Terapia Ocupacional - Berenice Rosa Francisco

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BERENICE ROSA FRANCISCO

Terapia Ocupacional

AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar meus agradecimentos a todos que, direta ou indiretamente, permitiram que este estudo acontecesse.Em primeiro lugar aos colegas do Departamento de Terapia Ocupacional pelo apoio e liberdade de pesquisa, sem os quais nenhum trabalho pode ser realmente frutífero. Sobretudo a Sandra Maria Galheigo e a Maria de Lourdes Feriotti a minha dívida de gratidão pelos debates radicais na busca dos fundamentos da terapia ocupacional. A Moacir Gadotti e Jeferson Ildefonso, pessoas queridas, educadores altamente interessados, que através de suas aulas e conversas de corredor muito contribuíram para a minha investida como educadora e terapeuta educacional.A profissionais como Léa Beatriz Teixeira Soares, incessante batalhadora por uma terapia ocupacional engajada/crítica.

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A PUCCAMP, onde o presente trabalho foi desen-volvido proporcionando a oportunidade dessa experiência.Finalmente, aos editores meus agradecimentos pela acolhida a este livro.

ÍNDICE

AOS LEITORESPRIMEIRA PARTE:• Terapia ocupacional: uma questão de conheci-mento ..................................................... 1. Considerações acerca dos mal-entendidos2. Conceitos formais: verdade universal?3. Terapia ocupacional: profissão nova?SEGUNDA PARTE:. Atividade humana x recurso terapêutico1. Considerações gerais2. Primeiros princípios3. Atividade = exercício4. Atividade — produção5. Atividade = expressão6. Atividade = criação, transformaçãoTERCEIRA PARTE:• Concepção "ingênua" e concepção crítica da terapia ocupacional (modelos do processo)1. Considerações gerais2. Modelo do processo de terapia ocupacional humanista3. Modelo do processo de terapia ocupacional positivista4. Modelo do processo de terapia ocupacional materialista histórico

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Terapia Ocupacional.....................................................2AGRADECIMENTOS........................................................2

AOS LEITORES

Este é o primeiro livro que escrevo e como tudo o que é primeiro, as expectativas depositadas chegam a dar um friozinho na barriga. Por esse mesmo motivo, muitos foram os momentos de conflitos, bloqueios, medos, porém tudo isso foi vivido com muita vontade de chegar ao fim.Este livro é parte do projeto de extensão que, du-rante 1987, eu e Denise Mulati desenvolvemos como docentes do Departamento de Terapia Ocupacional do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional da Faculdade de Ciências Médicas da PUCCAMP.Nosso projeto: "Recriando e reescrevendo a terapia ocupacional" tem uma longa história que começa em 1986, quando eu e Sandra Maria Galheigo, também professora do departamento, o elaboramos para concorrer ao financiamento da pesquisa pelo Projeto Nova Universidade.Nessa época o projeto não foi aceito, por não se enquadrar na área à qual vinculávamos nossa pesquisa, a editoração. Tal área dispunha-se apenas a editorar textos já prontos, e o nosso propósito era receber o financiamento para que pudéssemos elaborar, escrever o texto. Pois como professores horistas, precisaríamos, deixar, diminuir a carga horária de trabalho, para que pudéssemos dedicar-nos a tal pesquisa.Com a não aceitação, o projeto ficou engavetado. Em fevereiro do ano seguinte, resolvi concorrer à

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entrada no regime "de carreira experimental" da Universidade e, como já existia esse projeto tão querido por nós, fui conversar com Sandra, até então parceira do projeto. Como esta já se encontrava em regime de carreira, desenvolvendo sua tese de mestrado, colocou-me à vontade para que o apresentasse para ingresso na carreira.E aqui entra Denise, nova parceira, disposta tam-bém a desenvolver um trabalho, com perspectivas de abrir caminhos onde os profissionais da área pudessem publicar suas experiências: uma revista de terapia ocupacional.O projeto foi aceito e partimos então para nossa pesquisa. Com o transcorrer do primeiro semestre, entre as dificuldades de contatos, acesso a material bibliográfico da área e muitos outros imprevistos, a publicação da revista tornou-se inviável. O projeto sofreu então alterações em seu segundo momento, passando a englobar um livro texto básico de terapia ocupacional e um centro de consultoria bibliográfica em terapia ocupacional.Como meu envolvimento com o livro já vinha cami-nhando, continuei a me ocupar dele, e Denise assumiu o centro de consultoria. Chegamos ao final da pesquisa e aqui estamos com o livro.A terapia ocupacional teve seu surgimento no Brasil na década de 50 e, no transcorrer desses 30 anos, várias são as questões que vêm sendo arrastadas pelos terapeutas ocupacionais a duras penas. Dentre essas, a mais significativa é, a nosso ver, a falta de produção teórica e publicações na área.

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Tal situação advém de, em nosso país, não existi-rem cursos de pós-formação na área e das condições de trabalho oferecidas pelas escolas, o que prejudica o desenvolvimento da capacitação docente e, conseqüentemente, a produção e a publicação de material bibliográfico.É neste contexto que os docentes de terapia ocupacional fazem altos malabarismos para levar a cabo seus trabalhos como educadores. Pois, de um lado, contam com uma dezena de livros publicados no país, dos quais alguns são edições antigas não reeditadas, tendo ainda a peculiaridade de ser relatos de experiências na área de saúde mental. De outro lado, no nível didático, as publicações utilizadas são em língua estrangeira e ou suas traduções em espanhol, que datam da década de 60; são utilizados também artigos de jornais e revistas importados, os quais não refletem a realidade brasileira.Sabemos as dificuldades que encontram os profis-sionais para desenvolver seus trabalhos, hoje, no Brasil. O que provoca as mais variadas atitudes no meio dos terapeutas, desde profundo desânimo, passando por atitudes pragmáticas e chegando às vezes a um aceitar a luta e lançar-se a ela de maneira a conjugar todos os esforços para superá-la.Estamos aqui, em um primeiro momento da luta — o do desvelamento — e ainda à procura das saídas para a superação.Quando pensamos em terapia ocupacional devemos nos reportar ao problema da interdisciplinaridade nela contida.

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Dessa forma, optamos por uma discussão em torno dos pressupostos, fundamentos da terapia ocupacional, procurando mostrar o seu papel como instrumento mantenedor ou transformador da sociedade. É necessário, então, levarmos em conta como e para que este ou aquele modelo de terapia ocupacional é pensado e utilizado. Para tanto, utilizaremos a concepção materialista da história, a qual nos possibilitará uma compreensão melhor dos mecanismos pelos quais a prática terapêutica se apresenta.Consideramos que a terapia ocupacional deva ser entendida como uma entre as demais práticas sociais, capazes de criar as condições necessárias para a realização da transformação social. Sendo fundamental para tal compreensão questionar como existe na sociedade e sob que condições é praticada: contra ou a favor de qual homem ou classe social.Neste trabalho trazemos, num primeiro momento, breve discussão em torno da profissão, quanto às questões dos mal-entendidos, aos conceitos e à sua história, visto que observamos uma total e absoluta falta de conhecimento do que seja a terapia ocupacional, tanto por parte da população, como por parte dos próprios profissionais de saúde. Num segundo momento, nossa preocupação é com o instrumento, recurso de trabalho em terapia ocupacional: a atividade. Buscamos explicitar os diferentes entendimentos da atividade humana e sua forma de utilização em terapia ocupacional.

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Por fim, apresentamos as diferentes formas (méto-dos) de atendimento aos clientes em nossa profissão, apontando os princípios norteadores destes, abordando a proposta humanista, a positivista e a materialista histórica e quais as possibilidades existentes, nesta última, para que a terapia ocupacional transforme-se em real instrumento para a mudança social.

Primeira ParteTerapia Ocupacional: Uma Questão de

Conhecimento

1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS MAL-ENTENDIDOS

Antes de entrar na difícil tarefa de responder à cé-lebre pergunta: o que é terapia ocupacional? Faz-se necessário levantar outras, na busca de esclarecer certos mal-entendidos que o cotidiano e o senso comum nos lançam. Exemplos não faltam para ilustrar tal confusão.É comum ouvir-se: "Fazer tricô é uma boa terapia, quando estou irritada!", ou "Minha terapia é mexer com terra, isso me descansa!", aí pode-se perguntar: qual será o significado dessas afirmações (expressões)? Ou, então, quando num comercial de TV o apresentador fala em tom de seriedade: "Faça a sua terapia ocupacional, confeccionando suas próprias roupas!". Ou ainda, quando uma revista infantil faz propaganda de álbum de figurinhas ou de jogos educativos: "Esta

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é uma terapia ocupacional para o seu filho!". Ou mesmo a grande confusão formada (criada) quando um terapeuta ocupacional ao falar da sua profissão depara-se com seu interlocutor preocupado em mostrar ter compreensão do assunto, afirmando: "Ah! você dá trabalhos para ocupar os loucos!" ou "Você brinca com as crianças!"Ora, e quando é que o trabalho, a brincadeira, a execução das atividades do cotidiano é fazer terapia ocupacional?Será que, buscando o significado das palavras tera-pia e ocupacional, conseguiremos fazer alguns reparos introdutórios em relação a tantos mal-entendidos.Vamos arriscar!Ao consultar o Novo dicionário Aurélio, encontra-mos no verbete terapêutica: "do grego Therapeutikê, pelo latim therapeutica — parte da medicina que estuda e põe em prática os meios adequados para aliviar ou curar doentes; Terapia. Terapêutica Ocupacional — psiq. Aquela que procura desenvolver e aproveitar o interesse do paciente por um determinado trabalho ou ocupação: Terapia Ocupacional, laborterapia, ergoterapia (nesta acep. C.F. praxiterapia)".Conforme solicitação do autor, partimos então à procura do verbete praxiterapia e diz o seguinte: "(de praxis + terapia) técnica de tratamento usada, em geral, com doentes crônicos internados, e que consiste na utilização terapêutica do trabalho, distribuindo-se aos pacientes tarefas de complexidade crescente".

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Mais uma caminhada à procura de ocupacional, porque o que buscamos é o significado das palavras e, por mais que no verbete Terapêutica tenhamos encontrado, para a surpresa de alguns, terapia ocupacional, deve-se lembrar que ocupacional encontra-se ainda subentendido.Quanto a ocupacional, diz o autor: "referente a ocupação, trabalho, ofício". Vejamos agora ocupação: "do latim occupatione — ato de ocupar, ou de apoderar-se de algo — Ofício, trabalho, emprego, serviço...".Após um vai-e-vem entre páginas, constata-se que a investida no estudo das raízes das palavras permite- nos compreender a terapia ocupacional como: técnica (parte da medicina que estuda e põe em prática) que utiliza o trabalho como recurso (meio adequado) para tratar (aliviar ou curar os doentes).Bem, até aqui a definição advinda via etimologia das palavras terapia e ocupacional parece bastante simples, pois, uma vez que ela é apenas uma técnica de aplicar trabalho, ocupação, afazeres, para curar doentes e uma vez que todos os homens e cada homem em particular tem conhecimentos do trabalho humano, então basta trabalhar quando se está doente para curar a doença.Aqui, porém, a "coisa" começa a se complicar. Com efeito, se a terapia ocupacional é realmente uma profissão técnica, ela não é, entretanto, a simples aplicação de técnicas. Ora, o que caracteriza a terapia ocupacional é precisamente o meio que se propõe para tratar. Entretanto, para que o uso de

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atividade, ação, trabalho, possa ser conceituado como terapia ocupacional, é preciso que se satisfaça uma série de exigências que se pode em princípio resumir nos quatro requisitos que seguem.Em primeiro lugar, é necessário que a atividade humana seja entendida enquanto espaço para criar, recriar, produzir um mundo humano. Que esta seja repleta de simbolismo, isto é, que a ação não seja meramente um ato biológico, mas um ato cheio de intenções, vontades, desejos e necessidades.Em segundo lugar, não basta fazer, fazer e fazer, acreditando que o simples curso das coisas com isso se modifique. O fazer deve acontecer através do processo de identificação das necessidades, problematização e superação do conflito.Em terceiro lugar, não existem receitas mágicas (atividades mágicas) nem técnicas específicas que garantam que estamos realmente resolvendo o problema.Em quarto e último lugar, é necessário um profis-sional preparado, cuja tarefa é a de se dispor, também, como instrumento ou recurso terapêutico, de incomodar, de ativar e revelar o conflito para a sua superação.A exposição acima, sumária e distinta de cada um dos itens descritos, não deve, entretanto, nos iludir. Pois não se tratam de partes isoladas, auto-suficientes, que a uma simples somatória, como que por um efeito mágico de sua junção, efetivam o processo de terapia ocupacional. É essencial que

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se tenha uma visão do conjunto e de como estas partes se relacionam dialeticamente.Partindo desta premissa, vamos então discutir o problema passo a passo.

2. CONCEITOS FORMAIS: VERDADE UNIVERSAL?

Existem inúmeras tentativas para conceituar for-malmente a terapia ocupacional e para defini-la como prática de saúde engajada, compromissada com o social. Entretanto, geralmente, as definições formais caracterizam-na como prática "neutra" de saúde.Dessa forma, adotar aqui as diversas, importadas — e já consagradas — definições parece ser um compromisso ideológico que, por servir a interesses, é hoje apenas um ponto de referência histórico para nossa análise. Pois acreditamos que tal cumplicidade com o passado é sinal de estagnação e conformismo.Nos últimos dez anos, os terapeutas ocupacionais brasileiros vêm adotando as definições de terapia ocupacional advindas dos Estados Unidos da América do Norte, dentre as quais figuram com maior freqüência as propostas pela Associação Americana de Terapia Ocupacional, formuladas em 1972 e em 1977 e, mais recentemente, a proposta por Reed e Sanderson em 1980.Vejamos como se apresentam.O Conselho da Associação Americana de Terapia Ocupacional, em 1972, definiu a terapia ocupacional como "a arte e a ciência de dirigir a

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participação do homem em tarefas selecionadas a fim de restaurar, reforçar e engrandecer sua atuação, facilitando a aprendizagem de habilidades e funções essenciais para sua adaptação e produtividade, diminuindo ou corrigindo patologias e promovendo a manutenção da saúde" (cf. REED e SANDERSON, 1980).Em 1977, a assembléia representativa da Associa-ção Americana de Terapia Ocupacional (AOTA) aprovou uma nova definição: "Terapia ocupacional é a aplicação da ocupação (única atuação) de qualquer atividade que se emprega para avaliação, diagnóstico e tratamento de problemas que interfiram na atuação funcional de pessoas debilitadas por doenças físicas ou mentais, desordens emocionais, desabilidades congênitas ou de desenvolvimento ou no processo de envelhecimento, com o objetivo de alcançar um funcionamento ótimo e de prevenir e manter a saúde" (cf. REED e SANDERSON, 1980, p. 7).Reed e Sanderson, em seu livro Conceitos de tera-pia ocupacional, publicado em 1980, propõem algumas modificações à definição da AOTA/77 e conceituam a terapia ocupacional como "análise e aplicação da ocupação, especificamente auto-manutenção, produtividade e lazer, as quais através do processo de problemas de avaliação, interpretação e tratamento de problemas que, interferindo com a execução funcional ou adaptativa em pessoas nas quais as ocupações são diminuídas por doenças físicas ou mentais, desordens emocionais, debilidades congênitas ou do desenvolvimento ou processo de

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envelhecimento, com o objetivo de promover a pessoa a uma ação funcional ótima e adaptativa, prevenir a diminuição ocupacional e promover saúde e manutenção ocupacional".Observando com atenção, estas definições trazem ou fazem passar a idéia de que a terapia ocupacional deva assumir, cada vez mais, o papel de promoção do homem.Aí surge uma pergunta — do ponto de vista da te-rapia ocupacional, o que significa promover o homem?De acordo com as definições que aqui analisamos, tal promoção se dá através do desenvolvimento da personalidade e das potencialidades ou capacidades humanas. O que, a nosso ver, articula progresso individual com progresso técnico-científico, de maneira a fazer crer que essa promoção deva levar ao aprimoramento das instituições, de forma que, ao realizar sua prática profissional, seja em uma favela, seja em um bairro de elite, o terapeuta, sempre irá enfatizar os valores intelectuais (emocionais) e biológicos. No entanto, a nossa experiência da valoração nos mostra que as coisas acontecem de maneiras bem diferenciadas, pois a ação terapêutica ocupacional sempre é desenvolvida num contexto social concreto.Chamamos então, a atenção para o que considera-mos ser uma ideologia "terapêutica" que permeia as propostas das terapias, sem deixar de lado, é claro, a terapia ocupacional.Cabe aqui, uma preocupação com tal formulação, pois está longe de nossa intenção isolar a ideologia

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terapêutica do seu contexto geral, ou de caracterizá-la como uma esfera de ação à parte, ou mesmo de privilegiar sua importância. Embora tenhamos a clareza que uma análise mais apurada deveria trazer à compreensão, as ligações existentes entre os diversos aspectos da ideologia, mostrando assim como a ideologia "terapêutica" incorpora os discursos ou práticas destes.Nossa intenção, entretanto, é fazer aqui apenas al-gumas aproximações ao assunto, para que possamos estabelecer um ponto de partida necessário à compreensão dos diferentes modelos de terapia ocupacional e, conseqüentemente, o embate criado quando um conceito formal é assumido como verdade universal.Voltando às definições, é importante perceber os mecanismos de desqualificação da dimensão político- ideológica da terapia ocupacional operada pela ideologia "terapêutica", a qual está inserida no sistema ideológico geral da sociedade tecnológica e enfatiza a questão das técnicas como prioridade.Desqualificação, porque se faz a partir da concepção da ciência como neutra ou, melhor dizendo, acima de qualquer interesse de classes.Tendo como pressuposto que a ideologia dominan-te tem necessidade de, por um lado, garantir a harmonia no interior da classe dominante e, por outro, passar seu modelo às outras classes como verdade universal e não, como na realidade, verdade de classes, podemos observar que a ideologia "terapêutica" está muito bem articulada com a ideologia do desenvolvimento individual, a

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ideologia das diferenças de aptidões e a ideologia dos dons, de tal forma que nesses entendimentos o social encontra-se sempre afastado.Vejamos, agora, como a camuflagem acontece.A classe dominante necessita sustentar a qualquer custo o princípio da igualdade de direitos, ao mesmo tempo em que deve justificar a desigualdade advinda da divisão social do trabalho. E aí acontece o milagre. Como ela não pode afirmar a superioridade de alguns indivíduos, trata então de afirmar a idéia das diferenças individuais. Todos os homens são iguais em dignidade, entretanto, diferentes em aptidões, dons inatos.Notem que existe uma significação politica e, por-tanto, dissimulada no uso dos termos aptidão, dons e capacidades. Fica, assim, notório que a causa da diferença das funções sociais desempenhadas pelos homens seria um determinismo biológico e não a divisão social do trabalho.É mediante o mascaramento da realidade social que a ideologia terapêutica procura cumprir, ã sua maneira, a função de dissimulação da realidade social. E nesse contexto a terapia ocupacional, de acordo com as definições analisadas, propõe produzir efeitos de promoção do homem.

3. TERAPIA OCUPACIONAL: PROFISSÃO NOVA?

Muito se tem falado da terapia ocupacional como uma profissão nova, entretanto a idéia de que a ocupação ou diversão de qualquer espécie é benéfica aos doentes manifesta-se de tempos em

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tempos na história da humanidade. Observamos historicamente que a ocupação como meio de tratamento remonta às civilizações clássicas. Os jogos, a música e os exercícios físicos foram utilizados por gregos, romanos e egípcios como medida de tratamento do corpo e da alma. Entretanto, somen- te por volta do fim do século XVIII e princípio do século XIX, período marcado pelo humanismo, a ocupação se torna largamente aceita para o tratamento do doente mental.Na França, em 1791, o dr. Philippe Pinel, ao assumir a direção do asilo de Bicêtre e deparando-se com a trágica situação dos doentes mentais, tomou para si a reforma assistencial, simbolizada historicamente pela "quebra dos grilhões que mantinham presos os infelizes insanos do espírito" (ARRUDA, 1962, p. 25). A utilização da ocupação foi, então, introduzida como parte principal de sua reforma, a qual o fez pioneiro na aplicação do trabalho como forma de tratamento do doente mental.Ao mesmo tempo em que pela metade do século XIX, o tratamento proposto por Pinel era difundido na Europa e na América e firmava raízes, emergia um novo movimento filosófico e científico, à luz do aparecimento de tecnologia mais avançada, resultado da revolução industrial — o positivismo, corrente filosófica determinante da escola de pensamento científico, que se baseava na regra da inquisição e no método científico das ciências físicas: "(...) só é compreensível e possui sentido aquilo que se pode comprovar pela experiência" (BRUGGER, 1977, p. 323).

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A concepção filosófica estava sendo mudada pelo impacto da tecnologia. Os valores tecnológicos de produção iam assumindo um papel de destaque na visão de mundo, em detrimento dos valores humanitários.Na área da saúde, ao invés do ambiente, o cérebro é que era objeto de explicação e tratamento da doença mental. Os doentes mentais passaram a ser tratados por meios quimioterápicos e cirúrgicos. Neste momento, as instituições de atendimento aos doentes mentais tornaram-se grandes laboratórios experimentais. Negligências e abusos eram cometidos em função de investiga-ções comprometidas com a aprovação dos fatores etiológicos na patologia do cérebro.De acordo com tal situação, o desenvolvimento da ocupação como forma de tratamento, então, declinou de maneira súbita, sendo o tratamento moral eventualmente reaplicado por alguns poucos membros da comunidade médica, compromissados com as tendências humanitárias. Essa fase perdurou, na América, até 1890 e, na França, até 1906.Somente nas duas primeiras décadas do século XX é que fatores como o renascimento do tratamento moral e a Primeira Guerra Mundial foram responsáveis pelo início formal da Terapia Ocupacional.Em 1915, na América, William Rusch Dunton pu-blicou o livro Occupational Therapy: a manual for nurses, propondo princípios de aplicação da ocupação no tratamento de doentes mentais. Nascia, então, o termo terapia ocupacional e,

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simultaneamente, a primeira escola dentro de uma instituição acadêmica, no Welwaukee Dower College (1918), seguindo-se uma onda de escolas para formação profissional.Somente por volta de 1957 surgiam no Brasil as primeiras escolas para formação profissional, respectivamente no Instituo de Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP - SP e na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação - RJ.Esse breve histórico da terapia ocupacional tornou-se necessário a fim de tornar público que esta efetivamente não é uma prática nova de saúde, ao contrário, pelo que pudemos observar, remonta ao fim do século passado.

Segunda ParteAtividade Humana

XRecurso Terapêutico

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

Nas discussões que temos levado em nossos encontros profissionais (congressos, simpósios e seminários), vemos com freqüência, a preocupação de alguns profissionais em procurar caracterizar de forma única e uniforme a terapia ocupacional. Esse fato aparece quando as análises realizadas da prática profissional apontam as diferenças substanciais encontradas entre as práticas dos terapeutas ocupacionais que tratam as mesmas populações.

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Existem aqueles que, frente a esse acontecimento, identificam como causa as crises pessoais, outros, uma crise de estrutura teórica que direcione a terapia ocupacional.Vejo com espanto as conclusões tomadas, pois elas funcionam como mantenedoras da situação, e a questão continua não-desvelada.É preciso evitar a ilusão de que deixando-se de lado as crises pessoais e encontrando-se uma estrutura teórica única para a terapia ocupacional seja possível sair- se da crise. A ilusão de que basta aparar as arestas (caminhando ao consenso), e tudo se resolve.Essas não são nem podem ser as formas para dirigir nossa busca de identidade. Mesmo porque não acredito que a simples volta ao passado venha a ser o caminho. Na verdade, quando a terapia ocupacional tinha seu início formal, a literatura da área refletia um sentido único de direção, sustentado por princípios teóricos — primeiros princípios — que foram organizados em torno da busca para identificar o significado da ocupação humana.A partir desses princípios e com o caminhar das ciências, as teorias e as práticas terapêuticas ocupacionais foram absorvendo as filosofias e as ideologias das diferentes épocas e se transformando, para chegar ao que hoje caracterizamos de diferentes modelos teórico-práticos de terapia ocupacional.Podemos, portanto, dizer que a questão das diferenças encontradas na prática profissional é muito mais uma questão de método.

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Sabemos que a terapia ocupacional tem um con-junto de requisitos muito peculiar à sua teoria, à medida que lança mão das diversas ciências para se efetivar. E é neste contexto que, acredito, surgem as diferenças.A ciência, em sua peculiar objetividade, apoderou- se do homem e dividiu-o em grupos de estudos paralelos que, podemos dizer, raramente se encontram."Imagine as várias divisões da ciência — física, quí-mica, biológica, psicológica, sociológica — como técnicas especializadas. No início pensava-se que tais especializações produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isto não ocorreu. O que ocorre, freqüentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações de biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante" (ALVES, 1981, p. 12).Não pretendo, aqui, acusar a ciência ou colocá-la como bode expiatório, ao contrário, quero trazer a questão da "neutralidade" de determinadas posturas científicas (métodos) que, com o propósito de se aprofundarem no conhecimento do homem, separam-no do contexto em que vive, retalham-no em suas múltiplas formas de capacidades e com isso perdem de vista o homem real e concreto. Assim, "cada ciência supõe-se capaz de decifrar o homem à sua imagem, da astronomia à sociologia, e cria uma filosofia na sua base: para o químico, o organismo humano é apenas um laboratório químico, para o físico, uma

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concentração de átomos" (BAS-BAUM, 1977, p. 61); cada um desses setores estuda apenas um aspecto, uma parcela do verdadeiro homem — aquele homem integral, enraizado em seu mundo, que se realiza, realizando o mundo."Mesmo as chamadas ciências sociais — as ciências do homem — transformaram um ser real em objeto (positivismo, existencialismo, humanismo cristão) dilacerando-o em partes, inajustáveis. De ser passou a objeto. Mas objeto metafísico, não-existente, porque despojado de sua vivência, de sua homicidade (homem total) e o reduziram a um animal-que-fala-e-que-trabalha, porque não lhe deram outra perspectiva na terra. Ou o divinizaram transformando-o em um ser, feito de barro, mas possuidor de uma centelha divina, fora do alcance de si mesmo, incapaz de controlar ou determinar o seu próprio destino" (BASBAUM, 1977, p. 62).Esta fragmentação é que nos induz a pensar que existe um homem biológico, econômico, político, psicológico, social e assim por diante. Como se trocássemos de pele a cada momento, ora eu sou psicológico, ora sou biológico, ora social.E aqui descobrimos uma vez mais a articulação de determinadas posturas científicas com o senso comum, a fim de reafirmar as verdades que são de interesse.Como nos fala Rubem Alves (1981, p. 50):

"Uma teoria científica tem sempre a pretensão de oferecer uma receita universalmente válida, válida para todos os casos.

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Esta exigência de universalidade tem a ver com a exigência de ordem, sobre que já falamos. Leis que funcionam aqui e não funcionam ali não são leis...Imaginemos a seguinte afirmação sobre o universo dos gansos:'Todos os gansos são brancos'.Esta afirmação pretende ser verdadeira para todas as aves em questão. E se aparecer um ganso verde? A teoria cai por terra... Mas há um jeito de contornar esta dificuldade. Frente ao bicho verde eu digo: 'Isto não é um ganso, mas sim um fanso'. Se o bicho é um fanso, a universalidade da minha afirmação continua intacta. Mas a que preço? Por meio de artifícios como este se pode preservar uma teoria indefinidamente."

É neste emaranhado de idéias que o terapeuta ocupacional, tomando como fio condutor o problema das ciências e suas diferentes visões de homem/mundo deve, a meu ver, examinar a questão das diferenças encontradas na sua prática profissional. Podendo assim perceber que a falsa neutralidade é sempre escamoteadora de seu compromisso social.

2. PRIMEIROS PRINCÍPIOS

Os primeiros princípios teóricos que direcionaram a terapia ocupacional foram organizados em torno da busca do significado da ocupação humana.Esses princípios podem ser resumidos em 03 (três) considerações (cf. KIELHOFNER, 1982, p. 1266):

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• a primeira é que os humanos foram conhecidos como possuidores de uma natureza ocupacional,• a segunda, que a doença foi vista como possuindo um potencial para interromper ou romper a ocupação,• a última, que a ocupação foi reconhecida como um organizador natural do comportamento humano, que poderia ser usada terapeuticamente para refazer ou reorganizar o comportamento cotidiano.

O mais influente em fornecer tal perspectiva teóri-ca para a terapia ocupacional foi Mayer psiquiatra americano, que via o organismo humano como possuidor de um princípio de atividade inerente à sua essência.Segundo ele, "nossa concepção de homem é aque-la de um organismo que se mantém e se equilibra no mundo de realidade e efetividade por estar em vida ativa e em uso ativo, isto é, usando e vivendo e agindo sobre seu tempo em harmonia com sua própria natureza e sobre a natureza em seu redor" (cf. KIELHOFNER, 1982, p. 1.266).Mayer apóia seus princípios no entendimento de homem-organismo, que possui uma necessidade fundamental de ocupar-se, de trabalhar. O trabalho, a ocupação, é visto assim como o alimento e o ar, necessários para a sobrevivência do organismo humano. A atividade, aqui, mantém a organização e o equilíbrio do corpo, através do ritmo de trabalho, descanso, lazer e sono.Em complemento a essa visão de homem enquanto indivíduo para a ocupação também foi

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reconhecido que a espécie humana como um todo, confiou sua parte integrante de produtividade para sobreviver. E o lazer foi entendido com uma característica evolucionária que preparava os jovens para a competência da vida adulta, como também um comportamento adulto necessário para relaxar e recriar o organismo, a fim de este conseguir realizar o trabalho.

3. ATIVIDADE = EXERCÍCIO

As primeiras mudanças ocorreram com o surgimento de uma nova corrente científica denominada reducionismo, no decorrer dos anos 40 e 50. Sua influência na área da saúde levou à criação de um modelo médico centrado nos princípios da bioquímica e da biofísica e com a perspectiva psicanalítica da psiquiatria. "A visão do homem era, literalmente, aquela que poderia ser vista através do microscópio, ou pelo escrutínio de mecanismos internos que tinham lugar no divã do analista" (KIELHOFNER e BURKE, 1977, p. 16).A terapia ocupacional, então, sofreu pressão por parte da comunidade médica para assumir perspectiva semelhante, sob a acusação de não confrontar-se com as patologias — "... o modelo da ocupação que aplicava seus princípios ao comportamento desordenado apenas com base no senso comum não era científico" (WILLIARD e SPACKMAN, 1973, p. 152).Os terapeutas ocupacionais, sob essa forte e cons-tante pressão, foram levados a resolver uma questão de sobrevivência da profissão: como fazer,

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ou melhor, o que fazer, para que o instrumento do seu trabalho — o uso da atividade (ocupação, trabalho) — fosse cientificamente aceitável?Em resposta ao desafio reducionista, surgiu uma nova estratégia de aplicação da ocupação, que resultou na substituição do treinamento de hábitos pela aplicação de exercícios.

"En la restauración de la junción física el valor de la terapêutica ocupacional reside en la participación mental y física del paciente en una actividade constructiva que le proporcione el ejercicio requerido y le ajude a desarrollar el uso normal de la región incapacitada"1 (WILLIARD e SPACKMAN, 1973, p. 172).

De acordo com essa compreensão, o valor da terapia ocupacional está na obtenção do exercício pela atividade.O modelo do homem se adaptando ao meio social, possuidor de uma natureza ocupacional em sua essência, foi substituído por um modelo mecânico e progressivo linear. O entendimento da ocupação como parte da natureza do homem foi esquecido, devido à necessidade de melhor explicar o uso das atividades.Tendo em vista a preocupação de sistematização da aplicação da atividade, os terapeutas ocupacionais tornam-se especialistas em exercícios progressivos de resistência, em atividades da vida diária, em suportes funcionais, no desenvolvimento

1 Quando apresentamos as citações em espanhol tivemos o cuidado de não efetuar nova tradução em cima destas, pois o original é em língua inglesa.

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pré-vocacional etc. À medida que o uso da atividade passou a ser igual a exercício, voltado às partes lesadas do organismo humano, os terapeutas passaram a tratar patologias, mãos, ombros, quando não articulações, músculos, memória, atenção.

"El objetivo de la terapêutica ocupacional consiste en el restabelecimento dei movimiento en una articulación atravéz dei uso de la actividade constructiva, que distende las contracturas, elimina las adherencias, fortalece los músculos debilitados y disminuy el edema" (WILLIARD e SPACKMAN, 1977, p. 151).

A compreensão do uso da atividade com o propósi-to do exercício específico pressupõe que alguns procedimentos gerais devam ser seguidos, para que se consiga obter sucesso no tratamento.O primeiro procedimento, básico para configurar cientificamente o uso da atividade, é a sua análise.

a) Análise da AtividadeProcedimento que tem como objetivo possibilitar o conhecimento da atividade em seus pormenores, observando-se assim as suas propriedades específicas, a análise parte do pressuposto de ter a atividade uma única estratégia para a sua realização, e esta é que lhe possibilita as propriedades.Entende-se, então, por propriedades as exigências físicas e mentais próprias da atividade. Nessa perspectiva somente através de uma análise

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sistemática e meticulosa é que o terapeuta pode identificar qual é o tipo de exercício obtido ao praticar cada movimento requerido para a efetivação da atividade, como também determinar se essa permite graduação em complexidade e estruturação em fases ou etapas.Dentro da proposta de análise da atividade, encon-tramos os mais variados modelos de roteiros que possibilitam sua realização. Todos eles ressaltam, contudo, que é necessário à realização de cada movimento requerido um certo número de vezes, considerável, anotando- se cuidadosamente as ações obtidas. Aconselham também que é útil observar outras pessoas trabalhando na mesma atividade, pois uma pessoa pode trabalhar em uma posição completamente diferente da outra, produ-zindo consideráveis variações nos movimentos-ações usados.Tal orientação nos leva ao entendimento de que ao realizar-se uma análise a atividade passa, então a ser uma série de ações deixando de lado o todo, a atividade em si. Williard e Spackman (1977, p. 180) afirmam:

"En algunas actividades, la altura dei indivíduo afecta o ejercício obtenido. El tipo de herramienta, la altura relativa dei banco de trabajo, la própria herramienta o la silla, la posición dei indivíduo, el peso o la forma de herramienta, son factores que puedem producir diferencias en las acciones deseadas".

b) Adaptação da Atividade

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Outro procedimento necessário para o uso da ativi-dade como exercício é a adaptação das atividades ao tratamento. À medida em que se acredita que muitas das atividades usadas em terapia ocupacional não são de valor especial no tratamento dos incapacitados físicos ou mentais devido a não preencherem os critérios necessários para a adaptação ao tratamento.Considera-se que uma atividade adapta-se ao tratamento quando possibilita que o "paciente" exercite a função lesada. Como Williard e Spackman (p. 174) afirmam no trabalho com pacientes:

"Para que una ocupación sea adaptable como ejer-cício especifico deble permitir que el movimiento se localice primordialmente en la articulación o articulaciones afectas, o que fortalesca determinados grupos musculares".

Sabe-se, porque a análise da atividade já nos possibilitou um conhecimento prévio, que algumas atividades não se adaptam ao tratamento de determinadas patologias, pois não proporcionam o exercício desejado.Esse princípio determina critérios para a adaptação de uma atividade ao tratamento, os quais podemos resumir nos seguintes:

1. que a atividade utilizada proporcione mais ação (movimentos) do que posicionamento,2. que a atividade permita sua utilização graduada,

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3. que a atividade possibilite um número considerável de repetições do movimento desejado,4. que a atividade permita sua divisão em fases ou etapas.

c) Seleção e Graduação da AtividadeO terceiro procedimento da compreensão da ativi-dade = exercício está no problema de seleção e graduação da atividade, que é certamente fundamental no entendimento da atividade = exercício, pois de nada vale a análise da atividade se o procedimento subseqüente não se efetivar.Os terapeutas ocupacionais que trabalham com o modelo atividade = exercício preconizam que o objetivo primordial de seleção e graduação da atividade é possibilitar a restauração das ações perdidas ou prejudicadas, juntamente com a tolerância ao trabalho e as destrezas especiais.A seleção de uma atividade para o tratamento deve recair sobre as suas possibilidades de graduação. Isto é, se esta pode ser graduada desde curtos a longos períodos de tempo, desde movimentos grossos a movimentos finos, desde movimentos simples a movimentos complexos, desde a compreensão de instruções simples à com-preensão de instruções mais complexas e assim por diante. Uma atividade, portanto, só poderá ser eleita, quando possibilitar graduação.Cumpre lembrar aqui que a compreensão da ativi-dade exercício pressupõe o uso de atividades

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estruturadas, pois apenas estas se prestam à análise, adequação e graduação.Contudo, quando por um acaso se utilizam ativida-des desestruturadas, elas, ou são transformadas (ganham uma estrutura), ou são simplesmente aplicadas como mera distração para relaxamento do paciente.Nesse entendimento, portanto, podemos constatar que a atividade estruturada ocupa posição de destaque naturalmente. Cabe aqui, então, trazer a diferença entre atividade estruturada e atividade desestruturada.O termo atividade estruturada destina-se a desig-nar aquelas atividades que, por princípio, possuem uma disposição e uma ordenação de partes para compor o todo. A jardinagem, por exemplo, é uma atividade estruturada, pois exige uma série de procedimentos para que possamos efetivá-la.Em primeiro lugar deve-se eleger o tipo de cultura que se quer realizar (observando-se a época para plantio). Depois, deve-se preparar o solo: afofar, rastelar e adubar. Aí vem o plantio que, dependendo do tipo de cultura, necessitará ser feito em sementeiras ou diretamente no solo. E, então, há necessidade de cuidados especiais e de irrigação, para que a cultura se desenvolva.Como podemos observar, a atividade estruturada tem exigências de ferramentas e/ou maquinários apropriados, com uso determinado como também uma seqüência ordenada (começo, meio e fim) sem a qual a atividade não se concretizará.A atividade "desestruturada", por sua vez, contrapõe-se radicalmente à já descrita

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anteriormente, visto que não possui disposição e ordenação prévia. A sua realização pode ocorrer das mais variadas maneiras. Como, por exemplo, brincadeiras, modelagens, pinturas, desenhos, dramatizações, festas, passeios, esculturas etc. Cada sujeito que realiza qualquer dessas atividades imprime uma forma de fazer própria.

4. Atividade — Produção"Reagir ou responder rápido é 'melhor' do que res-ponder lentamente; decidir-se 'rápido' é melhor do que decidir-se vagarosamente" (HOLZKAMP, 1977, p. 169).É nessa mesclagem da conceituação social para medir o comportamento humano que surge o uso da atividade = produção.O sistema geral das relações desse tipo de valorização baseia-se evidentemente na concepção de maior ou menor produtividade. Assim, vemos que, juntamente com o conceito social de produtividade, encontra-se um outro critério, o da adaptação. O homem como uma peça dentro do sistema de trabalho social e, além disso, dentro ainda do sistema geral social, no qual ele deve ser levado a não prejudicar o funcionamento perfeito do sistema.Tal compreensão advém da teoria geral dos siste-mas e da psicologia aplicada ao trabalho."Aqui se fala do sistema homem-máquina, dentro do qual o homem aparece mais ou menos claramente como parte mais 'fraca' do sistema. A

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psicologia cabe então a tarefa de reduzir, ao máximo possível, o fator de interferência humana através do fomento de sentimentos de 'satisfação' com o trabalho, e coisas semelhantes" (HOLZKAMP, 1977, p. 197).Temos, assim, um exemplo típico do pressuposto positivista na terapia ocupacional. Prever como a atividade pode acontecer (análise da atividade), o que ela pode causar, o que ela pode melhorar ou prejudicar, para prover o comportamento esperado pela sociedade, via um tratamento adequado, eficaz e científico.A propósito escrevem Reed e Sanderson (1980, p. 1): "O valor da terapia ocupacional reside principal-mente na capacidade que o terapeuta ocupacional tem em investigar o desempenho efetivo total de um indivíduo, em termos de habilidades identificáveis e competência, e fazer recomendações no sentido de resolver problemas de desempenho".Temos então, segundo essa afirmação, em primeiro lugar, o enfoque da atividade como instrumento que permite uma investigação de como a pessoa usa o seu potencial de desempenho; em segundo lugar, a atividade como instrumento que permite capacitar a pessoa, através de treinamento, à realização de uma tarefa com eficiente uso de energia e tempo.É importante ressaltar, que Reed e Sanderson (p. 1) propõem que o desempenho seja compreendido como um "sistema de interação, no qual muitos componentes devem estar funcionando para produzir resultados satisfatórios. Um desempenho

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deficiente pode tomar muita energia e muito tempo".Estamos, então, diante de uma máquina. Todas as engrenagens devem estar em perfeito estado de funcionamento para que a máquina possa cumprir com o seu papel: produzir. Qualquer defeito em uma das peças — engrenagens —, gera um desequilíbrio que acarreta perda de tempo e de material produzido.O homem, aqui é como a máquina. Suas engrena-gens são "os componentes de desempenho de habilidades: motores, sensoriais, cognetores2, de relacionamento intrapessoal e interpessoal". Esses componentes são necessários para o desenvolvimento das "competências ocupacionais" de auto-manutenção, produtividade e lazer. De tal maneira, que a atividade humana (atividade de vida diária, trabalho, lazer) é o produto da máquina-homem.Observamos, de maneira clara, que os componentes ideológicos incluídos no modelo atividade = produção são: a recusa em admitir a crítica das estruturas sociais e a forma de trabalho alienado, encorajando ao mesmo tempo uma concepção terapêutica manipuladora.As atividades são utilizadas com o objetivo de favo-recer a produtividade, sendo o desenvolvimento das habilidades o caminho para tal conquista. O propósito é levar o indivíduo a alcançar o objetivo (resolução do problema de desempenho), num tempo menor do que este levaria usando seus

2 Termo usado por Kathly Reed para entendimento do funcionamento do organismo humano e suas relações.

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próprios recursos somente. Não basta conseguir realizar uma atividade. O fundamental é conseguir realizá-la com perfeição e em um tempo menor, da maneira exigida pelo social.Trata-se, pois, do emprego da atividade com fins no produto final, onde o processo de execução não é considerado. O produto é a meta; o processo, um simples caminho para atingir a meta.Nessa mesma perspectiva, Reilly (1979, p. 69) afir-ma que o "objetivo da terapia ocupacional é encorajar o encontro aberto e ativo com tarefas que razoavelmente pertencem a seu papel de vida".Reilly focaliza mais especificamente o papel produ-tivo do indivíduo, como ponto nodal em torno do qual a terapia ocupacional deve centrar seus esforços terapêuticos.A proposta de Reilly aproxima-se da teoria da recapitulação da ontogênese proposta por Mosey.Essa teoria afirma que, através do terapeuta ocupacional, uma "variédade de experiências indutoras de crescimento é fornecida, experiências essas que permitirão ao indivíduo desenvolver aquelas capacidades, habilidades e destrezas necessárias para uma vida satisfatória e produtiva" (MOSEY, 1979, p. 140). Partindo do princípio que diz que "uma vida confortável e produtiva requer capacidade de adaptação" (p. 146).Quando as habilidades adaptativas, necessárias à participação em papéis sociais, não são aprendidas, a interação no sistema social tende a ser improdutiva e inconfortável para o indivíduo.

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Segundo esses autores, o uso da atividade como produção também requer procedimentos como análise da atividade, graduação e compatibilidade com as condições sociais do cliente. Entretanto, falamos agora de uma situação diferente da que vimos na atividade = exercício. Estamos tratando da atividade = trabalho repetitivo, trabalho a nosso ver "taylorizado", cuja organização se faz de forma rígida, com o propósito do aumento de produtividade.Torna-se ainda importante ressaltar que, na ciência da organização da produção criada por Taylor, a prática se contrapõe à teoria, e que o único sentido dessa contraposição ou separação é a oposição que, em um regime capitalista, existe entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.A análise da atividade, aqui, recai sobre as habili-dades componentes necessárias para a conclusão bem sucedida, permitindo que o terapeuta examine em detalhes as etapas ou procedimentos de uma atividade ou tarefa.Considerando-se que muitas atividades são complexas e exigem muitas etapas e unidades de comportamento para realizá-las, somente a análise pode permitir um exame de cada etapa numa seqüência de exigências, o que por sua vez permite a visualização das etapas que o paciente deve realizar e das que não deve.Nessa forma de compreensão e utilização da ativi-dade, encontramos muito bem caracterizado que ao paciente só lhe é permitido o fazer mecânico, ficando o saber como propriedade do terapeuta, configurando-se, assim, a dicotomia entre

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elaboração (trabalho intelectual) e ação (trabalho manual).

5. Atividade = ExpressãoOs Fidler e os Ázima foram os precursores, nas décadas de 50 e 60, do entendimento psicodinâmico da ação em terapia ocupacional. A compreensão de que o fazer humano é carregado de conteúdo simbólico foi o caminho percorrido pelos autores.Essas idéias foram organizadas em torno da teoria psicanalítica freudiana. Mais especificamente em torno das relações objetais.Partindo do questionamento à expressividade con-tida nas ações, argumentavam, esses autores, que deveria ser evidente a oportunidade existente para a expressão de sentimentos, atitudes, idealizações, em um nível não-verbal, na compreensão do inconsciente, à medida que as atitudes, emoções e idéias mostradas na ação são "menos passíveis de vir sob a defesa de mecanismos de representação intelectuais mais concretos" (FIDLER e FIDLER, 1960, p. 13).Na perspectiva da ação ser mais reveladora do in-consciente que a palavra, a atividade ganha uma dimensão de expressividade, simbolismo.Quando se usa a terapia ocupacional "como processo psicoterapêutico, deve seguir-se necessariamente que o produto sendo feito e o trabalho de fazê-lo são considerados secundários ao julgamento de como o produto e o processo de fazê-lo afetam suas relações com os outros. A ocupação pássa então a ser a ferramenta da

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manipulação de suas relações com outras pessoas e não o objetivo primordial em si" (FIDLER e FIDLER, p. 14).Em outras palavras, para os autores, o valor do uso da atividade simplesmente não está na dinâmica da atividade mas na psicodinâmica da ação do sujeito que a realiza. Tornando-se dessa forma mais importante e mais significante que a atividade em si a relação que o executante estabelece, de maneira que a realização de uma atividade serve ao propósito da inter-relação.Ao mesmo tempo em que afirmam a exprèssão de sentimentos, atitudes e idéias através da execução da atividade, dão importância central ao estabelecimento de um relacionamento terapeuta-paciente.Como podemos observar nas palavras dos Fidler (p. 17) — "as modalidades disponíveis numa situação de terapia ocupacional são, em primeiro, a relação entre o terapeuta e o paciente, em segundo, a atividade".Aqui a atividade, assim como o terapeuta, são re-cursos terapêuticos, para os quais o paciente pode agir e reagir.Para que se possa melhor compreender o uso da atividade enquanto meio de expressão, tomaremos por base as expressões que definem tal uso encontradas nos trabalhos desses autores.Temos então: livre produção, material projetivo, criação livre, criação dirigida.O termo livre produção, refere-se às atividades que não possuem de início uma estrutura, como, por

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exemplo, a argila, como também àquelas que podem ter forma definida (escultura, pintura).O princípio para a compreensão da livre produção é o de liberdade de escolha do objeto/material e técnica de manipulação. Aqui a escolha e o caminho para a realização da atividade são feitos pelo próprio paciente, sem a interferência do terapeuta.A livre produção é mais comumente utilizada com propósito diagnóstico, pois fornece dados sobre o indivíduo que a realiza. "Faz operar os modos tátil e corporal das relações objetais..., aumentando o acesso à projeção (AZIMA e AZIMA, 1979, p. 117).Nesse contexto, passam então a constituir o que os autores denominam material projetivo.Para a aplicação do material projetivo, Ázima e Ázima mais detalhadamente que os Fidler, propõem alguns critérios e procedimentos que devem ser observados. São divididos em quatro fases.A primeira fase, a preparação, diz respeito basica-mente à maneira de o paciente abordar o objeto, que objeto seleciona e as atitudes para com as pessoas que estão vivendo o processo com ele (terapeuta e pacientes).A segunda fase, de produção e acabamento, com-preende o processo vivenciado pelo paciente, desde quando inicia a manipulação dos objetos disponíveis, numa certa direção, na construção ou destruição. Esta fase pode ser dividida em duas sub-fases: de livre criação e de criação dirigida.

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Na fase de livre criação, o paciente é deixado livre frente aos objetos, para escolher e proceder como quiser.Portanto não há direcionamento por parte do terapeuta. Na fase de criação dirigida, um objeto é definido pelo terapeuta e selecionado para o paciente. A partir do objeto, que lhe é oferecido este é deixado livre para sua manipulação.Na terceira fase, denominada associação, o pacien-te, após terminada a sua criação, é levado a fazer livre-associação sobre o objeto.A quarta e última fase, de interpretação, caracteri-za-se pelo momento em que, após criado o objeto e efetuadas as associações livres, o terapeuta passa a interpretar os acontecimentos.Ressaltam os autores que a interpretação nesse momento deve ser comprendida enquanto interpretação diagnostica, não terapêutica.Até agora falamos das atividades que podem ser entendidas enquanto desestruturadas, porém tanto os Fidler quanto os Ázima acreditam que os objetos mais claramente definidos e estruturados, ou seja, as atividades estruturadas, possibilitam experiências de manipulações úteis, pois essas atividades oferecem numerosas oportunidades de comunicação e expressão.O modo de o paciente segurar e usar um determi-nado objeto, o significado da escolha de uma atividade ou projeto assim como a natureza de suas ações são compreendidos pelos autores como claros indícios de suas defesas e problemas interpessoais. Essas são questões que podem ser

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investigadas e trabalhadas com o uso de atividades estruturadas.Aqui as atividades estruturadas têm valor pela re-lação e limites que determinam o fazer.Outra compreensão da atividade expressiva aparece nos trabalhos desenvolvidos pela psiquiatra e terapeuta ocupacional Nise da Silveira; segundo ela, o atelier de pintura a "fez compreender que a principal função das atividades na terapêutica ocupacional seria criar oportunidade para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão" (1981, p. 13).Essa autora acredita que as atividades plásticas (expressivas) permitem ao homem proceder ao relacionamento e à fixação das coisas significativas, tanto nas suas experiências internas quanto nas externas.Nise fundamenta seu trabalho na psicanálise junguiana, compartilhando com Jung a idéia de que, por intermédio da pintura, "o caos aparentemente incompreensível e incontrolável da situação total é visualizado e objetivado (...) O efeito deste método decorre do fato de que a impressão primeira, caótica ou aterrorizante, é substituída pela pintura que, por assim dizer, a recobre. O tremendum é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência original e seus efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o terror à distância" (apud SILVEIRA, 1981, p. 135).

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Segundo tal compreensão, as atividades de pintura e desenho (expressivas) permitem ao doente viver um processo que lhe possibilitará dar forma às desordens internas vividas. De maneira que são instrumentos que permitem ao mesmo tempo organizar a desordem interna e reconstruir a realidade, pois, na medida em que as "imagens do inconsciente" vão sendo objetivadas nos desenhos e pinturas, tornam-se possíveis de serem tratadas.

6. ATIVIDADE = CRIAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO

a) Visão marxista do homem e da naturezaComo se sabe, Marx não se ocupou com o desenvolvimento da evolução humana num plano individual, ao contrário, ele procurou estudar o desenvolvimento da relação entre homem e natureza sem, entretanto, confundi-lo com ela. De acordo com o seu pensamento, o homem é um ser que por essência necessita objetivar-se de modo prático, material, produzindo um mundo humano. Através da produção, o homem projeta-se no mundo dos objetos produzidos por seu trabalho, assim como integra a natureza no mundo humano, convertendo-a em natureza humanizada.Para Marx, o desenvolvimento do homem na histó-ria é determinado por contradições permanentes em seu curso. A evolução humana ocorre, portanto, dentro da história, sendo a história compreendida como "o processo da criação do homem por si mesmo, pela evolução, no processo de trabalho" (FROMM, 1979, p. 33.).

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"O homem se define essencialmente pela produção, e desde que começa a produzir, o que só pode fazer socialmente, já está na esfera do humano" (VASQUEZ, 1977, p. 420). Dessa forma, um entendimento do comportamento individual jamais pode ser concebido a não ser como produto social. Pois, de modo contrário, estaremos concebendo os indivíduos isoladamente, e o cará-ter social reduz-se apenas à retirada de algumas de suas características comuns elevadas ao nível da natureza universal, comum a todos.Concluindo, a concepção marxista do homem e da natureza nos traz a luz do entendimento do homem enquanto ser social e histórico, homem que produz, cria e transforma a natureza e a si mesmo, através do seu trabalho.

b) Atividade humana: a práxisAdolfo Sanches Vásquez procura distinguir a ativi-dade propriamente humana da atividade em geral, com o propósito de esclarecer a afirmação: "Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis".Atividade em geral é entendida como o ato ou con-junto de atos em virtude do qual um sujeito ativo (agente), que pode não ser humano, que efetivamente age ou atua modificando uma determinada matéria-prima, traduzindo-se num resultado ou produto, que é essa matéria mesma já transformada pelo agente. Enquanto "atividade propriamente humana só se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal ou finalidade e

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terminam com um resultado ou produto efetivo real" (VASQUEZ, p. 187).De acordo com esse entendimento, as atividades biológicas e instintivas não podem ser consideradas como especialmente humanas, pois estas não transcendem o seu nível meramente natural. A atividade humana é então aquela que "se desenvolve de acordo com finalidades, e essas só existem através do homem, como produtos de sua consciência..." (grifo nosso) (VÁSQUEZ, p. 189).Dessa maneira, a atividade da consciência deve ser compreendida como a relação entre o pensamento e a ação, mediados pela finalidade a qual o homem se propõe.A intervenção da consciência3 é que distingue a atividade propriamente humana de outras meramentenaturais, é ela que faz o resultado apresentar-se duas vezes e em tempos diferentes — como resultado ideal, como produto real.A atividade prática como atividade propriamente humana se manifesta no trabalho, na criação artística ou na práxis revolucionária. Através desse entendimento, podemos dizer que a atividade prática, portanto, é real, objetiva ou material."O objeto da atividade prática é a natureza, a so-ciedade, ou os homens reais. A finalidade dessa atividade é a transformação real, objetiva, do mundo natural ou social para satisfazer determinada necessidade humana" (VASQUEZ, p. 194).

3 A atividade da consciência aqui tratada é a da consciência de um homem social e não da atividade de uma consciência pura.

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Como se sabe, a práxis pode assumir diversas for-mas, dependendo da matéria-prima sobre a qual a atividade prática é exercida. Entretanto nos detemos, em apenas duas formas, as que consideramos fundamentais : práxis produtiva e práxis criadora.A atividade prática produtiva é aquela que se efe-tiva mediante o trabalho do homem com a natureza. Entretanto, sendo o homem um ser social, notemos que esse processo só se realiza em determinadas condições sociais.Através do trabalho, o homem transforma um objeto de acordo com uma finalidade utilizando-se de meios ou de instrumentos adequados e, ao materializar uma finalidade, ele se objetiva no produto.

"A práxis produtiva é assim a práxis fundamental, porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetivos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos à medida que se plasmam neles finalidades ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo" (VASQUEZ, p. 197-8).

Uma outra forma de práxis é a criadora, onde a finalidade não mais é determinada por uma necessidade prático-utilitária, mas por uma necessidade humana de expressão e objetivação.O homem é um ser que em suas relações necessita estar sempre encontrando novas soluções para as

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situações de vida que se apresentam. Desta forma, tem de estar constantemente inventando ou criando na medida de suas necessidades — "Ele só cria por necessidade; cria para adaptar-se às novas situações ou para satisfazer novas necessidades" (VÁSQUEZ, p. 248).No verdadeiro processo criador, a relação entre ati-vidade da consciência e sua realização "se apresenta de modo indissolúvel" (p. 248).A materialização como resultado, numa prática criadora, não se reduz a uma simples duplicação do que já idealmente pré-existia. Nesse processo, a finalidade estabelecida pela consciência se apresenta como finalidade aberta, fazendo que o processo prático se realize de forma aberta e ativa. Sabemos que o resultado definitivo pré-existia idealmente, contudo "o definitivo é exatamente o real e não o ideal (projeto ou finalidade original)" (VASQUEZ, p. 249).Portanto, a finalidade original só pode se transfor-mar no decorrer de um processo ao final do qual não se alcança tudo o que se havia projetado.A práxis criadora é, portanto, aquela onde há uma unidade entre finalidade da consciência e seu resultado — unicidade e irrepetibilidade do produto.Torna-se ainda importante ressaltar que nessa prá-xis a prática não se contrapõe à teoria e que o único sentido existente dessa contraposição ou separação entre teoria e prática é a oposição que existe entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, em um regime capitalista.

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c) A importância da concepção marxista da atividade humana para a terapia ocupacionalO terapeuta ocupacional lida com um homem real, que apresenta conflitos advindos de um mundo da primazia do trabalho enquanto maior lugar onde se cristaliza a exploração humana. Nesse mundo, o homem é alijado da verdadeira compreensão de suas atividades práticas, quaisquer que sejam elas.Portanto, se existe uma profissão que se propõe trabalhar com as dificuldades e os problemas enfrentados pelo homem no transcorrer da sua vida, esta deve estar compromissada com um entendimento da atividade humana somente enquanto práxis, pois de outra maneira estará apenas reforçando a divisão entre trabalho teórico e trabalho manual.À nosso ver, a terapia ocupacional deve oferecer ao indivíduo um atendimento voltado às questões não apenas da disfunção mas, principalmente, do homem enquanto ser essencialmente social, através do entendimento da relação homem-natureza, oriundo da sua atividade prática.A participação do cliente nesse processo é exata-mente o oposto de passivo. Ele, ao contrário, é um agente-ativo, fazedor de suas mudanças, partner em terapia.A compreensão da terapia ocupacional, através dessa prática, nos faz acreditar num significado de terapia que leva o homem a lidar com sua realidade de vida, podendo assim promover a transformação de si mesmo e do meio social no qual está inserido.

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Terceira ParteConcepção "Ingênua" e Concepção Crítica da

Terapia Ocupacional

(modelos do processo)

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

Até aqui, trilhados alguns caminhos, a atividade teve nossa principal atenção.Mas... e a terapia em si? E o processo, como acon-tece?Bem, esta é a parte mais complicada de se falar. Pois, quando nos preocupamos em explicar o processo de terapia ocupacional, corremos o risco de apresentá-lo sob apenas uma perspectiva, o que remeteria à questão de uma verdade única, universal. E, como já foi discutido na primeira parte, deste livrinho, seria uma arma ideológica para fazer crer piamente numa forma única de terapia ocupacional. O que não acontece na reali-dade. É, pois, por sermos o tempo todo invadidos e modelados por essa questão — verdade "universal" — é que nos preocuparemos em explicar as diferenças.Poderíamos aqui apresentar as diferentes formas de processos de terapia ocupacional, sob a ótica das técnicas específicas de cada um deles, os quais, à guisa de ilustração, podemos mencionar: desenvolvimentista, psicodinâmico, comportamental, cinesiológico, integrativo

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sensorial, de aprendizagem, de estimulação preco-ce etc.Entretanto, observamos que sob esta ótica a tarefa torna-se um tanto complicada, pois sobrevêm o risco de nos perdermos num emaranhado de formas, identificando-se-as tantas quantos são os terapeutas ocupacionais que porventura se conseguir enumerar.Uma análise dessa natureza só poderia ser efetuada se investigássemos o processo de terapia ocupacional à margem do contexto social em que é realizado. Mas não é essa a nossa proposta, pois não acreditamos na famosa neutralidade da postura profissional.Portanto, para evitar os riscos apontados, vamos trabalhar com as visões de homem, de sociedade e sua relação com o processo de terapia ocupacional.Quando tratamos de indagar, sob essa perspectiva, como acontece o processo terapêutico ocupacional, chegamos a um ponto onde aparecem, em linhas gerais, três posições opostas e, ao que parece, inconciliáveis.Temos então que, para a primeira posição, o pro-cesso acontece de forma natural, espontaneamente, na situação entre terapeuta e cliente, mediatizada pela atividade. Para a segunda, o processo é um artifício das rígidas condições em que se desenvolve, às quais o pa-ciente tem de adaptar-se. Para a terceira, o processo é por definição criativo, transformador, questionador do contexto em que se efetiva.

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Tais posições foram encontradas quando investiga-mos como é visto o homem e a sociedade — a primeira posição toma como pressuposto a concepção humanista; a segunda, a concepção positivista; e a terceira, a concepção dialética.Vejamos como cada uma das posições se apresenta.

2. MODELO DO PROCESSO DE TERAPIA OCUPACIONAL HUMANISTA

A principal característica do trabalho, nesse mode-lo, é a inexistência de padrões preestabelecidos para o seu desenvolvimento. Isto é, não há uma seqüência de fatos ou procedimentos a seguir. Portanto, as conhecidas e tão consagradas divisões do processo de terapia ocupacional em encaminhamento, entrevista inicial, avaliação, elaboração de programa de tratamento, in-tervenção, etc., aqui não têm lugar.O terapeuta parte do pressuposto que ninguém melhor que o cliente para determinar os caminhos a percorrer para retomar uma vida saudável, o estado de saúde. Tal fato advém da crença num homem que é único.A saúde é concebida como um estágio de equilíbrio na relação do homem com seu ambiente; a doença, portanto, decorre do desequilíbrio nessa relação.Nessa concepção, a "saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de afecção ou doença"4.4 Conceito de saúde, difundido pela OMS em sua carta magna de 7 de abril de 1948.

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O processo é centrado na relação terapêutica, tor-nando-se a relação, portanto, o instrumento de trabalho do terapeuta ocupacional. Busca-se criar um ambiente acolhedor, onde o cliente possa descobrir-se e encontrar-se com o outro.O cliente traz a sua maneira de viver, a história de suas aprendizagens e o clima afetivo no que se tem realizado. Cabe ao terapeuta a tarefa de tomar essa relação como medida, ser o facilitador para a aprendizagem de novas formas, oferecendo um modelo de relação, onde seja possível aprender, ensaiar, errar, ensinar, realizar no aqui e agora aquilo que em outro espaço não teve lugar.A atividade também é compreendida enquanto um outro, concreto e com linguagem própria, linguagem que o cliente em ocasiões deverá escutar.Possibilita-se, assim o reconhecimento desse cami-nho de idas e vindas, caminho no qual não mais ocupará um lugar passivo, ao contrário, um novo caminho.Dentro desses princípios, o primeiro encontro entre terapeuta e cliente tem por propósito o esclarecimento de questões como: o porquê de procurar a terapia, quais as expectativas e que tipo de ajuda pode ser oferecida ao cliente. Após explicitar essas questões, o caminho a seguir tanto pode ser pela continuidade da entrevista (primeiro contacto) como pela inserção do cliente na realização de uma atividade.Voltamos a ressaltar, não existe um momento específico para a realização de uma avaliação; esta acontece a cada encontro (atendimento), é

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contínua, acompanha o processo. Aqui, as observações constantes substituem as tradicionais provas e testes. Quando porventura o terapeuta propõe o uso de algum instrumento de investigação, o objetivo é o de possibilitar o conhe-cimento de como o cliente se coloca no mundo e que imagem tem de si, da sua existência.Os primeiros contactos permitem ao terapeuta ela-borar, configurar uma imagem do cliente, esboçar quem é o cliente e quais os seus desejos, suas vontades. Esse referencial, dado pelo cliente (expresso ou percebido) irá permitir a direção a ser tomada no processo.É na conjugação do perfil do cliente aos seus de-sejos em confronto com a sociedade no tocante ao que esta lhe oferece como também ao que espera dele que o terapeuta esboça as características das atividades a serem realizadas.No transcorrer dos encontros, permanece a preo-cupação com as observações para maior conhecimento do cliente, juntamente com o processo de tratamento.O processo de terapia ocupacional visa, assim, ao autoconhecimento, o qual é trabalhado através da realização de atividades e reflexões com respeito tanto às relações estabelecidas no decorrer de cada encontro, como a esse fazer.Nesse modelo de processo, aconselham-se os aten-dimentos grupais, pois essa é a forma mais constante de estar no mundo. Entretanto, o trabalho de grupo aqui tem a conotação do que costumamos chamar em terapia ocupacional de grupo de atividades.

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O grupo de atividades é uma forma de trabalho grupai, onde várias pessoas são atendidas num mesmo espaço, cada qual desenvolvendo o seu próprio projeto, compartilhando, entretanto, uma mesma dinâmica interpessoal. O fazer, nessa situação, é discutido em termos das relações acontecidas consigo e com os outros participantes, como, por exemplo, as relações de cooperação.A essa altura, pode-se perguntar pelo referencial utilizado pelo terapeuta para efetivar o processo terapêutico ocupacional.Observa-se que nesta proposta de trabalho, o tera-peuta é um profundo conhecedor das relações humanas, um especialista no assunto. De forma que procura desenvolver duas características importantes sob a ótica humanista. A primeira é a de uma constante curiosidade quanto às formas de relação e soluções dadas pelo homem aos problemas enfrentados no seu cotidiano. A segunda é uma atitude criativa, que permitirá lidar com os problemas, propondo-lhes novas soluções, isto é, trabalhar com as informações de maneira a reunir os elementos não usuais para procurar compreender e resolver as situações apresentadas.Vê-se, portanto, que aqui os métodos usuais de terapia ocupacional são postos em segundo plano em favor de prevalecer quase que exclusivamente o esforço do terapeuta no desenvolvimento de um estilo próprio de manejo terapêutico, a fim de ser um facilitador do processo vivido pelo cliente.A aquisição dessas características depende de um autoconhecimento, o que favorece ao terapeuta a

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utilização de si próprio como instrumento terapêutico.Sua função restringe-se a ajudar o cliente a se or-ganizar para viver as situações onde seus sentimentos e ações possam ser expostos, vívidos, sem ameaças.O objetivo do trabalho é, assim, favorecer os pro-cessos de relacionamento interpessoal e auto-aprendizagem, como condição primeira para o crescimento pessoal.

3. MODELO DO PROCESSO DE TERAPIA OCUPACIONAL POSITIVISTA

Partindo da compreensão de saúde como um estado de ausência de doença, entendida enquanto um processo biológico vivido pelo indivíduo (organismo), alguns autores de terapia ocupacional propõem um modelo de processo que tem como principal preocupação tratar a doença, a patologia, calcando seus trabalhos na definição de normal e patológico.O processo de terapia proposto nessa concepção é bastante claro e definido, pois para sua realização deve seguir-se uma estrutura rígida de procedimentos. Tal estrutura configura-se num encadeamento de etapas distintas e logicamente ordenadas, as quais possibilitam conhecer a patologia apresentada pelo sujeito, suas pos-sibilidades de prognóstico e a forma mais adequada para alcançar a meta final.Essas etapas ou procedimentos são ordenadas da seguinte forma:

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• encaminhamento,• entrevista inicial,• avaliação (inicial e ou completa),• planejamento de programa de tratamento,• tratamento propriamento dito,• reavaliações,• alta.

O tratamento, portanto, só acontece após uma avaliação do paciente e a elaboração, por parte do terapeuta, de um programa de tratamento.Vejamos, então, etapa por etapa.O encaminhamento médico é a porta de entrada do paciente no tratamento de terapia ocupacional. O paciente chega ao terapeuta com indicações, feitas pelo médico, denominadas prescrição médica.A prescrição explicita os objetivos que o médico ou a equipe esperam obter com o tratamento. Aqui os objetivos apontados estão diretamente ligados à patologia apresentada no caso em questão.Cabe ao profissional, após o recebimento do paciente, realizar uma entrevista inicial, a qual caracteriza o primeiro momento da série de coleta de dados.Conhecer a história do paciente desde o início da doença é de fundamental importância para o profissional, porque possibilita uma investigação de como ele vive o seu cotidiano.Os dados com respeito a nível de escolaridade, condições sócio-econômicas e culturais, religião,

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atividades de vida diária, trabalho e lazer são os preferencialmente colhidos nessa etapa.A entrevista é composta por uma série de pergun-tas que se faz ao paciente e registro das respostas, sem que haja qualquer interferência por parte do terapeuta.Muitas são as formas utilizadas para a efetivação de uma entrevista: estruturadas, não-estruturadas, verbais, escritas, abertas, fechadas etc.Dentre essas, as entrevistas abertas são pouco uti-lizadas, pois caracterizam-se pela livre narrativa por parte do entrevistado. O que mais comumente encontramos nas propostas dos terapeutas que trabalham neste modelo são as entrevistas fechadas ou as anamneses, estruturadas em forma de roteiros de perguntas, que devem ser respondidas pelo entrevistado.A opção por tal forma de entrevista é devida à objetividade na coleta dos dados, que permite colher apenas as informações que são de interesse do profissional.Colhidas as primeiras informações com respeito ao paciente e sua doença, o passo seguinte é a avaliação.A avaliação é, basicamente um instrumento para coleta de dados. Diferencia-se, entretanto, da entrevista por uma questão de método. A avaliação é compreendida como um processo onde o objetivo é investigar o valor de um determinado estado de função. Portanto, o ato de avaliar depende do estrito conhecimento que o avaliador tenha a respeito das normas e níveis da função a ser avaliada. Nessa perspectiva, observa-se que

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todo e qualquer processo avaliativo tem o propósito de determinar o grau (qualidade) e o valor (quantidade) das discrepâncias entre o que é considerado norma e as funções demonstradas durante o processo.Essa etapa do processo tem, pois, o propósito de coleta, análise e interpretação de dados, permitindo ao profissional determinar os níveis de habilidades, capacidades, limitações ou déficits apresentados pelo paciente. Esse é o momento em que o paciente é submetido a uma série de testes, provas e observações específicas. Cabendo, aqui, ressaltar que as avaliações realizadas limitam-se à investigação dos aspectos que dizem respeito à problemática apresentada pelo paciente. Tendo o terapeuta a preocupação de direcionar tal pesquisa, dando maior ênfase aos aspectos ou áreas que a priori são comprovadamente atingidos pela doença.Para este modelo de processo, portanto, os objetivos da avaliação podem ser resumidos em:

a) investigar níveis de funções e comportamentos,b) investigar níveis de crescimento e desenvolvi-mento,c) possibilitar a seleção de objetivos e meios (ati-vidades) para a elaboração do plano de trata-mento,d) colaborar com dados para um diagnóstico dife-rencial,e) investigar os resultados de um programa de tra-tamento.

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Em suma, o processo de avaliação5 é a etapa que permite a obtenção dos dados necessários à elaboração de um programa de tratamento, para que, somados aos anteriormente obtidos na entrevista inicial, formem a base de sustentação para a intervenção profissional.Portanto, somente no final do processo de coleta de dados é que o terapeuta encontra-se em condições de passar para a etapa seguinte: o planejamento do programa de tratamento.Em posse dos dados e após uma análise meticulosa, o terapeuta elabora o plano de tratamento, o qual deve conter a identificação dos objetivos e o caminho a ser percorrido pelo paciente para alcançá-los. O planejamento do programa tratamento é, portanto, o momento de organizar os dados colhidos, de maneira que os problemas sejam delineados, os princípios de tratamento identificados, os objetivos traçados e os meios selecionados.Para autores como Reed, Spackman, Reilly, Mosey, entre outros, o plano de tratamento deve ser elaborado de maneira que o terapeuta possa vislumbrar uma seqüência dos fatos a serem tratados. Deve, também, compreender todos os recursos e meios a serem utilizados, assim como estratégias (número, tipo, duração e local dos atendimentos), prognóstico e previsão da duração do tratamento. Ressaltam, ainda, que um plano

5 Alguns terapeutas ocupacionais subdividem a avaliação em dois momentos: inicial e completa. Tendo, a primeira, o propósito de investigar as funções que se apresentam mantidas, alteradas ou prejudicadas; a segunda, o aprofundar a investigação nas áreas problemas, detectadas na primeira. Ver REED e SANDERSON, 1980.

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bem elaborado concorre para o êxito do tratamento.Bem, até aqui, o terapeuta procede de maneira a avaliar o cliente e planejar o tratamento, o próximo passo então, é colocar em ação o planejado, iniciar a terapia.Diz-se iniciar, porque, nesse modelo de processo, o tratamento propriamente dito só se caracteriza quando o paciente é submetido à terapia planejada pelo profissional.Nos atendimentos que se seguem, o paciente não só vive o tratamento planejado, como também passa por períodos de reavaliações que podem variar de duração quanto aos intervalos de aplicação, segundo a orientação do terapeuta.O procedimento de reavaliar periodicamente o pa-ciente no transcorrer do tratamento tem o objetivo de permitir a verificação da eficácia do tratamento.Um dado importante para a realização das reava-liações é que o terapeuta ao efetuá-las utiliza os mesmos procedimentos de avaliação usados anteriormente, de forma que esses procedimentos incluem os mesmos formulários ou roteiros (testes ou provas), o mesmo avaliador e as mesmas condições ambientais em que foi realizada a avaliação inicial ou completa.Esse procedimento visa a facilitar, comparar as informações e os dados, sem margens de erro, o que possibilita ao terapeuta determinar as mudanças reais acontecidas no decorrer da terapia.As informações sobre a evolução são organizadas de modo que possam ser comparadas às metas

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preestabelecidas inicialmente, a fim de permitir uma revisão do plano de tratamento.Alguns terapeutas ressaltam a importância desse procedimento. Segundo Reed e Sanderson "avaliação é útil porque encoraja o terapeuta ocupacional e outros a examinar o plano de intervenção, em termos do progresso da pessoa, para ver se algumas mudanças poderiam ser feitas, no sentido de se aumentar a velocidade da mudança em direção aos objetivos propostos" (p. 66).Quanto ao tratamento, caracteriza-se pela inserção do paciente num fazer constante, pois, aqui, a atividade é a responsável pelo processo, a atividade é que possibilita a melhora.O terapeuta, utilizando atividades previamente se-lecionadas e analisadas, com o propósito de sanar ou melhorar aquelas funções perdidas ou alteradas, coloca o paciente a executá-las, tendo o cuidado de estimular gradualmente as ações e os comportamentos corretos, correspondentes aos objetivos propostos.No decorrer do atendimento, o terapeuta instrui e demonstra ao paciente como a atividade deve ser realizada. Ao paciente cabe executar o programa com responsabilidade e afinco, pois a sua recuperação depende em grande parte de seu desempenho e esforço.Walker (1973, p. 516) nos mostra o papel de um bom terapeuta, nesse modelo:

"Se ha escrito mucho com respecto a lo que debe hacer un bueno Terapeuta. Inskip afirma que,

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adernas de ser creadores y enérgicos, los terapeutas mas efectivos explican la forma em que actúan, tienen un entusiasmo hacia su trabajo y hacia la vida. Esta actitude fundamental es transmitida al paciente en forma no verbal. El terapeuta dice: Tengo confianza en uested. Confio en mí mísmo. Confio que si podemos actuar conjuntamente puedo ayudarle. Confio en que los objetivos que nos hemos propuestos podrán cumplirse. En todo ambiente terapêutico es essen-cial um terapeuta que posea la actitude básica de que es una persona correcta, una persona que tiéne un propósito, que confia en él y que del miesmo hace un trabajo que cree es importante".Não se pode esquecer que nesse modelo a execução da atividade é fundamental para o tratamento, e o paciente necessita de estímulos para começar e continuar na terapia. Os atendimentos devem ser preferencialmente individuais, pois o que se tem de tratar é a doença.Aqui não há lugar para as chamadas interações grupais, visto que o relacionamento terapêutico (entre paciente e terapeuta) se estabelece apenas através da atividade.As atividades utilizadas variam entre as atividades = exercícios, atividades = produção. Em alguns casos, principalmente nos trabalhos nas áreas de saúde mental e psiquiatria, há também a utilização das atividades = expressão.Pode-se, então, caracterizar a relação terapeuta-paciente como uma relação estruturada e objetiva, com papéis bem definidos. O terapeuta administra as condições necessárias ao tratamento, é apenas

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um elo de ligação entre a atividade e o paciente. Pode-se dizer, que a comunicação terapeuta-paciente tem um sentido exclusivamente técnico, que é o de garantir a eficácia do tratamento.

4. MODELO DO PROCESSO DE TERAPIA OCUPACIONAL MATERIALISTA HISTÓRICO

Refletindo sobre a história da terapia ocupacional, é curioso notar como os terapeutas ocupacionais sempre conceberam a sua disciplina como um processo que visa ao desenvolvimento do ser humano, preocupa-se com a personalidade de cada um, ressalta as características (potenciais e limitações) pessoais, referendando a ideologia dos dons e aptidões inatos, utilizando a atividade com o propósito do exercício, da produção, da expressão individual. Compreensão alienada e alienante.Observamos que, na sua quase totalidade, os tera-peutas tiveram sempre em mente desenvolver a autonomia do homem. Entretanto, observa-se também que nenhum deles reconhece que seu trabalho, ao tratar um homem organismo a-histórico, idealizado, visa à manutenção da estrutura social, à preservação da alienação através do adestramento do homem para a submissão, a obediência, o conformismo.Essas considerações pretendem mostrar, por um lado, que não é possível compreender criticamente as diferentes concepções, modelos de terapia ocupacional, sem recorrer à concepção materialista da história; por outro lado, pretendem também

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apontar que se faz urgente trilhar um novo caminho, que possa contribuir para fazer predominar uma nova formação social.Vivemos uma sociedade em crise, onde os homens, preocupados em situar-se, interrogam, à procura de uma vida mais autêntica, digna e justa. Como pessoas e, por um querer, profissionais de saúde, não estamos à margem dessa luta.Gadotti (1980, p. 21) assinala: "Como não é possí-vel separar a educação da sociedade no interior da qual ela se desenvolve, não se pode, igualmente, dissociar a relação pedagógica daqueles com os quais ela se liga. O educador não é nunca simplesmente um papel, uma função, um personagem, uma ruela residual da máquina educativa: e se assim o for é porque se demitiu como pessoa".Ora, transferindo-se para o contexto da saúde as considerações feitas por esse autor, a busca de uma prática terapêutica que possibilite a melhoria da qualidade de vida, alterando a situação vigente, só pode ser realizada com base na concepção materialista da história.Dentro desse quadro, é preciso, antes de mais nada, situar a saúde dentro de um contexto social. Nota-se, entretanto, que as situações são as mais variadas, dependendo de lugar e tempo. Dessa forma, com a finalidade de chegar-se a algumas diretrizes básicas para a prática profissional dos terapeutas ocupacionais brasileiros, define-se uma sociedade capitalista dita em desenvolvimento e, por conseguinte, em mudança: a sociedade brasileira.

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Tomando como pano de fundo nossa sociedade, verificam-se duas formas de ação de saúde com vistas à mudança: uma reformista e outra revolucionária. Na primeira, as mudanças são puras reformas ou simplesmente adaptações no sistema. Na segunda é que realmente a mudança acontece, pois ela traz consigo a proposta de transformação absoluta da estrutura básica das relações sociais.Na medida em que consideramos o reformismo, uma forma que de maneira alguma favorecerá a relação saúde/mudança social, enquanto mudança revolucionária, pois ao contrário é uma forma de camuflar a preservação do sistema. Pois não é apenas aperfeiçoando as instituições de saúde ou dotando-as de melhores recursos tecnológicos que se mudará a sociedade. Nos deteremos apenas no entendimento da saúde enquanto mudança revolucionária.Numa sociedade dividida em classes, uma das tarefas fundamentais da saúde é a manutenção ou a elevação da força de trabalho, para que todos os indivíduos orientem seu comportamento produtivo na sociedade, legitimando assim a hegemonia de classe e as relações dominador/dominado.De forma que saúde significa, segundo Ana Lúcia M. Rezende (1986, p. 169), "a manutenção da população sadia e produtiva", à medida que as ações de saúde estão voltadas, apenas à rápida reparação dos danos, físicos ou mentais, com a finalidade de "diminuir a inatividade para recolocar o homem em condições de trabalho" (p. 69).

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Como assinala essa autora (p. 102), entretanto, "condicionar as práticas de saúde, que poderiam elevar o nível de sanidade da população à expectativa do desenvolvimento econômico do Estado é uma dolorosa inversão de valores, com a patente negativa do pressuposto de saúde como direito (...) Nesse prisma bizarro, a saúde da população é apenas um meio propício à maior produtividade e enriquecimento do País. A saúde só pode ser vista como fim em si mesma".Constata-se que a classe economicamente dominante é que determina cultura, educação, ciência e saúde. Portanto, a saúde classista explicita a saúde enquanto expressão de exploração, favorecendo a reprodução da força de trabalho, tornando-se um grande instrumento para a preservação da esperança do poder.Ferrara e outros (1976, p. 6), fazendo uma brilhan-te e consistente crítica ao conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde, apontam para um conceito novo de saúde como "um contínuo agir do homem frente ao universo físico, mental e social em que vive, sem regatear um só esforço para modificar, transformar e recriar aquilo que deve ser mudado".A partir da concepção proposta por esses autores, é possível desvelar que a história da doença no indivíduo é sempre inseparável da sua história de vida, porque esta é em si mesma problematizadora. Portanto, nesta nova construção, a saúde e a doença mostram-se como um processo socialmente determinado.

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Temos desta maneira uma visão revolucionária de saúde, a qual será a partir desse momento norteadora da nossa reflexão sobre o modelo do processo de terapia ocupacional.Sob essa ótica, não existem fases distintas do pro-cesso nem momentos específifos para avaliações e tratamento, o terapeuta não centra o seu trabalho na doença. O objeto de atenção é ao contrário, o homem, a pessoa, que é feixe de relações e que vive um determinado contexto ético, político, social, cultural e econômico.Essa visão de homem é a de que nos falam Marx e Engels em A ideologia alemã — "ao produzir o mundo, o homem produz a si próprio".Sendo a atividade humana o instrumento de tra-balho do terapeuta, o ponto de partida só pode ser o trabalho.Partindo dessa compreensão e admitindo-se que é pelo trabalho que o homem se realiza, somos obrigados também a admitir que nele o homem se perde. Pois, sendo o trabalho uma necessidade humana, todo processo de trabalho que escapar ao seu domínio o aliena, e essa alienação é conseqüente do modo de produção capitalista, onde "ocorre a ruptura, uma cisão, um divórcio entre o produto e o produtor, o trabalhador produz o que não consome, consome o que não produz" (CODO, 1985, p. 19).Como a terapia ocupacional é uma prática de saúde que propõe o uso da atividade como recurso terapêutico, uma das possibilidades de ela vir a ser um espaço para transformar a si mesma e assim contribuir para a transformação social mais

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significante é através desse fazer. Um fazer que busca conscientizar os homens da opressão a que estão submetidos enquanto membros de uma sociedade classista. Um fazer que desvela as determinações sociais vividas, busca descobrir formas revolucionárias, mostra a contradição e o conflito da saúde numa sociedade de classes.Partindo dessas premissas, seguem algumas diretrizes que consideramos básicas para a efetivação do processo de terapia ocupacional.O terapeuta não se apodera, como sendo exclusivi-dade sua, dos conhecimentos que possibilitam a efetivação do processo, da mesma forma que não o realiza sozinho. Pois o principal propósito da terapia é possibilitar ao cliente perceber-se enquanto indivíduo social, feixe de relações. Isso só acontece à medida que ele passa a apropriar-se dos meios e dos objetivos do tratamento (materiais, maquinários, ferramentas, métodos de execução e principalmente do produto de seu trabalho), reconhecendo-se enquanto autor, fazedor de sua história e da história do mundo.Cliente e terapeuta, portanto, trabalham juntos na busca e na detecção das reais necessidades6, vontades e desejos apresentados pelo cliente.Atividade, terapeuta e cliente são de fundamental importância no processo. Enquanto a atividade é a base real e material do tratamento; o cliente é aquele que traz seus conceitos e ações, advindos da experiência com a doença, e o terapeuta é

6 A necessidade do cliente não deve ser confundida com a simples detecção da patologia ou suas implicações clínicas, pois, necessidade é aqui compreendida como aquelas questões que permeiam a vida de todo homem, concreto, social.

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aquele que favorece as reflexões e discussões, na perspectiva de identificação e trato das questões conflitivas.Os atendimentos, por sua vez, são primordialmente grupais, sendo que, para a constituição dos grupos, deve-se privilegiar o critério de origem de classe da pessoa.Tal forma de atendimento recai sobre o fato de considerarmos a saúde como questão coletiva, como fato social. E assim sendo, nada mais coerente que trabalhar as questões coletivas, coletivamente.Nos atendimentos, a principal característica é a democratização do processo de terapia, em que cada elemento do grupo é responsável pelo processo, pelo fazer o processo acontecer.O processo nada mais é que um acontecer das ações do grupo, as quais podem ser compreendidas enquanto identificação das necessidades, elaboração de um projeto (de atividade grupal), execução do projeto e reflexões com respeito às ações e suas implicações. Entre-tanto, não devemos entender tais ações como uma estrutura em que as etapas devem seguir-se passo a passo, mas como uma estrutura dinâmica na qual cada grupo imprime sua maneira de organizar-se e construir seu projeto.É, portanto, a partir do fazer e das reflexões e en-tendimentos das experiências do dia-a-dia que o grupo se aproxima, identifica-se, toca, compreende a realidade, atua em seu meio e toma suas próprias decisões. Sendo assim, pelo trabalho do

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grupo é possível que as pessoas reorganizem e reelaborem suas ações.Acreditando, enfim, nesse modelo de processo, observamos que essa terapia ocupacional possibilita estabelecer novas relações entre o homem e a sociedade para a transformação das estruturas opressoras, através de uma prática de saúde que transforma, a partir do trabalho de classe.Compreender, portanto, terapia ocupacional sob a ótica materialista da história é acreditar numa terapia que leva a uma conscientização de classe, é compreendê-la como instrumento de polarização e conscientização através da construção de um saber-fazer inserido nas práticas, nas relações e nas experiências do cotidiano.

Apêndice

ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS ATIVIDADES DA VIDA DIÁRIA

Pouco se tem escrito em t.o. sobre a compreensão e utilização das atividades da vida diária. Por este motivo, julgamos oportuno trazer aqui algumas considerações feitas por ocasião da elaboração do módulo prático, destinado à vivência desse grupo de atividades, da disciplina Atividades e Recursos Terapêuticos II.Muitos poderiam ser os temas geradores do nosso trabalho, de que uma aula prática sobre o assunto poderia tratar.

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Entretanto, nossa preocupação recaía em fazer acontecer um módulo prático que possibilitasse o repensar a teoria. Levantar as contradições escondidas por traz daqueles fundamentos teóricos, onde a prática serve apenas para justificativa do seu próprio desenvolvimento. Uma vivência acadêmica que pudesse apontar para uma nova compreensão do cotidiano, das atividades da vida diária do homem, enquanto o lugar onde se efetiva a práxis. Lugar onde a prática deve exceder o espaço teórico que a tornou possível.Para o objetivo deste estudo, muito mais que defi-nições, importava-nos verificar, através das formas de utilização das atividades em questão, os valores a elas atribuídos, e a relação destes com o conteúdo do cotidiano.Nosso caminho foi então, analisar os valores expressos pelos autores que dedicavam partes dos seus escritos ao assunto. Na medida em que se tratando da literatura entra em cena a controvertida questão da teoria e da prática, a qual tínhamos a intenção de deflagar.Confesso que não houve de nossa parte, um exaus-tivo estudo de todos os textos existentes sobre o tema em questão. Pois reconhecemos a amplitude de um estudo que procurasse abranger os valores expressos sobre as a.v.d. em todas as abordagens.

APRESENTANDO O PROBLEMA

Aqui importa observar que a incorporação do termo atividade da vida diária ao vocabulário comum da terapia ocupacional é marcada pelo

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surgimento da reabilitação. Um nível de aplicação de ação da saúde onde, "as seqüelas ou conseqüências de doença podem ser reparadas com maior ou menor eficiência, permitindo a reabilitação do indivíduo." (Fonte: Chaves, 67). Para tanto um cuidadoso programa de exercícios e atividades é elaborado com a finalidade de tornar a pessoa incapacitada, capaz de manejar seu corpo da maneira a mais eficaz para que seja o mais independente possível na sua vida diária.Com efeito, é no contexto do treinamento funcional, do recondicionamento do corpo biológico que surge a preocupação com o cotidiano da pessoa incapacitada, tendo como princípio a independência. Entretanto, independência que tem sua raiz na execução das ações físicas, do corpo biológico, necessárias para a efetivação do dia-a-dia.Sob essa premissa, as primeiras intervenções ocor-reram è as a.v.d., foram caracterizadas como, apenas, aquelas destinadas aos cuidados pessoais. Nesse momento, a.v.d., é reduzida a: alimentação e higiene pessoal. Posteriormente, com o desenrolar do trabalho de terapia ocupacional nos programas de reabilitação, foram incorporados, ao uso do termo, outras atividades realizadas pelo homem no seu cotidiano, tais como: locomoção, comunicação, destrezas manuais e tarefas domésticas.Nessa "evolução", foi-se codificando, regulamen-tando e compartimentalizando as atividades diárias do homem. De maneira que neste processo, as atividades da vida diária vem sendo

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compreendidas e utilizadas, em larga escala, pelos terapeutas ocupacionais enquanto repetição mecânica de atos/ações físicas exigidas para que se efetive o dia-a-dia, cujo sentido não é questio-nável.Diante deste quadro se poderia questionar:Cotidiano e rotina são as mesmas coisas?Como e para quais fins o cotidiano do cliente é adaptado e quem decide a respeito dessa adaptação?Será que o terapeuta ocupacional ao reduzir o coti-diano às atividades da vida diária a meras ações mecânicas, está preparando as pessoas para o cotidiano concreto?

O EQUÍVOCO NA BUSCA DA COMPREENSÃO DO COTIDIANO ATRAVÉS DO BIOLOGISMO

Se aceitarmos o entendimento das atividades da vida diária pelos processos mecânicos, a utilização desta, constitui à nosso ver, autêntica execução do homem, que passa a ser substituído por funcionalismo.Como expressa Vásquez: "O homem é um ser que tem de estar inventando ou criando constantemente novas soluções. Uma vez encontrada uma solução, não lhe basta repetir ou imitar o que ficou resolvido; em primeiro lugar, porque ele mesmo cria novas necessidades que invalidam as soluções encontradas e, em segundo lugar, porque a própria vida, com suas novas exigências, se encarrega de as invalidar." (Vásquez; p. 247). De maneira que lidar com o

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cotidiano é sempre intervenção que exige um lidar com a concretude do homem, esse movimento de múltiplas relações.O cotidiano não é rotina, não é a simples repetição mecânica de ações que levam a um fazer por fazer. O cotidiano é o lugar onde buscamos exercer nossa atividade prática transformadora, é o social; é o contexto que vivemos.Tomemos como exemplo o ato de comer (atividade de alimentação).Sabe-se que o alimentar-se é um ato obviamente dirigido à necessidade de sobrevivência humana, e nesta compreensão a alimentação pode ser classificada como atividade primária e universal. Entretanto, este mesmo ato apresenta-se de diferentes maneiras para os diferentes povos e populações. Desde os gêneros alimentícios preferencialmente escolhidos, ou acessíveis, ou ainda disponíveis as formas e utensílios utilizados para o preparo até o ato, próprio, de levar o alimento à boca, mastigá-lo, etc.Na perspectiva do reducionismo que se constituiu no modelo dominante da ciência contemporânea a redução do cotidiano a meras ações biológicas do homem nada mais é senão a redução da condição humana à biologia. Como modelo teórico "o biologismo é a tentativa de situar a causa atual da sociedade humana, e das relações dos indivíduos dentro dela, no caráter biológico do animal homem. (...) Toda a riqueza de experiências humanas e as várias formas históricas das relações humanas representam simplesmente o produto de estruturas biológicas subjacentes: as sociedades

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humanas são governadas pelas mesmas leis das sociedades primatas e o modo pelo qual o indivíduo responde ao seu meio ambiente é determinado pelas propriedades inatas das moléculas do DNA encontradas no cérebro ou nas células germinativas." (Rose; 63-64).Verifica-se que a ideologia do reducionismo é, por-tanto, positivista, na medida em que considera que a racionalidade científica que ela representa fornece regras para o funcionamento adequado da sociedade humana.Quanto à problematização inicial em torno do valor da utilização das a.v.d. sob essa ótica, pode-se dizer que está vinculado ao aprimoramento do funcionamento das instituições como mantenedoras de um ideal social harmônico, enquanto instituições que visam a manutenção de um todo social em harmonia, oferecendo sempre "soluções" que mantêm os mecanismos de ajusta-mento do homem ao social.No caso da terapia ocupacional sua transformação em instituição dessa natureza dá-se no momento em que esta assume o reducionismo do biologismo e passa a tratar as patologias, como algo autônomo, considerando o social como dado pronto, inquestionável e harmônico. No que se refere às atividades da vida diária, transforma o cotidiano em ações, atos classificáveis; cabendo a esta o fornecimento de um corpo de normas que orientem o fazer cotidiano-prático do homem, como legitimador da ordem social.Diante destes antecedentes observa-se que os componentes ideológicos incluídos no modelo

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reducionista são bastante claros, à medida em que recusa-se a admitir, por exemplo, as formas de trabalho alienado como crítica das estruturas sociais; ao mesmo tempo que encoraja uma concepção terapêutica manipuladora.Temos então, que a ideologia do modelo reducionista, se expressa no plano da ação social. Desta forma, encara os homens como objetos que podem ser manipulados para adquirir os padrões sociais aceitáveis.

SAÚDE E POLÍTICA

Em uma sociedade classista a transmissão dos mo-delos sociais da classe dominante, como também a difusão das idéias políticas dessa classe, dá-se via as instituições.Por sua vez, "As instituições médicas se tornam o único e legítimo lugar para 'falar e atuar' sobre os corpos, adquirindo a forma dos aparelhos de hegemonia no desempenho de sua atividade, onde elegem determinados agentes sociais — como, por exemplo, o médico — como os portadores dos instrumentos necessários para a execução e efetivação daquela atividade." (Merhy: 1985, 43)Tomando a afirmação de Merhy, pode-se constatar que a Saúde sempre foi política. Como bem disse Moacir Gadotti, "(...) o que precisamos é ter clareza do projeto político que ela defende, politizando-a."Em síntese, podemos dizer que a saúde é política porque em sendo a saúde uma instituição social, suas ações difundem, articuladamente, as idéias políticas e transmitem os modelos sociais.

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FRENTE A UM O QUE FAZER

Entendemos que a problemática da saúde não deve ser tratada numa perspectiva mecanicista, funcionalista, anulando toda possibilidade de intervenção criadora do homem sobre as contradições da realidade, sequer numa perspectiva idealista e ideológica o que compro-vadamente é o caráter da saúde classista.Sabemos que romper com o passado é uma tarefa difícil. Entretanto, é necessário um esforço para exercermos uma crítica consciente no sentido de não alienar ainda mais o homem, implicando em simplesmente adequá-lo ao meio, mas sim fazer o homem refletir sobre seu mundo próximo, tal como se realiza. É necessário que a prática terapêutica seja problematizadora, para que possamos proporcionar àquele que se submete a um processo terapêutico ocupacional uma compreensão do mundo não, como a realidade que lhe é dada, mas como processo de realidade que ele vive.No caso específico das atividades da vida diária, antes de pensarmos simplesmente em um programa de ações mecânicas que possibilite apenas o ajustamento do indivíduo ao social, cabe-nos investigar que conteúdos estamos veiculando, que modelos sociais iremos transmitir, que classe social defendemos, de que ponto de vista estamos pensando a saúde: do povo ou do sistema. Para que possamos inverter a situação que constatamos na prática terapêutica ocupacional:

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"Ao invés da pessoa com dificuldades descobrir o que pode e o que gosta (trabalho criação), ela lida apenas com o que não pode, com o que não consegue (trabalho tortura)." (Galheigo; comunicação pessoal).

Anexo:ROTEIROS PARA ANÁLISE DE ATIVIDADE

ROTEIRO PARA ANÁLISE

TÍTULO(Nome do Projeto)MATERIAL E EQUIPAMENTOS EMPREGADOSTipo específico, mesa, banco, serra, aviamentos, etc. Analisando os:Peso (leve, pesado, regular) Dimensões (tamanho e forma) Mobilidade (fixo, portátil)Qualidades Físicas (Textura, Resistência, Cheiro, etc.) Custo (Viabilidade de aquisição) Possibilidades de adaptações e reaproveitamentosPROCEDIMENTO— Descrição das etapas do trabalho Tempo de execuçãoAÇÕES REALIZADAS PELO SUJEITOA — Aspecto Físico

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1 — Movimentos executados — os mais constantes Tipo: Articulações e músculos envolvidos Amplitude: ampla, média ou pequena2 — Distribuições dos movimentos — BilateraisDominância: Lateral, superior, inferior, mista3 — Postura Freqüência VariabilidadeAspectos Psico-Físicos1 — Coordenação MotoraGrossa: (envolve grandes movimentos) Fina: (envolve pequenos movimentos)2 — Coordenação olho-mão (Visual Motora)Tátil: (cinestésico, berestésico, palestésico, termo dolorosaVisual: discriminaçãoOlfativoGustativoAuditivo4 — Noções de:Espaço: Temporal — (dentro, fora, antes, depois, em cima, embaixo)Medidas: Tamanho, quantidadesForma, corEsquema corporalLateralidadeC — ASPECTOS PSÍQUICOS1 — Atençãoconcentração2 — Interesse (motivação)Intrínseco (prazer da atividade em si)

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Extrínseco (conquista de algo decorrente da atividade)3 — Raciocínio4 — Memória (imediata, passada)5 — CriatividadeImaginaçãoFlexibilidade (desprendimento)OriginalidadeAdequaçãoPersistência6 — Iniciativa7 — Auto-conhecimento (seus potenciais e limitações)8 — Auto-valorização (aceitação e segurança)9 — Emoções (Regressão, agressão, hostilidade, alegria, afeto) 10 — OrganizaçãoD — ASPECTOS SOCIAIS1 — Inter-relacionamentoIndividual — (Com própria atividade com o terapeuta)Em conjunto (trabalhos individuais ao lado)Em grupo (o mesmo trabalho feito por todos os elementos)2 — Aproximação com a realidade Prático (funcional AVD)Engajamento na vida sócio-econômica e cultural