AUTO DA BARCA DO PURGATRIO (Fragmento)GIL VICENTEVem um Lavrador com seu arado s costas, e diz: Lavrador. Que isto? C chega o mar?

Ora forte cagio. Diabo. Alto, sus, quereis passar? Ponde i o chapeiro, e ajudareis a botar. Lavrador. e cheo de refregreo, e no posso, mal pecado. Diabo. Pe eram i o arado. Lavrador. Perm esse gro mestreo. 130 Da morte venh'eu cansado, 125

S'eu trouguera mais vagar sorrira-me eu tamalavez. Diabo. El vs, vilo, quereis zombar? 135 Se vos eu arrebatar? Lavrador. Com'eu a morte passei, logo o medo ficou finto, enha cdola amanhei, 140 e meus negcios deixei como homem de b retinto. Nem fico a dever duas favas, nem um preto por pagar. Diabo. E os marcos que mudavas, dize, por que os no tornavas outra vez a seu lugar? Dou-t'-eu muito de mau ms.

Lavrador.

E quem tirava do meu

os meus marcos quantos so, e os chentava no seu, dize, pulga de Judeu, que lhe dezias tu er ento? Diabo. Postes o mais roim vilo!... Lavrador. Bof, salvanor salvado vs mentis coma cabro; quer me queiras mal, quer no, no dou por isso um cornado. Diabo. Pois por que vens carregado? Lavrador. Porque seja conhecido

por lavrador muito honrado. E tenho a glria merecido: que sempre fui perseguido, e vivi mui trabalhado. H i, pesar no de so, afcio mais fortunado? Diabo. Pois pera que o vilo? Lavrador. Todos ns vimos d'Andro

Diabo. Pousa, pousa ai o arado. Lavrador. Juro a So Junco sagrado

que te chante um par de quedas. Diabo. Aqui hs d'ir embarcado. 145 150 155 160 165 170

127. BOTAR: pr o barco na gua. 140. ENHA CDOLA AMANHEI: fiz o meu testamento. 142. DE B RETINTO: de bem.

E VIVI MUI TRABALHADO: e sofri muito.

PESAR NO DE SO: uma praga. 167. D'ANDRO: em vez de de Ado; mais um exemplo da laia rstica do Lavrador.

112 GIL VICENTE Lavrador. Vai beijar o meu bragado antr'as sedas. Diabo. Lavrador. Diabo. Que vilo to descorts! E vs sois mui deneguil! Dou eu j ora decho o fregus. Dom vilo, comigo ires onde esto de vs dez mil. Anjo. Lavrador. Anjo. Lavrador. Anjo. Lavrador. E vs, dum rosto de fonil, cuidreis que sois algum? Vinde c, homem de bem; pera onde quereis ir? Queria passar alm, pera a glria do Senhor. 190 Samica de l seres? E vens tu merecedor? E que fez l o lavrador, para andar c travs? Pode ser mui austinado, e no querer-se arrepender. Bof, Senhor, mal pecado, sempre morto quem do arado h de viver. 195 200 Ns somos vida das gentes, e morte de nossas vidas; a tiranos, pacientes, que a unhas e a dentes nos tm as almas rodas. Pera que parouvelar? Que queira ser pecador

177 e 179. DOM i/s. DOM: era corrente na Pennsula Ibrica antepor dom l dom, dbjh, Dona, Doa). an *~*~- --= Anjo. Lavrador. ANTOLOGIA o lavrador, no tem tempo nem logar nem somente d'alimpar as gotas do seu suor. N'ergueija bradam co'ele porque assoviou a um co; e logo a excomunho na pele. O fidalgo, maar nele, ata o mais triste rasco. Se no levam torta a mo, no lhe acham nenhum dereito. Muito atribulados so! Cada um pela o vilo per seu jeito. Trago a prepsito isto, perque veo a bem de fala. 112 GIL VICENTE Lavrador. Vai beijar o meu bragado antr'as sedas. Diabo. Lavrador. Diabo. Que vilo to descorts! E vs sois mui deneguil! Dou eu j ora decho o fregus. Dom vilo, comigo ires onde esto de vs dez mil. Anjo. Lavrador. Anjo. Lavrador. Anjo. Lavrador. E vs, dum rosto de fonil, cuidreis que sois algum? Vinde c, homem de bem; pera onde quereis ir? Queria passar alm, pera a glria do Senhor.

190 Samica de l seres? E vens tu merecedor? E que fez l o lavrador, para andar c travs? Pode ser mui austinado, e no querer-se arrepender. Bof, Senhor, mal pecado, sempre morto quem do arado h de viver. 195 200 Ns somos vida das gentes, e morte de nossas vidas; a tiranos, pacientes, que a unhas e a dentes nos tm as almas rodas. Pera que parouvelar? Que queira ser pecador 177 e 179. DOM i/s. DOM: era corrente na Pennsula Ibrica antepor dom l dom, dbjh, Dona, Doa). an *~*~- --= Anjo. Lavrador. ANTOLOGIA o lavrador, no tem tempo nem logar nem somente d'alimpar as gotas do seu suor. N'ergueija bradam co'ele porque assoviou a um co; e logo a excomunho na pele. O fidalgo, maar nele, ata o mais triste rasco. Se no levam torta a mo, no lhe acham nenhum dereito. Muito atribulados so! Cada um pela o vilo per seu jeito. Trago a prepsito isto, perque veo a bem de fala. Manifesto est e visto que o bento Jesu Cristo deve ser homem de gala. E rezo que nos valha neste sero glorioso, que gro refgio sem falha. Isto me faz foroso, e no estou temeroso nemigalha. Que bens fizeste na vida,

que te sejam c guiantes? Ia ao bodo da ermida cada santa Margarida, 114 GIL VICENTE e deva esmola aos andantes; benzia-me pola menh, levava o Crdo at' cabo. Diabo. Depois tomavas a l da mais e a mais s, e davas dzimo a do rabo tmpora. E o mais fraco cabrito, e o frango ofegoso com repetenado esprito. Lavrador. Oh fideputa maldito 240 235 230

triste avezimau tinhoso, lano pecador e errado! No vai no me dezimei? Dize, sabujo pelado! Diabo. Tornaste tu o mal levado? Lavrador. Si, tornei. 245

E de tudo fiz aquesta, como homem diz, avantairo: leixei cura a enha besta. Abonda que nem aresta ter comigo o cossairo. Um anal e um trintairo, 250

com raponsos, ladainhas: a Gil fiz todo repairo com missas d'aniversairo trinta dias. Perol que dizeis vs l? 235. A DO RABO: a pior. ANTOLOGIA Sejo eu como deve ser, ou que modo se ter? Anjo. mui caro d'haver c 255

aquele eternal prazer. Lavrador. J o eu l ouvi dizer, perol o evangelho diz: quem for bautizado e crer, salvos es: ora dizer, sede juiz. Pois quia infernus es, nulla redencia h i; vede vs o que dizeis, que a mim j me pruem os ps, pera me passar daqui. Anjo. Digo que andes assi

purgando nessa ribeira, at que o Senhor Deus queira que te levem pera si nesta bateira. Lavrador. Bof, logo quisera eu,

que m'atromenta este arado; e dera muito do meu, pois que j hei de ser seu, tirar-me deste cuidado. mundo, mundo enganado, vida de to poucos dias, to breve tempo passado, tu me trouveste enganado, e me mentias! 265. SALVOS ES: em vez de salvus es t: est salvo. 270. PRUEM OS PS: cocam os ps (de estar parado).

260 265 270 275 280 285 116 G/L VICENTE Diabo. Ind'esta barca no nada? Que festa esta pera mi! Nunca tal balcarriada, nem mar to desestrada nesta ribeira no vi. 290