Auto Barca Inferno

34
1 AUTO DA BARCA DO INFERNO Auto de Moralidade composto per Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor, nossa senhora, e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Comença a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet 1 , um deles passa pera o paraíso, e o outro pera o Inferno; os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do Paraíso um Anjo, e o do Infer- no um Arrais infernal e um Companheiro. PASSAGEIROS: Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro, Alcouveteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado, quatro Cavaleiros. O primeiro entrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo 2 mui comprido e ~ ua cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha. DIABO À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré! — Ora venha o caro 3 a ré 4 ! COMPANHEIRO Feito, feito! DIABO Bem está! Vai tu muitieramá 5 , atesa 6 aquele palanco 7 e despeja aquele banco pera a gente que vinrá. À barca, à barca, hu-u! Asinha 8 , que se quer ir! Oh! que tempo de partir, louvores a Berzebu! — Ora, sus 9 !, que fazes tu? Despeja todo esse leito! (1) Advérbio latino: evidentemente; (2) cauda do manto; (3) parte inferior das vergas das velas; (4) no sentido da popa; (5) imprecação: em muito má hora; (6) estica; (7) corda da vela; (8) depressa; (9) eia!, vamos! .

Transcript of Auto Barca Inferno

1

AUTO DA BARCA DO INFERNO

Auto de Moralidade composto per Gil Vicente por contemplação da sereníssimae muito católica rainha dona Lianor, nossa senhora, e representado per seu mandadoao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

Comença a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presenteauto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente aum rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naqueleporto estão, scilicet1, um deles passa pera o paraíso, e o outro pera o Inferno; osquais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do Paraíso um Anjo, e o do Infer-no um Arrais infernal e um Companheiro.

PASSAGEIROS: Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro, Alcouveteira,Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado, quatro Cavaleiros.

O primeiro entrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje que lhe levaum rabo2 mui comprido e ~ua cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Infernoante que o Fidalgo venha.

DIABO À barca, à barca, houlá!que temos gentil maré!— Ora venha o caro3 a ré4!

COMPANHEIRO Feito, feito!DIABO Bem está!

Vai tu muitieramá5,atesa6 aquele palanco7

e despeja aquele bancopera a gente que vinrá.

À barca, à barca, hu-u!Asinha8, que se quer ir!Oh! que tempo de partir,louvores a Berzebu!— Ora, sus9!, que fazes tu?Despeja todo esse leito!

(1) Advérbio latino: evidentemente; (2) cauda do manto; (3) parte inferior das vergas dasvelas; (4) no sentido da popa; (5) imprecação: em muito má hora; (6) estica; (7) corda da vela;(8) depressa; (9) eia!, vamos!

.

2

COMPANHEIRO Em boa hora! Feito, feito!DIABO Abaxa má-hora esse cu!

Faze aquela poja1 lesta2

e alija3 aquela driça4.COMPANHEIRO Ôh-ôh, caça! Ôh-ôh, iça! iça!

DIABO Oh, que caravela esta!Põe bandeiras, que é festa.Verga alta! Âncora a pique!— Ó poderoso dom Anrique,cá vindes vós? Que cousa é esta?

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO Esta barca onde vai ora,que assi está apercebida?5

DIABO Vai pera a ilha perdida6

e há-de partir logo ess’ora7.FIDALGO Pera lá vai a senhora8?

DIABO Senhor, a vosso serviço.FIDALGO Parece-me isso cortiço9…

DIABO Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO Porém, a que terra passais?DIABO Pera o Inferno, senhor.

FIDALGO Terra é bem sem-sabor.DIABO Quê? E também cá zombais?

FIDALGO E passageiros achaispera tal habitação?

DIABO Vejo-vos eu em feiçãopera ir ao nosso cais10…

(1) corda para virar a vela; (2) frouxa; (3) alivia; (4) cabo para içar as velas; (5) Aparelhada,pronta para a partida; (6) Inferno (eufemismo); (7) imediatamente; (8) o Fidalgo confunde oDiabo com uma senhora; (9) embarcação pobre; (10) Inferno (eufemismo).

.

3

FIDALGO Parece-te a ti assi.DIABO Em que esperas ter guarida?1

FIDALGO Que leixo2 na outra vidaquem reze sempre por mi.

DIABO Quem reze sempre por ti!…Hi hi hi hi hi hi hi hi!…E tu viveste a teu prazer,cuidando cá guarecer3

por que rezem lá4 por ti?

Embarcai! Hou! Embarcai,que haveis de ir à derradeira.Mandai meter a cadeira,que assi passou vosso pai.

FIDALGO Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?DIABO Vai ou vem, embarcai prestes!

Segundo lá escolhestes,assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,haveis de passar o rio.

FIDALGO Não há aqui outro navio?DIABO Não, senhor, que este fretastes,

e primeiro que espirastesme destes logo sinal.

FIDALGO Que sinal foi esse tal?DIABO Do que vós vos contentastes.

FIDALGO A estoutra barca me vou.— Hou da barca! Para onde is?Ah, barqueiros! Não me ouvis?Respondei-me! Houlá! Hou!

(1) protecção; (2) deixo; (3) encontrar a salvação; (4) na Terra..

4

(Par Deos1, aviado2 estou!Cant’a isto3 é já pior…Que jiricocins4, salvanor5!Cuidam que são eu grou?)6

ANJO Que quereis?FIDALGO Que me digais,

pois parti tão sem aviso,7se a barca do Paraísoé esta em que navegais.

ANJO Esta é; que demandais?FIDALGO Que me leixeis embarcar.

Sou fidalgo de solar,8é bem que me recolhais.

ANJO Não se embarca tiranianeste batel divinal.

FIDALGO Não sei porque haveis por malque entr’a minha senhoria…

ANJO Pera vossa fantesia9

mui estreita é esta barca.FIDALGO Pera senhor de tal marca

nom há aqui mais cortesia?

Venha prancha e atavio10!Levai-me desta ribeira!

ANJO Não vindes vós de maneirapera ir neste navio.Essoutro vai mais vazio:a cadeira entraráe o rabo caberáe todo vosso senhorio.

(1) Realmente; (2) bem arranjado (sentido irónico); (3) quanto a isto; (4) asnos; (5) com sualicença; (6) «Cuidam que são eu grou?»: Julgam que não mereço atenção nem resposta pron-ta?; (7) inesperadamente; (8) de linhagem nobre e antiga; (9) vaidade; (10) apetrechos.

.

5

Vós ireis mais espaçosocom fumosa1 senhoria.cuidando2 na tiraniado pobre povo queixoso;e porque, de generoso3,desprezastes os pequenos,Achar-vos-eis tanto menos4

quanto mais fostes fumoso.

DIABO À barca, à barca, senhores!Oh! que maré tão de prata!Um ventezinho que matae valentes remadores!

Diz, cantando:

Vós me veniredes a la mano,a la mano me veniredes.

FIDALGO Ao Inferno todavia!Inferno há i pera mi?Ó triste! Enquanto vivinão cuidei que o i havia.Tive que era fantesia;5folgava ser adorado;confiei em meu estado6

e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremosesta barca de tristura.

DIABO Embarque a vossa doçura,que cá nos entenderemos…Tomarês um par de remos,

(1) Vaidosa; (2) pensando; (3) nobre; (4) subentende-se: menos digno de entrar na Barca daGlória; (5) invenção; (6) condição social.

.

6

veremos como remais,e, chegando ao nosso cais,todos bem vos serviremos.

FIDALGO Esperar-me-ês vós aqui,tornarei à outra vidaver minha dama queridaque se quer matar por mi.

DIABO Que se quer matar por ti?FIDALGO Isso bem certo o sei eu.

DIABO Ó namorado sandeu,1o maior que nunca vi!

FIDALGO Como pod’rá isso ser,que m’escrivia mil dias?

DIABO Quantas mentiras que liase tu… morto de prazer!

FIDALGO Pera que é escarnecer,que nom havia mais no bem?2

DIABO Assi vivas tu, amen,como te tinha querer!

FIDALGO Isto quanto ao que eu conheço…DIABO Pois estando tu espirando,

se estava ela requebrandocom outro de menos preço.3

FIDALGO Dá-me licença, te peço,que vá ver minha mulher.

DIABO E ela, por não te ver,despenhar-se-á dum cabeço.

(1) Tolo, ingénuo; (2) não podia querer-me mais; (3) valor..

7

Quanto ela hoje rezou,antre seus gritos e gritas,foi dar graças infinitasa quem a desassombrou.1

FIDALGO Quanto ela, bem chorou!DIABO Nom há i choro de alegria?

FIDALGO E as lástimas que dezia?DIABO Sua mãe lhas ensinou.

Entrai! Entrai! Entrai!Ei-la prancha! Ponde o pé.

FIDALGO Entremos, pois que assi é.DIABO Ora, senhor, descansai,

passeai e suspirai.Entanto vinrá mais gente.

FIDALGO Ó barca, como és ardente!Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

DIABO Nom entras cá! Vai-te d’i!A cadeira é cá sobeja:cousa que esteve na igrejanom se há-de embarcar aqui.Cá lha darão de marfim,marchetada2 de dolores,com tais modos de lavores3,que estará fora de si…4

À barca, à barca, boa gente,que queremos dar a vela!Chegar a ela! Chegar a ela!Muitos e de boa mente!Oh! que barca tão valente!

(1) aliviou; (2) Com embutidos; (3) trabalhos, sofrimentos, (4) que ficará transtornado..

8

Vem um Onzeneiro1, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

ONZENEIRO Pera onde caminhais?DIABO Oh! que má-hora venhais,

onzeneiro, meu parente!

Como tardastes vós tanto?ONZENEIRO Mais quisera eu lá tardar…

Na safra2 do apanharme deu Saturno quebranto.3

DIABO Ora mui muito m’espantonom vos livrar o dinheiro!

ONZENEIRO Solamente pera o barqueironom me leixaram nem tanto…4

DIABO Ora entrai, entrai aqui!ONZENEIRO Não hei eu i d’embarcar!

DIABO Oh! que gentil recear,e que cousas pera mi!

ONZENEIRO Ainda agora faleci,leixa-me buscar batel!Pesar de São Pimentel,Nunca tanta pressa vi!

Pera onde é a viagem?

DIABO Pera onde tu hás-de ir.ONZENEIRO Havemos logo de partir?

DIABO Não cures de mais linguagem.5ONZENEIRO Pera onde é a passagem?

.(1) o que empresta dinheiro a um juro excessivo; (2) quando andava a amealhar dinheiro;(3) morri; (4) não me deixaram sequer uma moeda para dar ao barqueiro; (5) Escusas de falarmais.

.

9

DIABO Pera a infernal comarca.ONZENEIRO Dix!1 Nom vou eu em tal barca.

Estoutra tem avantagem.

[Vai-se à barca do Anjo e diz:]

Hou da barca! Houlá! Hou!Havês logo de partir?

ANJO E onde queres tu ir?ONZENEIRO Eu pera o Paraíso vou.

ANJO Pois cant’eu mui fora estoude te levar para lá.Essa barca que lá estávai pera quem te enganou.

ONZENEIRO Porquê?ANJO Porque esse bolsão2

tomara todo o navio.ONZENEIRO Juro a Deos que vai vazio!

ANJO Não já no teu coração.ONZENEIRO Lá me fica de rodão3

minha fazenda e alhea.ANJO Ó onzena4, como es fea

e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO Houlá! Hou Demo barqueiro!Sabês vós no que me fundo?Quero lá tornar ao mundoe trarei o meu dinheiro.

(1) já disse; (2) bolsa grande para guardar o dinheiro; (3) à mistura, em confusão; (4) juro de11%, o que, na época era excessivo, usura.

.

10

Aqueloutro marinheiro,porque me vê vir sem nada,dá-me tanta borregada1

como arrais lá do Barreiro.

DIABO Entra, entra! Remarás!Nom percamos mais maré!

ONZENEIRO Todavia…DIABO Per forç’é!

Que te pês2, cá entrarás!Irás servir Satanásporque sempre te ajudou.

ONZENEIRO Ó triste, quem me cegou?DIABO Cal’-te, que cá chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, que achou o Fidalgo embarcado, diz,tirando o barrete:

ONZENEIRO Santa Joana de ValdêsCá é vossa senhoria?

FIDALGO Dá ò demo a cortesia!DIABO Ouvis? Falai vós cortês!

Vós, fidalgo, cuidareisque estais na vossa pousada?Dar-vos-ei tanta pancadacom um remo, que renegueis!

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

JOANE Hou daquesta!DIABO Quem é?JOANE Eu sô.

É esta a naviarra3 nossa?DIABO De quem?

(1) insulto, pancada; (2) «Que te pês» — ainda que te custe; (3) grande navio, barco reles..

11

JOANE Dos tolos.DIABO Vossa.

Entra!JOANE De pulo ou de vôo?

Hou! Pesar de meu avô!1

Soma:2 vim adoecere fui má-hora a morrer,e nela, pera mi só.

DIABO De que morreste?JOANE De quê?

Samicas3 de caganeira.DIABO De quê?JOANE De cagamerdeira,

má ravugem4 que te dê!DIABO Entra! Põe aqui o pé!JOANE Houlá! Num tombe o zambuco!5

DIABO Entra, tolaço enuco,que se nos vai a maré!

JOANE Aguardai, aguardai, houlá!E onde havemos nós d’ir ter?

DIABO Ao porto de Lucifer.JOANE Ha-a-a…DIABO Ò Inferno! Entra cá!JOANE Ò Inferno? Eramá!6

Hiu! Hiu! Barca do cornudo.Pero Vinagre, beiçudo,rachador d’Alverca, huhá!

(1) com mil diabos!; (2) em suma; (3) provavelmente; (4) espécie de sarna; (5) pequena embar-cação indiana; empregada, aqui, com sentido depreciativo; (6) Em má hora.

.

12

Sapateiro da Candosa!Antrecosto de carrapato!1

Hiu! Hiu! Caga no sapato,filho da grande aleivosa!2

Tua mulher é tinhosae há-de parir um sapochentado3 no guardenapo!Neto de cagarrinhosa!

Furta-cebola! Hiu! Hiu!Escomungado nas erguejas!Burrela, cornudo sejas!Toma o pão que te caío!A mulher que te fugioper’a Ilha da Madeira!Cornudo atá mangueira,toma o pão que te caío!

Hiu! Hiu! Lanço-te ua pulha!Dê-Dê! Pica nàquela!Hump! Hump! Caga na vela!Hio, cabeça de grulha!Perna de cigarra velha,caganita de coelha,pelourinho de Pampulha!Mija n’agulha, mija n’agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo, e diz:

JOANE Hou da barca!ANJO Que me queres?

JOANE Queres-me passar além?ANJO Quem és tu?

JOANE Samica alguém.

(1) espécie de piolho; (2) falsa, adúltera; (3) colocado..

13

ANJO Tu passarás, se quiseres;porque em todos teus fazeresper malícia nom erraste.Tua simpreza t’abastepera gozar dos prazeres.

Espera entanto per i;veremos se vem alguémmerecedor de tal bemque deva de entrar aqui.

Vem um Sapateiro com seu avental, e carregado de formas, e chega aobatel infernal, e diz:

SAPATEIRO Hou da barca!DIABO Quem vem i?

Santo sapateiro honrado!Como vens tão carregado?1

SAPATEIRO Mandaram-me vir assi…

E pera onde é a viagem?DIABO Pera o lago dos danados.2

SAPATEIRO Os que morrem confessados,onde têm sua passagem?

DIABO Nom cures de mais linguagem!Esta é tua barca, esta!

SAPATEIRO Arrenegaria eu da festae da puta da barcagem!

Como poderá isso ser,confessado e comungado?

DIABO E tu morreste escomungado:nom o quiseste dizer.

(1) Carregado de formas e de pecados (ambiguidade); (2) Inferno..

14

Esperavas de viver;calaste dous mil enganos.Tu roubaste bem trint’anoso povo com teu mester.1

Embarca, eramá pera ti,que há já muito que t’espero!

SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero!DIABO Que te pês, hás-de ir, si, si!

SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi,nom me hão elas de prestar?

DIABO Ouvir missa, então roubar —é caminho per’aqui.

SAPATEIRO E as ofertas2, que darão?E as horas dos finados?3

DIABO E os dinheiros mal levados,que foi da satisfação?4

SAPATEIRO Ah! nom praza ò cordovão,5nem à puta da badana6,se é esta boa traquitana7

em que se vê Joanantão!8

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Hou da santa caravela,poderês levar-me nela?

ANJO A cárrega9 t’embaraça.

(1) profissão; (2) Dinheiro dado à Igreja; (3) orações pelos defuntos; (4) indemnização; (5) cou-ro de cobra, curtido, para calçado; (6) pele de ovelha, curtida, para calçado; (7) veículo ordiná-rio; aqui, refere-se à Barca do Diabo; (8) nome do sapateiro, que fala dele próprio na 3.a pessoa;(9) carga (de formas e de pecados).

.

15

SAPATEIRO Nom há mercê que me Deos faça?Isto uxiquer irá.1

ANJO Essa barca que lá estáleva quem rouba de praça.2

Oh as almas embaraçadas!SAPATEIRO Ora eu me maravilho

haverdes por grão peguilho3

quatro forminhas cagadasque podem bem ir i chantadasnum cantinho desse leito!

ANJO Se tu viveras dereito,elas foram cá escusadas.

SAPATEIRO Assi que determinaisque vá cozer ò Inferno?

ANJO Escrito estás no cadernodas ementas infernais.

Torna-se à barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO Hou barqueiros! Que aguardais?Vamos, venha a prancha logoe levai-me àquele fogo!Não nos detenhamos mais!

Vem um Frade com ua Moça pela mão, e um broquel4 e ua espada naoutra, e um casco5 debaixo do capelo6; e, ele mesmo fazendo a baixa7, come-çou de dançar, dizendo:

FRADE Tai-rai-rai-ra-rã, ta-ri-ri-rã,ta-rai-rai-rai-rã, tai-ri-ri-rã,tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhã!

(1) isto caberá em qualquer parte; (2) descaradamente; (3) obstáculo; (4) Pequeno escudo; (5)capacete; (6) capuz; (7) trauteando a música de uma dança baixa.

.

16(1) dança de uma ária a três tempos; (2) tocarei; (3) obstáculo; (4) dado aos prazeres do mun-do; (5) Diabo; (6) Espantado.

.

DIABO Que é isso, padre? Que vai lá?FRADE Deo gratias! Som cortesão.DIABO Sabês também o tordião?1

FRADE Porque não? Como ora sei!DIABO Pois, entrai! Eu tangerei2

e faremos um serão.

Essa dama, é ela vossa?FRADE Por minha la tenho eu,

e sempre a tive de meu.DIABO Fezestes bem, que é fermosa!

E não vos punham lá grosa3

no vosso convento santo?FRADE E eles fazem outro tanto!DIABO Que cousa tão preciosa!

Entrai, padre reverendo!FRADE Para onde levais gente?DIABO Pera aquele fogo ardente

que nom temestes vivendo.FRADE Juro a Deos que nom t’entendo!

E este hábito no me val?DIABO Gentil padre mundanal,4

a Berzabu5 vos encomendo!

FRADE Ah, Corpo de Deos consagrado!Pela fé de Jesu Cristo,que eu nom posso entender isto!Eu hei-de ser condenado?Um padre tão namoradoe tanto dado a virtude?Assi Deos me dê saúde,que eu estou maravilhado!6

17

DIABO Não curês de mais detença.1Embarcai e partiremos:tomareis um par de remos.

FRADE Nom ficou isso n’avença.2DIABO Pois dada está já a sentença!FRADE Par Deos! Essa seri’ela!3

Não vai em tal caravelaminha senhora Florença.

Como? Por ser namoradoe folgar com ua mulherse há um frade de perder,com tanto salmo4 rezado?

DIABO Ora estás bem aviado!FRADE Mais estás bem corregido!5

DIABO Devoto padre marido,haveis de ser cá pingado…6

Descobrio o Frade a cabeça, tirando o capelo, e apareceo o casco, e dizo Frade:

FRADE Mantenha Deos esta coroa!DIABO Ó padre Frei Capacete!

Cuidei que tínheis barrete!FRADE Sabê que fui da pessoa!7

Esta espada é roloa8

e este broquel rolão.DIABO Dê Vossa Reverença lição

d’esgrima, que é cousa boa!

(1) Demora; (2) acordo; (3) era o que faltava!; (4) orações contadas; (5) mais bem aviado estástu!; (6) torturado com pingos de gordura a ferver; (7) pessoa importante; (8) digna de Roland,herói medieval, cuja espada inquebrável ficou célebre.

.

18

Começou o Frade a dar lição d’esgrima com a espada e broquel, queeram d’esgrimir, e diz desta maneira:

FRADE Deo gratias!1 Demos caçada!Pera sempre contra sus!2

Um fendente! Ora sus!3

Esta é a primeira levada.4Alto! Levantai a espada!Talho largo, e um revés!5

E logo colher os pés,6que todo o al no é nada.

Quando o recolher se tardao ferir nom é prudente.Ora, sus! Mui largamente,cortai na segunda guarda!7

— Guarde-me Deos d’espingardamais de homem denodado.Aqui estou tão bem guardadocomo a palha n’albarda.

Saio com meia espada…Houlá! Guardai as queixadas!

DIABO Ó que valentes levadas!FRADE Ainda isto nom é nada…

Dêmos outra vez caçada!Contra sus e um fendente,e cortando largamente,eis aqui seista feitada.

(1) Graças a Deus; neste passo pode talvez entender-se como exclamação de júbilo, com o sen-tido aproximado de: «Ora vamos lá a isto!»; (2, 3, 4, 5, 6, 7) referências a termos técnicoscaracterísticos da esgrima.

.

19

Daqui saio com ua guiae um revés da primeira:esta é quinta verdadeira.— Oh! quantos d’aqui feria!Padre que tal aprendiano Inferno há-de haver pingos?Ah! nom praza a São Domingoscom tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

FRADE Vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel doAnjo desta maneira:

FRADE Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-ri-rã;tai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.Huhá!

Deo gratias! Há lugar cáper minha reverença?E a senhora Florençapolo meu entrará lá!

JOANE Andar, muitieramá!Furtaste o trinchão, frade?

FRADE Senhora, dá-me a vontadeque este feito mal está.

Vamos onde havemos d’ir,não praza a Deos com a ribeira!Eu não vejo aqui maneirasenão enfim… concrudir.

DIABO Haveis, padre, de vir.FRADE Agasalhai-me lá Florença,

e compra-se esta sentençae ordenemos de partir.

20

Tanto que o Frade foi embarcado, veio ua Alcouveteira, per nome Brísi-da Vaz, a qual, chegando à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍSIDA Houlá da barca, houlá!DIABO Quem chama?

BRÍSIDA Brísida Vaz.DIABO E aguarda-me, rapaz?

Como nom vem ela já?COMPANHEIRO Diz que nom há-de vir cá

sem Joana de Valdês.1DIABO Entrai vós, e remarês.

BRÍSIDA Nom quero eu entrar lá.

DIABO Que sabroso arrecear!BRÍSIDA No é essa barca que eu cato.2

DIABO E trazês vós muito fato?3

BRÍSIDA O que me convém levar.DIABO Que é o qu’havês d’embarcar?

BRÍSIDA Seiscentos virgos4 postiçose três arcas de feitiçosque nom podem mais levar.Três almários5 de mentir,e cinco cofres de enlheos,6e alguns furtos alheos,assi em jóias de vestir,guarda-roupa d’encobrir,enfim — casa movediça;7um estrado de cortiçacom dous coxins8 d’encobrir.

A mor cárrega9 que é:essas moças que vendia:Daquesta mercaderiatrago eu muita, bofé!10

(1) Personagem conhecida na época; (2) procuro; (3) bens; (4) objecto relacionado com a pro-fissão de alcoviteira; (5) armários; (6) mexericos; (7) casa que se armava e desarmava;(8) almofadas; (9) carga; (10) na verdade.

.

21

DIABO Ora ponde aqui o pé…BRÍSIDA Hui! e eu vou pera o Paraíso!

DIABO E quem te dixe1 a ti isso?BRÍSIDA Lá hei-de ir desta maré.2

Eu sô ua mártela3 tal,açoutes tenho levadose tormentos soportadosque ninguém me foi igual.Se fosse ò fogo infernal,lá iria todo o mundo!A estoutra barca, cá fundome vou, que é mais real.4

Barqueiro mano, meus olhos,5prancha a Brísida Vaz!

ANJO Eu não sei quem te cá traz…BRÍSIDA Peço-vo-lo de giolhos!6

Cuidais que trago piolhos,anjo de Deos, minha rosa?Eu sô aquela preciosaque dava as moças7 a molhos,

a que criava as meninas8

pera os cónegos da Sé…Passai-me, por vossa fé,meu amor, minhas boninas9,olho de perlinhas finas!E eu som apostolada10,angelada11 e martelada12,e fiz cousas mui divinas.

(1) Disse; (2) vez; (3) feminino de mártir; (4) melhor; (5) Brísida Vaz dirige-se, carinhosamen-te, ao Anjo; (6) joelhos; (7) rapariga do povo; (8) rapariga burguesa; (9) flores campestres;(10) comparável a um apóstolo; (11) comparável a um anjo; (12) martirizada.

.

22

Santa Úrsula nom converteotantas cachopas como eu:todas salvas polo meu,1que nenhua se perdeo.E prouve Àquele do Céoque todas acharam dono.Cuidais que dormia sono?Nem ponto se me perdeo!

ANJO Ora vai lá embarcar.não estês emportunando.

BRÍSIDA Pois estou-vos eu contandoo porque me haveis de levar.

ANJO Não cures de emportunar,que nom podes ir aqui.

BRÍSIDA E que má-hora eu servi,pois não m’há-de aproveitar!

Torna-se Brísida Vaz à barca do Inferno, dizendo:

BRÍSIDA Hou barqueiros da má-hora,que é da prancha, que eis me vou?E há já muito que aqui estou,e pareço mal cá de fora.

DIABO Ora entrai, minha senhora,e serês bem recebida:se vivestes santa vida,vós o sentirês agora.

Tanto que Brísida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode2 àscostas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU Que vai cá? Hou marinheiro!DIABO Oh! que má-hora vieste!

(1) Graças a mim; (2) bode expiatório que era imolado nos sacrifícios rituais da religião judaica..

23

JUDEU Cuj’é1 esta barca que preste?DIABO Esta barca é do barqueiro.JUDEU Passai-me por meu dinheiro.DIABO E o bode há cá de vir?JUDEU Pois também o bode há-de ir.DIABO Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?DIABO Nem eu nom passo cabrões.

JUDEU Eis aqui quatro testõese mais se vos pagará.Por vida do Semifará2

que me passeis o cabrão!Querês mais outro testão?

DIABO Nenhum bode há-de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o judeuonde vai Brísida Vaz?Ao senhor meirinho3 apraz?Senhor meirinho, irei eu?

DIABO E ò fidalgo, quem lhe deu…JUDEU O mando, dizês, do batel?

Corregedor, coronel,4castigai este sandeu!5

Azará, pedra miúda,lodo, chanto, fogo, lenha,caganeira que te venha!Má corrença que te acuda!Par el Deu,6 que te sacuda

(1) De quem é?; (2) provavelmente, nome de um judeu conhecido ou do próprio; (3) antigomagistrado; neste caso, o Fidalgo; (4) o Fidalgo é tratado por «corregedor» e «coronel»;(5) pateta; (6) forma típica da linguagem dos judeus.

.

24

co’a beca nos focinhos!Fazes burla dos meirinhos?Dize, filho da cornuda!1

JOANE Furtaste a chiba2, cabrão?Parecês-me vós a mimgafanhoto d’Almeirimchacinado3 em um seirão4.

DIABO Judeu, lá te passarãoporque vão mais despejados.

JOANE E ele mijou nos finadosn’ergueja de São Gião!5

E comia a carne da panelano dia de Nosso Senhor!6

E aperta o salvanor,e mija na caravela!

DIABO Sus, sus! Dêmos à vela!Vós, Judeu, irês à toa,7que sois mui ruim pessoa.Levai o cabrão na trela!

Vem um Corregedor 8, carregado de feitos 9, e, chegando à barca doInferno, com sua vara na mão, diz:

CORREGEDOR Hou da barca!DIABO Que quereis?

CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?DIABO Oh amador de perdiz,10

gentil cárrega trazeis!

(1) Ao longo desta estrofe, o judeu roga pragas ao Diabo; (2) cabra; (3) morto; (4) grande sei-ra; (5) nestes dois versos, faz-se alusão ao facto de os mortos, até 1846, serem enterrados den-tro ou nos adros das igrejas; (6) nestes dois versos, acusa-se o judeu de comer carne em dia dejejum; (7) a reboque; (8) Magistrado judicial que está acima dos juízes ordinários; (9) proces-sos judiciais; (10) a perdiz era usada para subornar.

.

25

CORREGEDOR No meu ar conhecereisque nom é ela do meu jeito.1

DIABO Como vai lá o direito?CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO Ora, pois, entrai. Veremosque diz i nesse papel…

CORREGEDOR E onde vai o batel?DIABO No Inferno vos poeremos.

CORREGEDOR Como? À terra dos demoshá-de ir um corregedor?

DIABO Santo descorregedor,2embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!CORREGEDOR Nom é de regulae juris,3 não!

DIABO Ita, ita!4 Dai cá a mão!Remaremos um remo destes.Fazei conta que nacestespera nosso companheiro.— Que fazes tu, barzoneiro?5

Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viageme de quem me há-de levar!Há’qui meirinho6 do mar?

DIABO Não há cá tal costumagem.CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem,7

nem hoc non potest esse.8DIABO Se ora vos parecesse

que nom sei mais que linguagem…9

Entrai, entrai, corregedor!

(1) Não gosto desta carga; (2) o juiz, em vez de cumprir com a sua função, fazia exactamente ocontrário; (3) não é conforme ao Direito; (4) sim, sim; (5) vadio (o Diabo dirige-se ao Companhei-ro); (6) oficial de justiça (o Corregedor, que está habituado a lidar com meirinhos, pensa que podehaver ali um); (7) carga de barco; (8) isto não pode ser; (9) não sei falar latim, só sei português.

.

26

CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis!1

Super jure majestatis2

tem vosso mando vigor?DIABO Quando éreis ouvidor3

nonne accepistis rapina?4

Pois ireis pela bolina5

onde nossa mercê fôr…6

Oh! que isca esse papel7pera um fogo que eu sei!

CORREGEDOR Domine, memento mei!8

DIABO Non es tempus9, bacharel!Imbarquemini10 in batelquia judicastis malitia.11

CORREGEDOR Semper ego justitia12

e fecit bem per nivel.13

DIABO E as peitas14 dos judeusque vossa mulher levava?

CORREGEDOR Isso eu não o tomava.eram lá percalços15 seus.Nom som peccatus meus,16

peccavit uxore mea.17

DIABO Et vobis quoque cum ea,18

não temuistis Deus.19

A largo modo adquiristis20

sanguinis laboratorum,21

ignorantes peccatorum.22

Ut quid eos non audistis?23

(1) Vede o que pedis; (2) acima do direito do Rei; (3) juiz especial; (4) não éreis corrupto?,não recebestes suborno?; (5) navegar à vela; (6) onde for de nossa vontade; (7) papel dos feitos(processos) que o Corregedor levava consigo; (8) Ó Senhor, lembra-te de mim; (9) agora é tar-de; (10) embarcai neste batel; (11) porque julgastes com malícia, isto é, com pouca honestida-de; (12) sempre procedi de acordo com a justiça; (13) imparcialmente; (14) subornos;(15) lucros; (16) não são pecados meus; (17) foi a minha mulher quem pecou; (18) e vós, jun-tamente com ela; (19) não temestes a Deus; (20) enriquecestes; (21) com o trabalho dos lavra-dores; (22) ingénuos; (23) nem sequer ouvistes as suas queixas.

.

27

CORREGEDOR Vós, arrais, nonne legistis1

que dar quebra os pinedos?2

Os dereitos estão quedos,3sed aliquid tradidistis…4

DIABO Ora entrai, nos negros fados!Ireis ao lago dos cães5

e vereis os escrivãescoma estão tão prosperados.

CORREGEDOR E na terra dos danados6

estão os evangelistas?DIABO Os mestres das burlas7 vistas

lá estão bem freguados.8

Estando o Corregedor nesta prática9 com o Arrais infernal, chegou umProcurador10, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

CORREGEDOR Ó senhor Procurador!PROCURADOR Bejo-vo-las mãos, Juiz!

Que diz esse arrais? Que diz?DIABO Que serês bom remador.

Entrai, bacharel doutor,e ireis dando na bomba.

PROCURADOR E este barqueiro zomba.Jogatais11 de zombador?

Essa gente que aí está,pera onde a levais?

DIABO Pera as penas infernais.PROCURADOR Dix! Nom vou eu pera lá!

Outro navio está cá,muito milhor assombrado.12

(1) não lestes; (2) significa que a justiça não é subornável; (3) a justiça não actua correctamente;(4) se recebestes alguma coisa; (5) Inferno; (6) Inferno; (7) fraudes; (8) atormentados;(9) conversa; (10) representante do poder central junto dos tribunais; (11) gracejais; (12) commelhor aspecto.

.

28

DIABO Ora estás bem aviado!Entra, muitieramá!

CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?PROCURADOR Bacharel som… Dou-me ò demo!

Não cuidei que era extremo,1nem de morte minha dor.E vós, senhor Corregedor?

CORREGEDOR Eu mui bem me confessei,mais tudo quanto roubeiencobri ao confessor…

PROCURADOR Porque, se o nom tornais,2não vos querem absolver,e é muito mao de volverdepois que o apanhais.

DIABO Pois porque nom embarcais?

PROCURADOR Quia speramus in Deo.3DIABO Imbarquimini in barco meo…4

Pera que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:

CORREGEDOR Ó arrais dos gloriosos,passai-nos neste batel!

ANJO Oh! pragas pera papel,5pera as almas odiosos!Como vindes preciosos,sendo filhos da ciência!

CORREGEDOR Oh! habeatis clemência6

e passai-nos como vossos!

(1) Fim; (2) e não devolverdes o que roubastes; (3) Porque esperamos em Deus; (4) embarcaino meu barco; (5) O Anjo quer referir-se ao Corregedor e ao Procurador; (6) tende clemência.

.

29

JOANE Hou, homens dos breviairos,rapinastis coelhorumet pernis perdiguitorum1

e mijais nos campanairos!CORREGEDOR Oh! não nos sejais contrairos,

pois nom temos outra ponte!JOANE Beleguinis ubi sunt?2

Ego latinus macairos.3

ANJO A justiça divinalvos manda vir carregadosporque vades embarcadosneste batel infernal.

CORREGEDOR Oh! nom praza a São Marçalcom a ribeira, nem com o rio!Cuidam lá que é desvariohaver cá tamanho mal.

PROCURADOR Que ribeira é esta tal!JOANE Parecês-me vós a mi

como cagado nebri,4mandado no Sardoal.Embarquetis in zambuquis!5

CORREGEDOR Venha a negra prancha cá!Vamos ver este segredo.

PROCURADOR Diz um texto do Degredo…6

DIABO Entrai, que cá se dirá!

E tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedora Brísida Vaz, porque a conhecia:

CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá,senhora Brísida Vaz!

(1) Roubaste coelhos e pernas de perdigotos; (2) onde estão os beleguins? (oficiais de justiça);(3) eu (falo) latim macarrónico; (4) falcão; (5) embarcai no zambuco; (6) decreto.

.

30

BRÍSIDA Já siquer1 estou em paz,que não me leixáveis lá.

Cada hora sentenciada:«Justiça que manda fazer…»

CORREGEDOR E vós… tornar a tecere urdir outra meada.

BRÍSIDA Dizede, juiz d’alçada:2vem lá Pero de Lixbõa?3

Levá-lo-emos à toae irá nesta barcada.

Vem um homem que morreo enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:

DIABO Venhais embora, enforcado!Que diz lá Garcia Moniz?4

ENFORCADO Eu te direi que ele diz:que fui bem-aventuradoem morrer dependurado5

como o tordo na buiz,6e diz que os feitos que eu fizme fazem canonizado.

DIABO Entra cá, governarásatá as portas do Inferno.

ENFORCADO Nom é’ssa a nao que eu governo.DIABO Mando-t’eu que aqui irás.

(1) Pelo menos; (2) juiz superior; (3) escrivão da época; (4) provavelmente, tesoureiro da Casada Moeda de Lisboa; (5) enforcado; (6) armadilha para caçar pássaros.

.

31

ENFORCADO Oh! nom praza a Barrabás!Se Garcia Moniz dizque os que morrem como eu fizSão livres de Satanás…

E disse-me que a Deos prouveraque fora ele o enforcado;e que fosse Deos louvadoque em bo’hora eu cá nacera;e que o Senhor m’escolherae por bem vi beleguins;e com isto mil latins1

mui lindos, feitos de cera.E no passo derradeiro2

me disse nos meus ouvidosque o lugar dos escolhidosera a forca e o Limoeiro;3nem guardião do moesteironom tinha tão santa gentecomo Afonso Valente,que é agora carcereiro.

DIABO Dava-te consolaçãoisso, ou algum esforço?

ENFORCADO Com o baraço no pescoçomui mal presta a pregação…E ele leva a devação,que há-de tornar a jentar…4

Mas quem há-de estar no ar5

avorrece-lh’o o sermão.

DIABO Entra, entra no batel,que ao Inferno hás-de ir!

(1) Termos (2) momento do enforcamento; (3) prisão situada em Lisboa; (4) que vai continuarvivo; (5) ser enforcado.

.

32

ENFORCADO O Moniz há-de mentir?Disse-me que com São Migueljentaria pão e meltanto que fosse enforcado.Ora, já passei meu fado,e já feito é o burel.1

Agora não sei que é isso.Não me falou em ribeira,nem barqueiro, nem barqueira,senão — logo ò Paraíso.Isto muito em seu siso.2E era santo o meu baraço…Eu não sei que aqui faço:que é desta glória emproviso?3

DIABO Falou-te no Purgatório?ENFORCADO Disse que era o Limoeiro,

e ora4 por ele o salteiro5

e o pregão vitatório;6e que era mui notórioque aqueles deciprinados7

eram horas dos finadose missas de São Gregório.

DIABO Quero-te desenganar:se o que disse tomaras,certo é que te salvaras.Não o quiseste tomar…— Alto! Todos a tirar,que está em seco o batel!— Saí vós, Frei Babriel!Ajudai ali a botar!

(1) fato de condenado; (2) bom senso; (3) como é que, de repente, desapareceu a glória espe-rada?; (4) reza; (5) os sete salmos penitenciais; (6) pregão que se soltava antes da execução deum condenado; (7) castigados.

.

33

Vêm quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz deCristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morre-ram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os queassi morrem têm dos mistérios da Paixão d’Aquele por Quem padecem,outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja.E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS À barca, à barca segura,barca bem guarnecida,1à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhaispola vida transitória,memória, por Deos, memóriadeste temeroso cais!À barca, à barca, mortais,barca bem guarnecida,à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores,que, despois da sepultura,neste rio está a venturade prazeres ou dolores! À barca, à barca, senhores,barca mui nobrecida,à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando,com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

DIABO Cavaleiros, vós passaise nom preguntais onde is?

1o CAVALEIRO Vós, Satanás, presumis?2

Atentai com quem falais!

(1) Provida do que é necessário; (2) Estás cheio de vaidade?.

34

2o CAVALEIRO Vós que nos demandais?Siquer conhecê-nos bem.Morremos nas Partes d’Além,1e não queirais saber mais.

DIABO Entrai cá! Que cousa é essa?Eu nom posso entender isto!

CAVALEIRO Quem morre por Jesu Cristonão vai em tal barca como essa!

Tornam a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória,e, tanto que chegam, diz o Anjo:

ANJO Ó cavaleiros de Deos,a vós estou esperando,que morrestes pelejandopor Cristo, Senhor dos céos!Sois livres de todo mal,mártires da Madre Igreja,que quem morre em tal pelejamerece paz eternal.

E assi embarcam.

Auto das Barcas que fez Gil Vicente, per sua mão corregido e empremi-do per seu mandato. Pera o qual e todas suas obras tem privilégio del-Reinosso senhor. Com as penas e do teor que pera o Cancioneiro Geral Portu-guês se houve.

(1) Norte de África..