António Lobo Antunes_ “Fernando Pessoa Me Aborrece Até a Morte” _ Cultura _ EL PAÍS Brasil

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7/25/2019 António Lobo Antunes_ “Fernando Pessoa Me Aborrece Até a Morte” _ Cultura _ EL PAÍS Brasil http://slidepdf.com/reader/full/antonio-lobo-antunes-fernando-pessoa-me-aborrece-ate-a-morte-cultura 1/4 JAVIER MARTÍN Lisboa 24 SEP 2015 - 16:10 BRT ANTÓNIO LOBO ANTUNES | ESCRITOR » António Lobo Antunes: “Fernando Pessoa me aborrece até a morte” O eterno candidato português ao Nobel publica no Brasil ‘Não É Meia-Noite Quem Quer’ Arquivado em:  Antonio Lobo Antunes Fernando Pessoa Virgilio Walt Whitman Marcel Proust Cormac McCarthy Louis Ferdinand Celine Mario Vargas Llosa Frank Sinatra Os livros devoram as paredes. “Já não cabem. Tenho que mudar para um apartamento maior”. E por que não joga fora algum? “Nunca. A maioria é muito ruim, mas não consigo. Tenho muito respeito pelos livros”. Um dos quartos do apartamento de António Lobo Antunes (Lisboa, 1942) é preenchido apenas com as traduções dos cerca de trinta livros que publicou. No estúdio escreve um professor canadense especializado em sua obra. Na Holanda, seu livro Caminho Como uma Casa em Chamas está na quarta edição, e no Brasil será publicado Não É Meia-Noite Quem Quer (Alfaguara, com previsão de lançamento em 19 de outubro), um retrato da condição humana ambientada na guerra de libertação de Angola. Como em cada uma de suas obras, quando Lobo Antunes escreve, dói; e quando fala, também. Pergunta. Obrigado por receber-nos em sua casa em Lisboa, a cidade de Pessoa. Resposta. Não sou um fã de Pessoa. P. Caramba! O Livro do Desassossego... R. O livro do não sei o quê me aborrece até a morte. A poesia do heterônimo Álvaro de Campos é uma cópia de  Walt Whitman; a de Ricardo Reis, de Virgilio. Eu me CULTURA O escritor António Lobo Antunes, em sua casa de Lisboa na passada semana. / JOÃO HENRIQUES

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JAVIER MARTÍN Lisboa 24 SEP 2015 - 16:10 BRT

ANTÓNIO LOBO ANTUNES | ESCRITOR »

António Lobo Antunes: “Fernando

Pessoa me aborrece até a morte”

O eterno candidato português ao Nobel publica no Brasil ‘Não É Meia-Noite Quem Quer’

Arquivado em: Antonio Lobo Antunes Fernando Pessoa Virgilio Walt Whitman

Marcel Proust Cormac McCarthy Louis Ferdinand Celine Mario Vargas Llosa Frank Sinatra

Os livros devoram as paredes. “Já não cabem. Tenho quemudar para um apartamento maior”. E por que não jogafora algum? “Nunca. A maioria é muito ruim, mas nãoconsigo. Tenho muito respeito pelos livros”. Um dosquartos do apartamento de António Lobo Antunes (Lisboa,1942) é preenchido apenas com as traduções dos cerca detrinta livros que publicou. No estúdio escreve um professorcanadense especializado em sua obra. Na Holanda, seu livroCaminho Como uma Casa em Chamas está na quarta

edição, e no Brasil será publicado Não É Meia-Noite QuemQuer (Alfaguara, com previsão de lançamento em 19 deoutubro), um retrato da condição humana ambientada naguerra de libertação de Angola. Como em cada uma de suasobras, quando Lobo Antunes escreve, dói; e quando fala,também.

Pergunta. Obrigado porreceber-nos em sua casa emLisboa, a cidade de Pessoa.

Resposta. Não sou um fã de Pessoa.

P. Caramba! O Livro do Desassossego...

R. O livro do não sei o quê me aborrece até a morte. A poesia do heterônimo Álvaro de Campos é uma cópia de

Walt Whitman; a de Ricardo Reis, de Virgilio. Eu me

CULTURA

O escritor António Lobo Antunes, em sua casa de Lisboa na passada semana. / JOÃOHENRIQUES

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O livro do não sei o quê

[de Fernando Pessoa] me

aborrece até a morte”

Não há grandes

escritores na Europa. Na

Irlanda, talvez”

pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bomescritor.

P. Também não há nada de novo em Portugal?

R. Não é um problema de Portugal ou da Espanha. Oproblema é que hoje não há grandes escritores na Europa —na Irlanda, talvez —, mas não na Inglaterra ou na França,que no século passado teve dois gênios, Proust e Céline. No

século XIX você tinha 20 ou 30 gênios na Europa.P. E nem na América?

R. Na América Latina existem;nos Estados Unidos, não;embora eu goste de Cormac

McCarthy. É um problema geral, é só ver quem ganhou osúltimos prêmios Nobel.

P. O senhor é que não foi.

R. Não, nunca o ganharei, embora eu sempre apareça nas

apostas, como os cavalos. Eu ganhei quase todos osprêmios, mas o que me interessa neles é o dinheiro.

P. É verdade, quando lhe comunicaram que tinha ganho oJuan Rulfo, o senhor respondeu: “Quanto?”.

R. Fiquei mal. Deram-me a notícia em uma videoconferência ao vivo, e os jornalistas mexicanoscomeçaram a rir. Foram 100.000 euros.

P. E o prestígio do prêmio não lhe importa?

R. O prestígio do prêmio é dado pelos escritores, não o

inverso.

P. Dedicado à psiquiatria, o senhor é um escritor tardio; atéos 37 anos, com Memória de Elefante (1979), não haviacomeçado a publicar.

R. Ninguém me queria; nem emPortugal ou em lugar algum;mas um editor americano, quenão tinha lido o livro, opublicou. Foi capa de The NewYork Times, Los Angeles Times

e The Washington Post e se vocêtem esses jornais, tem o mundo. O primeiro que mechamou da Espanha foi Jacobo [Martínez de Irujo], da[Editora] Siruela, com quem comecei a publicar. Passeisemanas escrevendo na casa dele em Ampurdán.

P. Aquele livro se baseava em suas experiências comopsiquiatra, Comissão das Lágrimas vem do seu passadomilitar em Angola.

R. Não me interessa escrever romances de guerra porrespeito aos mortos. Estou interessado em pessoas em

circunstâncias extremas. Eu queria desertar quando estavalá, mas meu capitão me disse: “Não vá, que a revolução sefaz por dentro, não nos cafés de Paris”.

P. E ele estava certo.

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Quando não escrevo não

me sinto bem, sinto como

uma angústia”

R. Sim, não há nada mais difícil do que uma guerra. Aos 18anos decretei que seria um gênio, mas você chega à guerra eisso desaparece imediatamente; você é um entre muitos. Háduas coisas magníficas do espetáculo da guerra: a beleza dacoragem física e o mais horrível, a covardia. Depois de 60anos você continua com pesadelos por causa das coisashorríveis de que participou. O que proponho é por que nãose sente culpa, por que é tão fácil matar e morrer.

P. A crítica diz que Comissão das Lágrimas trata dastorturas a Virinha, a capitã do Movimento de Libertação de

Angola.

R. Não foi bem compreendido, na verdade é sobre a mortede Jonas Savimbi em um atentado cometido pelos órgãosde inteligência portugueses, israelenses e norte-americanos,que o localizaram pelo celular.

P. A vida sempre em alerta.

R. Quase sempre. Quando o

Benfica jogava, escutávamos aspartidas no rádio e virávamos osalto-falantes para o lado de fora.Durante 90 minutos não nosdisparavam um único tiro. Osguerrilheiros eram do Benfica,como nós.

P. O senhor torce pelo Benfica?

R. E pelo Atlético de Madri, dois times do povo. Estoumuito feliz que El Niño [o atacante Fernando Torres, do

Atlético de Madri] voltou. Não é o que foi, mas demonstrouser homem de palavra, que já é coisa rara nos homens.

P. Compromisso, coragem, covardia... O senhor reparamuito nos valores básicos das pessoas.

R. E honestidade. Ao escrever, é preciso ser honesto. Mario Vargas Llosa, por exemplo, é um escritor honesto e umprêmio Nobel bem dado. Frank Sinatra dizia: “Posso ser umcanalha, posso ser um mafioso, mas quando canto soucompletamente honesto”.

P. O senhor gosta muito de música.

R. Eu gosto muito, mas já não ouço os agudos; não ouço os violinos.

P. Diga-me que o senhor gosta de fado.

R. Não me interessa muito. Depois de ouvir dois, acabasendo muito monótono.

P. E o flamenco?

R. Ah! Isso sim, muitíssimo. Essa sensualidade, essa beleza; Jacobo [Martínez de Irujo] costumava me chamar

quando descobria um novo cantor para que fôssemos ouvi-lo juntos. Aprendi mais com alguns saxofonistas de jazz,como John Coltrane e Charlie Parker, do que comescritores.

P. O que o senhor aprendeu?

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O que me interessa dos

prêmios literários é o

dinheiro”

R. O fraseado, a musicalidadedo fraseado. No fim das contaseu sou um ladrão, um homemque está sempre procurandocoisas no lixo. Meus livrosnascem do lixo.

P. E não encontrou um livro que lhe mudasse a vida?

R. Sim. Na minha juventude, não sei como, caiu em minhasmãos Nueve novísimos poetas españoles (José MaríaCastellet, 1970). Eu o li e compreendi que não podiacontinuar a escrever a merda que escrevia. Cada um dosnove era melhor do que eu. O prólogo já era maravilhoso.Como poderia me comparar à Ode a Venecia ante el mar delos teatros, de Pere Gimferrer.

P. E agora, o que salvaria de sua obra?

R. Nunca falo dos livros que acabei. Não leio as provas nema edição. Quando os entrego, eu esqueço. Acabou. Não

pense mal de mim, mas tenho orgulho da minha obra.P. Não lê as críticas?

R. Eu sei o que eu escrevo. Não preciso lê-las. Nem as deHarold Bloom, embora nesse sentido me pareça maisimportante Steiner, o maior gênio que existe. Você sabiaque ele tem o piano de Darwin em casa? Muitas vezesconfundimos nossos gostos com nossas paixões. Borges é

bom, mas eu não gosto; Roberto Bolaño é bom, mas nãocompreendo o fenômeno, talvez porque ele morreu jovem,talvez eu não goste porque o conheci. Esse é o problema da

crítica. Se ela corresponde aos seus gostos, é bom; se não, éruim.

P. O senhor escreveu 30 livros em 37 anos. Não vai parar?

R. O que posso fazer? Quando não escrevo não me sinto bem, sinto como uma angústia; uma coisa física difícil deexplicar. Tenho a impressão de que me fizeram paraescrever.

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