Historia Da Pedagogia Introducao

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História da Pedagogia FRANCO CAMBI São Paulo: UNESP, 1999 INTRODUÇÃO DAHISTÓRIA DAPEDAGOGIA À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Ao longo dos últimos 25 anos operou-se uma profunda transforma ção metodológica na pesquisa histórico-educativa, levando a uma radical mudança de orientação: da "história da pedagogia" passou-se à "história da educação". Como e por que ocorreu essa mudança? Para responder a essa pergunta é necessário fazer outra, preliminar a essa: o que era a his tória da pedagogia cujo declínio foi decretado pelos últimos decênios? Como e por quem era exercida? E para quem? A história da pedagogia no sentido próprio nasceu entre os séculos XVIII e XIX e desenvolveu-se no decorrer deste último como pesquisa elaborada por pessoas ligadas à escola, empenhadas na organização de uma instituição cada vez mais central na sociedade moderna (para for mar t éc ni co s e pa ra f or mar c idad ão s) , p reoc up ada s, po rt ant o, em su blinhar os aspectos mais atuais da educação-instmção e as idéias mestras que haviam guiado seu desenvolvimento histórico. A história da peda gogia nascia como uma história ideologicamente orientada, que valori zava a continuidade dos princípios e dos ideais, convergia sobre a

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História da PedagogiaFRANCO CAMBI

São Paulo: UNESP, 1999

INTRODUÇÃO

DAHISTÓRIA DAPEDAGOGIA À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Ao longo dos últimos 25 anos operou-se uma profunda transformação metodológica na pesquisa histórico-educativa, levando a uma radicalmudança de orientação: da "história da pedagogia" passou-se à "históriada educação". Como e por que ocorreu essa mudança? Para responder a

essa pergunta é necessário fazer outra, preliminar a essa: o que era a história da pedagogia cujo declínio foi decretado pelos últimos decênios?

Como e por quem era exercida? E para quem?A história da pedagogia no sentido próprio nasceu entre os séculosXVIII e XIX e desenvolveu-se no decorrer deste último como pesquisaelaborada por pessoas ligadas à escola, empenhadas na organização deuma instituição cada vez mais central na sociedade moderna (para formar técnicos e para formar cidadãos), preocupadas, portanto, em sublinhar os aspectos mais atuais da educação-instmção e as idéias mestrasque haviam guiado seu desenvolvimento histórico. A história da pedagogia nascia como uma história ideologicamente orientada, que valorizava a continuidade dos princípios e dos ideais, convergia sobre a

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contemporaneidade e construía o próprio passado de modo orgânico elinear, pondo particular acento sobre os ideais e a teoria, representada

sobretudo pela filosofia. Tratava-se de uma história persuasiva, por umlado, e teoreticista, por outro, sempre muito distante dos processos

educativos l'eais, referentes às diversas sociedades, diferenciados por clas

ses sociais, sexo e idade; distante das inst ituições em que se desenvolviam (afamília, a escola, a oficina artesana] e, em seguida, a fábrica, mastambém o seminário ou o exército etc.); distante das práticas. de educação ou de instrução, das contribuições das ciências, sobretudo humanas,

para o conhecimento dos processos formativos (em primeiro lugar, psico]ogia e sociologia). Ta] história devia difundir entre os docentes - quenão eram seus destinatários - uma idéia de educação desenvolvida em

torno dos próprios princípios ideais (mais que das práticas) e, atravésdestes, das ideologias que os inspiravam. De ta] modo que havia histórias

da pedagogia com forte influência filosófica, marcadas segundo as di

versas orientações da filosofia (ou positivista ou idealista ou espiritua]ista)e capazes de veicular para os docentes um princípio ideal, que se apresentava ainda como convalidado pela própria história universal (ou epoca]:

antiga, medieval ou moderna) da pedagogia.É bem verdade que, especialmente nos estudos mais setoriais, mais

particulares, esta ótica está sendo, de certo modo, reposta em discussão,dando espaço também a aspectos mais concretos, mais praxistas, maiscontingentes da pedagogia, deixando transparecer, além da história dasidéias pedagógicas, também as vivas problemáticas da educação nas di

versas sociedades. Entretanto, o trabalho histórico-pedagógico predominante, em quase toda a Europa e nos EUA(como provam algumas obras

publicadas entre a segunda metade do século XIX e a Segunda GuerraMundia] em vários países, desde a obra de Compayré na França até a deLeser ou, ainda, deJaeger na Alemanha, até a de Cubberley e de Dexter

nos EUA),permanecia ancorado num estudo das idéias e sua sucessão histórica de]ineada apenas pelas filosofias.

.Na Itá]ia, porém, essa atitude teorético-fiIosófica sobre a pesquisa histórico-pedagógica atingiu a sua realização mais coerente e mais extremacom o idealismo de Gentile, nos primeiros anos do século XIX.Se, comoafirmava Genti]e, a pedagogia é a teoria da auto-afirmação do espírito, ela

devia dissolver-se- e sem resíduo - na filosofia; ou seja, sua história coin-

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cidia necessariamente com a da filosofia. E, na escola genti]iana, alunos ecolaboradores âe Gentile vieram desenvolvendo histórias da pedagogia emtotal simbiose com a filosofia, oferecendo uma imagem bastante redutivadesse saber, com uma escansão temporal totalmente abstrata e artificial,

marcada apenas pela sucessão das idéias. Essamaneira de fazer história da

pedagogia permaneceu durante muito tempo como "viaáurea" dos estudoshistórico-pedagógicos, confirmada até mesmo fora da tradição idealista,como ocorre no espiritualismo (comStefanini, por exemplo) e no próprioneocriticismo (pense-se em Banfi e no seu Sommario de 1931).

Já desde o segundo pós-guerra, porém, difundiam-se novas orien

tações historiográficas, também no campo pedagógico, e, ao mesmo tempo, entravam em crise alguns pressupostos daquele modo tradicional defazer história da pedagogia. Iniciava-se assim um longo processo que ]evou à subst ituição da história da pedagogia pela mais rica, complexa e

articulada história da educação, que só em anos recentes aparece definitivamente constituída como modelo-guia da pesquisa histórica em edu

cação e pedagogia.Primeiramente, a pedagogia perdia a sua exclusiva (ou qu<}se)

conotação filosófica e revelava-se constituída pelo encontro de diversasciências e portanto como um saber interdisciplinar que entrelaçava a suahistória com a de outros s.aberes,sobretudo as diversas ciências humanas

de que é tr ibutária e síntese. Depois, a pedagogia também se prestava aum papel cada vez mais central na vida social: formar o indivíduo socializado e operar essa formação através de múltiplas viasinstitucionais e mú]tiplas técnicas (voltadas ora para o corpo, ora para o imaginário, ora para

o intelecto, ora para o manual), disseminadas no corpo social. E ainda: o

fazer história - em qualquer âmbito - caracterizava-se sobretudo como aconstrução de uma história total, capaz de colher os diversos aspectos davida social e dos vários momentos históricos, fazendo a história das idéias

perder toda exclusividade e predomínio também no âmbito da hi,stóriada cultura. Asidéias são apenas um momento da história da cultura, queimplica também a presença de práticas, de instituições, de ideologias oude crenças. Assim, a metodologia histórica sofre por sua vez uma transformação radical: articula-se segundo muitos âmbitos de pesquisa, acolhe uma multip]icidade de fontes, organiza-se em setores especializados,e cada vez mais especializados, de modo a dar vida a subsetores de pes-

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quisa doravante reconhecidos e reconhecíveis pela autonomia de ol~jetos

e métodos que os marca, assim COlIlOpela tradiçflo de pesquisa que os

une. Assim, aparecem cada vez COIlImaior clareza na pesquisa históricoeducativa a história das teorias e a das insti tu içÔes escolares e formativas,

a história da didática ou do costume ( 'ducativo, di! infáncia e das mU'lheresou do imaginário (adulto, juvenil 011 int~Ultil).

Desd~ os anos 50, e cada vez mais nitidamente desde os anos 60 e 70,

desenvolveu-se assim um modo radicalmente novo de fazer história de

evell los pedagógico-educativos, que rompeu com o modelo teoreticista,

unitár io e "continuísta" do passado, fortemente ideoló~ico, para dar vidaa uma pesquisa mais problemática e pluralis ta , bastante articulada e dife

renciada que - considerada no seu conjunto - pode ser definida como

história da educaçflo , lOmando a noç;io de educaçflo st: ja como cOlÜuntode pr.íticas sociais seja como feixe de saberes. Desde a metade dos anos

70, a passagem da história da pedagogia para uma mais rica e or~ánicahistória da educaçflo tornou-se explíci ta, insistente e consciente, afir

mando-se como uma virada decidid;1 e decisiva. E nflo se tratou de uma

simples mudança de rótulo; pelo cOl\trár io: tratou-se de uma verdadeira

e legítima revoluçflo historiográfica que redesen,l lOu todo o domínio his

tórico da educaçflo ~ todo o arsenal da sua pesquisa. Esquematizando,podemos dizer: passou-se de um lIllldo fÍ'cluulo de fazer história em edu

caçflo e pedagogia para um modo liberto, consciente da riqueza/complexidade do seu campo de pesquisa t' da "ariedade/arliculaçflo de métodos

e instrumentos que de\'em ser usados para desenvolver de modo adequado o próprio trabalho.

Por outro lado, a transformaç;lll amadureceu em estreita simbiose

com toda ullla mudança historiogr<ilica, que no curso de alguns decêniosproduziu uma no\ 'a imagem do "ÜIZ('J'história" , nascida em torno daque

las que podem ser definidas como ;Istrês revoluções historiográticas dopós-guerra.

2 TRÊS REVOLUÇÕES EM HISTORIOGRAFIA

Foi através da ação cOl~unta (k muitas orientaçÜes historiográficasque se ' chegou a determinar a transformação no modo de entender a

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história e desenvolver sua pesquisa científica, conduzida segundo prin

cípios metodológicos profunda.rnente renovados. Pelo menos quatro orientações: 1. o marxismo; 2. a pesquisa dos Annales e a história total; 3. a

contribuição da psicanálise para a pesquisa histórica; 4 . o estruturalismo

e as pesquisas quantitativas.

O marxismo trouxe à luz - no que diz respeito aos eventos históricose às suas matrizes supra-estruturais (sobretudo políticas) - o papel da

estrutura econômico-social e incitou a estudar as complexas mediações'"

que ligam economia e política, política e cultura, cultura e sociedade. As

invest igações de Gramsci neste campo foram exemplares e influencia

ram profundamente a pesquisa histórica, e não apenas na Itália. Para os

pesquisadores marxistas, a história aparece como luta de classes e de

ideologias, que se articulam em torno de sistemas de produção e quevisam à hegemonia histórica, influenciando cada ámbito da vida social,

da família ao Estado e à cultura. A pesquisa histórica torna-se investigação complexa, atenta às genealogias profundas dos vários fenômenos (so

bretudo econômico-sociais) , jogada através do entrelaçamento de muitos

saberes e pronta a colher conflitos e contradições, hegemonias e oposi

ções. Também a escola dos Annales (uma revista nascida na França em

1929 e que teve um papel fundamental na renovação da pesquisa histó

rica, além de uma notoriedade realmente mundial) se inspirou no mar

xismo, trazendo à luz aspermanências ou estruturas referentes aos "acon

tecimentos", mas enriqueceu e matizou sua lição ao introduzir o estudode estruturas (ou infra-estruturas) não só econômicas, como a mentalida

de, tendo em vista uma história por inteiro, que leve em conta todos os

fatores e aspectos de um momento ou de um evento histórico. Os Annales

sublinharam, assim, o pluralismo da pesquisa histórica e o jogo complexo das muitas perspectivas que acabam por consti tu í-Ia, re lacionando-acom as diversas ciências sociais.

Quanto à psicanálise, foi sobretudo a área americana que, através da"psico-história", afirmou sua aplicação à pesquisa histórica. A psico-história

é o estudo das mentalidades colet ivas e individuais, legíveis, porém, de

modo crítico, inspirando-se apenas nos mecanismos que identificam o

pensamento freudiano (inconsciente, repressão, conflito do eu etc.) . Neste

flmbito , dir igiu-se a ateriçãoem particular sobre a família, na sua dimensão

espiritual e no seu papel de conexão nas diversas sociedades. As inves-

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tigações de Erikson sobre ojovem Lutero ou de De Mause sobre a his

tória da infância ou ainda de Loewenburg sobre o nazismo são exemplaresdesta orientação de pesquisa e manifestam o recurso ao estudo dos me

canismos de formação, seja para o indivíduo seja para os grupos, individualizando um âmbito em que sociedade e mentalidade aàbam por

interagir intimamente.Enfim, o estruturalismo (pense-se em Foucault) e a história quantita

tiva (utilizada amplamente por Le Roy Ladurie) puseram o acento sobreaquilo que é impessoal na história, sobre as estruturas que ref,'l.tlamoscomportamentos individuais em profundidade (sejam instituições oumentalidades) e as leram como variáveis quantitativas, sujeitas a análisessociais, a reconstruções estatísticas. A história da sexualidade de Foucault

ou a história do tempo de Ladurie, apesar das profundíssimas diferenças,têm alguns pontos em comum, como o recurso às permanências e à suafunção genética no âmbito da produção dos fenômenos históricos. E sãopermanências objetivas, quer pertençam à história da cultura ou à his

tória social,profundamente ligadas à natureza ou àquilo que aparece comotal aos olhos dos homens.

No cruzamento dessas diversas posições (além de outras: como a etno

história, por exemplo) realizaram-se as três revoluções cruciais dahistoriografia contemporânea. A primeira referiu-se aos métodos e afir

mou sua liberalização e seu radical pluralismo. A segunda tratou do tempo, dando vida a uma visão pluralista e dialética do tempo histórico. Aterceira voltou-se para os documentos, ampliando esta noção, articulan

do-a e desenvolvendo uma nova percepção das fontes e uma nova organização dos arquivos. Dessas três revoluções, amadureceu uma imagem

crítica da história, que trouxe à luz o pluralismo das abordagens e a complexidade de sua fisionomia, assim como a dialética do tipo de pesquisaque vem investigá-Ia.

A REVOLUÇÁO DOS MÉTODOS

Foi uma revolução profunda e radical que trouxe à luz sobretudo seu

pluralismo. O "fazer história" não está ligado a um processo único (dotipo narrativo-explicativo) capaz de enfrentar todo tipo de fenômeno his-

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tórico e ler sua estrutura e seu devenir, mas se'realiza em torno de rriúl

tiplas metodologias, diferenciadas por objetos, por processos cognitivos,por instrumentos lógicos, de modo a fazer ressaltar o pluralismo das abordagens e sua especificidade. Doravante, estamos longe da prática dohistoricismo à maneira de Croce e de Gramsci, que se desenvolvia em

torno de um modelo; ao contrário, reconhecemo-nos num tipo de trabalho histórico que se desenvolve em muitas histórias e segundo muitos métodos, desde a "história estrutural", econômica, social, "dasmentalidades", "até a dos eventos, a local, a oral-vivida, a psico-história, a etno-história, ahistória do cotidiano ete.: são todos âmbitos diferentes de pesquisa que

reclamam métodos ad hoc e uma reflexão metodológica que exalte suasautonomias e sua variedade, além das intersecções e convergências na

"história total". A historiografia atual perdeu, portanto, a certeza do método, assumindo a dos métodos e dando vida a uma intensa dialética

metodológica, a que se remetem os historiadores mais atentos dos últimosdecênios, de Braudel a Aries, de Stone a Le Goff, de Duby a Vilar, de

Veyne a Koselleck. A história se fez pluralista e implicou uma transformação dos métodos que pusesse em relevo seu complexo jogo recíproco,feito de autonomia e de integração, e sua gestão reflexiva (metametodológica: reflexão em torno dos métodos, do seu estatuto, da sua função, da sua riqueza e variedade).

A REVOLUÇÁO DO TEMPO

Foi particularmente Braudel quem pôs às claras este processo de re

visão da temporalidade histórica, mostrando como o tempo histórico édiferente daquele, artificial, dos relógios ou do tempo, vivido, das práxiscotidianas. Diferente, antes de mais nada, porque plural, poliestruturado,

problemático e jamais unívoco-unitário. Diferente, depois, porque ligado ao ponto de vista, à intencionalidade que guia seu uso e suaestruturação. Três, diz Braudel, são ostempos da história (e do histórico):o dos acontecimentos (ou eventos), próximo do vivido e do cronológico;um tempo fracionado e ligado ao caleidoscópio daquilo que acontece,

variegado e - meio no limite - medido pelo ins,tante, que é o tempo dahistória-narração; depois, o da curta duração (ou conjunturas, instituições

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etc.) ou das permanências relativas, ligado a estruturas políticas, SOCIaISou culturais, que está por debaixo dos acontecimentos e os coordena esustenta; nesse tempo, agem os Estados, as culturas, as sociedades e elepróprio pertence à história-eXplicação, à história-ciência; por fim, o da

longa (ou longuíssima) duração, geográfico, econômico e antropológico,que colhe as permanências profundas, as estruturas quase invariantes e

se ativa na história-interpretação ou história-genealogia/hermenêutica.São três temporalidades necessárias para compreender a história, mas quenão seconfundem, alternando-se e encaixando-se uma na outra, com suasdiferenças e suas intersecções.

A REVOLUÇÃO DOS DOCUMENTOS

Foi muito recentemente que a noção de "documento" sofreu uma

renovação radical, ampliando-se para classes inéditas e pondo o docu

mento não mais como monumento, mas como efeito da interpretação.Eséreveu Le Goff: "Arevolução documental tende também a promoveruma nova unidade de informação: em lugar do fato que conduz ao acon

tecimento e a uma história linear, a uma memória progressiva, ela privilegia o dado, que leva à série e a uma história descontínua. Tornam-se

necessários novos arquivos em que o primeiro lugar é ocupado pelo corpus,a fita magnética. Amemória coletiva sevaloriza, se org,miza em patrimôniocultural. O novo documento é armazenado e manejado nos bancos dedados" (Staria e menlOria, 1982, p.449). Esse é um primeiro aspecto. Depois, há o pluralismo tipológico dos documentos, que leva a umaliberalização máxim,ae a um uso dialético dosvários tipos de documento.

Há a abertura dos arquivos para documentos marginais (até ontem) ouignorados, para documentos novos ou mais bem usados (como ocorre

com os do imaginário) e há a prática da interpretação como.produtorade ulteriores documentos novos no momento em que s,e desenvolve oenriquecimento documental (pense-se na história oral). Em suma: assist imos, há alguns decênios, ao fim do documento entendido como classe

de documentos oficiais e relacionados com a historiografia tradicional,para dar espaço a novas séries documentais, mesmo incompletas, mesmojá interpretadas, mas que dilatam nosso conhecimento dos eventos e das

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estruturas da história, fazendo-nos ir - ainda, e melhor - dos eventos às

estruturas, às temporalidades profundas da história..As três revoluções redesénharam radicalmente a nossa consciência

historiográfica, como testemunham as obras metodológicas dos grandeshistoriadores contemporâneos, desde os dos Annaleo e os ligados a Pastand Preoent (uma célebre revista histórica inglesa, atenta à etnografia e à

história social), até os teóricos mais sensíveis à exigência eleuma renovação historiográfica também em educação, como Léon, como Vial oU'Laslett, como os italianos Fornaca ouCives, Ravaglioli ou Bellerate.

3 AS MUITAS HISTÓRIAS EDUCATIVAS

A história ela educação é, hoje, um repositório de muitas histórias,

dialeticamente interligadas e interagentes, reunidas pelo objeto complexo

"educação", embora colocado sob óticas diversas e diferenciadas na suafenomenologia. Não só: também os métodos (as óticas, por assim dizer)têm características preliminarmente diferenciadas, de maneira a dar acada âmbito de investigação a sua autonomia/especificidade, a reconhecê10 como um "território" da investigação histórica.

Se tivésseIpos que caracterizar (de maneira aproximada) as diversashistórias (e seus objetos, seus métodos), poderíamos indicar como âmbitos dotados de autonomia, de setorialidade e eletradição de pesquisa, odas teoriao, o elasinotituições, o das jJolíticao, depois o âmbito (mais amplo e

difuso) da hiotória ooeial (entendida como história do costume e de al

gumas figuras sociais, como história das culturas e das mentalidades) epor fim o âmbito do imaginário (na educação e pela educação), talvez ain

da frágil no seu desenvolvimento, mas em via de afirmação.No âmbito das teorias são, sobretudo, as filosofias, asvisões do mun

do e as ciências que orientam a pesquisa. Trata-se, como fazia a história

da pedagogia elaborada pela pesquisa tradicional, de sondar as contribuições que a reflexão filosófica, em particular (dada a longuíssimasimbiose que ligou filosofia e pedagogia), trouxe à elaboração pedagó

gica, a estreita colaboração que ocorreu entre os dois saberes, a funçãocrítica e projetiva exercida pelas filosofias da educação, através da construção de modelos e a indicação de ideais. Assím, por meio de uma co-

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nexão de autores e de textos, de elaborações ligadas às correntes, de

fil iações de idéias e de modelos delineou-se uma história do pensamento

pedagógico que põe em evidência, porém, o seu vértice, o aspecto mais

alto e mais luminoso, o da const rução racional e orgânica, reflexa e coe

rente. Ao lado desta vertente filosófica, vieram dispor-se, como formas

de teorização pedagógica, as ideologias (re ligiosas, polít icas, culturais) e

as ciências, que se juntaram às filosofias para redesenhar - e enriquecer/

matizar - o terreno da teorização pedagógica na história. Na Idade Moderna, sobretudo, tanto as ideologias quanto as ciências delinearam-se

' cada vez mais como fatores centrais da elaboração teórica das pedago

gias, dada a sua intersecção, de um lado, com classes e grupos sociais,com grupos de governo, com sistemas de controle do social; de outro,

com processos cognitivos voltados para o domínio do real e a descoberta

de seus fundamentos em qualquer âmbito, incluindo o dos comporta

mentos humanos. Neste processo de enriquecimento das teorias pedagógicas como objeto de pesquisa histórica, os métodos também vêm se de

senvolvendo: da análise conceitual da filosofia, do seu teoreticismo

(especialmente no ponto em que era reduzida a um puro sistema deidéias), passou-se a uma análise mais contextual das teorias , re lacionan

do-as com o social e o político, recolocando-a no terreno da história de

uma sociedade. Às investigações lógico-sistemáticas sucederam-se análi

ses genealógicas e estru turais, capazes de fixar a profunda intersecção ousimetria entre atividade social e pensamento, entre teoria e sociedade.

Um setor extremamente autônomo e organicamente desenvolvido é

o referente às instituições educativas, com a escola em primeiro lugar,

mas que abrange também a família, o "botequim" e depois a fábrica, as

associações e organizações dedicadas ao tempo livre (dos oradores aos

grupos esportivos, especialmente na sociedade contemporânea, mas, para

o primeiro aspecto, já na medieval). Trata-se de instituições às quais é

confiado um papel formativo preciso nos diversos tipos de sociedade e

que devem ser pesquisadas com instrumentos quer sociológicos, quer históricos tout court, quer, ainda, teóricos, que esclareçam a função articu

lada que elas têm nas sociedades, através de processos de análises ora

contextualizantes, ora fortemente disciplinares. Estamos diante de âm

bitos que, por sua vez, se articulam depois em outros ~~bsetores (na his

tória da escola: a história dos docentes ou a da didática, a história legislat iva

HI~TÓIUA DA PEDA(; () (; !. \ : ll

e a da "vida interna" da escola, com suas regras, seus rituais. seus deli

neamentos ligados à iniciação à vida social) e que, portanto. acabam por

constituir um mapa complexo de campos de pesquisa, articulados em tor

no de metodologias bastante diversas (ora quanti ta tivas e seria is. ora nar

rativas e quali tativas, até () limite do vivido próprio da histÚria oral e de

outras técnicas de investigaçflo, como a memorialística, as epistolares ete.),

e a serem usadas de maneira entrelaçada para restituir aos fllnhitos

insti tucionais seja a sua relevância sociológica, s tõjaa sua determinaçflO'hist<írica e vivida.

Um funbito tamhém específico e fundamental é o das políticas

educativas , escolares, formativo-profissionais que se coloca em estrei tasimbiose com a hist ()ria dos Estados e dos movimentos polít icos. das es

truturas administrat ivas das várias sociedades ete. Os ol~jelos de investi

gaçflO são, neste caso, os projetos coletivos de conformação ou de alfabe

tização, ou outro, que correspondem a um plano preciso e tendem a

provocar efeitos destõjados no comportamento social , a tornar mais com

pacta e homogênea a vida social. Sobretudo na modernidade, as pol íticas

educativas se tornaram mais explíc itas, já que mais dinfll ll icas, menos confundidas com a transmissflO inconsciente da cultura. mais intencionais e

prognll l1áticas. Não sÚ, mas também produzidas por mÚltiplos agentes:

pelo Estado e pela Igrtõja, também por part idos, por grupos sociais. cul

turais e profissionais ete. Deste pluralismo de projetos toma corpo um

processo complexo, caracter izado por excIusóes e interferências , mas que

est rutura em ptofi.mdidade os processos de socialização e de formaçãodos indivíduos.

Quanto à história social, nos seus mÚltiplos aspectos - como hist6riadas mulheres, história da inmncia, história do costume educat ivo ete. -, é

um setor de desenvolvimento recente, mas que se vai tornando cada vezmais central, ao se ligar à etno-história e à psico-história. mostrando a

formação de mentalidades educativas, de valores pedagógicos. de prá-·

ticas formativas que agem como modeÍos inconscientes (ou quase) no

funhito de uma sociedade, mas que são sempre produtos histÚricos, eFei

tos de um processo sociocul tural diacronicamente definido e delinívcl.

Os métodos que agem neste flmbito de pesquisa são por deliniçflO diferenciados, já que devem permitir o alcance ~aqueIcs fenÔmenos ou

eventos fugidios que na educação envolvem aspectos do inconsciente co-

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let ivo oUpráticas que lhe são muito próximas. São métodos que vão doestatístico ao narrativo, para cobrir a complexidade e a evanescência dosfenômenos que procuram esclarecer. Do mesmo modo, as fontes devemampliar-se, até atingir o fragmentário e o ausente, dando voz a achadossubmersos e isolados, desafiando os próprios silêncios da documentação

direta (como ocorre na história da infância, que trabalha sobre objetosque deixam testemunhQs apenas indiretos). São histórias, porém, em fasede cresclmento e de especialização, como ocorre com a das mulheres,desenvolvida ora·em chave teórica, ora institucional, ·ora social, ou como

a da infância, que produz o melhor conhecimento de um ator social - acriança - e das ideologias que sobre ele seativam e nos esclarecem sobremodelos e valores sociais, quer sejam difundidos ou não. O quadro da

história social, portanto, é hoje aberto e inquieto, problemático e in itinere,

mas bem delineado na importância a ser atribuída a seus objetos e nariqueza e relevância de seus métodos.

Um setor, ao contrário, ainda pouco desenvolvido e que veio definir

se como uma fronteira da própria história social, porém mais ·autônomopela sofisticação de seu objeto e mais complexo pela problemática deseus métodos, é o do imaginário. Trata-se de um setor já desenvolvidoem outras frentes da investigação histórica, após as pesquisas pioneirasde Huizinga, de Aries ou de Tenenti, no qual estão trabalhando intensa

mente sobretudo os medievalistas, mas que tem um' papel importantetambém nas pesquisas sobre o Moderno e o Contemporâneo (pense-seem Bazcko, em Mosse). Raríssima, porém, é a incidência no âmbitoeducativo. Entretanto, grande parte da educação - desde os processos deaculturação até a formação das mentalidades - passa através do imagi

nário. Este deve ser estudado nas suas diversas formqs aproveitando-seos resultados obtidos pelos historiadores da cultura e da mentalidade e

trazendo ulteriores afinamentos às suas pesquisas, no que diz respeito àtransmissão do imaginário e à sua difusão pedagógica. Já alguns clássicos

da polít ica da educação, como Gramsci, chamaram a atenção para essafronteira (pense-se nas páginas sobre o romance popular e sobre o nacional-popular em geral), mas as pesquisas não fora{p.organicamente retomadas e desenvolvidas.

Ahistória da educação hoje é plural, articulada emmuitos níveis, mais"macro" oumais "micro", quese relacionam e se entrecruzam para formar

HISTÓRIA DAP.EDAGOGIA 33

um saber magmático, mas rico tanto de sugestões como de resultados parao conhecimento das socieda~es na sua história. E'trata-se de um "pa

radigma" (um modelo) depesquisa histórica que é preciso compreendere explorar em toda a sua amplitude, variedade e complexidade.

4 DESCONTINUIDADE NA PESQUISAE CONFLITO DE PROGRAMAS

O que emerge como característica estrutural da pesquisa históricoeducativa é, sobretudo, a sua descontinuidade interna: de objetos, demétodos, de âmbitos. Descontinuidade que se ativa sobre o pluralismo

das frentes de pesquisa, mas também - em cada uma delas - sobre adivergência (ou, pelo menos, heterogeneidade dos processos e das orientações de pesquisa). Vejamos um exemplo. Tomemos a vertente das teorias: neste âmbito, há várias formas de teorização, a serem estudadascom instrumentos diferentes, mas também segundo perspectivas (ou pro

gram;ls de pesquisa) capazes de esclarecer essa sua disparidade, desenharsua complexidade e assinalar essa diversidade das abordagens. Ao ladodas filosofias; colocam-se as ideologias e as ciências, mas em cada um

desses campos delineiam-se modalidades diversas de ler os eventos (asfilosofias como saberes ou como visões-do-mundo, como orientações de

elite ou estilos cognitivos/existenciais também para as massas, pelo me

nos para as massas cultas; as filosofias como conceitos e linguagens; comoelaboradoras de modelos antropológicos e/ou sociopolíticos), que dão lu

gar a programas, a estilos de pesquisa que, depois, na sua complexa divergência, nos remetem os itinerários retalhados da história das teorias

pedagógicas.Será que estamos diante de uma historiografia centrífuga, ou me-

lhor, totalmente descentralizada, que só cresçe por linhas interrompi

das, por setores e fragmentos, sem "núcleo"? Estaríamos diante de umaliberalização metodológica de significado quase anárquico, que permite

todo tipo de abordagem e obscurece qualquer tentativa de reorganizaçãocentralizada da pesquisa? Não estamos indo na direção de programas de

pesquisa autolegitimados e, portanto, incontroláveis objetivamente, massó através de um endêmico conflito entre perspectivas interpretativas?

 

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FRANCO CAMEI HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 35

Ademais, o conflito das interpretações não acaba sendo o verdadeiro eúltimo modelo da pesquisa histórica, sublinhando sua dispersão e seu

___ ~ caráte~_.~_ip.otético,ssim como a incomensurabilidade entre os diversosprogramas de pesquisa, incidindo naqueles riscos ou erros imputados atoda epistemologia anárquica, como se reprochou ao filósofo/historiadorda ciência Feyerabend? Sim e não. Pluralismo e conflitualidade, inde

cisão e incerteza são certamente características fundamentais do fazerhistória hoje, inclusive em educação; entretanto; não estamos diante de

.um resultado anárquico, mas radical e dialeticamente crítico. É justamente da integração dinâmica e atenta (= crítica) das diversas perspectivas de leitura que emerge a possibilidade de ler a história segundo averdade, deixando sempre espaço para aprofundament.os ulteriores, paraaproximações, para um .objetocomplexo e fugidio, como é o histórico, eem particular o histórico-educativo.

Por meio destas múltiplas frentes de pesquisa, da liberalização dosmétodos e pluralismo das leituras, da coexistência, do conflito e do diá

logo entre os diversos "programas de pesquisa" (ou orientações de pesquisa relacionadas com objetos, com métodos, com cortes interpretativoscoerentes e lineares, mas difer~nciados entre si) consegue-se constituir otrabalho histórico orientado no sentido abrangente, ou seja, capaz de leros processos históricos - educativos, no caso - sem comprimir sua complexidade e variedade constitutiva, mas elegendo-a como critério semântico da pesquisa histórica, portanto como estrutura de sentido (faz-sehistória se, e somente se, se conseguir fazer reaparecer a complexidade doseventos e suas agitadas inter-relações, seu perfil instável, múltiplo e, aomesmo tempo, unitário).

No campo histórico-educativo, se o pluralismo dos níveisjá é bemreconhecido (como salientamos no parágrafo anterior), por outro lado, oconflito-diálogo - a riqueza e variedade dos "programas de pesquisa" - nãoresulta igualmente consolidado. Predominam ainda perspectivas de pesquisas tradicionais (ideológicas, sobretudo) ou girando em torno de umúnico eixo metodológico, às vezes um tanto banalmente narrativas, aopasso que seria necessário dar vida a um pluralismo mais intenso de lei

turas e d.emodelos, de maneira a realizar aquele cOI].frontode interpretações pelo qual se pode atingir a verdade: a aproximação de uma compreensão dinâmica (aberta e policêntrica) d.os.eventos histórico-educativos.

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Na pesquisa histórico-educativa existe ainda uma característica deminoridade historiográfica, qedebilidade e de insegurança de iniciativaque pode ser corrigida por ~ina consciência inetodológica mais viva, aser exercida com maior constância e coerência, como também por umavontade de superar aquela conotação ideológica que - especialmente naItália, pela contraposição já arcaica entre leigos e católicos- bloqueia a

audácia de desenvolver novas perspectivas de investigação, novosmodelosde pesquisa (ou 'mantendo-os um tanto marginalizados e ocultos). '{

5 ATIVARA MEMÓRIA PARACOMPREENDER O PRESENTE

o "fazer história" - exercido ainda nesta forma não-ideológica, débile polimorfa - representa um momento central da atividade cultural edotado de uma função específica e essencial. A história é o exercício damemória realizado para compreender o presente e para nele ler as pos

sibilidades do futuro, mesmo que seja de um futuro a construir, a escolher, a tornar possível. Mas é justamente a atividade da memória, afocalização do passado que anima o presente e o condiciona, como também o reconhecimento das suas possibilidades sufocadas ou distantes ouinterrompidas, .eportanto das expectativas que se projetam do passadopresente para o futuro, que estabelece o horizonte de sentido de nossaação, de nossas escolhas. A memória não é absolutamente o exercício deuma fuga do presente nem uma justificação genealógica daquilo que é, etampouco o inventário mais ou menos sistemático dos monumentos deum passado encerrado e definitivo que se pretende reativar por intermé

dio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez do tempo e o traçado deseus múltiplos - e também interrompidos - itinerários, a recomposiçãode um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje projetando-opara o futuro, através da indicação de um sentido, deuma ordem ou desordem, de uma execução possível ou não.

Amemória torna-se assim a categoria portante do fazer história, comseus condicionamentos e suas amnésias, seus desvios e o peso da tradição, logo com seu trabalho não-linear, sempre sub fudice, sempre incompleto, mas sempre necessário. E exercer a memória, exercê-Ia criticamente, sem fechamentos preliminares e condicionãmentos castradores,

 

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sig~ificamergulhar num trabalho de tipo hermenêutico: relacionado comuma compreensão que age como regressão e como autenticação do sentido, através do uso dos instrumentos possíveis (todos) para fazer salientarestes percursos e estes desenhos.

Amemória aplicada ao passado histórico significa o reconhecimento/apropriação de todas as formas de vida (estmturas sociais e culturais, dementalidades etc., além das tipologias do sujeito humano, seus saberes,suas linguagens, seus sentimentos etc.) que povoam aquele passado; oreconhecimento das suas identidades, suas condutas, suas contradições;

a reapropriação de seu estilo, de sua funcionalidade interna, de sua possibilidade de desenvolvimento. Tudo isso com o objetivo de repovoaraquele passado com muitas histórias entrelaçadas e em conflito e de restituir ao tempo histórico o seu pluralismo de imagem e a sua problematicidade. Com isso, entretanto, realiza-se também um distanciamento

do puro presente e de 'Suarigidez, para relê-lo, porém, sobre o fundo doqual ele emerge e, assim, relativizá-Io na audoritas que lhe vemjustamen

te do fato de ser presente (evidente e necessário, logo verdadeiro), reconsiderado segundo perspectivas críticas que ponham em evidência suasalternativas e pobrezas, possibilidades e aberturas. Através do passadocriticamente revisitado, o presente (também criticamente) se abre para ofuturo, que sevêcarregado dos impulsos não realizados do passado, mesmo o mais distante ou o mais marginalizado e sufocado. Em suma, além

de paixão pelas diversas formas de vida (pelo pluralismo do humano,podemos dizer), a memória está sempre carregada de escatologia; cargaque torna o presente projetado para o possível, para o enriquecimentode sentido e para a finalização (mesmo que seja constantemente atualiza

da), isto é, aberto sobre simesm~, problemático e envolvido na sua transformação, na sua - sempre radical - construção/reçonstrução.

Mas o exercício da memória, senão desdenha absolutamente o passado mais distante, e o privilegia àsvezes,justamente para fixar melhor aal teridade das formas de vida ou para ler as raízes mais antigas (e profundas) do presente - e sobre este plano a atenção atual dos historia

dores se fixa sobretudo na Idade Média ou na AnÜgÜidade-, deve investigar em particular o passado do qual o presente é filho, do qual carregao patrimônio genético e sobre o qual deve reconstmir a própria autonomia e a própria abertura para o possível e para a finalização. Como?

HISTÓRIA DA PEDAGOGIA 37

Compreendendo minuciosamente aquele passado em cada uma de suasformas. Inclusive nas formas.educativas que constituem talvez o trait

d'union fundamental entre o passado e o presente: elas são o meio pelo

qual o passado age no futuro através das sedimentações operadas sobreo presente.

6 A HISTÓRIA QUE ESTÁ POR TRÁS:A ANTIGÜIDADE E A IDADE MÉDIA,A MODERNIDADE E A CONTEMPORANEIDADE

Por trás do nosso presente, como infra-estrutura condicionante unitária e dotada de sentido orgânico e permanente no tempo, opera a

Modernidade. Por trás da Modernidade, coloca-se a Idade Média, e portrás desta a Idade Antiga; e, antes ainda, o Mediterrâneo como encmzi

lhada de culturas, o Oriente como matriz de muitas formas culturais doOcidente, a grande revolução do Neolítico e o advento das sociedadeshidráulicas. A história é um organismo: o que está antes condiciona o que

vem depois; assim, a partir dopresente, da Contemporaneidade e suascaracterísticas; seus problemas, deve-se remontar para trás, bem para trás,até o limiar da civilização e reconstruir o caminho complexo, não-linear,articulado, colhendo, ao mesmo tempo, seu processo e seu sentido. O

processo feito de rupturas e de desvios, de inversões e de bloqueios, depossibilidades não-maturadas e expectativas não-realizadas; o sentido referente ao ponto de vista de quem observa e, portanto, ligado à interpre

tação: nunca dado pelos "fatos", massempre construído nos e por meiodos "fatos", precário e sub judice.

A Antigüidade, também em pedagogia e em educação, consigna aoOcidente as suas estmturas mais profundas: a identidade da família, a

organização do Estado, a instituição-escola, mitos educativos (nas fábulas,por exemplo) e ritos de passagem (da infância, da adolescência), um ricomostmário de modelos socioeducativos,que vão desde a pólis grega até a

res jJUblica romana, características que se sobrepõem, se entrecortam, seentrelaçam até formar o riquíssimo tecido da educação ocidental. Alémdisso, a AntigÜidade produz a passagem, tanto em educação como em

 

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ét ica e até em gnoseologia, do ethos para a theoria, fazendo nascer a reflexão auto-regulada, universal e rigorosa, em torno dos processoseducat ivos, isto é, a pedagogia, art iculando-a numa múltipla série demodelos, também reunidos pelo ideal de paidéia: de uma formação humana que é antes de tudo formação cultural e universalização (por in

termédio da cultura e do "cultivo" do sujeito que ela implica e produz)da individualidade.

Com a revolução cristã opera-se uma radical revisão do processo e dosprincípios educativos: a paidéia organiza-se agora em sentido religioso,transcendente, teológico, ancorando-se nos saberes da fé e no modelo dapessoa do Cristo, sofredora mas profética, depositária de uma mensagemcaracterizada pela caridade e pela esperança; osprocessos educativos realizam-se sobretudo dentro de instituições religiosas (mosteiros, catedraisetc.) e são permeados de espírito cristão; toda a cultura escolar organizaseem torno da religião e de seus textos; mas, assim fazendo, toda a vidasocialse pedagogiza e opera segundo um único programa educativo, con

centrado em torno da mensagem religiosa cristã. A Idade Média inovaráab imis a tradição pedagógica e educativa, influenciando profundamente aprópria Modernidade, que dela se separa e a ela se contrapõe polemicamente, mas incorporando instâncias relacionadas tanto com o pensamento quanto com a práxis (aótica metafísica de um lado, a práxis autoritária e de domínio de outro, só para exemplificar).

A Modernidade delineia-se como o precedente mais imediato e ointerlocutor mais direto da nossa Contemporaneidade, sobre a qual de

vemos fixar o olhar , pois é esta que se trata de compreender: sem ignorar, porém, que o estudo do passado é também (e j á o dissemos) a re

cuperação de vias interrompidas, de possibilidades bloqueadas, deitinerários desprezados, que devem ser compreendidos e afirmados e indicados como alternativas possíveis não só do passado, mas também do

presente, pelo menos como alternativas teóricas, percursos diferentes,integradores e corretores de um modelo.

A Idade Moderna é um fenômeno complexo, definível de modounívoco apenas por abstração, mas dotado .de características homogêne.:1.S fortes, capazes de estruturar por muitos séculos os eventos históricos mais díspares. A Modernidade é, antes de tudo, uma mptura em

relação à Idade Média; uma mptura vert ical, já que implica transfor-

HISTÓRIA DAPEDAGOGIA ,l! l,

mações radicais em todos os campos, da econonÚa à política, da culturaà mentalidade, ao esti lo de,vida; permanente, já que age de maneiraconstante por muitos séculos; consciente também, como manifestam as

oposições às práxis medievais de economistas, políticos, intelectuais ete.Em segundo lugar, a Modernidade é uma época histórica com caracte

rísticas orgânicas e complexas que investem - como veremos mais adiante - a reorganização do poder ou dos saberes, fazendo-os assumirconotações' novas e específ icas. Foi definida como a Idade das Revo-"

luções, como o tempo da emancipação, como a base histórica que depura e legitima as diferenças: foi, sem dúvida, um arco plurissecular quecolocou no centro o problema da liberdade e o seu acidentado caminho,também o pluralismo de formas de vida, de modelos sociais, de classes,de ideologias etc. No centro deste itinerário está 1789, o ano da Revo

lução Francesa, que se põe como emblema (embora não seja absolutamente o eixo) deste percurso de liberação dos modelos tradicionais de

sociedade (ainda permeados de características medievais) e como reconstrução de uma sociedade nova, ao mesmo tempo mais livre e mais coesa.

Mas a Modernidade, em terceiro lugar, é também nascimento e de

senvolvimento de um sistema organizativo social que tem como eixo oindivíduo, mas que o alicia por meio de fortes condicionamentos porparte da coletividade, dando vida a um "mundo moderno" em cujo centro estão a eficiência no trabalho e o controle social. E foram sobretudo

Marx e Weber que sublinharam esses aspectos organizativos do moderno,como Kant, Hegel e Croce sublinharam os, acima lembrados, de liberdade e de inovação, de independência e de desenvolvimento criativo.

Através destas características - a mptura, a liberdade, o domínio capilar

- toma corpo uma era organicamente compacta que chegou até hoje",conferindo à nossa história contemporânea sua coesão e sua estmtura.

Nem mesmo a chamada Pós-Modernidade alterou em profundidade esses sinais. Até a Complexidade, que é invocada como caracter ís tica da

Pós-Modernidade, é estmtura da mesma Modernidade, da qual elaenfatiza o pluralismo e a divergência, estreitamente ligados à liberdade eà independência.

Todavia, para além de reconhecimentos gerais - e um tanto gené~rico.s- sobre as características da Modernidade, é oportuno mostrar concretamente (ou momento por momento) sua organização na diacronia dos

 

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eventos, mergulhando na reconstrução atenta da Modernidade, neste caso

pedagógica, tendo em conta também a separação que, geralmente, se faz

entre Moderno e Contemporâneo, colocando o ponto de passagem no

fim do século XVIII,entre a Revolução Industrial e a Revolução Francesa,

as quais, atuando na economia e na política, animam toda a sociedade e a

cultura, dando início a uma fase nova da Modernidade. Novafase marcada

pela centralidade das ideologias, pelas lutas sociais (de classes, de nações,

de etnias), pelo desenvolvimento tecnológico e científico (que renovou

saberes e modelos formativos), pelo crescimento da sociedade de massa

e dos mass media (que introduziu uma revolução educativa: escolar,

curricular, disciplinar, como também perceptiva, cognitiva e ética) tendo

como alvo o pensamento científico e o controle social, redefinindo radi

calmente os processos educativos (mais sociais e mais científicos) e seus

objetivos, sublinhando suas saídas aporéticas: conformação e liberação,

emancipação e controle, produtividade e livre formação humana. E des

ta condição aporética, às vezes até dramática, aberta a soluções diversas e

a instâncias até opostas, partiu o trabalho pedagógico e educativo atual,

do qual procede a pesquisa histórica e ao qual ela pretende de certo modoretornar. Já lembrava Croce: fazer história é sempre fazer história con

temporânea, mas - podemos acrescentar -, para fazer história contem

porânea, temos de reler o presente sobre o fundo do passado e de um

passado reconstruído à part entiere, isto é, inteiramente, em todas as suas

possibilidades e ramificações, até mesmo nos seus silêncios, nas repres

sões sofridas, nos seus atalhos interrompidos. Para colher não só as cau

sas diretas do presente, mas também aquele possível que está diante de

nós; aquele diferente que perdemos e que pacientemente podemos es

perar recuperar, aquele novo, aquele "não-ainda", do qual vivemos, ao

mesmo tempo, a aurora e a expectativa.

PRIMEIRA PARTE

o MUNDO ANTIGO