“AS CAUSAS ÀS VEZES ALHEIAS À VONTADE DO … · 2018-04-02 · Rumo ao interior, ... Subsídios...

17
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 1335 “AS CAUSAS ÀS VEZES ALHEIAS À VONTADE DO PROFESSOR INFLUEM PARA QUE A ESCOLA NÃO DÊ O RESULTADO DESEJADO”: AS ESCOLAS RURAIS E A QUESTÃO FUNDIÁRIA NA PARAÍBA (1930-1945) Luiz Mario Dantas Burity 1 Introdução No dia 13 de maio de 1941, os professores primários que por hábito, por acaso ou em razão do comentário de algum colega abriram a segunda página do jornal A União, puderam ler a crítica pesada que o professor Mário Gomes, intelectual, já havia algum tempo, engajado com a causa da criação das escolas rurais, lhes dirigia. No texto, intitulado Descentralização do professorado, defendia o autor: Todo professor deve começar a carreira no sertão, no interior, onde ha milhares de crianças analfabetas necessitadas de se tornarem aptas para a vida completa mediante uma educação racional perfeita. (...) O Brasil se levanta para destinos novos, para orientações grandiosas, para um futuro mais risonho e cabe a todos os brasileiros bem intencionados colaborar na obra de renovação que brilhantemente se inicia. Nós, os professores, temos uma grande parte na taréfa de reconstrução social do Brasil. Rumo ao interior, á zona rural, aos centros da colonização abnegadamente, corajosamente, patrioticamente (A UNIÃO, 13 mai.1941, p. 2-3). A escarces de professores que se habilitavam para lecionar no mundo rural era um problema recorrente dos gestores públicos e intelectuais que almejavam a expansão da malha escolar para além das fronteiras urbanas. A precisão do diagnóstico, no entanto, não presumia o seu receituário. Ao escrever aquele artigo, publicado no dia 13 de maio de 1941 no jornal A União, o qual se autointitulava órgão oficial do Estado, o professor Mário Gomes inventou problemas, ou corroborou com aqueles que existiam, e atribuiu responsabilidades. Não era verdade que a gente camponesa carecesse de orientações racionais para levar a sua vida, essa era uma necessidade, antes, da economia nacional, que para se fazer legítima inventou uma agenda de colonização dos seus sertões tomada de preceitos modernos. Em princípio da década de 1940, o Estado Novo conhecia o seu apogeu. A agenda 1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com a orientação da Profa. Dra. Lucia Grinberg. E-Mail: <[email protected]>.

Transcript of “AS CAUSAS ÀS VEZES ALHEIAS À VONTADE DO … · 2018-04-02 · Rumo ao interior, ... Subsídios...

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1335

“AS CAUSAS ÀS VEZES ALHEIAS À VONTADE DO PROFESSOR INFLUEM PARA QUE A ESCOLA NÃO DÊ O RESULTADO DESEJADO”: AS ESCOLAS

RURAIS E A QUESTÃO FUNDIÁRIA NA PARAÍBA (1930-1945)

Luiz Mario Dantas Burity 1

Introdução

No dia 13 de maio de 1941, os professores primários que por hábito, por acaso ou em

razão do comentário de algum colega abriram a segunda página do jornal A União, puderam

ler a crítica pesada que o professor Mário Gomes, intelectual, já havia algum tempo, engajado

com a causa da criação das escolas rurais, lhes dirigia. No texto, intitulado Descentralização

do professorado, defendia o autor:

Todo professor deve começar a carreira no sertão, no interior, onde ha milhares de crianças analfabetas necessitadas de se tornarem aptas para a vida completa mediante uma educação racional perfeita. (...) O Brasil se levanta para destinos novos, para orientações grandiosas, para um futuro mais risonho e cabe a todos os brasileiros bem intencionados colaborar na obra de renovação que brilhantemente se inicia. Nós, os professores, temos uma grande parte na taréfa de reconstrução social do Brasil. Rumo ao interior, á zona rural, aos centros da colonização abnegadamente, corajosamente, patrioticamente (A UNIÃO, 13 mai.1941, p. 2-3).

A escarces de professores que se habilitavam para lecionar no mundo rural era um

problema recorrente dos gestores públicos e intelectuais que almejavam a expansão da malha

escolar para além das fronteiras urbanas. A precisão do diagnóstico, no entanto, não

presumia o seu receituário. Ao escrever aquele artigo, publicado no dia 13 de maio de 1941 no

jornal A União, o qual se autointitulava órgão oficial do Estado, o professor Mário Gomes

inventou problemas, ou corroborou com aqueles que já existiam, e atribuiu

responsabilidades. Não era verdade que a gente camponesa carecesse de orientações

racionais para levar a sua vida, essa era uma necessidade, antes, da economia nacional, que

para se fazer legítima inventou uma agenda de colonização dos seus sertões tomada de

preceitos modernos.

Em princípio da década de 1940, o Estado Novo conhecia o seu apogeu. A agenda

1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com a orientação da Profa. Dra. Lucia Grinberg. E-Mail: <[email protected]>.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1336

política autoritária do regime então em vigência envolveu intelectuais reconhecidos no

cenário cultural brasileiro e prometia erguer o país econômica e culturalmente, vide Angela

de Castro Gomes (1996). A proposta tinha sabor de recomeço, condenava o passado nacional

e assegurava que outro caminho estava sendo traçado. Tratava-se, afinal, de um Estado Novo

que, por oposição, marcava o período que o antecedera por República Velha, excessivamente

coalhada por práticas políticas alheias aos interesses do novo tempo. Em meio a esse cenário

de reinaugurações, os jovens tinham valor destacado nas políticas públicas e nos discursos

das lideranças estatais, seriam eles o futuro da nação e a educação deveria iluminar o

caminho a seguir.

Quando da publicação do texto Descentralização do professorado, pouco menos de um

mês havia passado desde que as comemorações do Dia da Juventude tomaram as ruas das

cidades brasileiras. Aquela foi uma festividade importante no calendário do regime político

estadonovista, observe-se Vânia Cristina da Silva (2011), era a oportunidade na qual os

escolares tomavam conta do espaço público e prometiam galgar aos saltos o patamar dito

civilizado das sociedades humanas. A cobertura das festividades tomou conta das páginas dos

jornais da época, em especial no ano de 1941, quando as notícias dos desfiles se estenderam

por mais de um mês. O momento, portanto, não poderia ser mais propício para a propagação

de um texto com caráter nacionalista e que exigisse dos indivíduos sacrifícios pelo bem

coletivo.

Em meio a tais circunstâncias, o autor não poupou os seus pretensos colegas de

trabalho, alegando a propalada missão que o magistério exigiria e das qualidades especiais

que trazia na sua esteira, “vocação, inteligência, método e dedicação”, para cobrar deles

maior compromisso com o bem social. Se o mundo rural carecia desses profissionais, seria

dever deles tomar a necessidade por deferência, escolhendo por lugar de trabalho o mundo

rural. Ao que tudo indica, no entanto, o tom do artigo não foi bem recebido entre os docentes

paraibanos. Apesar da ausência de informações na imprensa acerca das reações que o texto

provocou, uma matéria publicada alguns dias mais tarde, também com a assinatura do

professor Mário Gomes, ganhou tom de retratação. Em Rendimento escolar, o autor

comprava nova posição, em defesa do professor mediante as péssimas condições de trabalho

às quais este estaria exposto, em especial no mundo rural, onde “as causas às vezes

completamente alheias á vontade do professor, influem para a escola não dê o resultado

desejado” (A UNIÃO, 17 mai. 1941, p. 3-6). E enumerava:

a) pobreza extrema da população escolar; b) pouco interesse dos pais na educação dos seus filhos; c) ocupações rurais da infancia escolar no tempo de

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1337

plantação e colheita; d) má distribuição das escolas pelas zonas mais populosas, do interior; e) influencia politica na orientação do ensino (A UNIÃO, 16 mai.1941, p.3/ 4).

As causas supracitadas, apesar de assim não terem sido descritas pelo autor do artigo,

desembocavam em um problema de longa história no mundo rural e que, com o advento da

modernização, dotava-se de outros contornos: falava-se de questão agrária. O objetivo desse

texto foi discutir os entremeios da invenção das escolas rurais enquanto necessidade pública

de um Estado nacional que se investia na direção dos seus sertões, em contraste às

dificuldades do poder público para colocar tais instituições em funcionamento. Em meio a

esse cenário, foram perscrutadas algumas experiências: a institucionalização da Escola Rural

n.1 da Torrelândia, na Capital, da Escola Rural da Fazenda Simões Lopes, da Escola Normal

Rural de Souza e do Grupo Escolar Rural José Augusto Trindade na Colônia Agrícola de

Camaratuba.

A documentação consultada incluiu alguns periódicos, destacadamente o jornal A

União (1930-1945), a revista Paraíba Agrícola (1931-1932) e a Revista do Ensino (1932-

1942), alguns relatos dos romances de José Lins do Rego e as mensagens que os

interventores enviavam ao presidente Getúlio Vargas. A análise partiu, sobretudo, dos

conceitos de experiência e peculiaridades inscritos por Edward Palmer Thompson

(2011[1963]), mas não abdicou das possíveis lutas de representação, conforme Roger Chartier

(2002[1985]), e da leitura dos processos educativos que inventam significados no mundo

social, elaborada por Pierre Bourdieu (2015 [1979]).

As Políticas Educacionais para a População Camponesa: Subsídios para Pensar uma Era das Escolas Rurais na Paraíba

A educação escolar não era um problema para a população rural paraibana em

princípios dos anos 1930. Até aquele momento, a gente camponesa não carecia dos códigos

de leitura e escrita ou das operações matemáticas para garantir o seu sustento, nem para

representar o mundo que estava à sua volta. O cotidiano nas lavouras e nos pastos, as

conversas com os vizinhos, mesmo os processos de compra e venda nas feiras públicas bem

se resolviam no trato com a oralidade e com os pactos de moral e convivência de longa data.

A gente camponesa era mal assistida pelo poder público, mas isso não condenava a sua gente

à anomia social. Em um mundo regulado pelo poder de mando dos coronéis, dos padres e dos

bandidos, a população rural dispunha de redes de solidariedade e certo poder de barganha,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1338

fundamentado nos mitos que circulavam de boca em boca ao longo de grandes distâncias, os

quais empoderavam ou destituíam chefes políticos2.

É certo que isso não significava que os intelectuais já não considerassem a educação

rural como uma pauta pública desde muito antes. Ainda no século XIX, alguns intelectuais e

gestores públicos falavam da importância da criação de escolas no mundo rural. Os

presidentes de província diziam da carência de instituições que assistissem a gente

camponesa desde a década de 1840, perspectiva que acompanhava e era acompanhada pelos

eruditos e cientistas que, àquela altura, estavam inventando o Estado nacional. A proposta

combinava com uma recepção conservadora do pensamento liberal, que, conforme Emília

Viotti da Costa (1999 [1968]), traduzia os preceitos do novo tempo, mas os subordinava à

permanência do latifúndio e à mão de obra escravizada3. A educação rural e o ensino agrícola

entravam em pauta, mas apartados um do outro, em uma nação que se dizia agrícola, era

importante ilustrar os habitantes dos lugares mais afastados das cidades, mas, sobretudo,

dotar todos os cidadãos, também os citadinos, dos preceitos mais modernos da agricultura e

pecuária.

Em outras províncias, era possível flagrar escolas rurais em funcionamento ainda no

século XIX. Gilvanice Barbosa da Silva Musial e Ana Maria de Oliveira Galvão (2012), a título

de exemplo, mapearam as instituições com aquele perfil que funcionaram em Minas Gerais.

As escolas rurais mineiras tinham currículo reduzido em relação ao que era ministrado nas

cidades, eram marginalizadas pela agenda tributária do governo e foram alvo de uma

construção discursiva que as tomava por atrasadas e arcaicas. Em outras palavras, ainda não

era possível compreender aquela instituição longe da esteira das práticas pensadas para a

cidade.

Com o advento do século XX, a educação rural e o ensino agrícola ganharam lugar

ainda mais destacado nos impressos e documentos oficiais. Ao longo dos anos 1920, era

possível flagrar, na revista de circulação mensal Parahyba Agrícola, uma matéria que abria

os seus números, a qual se intitulava O ensino agrícola nas escolas primárias. O periódico,

ao passo em que informava da necessidade desse conteúdo para a formação das crianças

brasileiras, sugeria também o seu currículo aos professores, separados por lições que

perpassavam da tipicidade das plantas e dos seus órgãos aos cuidados com o galinheiro. As

2 Para mais informações acerca da organização social da população camponesa quando da emergência da modernização, ver a dissertação desse autor, Tempos misteriosos: uma história da população rural pelas estradas do mundo moderno (Paraíba, 1932-1962) (BURITY, 2017).

3 Acerca dos discursos dos políticos e intelectuais que contornavam a instrução rural ou agrícola no século XIX, ver Luiz Mário Dantas Burity e Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2016), “Uma província na idade agrícola das nações”: as raízes da educação agrícola e profissional na Parahyba do Norte oitocentista.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1339

sugestões tinham por cenário os grupos escolares, onde, mais ou menos na mesma época,

foram criadas hortas e jardins e, conforme se tem notícia, os professores ministraram aulas

práticas de agricultura. Mesmo diante de todas essas margens de conhecimentos práticos,

não se observava, até aquele momento, um programa de governo ou mesmo um projeto

intelectual efetivo de criação de escolas rurais4.

Algumas instituições educativas foram criadas no mundo rural entre meados da década

de 1920 e o início dos anos 1930. O Patronato Agrícola Vidal de Negreiros foi inaugurado em

1924 na cidade de Bananeiras-PB5 e a Escola Correcional Presidente João Pessoa em

Pindobal, nos arredores de Mamanguape-PB. As duas instituições tinham propósitos

correcionais, o que equivalia a disciplinar menores infratores por meio do conhecimento

prático agrícola. Antes de ampliar o regime escolar, o objetivo das instituições parecia ser

manter à margem os jovens cujas práticas eram consideradas bárbaras pela sociedade urbana

da época, mas é certo que essa não foi a única face daquela instituição. Em outras palavras,

como observava Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2006), a educação rural voltava-se antes

aos sujeitos considerados delinquentes que ao coletivo da juventude camponesa.

O cenário em questão só mudou de figura com a emergência da economia política como

medida das relações políticas, econômicas e culturais que tomaram conta do mundo rural. A

presença do poder público como mediador dos conflitos sociais, a racionalização da forma de

compreender o mundo e todo o arsenal de mudanças que a moderno investiu sobre a

população camponesa exigiu certo trato com as ferramentas do novo tempo, dentre as quais a

educação escolar ganhou destaque privilegiado. A modernização do mundo rural tornou a

escolarização rural uma pauta para a gente camponesa e uma urgência para o poder público,

mas, há que se considerar que esse processo não se deu da noite para o dia e nem se fez sem

formas variadas de resistência, não só da parte dos camponeses e das camponesas, mas

também dos proprietários de terra.

Em meados da década de 1930, o professor Sizenando Costa publicou um artigo

propondo a criação de escolas rurais no estado paraibano a partir de um modelo traçado em

meio aos preceitos da agronomia e da educação moderna. O intelectual propunha uma

instituição que criasse um ambiente propício ao desenvolvimento dos sujeitos considerando

4 Em meados da década anterior era possível vislumbrar um movimento com essas características em relação aos grupos escolares, movimento que, conforme Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2002) em sua tese Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba, justificava a compreensão desse período na história da escolarização primária paraibana como era dos grupos escolares.

5 Para mais informações acerca do processo de institucionalização do Patronato Agrícola Vidal de Negreiros, ver Educação e trabalho para meninos desvalidos: um estudo sobre o Patronato Agrícola de Bananeiras (1924-1947) de Suelly Cinthya Costa dos Santos (2015).

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1340

as circunstâncias particulares da economia nacional e a geografia do espaço no qual

habitavam. Para isso, era necessário um currículo que priorizasse o ensino prático das mais

modernas técnicas agrícolas, somando a ele a boa organização do prédio e das suas

dependências. A proposição envolvia a criação primeira de uma escola rural modelo, que

servisse de exemplo para as instituições congêneres que, ao final de alguns anos, deveriam

ser criadas no estado.

Alguns anos mais tarde, o mesmo intelectual escreveria um livro, no qual tratou com

mais cuidado do tema proposto. A Escola Rural (1941) foi publicado em um ambiente já

bastante simpático ao projeto de expansão da educação rural no estado paraibano,

conferindo ainda mais força ao movimento. A recepção favorável dos professores e gestores

públicos pode ser medida pelos textos publicados na impressa, sobretudo no jornal A União.

Os textos, em geral, parabenizavam o intelectual e reafirmavam aquela deferência coletiva.

Àquela altura, foi possível flagrar políticos, como J. Clementino de Oliveira, professores, a

exemplo de Mário Gomes, América Monteiro de Araújo e Maria da Glória Cesar de Queiroz,

agrônomos, em específico Laudemiro de Almeida e Pimentel Gomes, então diretor da Escola

de Agronomia do Nordeste, que se filiaram ao projeto de criação de escolas rurais proposto

por Sizenando Costa. O apoio mais contundente que o projeto educacional inscrito por

Sizenando Costa conseguiu arregimentar, no entanto, era oriundo de esferas mais altas do

poder público. Os interventores paraibanos Argemiro de Figueiredo (1934-1940) e Ruy

Carneiro (1940-1945) não só expressaram sua simpatia para com aquele propósito como

apostaram nele como politica de governo, fazendo publicar decretos que viabilizassem a sua

realização.

Em razão das circunstâncias supracitadas, o movimento de expansão da malha escolar

paraibana para o mundo rural que tomou por guia o modelo pedagógico proposto por

Sizenando Costa (1941) foi compreendido por Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2002; 2006)

como a era das escolas rurais na Paraíba. Há que se observar que esse movimento não

sobrepôs a vitalidade dos grupos escolares, que ainda perfaziam o regime educativo mais

simpático no que tangia o mundo urbano. Em certa medida, essas duas instituições

conviveram por pelo menos mais duas décadas como centro das políticas educacionais

movidas pelo poder público6.

6 O movimento de expansão dos grupos escolares durante o Estado Novo na Paraíba pode ser observado na dissertação A escola nova e a modernização do ensino primário na Paraíba: a formação de professores e os grupos escolares (1930-1946), de autoria de Evelyanne Nathaly Cavalcanti de Luna Freire (2016). Enquanto isso, o movimento de criação de escolas rurais no período que sucedeu o Estado Novo pode ser flagrado por meio da pesquisa Educação Rural na Paraíba (1946-1961): um meio para fixar o homem do campo, escrita por

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1341

O projeto supracitado dissuadia em diversos aspectos dissuadia daqueles que o

antecederam. Entre o ano de 1934 e o ano de 1945, esteve em curso, no estado paraibano, um

movimento de criação de escolas rurais capitalizadas de um currículo atento às condições

geográficas do mundo rural, à rotina de trabalho dos habitantes daquelas paragens, ao

cotidiano das crianças e dos jovens que trabalhavam nas lavouras e nos pastos. A educação

rural, nesse sentido, se tornava um conceito que agregava na escola rural os conhecimentos

práticos do ensino agrícola, aspectos que se fundiam ao programa político do Estado Novo.

Mas isso tudo não seria grande coisa se não existisse um movimento intelectual forte que

desse amplitude a esses preceitos, que procurasse saídas para os problemas que apareciam

ou se não houvesse espaço político para que esse projeto saísse do papel. Em outras palavras,

a conformação de uma nova era dependia, sobretudo, da construção de uma hegemonia.

A era das escolas rurais alcançou a vida da população camponesa de formas muito

variadas. A instituição escolar não era de todo desconhecida da população rural, desde muito

tempo, algumas experiências escolares já haviam se firmado por aquelas paragens. José Lins

do Rego (1961[1932]), a título de exemplo, contou de algumas delas em seu romance Menino

de Engenho. Naquela história, dizia o autor, o neto do coronel José Paulino, o menino Carlos

de Melo, demorou a seguir o caminho que outros homens daquela família haviam percorrido,

o qual perpassava a formação em um grupo escolar ou colégio particular de uma cidade

próxima, mais tarde sucedida pelos estudos secundários e pelo curso superior. Órfão de mãe,

os parentes lhe pouparam o pronto distanciamento, deixando que cursasse as primeiras

letras com o Dr. Figueiredo, professor primário das redondezas. Algum tempo mais tarde,

seria matriculado em outra cadeira. Dessa vez,

com outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para "o neto do coronel Zé Paulino". Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era contada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas quando acertava, mandavam que desse nos meus competidores. Eu me sentia bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não tinham raiva de mim. Muitos deles eram moradores do engenho. Parece que ainda hoje os vejo, com seus bauzinhos de flandres, voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa a tiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia da escola (REGO, 1961[1932], p.25).

Priscilla Leandro Pereira (2013). A coexistência dos dois movimentos foi observada, ainda, em outro texto, Grupos Escolares e Escolas Rurais na Paraíba estadonovista (1937-1945), de autoria de Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, Evelyanne Nathaly Cavalcanti de Araújo Silva e Luiz Mário Dantas Burity (2013).

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1342

A cadeira de primeiras letras incorporava o regime de distinção social conhecido desde

muito tempo pelos sujeitos que habitavam a várzea paraibana. O neto do coronel capitalizava

em torno de si alguns marcadores sociais da diferença: ele era herdeiro não só de uma

fazenda, mas também de um título, de certa imagem dotada de autoridade que o

acompanharia por mais alguns anos, mas isso não era tudo, também pesava em seu favor a

cor da sua pele e todo um arsenal de fenótipos que definiam uma raça. Em tudo mais, aquela

escola pouco tinha daquele modelo que o professor Sizenando Costa propôs que fosse

difundido a partir do ano de 1934, falava-se de um processo de escolarização ainda muito

rudimentar, tomado pelas lições de primeiras letras e operações matemáticas básicas,

coalhadas pela autoridade da ordem social de outrora7. Naquele universo, as referências

externas ao mundo escolar tinham mais poder do que o capital que a instituição oferecia, de

fato, importava menos quem acertava ou errava a questão, sequer o título teria diferença

efetiva para aqueles sujeitos que, muito provavelmente, trabalhariam no eito ou que

prestariam serviços ao coronel dentro de alguns anos8.

A esse respeito, dizia Pierre Bourdieu (2015 [1979], p. 19), “quanto maior for o

reconhecimento das competências avaliadas pelo sistema escolar e quanto mais “escolares”

foram as técnicas utilizadas para avaliá-las, tanto mais forte será a relação entre o

desempenho e o diploma”. Todavia, antes de assegurar para a educação esse papel ingrato de

mantenedora das hierarquias, deve-se pensar ainda nos seus possíveis contrapontos. O

processo educativo é permeado de lutas de representações, como teorizava Roger Chartier

(2002[1985]). Em sendo assim, há que se atentar para as possibilidades de inversão que as

experiências de escolarização também operam. Tomando essas duas referências por régua, é

preciso pensar como a emergência da era das escolas rurais transformou as relações sociais

no campo.

7 Experiências compatíveis com as práticas propugnadas quando da era das cadeiras isoladas. A esse respeito, vide Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2002), na tese Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba.

8 Para mais informações a respeito do processo de distinção social que permeou as cadeiras de primeiras letras no mundo rural à luz da obra de José Lins do Rego, ver História da educação e literatura: as experiências educativas na obra de José Lins do Rego de autoria de Luiz Mário Dantas Burity e Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2014).

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1343

As escolas rurais nas armadilhas da questão agrária: uma história da Escola Rural n.1, da Escola Rural da Fazenda Simões Lopes, da Escola Normal Rural e do Grupo Escolar Rural da Colônia Agrícola de Camaratuba

Argemiro de Figueiredo, tão logo tomou conhecimento da publicação do texto do

professor Sizenando Costa na Revista do Ensino (1934), prontamente assegurou a criação da

prometida Escola Rural Modelo, a qual, a princípio, deveria localizar-se no lugar Barreiras,

município de Santa Rita-PB. A ausência de maiores notícias acerca da criação dessa

instituição e o curioso nome Escola Rural n.1 de um aprendizado inaugurado em 1938 no

bairro da Torrelândia, cidade de João Pessoa-PB, porém, sugerem que pode ter sido esse, e

não aquele, o endereço da primeira escola rural criada nos moldes propostos pelo professor

Sizenando Costa.

A escola em questão teria por diretora a professora América Monteiro de Araújo, desde

muito tempo engajada com a ruralização da educação pública na Paraíba. Além de escritora

assídua dos periódicos da época, nos quais defendia que a expansão das escolas rurais no

estado, a docente também esteve atenta aos movimentos dos outros intelectuais e das

instituições que seguiam por esse caminho. Em 1939, ela teria se formado junto a outros

diretores de grupos escolares e escolas rurais no curso rural de férias oferecido pela Escola de

Agronomia do Nordeste9. A Escola Rural n.1, conforme a sua gestora, era mantida pela Ação

Católica, contando com “edificio cedido pela arquidiocese, espaçoso e quasi conlcuido, dispoe

de terreno anexo para culturas, onde se acham uma horta e jardim, entregues aos cuidados

dos alunos” (A UNIÃO, 18 set.1941, p.3). Ao todo, a escola dispunha de 93 discentes

matriculados, para além de duas professoras, as senhoras Rosa Lianza e Maria da Conceição

Serrano. O que se pode perceber é que, para além dos investimentos públicos, àquela ocasião,

ainda era necessária muita boa vontade para segurar um projeto com tais proporções, dado o

conjunto de pessoas e instituições que a professora conseguiu arregimentar.

Ainda naqueles últimos anos do seu governo, Argemiro de Figueiredo deu início a uma

barganha com o governo federal pela posse do terreno correspondente à Fazenda Simões

Lopes, onde teria vez “a próxima instalação da escola rural modelo” (A UNIÃO, 7 out. 1938,

p. 2). Todavia, apenas depois da posse de Ruy Carneiro é que foi possível dar sequência à

doação da propriedade. O novo interventor, a propósito, faria propaganda política daquela

conquista, a qual rapidamente se converteria em objeto de promoção pessoal. Em princípios

9 O processo de institucionalização da Escola de Agronomia do Nordeste pode ser observado na monografia deste autor, A redentora do atraso do Nordeste: uma escola de agronomia na história da sociedade rural paraibana (1934-1950) (BURITY, 2014).

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1344

do ano de 1940, o jornal A União noticiava: “na antiga ‘Fazenda Simões Lopes’, ficará

instalado o Instituto Profissional Agrícola, cuja fundação acaba de ser decidida pelo

Ministério da Agricultura, que aceitou a sugestão feita pelo interventor Ruy Carneiro neste

sentido” (A UNIÃO, 21 abr. 1940, p. 1).

Poucos dias haviam passado desde a posse de Ruy Carneiro e aquela barganha de fato

não havia sido protagonizada por ele. A informação era manipulada pelo jornal A União,

aparentemente com o apoio do governo federal, que para assegurar a autoridade do regime e

elevar o nome do novo interventor, provavelmente represou os investimentos destinados ao

estado paraibano até o momento da sua posse. A educação rural mostrava-se, assim, mais

uma moeda política barganhada entre as muitas esferas do poder público. A esse respeito,

deve-se considerar ainda a escolha em nada aleatória da Fazenda Simões Lopes, dentre

tantos terrenos pertencentes ao governo estadual, para sediar a prometida escola rural

modelo. Aquela, provavelmente, seria uma forma de garantir aquelas terras nas mãos dos

aliados do interventor. Há que se observar, nesse sentido, que em muito pouco tempo esse

espaço se converteria em um importante centro de produção e distribuição de conhecimento,

técnicas, máquinas, sementes, animais, entre outras ferramentas da economia agrícola

moderna, que o poder público pretendia difundir pelo interior do estado. A escola rural

modelo, portanto, deveria fazer parte desse complexo.

A transferência do título da propriedade, todavia, parecia mal resolvida ainda no ano

seguinte, quando mais uma vez o interventor Ruy Carneiro deu notícia do seu envolvimento

pessoal na resolução daquele impasse:

O Interventor Ruy Carneiro pleiteou junto ao Governo Federal, por ocasião da sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, a criação de um instituto de ensino rural, na Fazenda “Simões Lopes”, não tendo, entretanto, conseguido o apoio dos técnicos do Ministério da Agricultura, que foram ouvidos a respeito da idéia (A UNIÃO, 5 jul.1941, p.1).

Afirmavam os técnicos, portanto, que o funcionamento dessa Escola Rural não seria

necessário, visto que o estado da Paraíba já dispunha do Patronato Agrícola Vidal de

Negreiros e do Centro Correcional Presidente João Pessoa. Porém, em que pesasse o jogo

político, a proposta foi defendida uma vez que a mesma se faria localizar em um espaço

próximo à cidade e levando em conta as “suas plantações e instalações, pelas ampliações que

fôram ali ultimamente trazidas pela Secretaria Agrícola” (A UNIÃO, 5 jul.1941, p.1). O

impasse foi, então, levado ao presidente da República, que, conforme noticiado, deferiu

prontamente a criação daquele instituto. Mais uma vez, observava-se a dimensão mais

política do que técnica do problema, que em tempos do Estado Novo ganhava características

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1345

ainda mais destacadamente personalistas. Em último caso, recorria-se às boas relações com o

chefe de governo, o qual encontraria uma solução satisfatória para as questões que estavam

em aberto.

Em meio a isso, seria possível finalmente construir a prometida escola rural modelo da

Fazenda Simões Lopes, a qual deveria “preparar a juventude paraibana para se tornar

elemento útil á coletividade” (A UNIÃO, 5 jul.1941, p.1), bem como uma escola de professores

“não só de primeiras letras, mas também dos conhecimentos práticos de produção da terra,

ensinando a valorização dos frutos do trabalho agrícola” (A UNIÃO, 5 jul.1941, p.1). A

iniciativa foi de imediato objeto de felicitações por parte do professor Sizenando Costa e do

doutor Álvaro de Carvalho, professor catedrático do Liceu Paraibano (A UNIÃO, 6 jul.1941,

p.5; A UNIÃO, 11 jul. 1941, p. 5). Algum tempo mais tarde, o assunto seria retomado pela

imprensa oficial, que, mais uma vez, enchia de elogios o interventor paraibano. Junto a ela,

era divulgado o decreto de transferência do imóvel, com área de 651.678,62 m², ao qual se

somava tudo que havia sido construído nele, bem como os animais e produtos agrícolas no

seu interior (A UNIÃO, 28 out. 1941, p. 8)10.

Mesmo depois de todas essas negociações, apenas no ano de 1943, a construção da

escola rural que havia servido de barganha para a posse do terreno em litígio foi efetivamente

iniciada, o que não se deu sem renovada pressão dos intelectuais que defendiam aquela

causa. Já no final daquele ano, o professor Sizenando Costa destacou, em uma reunião do

Rotary Clube no Cassino da Lagoa, a necessidade da criação da escola rural na Fazenda

Simões Lopes (A UNIÃO, 3 out.1943, p.3). A construção do prédio foi ainda motivo de

destaque do interventor no relatório dos Serviços e Realizações em 1943 do governo

paraibano, enviado ao presidente Getúlio Vargas no ano seguinte. Apesar da citada demora,

no entanto, o projeto do professor Sizenando Costa parecia estar sendo bem executado, pelo

menos em seus quesitos arquitetônicos. Dizia-se que o seu prédio principal “constará de

quatro salas de aula, cada uma com 48 m², uma sala para o museu industrial, uma sala para a

administração; gabinete médico e dentário, biblioteca, quatro gabinetes sanitários”

(PARAÍBA, 1944b, p. 213).

É possível observar que, apesar da simpatia que o interventor Argemiro de Figueiredo

demonstrou pelo projeto de expansão da educação seriada na direção do mundo rural, essas

instituições só tomaram fôlego, de fato, com a interventoria de Ruy Carneiro. Há que se

10 Para mais informações a respeito da criação da escola rural da Fazenda Simões Lopes, ver “Safras máximas, lucros máximos, padrão de vida máximo”: a criação de uma escola rural na Fazenda Simões Lopes (Paraíba, 1938-1943), de autoria deste autor (BURITY, 2013).

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1346

recordar que, por ocasião das comemorações do dia da juventude, o estadista decretou a

criação de 40 escolas rurais e rudimentares noturnas e fez circular a notícia em uma nota que

ocupou todo o rodapé da última página no jornal A União do dia 19 de abril de 1941, em

negrito e caixa alta. O movimento, a propósito, foi seguido por alguns prefeitos mais

entusiasmados, aspecto que permitiu que fossem criados o Instituto Rural de Saúde,

Educação e Assistência de Itabaiana (A UNIÃO, 8 jul. 1941, p. 6) e a Escola Rural Agrícola de

Conceição, que, já no dia da sua inauguração, realizou “a primeira aula prática, com a

frequencia de 32 alunos” (A UNIÃO, 21 set. 1941, p. 6). Deve-se observar, com alguma

atenção, os nomes das duas instituições. Ao passo que a primeira atendia à propalada

necessidade de que as escolas rurais contassem com a assistência do médico, do professor e

do agrônomo, a segunda atestava essa incerteza sobre as diferenças entre uma escola

primária instalada no mundo rural e aquela que, para além disso, contaria com um currículo

agrícola em específico. O que se quer mostrar é que ainda havia certa incerteza quanto aos

limites do modelo inscrito pelo professor Sizenando Costa e os processos efetivos de criação

daquelas instituições11.

Entre o artigo do professor Sizenando Costa na Revista do Ensino (1934) e o

diagnóstico dos problemas que envolviam a criação das escolas rurais publicado por Mário

Gomes no jornal A União (13 e 17 mai.1941), bem como do lançamento do livro A Escola

Rural (1941), do primeiro escritor, passaram sete anos. Algum tempo já havia corrido,

portanto, desde que as primeiras iniciativas naquela direção tinham sido estabelecidas. O

primeiro texto, que discorria sobre a carência de professores no campo, esbarrava em um

problema de longa história, citado também por outros intelectuais que observaram o mundo

rural. Mas, nos termos que estavam postos, eram desconsideradas as questões sociais que

envolviam a formação de uns sujeitos em detrimento de outros. O magistério de primeiras

letras, àquela época, era tomado por certo recorte de gênero, o feminino, e outro de classe, a

elite e os grupos médios urbanos. À exceção das normalistas mais simpáticas à causa agrícola

e que tomaram posição de vanguarda, e, sobretudo, das filhas dos chefes políticos, que

montavam escolas nas propriedades de seus pais ou mesmo de outros senhores da parentela,

não havia grande espaço para que tais profissionais se deslocassem em direção ao interior

para ali encontrar o seu público dito carente de lições ilustradas.

O impasse foi motivo de alguns textos publicados nos periódicos e a solução

11 Mais informações acerca desse processo podem ser consultadas em: Escolas rurais e profissionais para a juventude campesina na interventoria de Ruy Carneiro: Paraíba (1940-1945), de autoria de Luiz Mário Dantas Burity e Antonio Carlos Ferreira Pinheiro (2012).

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1347

aparentemente mais adequada seria a criação de uma escola normal rural. E se era certo que

muita barganha política envolveu as políticas educacionais àquele momento, não era menos

verdade que os intelectuais tiveram peso destacado nessas negociações, de forma que, pelo

menos no jogo das aparências que envolvia a economia de decretos interventoriais, o objetivo

foi alcançado. Em 1943, a Escola Normal Livre de Souza, que não tinha prédio próprio,

funcionando nas dependências do Colégio São José, foi transformada em Escola Normal

Rural, mudando seu currículo e propósitos políticos. Por ocasião de sua inauguração, a

instituição recebeu a visita das comitivas de outros aprendizados de significativo destaque

naquele estado, a Escola de Agronomia do Nordeste, a Escola Normal de Princeza e o Colégio

Sagrado Coração de Jesus de Bananeiras (A UNIÃO, 23 set. 1943, p. 2/4).

Mas os problemas que travavam a criação de um número mais expressivo de escolas

rurais seguiam para além daquele universo, eles diziam de certa incoerência entre os

propósitos urbanos e os acontecimentos que tinham vez no mundo rural. Tinha-se ciência da

impossibilidade de manter um calendário escolar no mundo rural em tempos da colheita,

pois também os jovens por ali trabalhavam, falava-se da escarces de instituições e da

distância entre elas e o seu público, vista a incapacidade do poder público de negociar a sua

criação em uma localidade mais adequada, um caminho de meio entre todos aqueles sujeitos.

Surpreende destacar a pouca atenção dada a outra possibilidade, aquela que envolveria um

programa social mais amplo de atenção à população camponesa, melhorando as condições de

vida daquela gente, não se falava em reforma agrária, pauta antiga entre os pensadores

sociais, nem mesmo em programas mais efetivos de assistência social. A educação rural era

tomada quase que exclusivamente como solução para a pretensa barbárie do seu público,

resolveria, portanto, antes um problema da cidade do que do campo, a ideia era salvar a

nação e sua identidade, mesmo que para isso fosse preciso mascarar os conflitos internos

históricos desse país.

Em princípios dos anos 1940, o governo estadual deu início à colonização de uma

região do litoral norte paraibano. A proposta era orientar a população que habitava a região

em meio aos conhecimentos agrícolas mais modernos. O governo investiu, então, na

construção de casas de alvenaria, no trato das lavouras dos camponeses, e, sobretudo, na

construção do Grupo Escolar Rural José Augusto Trindade, nos moldes propostos pelo

professor Sizenando Costa, em um ponto mais elevado do núcleo central da Colônia Agrícola

de Camaratuba. A contrapartida dos colonos envolvia um regime de trabalho alheio ao que

propugnaria a legislação trabalhista em alguns anos. A colônia seria regida por uma

cooperativa, a qual venderia toda a produção coletiva, ficando com 20% do valor conseguido,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1348

cujo objetivo seria a conservação e administração daquelas terras, e destinando o restante aos

colonos. A era de posse do poder público, ficando cedida aos colonos nessas condições. A

escola incorporava esse cenário como mais um órgão de controle, por certo aquele de maior

importância, vista a sua centralidade na arquitetura da vila e o constante uso das suas salas

para reuniões dos colonos (PARAÍBA, 1944a).

Mas a questão agrária atingia aquele processo ainda por outro caminho. No interior dos

latifúndios, as professoras eram expulsas pelos coronéis que, descontentes com o tema do

conteúdo ministrado ou com a reação social provocada pelo conhecimento aprendido por

aquela gente. A modernização do mundo rural, que se queria desenhar por meio da educação,

portanto, enfrentava a ordem social que habitava aquelas paragens e a gente campo tratava

de se posicionar das formas mais diversas possíveis ao cenário que estava posto. Além disso,

era possível perceber como, apesar do propósito do intuito de controlar, disciplinar e ilustrar

que a educação propugnava àquele momento, o processo acabava fugindo das mãos dos

intelectuais criadores e, por ali, entre a professora ou o professor e seus estudantes, tudo se

convertia em outro processo, mais próximo do seu mundo de referências, mais próximo do

que aquela gente de fato carecia.

Considerações Finais

Apesar das propostas e experiências que envolvia o ensino agrícola e a educação rural

ainda desde o século XIX, só em meados da década de 1930 era possível falar em uma era das

escolas rurais na Paraíba. Essa periodização, proposta por Antonio Carlos Ferreira Pinheiro

(2002; 2006), flexibilizava os marcos temporais mais rígidos que marcaram a historiografia

da educação, situando os movimentos das políticas educacionais no entorno dos projetos

intelectuais e das agendas políticas então hegemônicas. Por esse caminho, o projeto político-

intelectual do professor Sizenando Costa conseguiu arregimentar o apoio dos pensadores e

gestores públicos necessários para fazer caminhar uma proposta com tais dimensões.

A criação das escolas rurais no estado paraibano, no entanto, esbarrou em uma série de

problemas de natureza política, mas, sobretudo, de natureza social. As primeiras instituições

com aquele perfil demoraram a ser criadas, esbarraram em conflitos de toda sorte e não

alcançaram, na periodização estudada, nada próximo do que era aspirado pelos seus

propositores, há informações, contudo, de que isso foi conseguido alguns anos mais tarde.

Priscilla Leandro Pereira (2013), em sua dissertação, intitulada Educação Rural na Paraíba

(1946-1961): um meio para fixar o homem do campo, mostrou como, no período

democrático, um projeto nacional, diferente daquele propugnado por Sizenando Costa,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1349

dispôs de mais recursos e conseguiu, dentre seus resultados, quantidades mais significativas.

Os problemas mais recorrentes apontados pelos intelectuais e observados nos longos

processos de criação de algumas instituições esbarravam na desigualdade social e, em meio a

isso, na questão agrária. A carência de professores dispostos ao trabalho nas escolas rurais, os

desencontros do calendário escolar com o calendário agrícola, as dificuldades dos jovens

campesinos para acessar a educação, entre muitas outras querelas com essa característica

diziam muito dessa modernização que se queria consolidar no interior do estado. A educação

rural era pensada junto ao processo político futurista e autoritário do Estado Novo, mas

também se abria espaço, inevitavelmente, para a emancipação da gente do campo.

Antes de desconcertar o leitor com essas notícias da forma como os problemas agrários

alcançavam a população camponesa, deve-se atentar para as reais dimensões dessa querela.

Em verdade, os latifúndios deram margens muito específicas à modernização que se queria

no mundo rural, a qual, em geral, não deveria ultrapassar em muito os limites da porteira.

Mas também não se podem subjugar os rumos que esse problema tomou no estado

paraibano. A população camponesa, em certo momento dessa história conseguiu virar o jogo,

mas isso é capítulo de outra história, que avança em muito os limites desse artigo.

Referências

A União. João Pessoa, PB: Imprensa Oficial, 1930-1945.

Parahyba-Agricola. João Pessoa, PB: Parahyba-Agricola, 1931-1932.

Revista do Ensino. João Pessoa, PB: Imprensa Oficial, 1934.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Karn e Guilherme J. F. Teixeira. 2 ed. Porto Alegre, RS: Zouk, 2015[1979].

BURITY, Luiz Mário Dantas. A redentora do atraso do Nordeste: uma Escola de Agronomia na história da sociedade rural paraibana (1934-1950). Monografia (Licenciatura em História). João Pessoa: UFPB, 2014.

BURITY, Luiz Mário Dantas. Tempos misteriosos: uma história da população rural pelas estradas do mundo moderno (Paraíba, 1932-1962). Dissertação (Mestrado em História). João Pessoa: UFPB, 2017.

BURITY, Luiz Mário Dantas; PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Escolas rurais e profissionais

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1350

para a juventude campesina na interventoria de Ruy Carneiro: Paraíba (1940-1945). In: IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas: “História, Sociedade e Educação no Brasil”. João Pessoa, PB: Anais Eletrônicos, 2012. p.2207-2227.

BURITY, Luiz Mário Dantas. “Safras máximas, lucros máximos, padrão de vida máximo”: a criação de uma escola rural na Fazenda Simões Lopes (Paraíba, 1938-1943). In: XVII Simpósio Nacional de História. Natal, RN: Anais Eletrônicos, 2013, p.1-15.

BURITY, Luiz Mário Dantas; PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. História da Educação e Literatura: as experiências educativas na obra de José Lins do Rego. In: X Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. Curitiba, PR: Anais Eletrônicos, 2014, p.1-14.

BURITY, Luiz Mário Dantas; PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. “Uma província na idade agrícola das nações”: as raízes da educação agrícola e profissional na Parahyba do Norte oitocentista. In: AMORIM, Simone Silveira; NASCIMENTO, Ester Fraga Villas-Bôas Carvalho do (Orgs.). Panorama da Instrução Primária no Brasil. Jundiaí: Paço Editorial, 2016. p.217-244.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: UFRGS, 2002[1985]. p. 61-80.

COSTA, Sizenando. A Escola Rural. Rio de Janeiro, DF: Serviços Gráficos do IBGE, 1941.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6 ed. São Paulo, SP: UNESP, 1999[1968].

MUSIAL, Gilvanice Barbosa da Silva; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Oh! Escarneo! Tendes visto o que é a escola rural; ver uma é ver todas material e moralmente: um estudo sobre os materiais, os métodos e os conteúdos da escola rural em Minas Gerais (1892-1899). Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v.12, n.2 (29), p.77-106, mai/ago.2012.

PARAÍBA, Governo da. Colônia Agrícola de Camaratuba. João Pessoa, PB: Imprensa Oficial, 1944a.

PARAÍBA, Governo da. Serviços e Realizações em 1943. João Pessoa, PB: Imprensa Oficial, 1944b.

PEREIRA, Priscilla Leandro. Experiências educacionais na Paraíba para o meio rural (1930-1937): ações civilizadoras, profissionalizantes e disciplinares. Monografia (Licenciatura em Pedagogia). João Pessoa, PB: UFPB, 2010.

PEREIRA, Priscilla Leandro. Educação rural na Paraíba (1946-1961): "um meio para fixar o homem do campo". Dissertação (Mestrado em Educação). João Pessoa, PB: UFPB, 2013.

PINHEIRO, Antonio Calos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba. Campinas, SP: Autores Associados. São Paulo, SP: Universidade São Francisco, 2002 (Coleção Educação Contemporânea).

PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. A era das escolas rurais primárias na Paraíba (1935 a 1960). In: SCOCUGLIA, Afonso Celso; MACHADO, Charliton José dos Santos (orgs.). Pesquisa e historiografia da educação brasileira. Campinas, SP: Autores Associados, 2006 (Coleção memória da educação).

PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira; SILVA, Evelyanny Nathaly Cavalcanti de Araújo; BURITY, Luiz Mário Dantas. Grupos escolares e escolas rurais na Paraíba estadonovista (1937-1945). Revista

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1351

HISTEDBR On-line, Campinas, n.54, dez.2013, p.172-188.

REGO, José Lins do. Menino de Engenho. In: REGO, José Lins do. Menino de Engenho/Doidinho/Bangüê. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1961[1932].

SANTOS, Suelly Cinthya Costa dos. Educação e trabalho para meninos desvalidos: um estudo sobre o Patronato Agrícola de Bananeiras (1924-1947). Dissertação (Mestrado em História). João Pessoa, PB: UFPB, 2015.

SILVA, Vânia Cristina da. Ó Pátria Amada, Idolatrada, Salve! Salve! Festas escolares e comemorações cívicas na Paraíba (1937-1945). Dissertação (Mestrado em História). João Pessoa, PB: UFPB, 2011.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa v.1: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann. 6 ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2011[1963].