Ruínas e rumores n'As cidades invisíveis

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Cadeos de Lerras da UFF - unos da Pós-Gduao 2003, n.28, p. 95-104, 2003 95 Ruínas e rumores n' As cidades invisíveis Augusto Rodrigues da Silva J unior uMO "Rumores e ruínas n 'As cidades in visívei s" é uma das formas possíveis de leitura d'As cidades in visíveis de !ralo Calvino: percorrer os capí rulos-dialógicos que abrem e fecham as seqüências narrativas das cidades propriamente di tas. A parti r da relação Marco Polo/Kublai Khan histórica, interpretamos os diálogos enrre os personagens de Calvino, rendo sempre em menre o texto "O narrador", de Walter Benjamin, que discute as diferenças enrre o conrador de histórias que rroca experiência e o narrador de romance que se segrega em si mesmo, isolando-se do conrat o humano. A s cidades invisíveis de Italo Calvino (2000), publicadas em 1972, remetem-se a um momento mui to importante na histór ia da maginação da humanidade: a chegada do j ovem veneziano, Marco Polo na corte de Kublai Khan na Mongólia, em 1275 e sua estadia até os anos de 1298-12 9 9, ano em que ao parti r da corte asiática ficou preso e ditou O l ivro das maravilhas. O livro I I Milione (Polo, 1999) é composto de três partes e cada capítulo apresenta os nomes, os costumes e as "trocas" de cada lugar visitado pelo viajante. cidades e os nomes desdobram-se no livro "das passagens invisíveis" a partir da criação das cida- des e dos nomes por Calvino. Marco Polo, personagem e contador de histór ias percorre lugares sem uma localização real e assim multiplica a s possibilidades temporais nas "descrições" desses lugares para Kublai Khan. Pela narração f iccional, as imagens, no invisível das cidades-mundo, tornam-se visíveis, no espaço oculto da cidade con- temporânea que sobrepõe todas as cidades em s i mesma. Marco Polo afirmava ter descrito em seu livro tudo o que viu ou ouviu dizer em suas viagens pelo Oriente. Sua in tenção era informar aos europeus todas as riquezas e diferenças culturais, até então desconhecidas por esta parte do mundo. Calvino recupera essa relação do mercador de Veneza, imaginando, porém (ou també m), os diálogos entre o então diplomata i taliano e o imp erador mongol.

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Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 95-104, 2003 95

Ru ínas e rumores n' As cidades invisíveis

Augusto Rodrigues da Silva J unior

REsuMO "Rumores e ruínas n 'As cidades in visíveis " é uma das formas possíveis de leitura d'As cidades in visíveis de !ralo Calvino: percorrer os capírulos-dialógicos que abrem e fecham as seqüências narrativas das cidades propriamente ditas. A partir da relação Marco Polo/Kublai Khan histórica, interpretamos os diálogos enrre os personagens de Calvino, rendo sempre em menre o texto "O narrador", de Walter Benjamin, que discute as diferenças enrre o conrador de histórias que rroca experiência e o narrador de romance que se segrega em si mesmo, isolando-se do conrato humano.

As cidades in visíveis de I talo Calv i n o ( 2 000 ) , p u bli cadas em 1 972 ,

r e m e te m - s e a u m m o m e n t o m ui t o i m p o rta n te n a h i s t ó r i a d a maginação d a humanidade: a chegada d o j ovem venezian o , Marco Polo na

corte de Kublai Khan na Mongólia, em 1275 e sua estadia até os anos de 1 298- 1 299 , ano em que ao partir da corte asiática ficou preso e ditou O livro das maravilhas. O livro II Milione (Polo, 1 999) é composto de três partes e cada capítulo apresenta os nomes, os costumes e as "trocas" de cada lugar visitado pelo viajante. As cidades e os nomes desdobram-se no livro "das passagens invisíveis" a partir da criação das cida­des e dos nomes por Calvino. Marco Polo , personagem e contador de histórias percorre lugares sem uma localização real e assim multiplica as possibilidades temporais nas "descrições" desses lugares para Kublai Khan. Pela narração ficcional, as imagens, no invisível das cidades-mundo, tornam-se visíveis, no espaço oculto da cidade con­temporânea que sobrepõe todas as cidades em si mesma.

Marco P olo afirmava ter descrito em seu livro tudo o que viu ou ouviu dizer em suas viagens pelo Oriente. Sua intenção era info rmar aos europeus todas as riquezas e diferenças culturais, até então desconhecidas por esta parte do mundo. Calvino recupera essa relação do mercador de Veneza, imaginando, porém ( o u também) , os diálogos entre o então diplomata i tal iano e o imperador mongol.

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SILVA J R. , Augusto Rodrigues. Ruínas e rumores n 'As cidades invisíveis

I ntercalando as " descrições" d'As cidades invisíveis com recriações imaginárias dessa situação, compõe uma relação entre Oriente e Ocidente com reflexões sobre cidades, discursos e seres humanos por meio de um olhar urbano. Atemporais e atópicas, as cidades dos diálogos imaginários situam-se n o universo invisível, possibilitado pela criação poética: "Somente n os relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins" (Calvino, 2000: 1 2) .

Entre as diversas possibilidades de descrição desse livro, diríamos que há uma divisão " capitular" com nove números que abrem e fecham cada série de cidades. N os diálogos o autor estabelece uma relação entre o Marco P olo personagem, suposto narrador de cada cidade-narrativa, e um narrador onisciente que muitas vezes se confunde com ele ou com Kublai Khan. Narrador que conhece pensamen­tos e sentimentos do imperador e do mercador, e que é capaz de ter uma visão própria sobre os acontecimentos e questões filosóficas levantadas pelos persona­gens. Esses diálogos, repletos de discussões existenciais demasiadamente humanas, de tom às vezes dramático, outras vezes em forma de parábolas ou alegorias, discutem as possibilidades emblemáticas de "ver-a-cidade" na contemporaneidade:

- f. tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito. [Disse Kublai Khan]

[E Polo]

- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção contínua: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (Calvino, 2000: 1 50) .

Assim, a voz que ecoa d'As cidades invisíveis segue além da superfície encanta­dora do visível e transforma os passeios numa verdadeira força integradora da imaginação: o invisível. Ao n os permitir viajar com Marco Polo, os elementos urban os falam conosco. Na agilidade do espírito, que passeia por ruas rotas, e na leveza da alma, que voa em parábolas, é possível perceber uma "fauna" e uma "flora" peculiar a cada cidade. Elemen tos entrevistos no instante de observação, fazem da arquitetura, que i ndica direções, guia e esfinge.

O "ad-mirador" revive gestos ancestrais de diálogos em cada viagem e assim renova os mitos ( narrativos) e se impõe uma busca existencial, visualizando no

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mundo as coisas ocultas. Sua imaginação se encarrega das memórias, das palavras e das imagens (símbolos visibilizados) que se renovam na arte de narrar. Ao escolher seu herói (benjaminianamente falando) como um viaj ante, Calvino diz que: Quelo che sta a cu ore ai mio Marco Palo e scopríre I e ragioni segrete eh e hanno porta to gli uomíni a vivere nelle cíttà, ragioní che porranno valere ai di là di tutte le crisi. (Calvino, 1993: ix).

Observador e rememorador, contador e narrador de histórias, Marco Polo , diante de um i mperador-ouvidor apaixonado por " historicidades" , esses persona­gens representam a possibilidade de um retorno da "faculdade de intercambiar experiências" (Benjamim, 1987, v. I: 198) da qual tanto nos fala o pensado r alemão. Assim, Calvino permite, no (re)conhecimento dos fenômenos naturais e urbanos, num momento de crise, que se fundem aos humanos em constantes trocas no interior das cidades. Diante de nossas pálpebras que dividem o mundo recordado do mundo o bservad o , o ress urg i m ento do contador (uma vez esquecido na " era da reprodutibilidade") , agora é recriado na escritura e no diálogo, possibilitado pela ficção:

Não é apenas para comprar e vender que se vem à Eufêmia, mas também por que à noite, ao redor das fogueiras em rorno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deirados em montes de raperes, para cada palavra que se diz - como "lobo", irmã", "tesouro escondido", baralha", "sarna"', "amantes" - os outros contam uma hisrória de lobos, de irmãs, de resouros, de sarna, de amantes, de baralhas. E sabem que na longa viagem de rerorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordaçóes, o lobo rerá se rransformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a baralha em ourras baralhas, ao rerornar de Eufêmia, a cidade em que se rroca de memória em rodos os solstícios e equinócios (Id., 2000: 38-39).

Entre a proximidade das coisas e dos seres urbanos, o viaj ante observa que as histórias também constituem " objetos" de trocas (bem como os olhares e os so­nhos) e , assim, são recontadas. As palavras "eufemizadas" potencializam as coisas e estas, à medida que se deixam transportar por intercâmbios incessantes de significa­dos, transformam-se em imagens. "Historicidades" que, em sua mágica multiplicidade, desdobram-se nos espaços revisitados e nas tramas possíveis de tempos redescobertos:

Marco enrra numa cidade; vê alguém numa praça que vive uma vida ou um insrante que poderiam ser seus; ele podia estar no lugar daquele homem se tivesse parado no tempo tanto tempo atrás, ou então se ranro tempo arrás numa encruzilhada tivesse ramado uma estrada em vez de o urra e depois de uma longa viagem se enconrrasse no lugar daquele homem e naquela praça. Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma ourra cidade em que ourro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do

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passado: ramos secos. - Você viaja para reviver o seu passado? ( era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: ( Você viaja para reencontrar o seu futuro? E a resposta de Marco: - Os outros l ugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. (id. , 2000:28-29)

Outra bela lição que aprendemos com o pensador alemão diz respeito às tão conhecidas e (humanamente) sofridas noções de passado, presente e futuro. Em suas "Teses sobre filosofia da h istória" (ln: Korhe, 1 99 1 ) , Walter Benjamin diz que o passado não está definitivamente acabado. P ossui fendas. M últiplos pontos de abertura para outros p ossíveis futuros. Cabe ao historiador não apenas consagrar o p assado, mas arualizá-lo no presente para que esses "futuros" deixem de ser possibi­lidades (ver teses VI, XIV e XVIII) . Calvin o mostra-nos que esta é uma tarefa também do poeta-viajante-contador de estórias: conhecer rodas as veredas dos caminhos que se bifurcam e abrir espaço.

A estrutura narrativa d'As cidades invisíveis, palco dos acontecimentos, dialo­gam conosco e assim compomos em perspectivas a leitura da grande obra do mundo. Essas onze propostas de olhar as cidades nos conduzem, como se fossem um código i nterno e secreto ( de um j ogo interpretativo) que anuncia que há um fio condutor que movimenta cada peça, cada engrenagem na cidade, e assim, rodos os discursos remetem-se a outras coisas e , cada coisa conserva outros discursos.

Kublai Khan e Marco Polo não se contentam em olhar e apreender as cidades i nvisíveis, associam enigmas e comentários, contemplando-as de vários pontos de observação e em rodas as suas extensões. Transcendem as ações vivenciadas e valori­zam a experiência passada de pessoa a pessoa (Benjamin, 1 987, v. 1 : 1 98) , conscientes de que as fontes das narrativas (arquétipos e enigmas da memória) e o narrador de relatos sagrados (e comentários profanos) nos guiam por "maravilhas" vistas e esquecidas nas ruínas das p aredes erigidas pelo tempo no espaço (des) contínuo da mente. O narrador-andarilho passeia pelas alamedas da lembrança, percorre cidades i nvisíveis que surgem no ato de contar (na escritura) . Esse eterno estrangeiro que rememora possíveis "fábulas consolatórias", percorre diversas ruas de mãos múltiplas em um vasto império e diz:

- ( . . . ) Às vezes, basta-me uma panícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço

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a cidade perfeita, feira de fragmentos misturados com o resto, de insrames separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta. Se digo que a cidade para qual rende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, você não deve crer que pode parar de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins do seu império; é possível encontrá-la, mas da maneira que eu disse (Calvino, 2000: !49) .

Kublai Khan, soberano que necessitava de notícias de seu melancólico reino. Imperador onipresente que ouvia para governar (os discursos e o reino ) , fazia-se figura presente em cada canto de seus domínios. Freqüentemente se instalava nos jardins, nas escadarias de seus palácios, e ali discutia (para melhor apreender o fio do discurso) as notícias e fatos de seu império, narrativas sobre outras religiões, descrições de outros lugares, histórias do Outro no ato de "ver-a-cidade" invisível, e assim, conhecia­se a si mesmo e seus costumes, partes de uma existência que aspira(va) a ser totalizante:

Com o passar das estações e das missões diplomáticas, Marco adesuou-se na língua tártara e em muitos idiomas de nações e dialeros de tribos. As suas eram as narrativas mais precisas e minuciosas que o Grande Khan poderia desejar, e não havia questão ou curiosidade à qual não respondessem. Contudo, cada notícia a respeito de um lugar trazia à meme do imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo acrescentava um novo sentido ao emblema. O império, pensou Kublai, talvez não passe de um zodíaco de fan tasmas da mente. - Quando conhecer rodos os emblemas ( perguntou a Marco (. conseguirei possuir o meu império finalmente? E o veneziano: - Não creio: nesse dia, Vossa AI reza será um emblema entre os emblemas (Calvino, 2000:26) .

Kublai Khan e Marco Polo, nos jardins dos acontecimentos imperiais (que é o mundo) , nas ruínas suspensas das imagens (dentro das pálpebras) , dialogam sobre os alicerces de estruturas arquitetônicas e arquetípicas. P ara B enjamim, não seria mais possível na modernidade a comunhão entre as pessoas, p ois perderam a capacidade de "dialogar" com os outros e com o próprio espaço da cidade. As cidades invisíveis realizam esse diálogo de forma cosmogônica, ou seja, a relação do ser com o lugar em que habita, desloca-se, ou transporta-se através do olhar torna-se portal de entrada, para os caminhos, calçadas e avenidas. Enquanto passeiam, do lado de dentro da memória afetiva, pelos percursos do devaneio vislumbram, em meio ao cotidiano, rumores . Na contínua b usca do ser, mas imaginam-se sendo outros , em outros lugares e supõem a possibil idade de percorrer uma " unicidade" contínua, ouvindo o discurso, que está ali , à espreita:

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Kublai: Eu também não tenho certeza de estar aqui, passeando em meio às fontes de pérfido, escutando o eco dos jorros de água, e não cavalgando embebido de suor e sangue à frente do meu exército, conquistando os países que você irá descrever, ou decepando os dedos dos agressores que escalam a muralha de uma forraleza assediada.

Polo: Talvez este jardim só exista à sombra das nossas pálpebras cerradas e nunca tenhamos parado: você, de levantar poeira nos campos de batalha, e eu, de negociar sacas de pimenta em mercados distantes, mas, cada vez que fechamos os olhos no meio do alvoroço ou da multidão, podemos nos refugiar aqui vestidos com quimonos de seda para avaliar aquilo que estamos vivendo, fazer as contas, contemplar as distâncias (Calvino, 2000: 9 5-96).

A filosofia que constitui cada diálogo, a abstração que habita " os comentários" desses dois seres (um dia) carnais, recriados por um indivíduo das metrópoles contemporâneas, representa as idéias de habitantes de tempos múltiplos em que o I mpério de Kublai Khan e a Terra tal como é conhecida hoje se fundem. A poesia­filosófica que entrecorta as narrativas representa um espaço ultramarino em que navegar significa ir além dos mares entre Europa, Ásia e África. Mares que hoje se desdobram em um planeta "azul" e redondo, mares que estendem-se pela órbita, pelo cosmos, em que se avista o que Marco P olo nunca poderia imaginar. Essa poesia da metrópole seria o exemplo da simplicidade dos contadores de histórias e representa ao mesmo tempo todos os metropolitanos não só como habitantes de sua cidade natal, mas de várias cidades ao mesmo tempo. Nessa narrativa, também os diálogos, desde o surgimento das vilas até as possíveis cidades-mundo futuras, são contemplados pelo poeta-viajante.

Polo e Khan descobrem e revelam-nos, com leveza, que o reflexo do mundo nos olhos do homem no ato de "contação" seria a primeira imagem que a cidade tem de si mesma.

O viajante-narrador recria as paisagens, ao descrever aquilo que viu. Ele escolhe como e o que deve ser narrado. O absoluto vivido se relativiza no discurso e se desdobra dialeticamente no diálogo fictício. Marco Polo "é daqueles narradores que pertencem à categoria dos que viajam muito e por isso têm muito para contar" (Benjamim, 1 987, v. 1 : 1 98). "Herói" de um tempo em que o mundo era ainda uma grande i ncógnita, ressurge na contemporaneidade como alguém que vem de longe, que conhece, reconhece os outros e , estrangeiro e cidadão-do-mundo ao mesmo tempo, parte para apreender os lugares e compreender as pessoas. Em sua existência nômade leva consigo a premissa de reconhecer sua cidade nas outras, suas dúvidas confrontadas com as dos outros seres e de ver a si mesmo refletido na vidraça, como o homem que andava pelas ruas.

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No diálogo, Kublai Khan é aquele que ouve, pergunta, responde, comenta, duvida, imagina e "palavra" as cidades de seu reino. É aquele que escuta com prazer os relatos do outro e que, sem viajar ou passear pelo " im pério" , deseja conhecer suas tradições e contradições. O viajante-ouvidor recria as paisagens gravadas e descritas, fixando-as por meio de imagens de imagens, imaginando aquilo que não viu, consciente de que "quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido" (Calvino, 2000: 1 23) .

Todas as cidades que esse o "comentador de historicidades" inscreve na condição de marinheiro-comerciante são vilas de seu domínio discursivo e, mesmo distante delas, ele sente uma relação íntima (ligada ao poder e à possível expansão comercial, geográfica e humana) . Ele é responsável pela (construção da) arquitetura sensível dessas megalópoles: espaços concretos e vazios ao mesmo tempo, feitos de tensões invisíveis, lembranças dos falares e "calares" que compõem o adas narrativo: " Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pó rticos, de quais lâminas de zinco são reco bertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada" (Calvino, 2000 : 1 4) . M arco Polo possui as cidades em si mesmo , por conhecê-las e por transformá-las em narrativas percebe que "a cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acon­tecimentos do passado" (Calvino, 2000: 14) .

Kublai Khan, o " imperador sedentário " , conhece possuindo, imaginado, ouvindo e considerando as ruínas e os arranha-céus nas narrativas de seu embaixa­dor-viajante predileto. Ele busca, pela elaboração de regras, enquanto j oga com os enigmas das cidades invisíveis, compreender a ordem que rege os discursos e as cidades: "A certo momento Kublai Cã personifica a tendência racio nalizante, geometrizante ou algebrizante do intelecto ( . . . )"(Calvino, 1 990: 86) . A memória do narrado ao ser ouvido transforma-se em " regra" , desej o de visualizar o invisível. A narrativa relacionada com a recordação desdobra-se n o homem que confronta os próprios medos e, assim, enuncia "propostas" para visibilizar:

- Enrretamo, consrruí na minha meme um modelo de c idade do qual exrrair rodas as cidades possíveis ( disse Kublai. ( Ele contém rudo o que vai de acordo com as normas. Uma vez que a cidades que existem se afastam da norma em diferentes graus, basta prever as exceções à regra e calcular as combinações mais prováveis (Calvino, 2000: 67).

O escritor italiano, com esses " tipos arcaicos" insere-se na tradição e reinventa­a. D iante de um i m pério melancolicame nte fal i d o (possível referência à contemporaneidade) , o "reino narrativo [de Calvino] é compreendido pela soma

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dos saberes do ser sedentário com os saberes das terras distantes traduzidos pelo discurso do ser nômade" (Benjamim, 1 987, v. 1 : 1 99). Nessa dimensão que funde as duas tradições, equaciona-se uma terceira via: a do discurso invisível que exprime a "tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas" (Calvino,

1 990: 85) na cidade. Ruínas passadas coexistem, reconstroem arquiteturas presentes:

- Ao passo que medianre o seu gesto as cidades erguem muralhas perfeiras, eu recolho as cinzas das ouuas cidades possíveis que desapareceram para ceder-lhe o lugar e que agora não poderão ser reconsrru ídas nem recordadas . Somente conhecendo o resíduo da infelicidade que nenhuma pedra preciosa conseguirá ressarcir é que se pode compurar o número exaro de quilares que o diamante final deve conter, para não exceder o cálculo do projeto inicial (Calvino, 2000: 5 8 ) .

A matéria fragmentada que compõe a passagem invisível do tempo, enquanto a cidade está sendo " discernida", pode se transformar em espaço na narrativa. Basta que o contador de histórias não se deixe empurrar pela tempestade de progresso como o anjo de Klee interpretado por Benjamin (tese IX) , mas que, diante das ruínas-mundo, o poeta, assim como o historiador, detenha-se a recolher com paciência e atenção os pedaços de vida e futuro espalhados. Evanescente, toda cidade é absoluta, somente no olhar do viajante, às vezes flâneur, outras vezes poeta, é que ela se relativiza, traspassa as fronteiras.

Figurando um andarilho que viaja fisicamente, Marco Polo é, ao mesmo tempo o ser que "viaja" e que conhece as cidades na prática, ou seja, como negociante, como estrangeiro, como diplomata, como poeta; contando sua experiências, narrando h istórias ao G rande Khan, ditando a Rusticiano, que escreve a edição de Ii milione ( O livro das maravilhas) , contando oralmente sua experiência ao voltar à sua cidade natal (Veneza) reescreve, enfim, a nós (simples leitores) , as maravilhas invisíveis que se transformam em "vozescritas" no livro d'As cidades in visíveis:

- Eu falo, falo [ diz Marco] , mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja. Uma é a descrição do mundo à qual você empresra a sua bondosa atenção, ouua é a que correrá os campanários de descarregadores e gondoleiros às margens do canal diante da minha casa no dia do meu retorno, ourra ainda a que poderia dirar em idade avançada se fosse aprisionado por piraras genoveses e colocado aos ferros na mesma cela que um escriba de romances de aventuras (Calvino, 2000: 1 23) .

Marco P olo representa ainda o escritor como contador de "historicidades" que acredita na possibilidade de um "desinferno". Ele une o saber, a lógica do pensamento que abarca a h istória, a arquitetura, as fronteiras, ao sentir sentido, ao sentimento

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poético acerca das cidades-femininas, de desejos e segredos com n uanças contínuas que nos levam por ruas-sem-saída, mulheres-quase-muralhas, limites-folhas-de-livros, horizontes-linhas-palavras, mulheres que desejamos encontrar de novo e viaja, como afirma o narrador de O caminho de Swann, "( . . . ) como os que seguem viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam ser possível desfrutar , em uma realidade o encanto do sonho" (Proust, 2002: 22).

Por seu turno, o espírito sistemático apresentado pelo imperador busca por meio da elaboração de "modelos" (quebra-cabeças, tabuleiros e atlas) apreender as cidades. E, a partir das imagens (observadas, descritas, percorridas) narradas por Marco Polo , permitir que seu pensamento lógico, crítico, seja obrigado a utilizar (estas) convenções imaginárias, experiências agenciadas, que (na realidade) dotadas de razão e erigidas como verdades literárias transportam o ouvinte. A melancolia do imperador é facultada pelas experiências (silenciosas) urbanas que, ao mesmo tempo em que promovem " uma evolução" , conduzem os seres urbanos a um caminho cada vez mais acentuado de desigualdade, perda da liberdade e à ausência de possibi­lidade de luta por um mundo menos infernal: o mundo torna-se uma prisão. Kublai Khan , na sua busca de ver o invisível pensa, sonha, imagina:

É o seu próprio peso que está esmagando o império", pensa Kublai, e em seus sonhos agora aparecem cidades leves como pipas, cidades esburacadas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros, cidades-fibra-de-folha, cidades-linha-da-mão, cidades­filigrana que se vêem arravés de sua espessura opaca e fiaícia (Calvino, 2000: 69-70).

A poesia de cada cidade possibilita experiências, indica a forma pela qual essa matéria essencialmente urbana transforma os elementos dos silêncios (de possíveis "palomares") e transporta através das diversas formas de "ver-a-cidade" em cidades contadas e narradas. Seguindo leituras, entre metáforas que se bifurcam, a pluri­significação que não é pensada, mas que é sentida no instante mesmo em que andamos-lemos pelas rotas visíveis, nos permite vislumbrar o i nvisível. Não há uma certeza, não há uma razão; a voz narrativa do discurso invisível, ao nos oferecer "meros conselhos", comunica sentidos que, na leveza, torna cada palavra um instante exato de reconhecimento de algo dentro das cidades reais ou imaginadas.

Os diversos olhares tornam possíveis ao leitor reconhecer, nesse conj unto de emblemas entre emblemas formados pelos seres humanos e urbanos, as (onze) nuanças que compõem cada forma de "palavrar" cidades invisíveis, pois ii libra si discute e si in terroga mentre si fa (Calvino, 1 993: ix) . Visitar As cidades in visíveis de Calvino é fazer uma viagem composta de in úmeros passeios por discursos. A narrativa de

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Calvino, ao mesmo tempo que n os guia por cidades imaginárias que crescem com leveza, nos guia pela eterna contradição humana que formamos, todos os dias estando j untos. Sua estética é dúplice: a natureza "humana" convivendo com a "natureza" urbana. Negam-se, contra-argumentam, concordam . . . e ass im se compõem i n interruptamente. É um texto literário que reinventa uma "aura poética" na contemporaneidade. Nos diálogos e nas contaçóes-narraçóes de histórias-experiências, instaura-se um divertido e envolvente j ogo de sentimentos ocultos na cidade-mundo: quando cidade, enigma; quando ser urbano, respostas.

REFER�NCIAS B IBLIO GRÁFI CAS

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