É a nostalgia da fogueira, tenho certeza

of 21 /21
265 Nara Waldemar Keiserman - Diálogos sobre a Narração – É a nostalgia da fogueira, tenho certeza R. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/presenca> ISSN 2237-2660 Diálogos sobre a Narração – É a nostalgia da fogueira, tenho certeza Nara Waldemar Keiserman Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ, Brasil RESUMO – Diálogos sobre a Narração – É a nostalgia da fogueira, tenho certeza – Re- flexões sobre o teatro narrativo que tem na literatura de ficção sua base textual. Abordam-se aspectos como a passagem do livro para a cena, o uso de objetos, a espacialidade, a relação com o espectador, a composição gestual e o trabalho do ator, tendo como referência principal as experiências de encenação realizadas pela autora. O artigo mantém o formato dialógico, de acordo com sua matriz: entrevista realizada por Lígia Borges Matias como parte de sua pesquisa de Mestrado, em 2010, e que ocupa, assim, o papel de coautora do artigo. Palavras-chave: Teatro Narrativo. Ator Narrador. Relação com Espectador. Teatralização. Gestualidade. ABSTRACT – Dialogues on Narration – It’s the nostalgia of the bonfire, I’m sure Thoughts on narrative theater, with texts based on literary fiction. This text brings into focus aspects such as the creation of scenes based on books, the use of objects, spatiality, the relationship with the audience, the composition of gestures and acting. The author’s stage experiences are the main reference for this paper. The keeps a dialogue format, according to its source: an interview which was part of the Master’s degree research conducted by Ligia Borges Matias, the co-author of this article. Keywords: Narrative Theater. Actor Narrator. Relationship with the Audience. Theatri- cality. Gesture. RÉSUMÉ – Dialogues sur la Narration – C’est la nostalgie du feu, j’en suis sûr – Il s’agit d’une réflexion sur le théâtre narratif qui trouve dans la fiction littéraire son fondement textuel. Il traite des aspects tels que le passage du livre à la scène, l’utilisation d’objets, la spatialité, la relation avec le spectateur, la composition et le travail gestuel de l’acteur, ayant comme principale référence les expériences de mise en scène réalisées par l’auteure du présent arti- cle. Celui-ci conserve la forme dialogique présente à la source: l’interview réalisée par Ligia Borges Matias dans le cadre de sa recherche de Master en 2010. Cette dernière joue ainsi le rôle de co-auteure de l’article. Mots-clés: Théâtre Narratif. Acteur Narrateur. Rapport au Spectateur. Théâtralité. Geste. DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-266024581

Embed Size (px)

Transcript of É a nostalgia da fogueira, tenho certeza

  • 265Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    ISSN 2237-2660

    Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certeza

    Nara Waldemar KeisermanUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    RESUMO Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certeza Re-flexes sobre o teatro narrativo que tem na literatura de fico sua base textual. Abordam-se aspectos como a passagem do livro para a cena, o uso de objetos, a espacialidade, a relao com o espectador, a composio gestual e o trabalho do ator, tendo como referncia principal as experincias de encenao realizadas pela autora. O artigo mantm o formato dialgico, de acordo com sua matriz: entrevista realizada por Lgia Borges Matias como parte de sua pesquisa de Mestrado, em 2010, e que ocupa, assim, o papel de coautora do artigo.Palavras-chave: Teatro Narrativo. Ator Narrador. Relao com Espectador. Teatralizao. Gestualidade.

    ABSTRACT Dialogues on Narration Its the nostalgia of the bonfire, Im sure Thoughts on narrative theater, with texts based on literary fiction. This text brings into focus aspects such as the creation of scenes based on books, the use of objects, spatiality, the relationship with the audience, the composition of gestures and acting. The authors stage experiences are the main reference for this paper. The keeps a dialogue format, according to its source: an interview which was part of the Masters degree research conducted by Ligia Borges Matias, the co-author of this article.Keywords: Narrative Theater. Actor Narrator. Relationship with the Audience. Theatri-cality. Gesture.

    RSUM Dialogues sur la Narration Cest la nostalgie du feu, jen suis sr Il sagit dune rflexion sur le thtre narratif qui trouve dans la fiction littraire son fondement textuel. Il traite des aspects tels que le passage du livre la scne, lutilisation dobjets, la spatialit, la relation avec le spectateur, la composition et le travail gestuel de lacteur, ayant comme principale rfrence les expriences de mise en scne ralises par lauteure du prsent arti-cle. Celui-ci conserve la forme dialogique prsente la source: linterview ralise par Ligia Borges Matias dans le cadre de sa recherche de Master en 2010. Cette dernire joue ainsi le rle de co-auteure de larticle.Mots-cls: Thtre Narratif. Acteur Narrateur. Rapport au Spectateur. Thtralit. Geste.

    DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-266024581

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    266

    Este artigo traz uma forma talvez pouco usual. So tre-chos de uma entrevista, realizada por Lgia Borges Matias, como parte da pesquisa para sua Dissertao intitulada Inves-tigaes acerca do uso da narrativa no teatro contemporneo (Matias, 2010) em que a entrevistada assume a autoria do texto, acrescentando comentrios e descries mais explcitas s respostas dadas na ocasio, com o objetivo de explicitar o modo como tem trabalhado com o teatro narrativo. Essas falas novas aparecem em itlico. A entrevistadora exerce um papel de coautoria, por suas perguntas fornecerem a base temtica do artigo, no entanto, como num programa de televiso conheci-do, elimina-se a pergunta, implcita nas respostas, sendo que estas mantm a marca da oralidade, liberando a autora para um certo achismo com o perdo da m palavra. As outras operaes realizadas no original, que se encontra como um dos Anexos da citada Dissertao, no publicada, foi a reor-ganizao sequencial dos assuntos abordados e a incluso de notas e de referncias bibliogrficas. A entrevista foi realizada durante o V Congresso ABRACE, em 31 de outubro de 2008, na UFMG.

    Os espetculos aqui referidos: Ionesco! com trechos das peas Jeux de massacre, A lio e Amadeo ou como se livrar da coisa1, Histria de amor, conto de Heiner Mller e Ns somos os propositores, sobre as cartas trocadas entre Lygia Clark e Hlio Oiticica foram produzidos no contexto da pes-quisa institucional O Ator rapsodo: pesquisa de procedimentos para uma linguagem gestual, desenvolvida na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) desde 1997, com alunos bolsistas de Iniciao Cientfica2 e colocados em cartaz em teatros pblicos Espao Cultural Municipal Sr-gio Porto, o primeiro, em 2003 e Espao Rogrio Cardoso, na Casa de Cultura Laura Alvim, o segundo, em 2006, ambos no Rio de Janeiro. (eu) Caio, 2004, com textos de e sobre Caio Fernando Abreu, O narrador, 2005, contos de Anton Tchecov, Joo Alphonsus, Carlos Drummond de Andrade e outros e A incrvel bateria, 2008, com contos de Joo do Rio, Marques Rebelo, Luiz Antonio e outros foram produzidos pelo grupo Atores Rapsodos, sendo que estes esto inseridos no merca-

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    267

    do profissional: cumprem temporadas mais ou menos longas em espaos teatrais, contam com patrocnios via prmios de editais pblicos, os atores so profissionais, em sua maioria ex-bolsistas da mesma pesquisa. Nos dois contextos, os atores esto investidos da autoria, instalada sobre a ideia de parti-lhamento criador.

    Dois Incios

    Iniciei o contato com o teatro narrativo em 1975, com a montagem de A Salamanca do Jarau, de Joo Simes Lopes Neto. A proposta veio de um grande amigo que tenho at hoje, que o Luis Artur Nunes. Foi ele quem teve a ideia de mon-tarmos esse espetculo, que ele mesmo dirigiu. uma lenda gauchesca, narrada inteirinha em primeira pessoa e por um mesmo ator; era a lenda na ntegra e eu, ali, fiz inicialmente assistncia de direo, eu estava grvida da minha segunda filha, ento eu no podia trabalhar como atriz, porque ela ia nascer durante a temporada. Fiz a assistncia de direo, tra-balhando especialmente as partes corais, num grupo de atores que vivificava, apresentava os acontecimentos narrados. Esse ator era o Jos de Abreu, ele entrava e saa da ao; ele tinha um espao narrativo fora da rea da ao, mas, eventualmente, entrava participando desses momentos vivificados, presenti-ficados da narrativa. Depois, numa segunda temporada, eu entrei como atriz e fizemos apresentaes em So Paulo, no Theatro Municipal. Tenho de l uma lembrana muito espe-cial, que foi quando o Antunes Filho foi ao camarim e disse: Vocs descobriram a sada para o teatro. Isso foi em 76, no primeiro semestre de 76, eu acho. Depois a gente comeou a fazer teatro-dana e enveredamos por outros caminhos e s voltei a fazer um teatro narrativo no Rio de Janeiro, em 1982, com a encenao de contos do livro Morangos mofados, do Caio Fernando Abreu.

    Essa montagem foi com um elenco formado por um grupo de alunos da CAL Casa das Artes de Laranjeiras. A partir da, tenho mantido a preferncia determinada pela cena em que o dilogo no o nico modo de enunciao verbal. Ao poder usufruir de todos os gneros literrios para ocupar o

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    268

    palco, o mundo se expande, a cena transborda e todos pode-mos ser mais felizes. Eu acho.

    Adaptao, Transcrio, Teatralizao

    Em Morangos mofados, trabalhei direto do livro para a cena, no tem uma adaptao em papel, no lembro como os atores faziam, mas no existe essa verso em papel, s existe o livro. Mas naquela poca eu ainda fazia uma espcie de adaptao, no no sentido de transformar o texto em dilogo. Alguns elementos descritivos eu transformava em ao ou in-teno, mas no houve absolutamente uma transformao em dilogo. Mantinha o ele disse, ela disse, mas, por exemplo, se o conto dizia que a personagem estava triste, ao invs de dizer que a personagem estava triste, a atriz se encarregava da fisicalizao do estado de tristeza, coisas assim. Eu tive tambm, naquela ocasio, uma experincia interessante com um dos contos O dia em que Urano encontrou Saturno, que conta a histria de quatro amigos dentro de uma casa. A gente foi compondo pela improvisao, lia o conto, os atores faziam, fomos montando assim. Um dia o Caio falou: Deixa eu adaptar pra vocs e ele trouxe a adaptao; eu li e no gostei, fiquei com vergonha de dizer, mas ele, num insight, falou O de vocs muito melhor e rasgou na minha frente o que ele tinha feito. Esse episdio me fez pensar na fora do que feito em ao, pelo vis da compreenso que passa por uma corporeidade efetiva. Sempre d certo.

    Tenho adotado diferentes procedimentos nessa passagem do livro para a cena e cada um determinado tanto pelo ma-terial literrio escolhido tendo a dizer premiado quanto pela linguagem de cena pretendida. Em todos eles, a palavra do autor do texto tem importncia capital no fosse assim, escolheria outro texto ou nenhum.

    Os Objetos, o Figurino, o Corpo

    Eu tenho medo das coisas. H pouco tempo eu fiz uma pea realista, como atriz3. Teve um dia do ensaio em que o diretor riscou o cho e disse: Aqui a parede, aqui a porta

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    269

    que d pra cozinha.... Eu tive um acesso de riso. Disse O qu? Como que ? [o diretor] Aqui vai pra cozinha [ela rindo] Vai pra onde? (risos) e eu: Vai ter tudo?, [ele] Claro, voc no entendeu, realismo. Eu digo Ok, realista na compo-sio dos personagens, verossmil, mas ter tudo?. Para mim isso inadmissvel, eu no posso conceber um teatro assim. Tenho sempre a sensao que as coisas afastam o olhar do espectador para o que no to importante e, por isso, eu fui sempre trabalhando em cima do corpo do ator; eu acredito que o corpo do ator d conta de tudo o que necessrio, mesmo. S no trabalho com a nudez porque ela se instaura como uma categoria especfica, porque eu acho que nem a roupa preci-sava, mas, como a no roupa j outra coisa, eu sou obrigada a pedir que todos se vistam. Eu reli Meierhold e estou com o firme propsito de, nesse trabalho de pesquisa que estou fazen-do agora4, adotar o macaco. Tenho pedido aos atores, quando vamos apresentar a pesquisa, que usem roupa de trabalho. S que a roupa de trabalho desses meninos muito charmosa; por mais que eles venham de preto e a roupa seja rasgadinha. Porque tudo vira signo, ento se algum colocou a camiseta do lado do avesso isso significa, se a blusa est rasgadinha isso significa... Ento estou pensando em um figurino que seja igual roupa de trabalho, no a roupa de o ator fazer as suas performances, diferente, estou realmente decidida a adotar o macaco. Ento quando eu digo o despojamento e eu tenho medo das coisas, e na verdade foi isso o que tu me perguntaste: como que os objetos entram... Como eu tenho paixo pelos objetos eles entram com muito cuidado. Eu fiz um espetculo como atriz e era a narradora5, o diretor dizia Aqui vai ter um painel com cartazes, que voc vai... e no chegava o tal do painel. Chegou no ensaio geral, eu disse Pode jogar fora isso porque eu no vou usar, e disse pra ele: Tu sabes como minha relao com o objeto, eu me nego a usar em cena amanh uma coisa que chegou hoje. Foi recolhido o pai-nel, no sei onde foi parar, mas no entrou em cena. Eu tenho paixo pelos objetos, ento cada objeto, quando entra, ele tem um valor como um parceiro de cena. Quando eu trabalho com os alunos com objetos eu digo isso uma cena de dupla, por

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    270

    acaso um um objeto. Nesse ltimo espetculo que dirigi, que se chamava Incrvel Bateria, eram contos de carnaval, msicas de carnaval o tempo todo, com todas as movimentaes dos atores sendo danadas; eles danavam uma dana-samba, sam-bavam do incio ao fim do espetculo enquanto iam narrando e vivificando as histrias. Foi engraado aquilo, porque no tinha cadeira em nenhum momento me passou pela cabea que algum personagem ia precisar sentar. Eles no sentam! Eles esto sambando, como que vo sentar? E veio da o no sentar. No Histria de amor eu fiz uma introduo para a pea: eles comeam descascando laranjas, comendo laranjas e tiram da boca, pem na boca do outro, chupam a mesma laranja, contando essas histrias que eu tirei do Crculo dos mentirosos, o livro do Carrire. Contam histrias um para o outro, sentadinhos no cho. Ento ns temos esses objetos ali: uma tbua, uma bacia com laranjas e uma faca. uma presen-a fantstica. Depois, na hora em que ela conta que ele quer que ela tire o filho, ela corta aquelas laranjas furiosa. Conta que ele foi embora e ela ficou esperando por ele... a ela fica em silncio, cortando laranjas, d uma sensao de passagem de tempo, parece que ela ficou dois meses cortando laranjas, esperando ansiosa, nervosa, ele chegar pra comerem juntos. Eu no me lembro como comeou, no lembro quem trouxe as laranjas, realmente, mas assim: Tem laranjas aqui / aqui tu cortas mais ligeiro / faz isso / faz aquilo eu que fui dizendo, porque eu vou enxergando, n? Se eu no enxergo, no d para fazer, no consigo fazer, eu preciso enxergar. No O narrador a gente tinha o conto Sapatinhos vermelhos, do Andersen, que vinha logo antes do Sapatinhos vermelhos do Caio Fernando Abreu, e foi uma coisa tambm que eu enxerguei, na hora em que a menina fica desesperada, ela no consegue tirar os sa-patinhos, a gente fez assim. Os atores tinham garfos espetados em rabanetes e faziam uma dancinha, citando Chaplin6. Era linda, linda, linda essa cena, os quatro atores atrs da mesa a gente tinha uma mesa faziam vrios passos. Esses passos a gente inventou e s depois os atores reproduziam com os rabanetes. O narrador tem objetos, eles comem durante a pea em quase todas as cenas, e tem uma cena, O guardador de

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    271

    patos, de Hermann Sudermann, em que a personagem, uma menina, seduz o menino pela comida. Na hora em que os ato-res abrem aquilo e so doces super apetitosos, a plateia geme. E tem outro conto que A galinha cega, de Joo Alphonsus, em que a atriz, que faz o papel da dona da galinha, come uma galinha assada tambm em cena e a plateia delirava tambm. Aquilo era uma diverso.

    No item 6, sobre a relao com o espectador, est expli-citado o papel dos sentidos nessa montagem.

    O Ponto de Partida

    diferente para cada trabalho. Por exemplo, o que eu estou fazendo agora7, com essa inteno de fazer um teatro tenho medo da palavra poltico. Estamos, [os bolsistas e eu], chamando de poltico porque [o trabalho] pretende trazer para o espectador uma reflexo sobre a realidade, sobre os fatos econmicos, sociais, principalmente sociais; pretende proporcionar uma reflexo, fazer a pessoa se pensar como ser social e isso que ns estamos chamando de teatro poltico. Ento, ns ficamos lendo durante uns trs meses, lendo v-rias coisas at bem diferentes entre si. A gente comeou pelo teatro. Quando ns optamos, houve um Vamos fazer teatro poltico? isso? Ento vamos ler Piscator. Primeira coisa: Vocs vo ler o Teatro poltico do Piscator, vo ler o livro Teatro de militncia da Silvana Garcia, vamos ver tudo o que a gente tem de Brecht em portugus, foi essa a primeira coisa que a gente fez. E a, outras coisas. J vnhamos lendo as cr-nicas do Fausto Wolf morreu agora, um colunista, cronista, o ltimo comunista que ele publicava em uma coluna diria no Jornal do Brasil, muito contundente. Eu levava aquilo para a gente discutir e outras coisas avizinhadas. Eles trouxeram Eduardo Galeano e, a partir dele, a gente tirou temas, que serviram de eixos para improvisaes e tambm para a cons-truo de pequenos eventos cnicos, que os atores preparavam e mostravam. Muitos temas foram se desdobrando em outros e fomos discutindo vrias outras coisas. isso, em cada tra-balho a coisa vem de maneira diferente. Pessoalmente, sou muito movida pela msica, muito, mas quando eu vou pensar

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    272

    em um trabalho, eu penso em um texto. Eu ainda tenho esse vcio. Porque quando a gente pensa Ah, vamos nos livrar do texto, eu fico pensando Por que, hein? Por que mesmo a gente tem que se livrar do texto? No quero, eu adoro a palavra e a literatura uma coisa maravilhosa. Fui atrada pelo literrio porque o mundo fica muito grande, isso. E esse inclusive um trao pico. E ento vm as escolhas, os textos que me movem. E esse movem literal, que me tiram da cadeira, que me fazem agir, me movimentar. Ento o processo vem, normalmente, de um texto, a ele ampliado, s vezes articu-lado claramente com outros desejos, como no Ionesco!. Havia ali uma proposta concreta: Vamos trabalhar sobre objetos e essa uma coisa que eu ainda trabalho numa disciplina, mas sempre uma coisa um pouco limitada, com atores pouco experientes, em dois meses de aula uma vez por semana. Na pesquisa, eu pude ento ficar durante um ano com atores mais experientes, experimentando.

    O ponto que nos move sempre acordado entre os pesquisadores alunos bolsistas e coordenadora. Algumas vezes, me dou ao luxo de iniciar uma nova etapa sem saber exatamente o que vai ser trabalhado. o prprio trabalho que se apresenta, numa espcie de agora eu! Neste momento, 2011, estamos dando incio a uma etapa bastante distinta da Pesquisa. Nomeada de Corpo Infinito, estamos investigando as relaes entre a Susksma Vyayama Yoga e elementos da Leitura Corporal, de Nereida Fontes Vilela, que interessam ao trabalho do ator. Intumos a a possibilidade de uma abor-dagem da criao de cena atravs da mobilizao consciente dos Corpos Fsico, Mental, Emocional e Etrico8 (Vilela; Santos, 2010).

    Ilustrar, Presentificar, Vivificar, Compor

    Para mim, presentificar se refere ao. Vivificar tam-bm. Meierhold foi o primeiro a usar a expresso partitura para o trabalho do ator, talvez por sua ligao com a msica. Meierhold diz que trabalha melhor com os atores que amam a msica. interessante, porque os msicos querem se livrar da partitura, porque ela feita de barras, linhas e barras, e a eu

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    273

    tenho evitado a expresso partitura tentando substituir por uma ideia de sequncia de aes. Aes sequenciadas, porque partitura parece realmente algo que no pode mudar, mas quando voc pensa em sequncia de ao voc pode mudar a sequncia, pode alterar a ordem, d uma sensao de mais liberdade. E a composio o resultado, a somatria das se-quncias, voc vai compondo. Na minha defesa do doutorado, em dezembro de 20049, a Ingrid Koudela10 fez uma ressalva a minha tese por conta do uso desse verbo ilustrar (Ela tinha toda razo). Passei a associar e compreender ilustrar como o que, antigamente, a gente chamava de dramatizar. Muito antigamente, nunca mais ouvi falar nessa palavra, falava-se em dramatizao, como nos primrdios do teatro na escola em que colocavam as criancinhas para dramatizar. Ento era assim: contavam a histria da Chapeuzinho Vermelho e as crianas levantavam e dramatizavam a histria da Chapeuzi-nho Vermelho. E o ilustrar talvez traga um pouco essa cono-tao do dramatizar, do fazer igual, tem uma ideia de cpia, de formalizao empobrecida. Percebo um uso pejorativo. A gente diz Ah, simplesmente ilustrativo. Mas s vezes isso bom. Eu sempre trabalhei tendo essa frico, o embate entre as duas camadas de expresso, oral e gestual, acho mais di-vertido pra quem v. mais difcil para o ator fazer, portanto melhor, pra mim o mais difcil sempre melhor porque mais prazeroso e porque faz crescer. Mas o Luis Artur trabalha, digamos, com uma linha mais ilustrativa. Ento acho que, s vezes, ele ficava meio incomodado com a minha insistncia nesse embate e me dizia que, na inteno, a ilustrao serve como um sublinhar. Quando voc diz uma coisa e faz a mesma, o fazer vem sublinhar aquilo que dito, ento muitas vezes o ilustrativo desejvel nesse mesmo sentido. O que no pode se tornar empobrecedor, porque o lance todo uma aposta na inteligncia do espectador.

    A referncia ao Prof. Dr. Luis Artur Nunes se d por ele ter sido o diretor dos espetculos do Ncleo Carioca de Teatro, grupo que fundamos em 1992, juntamente com Maria Esmeralda Forte, Ivo Fernandes e Shimon Nahmias, com um investimento determinado no teatro narrativo11. Foi tambm

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    274

    meu orientador no Doutorado realizado no PPGAC-UNIRIO, 2004. Ultimamente, tenho trabalhado a gestualidade partindo do o que isso te faz fazer? sendo que isso pode ser o texto como palavra, como sentido, como sensao; o isso pode ser a msica, o objeto, a presena do outro ator.

    Na relao texto versus movimento, tivemos uma experi-ncia mpar. Estvamos com Histria de amor, quando fomos convidados para participar de um encontro entre estudiosos de Lacan, que naquele evento estavam discutindo as questes relativas ao Amor. Era numa livraria. Ao chegarmos l, vimos que no havia um mnimo de espao para a representao. Ento, decidimos fazer se que posso dizer assim com os dois atores sentados a uma pequena mesa, de frente um para o outro, dizendo as palavras do conto. Ambos (Karen Coelho e Iury Salustiano) tinham as palavras impregnadas no s de sentidos e intenes, como de imagens e movimentos, com suas pulses fsicas, tonicidade, equilbrios, que naquela circuns-tncia tinham uma espacialidade extremamente restrita de manifestao, alm das palavras. O que aconteceu foi o que se pode imaginar: a potencializao das palavras conferiu a elas uma fora que os atores nunca haviam experimentado, acrescentando ainda mais uma camada de tensionamentos e de sentidos. Seus olhos faiscavam, seus rostos quase se contorciam at o momento em que, numa exploso, o ator levantou-se, colocando-se atrs da atriz para permitir aos dois o contato corporal que ansiavam at o insuportvel.

    O Espectador

    Acho que tudo comea por Para quem a gente trabalha? Com quem a gente quer falar?. Quando a gente fala em contar histrias, est ali pressuposto o ouvinte. Est bem junto com o ato de narrar, o de ouvir, ento Quem ? Com quem estou falando?, acho que essa pergunta tem que estar presente o tempo inteiro. Como eu disse antes, tem essa aposta na in-teligncia do espectador. Tem um pblico para quem a gente pode falar e que est disposto a um investimento intelectivo e, principalmente, a um investimento que passa pela via sen-sorial a passa por um gosto meu. Assim: quando eu tenho

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    275

    alunos12 do primeiro perodo, eu trabalho uma coisa que chamo chamo no, o programa j veio assim de: os sentidos e sua relao com o movimento, eu j fazia sem dar esse nome. No incio, eram duas semanas de trabalho e hoje eu estou no terceiro ms de aula e acabamos de acabar essa unidade do programa, ento poderia fazer o semestre inteiro os sentidos e sua relao com o movimento. Ento, eu comecei a desejar um espetculo em que pudesse proporcionar para o espectador essa mesma coisa que eu proporciono para os meus alunos; escrevi o projeto [para encenar O narrador], ganhamos o edital, mas eu no consegui realizar o projeto que escrevi. No consegui. Precisaria de muito mais tempo de ensaio e fomos atropelados por coisas concretas, como o surgimento de uma pauta para dali a trs meses que no podamos perder. um projeto que, como no foi realizado do jeito que est escrito, posso retomar a qualquer momento, porque eu no fiz aquilo. A ideia era mais ou menos assim: a gente faria uma seleo de contos em que um dos sentidos fosse mote e cada ator escolheria, pelo seu sentido (tato, viso etc.) predileto, qual conto fazer e levantar ele prprio. Por exemplo: A Natasha [Corbelino] escolheu o conto Sapatinhos Vermelhos, do Caio Fernando Abreu e, digamos que o sentido predileto dela fosse o olfato, ento ela iria comear a trabalhar o conto estando com o olfato absolutamente vivificado. Isso a colocaria em um estado para resolver o que fazer com aquele conto. Todos os contos que escolhemos tinham como ponto central um dos sentidos. Eram dois contos para cada um dos cinco sentidos e pequenas histrias de ligao falando dos sentidos, que eu tinha lido num livro do Jean-Claude Carrire, chamado Crculo dos mentirosos que uma coisa maravilhosa, j usei vrias vezes. Fazamos assim: distribuamos para os espectadores uns saquinhos com cinco objetos que despertavam os sentidos e dvamos um tempo para eles viverem uma experincia sen-sorial e, a partir dessa experincia sensorial, cada espectador votava em um dos sentidos. Os dois sentidos vencedores da noite eram os contos que a gente fazia. A partir da, passa a prevalecer a visualidade.

    Sabemos que a visualidade ativa a memria sensorial. Por isso que a plateia podia deleitar seu paladar ao ver

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    276

    os atores comendo em cena. Tenho grande admirao pelo trabalho sobre um teatro dos sentidos.

    O Acaso/a Improvisao: o ator e a plateia

    A construo usada em O narrador fazia termos um espetculo diferente a cada apresentao. Era divertido ver o iluminador reprogramando a mesa e o operador de som pre-parando o roteiro. Essa experincia com o acaso era bastante radical em (eu)Caio. Acho maravilhoso para os atores terem que lidar com o acaso. Primeiro, porque os coloca sempre em um estado de risco, de insegurana e risco, e isso deixa a pessoa completamente viva. Acho que esse o grande barato. E a plateia sabe que eles esto nesse estado de risco. Para os dois trabalhos, (eu)Caio e O narrador, escrevi uma espcie de prlogo, em que se explicam as regras do jogo. Tem que explicar as regras do jogo. Todo mundo quer ver o circo pegar fogo, a pessoa quer ver o ator errar. diverso. No (eu)Caio, principalmente nos momentos em que os atores contavam histrias pessoais, eu acho que muita gente tinha vontade de levantar e contar. No Narrador, quando a gente estreou, sim, depois a gente abriu mo disso. Ns fizemos seis sesses no Espao SESC, em Copacabana, ento tivemos seis atores con-vidados; a gente deu para eles um livro dos melhores contos do Joo do Rio e cada um escolheu uma histria para contar, que ns no sabamos qual era; no final, a gente convidava algum da plateia que quisesse contar uma histria. Sempre tinha. Mas, depois que entrou em cartaz em teatro convencio-nal, abrimos mo disso.

    Nestes dois trabalhos, os atores recebiam o pblico como se recebe convidados em casa para uma festa. Em (eu)Caio, os atores serviam refrigerantes, salgadinhos, msica tocando, social. A passagem deste clima para o incio da pea era muito sutil, nenhuma grande mudana de luz, salgadinhos ainda sendo servidos e uma das atrizes iniciava o texto do prlogo, em que se pedia aos espectadores para sortearem os contos, escolherem os personagens, um jogo. Chamamos mesmo de (eu)Caio jogo teatral. Na performance, resultante do traba-lho sobre as cartas trocadas entre Lygia Clark e Hlio Oiti-

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    277

    cica, que chamamos de Ns somos os propositores, todas as aes se passavam sobre uma toalha em que estavam servidas comidas e bebidas, como uma grande toalha de piquenique. Os atores convidavam os espectadores a se acomodarem ao redor da toalha e serviam, diretamente em sua boca no havia talheres quitutes que ns mesmos preparvamos. Em Ionesco! eu mesma fazia esse papel de receber o pblico. Tinha uma sensao muito clara de que fizemos para vocs, que bom que vieram. Gosto da comunho. Apesar de utilizar em alguns trabalhos estruturas fragmentadas, que propem aos espectadores algum grau de decifrao, e esta ser sempre particular, almejo ainda aquela plateia que se podia chamar de assembleia. Ainda me debato, insatisfeita e indecisa, na utilizao dos termos pblico, plateia, espectadores. Gosto mesmo de convidados.

    O Espao, a Luz

    Em geral, comeo tendo certeza que palco italiano no ! (risos) a primeira coisa que sei e depois eu vou ver, mas quase em seguida eu enxergo. Ionesco! desde o comeo eu enxergava de comprido, era mais um trilho; na verdade eu enxergava uma mesa, porque eu enxergava aquela coisa de mosteiro medieval, uma mesona que definiria o palco-plateia. No deu pra fazer, virou um trilho no cho que significava a rua, mas eu sempre enxerguei de comprido. A incrvel ba-teria, a gente transformou o espao: a pessoa entra e parece que est entrando num baile de clube, com mesas, decorao de carnaval e os nicos adereos so mscaras de carnaval que os atores usam, eles no tm nada na mo. O narrador era feito bem pertinho, era uma sala, a plateia bem pertinho, porque a outra coisa que eu vejo nisso realmente uma nos-talgia da lareira, da fogueira. a nostalgia da fogueira, tenho certeza. Nas ltimas coisas que fiz, o pblico fica pelo menos parcialmente iluminado. Na Incrvel bateria no tinha como, a luz batia em todo mundo, no Narrador tambm, no prlogo iluminava-se todo o pblico, no tinha mudana de luz desde o terceiro sinal at o incio da pea.

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    278

    A verdade que no enxergo a luz. Tenho trabalhado sempre com o Demetrio Nicolau como iluminador ele tam-bm quem faz as trilhas e ele reclama que eu no considero a luz quando marco a cena. verdade. Tenho um problema com a ideia de criar um clima. No gosto de truques, nem de provocar um efeito. E sempre acho que a luz vai dimi-nuir a visibilidade, vai esconder ou camuflar movimentos to exaustivamente trabalhados, atitudes corporais to milimetri-camente desenhadas. Mas me rendo. Tenho optado por uma luz que recorta o espao, que imprime andamentos.

    Ainda Stanislavski

    O ator-narrador um ator e no propriamente o que se tem chamado de contador de histrias. A narrao uma especialidade, uma especializao. como se fosse assim: todo mundo tem que passar por Stanislavski, todo mundo tem que fazer bal clssico. Ento voc tem que fazer Stanislavski para depois narrar. O que eu vejo do Stanislavski... bacana porque, quando a gente comeou a trabalhar Histria de amor, ns no sabamos ainda como seria; a histria contada na terceira pessoa e a gente manteve ele, ela. No comeo, no sabamos se os atores eram ou no eram os personagens da histria. Eu disse A gente no precisa resolver agora, vamos ver como vocs vo estabelecendo essa fico e eles um dia me confessaram Eu sou e eu disse Ok apesar de falarem na terceira pessoa e no passado, a atitude deles era totalmen-te de presentificao. Ento eu acho que o ponto o lugar: Eu estou no lugar do personagem?, eu acho que o ponto o lugar, distncia. Sempre h a distncia, mas o Stanisla-vski tem vrias coisas que so preciosas como, por exemplo, o grau de verossimilhana, de f cnica principalmente f cnica de compreenso das circunstncias dadas... tem vrios elementos do Stanislavski que no h como no reconhecer e apostar. Porque o que ele fez de melhor foi a anlise do que est acontecendo ali; no tem propriamente uma inveno, mas ele conseguiu perceber o que o fenmeno teatral do ponto de vista do ator e, com isso, tornou acessvel para todo mundo aquilo que s os geniais conseguiam. Ns nos distanciamos

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    279

    de Stanislavski por causa do espao que a gente abre para o comentrio e para a opinio pessoal. Por exemplo, quando a gente v uma pea realistona que muito boa quando bem feita, mas cada vez mais raro de ver aquilo dado como imutvel, voc aceita aquilo assim. Se voc for ver de novo e o ator tiver mudado, voc vai ficar indignado, porque ele est te ludibriando; voc compra aquilo como assim . E no nosso teatro isso no existe, como no Brecht, o espectador tem que ver assim e tambm assim, ao mesmo tempo ele tem que ser capaz de pensar que poderia no ser assim, isso que eu acho bacana. Ento no vir frente est contido o ir pra trs, e a gente tem que achar jeitos para que isso se apresente.

    Cada vez mais, vejo a deciso como fator fundamental e que deve ser evidenciado na elaborao do que est sendo mostrado/visto. Acho importante que se assuma o ato especial, a bolha, o recorte da realidade real que o teatro em que instncia performativa for instala. Nessa frico entre rea-lidade e fico que algumas experincias propem, no vejo a menor graa se a interveno do artista estiver disfarada. H que haver opes e viva o livre arbtrio!

    Ler e Imaginar; Ver e Narrar

    Quando montei Morangos mofados, uma coisa que eu dizia para os atores era que eu pretendia que o espectador tivesse a mesma experincia que eu, que ns tivemos como leitores, mas j ando meio assim com isso. Porque acho que o espetculo tem o compromisso de oferecer uma coisa a mais, seno d o livro para a pessoa ler, coloca uma musiquinha de fundo e vamos todos embora. Qual a vantagem, ento? O espetculo tem que oferecer uma coisa a mais e esse a mais aquilo que voc enxerga, o seu comentrio, a sua opinio, que o espectador pode partilhar ou no. Por isso que tem que ter, o espetculo tem que dar espao para o ou no e tudo deve ser mostrado de uma forma que pressuponha o seu con-trrio. Eu acho que no Histria de amor muito claro como as coisas so claramente opes da cena: nunca poderia ter acontecido daquele jeito porque o que os atores fazem, a sua gestualidade e movimentao totalmente deslocada de uma

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    280

    realidade, nunca poderia ter acontecido daquele jeito, ento eles escolheram fazer assim, poderiam ter escolhido fazer de outro jeito. H uma ntida e assumida construo de lingua-gem, de teatralidade. Outra coisa que prpria da narrativa, que o livro voc para, pensa, l de novo, e a cena est andan-do. H um tempo prprio para o espectador ver o que est sendo narrado. Se eu no t enxergando, digo: Pode parar. Pode parar, no estou enxergando nada!. Eu tenho certeza, j experienciei isso, se eu, como observadora, orientadora, diretora, espectador privilegiado, no estou enxergando nada, o ator tambm no est. Ele que tem que se dar o tempo de enxergar; se ele no est enxergando, ningum mais enxerga e a Stanislavski de novo. um tempo que se mantm na encenao. No tem nada de ir sintetizando os tempos, precisa no tempo da encenao, mas isso j diferente no Stanislavski em que os tempos vo sendo sintetizados.

    Sobre a viso. H alguns atores com quem tenho traba-lhado, que eu posso ver quando esto vendo, no processo dos ensaios. O olhar se modifica. Alguns precisam parar de agir, porque a viso to potente que os paralisa momentaneamen-te. preciso digerir, metabolizar, diria meu amigo Renato Icarahy13, compreender para ento dar corpo e voz quilo tudo. Outros vo enxergando enquanto fazem, s enxergam em movimento; como se o espao oferecesse o buraco em que o ator deve penetrar para ali dar corpo imagem e o ator simplesmente vai e faz. Quando dirijo, muitas vezes preciso levantar e fazer, para compreender melhor o que estou enxergando. Acho que isso vcio de atriz.

    Personagem Narrador

    Eu acho que o narrador um personagem, porque assim a teria uma discusso de o que personagem eu acho que no momento em que voc subiu no banquinho voc um per-sonagem. O teatro comeou assim, n? Algum pegou um ban-quinho, uma caixa, uma coisinha, subiu em cima e comeou a falar. Est feita a coisa. Ento voc fez isso, personagem. Mesmo que ele tenha o meu corpo, a minha voz, mesmo que no tenha nenhuma configurao especial, especialmente

  • Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    281

    criada vamos dizer, ainda assim, para mim, um personagem. Ento, por exemplo, nessas historietas que existiam dentro da pea O narrador, muito curtas, havia uma personalidade narradora. Cada ator-narrador tem, quase como um palhao. Tem uma personalidade narradora, ento um personagem. uma personalidade narradora que contempla a sua opinio, seu ponto de vista, seu modo de enunciao, o modo como voc trabalha as imagens.

    Exemplo muito simples: estive como atriz nas duas mon-tagens de A vida como ela , as crnicas de Nelson Rodrigues, realizao do Ncleo Carioca de Teatro, direo de Luiz Ar-thur Nunes, em 1992 e 2002. A primeira crnica do espetculo, O desgraado, tem um coro de narradores, de composio individualizada. O temperamento narrativo que imprimi em 2002 tem traos bastante diversos do anterior, sem que isso modifique em nada o desenho e o conjunto.

    Gostaria de concluir com uma das pequenas/grandes histrias do livro do Carrire (2004, p. 414):

    Diante do oceanoUma histria persa muito antiga mostra o narrador como um homem isolado, de p sobre um rochedo diante do oceano. Ele conta, sem parar, histria atrs de histria, mal fazendo uma pausa para beber, de vez em quando, um copo dgua. O oceano, tranquilo, o escuta fascinado. E o autor annimo acrescenta: Se um dia o contador se cala, ou se fazem com que ele se cale, ningum pode dizer o que far o oceano.

  • 282Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    Notas1 Estas peas foram consultadas em verses mimeografadas disponveis no Banco de Peas da Biblioteca do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, em tradues de Marcella Mortara, a primeira e de Luis de Lima, as demais.2 De 1997 a 2011, os bolsistas PIBIC ou IC: ngela Blazo, Jos Karini Jnior, Catarina Alfarone, Vivian Duarte, Natasha Corbelino, Helena Borschiver, Rodrigo Faria Dias, Natali Malena Trunckle de Oliveira, Andrea Santiago, Karen Coelho, Iury Salustiano, Mariana Mordente, Caito Guimaraens, Renata Sampaio e Douglas Resende.3 Qual foi teu sonho na vida, meu bem? de Wilson Sayo, direo de Demetrio Nicolau, 2004.4 Naquele momento, com os bolsistas de Iniciao Cientfica Carlos Guimaraens Bueno da Silva e Mariana Volfzon Mordente, alunos do curso de Bacharelado em Artes Cnicas Habilitao Interpretao, da Escola de Teatro da UNIRIO, trabalhvamos sobre um material textual e de gestualidade que resultou no que chamamos de pea-debate Afinal sou apenas um ator: quando o teatro e a poltica se encontram, baseado em Mefisto, de Klauss Mann, com textos de Piscator, Meierhold e Brecht. 5 Forr da revoluo popular, textos de Peter Weiss, Henri Ghon e outros, com direo de Demetrio Nicolau, realizao da Companhia pop de teatro clssico, em cujas montagens fao Direo de Movimento ou Preparao Corporal.6 A cena do filme Em busca do ouro, de 1925, em que Carlitos manipula com garfos dois pezinhos, criando uma imagem de pernas e ps que danam.7 Trabalho referido na nota n. 2. 8 Segundo Nereida Fontes Vilela e Joo Celso dos Santos, o etrico [...] um corpo que olha tanto para o inconsciente quanto para o consciente. [...] No plano sutil, o Corpo Etrico transporta e transmite os impulsos-mensagens, que so cdigos que suscitam e impulsionam a inspirao, o desejo e a vontade foras geradoras do movimento (Vilela; Santos, 2010, p. 25).9 Caminho pedaggico para a formao do ator narrador, orientador Luis Artur Nunes, PPGAC-UNIRIO, 2004.10 Ingrid Dormien Koudela Graduada em Artes Cnicas pela ECA/USP (1971) com Mestrado, Doutorado e Livre Docncia pela ECA/USP. Atualmente pesquisadora com Bolsa de Produtividade de Pesquisa pelo CNPq. Autora de Jogos Teatrais (Perspectiva, 1984); Texto e Jogo (Perspectiva, 1996); Brecht: um jogo de aprendizagem (Perspectiva, 1991); Brecht na Ps-Modernidade (Perspectiva, 2001); Heiner Mller: o espanto no teatro (Perspectiva, 2003); Bchner: na pena e na cena (Perspectiva, 2004) entre outros. Introdutora do sistema de Jogos Teatrais de Viola Spolin no Brasil, tradutora de Improvisao para o Teatro (Perspectiva, 1983) e O Jogo Teatral no Livro do Diretor (Perspectiva, 2004) entre outros. Fonte: Currculo Lattes certificado pela autora em 20 nov. 2011.11 O NCT montou: A vida como ela , as crnicas de Nelson Rodrigues, 1992 e 2002; Cndido ou o otimismo, o romance de Voltaire, 1993; Tragdias cariocas para rir, contos de vrios

  • 283Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    autores, 1996; Correio sentimental de Nelson Rodrigues, coluna de correio sentimental do autor, com o pseudnimo de Myrna, 1999; O menino de paixes de pera, crnicas autobiogrficas de Nelson Rodrigues, 2000. Todos os espetculos foram dirigidos por Luis Artur Nunes com os atores fundadores, j citados, e outros.12 Sou professora responsvel pelas disciplinas de Movimento na Escola de Teatro da UNIRIO, atuando principalmente no 1 e 3 perodos.13 Renato Icarhy da Silveira diretor teatral e professor do Departamento de Direo da Escola de Teatro da UNIRIO, com Mestrado em andamento na mesma instituio; professor de Interpretao na CAL Casa das Artes de Laranjeiras.

  • 284Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    RefernciasABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. So Paulo: Companhia das Letras, 1982.ABREU, Caio Fernando. Sapatinhos Vermelhos. In: ABREU, Caio Fernando. Os Drages no Conhecem o Paraso. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 69-80ALPHONSUS, Joo. Galinha Cega. In: MORICONI, talo (Org.). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Sculo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. P. 85-90ANDERSEN, Hans Christian. Os Sapatos Vermelhos. In: ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.CARRIRE, Jean-Claude. O Crculo dos Mentirosos: contos filosficos do mundo inteiro. So Paulo: Cdex, 2004.DO RIO, Joo. Melhores Contos de Joo do Rio. Seleo de Maria Helena Parente Cunha. So Paulo: Global, 2001.FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Ligia Clark - Hlio Oiticica: cartas 1964 -74. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.GALEANO, Eduardo. O Teatro do Bem e do Mal. Porto Alegre: L&PM, 2007.GARCIA, Silvana. Teatro da Militncia: a inteno do popular no engajamento poltico. So Paulo: Perspectiva, 2004. LOPES NETO, Joo Simes. Salamanca do Jarau. In: LOPES NETO, Joo Simes. Lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1980. P. 33-74.MANN, Klaus. Mefisto: romance de uma carreira. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.MATIAS, Ligia Borges de. Investigaes acerca do Uso da Narrativa no Teatro Contem-porneo. 2009. Dissertao (Mestrado em Artes) Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, So Paulo, 2010.MLLER, Heiner. Histria de Amor. In: MLLER, Heiner. Medeamaterial e Outros Textos. So Paulo: Paz e Terra, 1993. P. 77-84.PICON-VALLIN, Batrice. A Arte do Teatro: entre tradio e vanguarda: Meyerhold e a cena contempornea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto/ Letra e Imagem, 2006.PISCATOR, Erwin. Teatro Poltico. [S.l.]: Civilizao Brasileira: 1968.SUDERMANN, Hermann. O Guardador de Patos. In: Antologia. Os Mais Belos Contos Burlescos, Irnicos e Sarcsticos. Rio de Janeiro: Vecchi, 1947. P. 61-69. VILELA, Nereida Fontes; SANTOS, Joo Celso dos. Leitura Corporal: a linguagem da emoo inscrita no corpo. Belo Horizonte: Ncleo de Terapia Corporal, 2010.V CONGRESSO DA ASSOCIAO BRASILEIRA DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS, 2008, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2008.

  • 285Nara Waldemar Keiserman - Dilogos sobre a Narrao a nostalgia da fogueira, tenho certezaR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 265-285, jan./jun. 2012.Disponvel em:

    Nara Waldemar Keiserman professora Adjunta IV na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO, atuando na Graduao e no Programa de Ps-Graduao da Escola de Teatro. Possui mestrado em teatro pela Universidade de So Paulo, doutorado em teatro pela UNIRIO e Ps-doutorado na Universi-dade de Lisboa.E-mail: [email protected]

    Recebido em novembro de 2012 Aprovado em abril de 2012