ESTUDO de CASO - Experiência Da Terapia Ocupacional No Cuidado Familiar Em Um Serviço de Atenção...

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Autor para correspondência: Gisele Baissi, Centro Universitário Padre Anchieta, Rua Adriano Pirani, 291, CEP 13210-430, Jundiaí, SP, Brasil, e-mail: [email protected] Recebido em 19/1/2011; 1ª Revisão em 12/5/2011; 2ª Revisão em 8/3/2012; 3ª Revisão em 6/9/2012; Aceito em 18/12/2012. ISSN 0104-4931 Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 21, n. 2, p. 413-422, 2013 http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.043 Abstract: Occupational therapy is presented as the core knowledge involved in the remodeling and strengthening of Primary Health Care in the Brazilian Unified Health Care System (Sistema Único de Saúde – SUS). In this study, we aimed to describe the interventions in the process of occupational therapy in supervised family care in a primary health care service in the municipality of Várzea Paulista, São Paulo state. In this case study, the moments of care were described and analyzed in light of narratives on the supervised practice of occupational therapy with a family. The results showed forms of intervention that characterize the process of occupational therapy focused on family health needs in favor of creativity and the role for changes in health practices in everyday life. Through the accomplishment of occupational activities directed to self-care, Occupational Therapy can aid families to cope with daily life adversity. Keywords: Occupational Therapy, Home Nursing, Primary Health Care, Family Health, Health Centers, Case Studies. Resumo: A Terapia Ocupacional é apresentada como um núcleo de conhecimento envolvido no remodelamento e no fortalecimento da Atenção Primária no Sistema Único de Saúde brasileiro. Este artigo tem como objetivo descrever as intervenções do processo de Terapia Ocupacional no cuidado familiar supervisionado em uma Unidade Básica de Saúde no município de Várzea Paulista-SP. Através do método estudo de caso, os momentos do cuidado puderam ser descritos e analisados sob a perspectiva de narrativas da prática supervisionada da Terapia Ocupacional com uma família. Os resultados apresentam formas de intervenção que caracterizam o processo de Terapia Ocupacional centrado nas necessidades de saúde da família favorável à criatividade e ao protagonismo para mudanças em práticas de saúde na vida cotidiana. Através da realização de atividades ocupacionais e direcionadas para o autocuidado, a Terapia Ocupacional pode instrumentalizar a família no enfrentamento de adversidades no cotidiano. Palavras-chave: Terapia Ocupacional, Assistência Domiciliar, Atenção Primária à Saúde, Saúde da Família, Centros de Saúde, Estudo de Caso. Experiência da Terapia Ocupacional no cuidado familiar em um serviço de Atenção Primária em Saúde 1 Gisele Baissi a , Bruno Souza Bechara Maxta b a Acadêmica do Curso de Terapia Ocupacional, Centro Universitário Padre Anchieta, Jundiaí, SP, Brasil b Mestre em Saúde Coletiva, Professor, Curso de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Occupational erapy experience in family care in a primary health care service Relato de Experiência

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TERAPIA OCUPACIONAL

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  • Autor para correspondncia: Gisele Baissi, Centro Universitrio Padre Anchieta, Rua Adriano Pirani, 291, CEP 13210-430, Jundia, SP, Brasil, e-mail: [email protected]

    Recebido em 19/1/2011; 1 Reviso em 12/5/2011; 2 Reviso em 8/3/2012; 3 Reviso em 6/9/2012; Aceito em 18/12/2012.

    ISSN 0104-4931Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 21, n. 2, p. 413-422, 2013http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.043

    Abstract: Occupational therapy is presented as the core knowledge involved in the remodeling and strengthening of Primary Health Care in the Brazilian Unified Health Care System (Sistema nico de Sade SUS). In this

    study, we aimed to describe the interventions in the process of occupational therapy in supervised family care in a primary health care service in the municipality of Vrzea Paulista, So Paulo state. In this case study, the moments of care were described and analyzed in light of narratives on the supervised practice of occupational therapy with a family. The results showed forms of intervention that characterize the process of occupational therapy focused on family health needs in favor of creativity and the role for changes in health practices in everyday life. Through the accomplishment of occupational activities directed to self-care, Occupational Therapy can aid families to cope with daily life adversity.

    Keywords: Occupational Therapy, Home Nursing, Primary Health Care, Family Health, Health Centers, Case Studies.

    Resumo: A Terapia Ocupacional apresentada como um ncleo de conhecimento envolvido no remodelamento e no fortalecimento da Ateno Primria no Sistema nico de Sade brasileiro. Este artigo tem como objetivo

    descrever as intervenes do processo de Terapia Ocupacional no cuidado familiar supervisionado em uma Unidade Bsica de Sade no municpio de Vrzea Paulista-SP. Atravs do mtodo estudo de caso, os momentos

    do cuidado puderam ser descritos e analisados sob a perspectiva de narrativas da prtica supervisionada da Terapia Ocupacional com uma famlia. Os resultados apresentam formas de interveno que caracterizam o processo de

    Terapia Ocupacional centrado nas necessidades de sade da famlia favorvel criatividade e ao protagonismo

    para mudanas em prticas de sade na vida cotidiana. Atravs da realizao de atividades ocupacionais e

    direcionadas para o autocuidado, a Terapia Ocupacional pode instrumentalizar a famlia no enfrentamento de

    adversidades no cotidiano.

    Palavras-chave: Terapia Ocupacional, Assistncia Domiciliar, Ateno Primria Sade, Sade da Famlia, Centros de Sade, Estudo de Caso.

    Experincia da Terapia Ocupacional no cuidado familiar em um servio de

    Ateno Primria em Sade1

    Gisele Baissia, Bruno Souza Bechara Maxtab

    aAcadmica do Curso de Terapia Ocupacional, Centro Universitrio Padre Anchieta, Jundia, SP, Brasil bMestre em Sade Coletiva, Professor, Curso de Terapia Ocupacional,

    Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

    Occupational Therapy experience in family care in a primary health care service

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    1 IntroduoO Sistema nico de Sade (SUS) avana nas

    polticas de sade territoriais e de humanizao no pas. Atualmente, o Ministrio da Sade aponta a Estratgia de Sade da Famlia (ESF) como um conjunto de disposies para inovar e qualificar o cuidado individual e coletivo na Ateno Primria em Sade (APS).

    Amparada pelo modelo assistencial da Vigilncia da Sade (TEIXEIRA, 1998), a ESF se prope a atuar no territrio, a realizar aes dirigidas aos problemas de sade de forma pactuada com a comunidade e a priorizar o cuidado familiar frente s situaes de sade e doena identificadas. So caractersticas da ESF, entre outras: 1) a adstrio geogrfica, populacional, epidemiolgica e das prticas existentes nos territrios de abrangncia de cada unidade de sade; 2) o planejamento estratgico e situacional; 3) a articulao entre as aes promocionais, preventivas e curativas de carter interdisciplinar e intersetorial; 4) e a participao da comunidade nas aes, projetos e ofertas de sade. Sua proposta tende a superar a dicotomia ainda existente entre as prticas coletivas, comumente reconhecidas como de vigilncia epidemiolgico-sanitrias e de assistncia ambulatorial na APS, fazendo uso de novas racionalidades de pensar e agir em sade (PAIM, 2000).

    Nesse contexto, a Clnica Ampliada apresenta-se como norte para o cuidado na ESF, pela proposio de uma abordagem de cuidado centrada no compromisso do profissional com a pessoa de modo singular, a partir da construo compartilhada de diagnsticos e das corresponsabilidades teraputicas no acolhimento, na escuta e no dilogo entre os profissionais, a famlia e a comunidade, para o provimento de projetos teraputicos singulares e coletivos (BRASIL, 2007).

    Atravs do estudo realizado com terapeutas ocupacionais atuantes na ESF do Estado de So Paulo, Jardim, Afonso e Pires (2009) identificaram que os Ncleos de Apoio a Sade da Famlia (BRASIL, 2008) so espaos de atuao desse profissional na APS. Envolvidos em equipes multiprofissionais, os terapeutas ocupacionais desenvolvem prticas de preveno e de recuperao de doenas e de agravos e de promoo da sade com crianas, jovens, adultos e idosos valorizando e intervindo sobre as atividades cotidianas. As prticas do terapeuta ocupacional se desenvolvem nos espaos internos do servio de sade, nos ambientes domiciliares e comunitrios. Os recursos e materiais utilizados pelo profissional provm tanto do servio de sade quanto do prprio usurio e da famlia.

    De maneira complementar, Caldeira (2009, p.81), em seu estudo sobre o processo de trabalho de terapeutas ocupacionais na Ateno Primria em Sade do Municpio de So Paulo, identifica que a Terapia Ocupacional

    [...] possibilita a construo de rede social, o atendimento s populaes com dificuldade de autonomia para Atividades de Vida Diria (AVD), o resgate da autoestima, o desenvolvimento da responsabilidade dos pacientes por seus cuidados e a soluo de suas dificuldades, a melhora das funes corporais e atividades cotidianas, o contato-comunicao, a relao com o outro, a expresso e percepo de potencialidades, a aprendizagem sobre a melhor forma de lidar com as limitaes, a conscientizao de aes na prtica, a retomada de papis sociais e a diminuio de preconceitos em relao s pessoas excludas.

    Nesse contexto, as intervenes do terapeuta ocupacional so, comumente, direcionadas s pessoas com deficincia e/ou sofrimento psquico e abordam as suas atividades cotidianas, as relaes interpessoais e a participao social. As prticas profissionais so dimensionadas pelo uso da atividade nos processos teraputicos ocupacionais, cujo direcionamento condicionado pelas necessidades da pessoa, pelos projetos de vida, pelos materiais e recursos da pessoa e pelo vnculo dos usurios com o profissional (CALDEIRA, 2009).

    Nesses estudos, o terapeuta ocupacional demonstra o domnio na identificao de necessidades, na anlise do cotidiano e na promoo de atividades ocupacionais, significativas, para a pessoa em seus espaos de vida, a partir de planos de cuidado pessoais ou comunitrios. O profissional contribui, portanto, para o desenvolvimento da prtica da pessoa e dos coletivos no cuidado em sade.

    Ateno Primria em Sade demonstra constituir-se como um campo emergente de atuao do profissional e, ao mesmo tempo, como espao de produo de conhecimentos que inovam a identidade, os objetivos e os objetos de cuidado do terapeuta ocupacional.

    Nesse sentido, como forma de contribuir para o debate sobre o tema, este artigo relata a experincia de um processo teraputico ocupacional supervisionado em um contexto particular de organizao de ensino-servio para o cuidado familiar.

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    a ampliao e a qualificao da assistncia de seus servios pblicos.

    A rede de sade de Vrzea Paulista composta por servios de baixa e mdia complexidade, representados por 12 Unidades Bsicas de Sade que recebem retaguarda de servios municipais de especialidades mdicas e odontolgicas, de sade mental adulto e infanto-juvenil, e hospitalares, bem como de outros equipamentos de cuidado da rede municipal e regional.

    O modelo de ateno proposto pela gesto do municpio valoriza os saberes dos profissionais e as prticas de sade existentes em cada territrio de sade. Este modelo utiliza o planejamento coletivo e preconiza o uso de tecnologias na APS para o cuidado focado na preveno e tratamento de agravos de doenas predominantes na populao, logo para a promoo de sade em respeito aos modos de vida das pessoas. A Clnica Ampliada, com as suas prerrogativas de apoio matricial na ESF (CAMPOS; DOMITTI, 2007), esto presentes no cotidiano dos servios de sade.

    A Unidade Bsica de Sade (UBS) participante do estudo formada por uma equipe multiprofissional composta por agentes de saneamento, auxiliar administrativo, auxiliar de sade bucal, auxiliar de servios gerais, cirurgies dentistas, equipe de enfermagem, mdicos e gerente. A principal proposta desse servio a adscrio territorial e o fortalecimento do vnculo com a populao atravs do planejamento e do atendimento integral das necessidades de sade na rede de servios municipais e regionais, seguindo a Programao Anual de Sade do municpio. Desde 2009, esta UBS apoiada pelas equipes de estgio supervisionado dos cursos de Terapia Ocupacional, Fisioterapia e Nutrio do Centro Universitrio Padre Anchieta Unianchieta do municpio de Jundia.

    3.2 Contexto e intervenes do processo de Terapia Ocupacional

    3.2.1 A identificao da famlia, as necessidades de sade registradas e a perspectiva do projeto teraputico ocupacional

    Em 2010, o estgio de Terapia Ocupacional direcionou as suas atividades para o apoio matricial de 12 famlias acompanhadas na UBS participante do estudo. Entre elas, a famlia Oliveira.

    1.1 Objetivo

    Descrever as intervenes do Processo de Terapia Ocupacional no cuidado familiar em uma Unidade Bsica de Sade.

    2 MetodologiaFoi realizado um estudo de caso sobre a prtica

    da Terapia Ocupacional em uma Unidade Bsica de Sade. O estudo est fundamentado nos mtodos de investigao apresentados por Lakatos e Marconi (2009) e Yin (2005). Foram utilizados como instrumentos de identificao de informaes a observao participante e a documentao direta por meio de narrativas sobre a prtica, visando qualificar as intervenes do processo de Terapia Ocupacional no cuidado de uma famlia por uma dupla de estagirias do ltimo ano do curso de Terapia Ocupacional.

    Como forma de anlise dos dados, foram adotados os procedimentos de anlise do discurso sobre as informaes teraputicas ocupacionais identificadas no pronturio clnico desta famlia. Foram consideradas as categorias de anlise Informaes pessoais e Histrias Clnicas dos familiares; Necessidades de sade e problemas relacionados com a sade; Objetivos; Abordagens tericas e prticas em terapia ocupacional; Ambientes da prtica em sade; Intervenes teraputicas ocupacionais; e Resultados alcanados como elementos importantes para organizar e contextualizar o discurso, logo descrever as intervenes do Processo de Terapia Ocupacional, sob a perspectiva de Sumsion (2003).

    3 Resultados e discusso

    3.1 Caractersticas do campo de estgio

    Vrzea Paulista um municpio do Estado de So Paulo pertencente a Regio de Sade XVI. A sua populao estimada em 107.146 habitantes (INSTITUTO..., 2010) distribudas em uma rea geogrfica urbana de 35km2 conurbada com os municpios de Jundia-SP e Campo Limpo Paulista-SP. A sua fotografia urbana apresenta regies com acentuados acidentes geogrficos: ruas ngremes, vales urbanizados e uma grande concentrao demogrfica. As casas sobrepostas e os inmeros caminhos e vielas, com escadas longas, dificultam a acessibilidade urbana. Atualmente, o municpio busca a sua autossuficincia econmica, bem como

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    a construo partilhada do processo de Terapia Ocupacional a partir do Modelo Canadense de Terapia Ocupacional.

    Desse modo, o projeto de cuidado famlia Oliveira se orientou: 1) pela abordagem centrada nos seus familiares; 2) pelo movimento de identificao de necessidades; 3) pela definio de objetivos em conjunto com os familiares; 4) pelo desenvolvimento de atividades cotidianas vinculadas s necessidades apresentadas, com a utilizao de instrumentos e recursos provenientes do territrio; e 5) pela avaliao conjunta dos resultados alcanados.

    3.2.2 Primeiro momento com a famliaO primeiro momento com a famlia Oliveira

    objetivou o reencontro entre o supervisor de estgio e os familiares, a apresentao das novas estagirias de Terapia Ocupacional e o dilogo sobre a situao atual de sade da famlia. Para isso, optou-se pela visita domiciliar, pela possibilidade de conhecer familiares e as situaes de sade no espao da vida prtica, cotidiana. O agendamento dessa interveno foi realizado pela equipe de sade.

    Quando chegamos no domiclio, fomos recebidos por Jlia, que relatou estar banhando Jos no leito. O banho no leito acontece quando Jos apresenta dificuldades para locomover-se at o banheiroatividade realizada todos os dias, nas primeiras horas da manh. Observamos que o quarto do casal possua duas camas, uma cmoda e um armrio de roupas. As duas camas eram separadas por uma cmoda onde ficava a TV, posicionada para Jos. A disposio desses objetos permitia pouca mobilidade e espao para transferncias. Permanecemos no quarto, conversando com o casal. Jos se mostrou bastante receptivo, relembrando as estagirias do semestre anterior e relatando o quanto fora importante o trabalho realizado. Oferecemos a continuao dos atendimentos, com o propsito inicial de continuar com o trabalhado desenvolvido no semestre anterior, e de ajudar com as atividades que ele e a esposa desenvolviam no dia a dia. Ambos permitiram a continuidade do acompanhamento e combinamos encontros semanais. Ao terminarmos a conversa, Jlia nos mostrou a sua casa. Observamos que o domiclio tinha dois quartos, sala, sala de jantar, cozinha, um banheiro, lavanderia e uma rea na frente da casa onde o casal criava dois papagaios e dois cachorros e tambm cuidava de vrias plantas. Jlia informou que Jos passava o dia em seu quarto, assistindo televiso. Relatou as dificuldades que encontrava para organizar o cuidado do marido e as atividades domsticas.

    Nesse primeiro momento, foi iniciado dilogo sobre o histrico dos problemas e das necessidades de sade dos familiares, particularmente, sobre

    Em setembro de 2010, o ncleo da famlia Oliveira era composto pelo casal Jos e Jlia.

    No pronturio de Jos foram identificados registros, entre os anos de 1995 a 2010, realizados por profissionais mdicos, enfermeiros e estagirios de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Jos, 75 anos, apresentava cncer de prstata com metstases mltiplas na regio abdominal associadas a diabetes mellitus e a hipertenso arterial sistmica. No h registros de sintomas de demncia senil. Ele relatava dores frequentes nas costas, na regio abdominal e nas articulaes dos membros inferiores. No contexto de suas atividades cotidianas, expressava o sofrimento por ter dificuldades para movimentar-se, deslocar-se de sua cama para outro cmodo em seu domiclio. Queixava-se de muito cansao durante a realizao de atividades como alimentar-se, banhar-se e vestir-se. O Jos fazia uso contnuo de medicao. As prticas de sade identificadas referiam-se aos cuidados da diabetes, da hipertenso arterial, dos sintomas relacionados neoplasia e funcionalidade nas atividades de vida diria.

    No pronturio de Jlia, foram encontrados registros de consultas de rotina com mdico clnico geral e uso de medicamentos relacionados dor, bem como abordagens pontuais da equipe na mediao de conflitos entre ela e Jos, e entre o casal e os seus filhos. Havia relatos de que os encontros familiares eram permeados por discusses e desentendimentos. Jlia se considerava abandonada pelos seus filhos. Ela almejava o apoio dos filhos para o cuidado do marido. Jlia relatava dificuldades na organizao de informaes mdicas, em adquirir e administrar a medicao e para levar o marido s consultas de acompanhamento clnico.

    Desses registros, as abordagens anteriores da Terapia Ocupacional centraram-se no apoio s prticas comumente realizadas pela equipe de enfermagem, somando-se a um plano de cuidado familiar que objetivava: 1) a organizao da rotina do casal; 2) o conforto fsico e a independncia funcional do Jos; 3) o suporte emocional a Jlia; e 4) a reaproximao dos filhos do ambiente familiar.

    A partir dessas informaes, em conjunto com a equipe de sade, foi dado incio atualizao do projeto teraputico ocupacional para a famlia Oliveira, considerando o atual contexto familiar, os resultados e os desafios apontados pelos processos anteriores.

    Para essa etapa foram consideradas as indicaes de Siegman, Pinheiro e Almeida (2002), que orientam a programao e interveno articulada com a equipe de sade local, e a leitura de Mngia (2002) para

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    casamento com Jlia, que segundo ele foi realizado por um juiz em Alagoas, pois o pai de Jlia no aceitou o pedido de casamento, obrigando o casal a fugir para se casar. Casaram-se apenas no civil, gerando em Jlia a vontade de se casar na igreja, o que aconteceu, porm vrios anos depois. Jos e Jlia so migrantes de Pernambuco e residem no estado de So Paulo h mais de 50 anos. At se aposentarem, Jos trabalhava como pedreiro e Jlia era cozinheira. Ao falar da situao de doena de Jos, Jlia queixou-se das dificuldades com a organizao dos exames de Jos. Acrescentou que no conseguia mais dormir durante a noite, pois ele sente muitas dores e tambm no consegue cozinhar e cuidar do marido ao mesmo tempo. Orientamos Jlia a cozinhar apenas uma vez no dia e em maior quantidade, armazenando uma parte desses alimentos em ambiente refrigerado, para aumentar sua durabilidade, e possibilitando o reaquecimento rpido para ingesto na prxima refeio. Jlia relatou-nos tambm sobre uma queda na rua, h cinco meses, da qual ela ainda sente dores; queixou-se tambm da ausncia dos filhos. Ela gostaria de t-los prximos para ajud-la. Nesse momento fomos surpreendidas com a chegada de uma das filhas, que mora na casa ao lado. Ao nos apresentar, Jlia referiu-se a essa filha, falando que ela no tem tempo para nos visitar(sic Jlia). Essa fala gerou uma situao conflituosa entre me e filha. Ambas agrediram-se verbalmente. No intuito de trabalhar com a situao, propusemos um momento de conversa com a filha, que no aconteceu. Jos e Jlia novamente solicitaram ajuda.

    O segundo atendimento apresentou um importante momento da vida do casal e foi conduzido pelos relatos das necessidades de sade de Jlia em um momento de atividade de vida diria do casal.

    Enquanto Jlia esquentava gua para fazer um caf, ela expressava as dificuldades em organizar suas atividades e o seu sofrimento com relao ao cuidado do marido e com relao ao comportamento dos seus filhos. A chegada de uma das filhas do casal, no momento da atividade, influenciou o comportamento agressivo de Jlia. A dupla de estagirias buscou envolver a filha na atividade e restabelecer um equilbrio nessa relao, com dificuldades. Jos e Jlia mostraram-se envergonhados e tristes com a situao ocorrida. O momento foi oportuno para o dilogo sobre a relao familiar e para o direcionamento do processo teraputico.

    A partir desse acontecimento, o plano de trabalho da Terapia Ocupacional se remodela. Reconhecendo: 1) a necessidade de qualificar a comunicao e a relao interpessoal dos familiares; 2) que Jos e Jlia vivem na residncia e recebem visitas dos filhos e amigos periodicamente; 3) que as necessidades de

    a evoluo dos sintomas e patologias associadas situao do Jos. Em um segundo momento, conversou-se sobre as atividades que ambos realizavam de forma superar esses problemas.

    As principais dificuldades apontadas foram as frequentes e fortes dores que Jos sentia nos membros inferiores, a dificuldade para ele transferir-se da cama, alm de dvidas na utilizao do colcho casca de ovo. As atividades centravam-se no descanso, no uso da medicao, no controle da dieta e no deslocamento para o acompanhamento clnico em servios de sade.

    Aproveitando o dilogo sobre o tema autocuidado, foram instrudos e realizados posicionamentos e mudanas de decbito, considerando o modo como Jos realizava as atividades dirias em seu leito, como: conversar com sua mulher, assistir televiso, alimentao e medicao. Tambm foi orientado sobre a melhor forma de utilizao do colcho, no intuito de melhorar-se a circulao sangunea e prevenir escaras em pontos de presso no corpo de Jos.

    A partir desse encontro, a residncia mostrou-se como um setting de inmeras possibilidades prticas, um solo frtil para a anlise e para o aprimoramento das atividades de sade do casal. Sob o consentimento de Jos e Jlia, um novo processo de cuidado foi iniciado.

    Munidos da abordagem canadense da Prtica Baseada no Cliente (SUMSION, 2003), as estagirias constituram-se como facilitadores e articuladores das realizaes de Jos e Jlia em seu ambiente de vida, nesse momento, vinculados ao domiclio e envolvidos com os materiais e recursos do cotidiano familiar do casal. Os objetivos do trabalho foram definidos e priorizados em conjunto com eles, tendo como foco a promoo de atividades voltadas s necessidades apresentadas, os projetos de vida e de cuidado vigentes. Para isso foi elaborado um instrumento no padronizados para observao e registro de informaes sobre as atividades cotidianas do ncleo familiar considerando o Genograma e o Ecomapa Familiar (WENDT; CREPALDI, 2007) e a Medida de Performance Ocupacional (LAWetal., 2009), essa ltima voltada s narrativas sobre o cotidiano e aos problemas envolvidos nas reas de desempenho ocupacionais de autocuidado, de produtividade e de lazer de Jos e de Jlia.

    3.2.3 Segundo momento

    Na residncia da famlia,Em sua cama, Jos se ateve em contar sobre a

    sua histria. Falou sobre sua terra natal e sobre seu

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    homens; e crculos de EVA vermelhos (de 3 cm de dimetro) representando as mulheres. No processo, a tarefa do casal, auxiliado pelas estagirias, era ordenar e identificar os integrantes de sua famlia na seguinte ordem: Bisavs, avs, pais e filhos, no caso composta por Jlia e seus irmos, e por Jos e os irmos dele. Construmos os mapas familiares separadamente: um para Jlia (Figura 1) e um para Jos (Figura 2).

    Tanto Jos quanto Jlia demonstraram interesse e envolveram-se com a atividade.

    Ao trmino da confeco do mapa genealgico e ao representar verbalmente a sua famlia, Jlia relatou ter sido adotada e que nunca conheceu sua me. Acrescentou que sempre quis t-la conhecido. Relatou ainda que cresceu em Pernambuco, ao lado do pai e dos irmos, tambm adotivos. Disse tambm no ter conhecido os avs e bisavs paternos e teve muitas dificuldades para lembrar o nome de integrantes de sua famlia. Foi tirada da escola muito cedo, aprendeu o nome de todas as letras mas no a ler e escrever. Aos 13 anos, casou-se escondida com Jos, pois o pai era contra o casamento. Jos relatou ter duas irms, as nicas vivas, de outro casamento da me. Disse ter crescido

    sade de Jos indicam dificuldades na realizao de atividades de autocuidado e a situao de dor, na transferncia e na locomoo em sua residncia; 4) e que as necessidades de Jlia envolvem papel de cuidadora e o sofrimento emocional em 5) uma conjuntura familiar de conflitos interpessoais, os objetivos da Terapia Ocupacional, para alm de fortalecer a independncia e a autonomia de Jos em suas atividades de vida diria, foi proporcionar encontros familiares no intuito de aproximar valores, pensamentos e ideias que culminassem em novas prticas/atividades significativas capazes de responder s necessidades afetivas de cada integrante da famlia.

    3.2.4 Terceiro momento

    Jlia estava preparando leite para Jos, que estava sentado na cama, assistindo o noticirio. Enquanto esquentava o leite, o marido fez muitos comentrios, demonstrando indignao sobre a violncia e a corrupo no pas. Aps tomar o leite sentado em sua cama, Jos comeou a sentir dores e deitou-se sozinho. Oferecemos ajuda para posicion-lo na cama de maneira favorvel respirao e comunicao. Jlia demonstrou extrema necessidade de ser acolhida. Ela abordou o assunto dos exames e do afastamento dos filhos novamente, dando-nos margem para perguntar sobre a intercorrncia da semana anterior. Em relao filha, ela diz que, desde ento, no se viram mais, alegando que os filhos no tm jeito (sic Jlia), demonstrando estar desanimada e frustrada com o comportamento deles.

    Nesse encontro, o sentimento de desnimo e de frustrao do casal foram trabalhados pelas estagirias como algo positivo para a aproximao afetiva de Jos e de Jlia, de maneira que ambos pudessem pensar juntos em como enfrentar essas dificuldades e necessidades.

    A partir das histrias de vida, foi proposto o planejamento de uma atividade que contribusse para a reflexo e o dilogo sobre a histria, sobre os valores, sobre as pessoas e as relaes familiares. As estagirias propuseram a confeco do mapa da famlia Oliveira.

    3.2.5 Quarto momento

    A proposta da confeco do mapa da famlia Oliveira foi retomada pelas estagirias e aceita por Jos e Jlia, que participaram da atividade. Os materiais utilizados para a confeco do mapa foram trazidos pelas estagirias: duas placas de papelo, pequenos pedaos quadrados de Etil Vinil Acetato, conhecido como EVA, azul (de 3 cm x 3 cm), representando os

    Figura 1. Mapa genealgico da famlia de Jlia.

    Figura 2. Mapa genealgico da famlia de Jos.

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    Com a realizao dessa atividade foi possvel identificar todos os atuais integrantes da famlia (Figura3). A realizao da atividade ajudou Jos a trabalhar o seu sentimento de morte. O resgate das histrias de sua vida possibilitou recoloca-lo no papel de marido e paiimportantes para o direcionamento das atividades que do sentido a sua vida.

    O resultado do mapa genealgico estimulou o casal a sugerir a atividade seguinte: realizao da renovao dos votos do casal pela simulao de um novo casamento. Essa escolha demonstra uma atitude positiva de encorajamento e protagonismo importantes de serem exercidas em outros momentos do cotidiano familiar.

    3.2.7 Sexto momento

    Ao chegarmos residncia, Jlia nos atendeu e nos levou at o quarto de Jos. Esse momento teve como objetivo realizar a atividade da simulao do casamento com o objetivo de resgatar e valorizar a importncia da unio que se mantm aps 52 anos de matrimnio. Cada estagiria ficou com um dos cnjuges durante a preparao para a simulao da cerimnia. Toda atividade foi filmada e registrada em fotos a pedido do casal. As imagens foram produzidas pelas estagirias utilizando cmeras fotogrficas digitais de propriedade delas mesmas. Jos se preparou para a atividade colocando uma gravata e arrumando a camisa que j vestia. Ele demonstrou-se ansioso para ver logo a esposa vestida de noiva. Jos tambm fez questo de ficar em p para a cerimnia, apoiado em duas muletas. A preparao de Jlia consistiu em maquiagem e a colocao de um vu. Ela mostrou-se entusiasmada, escolhendo a maquiagem e se olhando a todo momento no espelho. Com o casal pronto, demos incio simulao de casamento para renovao dos votos. Ao som da marcha nupcial, em um dispositivo sonoro de um celular, levamos Jlia para o quarto onde j se encontrava o marido. Ela ficou surpresa ao ver que

    convivendo com os avs, mas no conheceu seus bisavs, pois j eram falecidos, e apresentou muitas dificuldades para lembrar o noms de integrantes de sua famlia.

    A atividade de confeco do mapa da famlia forneceu uma experincia prtica nova para o casal e possibilitou dilogos para alm da representao de seus integrantes e de como se davam as relaes entre eles. Ao desenvolver o mapa familiar, as estagirias resgataram a histria da famlia, dialogando sobre o tema afetividade/conflito, unio/distanciamento entre as pessoas. A atividade serviu para ajudar o casal a delimitar os objetivos de vida, organizar as atividades dirias conjuntas e como encorajamento para novos protagonismos. Aps o trmino da atividade, o casal se prontificou a juntar os dois mapas em um grande mapa familiar.

    3.2.6 Quinto momento

    Com o objetivo de confeccionar o grande mapa familiar a partir da atividade anterior:

    Chegamos casa do casal e encontramos Jlia cuidando dos afazeres domsticos. Ela estava calma ao nos receber. Suas preocupaes eram em relao pintura da casa, que estava sendo realizada, e com Jos, que no estava bem. Aps nos receber, Jlia relatou ter passado a noite com o marido no hospital, pois ele havia passado mal e desmaiado. Jos estava em seu quarto, deitado e aparentemente abatido, devido noite no hospital. Ele nos relatou sobre o que havia acontecido, dizendo estou preparado para os planos de Deus, mas tenho medo de morrer (sic). Acolhemos os sentimentos de Jos, dialogando sobre sua fora emocional e empenho em superar dificuldades. Logo em seguida, Jlia se juntou a ns perguntando sobre a continuao da atividade, ento demos incio construo da segunda parte do mapa genealgico da famlia.

    Para esse mapa foram utilizados materiais iguais aos do mapa anterior. Nessa dinmica, Jlia realizou a atividade em p, ao lado da cama de Jos, que realizou a atividade deitado, posicionado sobre almofadas. Utilizamos como apoio para a placa de papelo uma bandeja providenciada pelas estagirias. Durante a realizao da atividade, Jos e Jlia demonstraram confuso ao tentar lembrar de todos os netos e bisnetos, pois tm uma quantidade grande de filhos e alguns dos netos e bisnetos eles no conhecem, fato que, segundo o casal, os deixa muito tristes. Jos pertencente a uma famlia com muitos irmos, relatou que precisou trabalhar desde criana. Os auxiliamos com a disposio das peas e a colagem na placa. Figura 3. Mapa genealgico da famlia Oliveira.

  • Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 21, n. 2, p. 413-422, 2013

    420 Experincia da Terapia Ocupacional no cuidado familiar em um servio de Ateno Primria em Sade

    frequentemente. Com o objetivo de identificarmos rede de suporte social e estimularmos a aproximao de amigos no cotidiano do casal propusemos ento a montagem de um novo mapa que identificasse as pessoas que fazem parte do cotidiano da famlia, ideia aceita prontamente. Essa atividade consistia em apontar os personagens do cotidiano do casal. Dividimos uma folha de papel em reas que tinham o nome dos principais servios utilizados pelo casal, como: igreja, comrcio, sade. Inserimos tambm duas reas compostas por famlia e vizinhos. Junto ao casal, identificamos quais familiares e vizinhos constituem o dia a dia. Quando fizemos referncia filha que morava na casa ao lado, Jlia dispensou a necessidade de registr-la no mapa, alegando que ela no os auxiliava. Explicamos que independentemente de eles receberem ou no auxlio da filha, poderamos registr-la na atividade, j que recebiam frequentemente a visita dela. Jlia a incluiu no mapa. Finalizamos a atividade enfatizando quem fazia parte da rede de apoio do casal. Esta atividade deu margem a que o casal se queixasse da assistncia recebida da ambulncia da prefeitura e da UBS, referindo a ausncia de visitas que eram regularmente realizadas pela equipe de enfermagem, para aferio de presso arterial e glicemiaque atualmente so realizadas por uma vizinha. Combinamos que no prximo atendimento levaramos a gravao do vdeo da atividade de simulao do casamento.

    Nesse processo de cuidado, a proposta de construo do ecomapa se configurou como um instrumento pertinente para anlise e direcionamentos de atividades com as pessoas que fazem parte das redes sociais do casal. Na famlia Oliveira, o ecomapa (Figura4) objetivou a identificao, o reconhecimento dos lugares, dos servios e das pessoas que so referncia para o casal, enfatizando suas redes de apoio - seja no auxlio execuo das atividades de vida diria, seja na manuteno da casa e dos insumos, seja apenas no convvio social (SOUZA; KANTORSKI, 2009) - j que o casal possui vrios amigos vizinhos.

    O ecomapa em conjunto com o genograma familiar, para alm do diagnstico de uma determinada configurao familiar, contriburam para que as estagirias compreendessem as relaes da famlia no cotidiano e identificassem os espaos significativos na comunidade em que a vida de Jos e Jlia acontece, para assim ter mais elementos para avaliar e direcionar os caminhos do processo teraputico ocupacional.

    O momento da construo do ecomapa provocou em Jos a expresso de crticas sobre cidadania e direitos sociais. Ele defende as suas necessidades e o seu direito de sade atravs da verbalizao dos

    Jos estava em p para receb-la. Por serem religiosos, lemos uma passagem bblica do Novo Testamento, que falava a respeito de amor. Tanto o casal como ns ficamos muito emocionados com a renovao dos votos. Aps finalizarmos a atividade o casal falou a respeito da importncia do amor e da unio e do quanto gostaram da atividade, dizendo que nunca ningum fez isso por ns e que Deus enviou vocs para ns.

    Amparados pelos referenciais de Moreno (1974), foi utilizado o instrumental do psicodrama para promover vivncias significativas do casal. Notamos que, atravs desse recurso, pde-se resgatar e valorizar uma questo intrnseca de Jlia, j que ela sempre se lamentava de no ter podido realizar uma cerimnia de casamento na igreja e de ter-se casado com Jos fugindo das famlias. Por outro lado, o casal reassumiu a identidade matrimonial, pois resgataram as alianas h tempos guardadas junto com outros objetos pessoais de Jlia. Para essa atividade, Jlia destinou um perodo do seu dia realizao de cuidados pessoais, contribuindo para a valorizao de sua identidade, valores e imagem corporal.

    Outra reflexo suscitada pela anlise do significado dessa atividade ocorreu com o comportamento de superao de Jos com relao aos obstculos em suas atividades de vida diria e com relao s dores. Com pouca assistncia, ele vestiu uma gravata sobre a camisa que j vestia e ficou de p para receber a esposa. E ainda solicitou que o momento fosse registrado em fotografia e vdeo.

    Foi identificado que os valores religiosos do casal estiveram presentes na atividade. Atravs da religio, ambos buscam respostas e apoio aos seus sofrimentos. Atualmente, so pelas palavras e pelas atividades de colegas da igreja que o casal recebe suporte social de cuidado.

    3.2.8 Stimo momento

    Fomos recebidas por Jlia. Ao entrarmos no domiclio, encontramos seu. Jos sentado na cama, assistindo ao noticirio. Conversamos sobre a atividade realizada no atendimento anterior. Entregamos a foto feita a pedido do casal. Ficaram felizes por terem o momento registrado e colocaram a foto na estante da sala. Em nossa abordagem prtica, retomamos a atividade do mapa genealgico da famlia, entregamos as placas agora compostas por todos os integrantes da famlia do casal. Ambos demonstraram desejo de pendurar o mapa na parede do quarto do casal. Informamos a eles que o vdeo produzido durante a atividade de simulao da renovao dos votos estava sendo editado e ficaria pronto na semana seguinte. Jos ficou satisfeito, pois desejava mostrar o vdeo aos amigos que os visitavam

  • 421Baissi, G.; Maxta, B. S. B.

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    mostraram-se animados por relembrarem o momento e por se verem na televiso, chamando o pintor para assistir junto. Ao finalizarmos a atividade, conversamos sobre todo o processo de acompanhamento do semestre. O momento de despedida, por conta do fim do estgio, estava prximo. Abordamos o assunto e conversamos sobre o vnculo teraputico que foi construdo, a receptividade do casal com as estagirias, a importncia e a ligao de cada atividade realizada. O resgate das vivncias de marido e mulher e a informao de que houve uma reaproximao com a sua filha foram os assuntos trazidos pelo casal.

    A reproduo do vdeo e a reaproximao da filha na vida domiciliar do casal finalizaram um processo que teve como eixo as ideias, os protagonismos, os afetos e as prticas. As estagirias reconheceram, junto famlia e posteriormente com a equipe de sade, que os objetivos traados foram parcialmente alcanados e que merecem a continuidade do acompanhamento pela UBS.

    4 Consideraes finaisEste artigo apresentou intervenes do processo

    de Terapia Ocupacional no cuidado familiar em uma realidade de servio da Ateno Primria em Sade. O processo teraputico ocupacional com a famlia Oliveira se desenvolveu sob a abordagem canadense da Prtica Baseada no Cliente adaptada para o contexto familiar considerando as prerrogativas da ESF.

    Nesse processo, Jos e Jlia configuraram-se como os familiares centrais do cuidado. Os atendimentos aconteceram no ambiente domiciliar, a partir da interao de recursos e desenvolvimento de atividades integrantes da realidade do casal, por vezes com a necessria adaptao pelas estagirias.

    O manejo das ocupaes de Jos e Jlia, e a incorporao de atividades significativas famlia contriburam para as intervenes do processo de sade e doena, na preveno de agravos e na promoo de sade atravs de uma relao horizontal entre as estagirias e os familiares. As estagirias se constituram, portanto, como facilitadoras e parceiras no desempenho de novas prticas de sade correspondentes s necessidades apresentadas.

    Nesse movimento, a identificao de necessidades e o estabelecimento de prioridades foram constantemente remodelados, respeitando, por um lado, os momentos e direcionamentos do casal e, por outro, as anlises das atividades e os acontecimentos nas prticas realizadas.

    seus sofrimentos e ideias para melhorar os servios pblicos. Segundo ele, para que consiga sucesso em suas atividades de cuidado de sade, ele depende de sua mulher e de sua rede de suporte social, incluindo profissionais de sade de sua unidade de referncia. A no garantia do transporte para uma consulta ou tratamento ou mesmo a ausncia de familiares e amigos nesses momentos colocam em risco a viabilidade dessas atividades, logo de seu projeto, e sentido, de vida.

    As colocaes de Jos evidenciam os posicionamentos de Siegman, Pinheiro e Almeida (2002), conforme os quais a condio experimentada por parte significativa das pessoas que sofrem de uma doena crnica ou degenerativa a de confinamento domstico, em que as atividades domsticas e de cuidado se configuram como eixo principal em torno do qual a vida se organiza. Nessa condio, a participao social da pessoa torna-se comprometida (CALDEIRA, 2009), orientando o empenho da Terapia Ocupacional voltada construo de espaos e atividades que possibilitem trocas pessoais.

    Como etapa do processo teraputico, e movimento consentido pelo casal, as estagirias contriburam para a aproximao de uma vizinha no cuidado dirio de Jos e para a reaproximao da equipe da UBS do cotidiano da famlia Oliveira.

    3.2.9 Oitavo momento

    Ao fim do processo de Terapia Ocupacional,Fomos recebidas por Jlia. Encontramos Jos no

    quarto, deitado em sua cama, e observamos que havia uma pessoa pintando a porta do quarto ao lado. Na oitava e ltima visita realizamos a reproduo do vdeo do casamento. Utilizamos um vdeogame que reproduz DVD de uma das estagirias como recurso, pois o casal possui apenas videocassete. Aps organizarmos o ambiente, instalando o videogame, Jos sentou-se na cama com ajuda de assistncia verbal de uma das estagirias. Durante a reproduo do vdeo, ambos

    Figura 4. Ecomapa da famlia Oliveira.

  • Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 21, n. 2, p. 413-422, 2013

    422 Experincia da Terapia Ocupacional no cuidado familiar em um servio de Ateno Primria em Sade

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    Entende-se que a breve descrio e anlise dessa experincia apresenta parte do complexo processo teraputico desenvolvido. No entanto, o seu movimento e as situaes nele destacadas contribuem para ampliar o debate sobre os fundamentos da Terapia Ocupacional e sobre a conduta do terapeuta ocupacional, em particular daquele em formao, no cuidado familiar na Ateno Primria em Sade.

    RefernciasBRASIL. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. Ncleo Tcnico da Poltica Nacional de Humanizao. Clnica ampliada, equipe de referncia e projeto teraputico singular. Braslia: Ministrio da Sade, 2007. Disponvel em: . Acesso em: 10 jan. 2011.BRASIL. Ministrio da Sade. Portaria GM n 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Ncleos de Apoio Sade da Famlia-NASF. Dirio Oficial da Repblica Federativa do Brasil, Poder Executivo, Braslia, DF, 25 jan. 2008. Seo 1, n.18. Disponvel em: . Acesso em: 10 jan. 2011.CALDEIRA, V. A. Prtica de Terapia Ocupacional em unidade bsica de sade na ateno s pessoas com deficincia. 2009. 170f. Dissertao (Mestrado em Movimento, Postura e Ao Humana)-Faculdade de Medicina, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referncia: uma metodologia para gesto do trabalho interdisciplinar em sade. Cadernos de Sade Pblica, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2007000200016INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA-IBGE. Estatstica populacional So Paulo. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponvel em: . Acesso em: 19 jan. 2011.

    Contribuio dos AutoresGisele Baissi: Responsvel pela concepo do artigo, reviso e organizao bibliogrfica, realizao do estudo de caso, das anlises e discusso dos dados, redao e reviso final do texto. Bruno Souza Bechara Maxta: Responsvel pela concepo do artigo, orientao tcnica e metodolgica do relato de experincia, anlise e discusso dos dados e reviso final do texto.

    Notas1 O estudo foi aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa em Seres Humanos da instituio de ensino relacionada, sob

    protocolo n. 109/2010.2 Os nomes identificados neste estudo so fictcios, preservando a privacidade dos participantes da pesquisa.