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1 CRATERAS, RUÍNAS E METAIS RETORCIDOS: A GUERRA AÉREA ALIADA E DO EIXO ATRAVÉS DAS FOTOGRAFIAS DE IMPRENSA. Wilson de Oliveira Neto 1 Introdução. Boris Kossoy (2009) afirma que diferentes ideologias têm usado as imagens fotográficas para veiculação de ideias e manipulação da opinião pública. Especialmente, prossegue o autor, em contextos históricos marcados pelos avanços tecnológicos da indústria gráfica, que possibilitaram a multiplicação e a difusão de imagens através dos meios de comunicação. A veiculação de ideias e a manipulação da opinião pública através da publicação de fotografias estão relacionadas com a credibilidade que a própria imagem fotográfica goza entre as pessoas. A despeito de todo o debate histórico sobre o realismo fotográfico, ainda hoje as fotografias e seus conteúdos têm peso de verdade entre os sujeitos, conclui o autor. A influência que a imagem fotográfica exerce sobre as pessoas também é reforçada pelos efeitos que sua visualização, independente do meio em que ela foi visualizada, provoca nas memórias e nas representações acerca da realidade. De acordo com Kossoy (2009, p. 45): A fotografia estabelece em nossa memória um arquivo visual de referências insubstituível para o conhecimento do mundo. Essas imagens, entretanto, uma vez assimiladas em nossas mentes, deixam de ser estáticas; tornam-se dinâmicas e fluidas e mesclam-se ao que somos, pensamos e fizemos. Nosso imaginário reage diante das imagens visuais de acordo com nossas concepções de vida, situação socioeconômica, ideologia, conceitos e pré- conceitos. Houve entre os anos de 1935 e 1945 a “era de ouro” do fotojornalismo, segundo Tom Hopkinson (2017). Segundo o autor, diversas revistas fotojornalísticas foram lançadas na Europa e nos Estados Unidos. Centradas nas fotografias, elas exerceram, ao longo desse 1 Doutorando em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro ECO/UFRJ, em um DINTER com a Universidade da Região de Joinville Univille. E-mail: [email protected].

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CRATERAS, RUÍNAS E METAIS RETORCIDOS: A GUERRA AÉREA

ALIADA E DO EIXO ATRAVÉS DAS FOTOGRAFIAS DE IMPRENSA.

Wilson de Oliveira Neto1

Introdução.

Boris Kossoy (2009) afirma que diferentes ideologias têm usado as imagens

fotográficas para veiculação de ideias e manipulação da opinião pública. Especialmente,

prossegue o autor, em contextos históricos marcados pelos avanços tecnológicos da indústria

gráfica, que possibilitaram a multiplicação e a difusão de imagens através dos meios de

comunicação. A veiculação de ideias e a manipulação da opinião pública através da

publicação de fotografias estão relacionadas com a credibilidade que a própria imagem

fotográfica goza entre as pessoas. A despeito de todo o debate histórico sobre o realismo

fotográfico, ainda hoje as fotografias e seus conteúdos têm peso de verdade entre os sujeitos,

conclui o autor.

A influência que a imagem fotográfica exerce sobre as pessoas também é reforçada

pelos efeitos que sua visualização, independente do meio em que ela foi visualizada, provoca

nas memórias e nas representações acerca da realidade. De acordo com Kossoy (2009, p. 45):

A fotografia estabelece em nossa memória um arquivo visual de referências

insubstituível para o conhecimento do mundo. Essas imagens, entretanto,

uma vez assimiladas em nossas mentes, deixam de ser estáticas; tornam-se

dinâmicas e fluidas e mesclam-se ao que somos, pensamos e fizemos. Nosso

imaginário reage diante das imagens visuais de acordo com nossas

concepções de vida, situação socioeconômica, ideologia, conceitos e pré-

conceitos.

Houve entre os anos de 1935 e 1945 a “era de ouro” do fotojornalismo, segundo Tom

Hopkinson (2017). Segundo o autor, diversas revistas fotojornalísticas foram lançadas na

Europa e nos Estados Unidos. Centradas nas fotografias, elas exerceram, ao longo desse

1 Doutorando em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

– ECO/UFRJ, em um DINTER com a Universidade da Região de Joinville – Univille. E-mail:

[email protected].

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período, forte influência sobre a opinião pública. Entre 1939 e 1945, foi travada a Segunda

Guerra Mundial, uma guerra total, em que a mobilização de recursos humanos e materiais, de

civis e militares, foi absoluta, especialmente, nos países que protagonizaram o conflito.

1. Uma guerra de imagens.

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito militar internacional ocorrido entre os anos

de 1939 e 1945. Em sua síntese, Antony Beevor (2015, p. 21) atribui o desencadeamento do

conflito a Adolf Hitler (1889 – 1945), autocrata alemão, considerado pelo autor “o principal

arquiteto desta conflagração nova e ainda mais terrível, que se espalhou pelo mundo e

dizimou milhões, inclusive ele próprio”. Afirmação essa que vai ao encontro de outro

historiador, Eric Hobsbawm (2012, p. 43), para o qual, em termos mais simples, “a pergunta

sobre quem ou o que causou a Segunda Guerra Mundial pode ser respondida em duas

palavras: Adolf Hitler”2.

Contudo, no plano das relações internacionais, especialmente entre as potências da

época, o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial foi além das ambições e das atitudes

de um só homem, mesmo que ele seja Hitler. O segundo conflito mundial foi antecipado por

diversas crises diplomáticas e conflitos militares na Europa, África e Ásia, a partir da segunda

metade da década de 1930. Um dos exemplos mais conhecidos é a Guerra Civil Espanhola,

travada entre 1936 e 1939. Apesar de suas causas estarem situadas nos conflitos políticos e

sociais espanhois da primeira metade dos novecentos, conforme constatou Hugh Thomas

(1964), a Guerra Civil Espanhola foi “internacionalizada”, na medida em que tanto os

republicanos quanto os nacionalistas buscaram apoio nas potências internacionais da época.

Por sua vez, a Alemanha, a Itália e a União Soviética se envolveram com a guerra motivadas

por seus respectivos interesses geopolíticos no continente europeu. O mesmo ocorreu com as

potências que não se envolveram com o conflito, como por exemplo, a França e a Grã-

Bretanha, explica Carlos Caballero Jurado (2009).

2 É importante alertar que essas afirmações não são consensuais entre os historiadores. Porém, foge ao escopo

deste trabalho um debate acerca do papel desempenhado por Adolf Hitler no início da Segunda Guerra Mundial

e, ao longo dos parágrafos subsequentes outros fatores serão levados em consideração a respeito do contexto em

que esse conflito foi iniciado na Europa, em 1939.

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Em seu conjunto, as crises e as guerras ocorridas durante o período expressaram a

fragilidade das pazes assinadas após o término da Primeira Guerra Mundial, em 1918, e o

esforço das potências industriais tardias – Alemanha, Itália e Japão – em estabelecer uma

nova ordem mundial. Os Pactos Anti-Komintern e Tripartite, assinados pelos governos desses

países, respectivamente, em 1936 e 1940, são marcos históricos desse processo. A respeito

desses fatos, Richard Overy (2014, p. 16) explica que: “Os três países compartilhavam não só

da hostilidade ao comunismo, mas também do compromisso de revisar a seu favor o sistema

internacional vigente”. Paulo G. Fagundes Vizentini (1995) reforça essa interpretação, quando

destaca a forte rivalidade entre as potências do hemisfério norte, acirrada, especialmente, a

partir da crise econômica iniciada em 1929.

Nessas circunstâncias, a Segunda Guerra Mundial foi iniciada na madrugada de 1º de

setembro de 1939, quando as primeiras forças combatentes alemãs invadiram o território da

Polônia. A guerra foi travada entre duas coalizações militares, os Aliados e o Eixo. A primeira

foi liderada pela França, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Já a segunda, pela Alemanha, Itália

e Japão. Através de um esforço humano e material inédito, esses países e seus respectivos

aliados promoveram campanhas militares e travaram batalhas na terra, no ar e no mar, em

teatros de operações espalhados pelo mundo, como por exemplo, a Europa, o Extremo

Oriente, o norte da África e os oceanos Atlântico e Pacífico. Em seis anos de guerra, 2 de

setembro de 1945, após ter duas de suas cidades reduzidas à escombros por dois

bombardeamentos atômicos, o Império do Japão se rendeu, colocando um fim na Segunda

Guerra Mundial. É aceito entre os historiadores, tais como Beevor (2015), que essa guerra e

seus desdobramentos globais foram o maior desastre da história já provocado pelo homem.

Estima-se, que morreram entre 60 e 70 milhões de pessoas, entre civis e militares, jovens e

adultos, homens e mulheres. A respeito dessa contabilidade macabra, vale mencionar Ian

Kershaw (2016, p. 353), segundo o qual, para milhões de cidadãos europeus, “a Segunda

Guerra Mundial, ainda mais que a primeira, foi o mais perto que chegaram do inferno na

terra”. Para o autor, ela representou o colapso da civilização europeia.

Ao mensurar o impacto desse conflito na consciência e na memória de seus sujeitos,

Reinhart Koselleck (2014, p. 250) afirma que:

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A Segunda Guerra [Mundial] foi total em todos os aspectos: bombardeios,

terror, genocídio, guerra dos partisans, o que contribuiu para anular a

oposição entre as frentes de batalha e os lares, e, com ela, também a

diferença entre os papéis sociais dos gêneros, intensificando o sofrimento

comum das famílias. Os papéis sociais tradicionalmente atribuídos a cada

gênero provavelmente se transformaram mais durante as guerras do que em

qualquer outra circunstância.

O caráter “total” da Segunda Guerra Mundial, descrito pelo autor, também é

mencionado por Cesar Campiani Maximiano (2010), que ao estudar a experiência brasileira

no conflito, através da Força Expedicionária Brasileira – FEB, explica que, no século XX, a

distinção entre a frente de batalha e a retaguarda doméstica foi ignorada pelas guerras totais, a

Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.

Não é exagero afirmar que a Segunda Guerra Mundial foi um conflito militar em que a

comunicação foi essencial para os esforços de guerra. As dimensões humanas e materiais do

conflito fizeram com que os meios de comunicação se tornassem imprescindíveis no

planejamento e na execução de campanhas e batalhas, por exemplo. Mas, especialmente, para

este trabalho, os meios de comunicação deram sentidos à guerra, produziram representações

entre civis e militares, essenciais para os esforços dos aliados e do eixo. Desde a Guerra da

Crimeia (1853 – 1856), através dos correspondentes de guerra e da imprensa, a comunicação

colaborou com a propaganda de guerra, criando e difundido mitos, heróis e vilões

(KNIGHTLEY, 1978).

A produção e a circulação de fotografias fizeram parte dos regimes de comunicação

dos aliados e do eixo. Através de agências de notícias, de centros militares de comunicação

social das forças armadas e dos próprios governos dos países em guerra, uma quantidade

incomensurável de fotografias foi produzida e despachada para as mais variadas mídias, como

por exemplo, jornais e revistas. Durante a Segunda Guerra Mundial, explica Knightley (1978,

p. 346), a propaganda de guerra nos Estados Unidos, por exemplo, foi extremamente

profissional e sofisticada, “uma coisa muito mais científica”, metaforizou o autor.

2. Corcel ou percherón?

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O uso militar do avião foi efetivado durante a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e

1918. Os primeiros aparelhos eram inseguros e difíceis de pilotar, além de suas fuselagens

feitas de lona, madeira e metal. Suas armas ofensivas e defensivas eram metralhadoras e

mesmo revólveres, quando as primeiras falhavam. Em termos estratégicos e táticos, o

emprego de aviões durante a Primeira Guerra Mundial foi limitado, assim como os carros de

combate (“tanques”) e os submarinos, por exemplo.

Contudo, durante a década de 1930, explica Juan Eslava Galán (2017), tornou-se

hegemônica a ideia de que as guerras futuras seriam decididas através da aviação. Afinal,

afirma o autor, o ceu não conhece barreiras. Um avião não tem de atravessar rios ou escalar

montanhas, além da economia em recursos humanos e materiais, assim como de tempo. As

batalhas terrestres pertencem ao passado.

Portanto, havia consenso em torno do avião como o futuro das guerras. Porém, não

havia consenso sobre a forma com a qual a aviação militar seria empregada. Seu uso seria

estratégico ou tático? Galán (2017) responde a pergunta através da metáfora dos cavalos

“corcel”, leve, ágil e rápido, e do “percherón”, uma raça de cavalos originária da província

francesa de Le Perche, caracterizada por corpulência e força ideais para o trabalho pesado. O

“corcel” era a aviação tática, que requer aviões de curto alcance e capacidade de carga

limitada, usados em operações de apoio às forças terrestres, “una especie de artillería volante

bombardeando com precisión los núcleos de resistencia” (GALÁN, 2017, p. 82).

Já o “percherón” era a aviação militar estratégica, que requer aparelhos de grande

porte, com grande alcance e capacidade de carga, capazes de bombardear cidades e

complexos industriais do inimigo. No debate entre os empregos estratégico e tático, durante

os anos de 1930, predominou a aviação militar estratégica. “Un bombardeo massivo que

destuya sus cidades y ocasione cientos de miles de muertos civiles obligará al enemigo a pedir

lá paz sin necessidade de enfrentarse a él en el campo de batalha” (GALÁN, 2017, p. 82 –

83).

Galán (2017) considera o ataque da Legião Condor sobre a cidade basca de Guernica,

na Espanha, em 26 de abril de 1937, a consolidação do conceito de aviação estratégica, que

influenciou o planejamento da aviação militar de potências, tais como a França e a Inglaterra.

Durante a Segunda Guerra Mundial, foi esse conceito que orientou, por exemplo, as

campanhas de bombardeamentos aliados sobre a Alemanha e o Japão, tal como é possível

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constatar em sínteses sobre esse conflito, como por exemplo, o trabalho de Antony Beevor

(2015). Porém, esse não foi o caso da arma aérea alemã, a Luftwaffe. Em sintonia com a

doutrina militar da Guerra-Relâmpago (Blitzkrieg), a aviação militar alemã durante a Segunda

Guerra Mundial foi essencialmente tática, um corcel. Contudo, durante a Batalha da Grã-

Bretanha, em 1941, a Luftwaffe foi empregada como aviação estratégica, fato este que, na

avaliação de Galán (2017), contribuiu com o declínio da arma aérea alemã durante o conflito.

Ele reforça essa conclusão na medida em que considera o emprego tático dos aviões uma das

razões para a derrota da Alemanha na guerra, em 1945. De acordo com ele, a aviação tática

foi uma decisão crucial, porém equivocada, que gerou uma carência de poder militar que os

alemães sentiram até o final do conflito.

3. Entre crateras, ruínas e metais retorcidos.

Durante a época da Segunda Guerra Mundial, a fotografia era considerada uma forma

de documentação da realidade e foi amplamente empregada como meio de propaganda de

guerra capaz de atribuir sentidos e estimular sensações a respeito do conflito entre o público.

No caso das fotografias examinadas neste trabalho, tanto aliadas quanto do eixo, elas chamam

a atenção do público para os rastros de destruição deixados pelas forças combatentes no ar, no

mar e na terra.

Erika Zerwes (2016) explica que, a década de 1930 foi um período importante para a

história da fotografia. Segundo a autora, “inovações técnicas que vinham se somando tanto na

produção de imagens [...] como em sua circulação [...] permitiram que durante essa década a

imagem fotográfica tivesse um protagonismo até então inédito na cultura visual” (ZERWES,

2016, p. 5).

Para tanto, será analisada uma coleção de fotografias sobre o conflito, organizada em

um álbum que está sob a guarda do Arquivo Histórico de Joinville – AHJ (Joinville, SC),

conforme mostra a figura 1. Ele faz parte da coleção “Memória Iconográfica”, série “álbum

fotográfico”, dossiê “Segunda Guerra Mundial”, sob o número 3.1.8.36.7. Trata-se, de uma

coleção formada por 440 fotografias, a maioria imagens produzidas e distribuídas por

agências de notícias e órgãos de comunicação militares vinculados aos países beligerantes,

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como por exemplo, a Alemanha e os Estados Unidos, respectivamente, as agências “RDV” e

o Serviço de Informações do Hemisfério – SIH.

Figura 1: Uma das páginas do álbum 3.1.8.36.7. Foto: Wilson de Oliveira Neto.

Os demais cartões postais e fotografias que fazem parte do álbum possuem temas

diversos e não estão relacionados à Segunda Guerra Mundial, mas à história da pessoa que

organizou o álbum, cuja identidade é desconhecida. Aliás, não há no AHJ registros sobre as

circunstâncias em que esse álbum foi doado para a instituição. Devido ao tipo de suporte em

que ele foi organizado, há fotografias que estão perdendo a emulsão.

Os rastros de destruição registrados nas fotografias de guerra têm, basicamente, os

mesmos conteúdos: aldeias, vilas, cidades e campos destruídos; navios explodindo e

afundando; material bélico abandonado, em chamas ou retorcido; aviões abatidos como

troféus ou no ar, despejando suas bombas; crateras no solo decorrente de explosões; vítimas

civis e militares. Em alguns casos mais extremos, há imagens de cadáveres civis e militares,

especialmente, inimigos mortos e calcinados.

É o que mostra a figura 2, cuja fotografia é o registro de um ataque aéreo alemão

contra um navio mercante em um comboio inglês. A fotografia foi fornecida à imprensa

brasileira através da RDV, com a seguinte legenda em português: “Um avião de combate

Heinkel ‘He-111’ ataca um comboio inglês”. Junto com a legenda datilografada em

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português, a RDV também orientava a publicação de suas imagens em jornais e revistas com

as seguintes instruções: “Publicação gratuita. Pede-se mencionar a procedência e remeter o

comprovante da publicação”.

Figura 2: ataque aéreo alemão contra um navio mercante inimigo. Foto: RDV. Coleção: AHJ.

Já as imagens a seguir, as figuras 3 e 4, são, respectivamente, alemã e inglesa. A

primeira, também fornecida pela RDV. Já a segunda, provavelmente pelo Serviço Britânico

de Notícias (British News Service), cuja sucursal brasileira estava localizada na cidade do Rio

de Janeiro, na época Distrito Federal. Apesar de suas origens nacionais distintas, elas têm o

mesmo tema: fuselagens de aviões inimigos abatidos fotografados como troféus. Na figura 3,

aparecem os destroços de um caça inglês Hawker Hurricane, abatido próximo de uma pista

alemã, que aparece no fundo da imagem junto com dois bombardeiros de picada alemães

Junkers Ju-87 “Stuka”, situados no canto superior esquerdo da fotografia. Tal como a figura 2,

uma legenda em português: “Avião inglês abatido por um ‘Messerschmitt’ alemão”. Igual ao

exemplo anterior, a figura 4 retratou parte da fuselagem de um avião alemão, provavelmente

um bombardeiro, que caiu sobre o território inglês. Os soldados ao seu redor apontam para os

furos de projéteis e estão próximos da insígnia da Luftwaffe, uma cruz balcânica estilizada.

Infelizmente, o registro da legenda não foi preservado no álbum, porém é certo que seu texto

teria o mesmo objetivo que o texto redigido para a fotografia veiculada pela RDV.

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Figura 3: destroços de um caça inglês abatido. Foto: RDV. Coleção: AHJ.

Figura 4: soldados ingleses observam os furos de projéteis na fuselagem de um avião alemão abatido. Foto:

Serviço Britânico de Notícias? Coleção: AHJ.

Contudo, apesar dos mesmos assuntos, os sentidos dados às fotografias, quando

publicadas, variaram. Como meios de ações psicológicas, conforme conceituou Mataloto

(2015), elas poderiam representar o poder de um exército sobre o inimigo ou a selvageria do

inimigo, especialmente, quando se tratam de civis. Nesse sentido, vale citar Phillip Knightley

(1978) que chamou a atenção para o processo de desumanização do inimigo, através da

propaganda de guerra veiculada pela imprensa americana, durante a Segunda Guerra Mundial,

especialmente, nos teatros de operações localizados no Extremo Oriente, em que uma violenta

guerra entre Estados Unidos e Japão foi travada.

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A figura a seguir é um exemplo do uso de fotografias como meio de atribuição de

características negativas ao inimigo.

Figura 5: Cabo das forças armadas dos Estados Unidos ministrando curativos em uma criança francesa. Fonte:

Em guarda para a defesa das Américas (s.d.).

Ela foi publicada na contracapa de uma das edições da revista Em guarda para a

defesa das América, número 2, em seu quarto ano de publicações. Nela, um descabelado,

ferido e triste menino francês recebe os cuidados de um Cabo pertencente à 82a Divisão de

Infantaria Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos, também conhecida como “All

American Division”, cuja criação remonta à Primeira Guerra Mundial. A fotografia foi

publicada sobre toda a contracapa, além de ter sido colorizada. O Cabo não olha para a

câmera, sugerindo estar mais preocupado com os primeiros socorros ministrados ao menino

que ao fotógrafo, provavelmente, pertencente ao U.S. Army Signal Corps. Os olhos azuis do

garoto se destacam na fotografia, assim como as manchas e os pingos de sangue sobre as

pernas e as roupas do menino. “Em guarda” foi uma revista engajada no esforço de guerra

americano e, certamente, no processo de colorização da imagem, esse detalhes não tenham

passado despercebidos pelos artistas gráficos responsáveis.

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As condições de vítima do garoto e de um inimigo cruel dos alemães foram reforçadas

pela legenda publicada no canto superior esquerdo da imagem, dentro de um retângulo

branco, com a seguinte descrição:

Ferido durante a tremenda luta para a captura da vila de St. Sauveur, na

França, este pequenino não-combatente francês recebe, no quintal de sua

própria casa, os curativos que lhe são ministrados por um enfermeiro das

forças libertadoras norte-americanas. Em sua resistência, os alemães não

tiveram escrúpulos de pôr em risco a população civil.

A legenda retomou um discurso em que os alemães são acusados de violência contra

civis não-combatentes, cujas origens estão situadas na Primeira Guerra Mundial, durante a

invasão alemã à Bélgica, conforme Lorde Francis-Williams (1968). Além disso, as forças

combatentes dos Estados Unidos são “libertadoras”, o que reforça a ideia de uma “cruzada

europeia”, a boa guerra da liberdade contra o totalitarismo. “A Segunda Guerra Mundial é

comumente vista nos Estados Unidos como uma boa guerra do povo contra o fascismo”,

explica Sean Purdy (2011, p. 217). Ele prossegue e revela que: “Certamente, a propaganda

utilizada pelo governo fez uso extenso da corajosa luta pela liberdade contra os horrores do

nazismo e do militarismo japonês” (PURDY, 2011, p. 217).

Já a capa da mesma edição tem uma imagem impressa completamente diferente

(figura 6). Nela, foi publicada uma fotografia colorida, possivelmente um filme

“kodakchrome”, que não apresenta sinais de retoques. O cenário é uma horta em um dia

ensolarado. Em primeiro plano, uma menina e um idoso contemplam sorridentes os vegetais

colhidos na horta, distribuídos em uma cesta de vime. O homem idoso veste um macacão

jeans, uma “jardineira”, como é popularmente conhecida no Brasil, um traje recorrente na

iconografia sobre os camponeses americanos. Ele enxuga o suor em seu rosto com um lenço,

sugerindo esforço físico, trabalho, cujos vegetais recolhidos na cesta são os resultados desse

esforço. A relação entre a fotografia e a propaganda de guerra à qual ela foi destinada é

reforçada pela frase “Hortelãos da vitória”, impressa no canto superior esquerdo da fotografia,

sobre um retângulo branco, que contrasta com o fundo verde, conferindo destaque entre os

elementos escritos e visuais que formam a capa da revista.

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Figura 6: “Hortelãos da vitória”. Fonte: “Em guarda para a defesa das Américas” (s.d.).

A capa e a contracapa da revista “Em guarda” reforçam dois discursos recorrentes na

propaganda de guerra dos Estados Unidos, durante o conflito: o engajamento da população

americana no esforço de guerra, representado pelos “hortelãos da vitória”, e a condição de

libertadores das forças combatentes dos EUA na Europa, agredida e subjugada pela

Alemanha, cujas tropas não têm escrúpulos morais, representação esta reforçada pelo menino

francês ferido e atendido por um enfermeiro do U.S. Army. Nos Estados Unidos, devido à sua

condição de potência industrializada e urbanizada, “a propaganda da Segunda Guerra Mundial

tornou-se uma coisa muito mais científica”, constatou Phillip Knightley (1978, p. 346). Nesse

sentido, esses e outros discursos a respeito do envolvimento americano na guerra foram

amplamente divulgados pelos meios de comunicação, tendo nas fotografias um dos seus

suportes.

Considerações finais.

As fotografias acerca da guerra aérea aliada ou das potências do Eixo examinadas

neste trabalho foram produzidas e circularam com objetivos propagandísticos, como parte de

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uma guerra de informação e contrainformação travada durante a Segunda Guerra Mundial.

Tinham como metas fortalecer os esforços de guerra dos seus países, assim como

desmoralizar o inimigo perante a opinião pública.

Mas, como o público teve acesso às fotografias? Embora elas pudessem ser obtidas de

forma avulsa, basicamente, foram publicadas em jornais e revistas. No Brasil, após o

rompimento das relações diplomáticas com os países do Eixo – Alemanha, Itália e Japão – ,

predominou na imprensa nacional fotografias distribuídas pelas agências de notícias dos

Estados Unidos e da Grã-Bretanha, como por exemplo, o Serviço de Informação do

Hemisfério – SIH e o Serviço Britânico de Notícias (British News Service).

A imagem a seguir ilustra o meio através do qual esse tipo de imagem foi publicada.

Ela saiu na edição de 24 de julho de 1943 do jornal O aço, que circulou no município de São

Bento do Sul, Santa Catarina, entre 1936 e 1944. A fotografia foi fornecida pela agência

“Inter-Americana” (ou “Interamericana”), vinculada ao Escritório de Coordenação de

Assuntos Interamericanos, assim como seu título e sua legenda, respectivamente, “Chuva de

bombas” e:

Esta fantástica fotografia aérea mostra uma chuva de bombas lançadas por

fortalezas voadoras norte-americanas sobre o porto italiano de Monserrato,

na Sardenha. Estes terríveis bombardeios, quase diários, paralisaram

virtualmente as linhas de comunicações italianas e foram uma das principais

causas da queda de Pantellaria e Lampedusa em poder dos aliados

(CHUVA..., 1943, p. 1).

As fotografias poderiam ser publicadas isoladamente ou como parte de uma matéria,

como por exemplo, em revistas, tais como Em guarda para a defesa das Américas. Após

setenta anos do término da Segunda Guerra Mundial, elas são parte do repertório de fontes

que auxiliam os historiadores e demais estudiosos a narrar sua história e problematizar as

relações entre comunicação e guerra.

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Figura 7: “Chuva de bombas”. Fonte: O aço, 24/07/1943. Coleção: Arquivo Histórico de São Bento do Sul, SC.

Referências.

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