Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito - José Pedro Galvão de Sousa

155
JOSÉ PEDRO GALYÃO DE SOUSA DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO E ESTADO BI MREITO EDITORA r s? REVISTA DOS TRIBUNAIS SÃO FAULO — 1977

Transcript of Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito - José Pedro Galvão de Sousa

  • JOS PEDRO GALYO DE SOUSA

    DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    E ESTADO BI MREITO

    EDITORA r s ?REVISTA DOS TRIBUNAIS

    S O F A U L O 1977

  • CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte Cmara Brasileira do Livro, SP

    Sousa, Jos Pedro Galvo de, 1912-S697d Direito natural, direito positivo e estado

    de direito [por] J. P. Galvo de Sousa, SoPaulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1977.

    Bibliografia.

    1. Direito 2. Direito natural 3. Direitoscivis 4. O Estado I . Ttulo.

    CDU-340.12-340.13

    CDD-320.10177-1053 -323.4

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Direito : Filosofia 340.12 (CDU)2. Direito natural 340.12 (CDU)3. Direito positivo 340.13 (CDU)4. Direitos civis : Cincia poltica 323.4 (CDD)5. Estado : Teoria : Cincia poltica 320.101 (CDD)6. Teoria do Estado : Cincia poltica 320.101 (CDD)

    Exemplar 2 2 7 8

    desta edio da EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

    Rua Conde do Pinhal, 78 01501 So Paulo, SP

    Setembro de 1977

    " 7

  • SUMRIO

    Prefcio ...................... ............................................................................ VII

    PRIMEIRA PARTE

    O POSITIVISMO JURDICO E O DIREITO NATURAL

    Capitulo I Do direito natural clssico ao positivismojurdico .......................................................................................... 3

    1 Concepo clssica de direito natural .................. 52 Doutrinas modernas de direito natural .................. 113 A negao do direito natural ..................................... 13

    Captulo II O positivismo jurdico e o Fundamento doDireito .......................................................................................... ........ 191 Spencer e Pedro Lessa .................................................. ........ 232 Icilio Vanni e Micelli ............................................................. 293 Len Duguit ...................................................................... ........ 34

    Capitulo III A necessidade do direito n atu ral.................... 48

    SEGUNDA PARTE

    O DIREITO NATURAL EM SUA FUNDAMENTAO TRANSCENDENTE E

    10 M SUA REALIZAO HISTRICA ATRAVS DO DIREITO POSITIVO

  • VI DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    4 A exemplaridade do direito natural ........................ 785 As variaes da lei natural .......................................... 806 Nas perspectivas do pensamento de Giambattista

    Vico ........................................................................................ 81

    Captulo VI O direito natural e as fontes do direito 841 Direito, sociedade e Estado .......................................... 842 As fontes do direito ......................................................... 913 Do direito positivo ao direito natural .................... 96

    Captulo VII O direito civil, entre o ius naturale e atecnocracia ...................................................................................... 1021 O direito da sociedade e o direito do Estado . . . . 1032 Direito natural e direito histrico nas transfor

    maes do direito civil ................................................... 1123 Do realismo ao voluntarismo jurdico e tecno

    cracia ................................................................................... 116

    Captulo VIII O Estado de direito e o direito natural 1251 Sem o direito natural no h verdadeiro Estado

    de direito ............................................................................. 1252 Direito natural e positivismo jurdico no constitu

    cionalismo anglo-saxnio: a) Inglaterra ................ 1293 Direito natural e positivismo jurdico no consti

    tucionalismo anglo-saxnio: b) EUA ...................... 1374 Do Estado de direito kantiano democracia de

    Weimar e ao totalitarismo ............................................ 1435 Estado de legalidade ou Estado de justia? ......... 146

  • PREFCIO

    Os estudos aqui reunidos foram escritos em diferentes pocas, mas h entre eles uma conexo que d unidade ao presente volume.

    A primeira parte, relativa ao positivismo jurdico em face do direito natural, data de trs dcadas, conservando, porm, a mesma atualidade do tempo em que foi pela primeira vez publicado.

    Na segunda parte, h um captulo sobre o fundamento objetivo da ordem jurdica, j dado ao prelo em 1952, agora revisto e acrescido de notas. A se considera o direito natural na sua transcendncia. Os quatro ltimos captulos, de elaborao mais recente (1975 e 1977), tm em vista o direito natural enquanto imanente na vivncia do direito histrico e na vigncia do direito positivo (com relao s fontes do direito, ao direito civil e ao Estado de direito).

  • P r im e ir a P a r t e

    0 POSITIVISMO JURDICO

    E 0 DIREITO NATURAL

    Positivismo jurdico, em sentido bvio, a negao do direito natural, e a afirmao de que o nico direito que realmente existe o direito positivo.

    Entretanto, alguns autores positivistas confessam admitir o direito natural; outros, se bem que explicitamente o rejeitem, admitem-no implicitamente. E um positivismo jurdico absoluto, que negue por completo o direito natural, s defensvel, sem ilo- gismo, pelos que reduzem o direito s determinaes arbitrrias da fora socialmente preponderante.

    Para melhor chegar a esta concluso, mostrar-se- que:

    1 h, na origem do positivismo jurdico moderno, uma incompreenso do verdadeiro sentido do direito natural (cap. I ) ;

    2 h, em filosofia do direito, doutrinas positivistas, que, pelos seus prprios princpios, permitem chegar ao direito natural (caps. II e III).

  • C a p t u l o I

    DO DIREITO NATURAL CLSSICO AO POSITIVISMO JURDICO

    Para bem compreender o positivismo jurdico, importa lembrar a evoluo ideolgica do direito natural.

    Antes do positivismo, passara o conceito clssico de direito natural por deturpaes que muito o desprestigiaram, favorecendo o sucesso dos sistemas que procuravam desterr-lo para o mundo das quimeras.

    H certas doutrinas de direito natural excessivamente abstratas e constitudas pelo abuso do mtodo dedutivo: as que se formaram depois de Grcio, Puffendorf, Rousseau e Kant. Mas h tambm um sistema de direito natural baseado na evidncia dos primeiros princpios do conhecimento e resultante de uma anlise objetiva da natureza racional do homem. Esse sistema encontra-se naquela concepo que, proveniente dos filsofos gregos e dos jurisconsultos romanos, se incorporou ao patrimnio doutrinrio da filosofia chamada por Bergson a metafsica natural da inteligncia humana.

    Geralmente, as crticas feitas ao direito natural atingem apenas o jusnaturalismo abstrato e dedutivo. Entretanto, abroquelando-se nos argumentos utilizados por tais crticas, precipitam-se muitos a uma negao sumria de todo direito natural.

    No pretendemos dizer que o positivismo jurdico se explica simplesmente como reao contra as doutrinas modernas de direito natural. Seria desconhecer-lhe as causas mais profundas. Seria omitir a

  • 4 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    filiao da lendncia positivista, no direito, mesma tendncia anteriormente manifestada na filosofia.

    0 sculo XIX foi o sculo positivista por excelncia. Ofuscados certos espritos pelo surto admirvel das cincias experimentais, pareceu-lhes ter sido chegado o tempo de uma completa reviso* dos velhos princpios admitidos pela maioria das escolas filosficas. Era preciso rejeitar todo o apriorismo da escolstica e de alguns filsofos modernos, como Leibniz ou Kant. S ao mtodo positivo, isto , construdo sobre o alicerce inconcusso das realidades empricas, seriam conferidos, da por diante, foros de cidadania cientfica. 0 processo indutivo, que to bons resultados trouxera nas cincias fsicas e naturais, devia ser o nico a conduzir tambm as pesquisas sobre o homem e a sociedade.

    Nada disso podemos esquecer na gnese do positivismo filosfico e do positivismo jurdico.

    Mas fora de dvida, que aquele equvoco a propsito do direito natural, sobre ter contribudo poderosamente para a formao do positivismo jurdico, teve ainda por efeito propiciar-lhe uma grande aceitao. 1

    A uma poca dominada pelo progresso da tcnica e pela fascinao das cincias experimentais, no podiam satisfazer as abstraes dos Tratados que apareciam como uma herana da escola do direito da natureza e das gentes e que faziam esquecer o conceito objetivo do direito natural.

    interessante todavia verificar que, malgrado as inmeras crticas provocadas pelo direito natural moderno, os positivistas muitas vezes se aproximam,

    1. Embora se ache em franco declnio, nos domnios da filosofia do direito, ficou o positivismo jurdico por demais generalizado entre os juristas de profisso. Em certos meios, dele ainda podemos dizer, com Franois Gny que a atitude habitual e corrente dos intrpretes do direito na hora atual, a posio mais geralmente adotada pelos jurisconsultos (Franois Gny, Science et tchnique en droit priv positif, II, Recueil Sirey, Paris, 1927, pg. 31 e Mthode dinterprtation et sources en droit priv positif, 2. ed., II, Librairie Gnrale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1932, pg. 334).

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 5

    sem o perceber, dos princpios fundamentais do direito natural clssico, nem sempre conhecido suficientemente pelos seus adversrios.

    1 Concepo clssica de direito natural

    A expresso direito, correspondente ao latim ius, usada hoje para designar o que os antigos chamavam de iustum (o justo objetivo), lex (a norma de direito), licitum e potestas (direito subjetivo) e iuris- prudentia (cincia do direito). Trata-se de um termo anlogo, isto , que tem sentidos diversos mas relacionados entre si.

    a lei que estabelece o que justo e determina os direitos subjetivos. Mas as leis no podem ser elaborados arbitrariamente pelo legislador. Ii uma justia anterior e superior lei escrita, h direitos que precedem a feitura das normas estatudas pelo poder social competente. Esta justia e estes direitos, que no dependem das prescries da ordem jurdica positiva, fundamentam-se na lei natural.

    Distinguia Aristteles o justo por natureza, da justo por lei. E os mestres da jurisprudncia em Roma afirmavam que, alm do direito prprio de cada Estado, existe um direito decorrente da natureza humana e, portanto, universal.

    No sculo VII, Santo Isidoro de Sevilha entendia por direito natural as leis de procriao e conservao da espcie, comuns ao homem e aos animais, e as noes primeiras que so prprias dos seres racionais, neles produzindo efeitos conformes ao aequum et bonum. Mais tarde, o Decretum de Graciano inspi- rava-se nas lies de Santo Isidoro, e os escolsticos

    2. Aristteles, Ethica Nicom., V. 7 (10). Ulpiano: D.1 .1 .1 ,3 e 4. Gaio: D .1 .1 .9 . Paulo: D .1.1.11. Institut. (Justin.),1 .2 .1 e 11.

  • 6 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    ensinavam ser a lei natural a participao da lei eterna no homem.3

    Enfim, das fontes greco-romanas, aproveitadas na Idade Mdia, pelos canonistas e telogos, resultou toda uma tradio doutrinria sobre a lei natural. No obstante as multplices variantes dessa tradio, unnime a aceitao de um princpio superior de conduta, regra geral dc toda ao humana, inerente prpria natureza e critrio supremo da justia e da eqidade. Baseado na distino entre o bem e o mal, o justo e o injusto, esse princpio universalmente admitido, porque evidente, e assim pode formular-se: devemos praticar o bem e evitar o mal. o direito natural, de que dizia Paulo: quod semper aequum ac bonum est, ias dicitur, ut est ins naturale. 4

    Ningum com maior elegncia do que Ccero discorreu sobre a lei fundamental da ordem jurdica, essa vera lex, recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna. 5

    3. S. Isid., lib. V Etymol. e Corpus Iuris Canonici, Decretum Grat., I.a Pars, Dist. I e IV. Santo Toms de Aquino, S. Th., I.a,II.ae, q. 91, art. 2. Confirmando a doutrina das Etymologias, escreve o maior comentador de Aristteles: Est autem considerandum quod iustum naturale est, ad quod hominem natura inclinat. Atten- ditur autem in homine duplex natura. Una quidem, secundum quod est animal, quae sibi et aliis animalibus est communis. Alia autem natura est hominis, prout scilicet secundum rationem discernit turpe et honestum. Iuristae autem illud tantum dicunt ius naturale quod consequitur inclinationem naturae communis homini et allis animalibus, sicut eoniunctio maris et feminae, educatio nato- rum, et alia huiusmodi. Illud autem ius quod consequitur pro- priam inclinationem naturae humanae, scilicet ut homo est rationale animal vocant iuristae ius gentium, quia eo omnes gentes utuntur, sicut quod pacta sunt servanda, et quod legati apud hostes sint tuti, et alia huiusmodi. Utrumque autem horum comprehen- ditur sub iusto naturali, prout hie a Philosopho accipitur {In Ethic., lib. V, lec. 12). Quanto distino entre o ius naturale e o ius gentium, foge ao escopo deste trabalho. Note-se, no trecho citado, o princpio pacta sunt servanda, mais tarde retomado por Grcio.

    4. D . 1 .1 .11.5. este um dos mais belos trechos de Ccero, entre os

    muitos que nos deixou sobre a lei natural: Est quidem vera lex, recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sem-

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 7

    A lei natural conforme natureza, naturae con- gruens. Por isso mesmo, a recta ralio. Pois a natureza humana racional e a lei natural no mais do que a norma que diz: devemos proceder como homens, devemos agir racionalmente.6

    Funda-se, portanto, a lei natural em a natureza racional do homem.

    Temos da natureza humana um conhecimento que nos vem da experincia. Essa natureza especificamente a mesma em todos os homens. Sendo um ser composto de esprito c matria, deve o homem, pelo seu corpo, pagar tributo s leis fsicas, mas, pela razo, domina a natureza e senhor de seus atos. Livro

  • 8 DIREITO NATURAE, DIREITO POSITIVO

    cfico do homem a razo. E por isso h uma lei natural especificamente humana, de essncia racional e, portanto, m oral.7

    Porque a natureza humana universal e permanente, universal e permanente deve ser a sua lei: diffusa in omnes, constans, sem piterna... Mas essa lei imutvel nos d apenas os primeiros princpios da moralidade; nas aplicaes, ter que variar, como varia tambm a natureza humana enquanto se consideram as circunstncias do ambiente, da poca e do prprio indivduo.

    De tudo isto, podemos j concluir que:1 o direito natural um direito essencial

    mente moral;2 o direito natural, no sentido estrito, reduz-se

    aos primeiros princpios da moralidade.Expliquemos melhor essas duas concluses, que

    nos faro compreender o verdadeiro sentido do direito natural na sua concepo tradicional.

    1. 0 direito natural essencialmente moralToda lei se ordena para um bem, em vista de

    cuja consecuo determina o que preciso fazer, o que proibido ou o que simplesmente permitido.

    A lei natural tem em vista o bem humano, ist' , o bem da natureza humana como tal. Trata-se d um conceito que no puramente abstrato, mas que supe um conhecimento experimental da natureza humana, das circunstncias reais em que vive o homem, do que h de permanente e varivel nele.

    Tomamos aqui natureza no sentido de essncia, e preciso distinguir o que natural, neste sentido, do espontneo e do primitivo. Natural o que cor-

    7. Moral vem de mos, moris (costume). A lei moral a regra dos costumes. Os costumes devem ser conformes lei moral, e so viciosos sempre que a transgridem. O costume um hbito, no congnito, mas livremente adquirido, i., adquirido pela repetio de atos livres e, portanto, racionais. A moralidade supe um sujeito racional, livre e responsvel.

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 9

    responde essncia de um ser. Ora, a essncia do homem, ou sua forma especfica, nos dada pela razo. Natural , pois, no homem, o que se conforma reta razo. E no difcil perceber no homem certas inclinaes naturais que se podem discernir dos apetites inferiores quando estes se opem razo. O bem humano o que propriamente corresponde a tais inclinaes. Pela lei natural, todo homem tem, por exemplo, direito vida, direito a constituir famlia, direito ao produto do seu trabalho.

    Entretanto, esses direitos devem ser exercidos na ordem social em que vive o homem e a qual tambm corresponde a uma inclinao de sua natureza. Ora, a sociedade no se pode manter sem que sejam limitadas as atividades dos indivduos e os seus direitos. Donde o direito positivo, que determina concretamen- e os preceitos da lei natural, em vista das exigncias do bem comum. Tem a pessoa humana direitos superiores ordem social. Mas deve o homem, como parte do todo social, subordinar-se coletividade.

    Neste sentido, no se ope ao direito natural clssico a idia do direito positivo como conjunto de condies restritivas da liberdade para tornar possvel a coexistncia humana.

    Dizemos que o direito natural um direito essencialmente moral porque tem por fim o bem do homem enquanto homem. Ao passo que o direito positivo tem por objeto o bem humano social. verdade que o direito natural se aplica ao homem na sociedade e no num hipottico estado de natureza em que cada um vivesse isolado mas ele no um simples corolrio da sociabilidade humana, como o direito positivo. E o direito positivo, embora tambm seja moral, pelo seu fundamento pois se funda na lei natural - caracteriza-se por uma tcnica peculiar adaptada s exigncias do bem comum.

    2. O direito natural redutvel aos primeiros princpios da moralidadeDeve-se fazer o bem e evitar o mal: eis o pri

    meiro princpio da lei da natureza, que contm vir-

    Z - D . N . D ..P . E . D .

  • 1 0 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    tualmente todos os outros. J dissemos que a lei natural ordena os nossos atos para o bem humano e que o bem humano corresponde s inclinaes naturais do homem. Seguindo a ordem dessas inclinaes, -vamos encontrando os diversos preceitos da lei natural, os quais particularizam a idia geral de que o bem humano deve ser feito.

    Desses preceitos podemos tirar concluses ainda mais particulares. Assim, por exemplo, uma das inclinaes naturais do homem para a conservao da prpria vida. Da resulta a propriedade como um direito conforme lei natural, pois a vida humana no se pode manter sem que exera o homem sobre as coisas da natureza, um domnio que lhe permita apropriar-se delas para satisfazer s suas necessidades pessoais.

    Todas estas concluses da lei natural resolvem-se naquele princpio generalssimo - o bem deve ser feito e o mal, evitado

    Esse princpio de uma necessidade universal e de evidncia imediata. Procurar o seu prprio bem quer dizer, para o homem, viver de acordo com a razo, isto , conservar racionalmente a prpria vida, a vida da espcie e a ordem social.

    Ora, essa racionalizao da vida precisamente o objeto da moral. Eis por que os Tratados de Direito Natural, que se filiam tradio cujas idias se procura aqui resumir, cuidam de muitos assuntos de filosofia m oral.8

    O primeiro princpio da lei natural abrange todo o campo da moral, porque regula toda a conduta humana. Sempre deve o homem pautar seus atos pelas regras da reta razo.

    E o objeto do direito natural coincide com o da moral, na parte em que esta trata dos deveres de justia e na moral social.

    As consideraes que os diversos Tratados de Direito Natural fazem sobre a propriedade, o casa-

    8. Cf. Taparelli DAzeglio, Liberatore, V. Cathrein, J. Le- clercq, A. Valensin, Meyer, Cepeda etc.

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 1 1

    mento, os contratos, a vida associativa ou o Estado, formam o direito natural no sentido lato. Mas no seu sentido estrito, consiste o direito natural nos primei-

    [ros princpios de moralidade, concernentes racionalizao da vida, e que se reduzem, por sua vez, ao princpio generalssimo que nos leva a praticar o bem e evitar o mal.

    2 Doutrinas modernas de direito natural

    A tradio formada pelos filsofos gregos, os jurisconsultos romanos, os telogos e canonistas da Idade Mdia, sofreu posteriormente um grande desvio, por influncia do voluntarismo, racionalismo e do individualismo. 0 voluntarismo, ganhando terreno no perodo da decadncia da escolstica, negava a existncia do bem e do mal em si mesmos, atribuindo a lei natural a um decreto arbitrrio de Deus e no mais a razo divina. o precursor remoto do positivismo jurdico moderno. O racionalismo seccionava a lei natural da lei eterna, fazendo-a decorrer simplesmente da natureza humana. O individualismo, enfim, baseava a ordem jurdica, no no fundamento objetivo que a lei natural, mas nos direitos naturais subjetivos.

    A essas novas direes do pensamento se prendem os diversos sistemas de direito natural do sculo XVIII em diante. 9

    Entre tais sistemas h inmeros pontos de contato, mas no possvel reduzi-los a certos princpios comuns, a exemplo do que se pode fazer com o direito natural clssico. A nova filosofia do direito no escapa caracterstica geral do pensamento moderno a falta de continuidade. Grcio, por exemplo, se, pelo abuso das abstraes e do mtodo dedutivo, faz jus ao ttulo de fundador do direito natural

    9. No se trata de direes opostas. Kant e Rousseau, p. ex., so eminentemente racionalistas e individualistas.

  • 12 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    moderno, por outro lado repete ensinamentos tradicionais e, ao contrrio dos individualistas, acentua o carter social do direito.10

    H, porm, em grande nmero dos autores que se filiam escola do direito da natureza e das gentes , ou ao Naturrecht dos alemes, alguns traos que embora no sejam constantes em todos eles, nem permitam chegar a uma sntese completa e harmoniosa, caracterizam de certa maneira os novos sistemas, especialmente em oposio ao direito natural clssico.

    No mais se nota aquela distino que fora feita entre os primeiros princpios da lei natural e os preceitos secundrios deles derivados. Transforma-se o direito natural em um sistema imutvel deduzido more geometrico de um conceito abstrato da natureza humana e vlido para todos os povos e todos os tempos, e que bem merece a famosa crtica de Augusto Comte poltica metafsica , acusada de fazer predominar a imaginao sobre a observao e estabelecer o tipo eterno da mais perfeita ordem social, sem ter em vista nenhum estado determinado de civilizao . 11

    Surge, assim, o direito natural como um conjunto de normas que deve servir de modelo s legislaes positivas. Da a definio de Oudot: o direito natural a coleo das regras que desejvel ver transformada imediatamente em lei positiva . 12 a confuso do direito natural com o direito ideal.

    10. Para um estudo completo dos modernos sistemas de direito natural, seria preciso analisar detidamente a obra de Grcio, Hobbes, Spinoza, Puffendorf, Locke, Leibniz, Thomasius, Wolf, Rousseau e Kant, bem como a de autores de menor projeo. Tal objetivo excede de muito a finalidade da presente dissertao, que no se destina a ser uma histria da filosofia do direito. Trata-se apenas de mostrar, na medida do necessrio para compreender a reao positivista, como os sistemas modernos de direito natural se opem concepo tradicional.

    11. A. Comte, Plan des travaux scientifiques ncessaires, pour rcorganiser la socit, pg. 84, em apndice ao t. IV do Sys- tme de politique positive, Carilian-Goeury et Vor. Dalmont, Paris, 1854.

    12. Oudot, Premiers essais de philosophie du droit, pg. 67, apud Beudant, Le droit individuel et Vtat, A. Rousseau, Paris, 1891, pg. 37.

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 1 3

    Alm disso, como ja foi visto, exageram-se os direitos subjetivos naturais, afirmando-se o princpio da autonomia da vontade, que exerceu influncia preponderante em todo o direito m oderno.13

    Esses caractersticos, que se encontram em muitos autores racionalistas e individualistas, podem ser assim indicados num quadro comparativo em que seacentua a sua oposio ao

    DIREITO

    Conceito clssico:

    1. Primeiros princpios da moralidade, cujas aplicaes supem um conhecimento objetivo e experimental da natureza humana. Carter permanente e varivel do direito natural, conforme se trate dos princpios primeiros ou de suas aplicaes.

    2. Fundamento do direito positivo,

    3. Primado da lei natural, fundamento objetivo do direito.

    direito natural clssico:

    NATURAL

    Sistemas racionalistas e individualistas:

    1. Sistema completo, universalmente vlido e imutvel, deduzido de uma noo abstrata dc natureza humana.

    2. Ideal do direito positivo.

    3. Predomnio dos direitos naturais subjetivos.

    3 A negao do direito natural

    Nas suas crticas do direito natural, os positivistas no tiveram o cuidado de distingir precisamente

    13. A liberdade , para Rousseau e Kant, o direito fundamental, em funo do qual se constitui toda a ordem jurdica. Hobbes e Spinoza, por sua vez, haviam identificado o direito natural com o poder fsico.

  • 14 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    entre as doutrinas modernas e a concepo clssica. o direito ideal e abstrato, isto , a corrupo do autntico direito natural, que constitui dessas criticas o alvo predileto.

    Conhecessem bem os positivistas a concepo tradicional do fundamento da ordem jurdica e no lhes aconteceria negar com palavras uma idia que se encontra, por vezes, implcita no seu pensamento. Contradizem-se a si mesmos os adversrios do direito natural, pois apresentam conceitos equivalentes ao objeto de suas negaes, como se ver no captulo seguinte.

    Uma das questes freqentemente suscitadas pelos positivistas a que diz respeito universalidade e imutabilidade da lei da natureza.

    Diante das variaes da moral e do direito, no espao e no tempo, apregoam os positivistas o mais completo relativismo, dando o valor de uma crtica decisiva boutade de Pascal: Plaisante justice quune rivire borne! Vrit au de des Pyrnes, erreur au del. . .

    Ou h um direito invarivel, ou no h direito natural. Assim raciocinam os positivistas. E da inegvel diversidade dos sistemas jurdicos, atestada por uma srie imensa de fatos colhidos nas pginas da histria e nas informaes da etnologia, concluem triunfantes que a velha idia do direito natural no resiste a uma severa crtica cientfica.

    Mas a argumentao falha. No basta confrontar com as observaes dos fatos sociais somente os sistemas de direito natural que tm a pretenso de estabelecer um tipo perfeito e imutvel de toda a ordem jurdica positiva. Segundo a genuna concepo de direito natural, os predicados de universalidade e imutabilidade valem para os primeiros princpios, mas medida que se vai descendo ao particular e contingente, nas aplicaes da lei da natureza, mais varivel e relativa se torna esta.

    A proposio disjuntiva ou h um direito invarivel, ou no h direito natural , pois, incom-

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 1 5

    pleta se se trata de todos os preceitos da lei natural; s legtima com relao aos primeiros princpios.

    Sobre este assunto, cumpre ainda distinguir a lei natural em si mesma e no conhecimento que dela temos.

    Quanto aos primeiros princpios, a lei natural universal e permanente em si mesma, e de todos igualmente conhecida sem possibilidade de erro. Tais princpios so conaturais razo humana. Impem-se pela prpria evidncia. A ningum preciso, nem seria possvel, demonstrar que deve fazer o bem e evitar o mal. E a est uma verdade mais certa que qualquer outra verdade de ordem prtica, pressuposto necessrio de toda e qualquer ao. assim tambm que lodo homem sabe que deve respeitar os direitos alheios e dar a cada um o que seu.

    Quanto aos preceitos secundrios, a lei natural nem sempre invarivel, mas s na maioria dos casos, e ainda quando o , pode no ser igualmente conhecida.

    Compreende-se que a lei natural varie nas suas aplicaes, dada a extrema contingncia de sua matria. Nisso est uma diferena de capital importncia entre a lei moral e a lei fsica, as cincias prticas e as cincias puramente especulativas. Se nestas ltimas, tanto os primeiros princpios como as concluses so invariveis, o mesmo, no se d nas cincias que tm por objeto a ordenao do agir humano. sempre verdade que a soma dos ngulos de um tringulo igual a dois ngulos retos, e que os corpos se atraem na razo direta das massas e na razo inversa do quadrado das distncias. Mas nem sempre se deve pr em prtica num preceito particular da lei natural, pois h circunstncias que o alteram ou tornam dispensvel. Seja o conhecido exemplo da obrigao de restituir uma coisa dada em depsito. Trata-se de um preceito secundrio da lei natural, aplicao do princpio geral de justia dar a cada um o que lhe pertence. Suponhamos que eu tenha recebido uma arma em depsito. Se o depositante ou proprie-

  • 1 6 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    trio pedir a devoluo dessa arma para cometer um crime, claro que eu no devo entreg-la.

    Finalmente, o conhecimento dessas aplicaes da lei natural no o mesmo em todos os homens e pode ser prejudicado por causas acidentais, como a fora das paixes, os maus costumes ou o diverso desenvolvimento da razo e da civilizao. o que explica o fato de alguns povos terem chegado a considerar lcitos o furto ou a antropofagia.

    Alis, os recentes dados de uma etnologia rigorosamente objetiva revelam, nos povos primitivos, um conhecimento da lei natural mais perfeito do que neles supunham os evolucionistas do sculo passado.

    Na verdade, so os povos degradados pelos maus hbitos e as paixes, os que corrompem o direito natural, sem perderem, contudo, as noes mais elementares dessa lei que para todas as naes e em qualquer poca, una, eterna, imutvel .

    Esses desvios do direito natural, em suas aplicaes pelo direito positivo, mostram que h leis justas e injustas, mas no provam que no li direito natural.

    Que uma lei injusta? uma lei contrria razo e que, por isso mesmo, no verdadeira lei. D-se, algumas vezes, a forma extrnseca do direito positivo ao que, por no ser justo, no um direito. Eis por que Yico apodava as leis injustas de monstra legujn. E Olgiati pondera que, no obstante falar em direito seja o mesmo que falar em justia, li um direito positivo justo e um injusto, assim como o conceito de arte se reduz ao belo mas, empiricamente, li obras de arte bonitas e feias.14

    14. F. Olgiati, La riduzione dei concetto filosofico di diritto al concetto di giustizia, Giuffr, Milo, pg. 119. pg. 105 do mesmo ensaio, escreve o autor: No direito natural, o que justo resulta da natureza da realidade; e nisso no entra a vontade humana. Cabe-nos apenas reconhecer, com a inteligncia, a existncia duma relao de justia, e respeit-la praticamente com a vontade; mas a voluntas nada tem que fazer com a natura rei, quando esta existe. verdade que a voluntas freqentemente geradora dessa relao; mas uma vez posta tal relao, a natura

  • DO DIREITO NATURAL AO POSITIVISMO JURDICO 1 7

    Por outras palavras, o direito natural a expresso mesma da justia, ao passo que o direito positivo pode, de fato, ser injusto, por violar o direito natural.

    Ao direito positivo injusto e s leis injustas, damos o nome de direito e de lei por analogia. Carecem do senso da analogia todos aqueles que, privados da plasticidade de esprito necessria para bem distinguir as coisas, querem encontrar no direito natural elementos caractersticos do direito positivo.

    o caso dos que negam o direito natural porque no h direito sein coao.

    Qual o seu raciocnio? Consideram eles que a coao elemento essencial do direito positivo, e como o direito natural seja desprovido de coao, negam o direito natural. Ora, isto equivale a dizer que o direito natural no existe. . . porque no um direito positivo!

    Mesmo que se admita o que bastante discutvel - ser a coao imprescindvel ao direito positivo, da no se pode inferir a negao do direito natural. Resta saber ainda se ao legislador positivo- lcito sancionar quaisquer preceitos, ou se ele precisa conformar-se s exigncias da justia expressa pelo direito natural. Resta saber se, alm do direito coativo, existe ou no outro direito.

    A existncia de elementos prprios do direito- positivo no impede que se reconhea o direito natural. Nem se deve evidentemente procurar no direito natural o que peculiar ordem jurdica positiva.

    rei, e no a voluntas, que a faz ser o que ela . Ao contrrio, no direito positivo, o que justo determinado tambm e algumas vezes somente pela vontade. . . . Por tal motivo, no direito natural o que coincide com o que deve ser e no h possibilidade de uma oposio entre a ordem ontolgica e a ordem deontolgica; no direito positivo pela interveno sempre necessria da voluntas podemos ter o que bem diverso do que deve ser, isto , podemos ter um direito positivo oposto justia. Quanto citada expresso de Vico, cf. De uno universi iuris principio et fine uno, c. LX XXIII.

  • 1 8 DIREITO NATURAE, DIREITO POSITIVO

    No no mesmo sentido que se diz direito do direito natural e do direito positivo. Ius pluribus modis dicitur, j ensinava o bom senso dos romanos.15 O direito no um termo unvoco como querem os positivistas nem equvoco, mas anlogo. O direito natural justo em si mesmo. 0 direito positivo justo enquanto o corrobora ou pelas legtimas determinaes do poder social competente. Na medida em que se afasta do direito natural, torna-se o direito positivo um direito injusto.

    Postos estes esclarecimentos, indispensveis para julgar o positivismo jurdico, entremos no exame de algumas doutrinas positivistas com relao ao fundamento do direito.

    15. D. 1 .1 .1 1 . Segue-se, no mesmo trecho do Digesto, a distino feita por Paulo entre ius naturale e ius civile, isto , direito natural e direito positivo. J vimos que a palavra direito tem vrias significaes. A maioria dos autores hodiernos limita-se a assinalar estas duas: direito objetivo (lei) e direito subjetivo (poder moral de agir conforme a lei, exigindo o que nos estritamente devido). Quando se fala em direito natural e positivo, preciso atender ao sentido que se tem em vista. Assim como h uma lei natural e uma lei positiva, h tambm direitos subjetivos naturais e direitos subjetivos positivos.

  • C a p t u l o II

    0 POSITIVISMO JURDICO E O FUNDAMENTO DO DIREITO

    No to simples quanto pode parecer primeira vista conceituar o positivismo jurdico.

    Desde Arquelau e Aristipo, na antigidade, at Gurvitch e Alexeiev, em nossos dias, tem ele revestido as mais diversas formas.

    Encontramo-lo no utilitarismo ingls, no sistema filosfico de A. Comte, na escola penal italiana de Ferri e Lombroso^ nas aplicaes ao direito da sociologia de Durkheim e Levy-JBruhl. Alm dos que seguem o puro sociologismo durkheimiano, inmeros so os partidrios cl um positivismo sociolgico, confinando, conforme o caso, pelos limites das cincias naturais, da psicologia ou da histria: aqui se enquadram o evolucionismo de Spencer, a orientao psicolgica predominante nos estudos de filosofia jurdica dos positivistas italianos e a escola histrica do direito.

    No positivismo costuma-se incluir o nome de Rudolph von Ihering, a cujo sistema, construdo em torno da noo de finalidade do direito, podemos denominar positivismo teleolgico.

    Como Ihering, contriburam para a difuso da mentalidade positivista na Alemanha certos tratadistas de direito pblico que faziam do Estado a fonte nica do direito, p. ex., Laband e Jellinek.

    Positivistas so Georges Gurvitch e Georges Ppert, mas cada qual a seu modo.

  • 20 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    Gurvitcli prope, para substituir o direito natural, o direito positivo intuitivo , que coexiste com o direito positivo formal, fundamentados ambos na autoridade dos fatos normativos . Seu sistema uma curiosa combinao de doutrinas metafsicas e sociolgicas, que ele prprio classifica de ideal-realismo .

    Ripert, contestando igualmente a existncia do direito natural, julga, entretanto, que deve a ordem jurdica ter uma base moral, inspirando-se os legisladores e os juizes, ao elaborar e aplicar o direito, nas concepes morais do Cristianismo, em que se estrutura a nossa civilizao: um moralismo positivo ou positivismo jurdico-moral.1

    Acentuado o positivismo das correntes que procuram criar uma cincia jurdica independente da filosofia geral: a Allgemeine Rechtslehre de Merkel e Bergbohm, a Analytical School of Jurispriidence de Austin ou o droit pour de Edmond Picard.

    Prxima dessas orientaes est a tendncia dos que reduzem o direito lei escrita, fazendo desta a fonte nica do direito e tambm o seu fundamento: ius quia iussum est. Trata-se de uma forma ingnua do positivismo jurdico, a se refletir no formalismo dos que aceitam a idia da plenitude logicamente necessria do direito positivo . 2

    1. Positivismo jurdico-moral, porque, eliminada a lei natural, restam apenas o direito positivo e a moral positiva (leis positivas humanas e divinas). Rejeitando o conceito racional de direito natural e substituindo-o pela moral crist (lei divina positiva), Ripert incorre num fidesmo absolutamente inaceitvel, esquecendo-se de que a moral crist supe o direito natural como a graa supe e no destri a natureza. No seu conhecido livro La rgle morale dans les obligations civiles, adota Ripert um critrio estritamente sociolgico, preconizando a moral dominante no meio social.

    2. Temos falado em fontes e fundamentos do direito. O fundamento do direito pode considerar-se sua fonte racional (ratio iuris). Mas no sentido estrito, fonte de direito o rgo revelador da norma jurdica, com autoridade para imp-la num determinado meio social. Segundo a escola de exegese, que tanta fortuna teve na Frana, s a lei escrita fonte de direito. Isto no exclui necessariamente o direito natural como fundamento do direito positivo, isto , das leis escritas. No entanto, parece fora de dvida que a escola de exegese muito contribuiu para desenvolver, entre os juristas, o hbito de aplicar e respeitar os textos legislativos

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 2 1

    O conformismo que vai nessa atitude de aceitao passiva e benvola do direito vigente, facilmerite-pode levar ao ceticismo jurdico, que considera o direito expresso passageira duma certa ordem de coisas representando ou a vontade dos mais fortes, ou os preconceitos e convenes de uma classe social. Tal o positivismo dos marxistas, que do ao direito, como a tudo o mais, na sociedade, um fundamento econmico, caindo, assim, no mais radical materialismo.

    Note-se, finalmente, que at mesmo entre certos mestres do direito natural moderno se pode encontrar uma forma de positivismo jurdico. o caso de Hobbes e Rousseau.

    Singular, a doutrina de Hobbes: o direito positivo criao do poder absoluto do Estado e surge em oposio ao ius naturale, que corresponde ao instinto libertrio dos homens. Pelo ius naturale teriam os homens direito sobre tudo e sobre todos; seriam, desse modo, levados ao bellum omnium contra omnes. Donde a organizao social e jurdica, visando garantir a ordem e a paz. Hobbes um dos\ mais extremados e lgicos positivistas. Como fruto de suas dedues, deixou-nos uma teoria completa do Estado totalitrio. 3

    Quanto ao paradoxal escritor genebrino, colocao fundamento do direito positivo no contrato social, que d ao Estado um poder absoluto sobre todos os indivduos, sendo o direito natural um sistema parte, concebido idealmente pela razo.4

    como se a estivesse todo o direito. o positivismo legalista, supondo na lei uma perfeio excessiva e acreditando nela encontrar soluo para todos os casos da vida jurdica, o que implica o desconhecimento da pluralidade real das fontes de direito e uma restrio exagerada do poder do juiz.

    3. a tese sustentada por J. Vialatoux em seu livro La Cit de Hobbes. Com Vialatoux, devemos ver em Hobbes um sistematizador do Estado totalitrio, sem pretendermos atribuir-lhe nenhuma paternidade sobre doutrinas polticas posteriormente em curso na Alemanha e na Itlia, geralmente de inspirao idealista.

    4. Sobre o direito natural em J. J. Rousseau, leia-se o seu Discours sur lorigine et les fondements de lingalit 'parmi les

  • 22 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    Atravs das multplices direes acima exemplificadas podemos distinguir, no positivismo jurdico,, os trs seguintes aspectos:

    1 o que reduz todo direito ao direito positivo, sem admitir nenhuma espcie de direito natural (exemplo: o direito puro de Picard);

    2 o que atribui um valor intrnseco absoluto ao direito positivo, negando-lhe um fundamento supra jurdico, mas admitindo tambm um direito natural (exem plo: o positivismo de Rousseau);

    3 o que fundamenta o direito positivo em uma lei superior, de ordem csmica ou sociolgica (exemplo: o sistema de Spencer).

    0 primeiro equivale simplesmente negao da filosofia do direito. Atitude anloga foi a dos que, no domnio das cincias fsicas e naturais, pretenderam separar as cincias particulares da filosofia.

    E se este cientificismo j passou de moda, aps a crtica decisiva de E. Boutroux, H. Poincar, P. Duhem, E. Meyerson, H. Driesch e tantos outros, o mesmo sucede com tal forma de positivismo jurdico, que vai perdendo todo o seu prestgio de outro- ra, graas reabilitao do direito natural.

    O segundo aspecto discriminado vem a dar na mesma conseqncia negativa do precedente. Pelo que respeita ao direito natural, este concebido no como o fundamento da ordem jurdica, positiva, mas como um direito primitivo e hipottico. E o direito positivo continua a valer por si prprio, sem necessidade de outro princpio que o justifique.

    Resta-nos examinar o positivismo jurdico dos que reconhecem a existncia de uma norma superior ordem jurdica positiva e fundamento desta. Mesmo quando essa norma concebida maneira das leis fsicas ou das leis da vida, isto , como simples expresso de um fato, implica, a bem dizer, um verdadeiro direito natural, que , alis, explicita-

    hommes. Sobre o positivismo jurdico do mesmo autor: Du contrat social, Livro I, caps. I e VIII e Livro II, cap. IV.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 2 3

    mente reconhecido por muitos. o que procuraremos demonstrar, analisando a doutrina de alguns autores particularmente caractersticos desta forma de positivismo jurdico e dignos de meno pela grande influncia que exerceram.

    1 Spencer e Pedro Lessa

    Aplicando os princpios gerais do evolucionismo transformista, que considera o homem o produto mais aperfeioado da escala zoolgica, ensina Spencer que a moral humana um desenvolvimento da moral praticada pelos animais inferiores. Assim, a justia entre os homens tem a mesma natureza que a justia infra-humana, formando, uma e outra, partes de um todo contnuo.

    Ora bem, do que decorre a justia na moral animal ?

    Para respondermos a essa questo, limitando-nos estritamente ao pensamento de Spencer, devemos antes lembrar o conceito de filosofia moral no sistema do grande mentor do evolucionismo, conceito esse que acusa a influncia utilitarista, to pronunciada na filosofia inglesa.

    Segundo Spencer, a tica deve cuidar da conduta em geral considerada objetivamente enquanto produz bons ou maus resultados. A conduta o complexo dos atos ajustados a um fim, ou melhor, o ajustamento dos atos aos fins. A mais perfeita conduta a que assegura uma vida mais longa, ampla e completa. Medem-se os bons e maus resultados, pela utilidade que os atos acarretam para a conservao da espcie e do indivduo.

    H, na tica animal, dois princpios cardeais e opostos: 1.) na infncia dos animais, so-lhes conferidas vantagens na razo inversa de suas aptides individuais; 2.) na idade adulta , ao contrrio, as vantagens se distribuem na razo direta do mrito, sendo este determinado pela adaptao do indivduo s condies de existncia. A persistncia

  • 2 4 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    desses dois princpios essenciais e opostos assegura a conservao da espcie, sendo o primeiro a lei que rege a famlia, composta de adultos e pequenos, e o segundo a lei que rege a espcie enquanto se compe de adultos. Este segundo princpio implica a sobrevivncia dos mais aptos e da que Spencer faz derivar a noo de justia.

    A lei de sobrevivncia dos mais aptos simplesmente a expresso de um fato. Padecem alguns as conseqncias de sua adaptao defeituosa, enquanto outros, mais felizes, fruem os benefcios de uma adaptao mais perfeita. A natureza de cada um impe- -lhe sua linha de conduta, a cujas conseqncias incoercveis cumpre submeter-se.

    Lei geral de toda a biologia, a sobrevivncia dos mais capazes tambm se manifesta nas relaes recprocas entre as partes de um organismo e na adaptao da espcie ao meio em que se encontra. Dela resulta a justia que se encontra nos animais brutos, a qual consiste em cada indivduo receber os benefcios e arcar com os efeitos nocivos da sua natureza e da conduta correspondente.

    Tal a lei da justia infra-humana. E se a justia humana um desenvolvimento ulterior dessa justia prpria aos seres vivos mais simples que o homem, tal ser tambm a sua lei. Com efeito, a conservao da espcie humana igualmente assegurada pela lei em virtude da qual os indivduos adultos melhor adaptados s condies de sua vida so os que mais prosperam.

    No que til conservao da espcie, reside, pois, o critrio do bem para Spencer. E seu sistema de moral depende deste postulado, alis expresso nas primeiras pginas da Justia : a conservao da espcie o sumo bem .5

    5. Spencer fala em postulado hipottico. Dessa hiptese a preservao e a prosperidade da espcie so desejveis tira uma concluso geral e desta, por sua vez, tira trs corolrios de extenso mais limitada: A concluso absolutamente geral que, na hierarquia das obrigaes, a preservao da espcie deve prevalecer sobre a do indivduo. . . Em caso de conflito, a pre-

  • PO SITIVISM O JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 2 5

    Deixando de lado as disquisies de Spencer sobre o sentimento e a idia de justia, que so antes captulos de psicologia que de moral, vamos logo sua famosa frmula de justia aplicada ao homem.

    Eis o enunciado da frmula em questo: Todo homem livre de agir como queira, desde que no infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem .

    Precede-a Spencer de uma explicao, onde declara que tal frmula deve ser positiva enquanto afirma a liberdade de cada homem, que deve gozar e sofrer os resultados, bons ou maus, de suas aes e negativa enquanto, afirmando essa liberdade para todo homem, implica que ele s possa agir livremente sob a restrio imposta pela presena dos outros homens que tm direito mesma liberdade . O elemento positivo exprime a condio prvia da vida em geral. O elemento negativo modifica essa condio prvia em vista das particularidades da vida em sociedade.

    servao do indivduo deve, pois, em medida que varia com as circunstncias, subordinar-se da espcie (H. Spencer, Justice, 4). No primeiro dos corolrios que se seguem dessa concluso geral, volta Spencer a enunciar a lei da sobrevivncia dos mais aptos: Os adultos devem conformar-se lei segundo a qual as vantagens obtidas esto em razo direta dos mritos possudos, sendo estes apreciados pelo grau do poder de auto-sustentao. Do contrrio, a espcie sofreria de duas maneiras, a saber: sofreria, num futuro imediato, pela perda dos indivduos superiores que seriam sacrificados aos inferiores com prejuzo da soma total de bem-estar; sofreria, num futuro mais remoto, pela propagao de seres inferiores entravando a dos superiores e levando a uma deteriorao geral da espcie, que acabaria por acarretar a sua extino (Spencer, Justice, 4). Se a preservao de uma espcie particular constitui um desiderato termina Spencer resultar para ela uma obrigao a que chamaremos, segundo as circunstncias, uma obrigao quase tica ou tica de se conformar a essas leis (Spencer, loc. cit.). Os demais trechos citados de Spencer acham-se na mesma obra, 27 (frmula da justia), 36 e 38 (corolrios dessa frmula). Na edio das obras completas de Spencer, cf. 272, 281 e 283 respectivamente (in H. Spencer, The Principies of Ethics, II, Part IV : Justice). Quanto definio de conduta: The Principies of Ethics, I, Part I, The Data of Ethics, 2.

  • 2 6 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    Corolrios da frmula de justia so os diversos direitos subjetivos ou liberdades individuais, como os direitos integridade fsica, liberdade de locomoo, propriedade, de doar e legar, de contratar livremente etc. Admitindo-se que o homem deve gozar uma certa soma de liberdade, afirma-se que ele tem o direito de goz-la. Provado que, num caso ou noutro, todo homem livre de agir at um certo limite, mas no alm, est implicitamente estabelecido ser justo possuir a liberdade assim definida. Donde o concluir Spencer: racional aplicar s diversas liberdades particulares, demonstradas por deduo, o nome de direitos, que lhes d a linguagem ordinria .

    E antes de iniciar o estudo particularizado de cada um daqueles corolrios da frmula de justia, declara ainda o mestre do positivismo evolucionista: Longe de derivarem da lei escrita, so os direitos propriamente ditos que a esta conferem a sua autoridade .

    Isso quer dizer que h direitos subjetivos naturais, decorrentes da frmula de justia, frmula esta que corresponde ao direito natural objetivo ou lei natural.

    Determinar concretamente os direitos subjetivos e organizar, para a plena realizao da frmula de justia, as condies da vida gregria tal o objeto do direito positivo.

    Enfim, o direito resulta de um princpio que expresso da natureza social do homem e que, por sua vez, se prende a um princpio mais geral, que domina a conduta universal, o da conservao da espcie.

    Funda-se, portanto, o direito numa lei natural e h um princpio superior s leis positivas pelo qual podemos avaliar o justo e o injusto.

    De Spencer afirmou Icilio Vanni que, com a sua doutrina sobre a justia, no fez seno reproduzir de forma biolgica a idia do direito natural.6

    6. Icilio Vanni, Lezioni di Filosofia dei Diritto, 2.a ed., Za- nichelli, Bologna, 1906, pgs. 277, 321 e 337.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 2 7

    o que efetivamente nos revela a leitura atenta de sua obra.

    E a mesma afirmao do direito natural, com carter biolgico, ou melhor, biossociolgico, encontramos em quem foi, no Brasil, o maior representante do positivismo jurdico evolucionista, Pedro Lessa.

    Nos seus Estudos de filosofia do direito, ao criticar o mtodo da escola histrica, escreve o festejado professor, que to larga influncia exerceu sobre geraes outrora passadas pela Faculdade de Direito de S. Paulo: . . . na escola histrica no h lugar para os princpios fundamentais, universais e permanentes, do direito. Nem tampouco se compreende o direito ideal.

    Entretanto, se todas as naes e todos os povos tm sido impelidos pela natureza das coisas formao de um conjunto de normas jurdicas, se a necessidade do direito se impe a todas as agremiaes humanas, a concluso a que devia chegar a escola histrica a oferecida por Spencer, quando demonstra que o direito um princpio orgnico da sociedade (Justice, caps. 2, 3, 4, 5 e 6).

    A legislao de cada povo nada mais do que uma srie de preceitos, apoiados em certas verdades fundamentais, em certos princpios de ordem social. Desconhecer esse resduo de todas as legislaes escritas e consuetudinrias, equivale a supor que a fauna e a flora de todos os pases, dadas as sensveis diferenas de clima e de solo, no estejam sujeitas s mesmas leis biolgicas fundamentais. Que so as divergncias das instituies jurdicas, ao lado das alteraes que uma mesma espcie vegetal ostenta em conseqncia do influxo de elementos csmicos diversos? As auranciceas que no Jardim das Tulhe- rias se exibem s nossas vistas sob a forma de enfezados arbustos, que s vivem graas aos meticulosos e inexcedveis cuidados de que as cercam desde os tempos de Francisco I, e as que se estiolam no Jardim das Hesprides, em Cannes, produzindo frutos mofinos e acres, so as mesmas plantas que, rvores

  • 2 8 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    frondosas e luxuriantes, tanto nos encantam a vista, o paladar e o olfato na zona intertropical.

    O filosofo que indutivamente sobe de generalizao em generalizao, obrigado a reconhecer que toda a legislao, em qualquer pas e em qualquer perodo histrico, repousa em princpios fundamentais, necessrios, sempre os mesmos.

    Neguem, se quiserem, a esses princpios o qualificativo jurdicos; digam que h uma lei natural, e no um direito natural, como querem alguns; afirmem, como pretendem outros, que so princpios sociolgicos, que devem ser estudados na sociologia jurdica, ou na histria natural do direito, lo cierto es que la cosa queda siendo la misma (Dorado Monteio, El positivismo en la Cincia Jurdica g Social Italiana, pg. 175) . 7

    Mais adiante, escreve Pedro Lessa: Qualquer que seja a necessidade ou a fora, que arrasta ou prende o homem vida social (e acerca deste ponto so tantas as teorias dos socilogos!) o que indubitvel, e a observao de todos os tempos o atesta, que no existe, nem se compreende, o homem fora da sociedade. Eis a uma verdade geral do domnio da sociologia; uma lei a que est subordinado o homem por sua natureza, lei obtida pela induo .8

    Como Aristteles, ensinando ter o homem uma natureza social, e Grocio, fazendo do appetitus socie- tatis o princpio do qual decorre o direito, tambm Pedro Lessa reconhece que a sociabilidade uma lei que est subordinado o homem por sua natureza e a encontra os princpios fundamentais da vida jurdica: uma verdade superior a qualquer veleidade de negao, e que por isso se transformou em estafado lugar-comum, esta lei, resultado da observa-

    7. Pedro Lessa, Estudos cle Filosofia do Direito, 2.a ed. Livraria Francisco Alves, 1916, pgs. 34, 35, 36. Alis, Pedro Lessa declara admitir a existncia do direito natural (cf. op. cit., pgs. 13 e 14, em prefcio l.a ed., e pgs. 46, 47 e 404), escapando, assim, contradio em que muitos positivitas caram por se obstinarem em no reconhecer expressamente uma idia que se encontra implcita no seu pensamento.

    8. P. Lessa, op. cit., pg. 40.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 2 9

    o direta e indireta, em todos os pontos do espao e do tempo: a sociedade o meio em que fatalmente o homem vive e se desenvolve. Eis uma verdade cientfica, obtida pela induo.

    Verdade no mesmo gnero, lei 110 sentido cientfico do termo, ainda esta: dada a vida social, a limitao das atividades individuais, condio sem a qual no se compreende a sociedade, imposta pelo instinto de conservao, pela inteligncia e pelo sentimento.

    O homem somente vive em sociedade, no ambiente social. condio essencial da existncia da sociedade a limitao das atividades individuais.

    A esto duas leis fundamentais, gerais, que formam a base da cincia do direito. 0 direito a limitao da atividade dos homens na sociedade . 9

    Parecem os trechos, que a ficam, comprovar suficientemente o que foi dito acima: como Spencer, admite Pedro Lessa um direito natural de fundamento biossociolgico.

    2 Icilio Vanni e Micelli

    Dissemos que 110 positivismo jurdico italiano predomina uma orientao psicolgica. o que j se percebe em Roberto Ardig, tido por sistematizador do positivismo naquele pas.10

    Na obra de Ardig, que exerceu grande influncia mesmo fora da cincia jurdica, encontra-se, para indicar a mesma idia de Spencer e Pedro Lessa, uma expresso que foi por este ltimo reproduzida: o

    9. P. Lessa, op. cit., pg. 121.10. Cf. H. Gruber, Le positivisme depuis Comte jusqu nos

    jours, trad. Ph. Mazoyer, Lethielleux, Paris, 1893, pg. 428; W. C. Sforza, Lineamenti storici delia filosofia del diritto, Vallerin, Pisa, pg. 220; R. Battino, Les doctrines juridiques contemporaines en Italie, Pdone, Paris, 1939, pgs. 25 e 26.

  • direito a fora especfica do organismo social, assim como a afinidade a fora especfica das substncias fsicas e a vida dos organismos individuais . 11

    Mas em autores que trataram mais especialmente da filosofia do direito, como Icilio Vanni e Micelli, que melhor podemos apreciar o positivismo jurdico italiano e a natureza psicossociolgica por ele atribuda lei fundamental da ordem jurdica.

    O sistema de Vanni pelo prprio autor denominado positivismo crtico . Sua obra no prima pela originalidade, revelando a cada passo a influncia de autores ingleses, como Spencer e Sumner Maine, ou alemes, como Herbart e Wundt. Oferece, porm, amplas perspectivas filosficas, graas importncia atribuda teoria do conhecimento como pressuposto da filosofia jurdica e distino feita entre a deontologia e a fenomenologia do direito. Neste ponto, sobrepe-se Icilio Yanni tendncia muito comum no seu tempo, de assimilar o direito e as outras cincias sociais s cincias naturais. Afirma o carter especfico das leis morais em face das leis da natureza, distingue o ponto de vista terico do ponto de vista prtico, mostrando que no basta conhecer a formao do direito enquanto realidade histrica e fenmeno da vida social, mas cumpre tambm pesquisar-lhe o fundamento intrnseco. Assim procura chegar valutazione etica do direito.

    Por a j se v que grande divergncia separa Icilio Vanni de Spencer, apesar das afinidades existentes entre ambos. Para Icilio Vanni, a lei biolgica da sobrevivncia dos mais aptos no tem todo o valor que lhe d Spencer. Tambm Vanni deduz o fundamento do direito das condies de existncia humana no estado de associao ; entretanto, esse fundamento tem, a seu ver, no uma natureza biolgica, mas psicolgica e social.

    o direito um fenmeno psicocoletivo que tem razes na conscincia social e sobretudo nas manifes

    ;?0 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    11. P. Lessa, op. cit., pg. 34.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 3 1

    taes desta que representam o querer coletivo; , pois, nas profundas vsceras da psicologia social que se deve procurar a explicao do direito . 12

    Elementos especficos e diferenciais caracterizam a sociedade humana, distinguindo-a nitidamente das sociedades animais. A evoluo social determinada por um motor psquico e apresenta uma forma especial, a forma histrica .

    Donde a seguinte definio de filosofia do direito: A filosofia do direito a cincia (pie, ao mesmo tempo que integra a cincia jurdica na unidade dos seus princpios mais gerais, liga o direito ordem universal, em relao qual explica a sua formao histrica na sociedade humana e investiga, do ponto de vista tico, as suas exigncias racionais .

    Ora, afirmar que o direito depende da ordem universal; que ele se funda nas condies de existncia do homem no estado associativo e que, por sua vez, esse estado natural ao homem; enfim, que h uma natureza humana especfica em funo da qual devemos procurar a valutazione etica do direito tudo isso no reconhecer a existncia de um fundamento objetivo e natural da ordem jurdica?

    No admira, pois, que Icilio Vanni, opondo-se ao relativismo jurdico, declare que os elementos comuns da evoluo jurdica se explicam, antes de tudo, pela comum natureza humana e a uniformidade das condies sociais.

    verdade que, passando do ponto de vista feno- menolgico para o deontolgico, diz o autor em questo que a distino entre as idias de justia e legalidade no existe nos grupos humanos primitivos. o desenvolvimento do esprito crtico, na conscincia social dos povos adiantados, que permite distinguir o justo em si do simplesmente prescrito pela autoridade. D-se com os povos o mesmo que com os indivduos: a criana identifica a noo de bem e a de

    12. I. Vanni, op. cit., pg. 34. Para as referncias precedentes e seguintes: pgs. 19, 26, 214, 236, 237, 265, 266, 311, 312 e 398.

  • 32 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    justo com as ordens dos superiores, at que, com o desenvolvimento da conscincia moral e independente, procura as razes intrnsecas do bem e do justo (sic).

    Tal opinio s se compreende nos que aceitam a hiptese de ser a mentalidade do homem primitivo essencialmente diversa da mentalidade do homem civilizado. Trata-se, no caso, de uma explicao da origem do sentimento de justia, que no obsta a que Yanni reconhea a existncia do justo em si, de um fundamento intrnseco do direito, do carter de necessidade moral das normas jurdicas.

    Vimos que Icilio Vanni denunciou na frmula dc justia de Herbert Spencer um disfarce da idia de direito natural. Pois o prprio Vanni admite esta idia, posto que forcejando por afast-la de suas cogitaes.

    O direito no existe na natureza escreve Vanni radicalmente errado o conceito de um direito proveniente da natureza... na natureza no podem existir normas, porque estas so um fato social, o resultado de um processo que supera a natureza, o processo da histria . 13

    Entretanto, o mesmo autor quem declara peremptoriamente: 0 que h de verdadeiro na doutrina do direito natural a idia de um fundamento intrnseco do direito na natureza mesma das coisas . 14

    Que mais ser necessrio para confessar a existncia do direito natural?

    Micelli, professor da Universidade de Pisa, considera igualmente o direito um fato social e psicolgico, produto da conscincia coletiva, atravs de um trabalho lento e contnuo de aes e reaes psquicas de que se conhecem os resultados, mas cujo processo se ignora por completo.15

    13. I. Vanni, op. cit., pgs. 279 e 280.14. I. Vanni, op. cit., pg. 281.15. V. Micelli, Principii di Filosofia dei Diritto, 2.a ed., So-

    ciet Editrice Libraria, Milo, 1928, pgs. 638 a 654. Refere-se Micelli s duas grandes correntes que contriburam para formar a idia da origem psicossociolgica do direito: a escola histrica d

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 3 3

    A conscincia coletiva o conjunto de produtos espirituais elaborados pelas conscincias de cada indivduo e que se difundem e objetivam na forma de crenas populares.

    At a temos apenas a gnese do direito. Do mesmo modo que Icilio Vanni, observa Micelli que o direito no um fenmeno igual aos fenmenos da natureza externa, que no basla averiguar o fato mas preciso valoriz-lo. Donde terminar o seu livro por uma indagao do fundamento iiilrnseco do direito.

    Recusa admitir que esse fundamento esteja nas condies externas da vida social, separando-se, assim, de Spencer e Vanni, para acentuar ainda mais o carter psicolgico do direito. Apesar de distinguir o aspecto fenomenolgico do aspecto deontolgico do estudo do direito ser e dever ser acaba reduzindo a deontologia jurdica fenomenologia jurdica. A conscincia a origem e o fundamento do direito.

    0 direito escreve Micelli uma parte apenas da justia, a parte que pode atuar empiricamente nas relaes liumanas, levando em conta as imperfeies do homem, que pode conciliar-se com certas condies imprescindveis de utilidade e convenincia, que pode tornar-se obrigatria por meio da coao exterior; que a parte, digamos assim, externa e objetiva do princpio de justia. Para explicar o direito e encontrar o critrio ltimo de sua valorizao, devemos, portanto, achar na prpria conscincia um fundamento especfico qualquer, e este fundamento, ns o encontramos precisamente naquela forma especial de conscincia, naquele complexo de atitudes que denominamos conscincia jurdica. Esta a forma caracterstica da conscincia reguladora, que se afirma e se determina a respeito das condies de existncia indispensveis para uma sociedade. Como forma, comum a todos os homens

    Savigny e a Vlkerpsychologie. Rejeita, porm, o conceito de espirito popular Volksgeist da escola histrica, por ser uma entidade abstrata, criticando tambm Herbart e Wundt por no terem uma idia clara da conscincia coletiva. Em vo procuraremos almejada clareza na exposio de Micelli.

  • 3 4 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    e assume o carter de necessidade e universalidade, ainda que ora aparea de maneira indistinta e confusa, sob forma de tendncia e instinto, ora de maneira clara e bem explicada . 16

    Dessa conscincia provm a ordem dos fins jurdicos e a concepo de uma ordem ideal de relaes jurdicas superior ao direito existente. As normas jurdicas no so, nem mesmo entre os primitivos, resultado exclusivo da tradio, do costume ou do poder, mas de qualquer coisa de mais fundamental, duma convico vaga de que todas essas coisas estejam conformes a uma certa ordem vislumbrada pela conscincia . 17

    Tal convico existe, realmente, e mais precisa do que pareceu a Micelli. Em todos os tempos, a conscincia humana proclamou a existncia de uma ordem natural a que se devem conformar as leis positivas para serem justas. E, apesar de positivista, teve o prprio Micelli uma percepo, esta sim, uma vaga percepo, de que h uma lei natural esculpida na conscincia de cada homem.

    3 Lon Duguit

    Se bem analisarmos a obra do jurista francs Lon Duguit, veremos que a mesma idia de um direito natural de fundamento psicossociolgico resulta necessariamente de suas pginas.

    Leia-se, por exemplo, o trecho abaixo, em muito semelhante s consideraes de Micelli h pouco citadas: A noo do justo e do injusto infinitamente varivel... Mas o sentimento do justo e do injusto um elemento permanente da natureza humana. Encontra-se ele em todas as pocas e em todos os graus de civilizao, na alma de todos os homens, os mais sbios e os mais ignorantes. Este sentimento

    16. Micelli, op. cit., pgs. 770-771.17. Micelli, loc. cit.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 3 5

    de justia varivel nas suas modalidades e nas suas aplicaes, mas geral e constante no seu fundo, que ao mesmo tempo proporo e igualdade. Ele de tal modo inerente natureza social e individual do homem, que , por assim dizer, uma forma da nossa inteligncia socia l.. . O homem no pode representar as coisas seno sob o ngulo da justia comutativa e distributiva. Esta representao, em alguns obscura, incompleta, balbuciante, noutros clara, a se exprimir forte e nitidamente, existe ein todo homem e em todos os tempos . 18

    Assim escreve esse autor to discutido, que veio subverter os conceitos fundamentais da cincia jurdica do seu tempo, com um desdm absoluto pelos imortais princpios de 1789, reputados intangveis 110 juzo dos tericos da soberania do povo. Negou Lon Duguit a soberania popular, a personalidade coletiva do Estado e dos agrupamentos, at mesmo a noo de direito subjetivo. Na introduo ao seu volume sobre o Estado e o direito objetivo, chegou a confessar que vinha fazer uma obra negativa, tendo em vista dizer no o que o Estado, o que o direito, mas antes o que eles no so .

    Por alguns considerado um revolucionrio da cincia jurdica, cujo sistema realista parece ter levado ao extremo as negaes do positivismo, Lon Duguit apresenta, entretanto, a propsito do fundamento do direito, reflexes comparveis s magnficas passagens de Ccero sobre a lei natural.

    Voltemos eloqncia dos textos. Em nosso pensamento, se o poder poltico

    simplesmente o poder dos mais fortes, um simples fato, h, contudo, uma regra que se impe aos mais fortes como a todos. Essa regra a regra de direito... permanente no seu princpio, essencialmente mutvel nas suas aplicaes. Fundada na coincidncia dos fins sociais e individuais, essa regra acha sua primeira expresso na conscincia dos homens, sua expresso

    18. Lon Duguit, Trait de Droit Constitutionnel, I, 8, 2.a ed., Ancienne Librairie Fontemoing (E. de Boccard, sucesseur), Paris, 1921, pgs. 50 e 54.

  • DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    mais completa no costume, na lei positiva, e se realiza pela coao material do Estado, que assim a fora posta ao servio do direito, no de um pretendido direito subjetivo, mas de uma regra social das conscincias e das vontades individuais . 19

    Por outras palavras, Duguit no faz mais do que reproduzir o conhecido pensamento de Ccero : res et ab natura profecias et ab consuetudine probatas legum metus et religio sanxit.20 0 direito deriva da natureza e sancionado pelo costume e pela lei. O costume e a lei so as fontes reveladoras do direito, sua expresso mais completa , no dizer de Duguit. Mas o fundamento do direito no a norma consuetudinria ou escrita e sim essa regra que acha sua primeira expresso na conscincia dos homens . Tal regra, para o prprio Duguit, uma lei natural: O princpio que ns propomos sem dvida positivo; cientificamente no se pode formular um outro; mas ele permanece estvel enquanto houver homens, porque tirado do liomem mesmo, de sua dupla natureza individual e social . 21

    Com essa idia, pretende Duguit dar ao direito um fundamento absoluto, sem reconhecer expressamente nenhuma espcie de direito natural, mas alienas manifestando um conceito que vem da observao positiva dos fatos sociais. Chega a criticar vivamente o positivismo jurdico de Jellinek e Laband, por carem estes em contradio e admitirem implicitamente o direito natural. Laband e Jellinek querem reduzir o direito ao que estatudo pela lei positiva. Mas, segundo esses autores, no de um modo arbitrrio que o Estado produz o direito. Eles ensinam que, do ponto de vista histrico, o direito nasceu espontaneamente, antes da interveno do Estado e que a

    19. L. Duguit, tudes de Droit Public, I : L'tat, le droit objectif et la loi positive, A. Fontemoing, Paris, 1901, Intr. II, pgs. 10-11. No mesmo vol., pg. 532: Le dtenteur de la force peut toujours par la force imposer sa volont, mais le droit reste toujours intact et suprieur.

    20. M. T. Ccero, De inventione, II, 160.21. L. Duguit, L tat, le droit objectif et la loi positive, cap.

    II, II, p. 100. O grifo no est no original.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 3 7

    deciso do poder poltico a verdadeira lei quando modifica a esfera de atividade jurdica dos indivduos (sic). Ora, pondera Lon Duguit, esta esfera de atividade jurdica no pode ser criao de leis positivas anteriores, porque, por hiptese, tais leis no existem. Logo, ela s pode resultar do direito natural, isto , pertencer ao indivduo em sua qualidade de homem. E a lei positiva ser, ento, a deciso duma autoridade poltica, que modifica num interesse comum a esfera de atividade jurdica natural do indivduo, os direitos individuais naturais. i

  • 3 8 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    S na sociedade, no no indivduo, que se acha o fundamento do direito. Este direito no um poder, uma regra objetiva. No tampouco uma regra moral e sim uma regra de fato: impe-se aos homens, prescindindo de qualquer princpio, bem, interesse ou felicidade, simplesmente em virtude e pela fora dos fatos, porque o homem vive em sociedade e no pode viver de outro modo. Sente-a todo homem, formula-a o sbio, e o legislador positivo assegura o seu respeito.

    Ao contrrio das leis do mundo fsico ou biolgico, que so leis de causa, a regra de direito uma lei de fim (sic). Ope-se Duguit biologia social dos organicistas e fsica social de Comte. Tais sistemas, diz ele, tiveram a vantagem de mostrar que a sociedade no um fato voluntrio e artificial, mas espontneo e natural; entretanto, encerram um grande erro, o de identificar os fatos sociais com os fenmenos fsicos ou biolgicos. O fator essencial dos fatos sociais o homem, ser consciente de seus atos. Os atos humanos so determinados por fins escolhidos conscientemente. E a regra de direito a regra da legitimidade dos fins: todo fim que a ela se conforma legtimo, todo ato praticado em vista de um fim legtimo tem valor social, isto , jurdico. As leis fsicas ou biolgicas determinam relaes de causa e efeito, ao passo que a regra social estabelece a legitimidade da conduta humana. Ela no , porm, uma regra moral, j o s no determina o valor intrnseco dos atos individuais.

    0 fato que d origem regra de direito a solidariedade. Os homens so solidrios entre si: tm necessidades comuns que s podem ser satisfeitas por uma ao em comum, tm aptides diferentes e necessidades diversas que s uma permuta de servi-

    averiguado o fato da sociabilidade, procura torn-lo inteligvel e ento parte da conscincia do prprio eu para da chegar conscincia da solidariedade social e da regra do direito (Ltat, le droit objectif et la loi positive, cap. I ) . Embora, ao contrrio de Micelli, fazendo prevalecer o fator social sobre o individual, no a concepo de Duguit estritamente sociolgica, como, p. ex., a de Durkheim.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 3 9

    os pode satisfazer. Da uma dupla solidariedade: solidariedade por semelhana e solidariedade por diviso do trabalho, constituindo ambas o fundamento do direito. E neste ponto segue Duguit a lio de Durkheim.

    A idia de solidariedade, em Duguit, a expresso do fato da sociabilidade humana. Se o homem quiser viver, como ele s pode viver em sociedade, deve conformar seus atos s exigncias da solidariedade social.

    Esses atos, praticados pelo homem, so atos conscientes, como j vimos. Duguit no chega a afirmar que sejam livres. Afasta este problema dizendo que ningum sabe se o homem ou no dotado de liberdade. Na sua opinio, no se sabe tampouco, nem se poder jamais saber, se as foras da natureza e da vida so foras conscientes. 0 certo que as aes humanas so conscientes dos fins que tm em vista.

    O fato irredutvel que deve estar na base de todos os estudos sociais o pensamento individual consciente de si mesmo.24

    Tendo conscincia de si prprio, dos fins de seus atos e, portanto, de suas aspiraes, o homem tem tambm conscincia de seu sofrimento.25

    0 sentimento da vida individual, tornando-se preciso na conscincia, produz a vontade de viver, sentimento universal e constante, que reveste principalmente a forma de aspirao de diminuir os prprios sofrimentos. O homem sofre e sabe que sofre, quer

    24. o princpio cartesiano: je pense, donc je suis. Tal princpio cest la constatation dune ralit incontestable, la seule ralit incontestable. La chose en soi au sens de la philosophie allemande, est la pense individuelle. Nous serons tents de dire seulement : la chose en soi est la souffrance individuelle. Mais au fond Vide est exactement la mme. (L. Duguit, L tat, le droit objectif et la loi positive, cap. I, I, pg. 26).

    25. O sofrimento impressiona vivamente Lon Duguit: la douleur nest pas un vain mot, comme le voulait la philosophie stocienne; elle est bien une ralit, la plus incontestable des ralits (op. cit., pg. 31). En fait lhomme a toujours voulu et voudra toujours moins souffrir, et l est pour nous lunique facteur de ses penses et des ses actes. (Idem, pg. 50).

  • 4 0 DIREITO NATURAE, DIREITO POSITIVO

    sofrer menos e percebe que a vida em sociedade diminui os seus sofrimentos.

    A sociedade , por sua vez, uin fato constante e universal. Nenhuma observao permite afirmar que, em certa poca da histria ou da pr-histria, vivesse o homem isolado de seus semelhantes. O agrupamento humano um fato natural que se traduz na conscincia dos indivduos por este pensamento: os membros de um grupo tm a mesma necessidade de viver e a mesma necessidade de diminuir os sofrimentos, sendo que s a vida em comum pode obter esse duplo resultado.

    Diante desse desejo de viver e da aspirao de diminuir os sofrimentos, compenetram-se os homens da grande solidariedade que os une. Assim, segundo Duguit, percebemos no liomem uma dupla natureza, ao mesmo tempo individual e social. Realmente, quanto mais se desenvolve a prpria individualidade, mais unido aos outros se sente o homem, isto , mais socivel, mais dependente dos seus semelhantes, mais solidrio com eles. Compreendendo que a vida no grupo lhe assegura o menor mal, o homem aceita essa solidariedade e se submete regra de direito dela resultante.

    Posteriormente, Duguit explicou melhor a coexistncia do sentimento de solidariedade com outro sentimento que se acha na origem do estado de conscincia criador da regra de direito o sentimento de justia. Os dois elementos essenciais da formao e da transformao da regra do direito so: 1.) a conscincia, que a massa de indivduos de um grupo tem, de ser uma determinada regra moral e econmica essencial para a manuteno da solidariedade social;2.) a conscincia de que justo sancion-la.26

    Depois de haver demonstrado que a conscincia da solidariedade social implica a conscincia de uma regra de conduta, conclui Duguit que a noo de regra de conduta essencialmente conexa e dependente da solidariedade, apresentando-nos, em resu

    26. L. Duguit., Trait cie Droit Constitutionnel, I, 8, pg. 47.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 4 1

    mo, a seguinte frmula: Nada fazer que diminua a solidariedade social por semelhana, nem a solidariedade social por diviso do trabalho; fazer tudo o que estiver ao seu alcance para aumentar a solidariedade social nas suas duas formas . 27

    Essa regra, que tem o seu fundamento na sociedade, destina-se a ser aplicada aos indivduos, isto , s conscincias individuais. Rejeita Duguit a idia de conscincia coletiva e at mesmo de personalidade coletiva do Estado. Por isso, quando diz que a regra de direito objetivo se aplica ao Estado, limitando o seu poder, entende com isso que ela se aplica aos indivduos que governam e que so os mais fortes na sociedade.

    A frmula acima enunciada um princpio generalssimo de obrigao, cujas aplicaes so infinitamente variveis. Sempre verdade que o homem deve subordinar a sua conduta s exigncias da solidariedade social, mas outra a questo de saber quais so essas exigncias. Ento, a regra de direito pode modificar-se. Por outras palavras, o contedo da regra objetiva est sempre em transformao, variando com a poca e o lugar.28

    Com toda a clareza, admite, pois, Duguit um princpio formal absoluto que o fundamento do direito, imutvel em si mesmo, varivel nas suas aplicaes.

    E tambm Duguit inadvertidamente engloba, na condenao do direito natural individualista, todo o direito natural.

    Assim que ele confunde direito natural e direito ideal: Admitindo a existncia de uma regra de conduta que repousa sobre um fundamento permanente, ns repelimos as doutrinas de direito natural, que consideram esta regra como absoluta e imutvel,

    27. L. Duguit, Ltat, le droit objectif et la loi positive, cap.II, I, pg. 91.

    28. exatamente a parte mutvel da regra de direito que o legislador deve perceber, traduzindo-a nas frmulas precisas da lei positiva: la loi est essentiellement la constatation par les gouvernants dune rgle de droit objectif. (Ltat, le droit objectif et la loi positive, cap. VII, pg. 502).

  • 4 2 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    algumas vezes ignorada e obscurecida, mas sempre viva, formando o ideal social a que devem aspirar todas as sociedades humanas, que sero tanto mais civilizadas quanto mais se aproximarem desse ideal. Ao mesmo tempo, cremos escapar crtica por ns mesmos feita sociologia contempornea, de ser incapaz de determinar um princpio fixo para a conduta do homem. 29

    So ainda de Duguit estas consideraes: No lemos em vista as doutrinas de direito natural hoje desacreditadas e que, fundadas nos direitos subjetivos reconhecidos aos indivduos, so completamente diferentes das idias aqui desenvolvidas. Vemos no direito apenas uma regra de conduta social, e se o homem tem direitos subjetivos, eles derivam dessa regra de conduta. As doutrinas de direito natural, ao contrrio, fazem a regra jurdica derivar de pretendidos direitos subjetivos que pertencem ao homem em sua qualidade de homem. 30

    Com efeito, as doutrinas individualistas fazem a regra jurdica derivar dos direitos subjetivos, em virtude do princpio da autonomia da vontade. Consideram a lei uma expresso da vontade popular e a sociedade, o resultado de um contrato. Mas na concepo tradicional, se o homem tem direitos sub

    29. L. Duguit, L tat, le droit objectif et la loi positive, pg. 100. No seu Tratado de Direito Constitucional, mais uma vez Duguit identifica o direito natural com o direito ideal, declarando, alis, consentir na expresso direito natural para designar a sua prpria doutrina, desde que no seja tal expresso entendida como um direito ideal. Depois de haver justificado a obrigatoriedade da norma jurdica, escreve: No me oponho a que se chame a norma jurdica, assim compreendida, de direito natural, que se diga, como Gny, Platon e Charmont, que isso voltar ao direito natural. Mas preciso entender-se sobre as palavras e designar coisas diferentes por palavras diferentes. At hoje, chamava-se de direito natural o direito concebido como fundado num princpio superior, sempre idntico a si mesmo na sua essncia, mesmo que fosse varivel nas suas manifestaes; direito ideal absoluto do qual os homens deviam procurar aproximar-se cada vez mais. (Trait de droit constitutionnel, 2.a d., Paris, 1921, pg. 72).

    30. L. Duguit, L tat, le droit objectif et la loi positive, pg. 105.

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 4 3

    jetivos precisamente porque eles derivam dessa regra de conduta que a le i: lei positiva, fundamento dos direitos subjetivos positivos; lei natural, fundamento dos direitos subjetivos naturais.

    pena que Lon Duguit no chegasse a conhecer perfeitamente o objetivismo da concepo clssica de direito natural, de que ele, por vezes, com algumas de suas prprias idias, tanto se aproximou.

    * * *Eis a, em linhas muitd gerais, o pensamento de

    grandes mestres do positivismo jurdico sobre o fundamento do direito. Apesar de paladinos da reao modernamente operada contra o direito natural, eles admitem esta idia, ainda que por vezes sem o perceber.

    Foi o positivismo, em filosofia, uma tentativa malograda de substituir a metafsica por uma sntese das cincias particulares. Limitando o mbito do conhecimento experincia sensvel, deu assim origem a uma nova metafsica, se bem no das mais conseqentes. A afirmao de que s legtimo o conhecimento sensvel, implica uma epistemologia apriorsti- ca e que se ope ao senso comum: uma afirmao que no provm da experincia, que no se demonstra e nem se impe por evidente.

    Em direito, frustrou tambm o positivismo, ao pretender desfazer-se da idia de direito natural.

    Devemos, a propsito, distinguir um duplo prisma: o da cincia e o da filosofia do direito. A filosofia do direito tem por objeto a essncia do direito quid sit ius. A cincia do direito tem por objeto o conhecimento emprico do direito.

    Muitas vezes, como vimos, o positivismo prescinde da filosofia do direito, cingindo-se a construes empricas em que se renem os elementos comuns de diversos sistemas jurdicos ou dos vrios ramos do direito positivo. o que se d com o direito puro de Picard, a jurisprudncia analtica de Austin e a teoria geral do direito ou a enciclopdia jurdica de Mer- kel. Nenhuma destas tendncias chega a constituir, em

  • 44 DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO

    absoluto, uma filosofia do direito. So snteses cientficas que no excedem a pura fenomenologia e longe esto de poder realizar aquele ideal apontado por Ccero: Non ergo a praetoris edicto, ut plerique niinc, nec a XII Tabulis, ut superiores, sed penitus ex intima philosophia hauriendum iuris disciplinam. 31

    Tais snteses ou generalizaes, sem carter filosfico, alargam bastante a esfera do conhecimento emprico do direito, remontando-se s instituies jurdicas dos povos selvagens ou primitivos, comparando o direito atual ao pretrito, fazendo ressaltar os preceitos comuns aos diferentes ramos do sistema jurdico de um povo.

    Na cincia do direito, sem entrar em indagaes sobre a essncia do fenmeno jurdico, semelhantes processos conduziram incontestavelmente a resultados apreciveis. Mas uma iluso pensar que tais resultados dispensem a filosofia do direito. Eis por que, entre os prprios positivistas, alguns procuraram completar, por uma explicao racional do direito, a vasta soma de conhecimentos acumulada pelo jurista enciclopdico.

    Em que consiste essencialmente a ordem jurdica? Ser um simples produto da fora dominante no meio social? Ou a razo do direito e da justia reside num princpio superior s determinaes positivas e decorrente da natureza das coisas?

    Eis a questo que Spencer, Pedro Lessa, Iciiio Vanni, Micelli e Lon Duguit tratam de solucionar. Yanni e Micelli criticam os que se contentam com a teoria geral do direito, referindo-se especialmente a Austin e Merkel.32 todos aqueles autores, cujas doutrinas aqui foram examinadas, mostram que o direito tem por fundamento um princpio resultante da prpria natureza humana.

    Resignam-se uns com atribuir s imposies da fora social poder absoluto do soberano ou von

    31. M. T. Cicero, De legibus, I, V.32. I. Vanni, op. cit., pgs. 25 e 26. V. Micelli, op. cit.,

  • POSITIVISMO JURDICO E FUNDAMENTO DO DIREITO 4 5

    tade do povo o valor de princpio fundamental de toda a ordem jurdica. Mas os positivistas que compreendem a necessidade da filosofia jurdica para justificar o direito positivo e dar uma explicao satisfatria do sentimento de justia, ao qual repugna a identificao do direito com a fora, esses nos conduzem inelutavelmente noo do direito natural.

    Tem toda a razo o eminente Del Vecchio, ao dizer: A idia de direito natural , na verdade, daquelas que acompanham a humanidade no seu desenvolvimento; e se, como, de certo, leni ocorrido, principalmente em nossos tempos, algumas escolas fazem profisso de exclu-la ou ignor-la, ela se afirma, poderosamente, na vida. Por isso v e incngrua a tentativa de repudi-la . 33

    Como o positivismo filosfico no conseguiu sobrepor-se metafsica, tampouco ao positivismo jurdico foi possvel banir da filosofia do direito a idia de direito natural.

    33. G. Del Vecchio, Sobre os princpios gerais do direito, traduo autorizada, prlogo de Clvis Bevilqua, Tip. Jornal do Comrcio, Rio, 1937, pg. 22.

  • C a p t u l o III

    A NECESSIDADE DO DIREITO NATURAL

    A persistncia do direito natural, nas prprias doutrinas dos seus adversrios, testifica a necessidade desse conceito, em que se estrutura toda a ordem jur- dica.

    Seriam lgicos os que no admitem o direito natural, se retirassem a expresso direito da linguagem cientfica, como props Augusto Comte.1

    Negar o direito natural negar o princpio absoluto da justia. Ora, o direito ou objeto da justia, ou simples produto das flutuaes do arbtrio legislativo. No primeiro caso, mantm a cincia jurdica a dignidade que j lhe haviam atribudo os romanos, definindo-a o conhecimento das coisas justas e injustas iusti atque iniusti scientia. 2 Mas no segundo caso, torna-se o direito uma simples arte a servio da habilidade ou da fora, enquanto, para os homens de Estado, as leis e os tratados se reduzem a meros chif- fons de papier. Eliminado o conceito de direito natural, no h nenhuma razo suficiente para que o legislador deva promover o bem comum, os sditos devam obedecer autoridade, os contratos devam ser observados. por recuarem ante a inexorabilidade de tais conseqncias, que os prprios positivistas afirmam, muitas vezes, a existncia de um princpio

    1. A. Comte, Systme de politique positive, I, 3.e d., Paris, 1890, pg. 361.

    2. Ulpiano, D. 1 .1 .10, 2.

  • NECESSIDADE DO DIREITO NATURAL 4 7

    universal e permanente, superior vontade humana e que constitui o fundamento da ordem jurdica.

    Este mesmo argumento, em que se patenteia a necessidade do direito natural pelas conseqncias absurdas oriundas de sua negao, foi assim empregado por Ccero, no De Legibns: Se a vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenas dos juizes, constitussem o direito, ento para criar o direito ao latrocnio, ao adultrio, falsificao dos testamentos, seria bastante que tais modos de agir tivessem o beneplcito da sociedade. Se tanto fosse o poder das sentenas e das ordens dos insensatos, que estes chegassem ao ponto de alterar, com suas deliberaes, a natureza das coisas, por que motivo no poderiam os mesmos decidir que o que mau e pernicioso se) considerasse bom e salutar? Ou por que motivo a lei, podendo transformar uma injria em direito, no poderia converter o mal no bem? que, para distinguir as leis boas das ms, outra norma no temos que no a da natureza . 3

    admirvel como os romanos, cujos ensinamentos assaz contriburam para se formar o lastro da doutrina clssica do direito natural, to nitidamente souberam compreender a dependncia que une o conceito de justia ao conceito de bem. 4

    Na hiptese de no haver entre o bem e o mal nenhuma distino intrnseca, no h igualmente nenhuma razo de ser para se admitir uma justia objetiva. E a lei natural, norma da bondade ou da malcia das aes, que permite distinguir as leis boas das ms, isto , as leis justas das injustas. Tal o sentido da passagem acima de Ccero.

    O primeiro princpio da lei natural consiste na obrigao de fazer o bem e evitar o mal. esse princpio o fundamento da obrigao moral e tambm o

    3. M. T. Ccero, De legi