier

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- $o so BocVs K o mar ue me apetece

uma eCclama@o de oensa& um meneio angado& a certea ue a

eCclama@o de oensa a impedir-me uma onda& a Jnica em toda a

noite ue se ralou comigo& eu danada com os legumes

- $o me impe@am a onda

a minha me

- O ue oi=

e no podia responder-lhe Bisto ue se me ueiCasse dos

legumes deendia-os logo

- +ala-te

a pensoita

Qse K ue %aBira oi Berdade e *intra e a hospedaria da ;ra@a da

ual me escapaBa antes da noite pelo lado das rBoresS

no eCtremo oposto ao mar& piteiras& casas Belhas& a linha do

comboio de Espanha em ue talBe no se BiBa de maneira dierente

e portanto triciclos& pregos& uma mulher ue se aoga& no bem uma

pensoita alis& o andar de um reormado ue desde o alecimento

da esposa& por necessidade de alguKm capa de chamar a

ambulWnciaQe os legumes& sem descanso

- E nós=S

se lhe der um desmaio alugaBa uartos U Kpoca o ue me leBa U

pergunta de como aria no inBerno sem um Jnico hóspede e o mar

ento sim. nas suas ebres de outubro& entrando-lhe porta dentro de

mistura com a lembran@a da esposa a engomar na coinha&

proBaBelmente instalaBa-se numa cadeira unto U porta da rua no

echada U chaBe& no trinco& atento ao cora@o e U cabe@a dado serpelo cora@o ou a cabe@a ue as desgra@as come@am

- *e me der um desmaio abro-a logo

com um prato de sopa no colo e uma almoada para os

incómodos da noite nas alturas em ue o euinócio desinuieta as

marKs e espumas negras leBam os toldos para caBernas onde&

segurando-os nas patas dianteiras& os deBoram rasgando-os&

largando cordas e peda@os de pano ue sobeam no ue sobea da

praia& ignoro porue no aem o mesmo com os legumes da uinta

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impedindo-os de me incomodarem com irrita@Fes& ciJmes

- E nós=

no me apare@a a deendV-los me

- +ala-te

uando sabe to bem como eu ue K Berdade& BocV& o meu pai e

o empregado a semearem-nos& a regarem-nos e eles de imediato

- E nós=

no para os outros& para mim ue sempre ui prudente e me

mantinha aastada

- E nós=

pegando-se U minha pessoa conorme o reormado da pensoita

em %aBira a desabotoar o punho da camisa& a estender o bra@o

conBidando-me a ue eu dois dedos na pele& conrontando-lhe as

batidas do sangue com o relógio

- <ea-me se este pulso est bom

o retrato da esposa impossRBel de perceber dado ue uma arra

de Tores a cobri-lo e entre parVntesis& ue estamos nisso& deBe ter

eCperimentado o pulso durante trinta ou uarenta anos& de olho no

ponteiro dos segundos& Brias ocasiFes por dia& emitindo no Nnal decada eCame um parecer ue com o tempo se oi tornando mais

sucinto atK se transormar num grunhido ue em Be de contar o

sangue se limitaBa a aguardar ue o ponteiro& de sJbito lentRssimo&

compeltasse a Boltinha a Nm de aconselhar& aastando-se do bra@o

- Abotoa-te

no instante& uem sabe& em ue a Baga ue sempre esperei& ue

mesmo hoe& perdoe-se-me a inconNdVncia& espero& a ue daria U

minha Bida uma rao ue me escapa e ue a decidir Bisitar-me meaudar a echar este liBro

Qsou eu ue echo este liBroS

com a palaBra Nm& ou sea uma palaBra no de pedido de auCRlio

nem de medo& uma palaBra somente& uase nem um som& uma

agita@o breBe deriBado Us minhas limita@Fes motoras& uns cRrculos e

pronto como no passeio do >eato

Qa crian@a& o tricicloS

e nada mais na pagina Baia& talBe uma bota entre palhinhas&

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chegando-se e recuando sem tocar na muralha& a crian@a do triciclo

a apontar com o dedo o sRtio onde deiCei de estar consoante %aBira&

*intra e o ardim +onstantino deiCaram de estar& Ncou no a

hospedaria da ;ra@a mas um chapKu de cereas de eltro sobre uma

cama deserta e um cacto num muro& um chapKu ue me comoBeria

se me comoBesse ainda& se persistisse em mim algo capa de respirar

no gKnero de um remorso& uma dor& eu uase satiseita obserBando o

chapKu

- Olha um remorso uma dor

e a crian@a a Ntar-me sem abandonar o triciclo& por um instante

ela e eu da mesma idade& entendendo-nos& atK a crian@a resolBer

disar@ar-se de crian@a metendo o caro@o ou o prego na boca e

recome@ando a pedalar na plataorma de cimento para longe de mim&

no sentido onde o ponto outrora com os seus restos de barcos& os

seus rolos de corda& os bebKs ue em breBe gritariam de ome

alongando os pesco@os nos ninhos das molduras& o senhor ao colo da

me

Qnunca lhe aceitei o dinheiro& como poderia aceitar-lhe o

dinheiro=Snuma otograNa de estJdio em ue uma princesa de la@arote no

cabelo remaBa num lago

Qse pudesse terminar o liBro imediatamente& se me dessem

liberdade& se dependesse de mim terminaa& detesto o ue contoS

remaBa num lago& no insistir na descri@o dos telFes

QpoupaBa tanta coisa desnecessria a tanta gente se terminasse

iS

a ganharem pó a um cantoQa partir do momento em ue cheguei ao chapKu sobre a cama

 Baia para uV continuar=S

numa caBe entaipada& a insRgnia Photo oIal Lda no sobre a

montra& no cho& conserBaBa as cartas dele na minha gaBeta em

+oimbra& hoe

QescreBia-meS

resolBi em menos de uma hora um problema de damas& orgulhe-

se de mim por aBor& e eCplicaBa-me com setas de Brias cores os

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moBimentos das pedras& na Jltima carta& a seguir ao problema dos

domingos& mais diRcil ue os problemas da semana& uma pergunta

em letra miudinha& medrosa da resposta

a menina aleceu no oi=

e a despedida cheia de noBe horas& o nome completo& os

legumes ultraados

- E nós=

o sacho do empregado no a caBar-me o corpo& a aleiar-me os

pulmFes& a bailarina ergueu o bra@o e parou& ergueu o bra@o mais

um pouco& entortou-se preocupada

- #aleceste a sKrio=

e se aleci apontem-me depressa com o dedo onde deiCei de

estar dado ue com o tempo tudo mais abaiCo no sentido da o&

aproCimando-se e aastando-se sem tocar na muralha conorme as

recorda@Fes se aproCimam e aastam& insigniNcantes& miJdas& eu a

perguntar-me

- *ero minhas=

indecisa uanto a ele a espreitar-me U socapa em %aBira uando

a amRlia entretida com os bolos ou a Bisitar comigo as accias de*intra& Tores amarelas& disso recordo-me& uma Bereda em ue um

negrume perpKtuo& recordo-me de me sentar num banco entre os

pltanos da esta@o& aceitando o reTeCo num Bidro

- ANnal sou assim

to dierente da ue morou com os meus pais e se escondia no

uarto deriBado U enCada ue lhe amea@aBa o Bentre enuanto na

igrea deserta as imagens dos santos a condenaBam ao !nerno& eu a

pensar se calhar o !nerno K isto& uma maestade sombria& se calhar o!nerno K no haBer mistKrio& uando eu era peuena daBam corda U

bailarina& uma musiuinha desaNnada acompanhaBa os rodopios e a

minha aBó a lamentar-se

- $o aguento este barulho

a musiuinha eCausta uma nota aui& outra ali& ulgBamos ue

muda e uma nota perdida& mesmo depois de muda tinha a impresso

de escut-la

Qcomo echar este liBro=S

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e no bem uma nota& passaBam-se minutos& a gente descansados

e Bai daR& sem aBiso& nós U mesa a comermos e desmesurado U or@a

de microscópio

Qos garos a Tutuarem& a minha aBó de mo no peitoS

um pinguito de som& um segundo pinguito a meio da noite

enchendo a casa& apesar de to tKnue& num sobressalto de estrondo&

a minha prima a impedir o marido de esmagar com o tacho a

bailarina oblRua& sem ei@Fes tirando o cantinho da boca ue

utiliaBa para comunicar comigo& se por acaso eu deronte da mesa

de pK-de-galo a minha me logo

Qcomo echar este liBro=S

- *ai daR

Qa ma@ada com o echo do liBro K ue no basta uma agita@o

antes do silVncio& esta bota uase noBa& estas palhasS

no osse ela decidir-se por um impulso oCidado& necessito antes

do silVncio de uma palaBra como deBe ser& no um pedido de auCRlio

nem um sinal de medo& uma palaBra somente

e o resto da pgina branca& o chapKu das cereas de eltro

orgulhoso de mim& uma palaBra semelhante a um pinguito de somue no incomoda ninguKm por se saber o Jltimo& a gente U mesa em

sossego& o tacho na toalha& a minha aBó tranuila

- +ontinua a Balsar se te der gana o ue me importa=

por conseguinte& onde K ue eu ia& acho ue no impulso oCidado

ue mal o mencionei me trouCe logo U memória os pinheiros de

+oimbra& o senhor perto da cerca

Qdiia-meS

na esperan@a de lu numa anela e nenhuma lWmpada nunca&lWmpada& alis& ue se eu acendesse hoe ele no podia Ber& Beo-a no

seu lugar& empurrando sombras para o canto da sala& a minha& por

eCemplo& entre o armrio e o baJ e ue daui a bocado& com a Binda

da manh

Que horas so neste momento=S

come@ar a diluir-se transormando-se em cali@a ao ponto de me

interrogar onde estou atK ue o sol a traga de Bolta alongando-a no

cho& os pinheiros de +oimbra ou a trepadeira da ;ra@a em abril&

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agulhas& gaBinhas sem energia ue no prendiam o ar& o ouriBes

- Xs serBida=

e a minha me obrigando-me a caminhar mais depressa

- $o respondas

no& enganei-me& isto no comigo& com a da arBKloa e da praia& a

ue me ordenou

- %u K ue echas o liBro

a ue manda na gente ou a uem mandaram ue mandasse na

gente& um ulano ue no conhe@o a desesperar-se connosco& a

alterar& a trocar-nos

Q- $o K assim ue gaitaS

a Boltar ao princRpio& o ulano ue decidiu no h muito& acho eu

- Es tu ue echas o liBro

e embora arrependido de eu a echar o liBro continua por

teimosia a escreBer& ou sea ue eu neste andar no muito longe do

>eato esperando uem no Bir ou no esperando nada& no ouBindo

nada& no alando& eu com a bailarina na mesa de pK-de-galo para a

ual nem olho e a ue nunca dou corda& otograaram-me com ela no

dia comunho solene na Kpoca em ue a musiuinha agradaBa Uspessoas& o marido da minha prima trouCe-a da eira em Pombal onde

ela com mais trinta& umas de saia aul& outras de saia Berde& sobre

um pano no cho& o marido da minha prima sem echar a porta

Qsinal de entusiasmoS

desembara@ou-a do papel de seda& de um segundo papel de

seda& de um terceiro papel& no de seda& uma olha de ornal

Qas brancas ogam e ganhamS

a chamar-nos- <eam isto

deu sete ou oito eitos com uma espKcie de chaBe& mandou ue

recussemos esBoa@ando mos

- Esperem só

desamarrotou-lhe a saia com a pontinha dos dedos

- HaBia aul e haBia Berde

a minha prima

- %inha preerido o Berde

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e a bailarina& estremecendo a meio do percurso numa

resistVncia ualuer& um aleio do mecanismo& um espigo& um

ressalto& principiaBa a moBer-se& o marido da minha prima para a

minha prima num ódio manso& demorado& demasiado manso e

demasiado demorado em ue se adiBinhaBam gritos& um pontapK

numa cadeira& uma garraa a tombar

- %inhas preerido o Berde poruV=

e antes ue a minha prima enumerasse raFes& U medida ue a

mJsica no ainda pinguinhos& uma chuBa de notas& essas ue na

primaBera& uando por acaso uma nuBem& cantam nos gerWnios& U

medida ue a mJsica se ia tornando mais rpida& mais clara e a

bailarina trepidaBa no ressalto& inclinando-se para a direita e para a

esuerda de eCpresso impassRBel

Qde inRcio olhos& lbios& as ei@Fes completas& cerdas nuns uros&

uatro ou cinco& a imitarem cabeloS

a bailarina uma sacudidela no aleiio do mecanismo

Qcomo eu Us Bees por caus desta coCaS

antes de o ultrapassar numa guinada& a minha prima&

arrependeiBos- $o penses ue desgosto do aul

uma das garraas do aparador a aproCimar-se do rebordo&

indecisa

- +aio primeiro ue as outras=

lgrimas sem dono penduradas na sala U procura de plpebras

- Estou mesmo a eito preNram-me

a bailarina rodopiando sempre a inormar

- $o K assunto ue me diga respeitoo tacho do marido da minha prima tambKm manso& demorado&

uase to manso e demorado uanto a Bo

- %inhas preerido o Berde no era=

dando ideia ue de acordo com o Berde& preerindo o Berde

igualmente

Q- +ome@o a dar-te rao sou mesmo parBo no sou K to catita o

 BerdeS

a minha prima apoderou-se de uma das lgrimas e colocou-a Us

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cegas entre a bochecha e o ueiCo& a lgrima mal austada& sem uma

coBinha de pele& desatou a descer& eu a ampar-la com o dedo

- *egure-a senhora antes ue caia no soalho

lgrimas mais ruidosas ue cadeiras& garraas& o meu pWnico se

a minha me a chorar& procuraBa-lhe o colo

- Me

to agitada& nerBosa& a chorar igualmente& a cara dela nas

palmas e eu a tentar despeg-las

- Mostre-me a cara me

no uma cara de mulher& uma cara de crian@a& desarrumada&

rgil& no aul& no Berde

Qo marido da minha prima a preparar o tacho

- %odos preerimos o BerdeS

uase roCa& Bermelha& a sacudir os ombros porue uma

resistVncia& um aleio do mecanismo& um ressalto

- "eram-lhe corda me=

Eu a mais crescida das duas ampliando os oelhos

- X melhor ao contrrio sente-se ao meu colo senhora

Quantas Bees na hospedaria da ;ra@a a cabe@a do senhor nomeu

ombro eu ue no tenho ninguKm& nem uma Nlha para amostra&

nem um rolo de cordas num ponto a uem possa dier

- Pai

no interessa ue no uma pessoa& um rolo de cordas num

ponto e a ideia de um comboio chegam para ue a gente

- Pai

o meu pai a ue nenhuma de nós ligaBa morou aui comigo&trataBa dele sem o BerS

uando a bailarina se imobiliou interrompendo a pirueta&

orgulhosa& a Ntar-nos& a minha aBó estarrecida

- Parece uma rancesa

e mais lgrimas U espera ue se serBissem delas

Qnunca aprendi a utili-las& no choroS

um galo tresnoitado soltou-se com Rmpeto da própria garganta e

riscou tudo de gi& tra@os ue ueimaBam na ardósia da anela

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cobrindo o Bento& os legumes& os pinheiros de +oimbra& a minha

prima para o tacho ao mesmo tempo ue o galo se calaBa e as ps do

moinho da rega areaBam brisas

Qsero os barcos ao baloi@arem ue abricam a enchente=S

- $o tiBe inten@o de oender

a bailarina no Berde nem aul& cor alguma& dando-lhe corda

um arranco& dois arrancos e cansada& o bra@o erguido a ustiNcar-se

- X diRcil

o meu pai morou aui comigo& trataBa dele sem o Ber& traia-lhe

a comida& audaBa-o a barbear-se& nenhum de nós alaBa& como diabo

se percebe ue uma pessoa alece se no ala connosco& na

hospedaria da ;ra@a o senhor e eu lado a lado no deitados na cama&

 Bestidos& em silVncio tambKm& uma ou duas tardes& se tanto& a mo

dele sobre a minha& demoraBa-se um momento& daBa conta ue se

demoraBa& ia-se embora

- Perdo

a Nlha dele U espera no largo

Qcomo echar este liBro=S

no descontente comigo& acol simplesmente& em %aBiradesBiaBa-se da me e da irm& do pai no e no entanto se o pai uma

rase& uma estinha

- 9ue K isso=

a morrer pela rase& a estinha e

- 9ue K isso=

o cotoBelo de imediato

- 9ue K isso=

com trVs& uatro anos& a seguir de& a seguir doe e o cotoBelosempre9ue K isso=

ao perguntar-lheEla no gosta de si=

a mo apertando-me sete& one& cinco Bees como se a com as

miJdas e só ento a ir-se embora

- Perdo

espreitei de noBo e a Nlha a abandonar o largo& deu-me ideia ue

a enCerguei em *intra a espreitar-nos& seguia-nos atK Us accias e

mal as primeiras Tores sobre o muro perdRamo-la& se me

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consentissem

- #echa este liBro como uiseres

terminaBa-o aui& com pKtalas amarelas descendo na sombra&

colocaBa os taipais& batia a porta de casa e no se notaBa seno um

prKdio entre prKdios e a rua Baia& pode ser ue ento& depois de

tantos anos& um pinguinho de som& alguKm ue no era ele e tanto

deseei ue osse ele ao meu ouBido

- $o sentes o mar=

o senhor ue depois de o leBarem da hospedaria da ;ra@a no

tornei a

Qse depois de o leBarem da hospedaria da ;ra@a eu pudesseS

o senhor ue depois de o leBarem da hospedaria da ;ra@a no

tornei a Ber& no mVs passado aluguei um uarto soinha& os trVs

degraus da entrada impossRBeis de subir& um dos rapaes de

cabeleira posti@a deu-me corda& audou-me& um impulso& outro

impulso& um rodopio penoso& o rapa de cabeleira posti@a a segurar-

me o soBaco

- Empenou tiainha=

Qse lhe pedisse- "V-me corda de noBo

compreender-me-ia=S

no se sentia o mar mas sentia-se a trepadeira na achada& o

elKctrico euilibrando-se a custo ao desaer a curBa& costumaBa

demorar-me na paragem como se os pinheiros de +oimbra& de

uando em uando uma cotoBia

QsilBos curtos& rpidosS

mais próCima ue os ramos& uase dentro do sanatório e aempregada dos almo@os

- $o te apetece a sopinha=

o pssaro uase a bicar-me o ombro& se me bicasse o ombro&

apesar da ebre& eu contente

Qora aui est o echo do liBro& a tal palaBra conusa& no h

dJBida& encontrei-a& estou a aproCimar-me delaS

a mulher do tubo na garganta mais magra& o sopro de Bogais

onde uma consoante anunciaBa

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- Piorei

o cabelo os uros da boneca a ue altaBam cerdas& um restinho

da boca& o dó dela por mim

QdeBia haBer lgrimas na ;ra@a ue a gente alugasseS

- O mesmo uarto madame=

o mesmo uarto senhora& mais peueno trVs anos depois apesar

do mesmo cabide no mesmo prego& a mesma colcha& as mesmas

 Boes em torno& uma gargalhada

QBrias gargalhadas& to ortesS

obectos ue arrastaBam no cho& de come@o no dei por alta da

trepadeira& percebia uma ausVncia sem entender o ue era mas

acontece-me tanto perceber uma ausVncia sem entender o ue K& Nco

uieta a pensar

- O ue me alta senhores=

e a enCada do empregado do meu pai caBando& caBando& no

desBiou os olhos para mim& nunca a sua Bo

- Menina

Qao chegar U anela BeriNuei ue tinham cortado o galhoS

ia ao seu encontro no alpendre com as sandlias do meu pai nospKs diNcultando-me o andar e o empregado na latada a ugir-me&

encontrei-o no Nm da Binha& onde as laraneiras come@aBam& de

chapKu de palha sem cereas de eltro& seguraBa um alicate& no a

enCada& onde largou a enCada diga-me& abra-me no desagraando o

 Bestido& arrancando-o& as sandlias com inten@o de correrem para

casa e eu

- $o se meCam

no se atreBam a meCer-se& obede@am-me& no distinguia asei@Fes do empregado deBido U aba do chapKu& distinguia a garganta

a engolir como se uma espinha a rasg-la& os dedos brancos no

alicate apertando-o

Qse me dessem corda giraBaS

os insectos da terra a ensurdecerem tudo& mesmo ue me

gritassem

Qa minha me por eCemploS

no podia dar K& mesmo ue o sino da capela ou ces ou os

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engui@os da nora& a minha prima& to remota

- %inha preerido o Berde

os insectos a ensurdecerem tudo menos a minha prima

- %inha preerido o Berde

ralos grilos besouros grandes larBas cinentas na transparVncia

dos oBos& essas eias& compridas& ue Bo surgindo das malBas& nos

deBorariam se nos deitssemos& se escondem nas raRes& tiBe a

certea ue as sandlias

- <ou dier ao teu pai

o empregado de cigarro apagado na orelha conorme os

comerciantes o lpis& obriguem-me a rodopiar de bra@o erguido com

uma das pernas dobrada& nenhum deeito do mecanismo& nrnhum

ressalto a impedir-me& morder a almoada na hospedaria da ;ra@a&

aundar-me no colcho U medida ue o sangue ia prolierando em

mim& no imaginaBa ue tanto sangue no meu Bentre& espesso&

rpido& ero& sempre pensei ue tRmido& doce& e espesso& rpido&

ero& uma manh Bi uma oBelha de banda na erBa a parir& as patas

amoleciam-lhe ao passo ue as minhas patas no amolecem& as

minhas coCas larguRssimas& as sandlias do meu pai- E agora=

nunca dessa orma com o senhor em *intra& em %aBira& somente

- #ico consigo descanse

e a mo dele sobre a minha& no incomodando-me& poisada& ele

ao meu colo uase& porue no tra um cigarro na orelha senhor& se

ao menos dedos brancos apertando o alicate& apertando-me& um

 oelho nos meus oelhos& prender-me o pesco@o consoante a minha

me as galinhas& os tornoelos BiBos sob a cabe@a morta continuandoa correr& os olhos do empregado do meu pai& sem pupilas dentro&

duas uBas apenas& esmag-las& mordV-las& a terra menos dura ue eu

supunha aNnal& se conseguisse romper a almoada da hospedaria da

;ra@a& romper-me antes ue a corda acabe& a musiuinha calada& eu

uma sandlia apenas a dar K dos sinos& dos ces& dos engui@os da

nora& a oBelha a lamber o cordeiro ue tentaBa euilibrar-se&

tombaBa& conseguia& achei a segunda sandlia& Bi o chapKu de palha

aastar-se& o cabide& as estampas do uarto& a minha Bo ue teimaBa

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- #ico consigo descanse

dirigindo-se a uem& a Nlha do senhor no largo

Qa minha Bo& audem-me& dirigindo-se a uem=S

o Bendedor de bolos ue tro@aBa de mim& o senhor com a esposa

apesar de

- 9uero-te comigo no AlgarBe

sem olhar para mim& olhe para mim& estou aui& sou uma

bailarina repare& coloue a palma onde digo& note a espinha na

garganta a arrancar-me& e auele orror.murasse na oensoita no

Q- $o o sentes o mar=S

ralos grilos besouros grandes larBas cinentas& o reormado a

estender-me o punho da camisa conBidando a ue eu

- <ea se o pulso est bom

oerecia-me de antar

- >om apetite

e elimente ue a deunta no podia alcan@ar-nos atrs da arra

das Tores& continuaBa a sorrir no lugar em ue os mortos habitam& o

reormado na despensa em ue latas de eio& geleias

- ,m golito de Binho=se as sandlias do meu pai no armrio cal@aBa-as sem me

importar com as amea@as

- <amos aer ueiCa de ti

perguntaBa para a despensa

- Acha ue a deunta se anga=

a deunta indignada nas Tores mas Nco consigo& descanse& trago

o sauinho do crochet& a cadeira de lona& no me Bou embora

prometo& no me meCo& no dan@o& um dos rapaes de cabeleiraposti@a a audar-me a acertar com os degraus

- ;ripou tiainha=

sem admirar a minha saia Berde& no aul

Qa minha prima

- $o sei poruV o aulS

aBisem as lgrimas ue no preciso delas& no me perguntem

- E eu=

escusam de ter esperan@a& no as uero& o doutor do hospital

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- Est melhor da tristea=

claro ue estou melhor meu Nlho& obrigada& na pensoita de

%aBira o reormado a emocionar-se ao serBir-me dado ue o nari lhe

 BibraBa& uma aresta do assento beliscaBa-me a ndega& eu por

educa@o a suportar a aresta de modo ue no Nm da sopa só a minha

ndega eCistia com a aresta a torn-la maior& uma ndega grande e

uma ndega peuena& a nega grande

Qno imaginaBa ue tanta carne em mimS

eCigindo

- *alBa-me

a aresta a atormentar-me o osso& a subir pela espinha e nisto&

nos antRpodas& uma onda& o suspiro da gua ao retrair-se na areia& a

impresso de recolher deBagarinho U algibeira do mar& de ue o mar

reTuRa

- Adeuinho madame

leBando as lues consigo& as Nleiras de toldos& a ponte& os

rochedos ue me intrigaBam dado ue num deles um peda@o de

corda e uma caiCinha Baia contendo o uV uem por ue rao

como& do lado oposto ao Bento umas mimosas& uns ninhos& oreormado

- Madame

ridRculo de esperan@a& o ue deBe ter demorado a compor o

cabelo& a pensar num discurso

- "esde ue a minha esposa

a esposa atrs das Tores a aproB-lo e sob a aproBa@o a aresta

na minha ndega imensa& a cabe@a minJscula& os membros

minJsculos& a minha Bo minJscula- " licen@a ue me leBante senhor=

se a aresta se esuecesse de mim e no esuece& em catraia

logo ue um ueiCal me doRa desataBa a correr atK escapar U dor&

 Birar numa esuina& enNar num portal& a dor sem encontrar-me

-Onde te meteste Bem c

segura ue eu lhe pertencia& se um galo abrisse a garganta de

um Jnico golpe& se eleBasse de si mesmo e me riscasse de gi atK ue

no me Bissem& no sRtio onde estiBe tra@os brancos de ardósia&

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ninguKm& eu com o empregado onde as laraneiras come@am& as

sandlias do meu pai

- Ai de ti

se as Tores das accias me ocultassem recome@ando a tombar&

uma ocasio neBou em aneiro e pKtalas tambKm& a Binha seca& dura&

nenhuma olha nos ramos& a minha me

- A neBe

no a Bo dela& o tom dos sonhos ue parecia pensar-se U

medida ue alaBa

- A neBe

eu uietinha& se as apanhasse pKtalas desapareciam-me nos

dedos& uma aguainha de lgrimas ou nem aguainha seuer&

segurando-as morriam& a mo do senhor na hospedaria da ;ra@a

onde eu mordia a almoada& no desagraar o Bestido& arranc-lo&

colocar os dois punhos na gola separando-os com or@a e o tecido a

ceder& a garganta ue engolia como se uma espinha a arranhar sem

ue o senhor entendesse conorme no entendia a minha boca na

almoada& o sangue ue ia prolierando em mim& espesso& rpido&

ero& o empregado a puCar o cigarro da orelha& a acendV-lo& aindaue se angassem no podia dar K& o sino da capela& os ces& os

engui@os da nora& ralos grilos besouros grandes larBas cinentas na

transparVncia dos oBos& a mo do senhor a desligar-se da minha

- X Berdade=

e apesar dos insectos a ensurdecerem tudo eu

- #ico consigo descanse

a descobrir-lhe o ombro& o enchuma@o do casaco& osse o ue

osse de seu& eu deitada de lado de patas a amoleceremQsou uma oBelha no sou=S eu

- Por aBor no chore no tiBe culpa no tem culpa

eu

Qe a oBelha em pa a lamber o cordeiro ue procuraBa

euilibrar-se& tombaBa& conseguia& Bi o chapKu de palha ao comprido

da Binha& os dedos no alicate apertando-oS

eu

- #ico consigo descanse

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consigo nas accias de *intra& na cadeirita em %aBira& deiCo-o

olhar para mim. pensar ue nós os dois& Nco consigo desacanse& o

reormado

- oendi-a madame=

eu uma oBelha& um bicho& mesmo ue o meu pai

- +abra cabra

o reormado

- Madame

e claro ue estou melhor senhor doutor& entreguei a chaBe na

hospedaria da ;ra@a& nunca pensei ue a Nlha U minha espera no

largo diRcil de separar das rBores& do sol& no um rapa de

cabeleira posti@a& no um cliente& no os operrios num dos prKdios

 Biinhos& a Nlha& no a casada& a mais noBa

- $o uero sea o ue or de BocV só uero BV-la de perto

a ue ele acompanhaBa ao circo& nunca se lhe reeria e no

entanto

Q- Oendi-a madame=S

nunca se lhe reeria e no entanto

Qo senhor BiJBo disse madame& eu madameSnunca se lhe reeria e no entanto se por acaso o seu nome a

eCpresso dele dierente& chamaBa pela Nlha enCotando-a& no era

capa de

- #ilha

Q- $o sou capaS

no era capa comigo to pouco& o meu sangue parado

Q- $o sou capa contigoS

nenhuma garganta a engolir como se uma espinha arranhando-a& nenhum sangue no meu Bentre& a trepadeira da hospedaria da

;ra@a num Baio triste& acanhado& chamaBa pela Nlha enCotando-a

- Auda-me

enuanto U outra& a mais Belha& a casada& chamamento nenhum&

no me pe@a perdo& no se desculpe& no me prometa nada

Qtanto dó em mimS

Nco consigo descanse& o meu sangue no espesso& rpido& ero&

com o senhor tRmido& doce& eu no rasgada& inteira& aceitando a sua

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palma na minha& no caso de um comboio de #ran@a ele

- $unca K o meu pai

nunca ninguKm a umar sobre um tolo de cordas

- %rambolho

noiBas ue gritaBam saindo das molduras a perseguir as

traineiras& ao emergirem dos cani@os os BKus delas com lama& a

mesma do meu Bestido no eCtremo da Binha onde as laraneiras

come@am& o reormado na pensoita em %aBira

Qno uma pensoita& um andar& recebia hóspedes desde ue a

esposa aleceuS

- " licen@a madame=

de ue aleceu a sua esposa senhor& ser ue eu alecida&

deunta numa cadeira de lona sem me interessar pelas ondas abrindo

o sauito deste crochet ue detesto& as Tores das accias U minha

 Bolta a caRrem uando o reormado

- " licen@a madame=

no o uarto da hospedaria da ;ra@a& no eCistia cabide&

estampas na parede& no eCistia a colcha& eCistia uma espKcie de

manta& um santinhoQ*o erónimo& *anto EleutKrio& tanto aS

num nicho& a suspeita ue ralos grilos besouros grandes larBas

cinentas na transparVncia dos oBos& tentei euilibrar-me& tombei&

consegui& o reormado

- Madame

Qse eu pudesse dan@arS

lembro-me dos sapos a cantarem no orBalho& eu no com as

sandlias do meu pai& descal@a& em busca da enCada contra a sebe ouno socalco da Binha& uma aldeia no horionte do campo& ulgo ue

cedros depois& nesses cochichos das rBores se no podemos BV-las&

o barraco do empregado no escuro& se o meu pai adiBinhasse traia a

poia& mataBa-o& o cigarro a soltar-se da orelha& sem o chapKu de

palha as ei@Fes dele comigo& diBersas do ue eu pensaBa numa

espKcie de riso& dar com a enCada& abra@-la& arrancar eu mesma o

 Bestido

Qa camisa de dormir=S

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o Bestido& a enCada a caBar& a caBar

Qnunca desBiou os olhos para mim.& nunca a Bo dele nas minhas

costas

- Menina

e as minhas costas nuas& no morena como sou& plidas& os

dedos no alicate brancos& as minhas costas plidas& mau grado no

conseguir BV-las as minhas costas branuRssimasS

elimente no calcei as sandlias do meu pai demasiado

grandes para os meus passos& diNcultando-me o andar ou nem

diNcultando-me& recusando-se a andar

- Ests arranada connosco

eu to leBe& rodopiando& girando& o bra@o erguido& uma das

pernas dobrada& nenhum aleio do mecanismo& nenhum ressalto a

impedir-me& a ue manda na gente

- Ora aui tens a arBKloa aui tens o mar

morder a almoada na pensoita em %aBira& aundar-me no

colcho& o reormado sem dar conta dos ralos grilos besouros

grandes larBas cinentas na transparVncia dos oBos& das Tores de

laraneira sobre nós repare& ia urar ue a Nlha do senhor& no acasada& a ue ele chamaBa enCotando-a& a Ber-nos& a apertar-lhe os

dedos sete& one& cinco Bees

- Pai

no ouBe a sua Nlha

QNco consigo descanseS

- Pai

- Pai

o reormado arrepelando o len@o e com o len@o chaBes& moedas&o ue se me aNgurou um recibo

- Oendi-a madame=

uando lhe pagaBa Us uintas-eiras

QganhaBa coragem sem se atreBer a encarar-me deslocando um

cineiro& um boneco& o nari do boneco no a sKrio& pintado no

 BerniS

- Paga-se as uintas-eiras madame

pedia-me ue saRsse um momento

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- $o se importa madame=

EnNaBa o dinheiro numa lata de ch& penso eu& sob um aueo da

coinha& somaBa tudo num papel& colocaBa a tampa de noBo

QNcaBa mais alto& mais direito ao colocar a tampa de noBoS

e nisto& sem ue a esperasse& uma onda

Q- $o sentes o mar=S

por ue rao no o reormado comigo na hospedaria da ;ra@a

Qno sinto o mar desculpe& sinto auele cheiro das parras& um

noitibó do crepJsculo entre o chiueiro e os ciprestes& a impresso

ue o chapKu de palha a Bogar uase amarelo entre manchas

castanhasS

por ue rao no o reormado comigo na hospedaria da ;ra@a&

notar-lhe os passos entre clientes& mulheres& rapaes de cabeleira

posti@a

Q- Mais um degrau tiainhaS

um deles com uma pulseira osorescente ue aulaBa as

escadas& ualuer coisa como um riso ou assim e contudo no alegre&

uma espKcie

custa escreBer a palaBra& uma espKcie de Bómito& no bem Bómito& resta-me esperar ue se perceba& um riso no alegre& no de

pessoa& muitas coisas

Qno alegre ou talBe tambKm alegre no seiS

ue tombaBam da boca& um riso no alegre& uma espKcie de

amea@a& se alguKm risse dessa orma unto a mim eu com medo e por

causa do medo eu para o reormado

- #ico consigo descanse

a sua mo sobre a minha a audar-me& pode ser ue uma Bolta&duas Boltas& ultrapassar o aleio do mecanismo& o ressalto& eu torta

continuando a girar& uando doente em +oimbra daBa aten@o aos

pinheiros& no Us copas em si& Us respira@Fes& aos murmJrios

Qo& o& oooS

ao sorimento das cómodas uturas a protestar na madeira&

segure-me na mo antes ue eu de metros abaiCo no sentido da o&

aR est o triciclo& o casal& a crian@a a apanhar um caro@o ou um

prego& a aperceber-se da minha ueda& a

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Q- Oendi-a madame=S

a apontar-me com o dedo& a debru@ar-se inclusiBe

Q- Oendi-a madame=S

para assistir ao aogamento ue presumo no muito longo

deriBado U idade e limita@Fes motoras& uma agita@o breBe& uma

palaBra no de pedido de auCRlio nem de medo& uma palaBra apenas U