Direito Natural

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 2, jul./dez. 2007 357 Direito Natural, Positivismo e Pós-Positivismo: compreensões a partir da História Eros Belin de Moura Cordeiro Eros Belin de Moura Cordeiro Eros Belin de Moura Cordeiro Eros Belin de Moura Cordeiro Eros Belin de Moura Cordeiro Mestre em direito das relações sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Professor colaborador de Teoria Geral do Direito Civil e Teoria Geral dos Contratos das Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil. Professor adjunto de Contratos e Responsabilidade Civil do UnicenP. Professor convidado da Escola Superior de Advocacia da Seccional do Estado do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil. Advogado. 1 INTRODUÇÃO: NECESSIDADE DE COMPREENSÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO E SUA CRISE Os cursos jurídicos, os juristas, a hermenêutica jurídica são fortemente influenciados pela doutrina do positivismo jurídico. O Direito positivo está pre- sente de tal maneira no trato jurídico que ao se falar em Direito natural parece que se está a dizer de algo pertencente a um passado distante, motivo pelo qual sempre é relegado a uma mera notícia histórica. A força da doutrina positivista é tão grande que se a aplica automatica- mente, de forma até inconsciente 1 . No entanto, se comparado ao Direito natural (cujos primeiros pensamentos surgiram na Grécia antiga), a hegemonia da dou- trina positivista é fato recente (consolidou-se efetivamente com o Código Civil francês, no início do século XIX). Além disso, a consagração positivista somente concretizou-se após o papel importante de um dos conteúdos históricos do Di- reito natural: o jusracionalismo. Essas informações preliminares são fundamentais para demonstrar a im- portância de se estudar o percurso histórico que desembocou na hegemonia da doutrina positivista. Essa análise ganha relevo com a crise pela qual passa o positivismo, que não apenas se mostra insuficiente para abarcar a realidade so- cial à sua volta, como também se apresenta como um entrave na realização da justiça. Somente com o estudo histórico de como surgiu e se consolidou a dou- trina positivista é que tal crise pode ser melhor compreendida e dimensionada. 1) Cabe ressaltar aqui a justificativa de Norberto BOBBIO para propositura de um curso sobre positivismo: “(...) um dever da parte de quem – como nós – pertence a uma geração que foi educada no positivismo jurídico e habituada a considerá-lo como filosofia dos juristas (no sentido que torna explícitas as concepções adotadas implicitamente e, talvez, inconscientemente por todos aqueles que praticam o direito)”. (O positivismo jurídi- co: lições de filosofia do direito. Compilação de Nello Morra. Trad. de: Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 233).

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Direito Natural, Positivismo ePós-Positivismo: compreensões

a partir da História

Eros Belin de Moura CordeiroEros Belin de Moura CordeiroEros Belin de Moura CordeiroEros Belin de Moura CordeiroEros Belin de Moura CordeiroMestre em direito das relações sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal doParaná. Professor colaborador de Teoria Geral do Direito Civil e Teoria Geral dos Contratos

das Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil. Professor adjunto de Contratos eResponsabilidade Civil do UnicenP. Professor convidado da Escola Superior de Advocacia

da Seccional do Estado do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil. Advogado.

1 INTRODUÇÃO: NECESSIDADE DE COMPREENSÃODO POSITIVISMO JURÍDICO E SUA CRISE

Os cursos jurídicos, os juristas, a hermenêutica jurídica são fortementeinfluenciados pela doutrina do positivismo jurídico. O Direito positivo está pre-sente de tal maneira no trato jurídico que ao se falar em Direito natural pareceque se está a dizer de algo pertencente a um passado distante, motivo pelo qualsempre é relegado a uma mera notícia histórica.

A força da doutrina positivista é tão grande que se a aplica automatica-mente, de forma até inconsciente1. No entanto, se comparado ao Direito natural(cujos primeiros pensamentos surgiram na Grécia antiga), a hegemonia da dou-trina positivista é fato recente (consolidou-se efetivamente com o Código Civilfrancês, no início do século XIX). Além disso, a consagração positivista somenteconcretizou-se após o papel importante de um dos conteúdos históricos do Di-reito natural: o jusracionalismo.

Essas informações preliminares são fundamentais para demonstrar a im-portância de se estudar o percurso histórico que desembocou na hegemonia dadoutrina positivista. Essa análise ganha relevo com a crise pela qual passa opositivismo, que não apenas se mostra insuficiente para abarcar a realidade so-cial à sua volta, como também se apresenta como um entrave na realização dajustiça. Somente com o estudo histórico de como surgiu e se consolidou a dou-trina positivista é que tal crise pode ser melhor compreendida e dimensionada.

1) Cabe ressaltar aqui a justificativa de Norberto BOBBIO para propositura de um curso sobre positivismo: “(...)um dever da parte de quem – como nós – pertence a uma geração que foi educada no positivismo jurídico ehabituada a considerá-lo como filosofia dos juristas (no sentido que torna explícitas as concepções adotadasimplicitamente e, talvez, inconscientemente por todos aqueles que praticam o direito)”. (O positivismo jurídi-co: lições de filosofia do direito. Compilação de Nello Morra. Trad. de: Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E.Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 233).

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Nessa ordem de idéias, o objetivo deste pequeno estudo é analisar a traves-sia histórica percorrida pelo Direito natural, passando por seus diversos conteú-dos históricos, enfocando em particular o Direito natural racional (jusracionalis-mo, que abre as portas ao positivismo) e a consolidação do positivismo jurídico.Por fim, enfrenta-se a crise do positivismo jurídico, inserta em um complexo ce-nário de correntes críticas (período que se tem denominado pós-positivismo).

Para empreender tal tarefa, perquire-se inicialmente a compreensão do Di-reito natural, enfatizando suas características e focando em especial as temáti-cas que aborda (deslocadas, a partir do positivismo, para o campo da filosofia doDireito), valendo-se dos contributos de MENEZES CORDEIRO2 e Elias DÍAZ3.

Em seguida, passa-se a análise histórica do Direito natural até o períododo Direito racional, ressaltando-se a importância do seu sentido histórico (assu-mindo ora caráter conservador, ora caráter revolucionário), tomando novamentepor base o estudo de Elias DÍAZ4. Enfrenta-se, então, o período do Direito racio-nal, que abriria as portas ao positivismo jurídicos, adotando-se como marcosteóricos a obra de Franz WIEACKER5 e o estudo crítico de Luís Roberto BARROSO6.Daí segue-se à consolidação da hegemonia da doutrina positivista com as gran-des codificações (que correspondem de forma paradoxal, quando do auge dojusracionalismo, ao fim do Direito natural), levando-se em consideração os tra-balhos de Norberto BOBBIO7 e António Manuel HESPANHA8.

Por fim, adentra-se à crise do positivismo e as suas repercussões nas teo-rias críticas do Direito, cujas fontes principais foram as obras de Luiz EdsonFACHIN9 e Luís Roberto BARROSO10.

Empreende-se, assim, a compreensão de como surgiu e se consolidou adoutrina positivista, assim como suas características e seus limites, adotando-se como fio condutor que permeia todo o trabalho o viés crítico do conceitualis-mo abstrato, em nome de uma perspectiva construtiva visando um Direito menoslegalista e mais justo.

2 NOÇÕES GERAIS SOBRE DIREITO NATURAL

Inicialmente, para a precisa abordagem da evolução do Direito natural, de

2) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Livraria Almedina,2ª impressão, 1997.3) DÍAZ, Elias. Sociologia y filosofia del derecho. Madrid: Taurus, 1988.4) DÍAZ, Elias. Ob. cit..5) WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. de: António Manuel Botelho Hespanha.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1980.6) BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In Temas de direito constitucional, t. II. Rio de Janeiro: Reno-var, 2003, p. 6-38.7) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit..8) HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Panorama histórico dacultura jurídica europeia. Lisboa: Publicações europa-américa, 2ª ed., 1998.9) FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.10) FACHIN, Luiz Edson . Ob. cit..

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como desemboca no racionalismo e com isso abre as portas para o desenvolvi-mento do positivismo, é necessário buscar, ainda que em linhas gerais, o queseja Direito natural (a expressão jusnaturalismo nada mais é do que o próprioDireito natural, termo este difundido na era moderna11).

Segundo MENEZES CORDEIRO, a expressão Direito natural é multissignifi-cativa e pode ser compreendida em três sentidos fundamentais: o sentido clássi-co, e a partir desta noção clássica, um sentido amplo e um sentido restrito12.

O sentido clássico explica o Direito Natural como filosofia e teoria do di-reito, em que os materiais éticos e as questões jurídicas foram tratadas comocomplexo unitário. A partir dessa noção clássica, pode-se adotar uma concep-ção ampla e uma restrita. A concepção ampla do Direito natural ocupa-se com afundamentação e justificação do Direito, ou seja, a preocupação do Direito natu-ral não é saber o que é de Direito, e sim o que é o Direito. Já a noção estritacompreende o Direito Natural como um conjunto de normas independentes epré-eminentemente válidas ao Direito positivo, imanentes ao Homem, tendo le-gitimidade por si só (e não por força de uma autoridade), derivadas da natureza13.

O Direito natural, portanto, trata de assuntos de filosofia do Direito e daética14 e apresenta fundamento diverso do sistema normativo criado pelo Esta-do. Por tratar de assuntos filosóficos (e dos temas fundamentais de dada soci-edade), o Direito natural teve diversos significados no curso da história. Comosalienta MENEZES CORDEIRO,

11) AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª ed., 2000, p. 44: “Na épocamoderna, o direito natural desevolve-se sob o nome de jusnaturalismo (Grotius e Pufendorf), sendo visto como‘expressão de princípios superiores ligados á natureza racional e social do homem’, dos quais pode-se deduzir umsistema de regras jurídicas.” Sobre o Direito natural racional, suas características, principais idealizadores e decomo influenciou no surgimento da doutrina positivista, vide capítulo 3.12) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Ob. cit., p. 203-204, nota 3.13) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, ibidem: “A expressão <<Direito Natural>> émultissignificativa; esse factor, nem sempre tido em conta, contribui para a formação de uma mitologia em tornodo tema que, embora substancialmente complexo é de enunciado formal simples. Cabe, da semântica variadainerente à expressão <<Direito Natural>>, isolar três aplicações fundamentais. Em sentido clássico – o que figurano texto – o <<Direito Natural>> exprime a filosofia e a Teoria do Direito, em geral; esta acepção foi freqüenteno chamado racionalismo, que se prende, de forma directa, ao naturalismo ibérico anterior (...). Segue-se, depois,um sentido amplo e um sentido restrito. Em sentido amplo, <<Direito Natural>> é a área da Filosofia do Direito quese ocupa dos fundamentos e da justificação do Direito, bem como dos princípios que devem informá-lo, para que eleseja considerado <<justo>>. (....) Em sentido estrito, o Direito Natural é um conjunto de normas; mais precisamen-te, na definição de Max WEBER, Witschaft und Gesellshaft (1922), 496 <<....o conjunto de normas independentesde todo o Direito positivo e, perante ele, pré-eminentemente válidas, que não fazem depender sua dignidade depropositura arbitrária, mas antes, de forma inversa, cujo poder de vinculação só legitimam. Portanto, o conjuntode normas que não são legitimadas por força de sua origem num legislador idôneo, mas sim por força de puraqualidade imanente: a única forma consequente de legitimidade de um Direito que pode, aliás, permanecer naausência de revelações religiosas ou da sacralidade autoritária da tradição e de seus suporte>>”.14) Foi com o advento do jusracionalismo e, mais precisamente, com o surgimento do positivismo e a conse-qüente consolidação da separação entre Direito e Moral é que a expressão “Filosofia do Direito” apareceu: “Lareflexión filosófica sobre el Derecho ha sido así durante todos esos siglos, de modo preferente, especulación entorno al Derecho natural, entendido éste como sinónimo de Derecho justo, de Justicia sin más. La <<Ciencia delDerecho natural>>, los tratados teológicos o no sobre la ley natural y sobre <<la virtud ética de la justicia>> hanconstruido, pues, formalmente los precendentes históricos de lo después sería la Filosofía del Derecho. RecuerdaTruyol Serra en este sentido, ofreciendo un buen cuadro de referencias para la localización del iusnaturalismo:

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A referência a um Direito natural obriga a uma colocação histórica. Aindaque abstraindo, por agora, das posições recentes que, partindo do Naturalvariável de STAMMLER, fazem, dele, um Direito de cultura, deve-se salien-tar-se que o Direito natural, por envolver as representações axiológicas maissensíveis de cada sociedade, está, por excelência, dependente do estágiocultural em que se encontre a ordem jurídica onde seja propugnado. A in-terceptação entre Direito natural e cultura é reforçada nos períodos em queas directivas jusnaturalistas assumiram, directamente, uma papel político-social. O que ocorreu no racionalismo. A cultura só apreensível na história.15

Assim, pode-se ter uma noção, ainda que grosseira, do Direito natu-ral enquanto teorização de materiais filosóficos, especialmente éticos. Em razãode enfrentar tais problemáticas, deduz-se também uma característica fundamentaldo Direito natural: sua historicidade. No entanto, apesar do conteúdo do Direitonatural variar no tempo e de acordo com cada sociedade, há outras duas caracte-rísticas que sempre estão presentes quando se fala em jusnaturalismo: a univer-salidade e a imutabilidade. Com efeito, como explica DÍAZ,

Sin esa base predominante de universalidade-inmutabilidade no debe enrigor hablarse de iusnaturalismo, salvo com riesgo de crear un injustificadoconfusionismo: se podrá hablar de Derecho justo, legítimo, etc., pero no deDerecho natural. Convendría no olvidar esto cuando hoy, com excessiba pre-cipitación, se habla de nuevos renaciementos del Derecho natural em cuantoaparece la mais incipiciente señal de uma filosofia crítico-valorativa16.

Aliado a isso, o jusnaturalismo ainda se apresenta como fundamento últi-mo do Direito. Dizendo de uma forma mais direta, os jusnaturalistas creditam aautenticidade exclusiva do Direito ao Direito natural, em que o Direito positivoapenas concorda com ele e dele retira seu fundamento. O Direito natural, então,seria o verdadeiro Direito e também natural (ou seja, está acima do sistema posi-tivo, acima da história, acima da localidade: imutável e universal)17.

<<La expresión Filosofia del derecho es, en efecto, una denominación nueva para un objeto antiguo que, por estartratado en una conexión conceptual más amplia, no tenía etiqueta propia. (...)>> Y continúa Truyyol: <<Fue laescuela racionalista de los siglos XVII y XVIII la que, al separar la moral del derecho y proclamar la autonomía deéste, convierte al Derecho natural en disciplina propia con um amplo contenido: así surgen los títulos conreferencia expressa al ius naturae et gentium (Pufendorf, Tomasio, Wolf)>>.” (DÍAZ, Elias. Ob. cit., p. 260).Como se verá adiante, o deslocamento do material ético e filosófico do campo do Direito natural para o campo daFilosofia do Direito atenderá às pretensões do positivismo jurídico, pois sedimentará a idéia da concepção neutrado Direito, isto é, como produto unicamente derivado da produção legislativa formal do Estado. Essa observaçãotambém explica, com a atual crise do positivismo jurídico (que vem desde o final do século XIX e acentuou-se nodecorrer do século XX), o crescimento em importância dos estudos filosófico-jurídicos: “La nueva terminologiasuponía, em efecto, uma nueva problemática, um nuevo sentido histórico, diferentes planteamientos que lostradicionales em la reflexión sobre la crítica y los fundamentos del Derecho: hay pues, por de pronto, umaoposición de la Filosofia del Derecho al iusnaturalismo de los siglos precedentes. Pero tambbién, em seguida, umasuperación crítica del positivismo que empieza a manifestarse y que va a tener amplia vigência, em diferentesformas, durante los siglos XIX e XX. Puede decirse que es precisamente a través de ese trabajo de depuración críticafrente a los diferentes iusnaturalismos, teológicos o racionales, y frente a los positivismos de raíz decimonónica,cuando se constituye en nuestro tiempo con validez propia la Filosofía del Derecho.” (DÍAZ, Elias. Idem, p. 262).15) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Ob. cit., p. 205.16) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, p. 265.

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Pelo que foi exposto, pode-se ter uma noção geral a respeito do Direito natu-ral (ou jusnaturalismo): trata-se da doutrina que defende um Direito supra-estatal(e, portanto, independente do sistema positivo), com pretensões de universalidade,imutabilidade, autenticidade (apesar de seus fundamentos variarem no curso da his-tória e de acordo com dada sociedade) e, por se apresentar com justificação doDireito, tematizador de assuntos filosóficos e éticos (que, a partir da hegemonia dojuspositivismo, foram deslocados para o campo da filosofia do Direito18).

No entanto, para melhor compreensão do Direito natural e de como grada-tivamente cedeu espaço ao positivismo jurídico, é necessário a análise do cami-nho que percorreu no curso da história, em especial das posições centrais dojusnaturalismo teológico transcendental e do jusracinalismo predominante nosséculos XVII e XVIII (que propiciou as condições teórico-filosóficas para o surgi-mento da doutrina positivista).

3 SIGNIFICADO HISTÓRICO DO DIREITO NATURALE AS POSIÇÕES CENTRAIS DO JUSNATURALISMO

TRANSCENDENTAL CRISTÃO E DOS JUSRACIONALISMO

Como visto, as diversas concepções do Direito natural variaram no cursoda história, podendo-se afirmar que o conteúdo do Direito natural é historica-mente determinado. Daí a conclusão de que não existe um só Direito natural,incondicionado (apesar de todas as concepções de Direito natural apontarem àuma noção de imutabilidade e universalidade)19.

Pode-se, com isso, determinar diversos tipos históricos de Direito natural:platônico-aristotélico; estóico; transcendente (San Agustín y Santo Tomás, quedesembocou no neoescolástico contemporâneo), racionalista de Pufendorf, To-másio e Wolff, dentre outros.20

Os primeiros estudos acerca do Direito natural deram-se na antigüidade,inicialmente com os sofistas, que concebiam o Direito natural a partir do existen-cialismo (especialmente Protágoras: o homem caracteriza-se pelos traços própri-os de cada um21). O idealismo de Platão e o hilemorfismo de Aristóteles (união de

17) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, p. 266.18) “O jusnaturalismo é um doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale),ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas peloEstado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer.O jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina antitética à do ‘positivimo jurídico’, segundo a qual só há um direito, oestabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos”. (BOBBIO, Norberto;MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. de: Carmen C. Varriale; Gaetano LoMônaco; João Ferreira; Luís Guerreiro Pinto Cacais; Renzo Dini. Brasília: UNB, 2002, p. 655-656.19) DÍAZ, Elias. Ob. cit., p. 263: “Dentro de esas coordenadas comunes a toda concepción sobre el Derechonatural, cabe y es legítimo diferenciar, no obstante, diferentes tipos de iusnaturalismo manifestados de modosucesivo en la historia. (Digamos entre paréntesis que esta pluralidad de concepciones sobre el Derecho natural,admitida por los propios iusnaturalistas, que conlleva a diferentes contenidos del mismo, se aduce con frecuencia– y el argumento es altamente polémico – como una prueba más de la imposibilidad de un Derecho natural, máso menos incondicionado históricamente.”20) DÍAZ, Elias. Idem, ibidem.

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forma e matéria como fundamento das coisas) quebrariam um pouco esse particu-larismo existencial com as noções de generalidade e universalidade do Direitonatural22. Mas foi com a filosofia estóica que as idéias de universalidade e genera-lidade de Platão e Aristóteles sedimentaram-se23. Era época do crescimento doImpério Macedônico e expansão do helenismo, surgindo a necessidade de buscade denominadores comuns em meio às variedades culturais. Essa generalidade euniversalidade só poderiam ser alcançadas por intermédio da natureza humana, oumais especificamente, da razão24. Posteriormente, com o advento da Idade Média,surgiria o jusnaturalismo cristão, ora apegado às leis de Deus, ora apegado à pos-tulados filosóficos gregos (ao idealismo platônico, por S. Agostinho e pela segun-da escolástica e ao existencialismo por Duns Scotus e Guilherme de Ockham) e,mais tarde, na modernidade, o jusnaturalismo racional.25

Apesar da diferenças existentes entre as várias concepções de Direito natural,pode-se, com base no pensamento de Elías DÍAZ, reduzir a duas posições centraisdo jusnaturalismo: o transcendente, de raiz teológica, concebidas basicamente porSanto Agostinho e Santo Tomas de aquino, e o racionalista de Hugo Grócio, Pufen-dorf, Tomasio, Wolff, assim com as teorias políticas de Hobbes, Locke e Rousseau26.

Tais concepções são centrais não só por sua importância histórica, mastambém por sedimentarem as características principais do Direito natural, já res-saltadas: a imutabilidade e a universalidade27.

A diferença entra essas duas concepções reside em que a concepção esco-lástica é primordialmente ontológica (o Direito é o Direito natural; o Direito po-sitivo somente existe porque é conforme o Direito natural28), ao passo que oDireito natural racionalista primordialmente é deontológico (a universalidade eimutabilidade não de limita ao Direito; podem existir valores que também sãouniversais, como os valores éticos, por exemplo29).

21) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Ob. cit., p. 206.22) MENEZES CORDEIRO, Antônio Manoel da Rocha e. Idem, ibidem.23) WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 291: “A convicção de que a sociedade humana era ordenada por leis foifundamentada pelos sofistas (Gorgias, Calides, Trasímaco) de uma forma naturalista ou (Protágoras, Lícofron)relativista; deste modo, eles converteram-se nos autênticos descobridores do direito natural como problema.Em contrapartida, no conceito anti-sofista e socrático de verdade, a justiça torna-se, pela primeira vez, objectode um saber válido em geral, incondicionado e transcendente na teoria e idéias de Platão; e, com Aristóteles, éorganizado numa disciplina científica e ao mesmo tempo preenchido com determinações de caráter material”.24) WIEACKER, Franz. Idem, p. 208.25) As causas que levaram à consolidação do jusnaturalismo racional (grande precursor do positivismo jurídicoe, portanto, temática fundamental à este trabalho) serão vistos mais à frente (infra, capítulo 4).26) WIEACKER, Franz. Idem, 264. No mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 20: “O rótulogenérico do jusnaturalismo tem sido aplicado a fases históricas diversas e a conteúdos heterogêneos, queremontam à antigüidade clássica e chegam aos dias de hoje, passando por densa e complexa elaboração ao longoda Idade Média. A despeito das múltiplas variantes, o direito natural apresenta-se, fundamentalmente, em duasversões: a) a de uma lei estabelecida pela vontade de Deus; b) a de uma lei ditada pela razão. O direito naturalmoderno começa a formar-se a partir do século XVI, procurando superar o dogmatismo medieval e escapar doambiente teológico em que se desenvolveu. A ênfase na natureza e na razão humanas, e não mais na origemdivina, é um dos marcos da Idade Moderna e base de uma nova cultura laica, consolidada a partir do século XVII.”27) WIEACKER, Franz. Idem, p. 266-267.28) WIEACKER, Franz. Idem, p. 266.29) WIEACKER, Franz. Idem, p. 267.

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Para o Direito natural cristão, a lei universal ou lei eterna é a razão ouvontade de Deus30; a lei natural é a transcrição da lei eterna na alma humana. A leipositiva somente será lei se concordar com a lei natural, que por sua vez é con-cebida a partir da lei eterna. O esquema central da escolástica é a hierarquizaçãode leis: a lei positiva baseia-se na lei natural que surge da lei eterna, ditada pelavontade de Deus (e pronunciada pela Igreja). Só há Direito se este for derivado dalei universal eterna31.

Com a crise da Igreja (período denominado de Reforma), a unidade eclisiás-tica se desfaz32. O universalismo destrói-se, por diversos centros ligados ä Igrejaestabelecem conteúdos diversos à lei eterna. A pretensão de universalidade, então,deve fundar-se em outro pilar. Esse pilar será a razão humana independente, des-tituída de qualquer religiosidade33. É a autonomia da razão humana frente à razãoteleológica que caracteriza a base do fundamento racionalista do Direito natural34.

Começava a se desenhar o jusracionalismo, que será mais detidamenteanalisado no próximo capítulo. Cabe, agora, assinalar a importância desse per-curso histórico do jusnaturalismo, ou seja, determinar seu sentido histórico: oDireito natural é condicionado historicamente, e passa a assumir ora caráter re-volucionário, ora caráter conservador35.

30) O jusnaturalismo cristão era relativo, ou seja, apresentava um constante relação entre o Direito da naturezado homem e Deus; foi com São Tomás de Aquino que alcançou a universalidade característica de uma teoria deDireito natural: “Na medida em que a separação do bem e do mal por Deus constitui um acto do seu livre arbítrioe, portanto, uma opção histórica e não o resultado de valores gerais, tornou-se característica de todo o pensa-mento jurídico cristão a relativização do direito natural perante à revelação divina e, portanto, a problematiza-ção das relações entre direito natural humano e justiça divina. (...) Mas só com o aparecimento de um sistemafilosófico na alta-escolástica o direito natural se tornou numa autêntica metafísica do direito. Quando S. Tomásde Aquino recorria, com a analogia entis, à teoria aristotélica das idéias, a qual concebe a existência contrária aosvalores como um modo incompleto de existência, estava a determinar o ser pelo valor e a decidir-se pelapreeminência da razão em relação à vontade do criador.” (WIEACKER, Franz. Idem, p. 292-293).31) “Ley eterna (que no se confunde com la ley divino-positiva manifestada por Dios a través de la revelación),ley natural y ley humano-positiva, articuladas jerárquicamente y fundadas todas en la primera, constituyen elesquema central de la concepción iusnaturalista escolástic-medieval. Lo decisivo en ella es su fundamentaciónreligiosa y teológica, su apoyo en su concepto de ley eterna (y d ley divino-positiva) inspirada e intrepretada porla concepción del mundo y del orden propios de la Iglesia católica medeval” (Elías DÍAZ. Ob. cit, p. 270).32) Elías DÍAZ. Idem, ibidem.33) WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 317: “Os pioneiros do jusracionalismo baseiam-se originalmente no calvinismopolítico (Althussius, o próprio Grócio, mais tarde Milton e John Locke, os americanos e Rousseau); o seu solo político,Genebra, os Países Baixos, a Inglaterra e os Estados Unidos; o seu clima, o vento salgado do mar aberto, no qual eradefendida a liberdade contra os lacaios dos príncipes; os seus lugares de formação, os Países Baixos, a Suíça e, naAlemanha, Heidelberga e as escolas reformadas já referidas, como Herborn, Duisburg, Burgsteinfurt. Sua forma jurídicaé a soberania das comunidades calvinistas dirigidas pelos mais velhos, à qual se haeria de sobrepor mais tarde o triunfoda soberania popular nos Estados Unidos e (se quisermos atribuir a Rousseau uma tal influência) em França.”34) DÍAZ, Elias. Ob. cit., p. 270-271: “Si se quiere encontrar un concepto unitario de Derecho natural, aceptadopor todos los hombres sean cuales fueren sus ideas religiosas, se hace preciso independizar aquél de éstas. En el nuevoclima de incipiente racionalismo (siglos XVI-XVII), de afirmación de la autonomía e independencia de la razónteológica, se piensa que la base y el fundamento de ses Derecho natural no puede ser ya, decimos, la ley eterna, sinola misma naturaleza recional del hombre, que corresponde y pertenece por igual a todo el género humano: la razón,se dice, es lo común a todo hombre. Sobre ella se puede construir una auténtico y nuevo Derecho natural.”35) Elías DÍAZ. Idem, p. 272, embora não seja este o papel do jusnaturalismo, já que constitui-se, por tudo o quejá foi exposto (especialmente no capítulo 1), como método de conhecimento do Direito (nesse sentido,WIECKER, Franz. Ob. cit., p. 289).

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Esse sentido histórico do jusnaturalismo é fundamental para a compreen-são do Direito natural racionalista36, que apresenta nítida ruptura com as con-cepções de Direito natural anteriores (a revolução francesa é exemplo claro37: odireito natural passou a ter nítido caráter revolucionário ao servir como argu-mento para superação dos privilégios feudais, além de propiciar as bases paraascensão da classe burguesa ao poder e solidificação do capitalismo emergente);consolidado o triunfo da revolução, o direito natural passou a ter nítido caráterconservador com relação à outra ruptura que surgiria: à do império da lei, o queabriu de vez as portas para o surgimento do positivismo jurídico (e para conse-qüente queda do Direito natural, como se verá).

Mas para a compreensão de como surgiu o positivismo jurídico e o conse-qüente declínio do jusnaturalismo, faz-se necessário analisar o período de doisséculos (1600-1800) em que o Direito natural racionalista influenciou direta-mente a legislação e a jurisprudência da maior parte dos países da Europa. Esseperíodo, denominado de “jusracionalismo”, pode ser considerado como prepara-dor para a consagração da doutrina juspositivista.

4 DIREITO NATURAL RACIONALISTA (JUSRACIONALISMO) E A ABERTURA AO POSITIVISMO

No início do século XVII, a Europa vivia momento conturbado, em quedesenhava-se um quadro de mudanças progressistas indicativas da superaçãoda era medieval. Além da crise na Igreja (autoridade política na Idade média),movimentos intelectuais decisivos na construção teórica da modernidade co-meçaram a se desenvolver.Movimentos como humanismo e, especialmente onominalismo, levaram a uma significativa e importante transformação no pen-samento: o deslocamento da razão de Deus para à natureza, fato que abrirá asportas para a idéia de sistema (a idéia de sistema natural38). Primeiramente es-sas novas concepções surgiram nas ciências exatas: Galileu Galilei e IssacNewton, na física, defensores da idéia de domínio da natureza a partir do sujei-to (tipicamente moderna); daí o desenvolvimento de métodos quantitativos eexperimentais, a noção de natureza desmistificada, e sim constituída e apreen-

36) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 21-22: “A crença de que o homem possui direitos naturais, vale dizer, umespaço de integridade e de liberdade a ser preservado e respeitado pelo p´roprio Estado, foi o combustível dasrevoluções liberais e fundamento das doutrinas políticas de cunho individualista que enfrentaram a monarquia absoluta.A revolução Francesa e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e, anteriormente, a Declaraçãode Independência dos Estados Unidos (1776), estão impregnados de idéias jusnaturalistas, sob a influência marcante deJohn Locke, autor emblemático dessa corrente filosófica e do pensamento contratualista, no qual foi antecedido porHobbes e cucedido por Rousseau. Sem embargo da precedência histórica dos ingleses, cuja Revolução Gloriosa foiconcluída em 1689, o Estado liberal ficou associado a esse eventos e a essa fase da história da humanidade.”37) “Tal como os próprios fundadores da época matemática – como Galileu, Descartes, Espinosa e Laibniz –também os precursores do jusracionalismo são homens de origem burguesa ou patrícia, muitas vezes origináriosde comunidades republicanas ou mesmo seus dirigentes políticos e que tinham encontrado e manifestado osuporte teórico das suas experiências político-sociais como pensadores autónomos fora das universidades”.(WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 316).38) WIEACKER, Franz. Idem, p. 282-283.

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dida pelo Homem39. Mais tarde, Descartes40 e Kant41 trabalhariam sob essa mes-ma matiz na esfera social.

Tais movimentos pavimentam o caminho do desenvolvimento do jusracio-nalismo, estruturado fundamentalmente na razão humana (fundadora e explica-dora de todo o fenômeno jurídico). Destacam-se aqui, de modo especial, HugoGrócio, defensor da desconexão do direito da vontade de Deus e precursor daconstrução da noção de sistema, idéias estas também desenvolvidas por SamuelPufendorf, criador de uma idéia de sistema fundado em premissas teóricas de-senvolvidas por Thomas Hobbes e Barush Espinosa42.

O pensamento de Puffendorf, acrescido da separação entre Direito e éticafeita por Christian Thomasius43 e da filosofia moral racionalista de Christian Wol-ff44, proporcionou o substrato teórico do predomínio da razão como conteúdo doDireito natural e promoveu não só uma nova antropologia, libertando o homemdas amarras religiosas, como trouxe ao Direito uma nova metodologia: a com-preensão do fenômeno jurídico a partir de deduções lógico-abstratas idealizadasna noção de sistema. Tudo isso sedimentará os primados da segurança e dacerteza jurídica, que caracterizam o fundamento ideológico do positivismo, epossibilitará as condições necessárias ao desenvolvimento político-econômicoda modernidade (ascensão da burguesia ao poder e efetivação do capitalismo45).

O positivismo jurídico, então, tem os seus pressupostos delineados. Res-

39) WIEACKER, Franz. Idem, p. 285.40) HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 149: “Mas, para além destas vozes que lhe vinham do passado,o século XVII encontrou no ambiente filosófico do seu presente tempo elentos que contribuiram para formara sua concepção de um direito natural, estável como a própria razão. Referimo-nos ao idealismo cartesiano,embora tal concepção filosófica tenha ligações muito profundas com uma anterior escola filosófica da BaixaIdade Média – o nominalismo de Scotto e Guilherme de Occam.” O método de Descartes, fundado na dúvida,começava a dar a noção do sujeito moderno, que acondiciona a natureza (o sujeito pensante). Trata-se dainversão moderna no plano do conhecimento – da relação objeto-sujeito para sujeito-objeto – que seria maistarde sedimentada por Kant.41) Kant estatuiu uma completa revolução na teoria do conhecimento, construindo o sujeito transcendental,epistêmico (enfim, moderno), como explica Ricardo Marcelo FONSECA: “É na sua Crítica da Razão Pura, de1781, que Kant empreende a sua filosofia transcendental, ou seja, a investigação que ‘em geral se ocupa menos dosobjetos, do que do modo de os conhecer’. E é aqui (no problema de como conhecer o mundo) que ele opera umaverdadeira ‘revolução copernicana’ na filosofia, moldando a idéia da subjetividade cognitiva. Assim, se Copérnicoinverteu o modelo de cosmo tradicional segundo o qual o sol girava em torno da terra, Kant aduziu que não é osujeito que se origina pelo objeto, mas é o objeto que é determinado pelo sujeito, ou, dito de outro modo, em vezda faculdade de conhecer ser regulada pelo objeto, é na verdade o objeto que é regulado pela faculdade de conhecer”.(Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: Ltr, 2002, p. 61-62).42) WIEACKER, Franz. Ob. cit., p. 353.43) WIEACKER, Franz. Idem, p. 358.44) WIEACKER, Franz. Idem, p. 361.45) CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensinodo direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 34-35: “A aliança entre comerciantes e filósofosreconhecidos foi, a bem dizer, permanente, alcançando o Iluminismo. E de fato, aos filósofos iluministas caberáo papel de ideólogos daquela classe, e ‘a emancipação política de uma nova classe é apresentada, por parte de seusideólogos, em termos de emancipação do Homem em geral’. Assim é que a união entre a burguesia e a filosofiairia culminar, com o advento da razão, no Estado moderno liberal. Esta união foi o ‘triunfo de uma aliança semnuvens entre a finança e o pensamento, esta alargada como o exercício da razão raciocinante’. A ideologia setornava em ordem jurídico-política”.

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tava, para sua confirmação, o advento de estatutos legislativos que corporificas-sem toda essa construção racional. Tais estatutos são as codificações – modelosracionais legislativos, cujos maiores e mais brilhantes exemplos são o Code CivilFrancês de 1804 e o BGB Alemão de 1896, reflexos da criação dos estados mo-dernos que, paradoxalmente, representam simultaneamente o apogeu e o declí-nio do Direito natural racionalista46.

5 POSITIVISMO JURÍDICO E CODIFICAÇÕES:APOGEU E DECLÍNIO DO DIREITO NATURAL

A formação do Estado moderno foi o primeiro passo para a confirmaçãoda hegemonia do positivismo jurídico. O seu advento é o pressuposto lógicoda primeira característica do Direito positivo: o monopólio do Estado comofonte de Direito.

Os preceitos filosóficos que viam o Homem como dominador da naturezaderam condições para que se justificasse a criação de uma autoridade única quepromovesse o preciso direcionamento da sociedade47. O Direito deveria ser pro-veniente de uma única fonte porque somente assim a ordem e a paz seriam asse-guradas. E esta autoridade somente poderia ser o Estado48.

O Estado passa, então, a deter o monopólio da produção legislativa. Alémdisso, também detinha a exclusividade da interpretação e aplicação das leis pro-

46) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 22: “O jusnaturalismo racionalista esteve uma vez mais ao lado doiluminismo no movimento de codificação do Direito, no século XVIIII, cuja maior realização foi o Código Civilfrancês – o Código de Napoleão -, que entrou em vigor em 1804. Em busca de clareza, unidade e simplificação,incorporou-se à tradição jurídica romano-germânica a elaboração de códigos, isto é, documentos legislativos queagrupam e organizam sistematicamente as normas em torno de determinado objeto. Completada a revoluçãoburguesa, o direito natuiral viu-se ‘domesticado e ensinado dogmaticamente’. A técnica de codificação tende apromover a identificação entre direito e lei. A Escola da Exegese, por sua vez, irá impor o apego ao texto e áinterpretação gramatical e histórica, cerceando a atuação criativa do juiz em nome de uma interpretaçãopretensamente objetiva. O advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textosescritos e o êxito do movimento de codificação simbolizam a vitória do direito natural, o seu apogeu. Parado-xalmente, representaram, também, a sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais,cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aosordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anti-científico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX.”Ressalta-se também que o Código Civil alemão também teve significativa importância, não somente históricaface ao célebre debate em torno da idéia de codificação entre Savigny e Thibaut (como será visto mais a frente),como também sistemática e metodológica, que inovou na divisão entre parte geral e especial, onde naquelaestariam os conceitos gerais que se aplicariam a todos os livros da parte geral (partindo, portanto, de umafórmula puramente racional: a compreensão do específico é retirada da compreensão do geral).47) Norberto BOBBIO expõe que uma das “idéias-matrizes” da codificação é a modificação e transformação dasociedade (do mesmo modo que controla e transforma a natureza, dando-lhe uma utilidade): “O dar a prevalênciaà lei como fonte do direito nasce do propósito do homem modificar a sociedade. Como o homem pode controlara natureza através do conhecimento de suas leis, assim ele pode transformar a sociedade através da renovação das leisque a regem; mas para que isto seja possível, para que o direito possa modificar as estruturas sociais, é mister, portanto,que seja posto através da lei. O direito consuetudinário não pode, de fato, servir a tal finalidade, porque é inconsci-ente, irrefletido, é um direito que exprime e representa a estrutura atual da sociedade e, conseqüentemente, nãopode incidir sobre esta para modifica-la; a lei, em lugar disto, cria um direito que exprime a estrutura que se quer asociedade assuma. O costume é uma fonte passiva, a lei é uma fonte ativa do direito.” (O positivismo..., p. 119-120).

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duzidas (monopólio jurisdicional). O ideal da pacificação somente seria atingidocom a centralização da justiça nas mãos do Estado49.

Nessa idéia de necessidade de segurança jurídica (valor base do positivis-mo ético e sustentáculo ideológico da doutrina positivista50) que surgiram ascodificações oitocentistas, com a pretensão de universalidade e perpetuidade51.

A primeira grande codificação foi a francesa de 1804. Os primeiros proje-tos tinham influência expressa do jusnaturalismo racionalista. Em célebre dis-curso proferido em 4 de junho de 1793, Cambacérès, autor do primeiro projeto,afirmou que: “Existe uma lei superior a todas as outras, uma lei eterna, inalterá-

48) HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 169: “Os novos códigos, se, por um lado, procediam a um novodesenho das instituições correspondente à ordem social burguesa liberal, instituíam, por outro, uma tecnologianormativa fundada na generalidade e na sistematicidade e, logo, adequada a uma aplicação do direito mais quotidianae mais controlável pelo novo centro do poder – o Estado. Estadualismo, certeza do direito e previsibilidade vão,assim, de braço dado, permitir a efectivação e a estabilização dos novo arranjos sociais, políticos e jurídicos.”49) O surgimento do positivismo decorre diretamente da necessidade de acabar com o pluralismo das fontes deDireito (Direito feudal, Direito eclesiástico, Direito romano, Direito bárbaro): “Ora, a concepção racionalistaconsiderava a multiplicidade e a complicação do direito um fruto do arbítrio da história. As velhas leis deviam,portanto, ser substituídas por um direito simples e unitário, que seria ditado pela ciência da legislação, uma novaciência que, interrogando a natureza do homem, estabeleceria quais eram as leis universais e imutáveis quedeveriam regular a conduta do homem. Os iluministas estavam, de fato, convecidos de que o direito histórico,constituído por uma selva de normas complicadas e arbitrárias, era apenas uma espécie de direito ‘fenomênico’e que além dele, fundado na natureza das coisas cognoscíveis pela razão humana, existia o verdadeiro direito. Poisbem, a natureza profunda, a essência verdadeira da realidade, é simples e suas leis são harmônica e unitariamentecoligadas; por isto, também o direito, o verdadeiro direito fundado na natureza, podia e devia ser simples eunitário”. (BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 65). Da mesma forma deveria ser eliminada a diversidade deconteúdos que foram dados ao próprio Direito natural racional: “La herencia de la Modernidad fue que cada escuelaredujo – contra toda la evidencia surgida de la práxis Del derecho – a toda justicia posible a um despliegue de umsistema que se suponía que encarnaba lãs exigências necesarias y absolutas de la Razón. Así resultaba que existia umaJusticia – es decir, uma ‘razón’ – para los partidários de grocio y outra para los seguidores de Pufendorf, uma paralos que seguían a Thomasius o gundling, y outra para los que leían a Kant. Si la justicia quedó equiparada – comosucedió de hecho – a una visión global y racionalista de los fundamentos de la sociedad (visiones que fundamental-mente contenían propuestas ploíticas), la multiplicidad de estas teorías, de estos sistemas de ‘Derecho natural’,todos pretendidamente verdaderos y todos opuestos, condujo al escepticismo práctico” (Francisco CARPINTE-RO. Los inicios del positivismo jurídico en centroeuropa. Madrid: Actas, 1993, p. 107-108).50) Como salienta Norberto BOBBIO, o fundamento ideológico do positivismo pode ser visto sob dois enfoques:um extremo, consubstanciado no “dever absoluto ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal.” (O positivis-mo..., p. 225) e outro moderado, consistente no “meio de realizar um certo valor, o da ordem” (BOBBIO,Norberto. Idem, p. 230). Em suma, são duas faces da mesma moeda: a segurança jurídica, necessária ao sistemapolítico-econômico emergente (capitalismo).51) Por isso, é preciso dizer que o movimento de codificação não é um completo descontinuismo em relação aojusracionalismo: “Com o jus-racionalismo realça-se, de facto, o caráter universal do direito. Ligada à <<naturezahumana>> eterna e imutável, a regulamentação jurídica não depende dos climas ou das latitudes. Os <<códigos>>são tendencialmente, universais, pelo que tanto podem ser feitos por um nacional como por um estrangeiro epodem ser aplicados, livremente, como direito subsidiário ou mesmo principal de outros países. É isto que explicaa tendência para exportar os grandes códigos (nomeadamente o Code civil, de 1804; e, mais tarde, os códigos civisalemão, italiano e suíço) para áreas culturais totalmente estranhas à européia, como a japonesa (com o reformismoMeiji, nos finais do século XIX), a chinesa (com o movimento ocidentalizador de 4 de maio de 1919) ou a turca(com a revolução de Kamal Ataturk).” (HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 168). Guardada as devidasproporções, a mesma observação pode ser aplicada ao Brasil, cuja codificação de 1916 também é inspirada nosCódigos francês e alemão, assim como a de 2002 é influenciada detidamente pela portuguesa de 1966 e italiana de1942 (além de manter a inspiração alemã). Todas essas “influências” comprovam a pretensão de universalidade daidéia de codificação do Direito, pretensão esta que, como já visto, também é do Direito natural.

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vel, própria a todos os povos, conveniente a todos os climas: a lei da natureza.Eis aqui o código das nações, que os séculos não puderam alterar, nem os co-mentadores desfigurar. É a ele apenas que é necessário consultar”.52 Decorrênciadireta do apego ao jusnaturalismo, o projeto Cambecéres sustentava-se em “trêsprincípios fundamentais: reaproximação da natureza, unidade e simplicidade.”53

No entanto, tal projeto não foi aceito, por ter sido considerado muito téc-nico e pouco filosófico. Cambecéres apresentou outros dois projetos, tambémnão aceitos. Essa não aprovação pode ser explicada de maneira simples: a crençana impossibilidade da “realização de um o ‘código de natureza’, simples e unitá-rio...”54. Sedimentava-se, então, a idéia de um Código totalitário, ou seja, só po-deria existir um único Direito, uma única lei: a do Código. Assim, a lei da nature-za ou a lei racional não mais deveria existir, por estar superada pelo Código.

Prevaleceu então o projeto concebido por Portalis, Tronchet, Bogot-Préame-neau, Maleville, cuja versão definitiva desligou-se completamente do jusnaturalis-mo (o Conselho de Estado eliminou do projeto inicial o resquício do Direito naturalpresente nos artigos 1° e 9°, que previam, respectivamente, um direito universal eimutável, fundado na razão natural, e o Direito natural como fonte integrativa delacunas55). O Código de Napoleão, na verdade, representava uma síntese da tradiçãofrancesa (uma mistura do direito romano erudito aplicado no sul – o qual Portalisdominava profundamente, tendo baseado boa parte de seu projeto no famoso Trata-do de direito civil de Pothier – e do direito consuetudinário aplicado no norte56) e dosideais da revolução, atendendo assim às pretensões políticas da burguesia da época.A intenção do Código, então, era ser um ponto de partida e um ponto de chegada aomesmo tempo: da tradição passada à construção do caminho do futuro.

Tal apego à tradição não somente implicava em um resgate dos institutosdo Direito romano, mas também em uma preservação do Direito natural racional.Esse era o ideário dos redatores do Código de Napoleão, mas o que realmenteprevaleceu foi a visão dos interprétes da codificação, como salienta BOBBIO:

Se o código de Napoleão foi considerado o início absoluto de uma novatradição jurídica, que sepulta completamente a precedente, isto foi devidoaos primeiros intérpretes e não aos redatores do próprio Código. É de fatoàqueles e não a estes que se deve a adoção do princípio da onipotência dolegislador, princípio que constitui, como já se disse mais de uma vez, umdos dogmas fundamentais do positivismo jurídico (...).57

52) Apud BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 69.53) BOBBIO, Norberto. Idem, ibidem.54) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 70.55) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 72 e 76.56) CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado. Trad. de: Carlos Eduardo LimaMachado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 8: “As fontes imediatas usadas pelos autores do Code Civil de1804 foram o direito comum francês tradicional do século XVIII, que era um amálgama dos direitos eruditos econsuetudinário, parte do qual era bem antiga; e, em segundo lugar, as inovações feitas durante a Revolução. Essamistura do velho e do novo adequava-se ao clima político da nação e, depois da queda do ancien regime,mostrou-se também bastante adequada à sociedade pequeno-burguesa do século XIX.”57) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 73.

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O descompasso entre os redatores do Code e a interpretação que deste seseguiu pode ser claramente visualizada na discussão a respeito das “lacunas legis-lativas” (omissão da lei a respeito de dada matéria58). Portalis, em seu discurso pre-liminar por ocasião da apresentação do projeto, narrou os postulados que iriamdeterminar a interpretação e aplicação da lei em França a partir da edição do CódigoCivil de 1804: o Juiz que se negar a aplicar a lei sob o pretexto de omissão legislativa,será responsável por denegar justiça (CCF, 4°). Tal exigência leva ao problema dequando a lei não oferece a resposta ao caso suscitado, do que apresentam doiscaminhos: buscar a solução dentro do sistema legislativo (isto é, dentro do próprioCódigo), ou então deduzí-la fora do sistema, a partir da eqüidade (trata-se da ques-tão da integração legislativa, que para os positivistas sempre deve-se dar dentro dosistema – a denominada auto-integração, derivada do dogma da onipotência dolegislador que leva à ao postulado da completude do ordenamento jurídico59).

A resposta de Portalis ao problema da lacuna do Código é dada no artigo 9°:“Nas matérias civis, o juiz, na falta de leis precisas, é um ministro de eqüidade. Aeqüidade é o retorno à lei natural e as usos adotados no silêncio da lei positiva”60.A solução dada por Portalis foi bastante clara: a omissão do Código será supridapela razão natural, ou seja, pelo Direito natural racional, que passa a ter novafunção: atuará subsidiariamente à lei positiva. O artigo 9°, combinado com oartigo 1°, que estipulava a razão como fonte da lei positiva a razão natural, con-sagravam o Direito natural como fundamento do Direito positivo (o que revela aprevalência do Direito natural, verdadeiramente universal).

No entanto, tais dispositivos não foram aprovados pelo Conselho de Estado.Dessa rejeição surge a interpretação de que o jusnaturalismo (assim como toda atradição precedente) não mais exerceria qualquer influência na interpretação ouintegração do sistema61. As omissões legislativas deveriam ser supridas pelo pró-prio ordenamento jurídico, e não pela lei da natureza. Surge, então, a Escola daExege62 (seus maiores expoentes foram Alexandre Duranton, Charles Aubry e Fré-déric Charles Rau, Jean Ch. F. Demolombe e Troplong), cujo postulado básico eraque o juiz é a boca da Lei (a redução completa do Direito ao Código). A Escola daExegese sedimentaria a doutrina positivista em França, primeiro invertendo a rela-ção Direito natural/Direito positivo (somente interessaria ao jurista aquilo que doDireito natural for positivado), e depois ratificando a concepção rigidamente esta-tal do Direito (que seria reduzido as normas formais estipuladas pelo Estado – aonipotência do legislador), do que decorre a interpretação da intenção do legisla-dor, do culto do texto da lei e do respeito ao Direito proveniente da autoridade63.

58) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 73-74.59) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 74.60) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 76.61) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 77.62) BOBBIO, Norberto. Idem, ibidem: “É neste modo de entender o art. 4°, que se fundou a escola dos intérpretes doCódigo Civil, conhecida como ‘escola da exegese’ (école de l’exégèse); esta foi acusada de fetichismo da lei, porqueconsiderava o Código de Napoleão como se tivesse sepultado todo o direito precedente e contivesse em si as normaspara todos os possíveis casos futuros, e pretendia fundar a resolução de quaisquer questões na intenção do legislador”.

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O Direito natural, então, cumprira seu papel (ao abrir as portas ao positi-vismo) e seria condenado ao desaparecimento, como ressalta CAENEGEM:

No século XVIII, o direito racional (Vernunftsrecht) fora um instrumento po-deroso na luta contra o antigo regime político. Durante a Revolução, o di-reito natural tinha sido constantemente invocado para justificar as novasnormas e os novos sistemas. Na obra teórica de Portalis, o direito naturaldesempenha um papel muito importante. O Code civil, e qualquer referên-cia ao direito natural, fonte perpétua de inspiração para os que se opu-nham ao status quo, estava fora de questão. Para os adeptos do novoCode, o papel do direito natural tinha acabado.64

Outro grande passo para a consolidação do positivismo jurídico foi dadona Alemanha. A ocupação francesa de parte do solo alemão e a conseqüenteperspectiva da aplicação do Código de Napoleão (consolidador dos ideais ilumi-nistas, especialmente o da igualdade formal entre os cidadãos) em território ger-mânico (ainda sob a égide do Código prussiano, que conservava a distinção dapopulação em três castas: nobreza, burguesia e campesinato) fomentavam mo-vimentos revolucionários, dentre os quais o da codificação do Direito alemão65.

Em torno da idéia de codificação, surge um debate entre os adeptos daescola histórica e da escola filosófica (que mais tarde desembocaria na escolapandectista66), revelador de um particularismo significativo para o advento dadoutrina positivista: ambas as escolas criticam o jusnaturalismo67, só que porperspectivas diversas. Os adeptos da escola história, apegados à variedade e àirracionalidade histórica, criticavam a razão totalizante, imutável, universal e abs-trata, que levava à ignorância da evolução da sociedade; a escola filosófica, porsua vez, pela ausência de sistematização do jusnaturalismo. Em resumo, e escolahistórica defendia a tradição68, ao passo que a escola filosófica sustentava ainterpretação sistemática (ou mais detidamente, a “incidência do raciocínio lógi-

63) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 84-88, passim.64) CAENEGEM, R. C. Van. Ob. cit., p. 12-13.65) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 55.66) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 57.67) BOBBIO, Norberto. Idem, p. 45: “Para que o direito natural perca terreno é necessário um outro passo, épreciso que a filosofia jusnaturalista seja criticada a fundo e que as concepções ou, ainda, os ‘mitos’ jusnaturalistas(estado de natureza, lei natural, contrato social...) desapareçam da consciência dos doutos. Esse mitos estavamligados a uma concepção filosófica racionalista (a filosofia iluminista, cuja matriz se encontrava no pensamentocartesiano). Ora, foi precisamente no quadro geral da polêmica antiracionalista, conduzida na primeira metadedo século XIX pelo historicismo (movimento filosófico-cultural de que falaremos no próximo parágrafo), queacontece a ‘dessacralização’ do direito natural”.68) E por isso opunham-se a idéia de um Direito exclusivamente estatal: “O programa da Escola histórica era,justamente, o de buscar as fontes não estaduais e não legislativas do direito. A sua pré-compreensão da sociedade –subsidiária da filosofia da cultura organicista e evolucionista de Herder e do ambiente cultural e político do romantismoalemão – levava-a a conceber a sociedade como um todo orgânico, sujeito a uma evolução histórica semelhante á dosseres vivos, em que no presente se lêem os traços do passado e em que este condiciona naturalmente o que vem depois.Em toda esta evolução, peculiar a cada povo, manifestar-se-ia um lógica própria, um espírito silenciosamenteactuante, o <<espírito do povo>> (Volksgeist), que estaria na origem e, ao mesmo tempo, daria unidade e sentido atodas as manifestações histórico-culturais de uma nação.” (HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 182).

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co-sistemático na interpretação do direito”69, tarefa que melhor seria empreen-dida com um estatuto legislativo unitário e coeso70).

O maior representante da escola histórica foi Carlos Frederico von Savigny eda escola filosófica Antonio Frederico Justo Thibaut, responsáveis pela célebrepolêmica a respeito da codificação do Direito alemão71. Venceu Thibaut, e a escolahistórica pode ser vista como precursora do positivismo apenas enquanto críticado jusnaturalismo a partir da defesa da tradição e do direito consuetudinário72.

Assim, a doutrina positivista alcançou com as codificações a hegemonia.Na verdade, substitui o jusnaturalismo e assim o fazendo decretou o declíniodeste. Adotou como método o racionalismo e como fonte exclusiva do Direito alei. Pelo método racional, estabeleceu a visão avalorativa, neutra e a-histórica doDireito; com a onipotência do legislador, concebeu a completude do ordenamen-to jurídico, a imperatividade e o formalismo do Direito, que seria apenas aqueleeditado pelo Estado segunda as regras formais por este estabelecidas.

Toda e qualquer análise jurídica deve nascer exclusivamente das normasestatais. Separa-se com isso completamente o Direito da moral, o Direito daFilosofia (que, como já visto, abarca o material jusnaturalista). O Direito é inter-pretado e operacionalizado de maneira neutra e objetiva (como preconiza Kelsen,ao estabelecer uma teoria pura do direito), sempre tendo em vista a segurança ea ordem (como já dito, fundamento ético do positivismo jurídico). Enfim,

a lei passa a ser vista como expressão superior da razão. A ciência doDireito – ou, também, teoria geral do Direito, dogmática jurídica – é o domí-nio asséptico da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder edo Direito. O sistema jurídico é completo e auto-suficiente: lacunas eventu-ais são resolvidas internamente, pelo costume, pela analogia, pelos princípi-

69) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 56.70) Ressalte-se que a sistematização também era uma idéia da escola histórica e constantemente defendida porSavigny. A diferença está que para os membros da escola histórica a sistematização é dos usos e costumes, doespírito do povo (volksgeist), do material histórico, e para os filósofos partidários de Thibaut a sistematizaçãoseria consolidada em uma legislação unitária e em torno dela se deduziria a interpretação sistemática do Direitocomo um todo (a escola histórica defende a constante sistematização a partir da realidade viva da sociedade eassim contrapõe-se a sistematização artificial promovida por uma codificação). Nesses termos, Savigny, emborapartidário da escola histórica e crítico da idéia da codificação, pode também ser considerado como influenciadorda jurisprudência dos conceitos ou pandectística (sobre a vertente sistemática do historicismo, a jurisprudênciados conceitos e os teóricos que a influenciaram, HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 185 e seguintes).71) Conforme já visto, a escola histórica é antilegalista: “A lei – e, ainda mais, o código sistemático – são encaradoscomo factores, não de construção do direito, mas da sua destruição. Em primeiro lugar, porque introduzem emelemento conjuctural e decisionista (a decisão legislativa tomada, conjucturalmente, por um governo ou umaassembléia) num mundo de normas orgânicas, indisponíveis e duráveis (o direito como emanação do espírito dopovo). Em segundo lugar, porque congelam a evolução natural do direito que, como toda a tradição, é uma realidadeviva, em permanente transformação espontânea. Esta animosidade em relação à codificação ficou bem traduzidanuma famosa polêmica entre Savigny e Thibaut, este último favorável a uma codificação geral do direito alemão,que o primeiro considerava artificial e <<inorgânica>>.”. (HESPANHA, António Manuel. Idem, p. 183).72) BOBBIO, Norberto. O positivismo..., p. 53; “(...) a escola histórica do direito (e o historicismo em geral)podem ser considerados precursores do positivismo jurídico somente no sentido de que representam uma críticaradical do direito natural, conforme o concebia o iluminismo, isto é, como um direito universal e imutáveldeduzido pela razão. Ao direito natural a escola histórica contrapõe o direito consuetudinário, considerado comoa forma genuína do direito, enquanto expressão imediata da realidade histórico-social e do Volksgeist.”

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os gerais. Separado da filosofia do direito por incisão profunda, a dogmáticajurídica volta seu conhecimento apenas para a lei e o ordenamento positivo,sem qualquer reflexão sobre seu próprio saber e seus fundamentos de le-gitimidade. Na aplicação desse direito puro e idealizado, pontifica o Estadocomo árbitro imparcial. A interpretação jurídica é um processo silogístico desubsunção dos fatos à norma. O juiz – la bouche qui prononce les parole dela loi – é um revelador de verdades abrigadas no comando geral e abstratoda lei. Refém da separação de Poderes, não lhe cabe qualquer papel cria-tivo. Em síntese simplificadora, estas algumas das principais característicasdo Direito na perspectiva clássica: a) caráter científico; b) emprego da lógicaformal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidadeda lei e neutralidade do intérprete. Tudo regido por um ritual solene, queabandonou a peruca, mas conservou a tradição e o formalismo. Têmis, ven-dada, balança na mão, é o símbolo maior, musa de muitas gerações: oDireito produz ordem e justiça, com equilíbrio e igualdade.73

6 DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE: A CRISE DO POSITIVISMOE O SURGIMENTO DE UMPENSAMENTO PÓS-POSITIVISTA

A doutrina positivista, promovendo a onipotência da lei, distancia o Direitoda realidade social. Pessoas, relações afetivas, mazelas sociais não interessavamao Direito, reduzido à axiomas lógicos e, assim sendo, fechado em si mesmodentro se um horizonte abstrato e muita vezes estéril74.

A lei, que à época das revoluções liberais representava a salvaguarda con-tra os abusos e ingerências do Estado (visão decorrente do trauma do Estadoabsolutista), passou a ser não somente insuficiente para atender a demanda so-cial, como também tornou-se um óbice na realização do Direito, como enfatizaAntônio Junqueira de AZEVEDO:

Após a Primeira Guerra, a generosidade de alguns espíritos, preocupadoscom uma justiça mais efetiva, e também a ambição política de outros,menos altruístas, desejosos de ver o Estado sem peias, levaram à visão deque a lei – rígida, inflexível, alheia à diversidade da vida -, antes que útilinstrumento da justiça, era um obstáculo a ultrapassar. O paradigma ter-mina, pois, por mudar; os juristas deixaram de examinar as questões peloângulo da lei e passaram a tomar, nos seus modelos de solução, comocentro, a figura do juiz (encarado como um representante do Estado). In-troduziram-se, assim, nos textos normativos, os conceitos jurídicos inde-terminados, a serem concretizados pelo julgador no caso a decidir, e ascláusulas gerais, ou seja, fuga da lei para o juiz).75

73) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 13-14.74) FACHIN, Luiz Edson. Ob. cit., p. 32-33: “Apesar de os sistemas de Direito se proporem como intrínsecosà realidade, e sobre esta terem a pretensão de dar luminosidade a alguns fatos e atos de relevância jurídica, acabampor não se debruçar sobre os demais atos e fatos sociais, e, quando o fazem, procuram enquadrar esta situaçãojuridicamente não definida nos modelos estáticos de definição preexistentes. O Direito, nesse sentido, opera umcorte epistemológico, ou seja, coopta os fatos da realidade que lhe interessam; situação esta que acaba por excluirdiversas outras nuanças das relações, pois não as reconhece no seu corpo normativo e, quando o faz, força adefinição das mesmas, enquadrando-as de acordo com os conceitos presentes no sistema normativo vigente”.75) AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. In: Revista de direito do consu-midor, n° 33. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar. 2000, p. 125-126.

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A lei, como instrumento racional puro e pré-determinado, não tem condiçõesde sozinha, abarcar toda a realidade jurídica. Como explica Fernando NORONHA,

o erro do positivismo jurídico (que dominou a ciência jurídica novecentista eque ainda colhia a maioria dos sufrágios durante a primeira metade do nossoséculo XX, tendo, aliás, ainda hoje, muitos e ilustres defensores) foi tentarisolar no tempo e no espaço cada sistema jurídico, para analisá-lo indepen-dentemente de suas relações com o meio social, das lutas de interesses, doscompromissos, das metas e dos valores da sociedade. Todas as escolas po-sitivistas, desde a da exegese francesa e a pandectística alemã, ambas doséculo XIX, até ao kelsenismo e ao neopositivismo deste século XX, enclausu-ravam o jurista numa torre de marfim, condenando-o, nas palavras de Betti, afazer ‘arida analisi formale, astrattamente concettualistica’.76

A crise do positivismo agrava-se em um cenário cada vez mais complexo efragmentado. A razão, venerada como grande instrumento humano para compre-ensão do mundo, já não se sustenta de forma absoluta, coexistindo com outrosfatores77. Da mesma forma a multiplicidade de grupos sociais e interatividadedestes implicam em um nova realidade, bem diversa da presente quando do augedo positivismo jurídico (que vem se denominado de pós-moderna), levando àteoria jurídica novas características (o Direito passa a ser plural – diversas fonteslegislativas a regular o mesmo fato, comunicativo - valoriza o tempo e apresentaa função de informação, protegendo os sujeitos débeis, narrativo, priorizandonormas principiológicas, que estabelecem objetivos e finalidades a serem perse-guidas, além de promover um retorno aos sentimentos ou seja, a busca de ele-mentos éticos, sociais e ideológicos fora do sistema)78.

A conseqüência é o surgimento de várias teorias críticas que têm em co-mum a tese de que o Direito não está reduzido à lei. Começa-se, então, a sevivenciar novos ares, pós-positivistas, marcados pela superação da legalidadeestrita79. Tal superação não implica em um resgate do Direito natural (não, pelo

76) NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: (autonomia privada, boa-fé,justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994, p. 28.77) Como salienta Luís Roberto BARROSO, a crença na razão sofreu pelo menos dois grandes abalos: o primeiroprovocado por Marx, em que a razão seria prisioneira da ideologia e o segundo por Freud, responsável pela tesede que a razão é condicionada pelo inconsciente. (BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 8-9).78) Crise da razão, realidade complexa (diversos subgrupos sociais) e interatividade entre eles constituem, paraAntônio Junqueira de AZEVEDO, as características da pós-modernidade: “A pós-modernidade, debaixo dessas trêscaracterísticas – crise da razão, hiper-complexidade, com justaposição das diversidades, e inter-ação -, perceptíveistambém na arquitetura, na literatura, na filosofia, na economia, nas comunicações e até mesmo nas ciências exatas,atingiu em cheio o direito.” (AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Ob. cit., p. 124-125). Já o pluralismo, a comuni-cação, a narração e o retorno aos sentimentos constituem os elementos da cultura pós-moderna no direito paraErik Jayme, como explica Cláudia Lima MARQUES (Contratos no código de defesado consumidor: o novoregime das relações contratuais. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2002, p. 162): “Segundo Erik Jayme, as características,os elementos da cultura pós-moderna no direito, seria: o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jaymedenomina de ‘le retour de sentiments’, sendo a Leitmotive da pós-modernidade, a valorização dos direitos humanos.Para Jayme o direito, como parte da cultura dos povos, muda com a crise da pós-modernidade”. Ressalte-se, porfim, que o objetivo deste estudo não é a pós-modernidade. Tais argumentos foram aqui trazidos apenas parademonstrar a crise da doutrina positivista, insuficiente para lidar com a nova realidade a sua volta.

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menos, no seu conteúdo racional presente nos séculos XVI, XVII e XVIII80), massim em uma abertura do Direito aos valores presentes na sociedade. O reco-nhecimento da normatividade dos princípios81 (que para o positivismo não eramconsiderados normas), assim como a crescente importância das normas des-critivas de valores82 (em especial o da dignidade da pessoa humana83) indicam alibertação do Direito do legalismo e do legado positivista que privilegiava aconcepção jurídica a-histórica e neutra84.

Igualmente o Direito passa a dialogar mais com a sociedade e a teoria jurídi-ca adquire um caráter interdisciplinar. Matérias antes consideradas metajurídicas,como a filosofia, a ética, a história e a sociologia, adentram ao acervo epistemoló-gico do jurista85, aproximando institutos técnico-jurídicos (que, para o positivis-mo, caracterizaria exclusivamente o material teórico do jurista) da realidade social.

O pós-positivismo não se apresenta ainda como um movimento acabado(sequer consolidado), pois, como acentua BARROSO, “identifica um conjunto de

79) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 15-16: “Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a admissãode que o Direito possa não estar integralmente contido na lei, tendo condição de existir independentemente dabênção estatal, da positivação, do reconhecimento expresso pela estrutura do poder. O intérprete deve buscar ajustiça, ainda quando não a encontre na lei. A teoria crítica resiste, também, à idéia de completude, de auto-suficiência e de pureza, condenando a cisão do discurso jurídico, que dele afasta os outros conhecimentos teóricos.O estudo do sistema normativo (dogmática jurídica) não pode insular-se da realidade (sociologia do direito) e dasbases da legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica (filosofia do direito). Interdisciplina-riedade, que colhe elementos em outra área do saber – tem uma fecunda colaboração a prestar ao universo jurídico.”.80) Nesta ordem de idéias é fundamental a verdadeira compreensão da aplicação dos princípios constitucionais(tradutores dos valores e vetores principais de dado ordenamento jurídico): “O tom pelo qual tal aplicação se dánão pode reduzir a incidência formal constitucional. Conjugações e corolários de concretização podem, eventu-almente, infirmar o texto positivado. As coordenadas constitucionais só têm limite nos próprios princípios, nãopodendo, assim, a solução concreta da legislação infraconstitucional, especial ou ordinária, contrastar essadiretiva máxima do Estado democrático de Direito. Vê-se, portanto, nessa principiologia axiológica, umaordenação material ou substancial, e a compreensão dos elementos de base que cimentam, a partir da realidadeda vida, o sistema jurídico. Muito longe de um direito natural, que se propôs a vigência eterna e universal, taiscomponentes são produto histórico, modulados para não serem arquétipos, à luz da organização econômica esocial. Concepção de vida e de mundo, captadas da sociologia, emergem da cultura em todos os instantes e emdíspares lugares.” (FACHIN, Luiz Edson. Ob. cit., p. 34).81) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 29: “Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempe-nham papéis variados. O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconheci-mento de sua normatividade.”82) Como assevera Gustavo TEPEDINO, “O legislador atual procura associar a seus enunciados genéricos prescriçõesde conteúdo completamente diverso em relação aos modelos tradicionalmente reservados às normas jurídicas. Cuida-se de normas que não prescrevem uma certa conduta mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuti-cos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e oslimites para a aplicação das demais disposições normativas. Tal é a tendência das leis especiais promulgadas a partir dosanos 90, assim como dos Códigos Civis mais recentes e dos Projetos de codificação supranacional.” (Crise de fontesnormativas e técnica legislativa na parte geral do código civil de 2002. In A parte geral do novo código civil: estudosna perspectiva civil-constitucional. TEPEDINO, Gustavo [Coord.]. Rio de Janeiro: Renovar: 2002, p. XIX).83) FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 191: “Adignidade da pessoa humana é princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama deprincípio estruturante, constitutivo e indicativo das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Talprincípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistemainterno harmônico, e afasta, de pronto, a idéia de predomínio do individualismo atomista do Direito. Aplica-secomo leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstituciona-lidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata.”

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idéias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista,sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo.”86 No entanto,ao pregar a superação da visão do Direito como mera atividade de subsunçãológica fato-norma, proporciona à teoria jurídica novos caminhos (humanos, so-ciais e éticos) que não se reduzem a um “saber virtual’87.

7 CONCLUSÃO: CONSCIÊNCIA METODOLÓGICA DO JURISTAE O ETERNO PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO DO DIREITO

O presente trabalho buscou, em linhas gerais, analisar o extenso percursohistórico do Direito natural, suas transformações e como propiciou o surgimentodo positivismo jurídico. Viu-se que o Direito natural, desde seus primeiros estu-dos na antigüidade, abordou temáticas éticas e filosóficas, deslocadas posteri-ormente (mais precisamente a partir da hegemonia da doutrina positiva) comomatérias meta-jurídicas e pertencentes ao campo da filosofia do Direito.

Pretendeu-se, assim, possibilitar a compreensão do Direito natural, vez que,como já dito, toda uma geração foi educada no positivismo jurídico e a visão ge-ralmente atribuída ao Direito natural é aquela dada pelos positivistas, extrema-mente reduzida, em que se despreza todo o seu conteúdo histórico e enfatiza-se

84) BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 281: “Aidéia de neutralidade do estado, das leis e de seus intérpretes, divulgada pela doutrina liberal-normativista, tomo porbase o status quo. Neutra é a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as distribuições de poder e riquezaexistentes na sociedade, relativamente à propriedade, renda, acesso às informações, à educação, às oportunidades,etc.. Ora bem: tais distribuições – isto é, o status quo – não são fruto do acaso ou de uma ordem natural. Elas sãoproduto do direito posto. E, freqüentemente, nada têm de justas. A ordem social vigente é fruto de fatalidades,disfunções e mesmo perversidades históricas. Usá-la como referência do que seja neutro é evidentemente indesejá-vel, porque instrumento de perenização da injustiça.” A própria noção de “neutralidade” traduz verdadeiroparadoxo, já que é clara manifestação de preceito ideológico: “Considerar a economia como apolítica – é ainda Irtiquem o diz – nada mais é do que ‘contrapor uma política a outra política”. Em outras palavras, considerar aeconomia como apolítica nada mais exprime do que uma firme e bem determinada orientação política. Tal qual aeconomia, também o Direito não é neutro. Consiste na ruptura da neutralidade, é tecido por humana escolha, éprodução de normas e tomada de decisões.” (MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre‘cosmos’ e ‘taxis’: a boa-fé nas relações de consumo. In: A reconstrução do direito privado. São Paulo, Revista dosTribunais. 2002. MARTINS-COSTA, Judith (org.), p. 614-615). Ademais, a dogmática jurídica tem uma missãoideológica, como explica Paulo Luiz Netto LÔBO: “Pode-se ainda salientar que a dogmática jurídica exerce, elaprópria, uma função ideológica, já que cumpre importantes tarefas de socialização (homogeniza valores sociais ejurídicos), de silenciamento do papel social e histórico do direito, de projeção (cria uma cosmovisão do mundosocial e do direito) e de legitimação axiológica, ao apresentar, como ética e socialmente necessários, os deveresjurídicos.” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. O contrato: exigências e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 8).85) A interdisciplinariedade é uma necessidade atual, já assentada no Direito Civil: “Afirmar que há equacionamentoe solução para temas polêmicos de base parece, à primeira vista, prenunciar as possibilidades de uma factível (ainda quelimitada) interdisciplinariedade, dentro do próprio Direito Civil (no exame conjunto do contrato, da família e dopatrimônio), para além do âmbito juscivilístico (apanhando o Direito Constitucional, por exemplo), e, ainda, doDireito para com a História, a Sociologia, a Antropologia, e assim por diante”. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria..., p. 24)86) BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 45.87) FACHIN, Luiz Edson. Teoria..., p. 15-16: “Numa expressão, o Direito Civil deve, com efeito, ser concebido como‘serviço da vida’ a partir de sua raiz antropocêntrica, não para repor em cena individualismo do século XVIII, nempara retomar a biografia do sujeito jurídico, mas sim para se afastar do tecnicismo e do neutralismo. Não sucumbir,enfim, ao saber virtual”. A afirmação aplica-se a toda teoria geral do Direito, e não apenas ao Direito Civil.

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unicamente sua pretensão de universalidade e, principalmente, de imutabilidade.Apresentada essa noção geral e histórica, analisou-se os caminhos que o

Direito natural tomou, especialmente a sua construção racional que desemboca-ria no desenvolvimento e na consolidação hegemônica do positivismo jurídico.Pode-se, então, perceber que gradativamente o projeto da modernidade estavase construindo a partir das concepções jusracionalistas: a razão totalizante, osurgimento do sujeito que a tudo apreende e transforma, o domínio da natureza.Tais idéias concretizam uma teoria jurídica centrada na certeza e na ordem, ba-seada em uma metodologia rígida e precisa.

O Direito, então, é visto de maneira puramente objetiva e neutra, premissasque levariam a uma abordagem ausente de qualquer sentimentalismo e, por con-seqüência, certa quanto ao resultado. A hermenêutica reduz-se a uma atividade desubsunção quase mecânica, traduzida em verdadeira operação lógica (ocorrido ofato A, tem-se a resposta jurídica B - dada pelo ordenamento -, ou, em termosmais simples, se ocorrido A deve-se ter B). A precisão da conseqüência jurídica dofato e a objetividade no trato jurídico atendiam não somente a um interesse meto-dológico (dar um conteúdo científico ao Direito, nos moldes das demais ciências –especialmente a física e a matemática), mas principalmente às aspirações econô-mico-políticas da época: a burguesia em ascensão e o capitalismo emergente.

Como é ressabido, mercado é previsibilidade (previsão de ganhos e per-das), somente alcançada com segurança e ordem (justamente os postulados ide-ológicos da doutrina positivista). Assim, a pluralidade jurídica predominante nomedievo e ainda presente na pré-modernidade deveria ser encerrada. As grandescodificações se encarregaram de por fim a essa incerteza jurídica. O Direito, as-sim, passava a ser certo, seguro, científico, posto que reduzido à lei, ou maisprecisamente, ao Código.

O final do século XIX e, principalmente, o século XX, demonstraram o quãoperigoso é a redução do Direito à lei. Enquanto a diversidade da vida seguia, comsuas riquezas e mazelas, o Direito permanecia. Duas grandes guerras se passa-ram, genocídios ocorreram, revoluções e significativos movimentos sociais efe-tivaram-se, e boa parte da teoria jurídica mantinha-se incólume, presa a seulegado cientificista do início da era moderna. A lei, que antes libertara o Homemdos abusos do Estado absolutista e da desigualdade feudal, passara a entrave darealização da justiça.

A teoria jurídica, então, gradativamente começou a revisar seus postuladosbásicos. A absoluta certeza e a precisão conceitual cedem espaço à aceitação dosvalores presentes na sociedade. O ordenamento jurídico, outrora revestido decompletude e auto-suficiência, passa a ser aberto e permanentemente depen-dente da interação com a sociedade (os conceitos não são mais construídos “apriori” e sim “a posteriori”, de acordo com a situação concreta). A neutralidade ea objetividade são deixadas de lado e a participação e a responsabilidade dointérprete (assim como do aplicador do Direito) é cada vez maior. Não há maisuma resposta pronta e prévia aos problemas jurídicos; ultrapassa-se o discursocientífico abstrato, a metodologia jurídica exata, e enfrentam-se topicamente os

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casos concretos, construindo-se a solução jurídica a partir da realidade empíri-ca. Enfim, trata-se de buscar mais a justiça e menos a lei.

Esse processo de revisão dos fundamentos jurídicos de base, ainda muitodisperso em meio a diversas problematizações e teorias, talvez não tenha porobjetivo uma conclusão final e taxativa sobre o que seria o novo Direito, o Direitodo terceiro milênio, a não ser uma: a de que não há uma conclusão final sobre oque seria o Direito, mas sim um reconhecimento (ou descobrimento) do Direitorevitalizado diuturnamente em um eterno processo de reconstrução, efetuadopor intermédio de um perene diálogo com a sociedade.

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